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A Teoria Monetária de Marx: Atualidade e Limites Frente ao Capitalismo Contemporâneo Tomas Nielsen Rotta Doutorando em Economia pela University of Massachusetts at Amherst, EUA e Mestre em Economia pela Universidade de São Paulo (FEA-USP), Brasil Leda Maria Paulani Professora Titular do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (FEA-USP), Brasil Resumo O sistema monetário internacional passou por mudanças estruturais após 1971, com destaque para a introdução do padrão-dólar puro. Assim sendo, este artigo investiga a atualidade e os limites da teoria monetária de Marx em face a esses novos determinantes econômicos. Mostraremos a necessidade ontológica da existência do dinheiro inconversível e quais são os problemas lógicos que esta nova forma social traz para a teoria marxista do dinheiro. Por fim, proporemos uma abordagem marxista para apreender teoricamente o novo padrão dólar-dólar. Palavras-chave: Marx, Moeda, Dinheiro, Dinheiro Inconversível, Dialética Classificação JEL: B51, E40 Abstract The international monetary system underwent structural changes after 1971, especially with the emergence of the pure-dollar standard. In this way, this article investigates the limitations and the current adequacy of the Marxist monetary theory in the light of those new economic determinants. We show the ontological necessity of the existence of the inconvertible money form and the logical problems engendered by it when considering Marx’s theory of money. Lastly, we develop a Marxian approach to theoretically apprehend this new pure-dollar standard. Recebido em junho de 2009, aprovado em novembro de 2009. Este trabalho foi desenvolvido no âmbito do CAFIN – Grupo de Pesquisas em Instituições do Capitalismo Financeiro, registrado no CNPq e sediado na FEA-USP. Sua líder, a Professora Leda Paulani, tem bolsa de produtividade CNPq em projeto correlato ao que deu origem a este trabalho. Tomas Rotta agradece os apoios financeiros da Revista EconomiA Setembro/Dezembro 2009

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A Teoria Monetária de Marx: Atualidade e

Limites Frente ao Capitalismo

Contemporâneo

Tomas Nielsen Rotta

Doutorando em Economia pela University of Massachusetts at Amherst, EUA eMestre em Economia pela Universidade de São Paulo (FEA-USP), Brasil

Leda Maria Paulani

Professora Titular do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo(FEA-USP), Brasil

Resumo

O sistema monetário internacional passou por mudanças estruturais após 1971, comdestaque para a introdução do padrão-dólar puro. Assim sendo, este artigo investiga aatualidade e os limites da teoria monetária de Marx em face a esses novos determinanteseconômicos. Mostraremos a necessidade ontológica da existência do dinheiro inconversívele quais são os problemas lógicos que esta nova forma social traz para a teoria marxistado dinheiro. Por fim, proporemos uma abordagem marxista para apreender teoricamenteo novo padrão dólar-dólar.

Palavras-chave: Marx, Moeda, Dinheiro, Dinheiro Inconversível, Dialética

Classificação JEL: B51, E40

Abstract

The international monetary system underwent structural changes after 1971, especiallywith the emergence of the pure-dollar standard. In this way, this article investigates thelimitations and the current adequacy of the Marxist monetary theory in the light ofthose new economic determinants. We show the ontological necessity of the existence ofthe inconvertible money form and the logical problems engendered by it when consideringMarx’s theory of money. Lastly, we develop a Marxian approach to theoretically apprehendthis new pure-dollar standard.

⋆Recebido em junho de 2009, aprovado em novembro de 2009. Este trabalho foi desenvolvido no

âmbito do CAFIN – Grupo de Pesquisas em Instituições do Capitalismo Financeiro, registrado noCNPq e sediado na FEA-USP. Sua líder, a Professora Leda Paulani, tem bolsa de produtividade CNPqem projeto correlato ao que deu origem a este trabalho. Tomas Rotta agradece os apoios financeiros da

Revista EconomiA Setembro/Dezembro 2009

Tomas Nielsen Rotta e Leda Maria Paulani

1. Introdução

Seria a teoria monetária de Marx adequada para apreender teoricamente osistema monetário internacional que passou a vigorar no pós-1971 (pós-BrettonWoods)? Sabemos que Marx pensou o dinheiro com três determinações: medidados valores, meio de circulação e dinheiro como dinheiro (entesouramento,meio-de-pagamento). Sabemos adicionalmente que Marx viveu e escreveu em umperíodo histórico em que imperava o padrão-ouro e as doutrinas da CurrencySchool (principalmente através da grande influência teórica de David Ricardo).Cabe perguntar, portanto, até que ponto o dinheiro que hoje temos, fruto dopadrão-dóalr puro, não representa um problema lógico para a exposição dialéticada forma dinheiro em Marx.

Este artigo, tomando como questão central a adequação da teoria marxista dodinheiro frente ao atual padrão assentado sobre o dólar inconversível, desenvolverespectivamente os seguintes tópicos:

(i) mostrar a necessidade ontológica da existência do dinheiro inconversível,própria ao pós-1971;

(ii) mostrar os problemas lógicos que a forma dinheiro inconversível traz para ateoria monetária de Marx;

(iii) teorizar com categorias marxistas o padrão-dólar puro que hoje temos.

2. Moeda Enquanto Moeda Inconversível: Sua Necessidade Lógica

A moeda inconversível própria ao sistema monetário mundial pós-1971 estápressuposta nos esquemas de Marx, cabe agora a sua posição. Estava pressupostaporque estava com todas as suas determinações, ainda que não tivesse adeterminação posição. Sabemos por Fausto (1987a) que tanto a Hegel quanto aMarx um conceito pode estar com todas as suas determinações e ainda assim nãoestar posto. Se em Marx o dinheiro inconversível está pressuposto, sua necessidadeobjetiva foi posta em 1971. Cabe agora pô-la no nível do discurso. 1

Em um texto pouco conhecido, Marx deixa claro que a essência do dinheiro éser uma abstração:

“O modo próprio do dinheiro como dinheiro ... corresponde mais à sua essência quantomais abstrato se torna, ... [ou quanto] maior a discrepância entre seu valor como dinheiroem relação ao valor de troca ou ao valor monetário do material que lhe serve de suporte”(Marx 1844). 2

FAPESP e do CNPq ao projeto de mestrado do qual este artigo é fruto direto.E-mail addresses: [email protected] and [email protected]

Quando dizemos “dinheiro inconversível” ou “dinheiro sem lastro”, nos referimos sem ambiguidades àforma atual que o dinheiro assume no padrão puro dólar-dólar.2

Trecho citado a partir de um texto de Marx de 1844 intitulado “Comentário sobre os Elementosde Economia Política de James Mill”, que está disponível em: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1844/james-mill/index.htm, e que foi primeiramente utilizado por Bryan e Rafferty (2007, p. 152).

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De fato, Marx apontou a tendência da forma dinheiro em se tornar uma puraforma. Nos Grundrisse ele assevera: “o dinheiro deve sua existência somente àtendência do valor de troca em separar-se da substância das mercadorias e de,assim, tornar-se uma forma pura” (Marx (1973, p. 160) – ênfase nossa). Marx,explicitamente, fala da tendência do dinheiro em ser pura forma. O que é distintode ser uma pura forma. Contudo, lembremos com Hegel que a tendência da formaé sua verdade: “a Coisa mesma não se esgota em seu fim, mas em sua atualização;nem o resultado é o todo efetivo, mas sim o resultado junto com o seu vir-a-ser”(Hegel 2002, ¶ 3, p. 26–27). Ou, ainda, lembremos com Lukács que “realidadenão é idêntica à existência empírica. A realidade não é, mas sim vem-a-ser. [...]Neste devir, nesta tendência, neste processo, a verdadeira natureza do objeto serevela” (Lukács 1922, p. 203). Ou seja, à pergunta “Qual a realidade do dinheiro?”deveríamos responder que “o dinheiro é o que ele vem-a-ser, pura forma”. Realidadediz respeito não ao que é, mas ao vir-a-ser (e realidade aqui é a realidade efetiva,a wirklichkeit de Hegel).

Entretanto, na sequência do mesmo texto Marx ainda se mostra preso àrealidade objetiva do padrão-ouro: “No curso de seu desenvolvimento, o valorde troca do dinheiro pode ainda existir separadamente de sua matéria, de suasubstância, como no caso do papel-moeda, sem entretanto conseguir separar-sedesta mercadoria específica, já que a forma existencial em separado do valor de trocadeve necessariamente continuar a receber sua denominação de uma mercadoriaespecífica” (Marx 1973, p. 167). Ou seja, já nos seus rascunhos, e assim como ficarávisível no Zur Kritik e em O Capital, Marx entende que a essência do dinheiro épuramente formal, ainda que ele se apresente em sua época através do ouro.

O argumento aqui não é o de que falta ao Capítulo 3 do Volume I de OCapital a posição objetiva do dinheiro inconversível, senão a posição determinaçãomesma. Não é que o dinheiro inconversível enquanto realidade efetiva [Wirklichkeit]esteja ausente para Marx, mas enquanto realidade [Wirklich] mesma. Se para omarxismo é a posição objetiva (efetividade) que regula a posição determinação(categoria), cabe agora introduzir o dinheiro inconversível nos esquemas marxistasenquanto categoria, enquanto essência. Queremos passar do fenômeno à essência,da realidade efetiva à realidade; para assim mostrar sua necessidade lógica. Dessaforma, o dinheiro inconversível evidenciar-se-á como uma nova determinação queadéqua o dinheiro ao seu próprio conceito, e o dinheiro inconversível mundial(padrão dólar puro) como sua existência mais congruente. O dinheiro inconversívelé uma determinação nova, é uma forma particular do dinheiro, sendo o dólarmundial pós-1971 seu modo de existência – seu uso – mais adequado. O dinheiroinconversível não está presente em Marx como posição determinação; não seencontra no conceito de dinheiro – afinal nem existia no século XIX como posiçãoobjetiva. Ou seja, o dinheiro inconversível, em O Capital, não existe enquantocategoria, como realidade. Como ele agora existe enquanto fenômeno, realidadeefetiva, devemos pô-lo enquanto essência. Essência que, longe de ser natural, ésocial: “A essência do dinheiro é sócio-econômica, e não natural” (Williams 2000,p. 447). O que, em suma, é fazer o conceito de dinheiro mover-se pelo trabalho

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do negativo. Portanto, à pergunta “estaria o dinheiro inconversível compreendidona Seção I do Volume I de O Capital?”, deveríamos responder: “sim e não” ou“sim-não”; está e não-está. Está pressuposto, cabe agora pô-lo realmente.

Poder-se-ia asseverar, como ocorre em Fausto (1987a, p. 169–170), que oouro como dinheiro é a apropriação pela forma de uma materialidade que lhe éadequada. Contudo, faz-se necessária uma correção: é adequada, mas ao mesmotempo também inadequada, pois nesta matéria a forma dinheiro ainda encontraatritos entre sua materialidade e sua funcionalidade. É só como forma pura,dinheiro inconversível, que a forma dinheiro se torna adequada ao seu conceito.Assim sendo, não é a matéria que tem de estar em conformidade com a forma, massim que a forma deve estar adequada ao seu próprio conceito. O ouro, portanto,é e não-é matéria congruente ao equivalente geral. É adequada por conta detodas as características naturais da matéria ouro, contudo concomitantementeinadequada. Essencialmente à forma dinheiro, como veremos, não lhe conformanenhuma matéria.

Entendemos aqui que a forma mercadoria e as formas I, II, III e IV representama gênese da forma dinheiro. 3 A forma dinheiro inconversível (pós-1971), por seuturno, diz respeito ao desenvolvimento da forma dinheiro. O dinheiro inconversível éa forma ontológica que supera as inadequações da forma dinheiro com materialidadeno ouro. Há, portanto, uma necessidade (onto)lógica de passarmos à forma dinheiroinconversível. Necessidade essa dialética. Assim entendido, a decisão do governo deNixon em pôr fim ao padrão-ouro está longe de ter sido mero resultado de umcapricho humano ou de uma contingência histórica. Este movimento não é senãoa realização necessária da essência do dinheiro. Tratar o dinheiro que hoje temoscomo fruto contingente da história implica o fortalecimento da tese convencionalistado dinheiro. A solução “historicista” é um tipo de solução que evita as contradiçõesdo objeto e não diferencia posição de pressuposição. 4

A congruência entre a forma e a matéria ouro se revela, assim, comonão-congruência. A verdade da adequação entre forma e matéria é sua inadequação;sua verdade é sua negação. O sistema se corrompe por esta contradição, cuja origemé a própria identidade. Isto é, da identidade entre forma e matéria emergiu adiferença e, mais do que diferença, contradição. A congruência se interverte emincongruência pela sua própria efetivação. A ruptura vem do interior. Tomar amatéria como adequada à forma dinheiro é positivar uma relação que em verdadeé contraditória.

O dinheiro inconversível está pressuposto em O Capital ; é aí uma possibilidade:“A conversibilidade, legal ou não, permanence como um requerimento de todo tipo

3Marx afirma reiteradamente no Capítulo 1 do Volume I de O Capital que é a forma relativa que

se desenvolve, levando consigo a sua antítese, a forma equivalente. Ou seja, a forma equivalente geralé resultado do desenvolvimento da forma relativa. A forma equivalente é passiva. Contudo, na formadinheiro inconversível enquanto equivalente universal é a forma equivalente que passa a comandar odesenvolvimento da forma relativa. Exatamente em oposição ao que ocorria no desenvolvimento lógicoprecedente. Isto é: com o dinheiro inconversível, a forma equivalente perde sua passividade que lhe

fora constituinte.4

Carchedi (1991, p. 165) é um bom exemplo de uma solução historicista que aqui queremos evitar.

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de dinheiro cujo título lhe torna um símbolo de valor, isto é, que o equacionaenquanto quantidade com uma terceira mercadoria. Tal equação já inclui suaantítesis: a possibilidade de não-equivalência; a conversibilidade inclui seu oposto,inconversibilidade” (Marx 1973, p. 134). Contudo, não se trata aqui de mostrar queo possível enquanto possível, por ser possível se põe como necessário. Ao contrário,é a supressão da possibilidade que permite a passagem à existência, ao ser. Se opossível enquanto puro possível for possível, não haverá efetividade. A prova danecessidade lógica do dinheiro inconversível segue um argumento negativo: “ParaHegel, não é porque o possível enquanto possível é possível que ele se põe comonecessário. É porque o possível enquanto puro possível é impossível que ele sepõe como necessário. De onde a preferência de Hegel pela versão negativa doargumento ... que deve evidentemente perder seu caráter de prova por absurdopara se transformar em prova pela negação (através do ‘absurdo’, se diria)” (Fausto1987b, p. 163). Ou, dito de outra maneira: as sucessivas formas do valor que nos sãoapresentadas põem o que a forma anterior pressupunha; e o dinheiro inconversívelnão escapa a isso, já que ele põe o que a forma dinheiro conversível pressupõe. Se(Fausto 1997, p. 65, 70–71) diz claramente que o dinheiro é equivalente universalestável graças ao caráter adequado da matéria em que se encarna o valor, aquinossa tese é outra: o dinheiro enquanto ouro é adequação posta (pois retira ainstabilidade da forma III) e inadequação pressuposta (pois ainda retém um conflitoentre sua função social e sua materialidade particular, o ouro). É por isso queenfatizamos que o dinheiro inconversível é a posição do que está pressuposta nodinheiro conversível. A posição da forma pura resolve a contradição entre forma ematéria constitutiva do dinheiro, tornando-o adequado ao seu conceito. O dinheiroinconversível põe a descoberto que a “estabilidade” da forma dinheiro conversívelé em verdade uma estabilidade aparente. Como veremos ao analisarmos o dólarpós-1971, a universalidade enquanto dinheiro nunca é estável, sendo esta inquietudeda forma o que a faz mover-se como conceito.

O dinheiro inconversível é e não-é a forma dinheiro presente em O Capital.É, porque parte dela. Não é, porque a nega. Nega e conserva. Se fosse sóum desdobramento historicista, então somente haveria conservação. Mas, comomostramos, além de conservação há uma negação. A dialética da forma do valor,ou seja, da gênese do dinheiro, opera a passagem da posição ideal a uma posiçãoreal da forma na matéria (Fausto 1997, p. 39). Agora, após o que vimos, poderíamoscompletar esta asserção dizendo que se a gênese do dinheiro é a posição realda forma na matéria, o desenvolvimento do dinheiro é a expulsão da matériapela forma. Desse modo, o desenvolvimento do dinheiro operaria uma verdadeiraAufhebung (negação-conservação) de sua gênese. Em outras palavras: o dinheiroinconversível revela que o desenvolvimento da forma dinheiro é na realidade umainter-versão de sua gênese. Enquanto a gênese trata de mostrar que forma e matériasão adequadas, o desenvolvimento trata de mostrar que elas são, ao contrário,inadequadas.

O sistema lógico apresentado por Marx tem uma mensagem central clara: aprogressiva autonomização do valor em relação ao valor-de-uso, e do trabalho

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abstrato em relação ao trabalho concreto. Autonomização aqui entendida comointrodução de novas camada mediadoras entre dois pólos que constituem o mesmoobjeto, a mercadoria. Reconhecer que o dinheiro inconversível é adequado aocapitalismo implica reconhecer a negatividade que perpassa forma e matéria, valore valor-de-uso, trabalho abstrato e trabalho concreto. 5

3. Moeda Enquanto Moeda Inconversível: Auto-Referência,

Convencionalismo e Fetichismo

A passagem do dinheiro conversível ao dinheiro inconversível, o qual não prometenada além de si mesmo, evidencia que esta última forma determina o seu valore o que ela significa como signo através de uma auto-referência (Rotman 1987,p. 5). A moeda inconversível, portanto, apresenta uma característica específica deauto-referencialidade. Marx, no Capítulo 3 do Volume I de O Capital, nos alertoupara o fato de que a substituição das moedas de ouro por notas de papel induzia aciência a apreender o dinheiro como “puro signo” ou mesmo um “produto abstratoda reflexão” – afinal de contas o padrão dólar puro denuncia de alguma forma queo dinheiro tem uma dimensão metafísica ainda mais forte (Paulani 1991, p. 146).A preocupação de Fausto (1987b, p. 61) é a de que tal processo reforça a aparênciaconvencionalista (de ligação sem necessidade) das formas monetárias. Nossa tarefaprévia constituiu-se, assim sendo, em mostrar a necessidade ontológica e dialéticada existência do dinheiro inconversível, justamente a fim de evitarmos ao máximoqualquer recurso convencionalista.

O dinheiro inconversível diz respeito a um nível mais elevado de autonomizaçãodo valor. Existiria, desse modo, um fetichismo próprio a ele? Tomando porbase o fato de que esta nova posição da forma na matéria expulsa a matéria,diríamos que tratar a matéria como adequada à forma é cair em fetichismo, cujocomplemento é a tese convencionalista de que seria a forma dinheiro inconversívelpura convenção, pura arbitrariedade. Sendo que a tentação para cairmos emexplicações convencionalistas não é pouca. Mesmo Foley (1986, p. 23–24) chega aafirmar que quando o dinheiro é inconversível “o equivalente geral é uma unidade deconta abstrata”. Isto é, Foley afirma que quando o dinheiro torna-se inconversível,a forma equivalente é preenchida por uma convenção, uma unidade abstrata deconta. 6

Primeiro expliquemos o que entendemos por fetiche e convenção. Seguindo Fausto(1997, p. 76 e subs.) temos dois pólos antinômicos:

5Ver Carcanholo (2001) para possíveis conexões entre a desmaterialização do dinheiro e da riqueza

e a dinâmica financeira contemporânea atrelada ao capital fictício.6

Há também aqueles que discordam de uma necessidade lógica da primeira forma dinheiro ter tidoalgo físico como sua matéria: “O dinheiro-mercadoria não deve necessariamente ser uma mercadoria.Em O Capital, Marx de fato equacionou dinheiro com ouro (embora em outros escritos tenha descritoo Bullionismo como superstição). Entretanto, não temos que aceitar o ouro enquanto mercadoria comoa base teórica para o dinheiro no capitalismo: o ouro era meramente o dinheiro-mercadoria dominanteno século XIX” (Bryan e Rafferty 2007, p. 152).

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(a) Fetichismo: é o anti-convencionalismo abstrato, pois supõe que a matériaque serve de suporte à forma é naturalmente a forma. É, portanto, a ilusãonaturalista de supor que o conteúdo é natural. Toma o suporte por forma, ouo social como natural;

(b) Convencionalismo: é supor que a matéria da forma é qualquer. É, assim, ailusão da ausência de conteúdo ao supor que as relações sociais são produtosarbitrários da reflexão dos homens.

Se o fetichismo da modernidade é a “projeção descendente” do abstrato socialao abstrato natural (Fausto 1987b, p. 62), a forma dinheiro inconversível é, nestesentido, um exemplo excelente de uma abstração social em sua máxima realidade.Assim, essa forma mais bem acabada do dinheiro leva o seu fetichismo ao extremo,para o qual os rastros de sua gênese tornam-se ainda mais camuflados. Maiorautonomia do dinheiro inconversível que tampouco se fez sem um movimentoideológico particular. Se a matéria foi negada pela forma no sistema, o processoideológico de “bloqueio das significações” (Fausto 1987b, p. 299) inverte no planodas representações os termos postos e negados. Por mais que o dinheiro esteja defato apartado de uma matéria que lhe confira valor ou “estabilidade”, a ideologiafaz o contrário ao negar o que está posto (a inconversibilidade da pura forma) eao positivar o que está negado (a matéria). Esse processo de bloqueio operado pelaideologia é justamente o que mais trabalha a favor da inversão. Ou seja, a ideologiaopera uma inversão para que a inversão mesma não apareça como tal. Se o dinheiroquer se afirmar como pura forma, a ideologia o apresenta como pura matéria.Dessa maneira, o dinheiro inconversível como pura forma é mais eficazmente postocomo o que é quando se apresenta como o que não-é, como o contrário de simesmo. Para se pôr como o que é, tem que se afirmar como o que não é. OEstado neste caso é absolutamente necessário, pois é o “guardião da identidade”. 7

A ilusão, fruto também da gramática não-dialética do entendimento, reside naindiferenciação entre posição e pressuposição, já que o pensar representativo sótrabalha com termos positivados, plenamente constituídos. Assim, o processo deconstituição da forma monetária pura se reduz a uma identidade “garantida” naprática por um carimbo do Federal Reserve norte-americano. Sem o Estado, aforma inconversível do dinheiro não teria lugar, pois sua formação contraditória ouficaria a descoberto ou nem mesmo se efetivaria. O dólar só é possível e efetivo comounidade contraditória por ter a figura estatal como “garantidora” desta identidade.O Estado “garante o funcionamento de relações que não podem ser abandonadasa elas mesmas, mesmo em circunstâncias normais, justamente porque elas sãocontraditórias” (Fausto 1987b, p. 311). E faz isso hipostasiando a aparência. Amistificação é a apresentação do fundo pressuposto, a matéria, como se aindaestivesse posto.

7Este termo é apresentado por Fausto (1987b, p. 301) para introduzir a necessidade lógica da ideologia

e do Estado no capitalismo. O empregamos por considerar que no caso em questão o termo também seadéqua bem.

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Ainda assim, mesmo tendo o aparato estatal como bastião da identidade, as crisesfinanceiras e monetárias vêm a colocar em dúvida a própria identidade entre forma ematéria – ainda que não consigam chegar ao ponto de revelar socialmente que formae matéria são contraditórias. A crise as coloca simplesmente como diferenças. Dessemodo, se em um momento (o do Estado) é a identidade que oculta a contradição,no outro (o da crise) é a diferença que oculta a contradição. A contradição mesmaentre forma e matéria, constitutiva do dinheiro, não aparece socialmente. Ela semantém oculta ora sob a identidade ora sob a diferença.

O dinheiro inconversível traz consigo duas possibilidades de ilusão:(a) pensar que a matéria sempre foi um capricho arbitrário e historicamente

situado, o que inevitavelmente levaria a uma teoria convencionalista dodinheiro; e

(b) achar que o ouro ainda continua a ser a matéria do dinheiro, o que acarretariaevitar os novos problemas que a forma dinheiro implica.

Assim, dois tipos de ‘teorias’ evitam esta discussão:(a) aqueles que acreditam que a inconversibilidade do dinheiro é uma ilusão ou

uma determinação temporária; e(b) aqueles que acreditam que o dinheiro nunca foi um dinheiro-mercadoria, sendo

pura convenção – teóricos estes que tampouco conseguem explicar como odinheiro como pura convenção mede os valores das mercadorias.

Para melhor explicitar esse problema, a figura a seguir mostra a seqüência dasformas que aqui analisamos (as formas simples e total foram ocultadas), ondefiguram por nossa conta duas novas formas: a “forma dinheiro conversível” e a“forma dinheiro inconversível”:

(f.r.=forma relativa; f.e.=forma equivalente)

X de A

Y de B

Z de C

[...]

= W de D

f.r. f.e.

(a) Forma Eq. Geral

X de A

Y de B

Z de C

[...]

= W gramas de ouro

f.r. f.e.

(b) Forma Dinheiro

X de A = W gramas de ouro

f.r. f.e.

(c) Forma Preço

X de A

Y de B

Z de C

[...]

= W de D = US$ 10

f.r. f.e.

(d) Forma Dinheiro Conversível

X de A

Y de B

Z de C

[...]

= US$ 10

f.r. f.e.

(e) Forma Dinheiro Inconversível

f.r. f.e.

Fig. 1. A sucessão das formas do valor

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A Teoria Monetária de Marx: Atualidade e Limites Frente ao Capitalismo Contemporâneo

As formas (a), (b) e (c) já são conhecidas e não nos trazem problemas. Aquestão, portanto, está nas formas (d) e (e). Na “forma dinheiro conversível”a parcela “W de D” ocupa simultaneamente duas posições lógicas, a de formaequivalente e a de forma relativa, que é resultado da dupla relação entre asvárias mercadorias e o equivalente geral e outra entre o equivalente geral euma denominação monetária. Tal inadequação só pode ser resolvida em umaoutra forma, a do dinheiro inconversível, para a qual a exclusão do valor-de-usocomo matéria do equivalente geral elimina a contradição advinda de uma mesmamercadoria que ocupa duas funções lógicas excludentes. Entretanto, esta soluçãonos traz um problema adicional. Já sabemos que a forma relativa figura com seuvalor enquanto que a forma equivalente figura com seu valor-de-uso, donde emergejustamente a expressão do valor através do seu contrário, o valor-de-uso. Este é omecanismo lógico que explicita que a origem lógica do fetichismo (a expressão doque é social, o valor, por meio do que é natural, o valor-de-uso) reside na própriaexpressão do valor. Só que na última forma, a do dinheiro inconversível, não hámais valor-de-uso do lado direito da equação; isto é, a forma equivalente figuraaí não mais como matéria para expressão do valor de outra mercadoria. Nestecaso só permanece a arbitrariedade do padrão de preços e da unidade de contaimposta por convenção. Como, então, fica a explicação do fetichismo quando oseu mecanismo de origem (expressão do valor através do valor-de-uso) não estámais presente na forma dinheiro inconversível? Ainda se pode falar de fetichismoquando o valor-de-uso desapareceu do lado da forma equivalente? Marx afirmavaque o valor para ser expresso devia ser posto no valor-de-uso de outra mercadoria;mas quando o dinheiro é inconversível, quem assume essa função de valor-de-uso?Um valor-de-uso formal? A gênese do dinheiro mostra que esta forma não é umacriação arbitrária através de leis ou através do Estado; porém, podemos observarque ao se progredir na apresentação lógica do dinheiro se faz necessário cada vezmais pôr o Estado.

Fausto (1997, p. 78) diz que “o preço da desconvencionalização é a fetichização”,no sentido de que conforme se caminha na apresentação das formas do valor,saímos cada vez mais das teses convencionalistas sobre preços e dinheiro paracairmos paulatinamente na naturalização das formas sociais. Contudo, pelo quevemos do desenvolver lógico do dinheiro, a forma inconversível parece apresentarao mesmo tempo essas duas ilusões objetivas. Se atualmente se confunde aindasuporte com forma, não é menos verdade que a sociedade toma esta forma purapor simples convenção. Fausto está correto quando afirma isto do ponto de vistada apresentação lógica das formas, mas do ponto de vista dos agentes ambas asilusões caminham em graus crescentes.

4. O Problema da Moeda Inconversível como Medida dos Valores

Investiguemos agora a moeda enquanto medida dos valores, que é um problemade determinação do valor da moeda. No item seguinte nossa preocupação será com

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a moeda enquanto meio de circulação, que é um problema de representação dovalor. Ambos são “problemas” porque ainda não está claro o que ocorre com taisdeterminações quando o dinheiro passa a ser dinheiro inconversível, desgarrado dequalquer matéria. Ou seja, o dinheiro inconversível traz dois problemas teóricospara o dinheiro enquanto moeda: um de determinação do valor da moeda e outroda representação do valor através de símbolos. Ambas as questões são pertinentesao dinheiro enquanto moeda, e não ao dinheiro enquanto dinheiro.

Temos aqui dois problemas distintos: se um par de sapatos custa 100 dólaresou 1000 dólares constitui-se uma questão diferente de como se forma o preço, sejaele qual for. O nosso problema fundamental a ser investigado diz respeito maisao segundo questionamento, ou seja, sobre como passar de valores a preços sob aforma da moeda inconversível. Não estamos preocupados com o nível absoluto dospreços, mas sim em como eles são determinados a partir dos valores, considerandoa primeira determinação da moeda, a medida dos valores: 8 “Ao mesmo tempo emMarx afirma que o ouro como meio de circulação possa ser substituído pelo Estadopor papel, ele insiste que como medida dos valores o dinheiro-mercadoria não podeser substituído, mesmo que somente opere ‘idealmente’, ou seja, em sua ausência”(Arthur 2005, p. 115).

Marx faz largo uso do ouro como matéria e suporte da forma dinheiro, e aindamais como elemento chave para a determinação do valor de troca deste último epara a determinação dos preços das mercadorias. Mas por que a determinaçãoda moeda como medida dos valores constitui um problema a ser investigadocontemporeaneamente? A resposta encontra-se no próprio Marx: “Enquanto emsua função de realizar os preços, sua existência material como ouro ou prata éessencial” (Marx 1973, p. 209). Este é o problema: Marx transforma valores empreços pressupondo a essencialidade da matéria do dinheiro. Quando o dinheiroperde tal matéria, como determinamos os preços? Enquanto medida dos valores, amoeda desempenha esta função por ser também produto do trabalho. Mas o atualdinheiro sem lastro não o é. Dinheiro inconversível, como hoje temos, não temsubstrato material produzido pelo trabalho, assim sendo “como se determinam ospreços monetários quanto o ouro desaparece como equivalente geral, sendo entãosubstituído por papel-moeda inconversível sem valor intrínseco?” (Carchedi 1991,p. 165). Poderíamos afirmar que com o fim do lastro-ouro o dinheiro perdeu suafunção de “medida dos valores” e que, portanto, atualmente só serve como “padrãode preços”? Ao que tudo indica, chegamos a um impasse teórico, pois Marx definecomo essencial uma materialidade que não mais existe. Para o dinheiro conversível,papel-moeda lastreado em metal precioso, há uma “sombra de ouro”, que em termosdialéticos seria exatamente a pressuposição posta, que, para nós, é característicasomente do padrão-ouro tradicional ou padrão dólar-ouro. O dinheiro enquantomedida dos valores é ideal, mas ideal como representação imediata da matéria. Ouseja, ainda que o dinheiro aqui seja ideal, sua representação não aceita mediações

8“O dinheiro permite a expressão quantitativa do valor, mas ele mesmo não é expresso

quantitativamente. Está aí toda a dificuldade” (Fausto 1997, p. 54)

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para se chegar à matéria. Entretanto, quando o dinheiro perde tal matéria, comodeterminamos os preços? “A real questão é se o dinheiro deve ser uma mercadoria,na teoria de Marx, em sua função fundamental de medida dos valores” (Moseley2005, p. 5), ou como bem coloca Arthur (2005, p. 116), o problema do dinheiroinconversível enquanto medida dos valores não é só lógico nem só social, ele éontológico.

Sobre o ouro como dinheiro, Marx (1982, p. 57) nos diz claramente que para estese tornar equivalente geral precisa ser um “valor variável”, justamente por deverser encarnação de tempo de trabalho social. Isto é evidente para o ouro e parao seu símbolo (que não tem valor), o papel-moeda. Mas, quando o papel perdeuo lastro em ouro, como pode este ser um “valor variável”? Ou melhor: que valoro papel-moeda inconversível encarna? A primeira intuição que temos é a de queo dinheiro inconversível opera uma inversão de sua determinação de medida dosvalores, já que em tal caso “o dinheiro não seria uma medida dos valores, mas,ao contrário, seu próprio valor seria mensurado pelas correntes necessidades dacirculação” (Hilferding 1981, p. 56–57). O dinheiro, ao perder sua materialidade,passa de mensurador a mensurado. O que, dito de outra forma, implicaria queo dinheiro enquanto medida dos valores nega a Teoria Quantitativa da Moeda(TQM), mas quando posto como dinheiro inconversível parece repor a validade daTQM. 9 Assim sendo, “a função de medir valores parece indicar que a análise dodinheiro sem valor (valueless money) sobre a base do dinheiro-mercadoria atingiuum impasse teórico” (Lapavitsas 2000, p. 634).

Vejamos agora as principais soluções que a literatura marxiana apresenta paraeste problema (onto)lógico, e façamos as respectivas e devidas críticas a cada umadelas:

(i) Foley e Carchedi:

A solução apresentada por Carchedi (1991, p. 165–166) e por Foley (1986,p. 14) 10 é a de que o valor do dinheiro inconversível passa a ser dado pelo valordas mercadorias que representam, isto é, pelo seu poder de compra: “O fato deque o dinheiro não tem valor intrínseco ... não significa que dinheiro de papel oude crédito não têm valor. O seu valor é o seu poder de compra” (Carchedi 1991,p. 166). O poder de compra do dinheiro é calculado dividindo-se a soma do valornovo criado (mais o valor dos meios de produção transferidos ao produto menos ovalor destruído ou desperdiçado) pela quantidade total de dinheiro em circulação(moedas, papel-moeda e crédito). Em suma, o que fornece o valor do dinheiro paraestes autores é o valor produzido que está incorporado nas mercadorias e o volumede dinheiro em circulação.

9Sobre o debate entre a teoria marxista e a teoria quantitativa da moeda quando o dinheiro se torna

inconversível, ver Rotta (2008, cap. 3, item 3.4).10

Nelson (2005) e Bellofiore (2005) também compartilham desta solução.

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Contudo, não seria esta uma solução que contraria os dizeres de Marx de que “asmercadorias já entram na circulação com preço”? Ao que parece, até aqui, a soluçãofoi retornar às implicações da TQM de Irving Fisher e Hume, que operavam atravésde uma dicotomia entre dinheiro e mercadorias. Além do mais, parece surgir umaconfusão entre as determinações da moeda: “a quantidade total de dinheiro servecomo uma medida do valor e, assim, como um meio de circulação de todas asmercadorias” (Carchedi 1991, p. 166), afinal ambas as determinações (medida dosvalores e meio de circulação) passariam – supostamente – a depender da quantidadede dinheiro circulante. 11

Foley (1986, p. 14–15, 21) deduz o valor do dinheiro dividindo o valor novocriado (mensurado em horas de trabalho) pelo valor criado expresso em unidadesmonetárias (dólares). “Esta fração deve ser chamada de ‘valor do dinheiro’, pois nosdiz quanto tempo de trabalho a unidade monetária representa” (idem, p. 15). Oinverso do “valor do dinheiro” é a “expressão monetária do valor” (MELT, monetaryexpression of labor time), a qual nos diz quanto de valor em unidades monetárias1 hora de trabalho cria. 12

Entretanto, estas asseverações são válidas para qualquer forma do dinheiro, sejadinheiro metálico, dinheiro papel-moeda ou mesmo dinheiro inconversível. Nãofaz diferença para a determinação da MELT se o dinheiro é ou não assentadosobre o ouro. Ou seja, esta não é uma real solução, pois aqui o problema real dodinheiro inconversível não está posto. Em verdade podemos calcular a MELT, ouo valor do dinheiro, em qualquer sistema monetário, pois trata-se de um cálculo expost sempre válido, e não uma teoria sobre a determinação do valor do dinheiro.Dito de outro modo, o que temos aqui é uma fórmula de cálculo universalmenteválida a posteriori, mas que não serve como explicação dos determinantes dovalor do dinheiro inconversível. O próprio proponente sabe disto e chega a dizerexplicitamente que como a MELT é calculada dividindo-se o valor adicionado emtermos monetários pelo trabalho socialmente utilizado, esta estimativa empírica nãoé uma explicação teórica do que de fato a determina, já que dessa forma a MELTdependeria do valor adicionado e, portanto, não poderia ser usada para determinaro valor adicionado (ou os preços das mercadorias), pois assim cairíamos em umraciocínio circular (Foley 2005). 13 Foley (1986, p. 24) chega até o ponto de dar umasolução historicista para um problema lógico. Diz ele que em um sistema monetárioem que o equivalente geral é uma unidade abstrata de conta, como quando o

11Saros (2007, p. 409–410) e Moseley (2004) seguem essa mesma linha de entender o valor do dinheiro

inconversível como daterminado pela sua quantidade em circulação e pelo valor das mercadorias querepresenta.12

Ver Foley (1986, p. 15) para a diferenciação entre “valor do dinheiro” e o “inverso da taxa de salário”,definições que não devem ser tomadas como sinônimos.13

Neste mesmo texto Foley (2005, p. 38–39), que é seguido por Reuten (2005), invoca uma interpretaçãoda “forma valor” para explicar a determinação dos preços. Tal teoria afirma que o trabalho abstrato nãoexiste como uma quantidade distinta dos preços e, portanto, o trabalho abstrato não pode determinaros preços. Trabalho abstrato e preços emergem conjuntamente na esfera da circulação quando o produtoé vendido. A crítica de Campbell (2005, p. 144) quanto a isso é dura: esta “value-form theory” cometeo erro contrário à “labor-shit theory”. Se esta última se livra do dinheiro para manter os valores, aprimeira se livra dos valores para manter o dinheiro.

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dólar não tem legal ou convencionalmente um equivalente definido em ouro, “ovalor do dinheiro é determinado historicamente pelas decisões de precificação dasmercadorias dos próprios produtores” (idem). Porém, tal explicação é inaceitável,pois confunde os discursos lógico e histórico. Além do mais, como lembra Saad Filho(2002, p. 97), tais mediações entre a determinação do valor-de-troca do dinheironão implicam que seja errôneo pôr, ex post, um equivalente monetário do trabalho.Entretanto, isto tende a unificar diferentes níveis de abstração, obscurecendo oselementos contraditórios de sua determinação. 14

Acima de tudo, esta solução para nós é uma recaída no argumento de Hume,para o qual se colocam dicotomicamente mercadorias de um lado e o dinheirocirculante de outro, daí derivando o valor do dinheiro por um simples raciocínioproporcional entre ambos estes “compartimentos”. Marx no Zur Kritik já havianegado a validade deste raciocínio por pressupor que circulam mercadorias sempreço. Ou seja, para Hume o preço é formado na união do “lado real” com o “ladomonetário”. A solução de Foley e Carchedi parece, assim como mostramos, voltara este argumento não-marxista.

(ii) Lapavitsas e Saad-Filho

O argumento central de Lapavitsas (2000) e Saad Filho (2002, p. 98–99) é o deque o problema do dinheiro inconversível enquanto medida dos valores deixa deser um problema efetivo quando passamos ao âmbito da concorrência dos capitais(isto é, no âmbito dos preços de produção), pois aí a materialidade do dinheironão é mais a única a determinar os preços absolutos. Após a transformação devalores em preços de produção a troca envolve não mercadorias com o mesmotempo de trabalho socialmente necessário, mas mercadorias com iguais taxas delucro. Dessa forma, a expressão monetária do trabalho (MELT) somente podeser determinada após a determinação dos preços das mercadorias (ao contráriodo que temos antes da transformação), e só tem validade no plano agregado(e não para cada mercadoria individualmente). Os preços de produção não sãodeterminados através de uma relação unívoca entre valores das mercadorias e ovalor do dinheiro-mercadoria (ouro). Ao invés disso, os preços de produção sãodeterminados simultaneamente pela taxa de valorização dos capitais adiantados. Atransformação implica que nenhuma mercadoria pode exercer a função de medidados valores. Neste nível de abstração, a mensuração do valor envolve a taxa decrescimento dos capitais adiantados através de um sistema complexo de preçosrelativos. Assim, o dinheiro-mercadoria não mais mensura valores independentesdas outras mercadorias e dos processos de produção, no qual a formação dos preçosde produção não depende do valor intrínseco do dinheiro-mercadoria (Lapavitsas

14Foley também chega a dizer que “nas economia contemporâneas, um capital fictício, o passivo

(liability) do Estado, em luigar de uma mercadoria produzida, opera como medida do valor” (2005,p. 46). Porém, de igual maneira, não se sabe o que determina o valor das unidades monetárias nas quaisas liablities do Estado são denominadas. O que sugere tomar o capital fictício por equivalente geral(idem, p. 48).

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2000, p. 634). A equalização da taxa de lucro, que é o processo real de formaçãodos preços de produção, não é afetada pelo fato de os preços serem estabelecidosem unidades de dinheiro conversível ou em unidade de dinheiro inconversível.

No Volume I de O Capital, os preços absolutos são determinados logicamenteantes dos preços relativos. Após a transformação, no Volume III, o valor do ouroé relevante só para a determinação do nível absoluto de preços, sendo que aí ospreços absolutos são determinados logicamente após os preços relativos. Este éo caso porque neste nível de abstração a medida do valor não é mais dada peloelemento que serve de matéria ao dinheiro, mas sim pela taxa geral de lucro, que é oestabilizador do sistema de preços relativos (Saad Filho 2002, p. 98). Mesmo quandoo dinheiro é uma mercadoria, como o ouro, a transformação de valores em preçosnunca é resultado da simples divisão do valor da mercadoria pelo valor do dinheiro.Para a transformação no nível da concorrência dos capitais, o valor intrínseco deuma matéria do dinheiro não é mais fator crucial e, portanto, a introdução dainconversibilidade do dinheiro não traz nenhum problema adicional (Lapavitsas2000, p. 634). Neste nível de análise, portanto, o ouro pode ser retirado, sem prejuízopara a estabilidade da economia ou para a nossa capacidade de entendê-lo. Assimque o ouro é retirado da circulação, os preços absolutos se mantêm ao nível anterior(ou mudam para um nível arbitrário caso haja uma reforma monetária). Um sistemamonetário desenvolvido é, portanto, a unidade complexa de uma medida dos valores(a taxa geral de lucro) e um meio de circulação (que pode assumir na práticaa forma de qualquer material, inclusive impulsos eletrônicos). Mesmo dentro dopadrão-ouro esta análise mostra que o ouro nunca é a única medida dos valoresnem um adequado meio de circulação – ainda que no desenvolvimento teórico opapel do dinheiro-mercadoria seja indispensável (Saad Filho 2002, p. 98–99).

Em suma, diríamos que Saad-Filho e Lapavitsas querem expressar que há umainversão na lógica da determinação de preços relativos e preços absolutos entreo nível de abstração do capital em geral (Volume I) e o nível de abstração daconcorrência dos capitais (Volume III). Inversão esta que faria com que a taxa delucro também assumisse a função de medida dos valores, para a qual a materialidadedo ouro deixaria de ser essencial. Em outros termos: a transformação de valoresem preços de produção modifica a função do dinheiro como medida dos valores,mudança que permite a introdução do dinheiro inconversível sem mais problemas.Esse raciocínio é sem dúvida bem interessante, mas, se bem lido, não responde defato à pergunta inicial. O que Saad-Filho e Lapavitsas fazem é responder umapergunta com uma resposta de outra pergunta. Eles deslocam o problema pararespondê-lo, afinal de contas a solução proposta parte do nível de abstração dospreços de produção, enquanto o que queremos saber é como o dinheiro inconversívelpode funcionar como medida dos valores no âmbito do Volume I (no nível deabstração do “capital em geral”). Um sintoma desse deslocamento que estes autoresrealizam é que a solução deles é, como a de Foley e Carchedi, válida para qualquersistema monetário, seja ele de ouro puro, papel-moeda conversível ou dinheiroinconversível pós-1971. Essa inversão em que a taxa de lucro assume papel essencialcomo medida dos valores é válida universalmente, o que deixa nossa inquietação

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ainda sem resposta satisfatória. 15

(iii) Arthur

A abordagem de Arthur (2005, p. 115–116) parte da idéia de que na física existemtrês tipos de medidas:(a) Medida comparativa direta: a medida compartilha inerentemente a mesma

dimensão com o mensurado. Exemplos: balança comum (com contrapeso) ea régua. Neste caso podemos estabelecer arbitrariamente um numerário. Amensuração direta é possível porque ambos os elementos (medida e mensurado)têm uma propriedade a priori em comum, antes da mensuração;

(b) Medida indireta: a medida é externa ao mensurado. Exemplos: balança de molae termômetros de mercúrio. A distorção da mola ou do mercúrio mostra a forçae a vibração das moléculas, e com uma teoria da determinação desta força nóspodemos saber o quanto o mensurado mede indiretamente;

(c) Medidas complexas: compostas de outras medidas. Exemplos: τ = F.d, o quenos exige medir a força e a distância para obtermos o trabalho realizado.

Diz Arthur então que o tempo de trabalho é uma medida imanente, mas que coma passagem do dinheiro conversível ao inconversível a mensuração passou de umacomparativa direta (como faz a balança por contrapeso ou uma régua) para umaindireta (como faz a balança de mola ou o termômetro). Ou seja, agora o dinheiroé uma medida externa e indireta do trabalho. No caso da balança de contrapeso,o contrapeso tem a mesma dimensão do peso a ser mensurado – o que equivaleao dinheiro conversível em ouro. Já no caso da balança com mola, a mola nãotem a mesma dimensão do peso a ser medido; a mola mensura o peso embora elamesma não vigore com o seu peso (ela vigora com sua distorção) – o que equivale aodinheiro inconversível, que mensura os valores embora ele mesmo não tenha valor.

Esta solução, que opera através de uma analogia com a física, mostra como ocorrea mensuração do valor, mas não o que o determina – e aí voltamos aos dizeres deFoley de que sabemos calcular embora não saibamos o que determina as grandezasde valor. Isto é, sabemos como o contrapeso mede o peso, mas não sabemos o quedetermina a distorção da mola para que esta mensure o peso. Segue então Arthurpela mesma via da determinação do valor do dinheiro pelo inverso do nível depreços, isto é, pelo seu poder de compra. Porém, diz ele que a medida imediatado trabalho é o tempo, e a do valor é o dinheiro; a medida imediata do valor éo dinheiro, e não o tempo de trabalho (idem, p. 118). 16 O erro estaria, então,supostamente no próprio Marx, que teria confundido o “determinante do valor”

15Kristjanson-Gural (2008, p. 267–268) também considera insuficiente a solução de Saad-Filho.

16Aqui Arthur erra. Como nos lembram Bellofiore (2005) e Campbell (2005), não é o dinheiro que

torna as mercadorias comensuráveis, mas o contrário. Se o dinheiro medisse as mercadorias, o valordelas seria só a quantidade de dinheiro pelo qual são trocadas, o preço. Ou seja, se o dinheiro medisseas mercadorias, o preço seria o valor. Se as mercadorias fossem comensuráveis somente por conta dodinheiro, o valor não seria sua propriedade e as relações entre mercadorias não mediariam as relaçõessociais.

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(tempo de trabalho) com a “medida do valor” (dinheiro). Os valores medidos emtrabalho não são determinados ontologicamente antes dos preços monetários. Seo valor é necessariamente mensurado em dinheiro, então os preços de produçãosão a forma acabada da medida dos valores, e não os preços diretos do Volume I(idem, p. 123) – com o que Arthur também se aproxima da hipótese de Lapavitsase Saad-Filho.

(iv) Moseley

Para Moseley o argumento de que a medida dos valores deve ela mesma possuirvalor é uma contingência histórica, e não uma necessidade teórica. Para quefuncione como medida dos valores, basta que uma coisa particular seja aceita pelosagentes como equivalente universal. Com o fim dos acordos de Bretton Woodsos agentes tiveram inevitavelmente que aceitar o papel-moeda inconversível, por simesmo, como o equivalente universal e, portanto, como medida dos valores. Nestecaso o dinheiro inconversível deve funcionar como medida dos valores, emboraele não contenha trabalho incorporado, “pois não há outra possível medida dosvalores, tampouco qualquer outra forma de representar trabalho em uma formaobjetiva” (2005, p. 15). Isto é, o dinheiro não precisa ser uma mercadoria na teoriade Marx, mesmo na determinação de medida dos valores, pois esta não precisanecessariamente possuir valor intrínseco e, portanto, o dinheiro inconversível podeservir nesta função. Para ser medida dos valores uma coisa precisa ser aceita pelosagentes como equivalente geral (Moseley 2004, p. 2).

Entretanto, o que determina a quantidade de trabalho social que é representadapor uma dada quantidade de dinheiro inconversível? O que determina o “valor dodinheiro” (MELT) quando ele torna-se inconversível? A resposta é desalentadora:“Desafortunadamente, nenhum dos autores deste livro que aceitam que o dinheirocomo medida dos valores não necessariamente deve ser uma mercadoria pôdeexplicar como of valor do dinheiro, ou a MELT, é determinada no caso do dinheiroinconversível” (idem). Ou, como diz Foley, a determinação do valor do dinheiro éum “assunto abstrato e teórico que ainda permanece sem solução” (2005, p. 43). 17

5. O Problema da Moeda Inconversível como Meio de Circulação

No item anterior investigamos a moeda enquanto medida dos valores, que é umproblema de determinação do valor da moeda. Agora, nossa preocupação é com amoeda enquanto meio de circulação, que é um problema de representação do valor.

Quando Marx se refere ao “papel-moeda”, ele o faz sempre pressupondo aexistência do ouro. A determinação “símbolo de valor” que aparece no Capítulo 3do Volume I de O Capital se refere sempre a um símbolo do ouro; ele é símbolo de

17Moseley (2004) tenta avançar nesta questão, mas pouco de fato é acrescentado em relação ao que já

afirmamos aqui.

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algo, de algo material. Papel-moeda sem lastro (dinheiro inconversível), entretanto,não é símbolo de ouro. Se papel-moeda sem lastro e puramente fiduciário fossesímbolo de valor, seria ele símbolo de qual valor? Se em sua origem histórica elógica o papel como símbolo designava de fato uma quantia de valor em ouro, como desenvolvimento do papel-moeda sem lastro a ligação com essa quantia originalde valor se perde por completo; apaga sua origem. Que valor então representa amoeda? Se a forma preço mostra que o ser-real pode ser expresso em um ser-ideal,o símbolo mostra que o ser-dinheiro está separado do seu ser-real (do seu ser-ouro).Sobre o dinheiro como meio de circulação temos que o “pressuposto da circulação dodinheiro é a circulação de mercadorias, pois o dinheiro faz circular mercadorias quejá têm preço, isto é, que já estão igualadas idealmente a determinadas quantidadesde ouro. Mesmo na determinação dos preços das mercadorias, a grandeza de valorda quantia de ouro, que serve de unidade de medida, ou o valor do ouro, é dadacomo pressuposto” (Marx 1982, p. 79). Ou, dito de outra forma: dados os valores detroca das mercadorias e a velocidade média de suas metamorfoses, a “quantidadede ouro circulante depende de seu próprio valor” (Marx 1982, p. 81). O que deixapatente que a pressuposição do ouro é essencial nos escritos de Marx para adeterminação de meio de circulação da moeda. E se ainda restarem dúvidas deque Marx sempre pressupunha o ouro como dinheiro quando se referia ao símboloque operava como meio de circulação, basta relembrarmos suas próprias palavras:“O sinal de valor, digamos o papel, que funciona como moeda, é sinal da quantiade ouro expressa em seu nome monetário, é portanto sinal do ouro. [...] A grandezade valor representada por esse sinal depende em cada caso do valor da quantia deouro representada por ele” (Marx 1982, p. 86–87). Ou ainda: “As fichas sem valorsó são sinais de valor na medida em que representam o ouro dentro do processode circulação, e o representam só nas quantidade em que o próprio ouro entrariano processo de circulação como moeda, em uma quantidade determinada por seupróprio valor” (Marx 1982, p. 88); e a “quantidade de notas de papel deixa-se,portanto, determinar pela quantidade de dinheiro-ouro que elas representam nacirculação: e uma vez que só são sinais de valor na medida em que representamo ouro, o valor delas é determinado simplesmente por sua própria quantidade.Enquanto a quantidade de ouro circulante depende dos preços-mercadoria, o valordas notas de papel em circulação depende, ao contrário, exclusivamente da suaprópria quantidade” (Marx 1982, p. 89). O preço se torna existência ideal e odinheiro se torna existência simbólica dos valores-de-troca. As passagens acimacitadas são enfáticas neste ponto. Aqui temos com todas as suas letras que símboloé representação; o símbolo de valor é símbolo de ouro, e o valor representado porele deriva do valor do ouro pressuposto. Além do mais, Marx também afirma quea oferta de símbolos de valor é regulada pelas leis que determinam as quantias deouro representadas por esses símbolos. É uma questão de substituição. O que o ourofaria e como ele é exigido pela circulação fica então substituído por seu símbolo. Osímbolo faz o que o seu representado faria.

Qual é o papel do Estado nesta circulação simples? Em princípio, a ação doEstado, diz Marx (1982, p. 89), parece abolir as leis econômicas da circulação da

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moeda. Como a moeda obtém curso forçado através dos Governos, parece que estepode imprimir quanto papel-moeda lhe aprouver e com o valor de face que bemdesejar. Contudo, esse poder Estatal é “pura aparência”, pois uma vez que a ofertamonetária seja absorvida pela circulação, o “sinal de valor ou a moeda-papel caisob o domínio das suas leis imanentes” (idem). Se for lançada em circulação umaquantia de notas cuja soma dos valores de face ultrapasse a quantia de ouro quede fato deveria circular, só se alteram as denominações convencionais do padrão depreços. Aumentando a oferta de símbolos, só faria com que diminuísse a quantia deouro que cada símbolo individual representa. O aumento de preços, ou a inflação,seria uma resposta da circulação em exigir que os símbolos de valor se igualemà quantia de ouro que representam. O que também deixa mais claro como Marxpensa a inflação também em relação ao ouro; ou seja, o processo inflacionárioseria um ajuste do mercado ao perceber que circula mais papel-moeda do que oouro que deveria representar (Marx 1982, p. 89–90). O que seria, então, a inflaçãocom dinheiro inconversível? O que define a oferta monetária que não provocainflação? Na circulação simples, a circulação do ouro e a circulação do papel-moeda(lastreado) parecem seguir leis invertidas:

Circulação de Ouro Circulação de Papel-Moeda Lastreado

Circula porque tem valor Tem valor porque circula

Dado os valores-de-troca das mercadorias, a quantidadede ouro circulante depende de seu próprio valor

Seu valor depende de sua oferta, e não do seu valor

A quantidade de ouro circulante é função dos preços dasmercadorias

O preço das mercadorias é função da quantidade depapel-moeda circulante

A quantia de ouro circulante é dada pela circulação demercadorias, isto é, pelo mercado

A oferta de papel-moeda parece ilimitada e resultadoda decisão do Estado, e não do mercado

Há uma lei econômica para a oferta de ouro Não há lei econômica para a oferta de símbolos

Portanto, no que concerne à definição de inflação segundo Marx, deve ficarclaro que a proporção em que os símbolos representam pesos de ouro (calculadosde acordo com seu preço monetário convencional) não depende de sua própriamatéria, mas sim de sua oferta. A dificuldade teórica advém da dupla determinaçãoda moeda tanto como medida dos valores quanto como meio de circulação,determinações contrárias e aparentemente contraditórias:

Medida dos Valores Meio de Circulação

Dinheiro ideal Dinheiro simbólico

Papel-moeda é moeda de cálculo, e o ouro é ouro ideal Apesar de representada, a moeda ainda tem que estarefetivamente nas mãos dos indivíduos

Tudo depende do ouro como matéria O material da moeda é indiferente

O dinheiro é idealizado (sua existência efetiva não éexigida) mas tudo depende de sua substância material

O dinheiro é tangível, mas tudo depende de umaproporção numérica ideal

Momento positivo, finito Momento negativo, mau infinito

Universalidade abstrata, idealidade Particularidade, realidade

O convencional e o natural aparecem no lado ideal e dosujeito

O convencional e o natural são efetivados, aparecendono lado do objeto e do real

A presença pode ser imaginada, mas o objeto imaginadonão pode ser simbólico

A presença efetiva pode ser simbólica (não-imediata)

Dinheiro é ideal, mas não pode ser simbolizado Dinheiro é real, embora possa ser simbolizado

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A Teoria Monetária de Marx: Atualidade e Limites Frente ao Capitalismo Contemporâneo

A tabela deixa claro que o dinheiro enquanto meio de circulação inverte asrelações do dinheiro enquanto medida dos valores. Os símbolos de valor inverteme transgridem sua proporção correta para com o ouro, dado pela função demedida dos valores. Ou seja, existe uma proporção correta (não inflacionária) queé dada pelo dinheiro como medida dos valores; porém, esta proporção é negadapelo dinheiro como meio de circulação e, especialmente, pelos símbolos de valor.Sinteticamente colocado, a inflação para Marx, que se restringia à inflação comdinheiro conversível, é o modo pelo qual a alterada medida dos valores torna-senovamente compatível com a função de meio de circulação. Ou seja, é o modoatravés do qual a circulação de mercadorias re-impõe sua proeminência sobre aaparente habilidade estatal de querer determinar arbitrariamente a quantidadede papel-moeda lastreado em ouro (Lapavitsas 1994, p. 450). Entretanto, com odinheiro inconversível, essa lei da proporção correta do dinheiro como medida dosvalores permanece ou é completamente negada? 18

Vimos de início que Marx de fato apontou a tendência lógica e social da moeda emse descolar gradualmente de seu conteúdo material, 19 inclusive chegando a afirmarque o limite desta tendência seria o dinheiro como pura forma. Entretanto, comotentamos mostrar, Marx, ao falar do dinheiro enquanto símbolo, afirma inúmerasvezes que este símbolo é uma representação, onde figura o ouro como representado.O ponto central é que a categoria de “símbolo” condiz ao papel-moeda fiduciáriolastreado. A forma contemporânea do dinheiro completamente inconversível parece,então, não se enquadrar nas categorias apresentadas por Marx. Seu raciocíniopressupõe a mercadoria ouro como substância, o que hoje não é mais verdadeiro.Chegamos, portanto, a outro impasse conceitual ao tentarmos dizer logicamenteo que é o dinheiro inconversível, sem lastro, enquanto meio de circulação. Seriao papel-moeda inconversível símbolo de trabalho abstrato? Como vimos, essahipótese está descartada, pois voltaríamos à teoria da Escola de Birmingham eàs teorias que igualmente tratam o dinheiro diretamente como mercadoria, semmediações e não perpassados pela negatividade, como no caso dos já conhecidos“bônus-trabalho” ou “tickets de trabalho” ou “vale-trabalho”, duramente criticadospor Marx (1982, p. 66–67, 87). O símbolo não é símbolo direto do valor-de-troca,mas símbolo do ouro, do valor-de-troca autonomizado, mediatizado. Desse modo,ainda que Marx reconheça que “papel-moeda nacional de curso forçado é a formaacabada do sinal de valor” (Marx 1982, p. 87), ele ainda se encontra preso aopadrão-ouro. O curso forçado nesse caso evidencia que a moeda precisa ter aceitaçãogeral, social, e, portanto, legal. O modo de ser do símbolo precisa ser aceitouniversalmente. O curso forçado torna-se, assim, convenção; mas uma convençãoderivada da circulação das mercadorias, e não da ação do Estado.

18Para algumas modernas teses marxistas sobre a inflação com dinheiro inconversível ver Carchedi

(1991, p. 166, 170, 172–174, 176) e Saad Filho (2002, p. 100–105 e p. 145, n. 32–33).19

“O material no qual este símbolo é expressado definitivamente não é algo sem relevância [...]. Nodesenvolvimento da sociedade, não somente o símbolo senão também o material correspondente a elesão trabalhados – um material do qual a sociedade subsequentemente tentará se livrar” (Marx 1973,p. 145).

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Vemos que a materialidade do ouro, nos escritos originais de Marx, é importantenão somente para a determinação da moeda como medida dos valores – comodeixamos explícito no item precedente –, como também é importantem para adeterminação da moeda como meio de circulação. O símbolo é símbolo de ouroe sua quantidade é regulada por ele. Como medida dos valores o ouro está posto, ecomo meio de circulação o ouro está posto como pressuposto, posto como negado.O símbolo ainda tem uma “sombra” de ouro. Dessa forma, a limitação de Marx aocenário monetário vigente no século XIX nos traz dois problemas teóricos quandoconfrontada com o pós-1971. Em suma, o padrão-ouro é, pois, para Marx, a medidado sistema. 20

6. O Dólar Inconversível Pós-1971: Uma Interpretação Marxista

Para tornar-se objeto adequado ao seu conceito, precisa o dinheiro, segundo Marx,torna-se universal, dinheiro mundial que não conhece fronteiras nem limitaçõesregionais: “Só no mercado mundial ... sua maneira de existir torna-se adequada aseu conceito.” (Marx 2002, p. 169), ainda que não seja uma determinação adicional,senão um de seus usos (Marx 1982, p. 109). Transparece agora a divisão entre asesferas nacionais e internacionais da circulação. O dinheiro como símbolo de valor,como pura existência funcional, mostra-se restrito à esfera interna de um país,sujeito à ação coercitiva legal. Enquanto dinheiro do comércio mundial retorna odinheiro à sua forma corpórea de metal: “Para circular fora da esfera nacional,despe-se o dinheiro das formas locais nela desenvolvidas de estalão dos preços,moeda, moeda divisionária e símbolo de valor, e volta à sua forma original de barrade metais preciosos.” O que nitidamente evidencia como Marx encontrava-se presoao padrão-ouro do século XIX. 21

O dinheiro mundial é o meio universal de pagamento, encarnação absolutada riqueza. Não é fortuitamente que Marx emprega as expressões “universal” e“absoluto” neste caso. Trata-se, pois, da riqueza incondicionada, infinita. Mas odinheiro só pôde ser dinheiro universal com a universalização do comércio, dastrocas de mercadorias. É a mercadoria universal. Se o dinheiro enquanto meiode circulação negava o dinheiro enquanto medida dos valores, o dinheiro enquantodinheiro mundial é negação da negação, pois é meio de circulação que volta tambémà determinação de medidas dos valores. Isto é, depois de passar da posição damatéria para a posição da forma, o dinheiro volta como posição da forma e damatéria, ainda que negue ambas para conservá-las. Se em Marx a universalização

20“Se o papel ultrapassa sua medida – a quantidade de moedas de ouro de igual nome que poderia

circular –, expõe-se ao descrédito geral, mas ainda assim representa a quantidade de ouro determinadapelas leis imanentes do mundo das mercadorias, portanto, só a quantidade de ouro suscetível de serrepresentada” (Marx 2002, p. 155).21

Vemos que Marx não concebia que o poder estatal pudesse transcender os limites de uma nação: “Acoerção do Estado vigora apenas na esfera interna da circulação, contida dentro das fronteiras de umacomunidade, e só nela desempenha o dinheiro plenamente sua função de meio de circulação e assimpode ter no papel-moeda pura existência funcional, exteriormente distinta de sua substância metálica”(Marx 2002, p. 156).

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do dinheiro como dinheiro mundial o faz retornar ao dinheiro metálico, entendemosque Marx não tinha em mente o dinheiro inconversível como dinheiro universal enem como realização de seu próprio conceito. Se Marx acertou em afirmar que odinheiro universal é a efetivação do conceito de dinheiro, errou objetivamente aonão ver que sua própria tendência de se descolar de seu conteúdo também seria umarealização de seu conceito. Ou seja, para Marx, a tendência do dinheiro a vir-a-serpura forma estaria restrita ao âmbito doméstico.

Os Grundrisse evidenciam que dinheiro entra em contradição consigo mesmopor ser justamente a encarnação da contradição entre algo que é particular, pelofato de ser uma determinada mercadoria (ainda que seja símbolo), sujeita acondicionantes particulares, e o fato de ser algo incondicionalmente permutável(Marx 1973, p. 150). Quando o ouro opera de fato como equivalente geral ou quandosímbolos os substituem, ainda permanece uma contradição não resolvida entre odinheiro enquanto funcionalidade (como valor-de-troca autônomo) e o dinheirocomo mercadoria particular, cuja grandeza de valor decorre de seus próprios custosde produção. Isto é, a contradição do dinheiro papel-moeda lastreado está entresua universalidade como equivalente geral e sua particularidade como mercadoriaouro sujeita às oscilações naturais de qualquer produção.

Assim sendo, podemos aqui defender a tese de que a forma dinheiro sem lastro,dinheiro inconversível próprio ao pós-1971, resolve tal contradição justamente pordesprender-se de qualquer materialidade particular. Não há mais o ouro comomercadoria para impingir seus custos de produção sobre o papel-moeda. No dinheiroinconversível parece não haver mais essa contradição entre particular e universal,entre condicional e incondicional, afinal não está mais o dólar preso a qualquermercadoria em específico. O dólar hoje é, assim, um puro universal, um puroincondicionado. Mas esta é só a aparência. Em sua figura dissolve-se a contradiçãoentre particularidade e universalidade como está presente nos escritos de Marxpara dar lugar a uma nova contradição em um patamar mais elevado: 22 entreparticularidade, como moeda de um país em específico, e universalidade, comomoeda mundial. O dólar é, assim, um singular, universal-concreto. Esta é suanova essência. Em outras palavras, a contradição que a moeda do padrão-ouroapresentava, ainda que símbolo, entre o fato de ser ouro e de ser uma relaçãosocial, repõe-se hodiernamente como o fato de ser moeda nacional e internacionalao mesmo tempo. O padrão dólar puro resolve a contradição do dinheiro aogeneralizá-la, ao torná-la, de fato, mundial. Aí, portanto, está ao mesmo tempoum dos limites e uma das riquezas da teoria monetária original de Marx.

O dinheiro do padrão dólar puro resolve a contradição entre forma e matéria,entre função universal e condicionamento particular, ao expulsar completamente amatéria e ao colocar a contradição em termos de dinheiro particular de um paíse dinheiro global, universal. Como pura forma o dinheiro é verdadeiro, isto é –em linguagem hegeliana – está de acordo com seu conceito. Em suma, poderíamos

22Afinal “cada determinação se desdobra no interior dela mesma para produzir uma nova oposição”

(Fausto 1997, p. 46).

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dizer que a aparência do dinheiro no pós-1971 é a de que sua contradição entreforma e matéria (entre incondicionalidade e condicionalidade, entre universalidade eparticularidade) foi resolvida. E de fato foi mesmo, pois não mais há tal inadequaçãoque havia no caso do padrão-ouro clássico ou do padrão dólar-ouro de BrettonWoods. Esta aparência, no entanto, já revela algo da ordem da essência: a de que odinheiro é em essência forma pura. 23 De certa maneira, o próprio Friedman (1968)sabia que o padrão dólar-ouro de Bretton Woods era um falso padrão e que seuintrínseco mecanismo de ajuste era perverso. Dizia ele que o verdadeiro padrão-ouroe o verdadeiro regime internacional de câmbio fixo fora aquele que vigorara entre1880 e 1913, no qual as autoridades monetárias eram passivas. Naquele caso,a verdadeira moeda, o ouro, fazia com que o mecanismo de ajuste global fosseautomático e virtuoso. O que não ocorria com o regime de 1944 a 1970, pois o ouroaí figurava como uma referência oficial através do dólar, e não como moeda de fatoprivada. Trata-se, desse modo, de um “falso padrão-ouro” cujo aspecto artificialse expressa em um mecanismo de ajuste internacionalmente desestabilizador,transformando o déficit em balanço de pagamentos e o endividamento fiscal dosEUA em um problema global. A solução era, dizia Friedman antes mesmo deNixon romper com o câmbio fixo, introduzir regimes cambiais flexíveis e acabarcom a “falsa conversibilidade” do dólar em ouro, para o qual os mecanismos demercado tratariam de resolver os problemas de déficit em balanços de pagamentos.Isto é, afirmamos aqui que Friedman (1968), neste sentido, concordava com aidéia de que o dinheiro inconversível como dinheiro mundial é uma forma maisadequada ao conceito de dinheiro, pois elimina as incongruências de um “falsopadrão-ouro” de Bretton Woods. A hegemonia do dólar na hierarquia monetáriainternacional foi uma “solução” contraditória para o problema contraditório entrea moeda norte-americana e as moedas nacionais dos grandes países. Ou seja, ahierarquia de moedas, ou o “original sin” segundo Eichengreen e Hausmann (2005),é a solução contraditória para um problema prático contraditório. Além do mais,o dólar está atrelado ao duplo déficit dos EUA, que são financiados por conta desua posição como principal espaço de crédito mundial (Brunhoff 2005, p. 80–81).Portanto, no caso desta hegemonia, torna-se evidente como a posição do dinheiroenquanto moeda (medida dos valores e meio de circulação) depende de sua posiçãocomo dinheiro de fato (meio-de-pagamento e reserva de valor). Em outras palavras,o dólar como moeda mundial é garantido por sua função de crédito mundial. Créditoeste totalmente conjugado à formação de capital fictício através da dívida estatal.

Pelo que acima discutimos pode-se ver que a posição do dólar como moeda globalsem lastro tem uma dupla constituição contraditória: é moeda particular e universalao mesmo tempo – pois é moeda dos EUA e do mundo ao mesmo tempo –, eaparece como existência efetiva quando em essência é existência necessária. Isto é,

23Ainda assim o dinheiro deve manter sua aparência de mercadoria, seja ele ouro ou não: no século

XX, “a aparência de mercadoria do dinheiro pode perfeitamente ser fornecida, inclusive a nível mundial,por um simples papel verde sem qualquer vínculo, por remoto que seja, com o ouro ou com qualquermercadoria particular. [...] a essência da aparência de mercadoria do dinheiro é, ela própria, puramenteformal” (Paulani 1991, p. 146).

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aparece como efetividade cuja necessidade não é absoluta, necessidade contingente,externa, fruto de um capricho institucional norte-americano; mas que em suaessência nega tal aparência para se pôr como existência necessária, não apenasexistente, mas existente necessariamente. Dessa forma, o dinheiro inconversívelaparece como contingente para se afirmar de fato como necessário. É quandoconsolida sua aparência de simples capricho, simples convenção, que se afinca maisprofundamente como a necessidade forte que é. Quanto mais necessário se torna,mais como contingência se apresenta.

7. Conclusão

Assim como adiantado na introdução, almejamos aqui evidenciar a atualidadee as limitações da teoria monetária de Marx quando tomamos em conta o novosistema monetário internacional que emergiu após 1971 com o fim dos acordosde Bretton Woods e com a introdução, em especial, do padrão-dólar puro. Nãoobstante, procuramos utilizar a vivacidade dos conceitos marxistas, que respeitamo movimento dos objetos, para mostrarmos como tal teoria pode ser atualizadaem face a esses desdobramentos históricos. Vimos que apesar de circunscrita ao seucontexto histórico, a análise de Marx é “viva” por respeitar o movimento tendencialde constituição do dinheiro como pura forma. Sendo esta vivacidade aquilo que nosfornece justamente a possibilidade de atualizar sua teoria.

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