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VOLUME VII Nº5 SETEMBRO/OUTUBRO 2005
Leituras / Readings
No seu estudo clássico sobre o suicídio, D u r k h e i m
definia o suicídio anómico como aquele que surge quan-
do um falhanço ou deslocamento dos valores sociais
p rovoca a desorientação individual e um sentimento de
falta de significado da vida. Para o pai da sociologia, a
a n o m i a,como estado social, é uma falta de direcção que
costuma ap a recer nas épocas de revolução social; n o
indivíduo traduz um desconcerto ou insegurança,que se
c o rresponde com o que hoje costumamos chamar
alienação ou perda de identidade. Stefan Zwe i g ,
romancista e ensaísta de sucesso, b i ó g r a fo insigne, e p í-
gono da ilustrada burguesia judia vienense, s u i c i d o u - s e,
juntamente com a sua segunda mu l h e r, L o t t e, no seu
exílio brasileiro, em Pe t r ó p o l i s , p e rto do Rio de Janeiro,
em 1942, no fragor da segunda guerra mu n d i a l . Os seus
corpos foram encontrados fundidos num abraço,r í g i d o s
e pálidos, deitados em duas camas de tamanho solteiro
encostadas uma na outra. Não se sabe se tomaram
Ve ro n a l , Adalina ou morfina. O autor deixou, com o
intuito de explicar a sua decisão, uma carta com a epí-
g r a fe “Declaração” (o título escrito em português e o
texto redigido em alemão) que bem poderia serv i r
como exemplificação do conceito de suicídio anómico
de Durkheim:
“ D e cl a ração
Antes de deixar a vida por vontade própri a , com a mente
l ú c i d a , imponho-me a última obri g a ç ã o : dar um cari n h o s o
a g radecimento a este maravilhoso país, o Bra s i l , que pro p i -
c i o u , a mim e à minha obra , tão gentil e hospitaleira guari d a .
Em cada dia aprendi a amar este país, mais e mais. E m
p a rte alguma poderia reconstruir a minha vida ago ra que o
mundo da minha língua está perdido e o meu lar espiri t u a l ,
a Euro p a , a u t o d e s t r u í d o .Depois dos 60 anos são necessári a s
forças incomuns para começar tudo de nov o . Aquelas que
possuo fo ram exauridas nestes longos anos de desampara -
das pere g ri n a ç õ e s. A s s i m , em boa hora e conduta erecta,
A tragédia de Stefan ZweigThe Stefan Zweig tragedy
Adrián Gramary
Médico Psiquiatra
Centro Hospitalar
Conde de Ferreira,
Porto
Direcção:
Adrian Gramary
Centro Hospitalar
Conde de Ferreira,
Rua Costa Cabral, 1211
4200-227 Porto
e-mail:
a d r i a n _ g r a m a ry @ y a h o o. e s
No mar, tanta tormenta e tanto dano,
tantas vezes a morte apercebida;
Na Terra tanta guerra, tanto engano,
tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano?
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho-da-terra tão pequeno?
Luís de Camões: Os Lusíadas
(os quatro últimos versos - em caligrafia gótica e emoldurados – estavam pendurados na parede do quarto de dormir
de Stefan Zweig na sua casa de Petrópolis)
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achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais
pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a terra.
Saúdo a todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta
longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes.”
As circunstâncias que envolveram a vida e a morte do autor aus-
tríaco são brilhantemente analisadas pelo jornalista e crítico
brasileiro Alberto Dines no seu belíssimo livro Morte noParaíso: A Tragédia de Stefan Zweig, cuja primeira edição
em Portugal (ampliação da primeira edição brasileira de 1981)
apareceu recentemente publicada pela editorial Rocco.
Zweig nasceu em Viena em 1881, filho de um rico industrial judeu
assimilado. A cidade de Viena era, nessa altura, a capital do
Império Austro-húngaro, um estado-puzzle que antes da Primeira
Guerra Mundial compreendia 17 nacionalidades e cujo hino era
entoado em 13 idiomas. Cerca de 9% da população urbana aus-
tríaca era constituída por judeus, mas como recorda Dines no
seu livro, no campo intelectual, nove em cada dez austro-hún-
garos que se destacavam nove eram judeus. No seu livro de
memórias O Mundo de Ontem: recordações de umeuropeu (reeditado este ano pela editora Assírio & Alvim).
Zweig canta o desaparecimento do seu mundo:“Nasci em 1881,
numa nação grande e poderosa, na monarquia dos Habsburgos;
mas não a procurem no mapa, que ela desapareceu sem deixar
rasto. Cresci em Viena, nessa metrópole bimilenária e cosmopoli-
ta, e fui obrigado a abandoná-la como um criminoso, antes de a
condenarem à degradação, fazendo dela uma simples cidade de
província alemã. A minha obra literária, na sua língua original,
reduziram-na a cinzas, precisamente na mesma terra onde os
meus livros tinham feito de milhões de leitores outros tantos
amigos. Não sou pois de nenhuma terra: sou, onde quer que me
encontre, um estrangeiro, e, no melhor dos casos, serei um hos-
pede; até a minha pátria propriamente dita, a eleita do meu
coração, a Europa,até essa eu perdi, a partir do momento em que
ela, pela segunda vez, se despedaçou numa guerra fratricida, que
equivale ao seu suicídio.”
Cada cidade tem o seu momento de glória, e Viena conheceu
talvez uma das suas etapas mais empolgantes no seu canto de
cisne como capital imperial, nesse período que vai do fim do
século XIX até o fim do primeiro terço de século XX. Nesse
caldo mágico, surgiram pensadores como Husserl, Witgenstein,
Freud, Lukács e Karl Popper, historiadores como Hobsbawm e
Gombrich, pintores como Klimt, Kokoscha e Schiele, drama-tur-
gos como Max Reinhardt, músicos como Mahler, Alban Berg e
Schoenberg, e escritores como Schnitzler, Zweig, Musil, Roth e
Broch. O contributo do exílio austríaco ao cinema de Hollywood
conforma uma lista interminável: cineastas como Fritz Lang,Von
S t ro h e i m , Von Stenberg, Max Ophuls, B i l ly Wilder e Otto
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Preminger participaram na construção das bases do cinema clás-
sico americano. Se considerarmos todavia que Viena era, nessa
altura, a capital do Império Austro-húngaro, então teríamos que
alargar esta lista fantástica com outros nomes que se nutriram
nesse mesmo berço cultural: escritores como Rilke, Kafka, Celan
ou Canetti eram cidadãos desse mesmo império e escreviam
também em alemão. Muitos destes intelectuais eram judeus e
todos eles juntos criaram – pelo menos em parte - os alicerces
da nossa modernidade. Nunca foi suficientemente destacado o
papel da intelectualidade judia no esplendor cultural da Viena dos
séculos XIX e XX. Como refere Zweig na sua autobiografia:“foi
muito importante a acção desenvolvida pela burguesia judaica,
fomentando e protegendo todas as formas de cultura. Os judeus
constituíam o verdadeiro público; enchiam os teatros e as salas
de concertos, compravam os livros e os quadros, visitavam as
exposições e, precisamente porque se encontravam menos sub-
metidos à influência da tradição, tornavam-se os arautos de tudo
o que era novo.” Esta burguesia culta e rica, com a sua profunda
vontade de assimilação, integrou-se totalmente na vida cultura da
capital do império, conferindo-lhe, em troca, o seu característico
espírito cosmopolita e supranacional.
Stefan Zweig foi, em vida, um escritor de grande sucesso, cujos
livros foram autênticos best-sellers na Alemanha e na Áustria e o
seu sucesso prolongou-se com alguma irregularidade após a sua
morte (em Portugal toda a sua obra foi publicada com grande
sucesso pela Editora Civilização, embora mais recentemente
Assírio & Alvim e Antígona tenham feito novas traduções). As
suas obras serviram de base para inúmeros filmes (entre os mais
conhecidos Carta a uma desconhecida de Max Ophuls).
Escreveu elaborados contos e romances psicológicos (Amok,
Confusão de Sentimentos, O Medo,Vinte e quatro horas na vida de
uma mulher, A partida de xadrez), livros de divulgação de conteú-
do histórico (Os grandes momentos da humanidade), ensaios (O
Combate com o Demónio: Hölderlin, Kleist, Nietzsche) e múltiplas
biografias, que são inesquecíveis perfis psicológicos de conheci-
dos personagens históricos e escritores (Maria Antonieta, Maria
S t u a rt , M a g a l h ã e s, E rasmo de Rotterd a m , B a l z a c , D i cke n s,
Dostoievski). Zweig escolheu para os seus perfis biográficos per-
sonagens derrotados,“meus personagens são os vencidos” expli-
cou uma vez,“uma nota bem característica do meu temperamen-
to, que me incita sempre a tomar partido do vencido, em vez de
me colocar ao lado do vencedor. Em lugar de cantar o “herói”,
preferia dar realce ao drama trágico da vítima. Essa tendência
manifesta-se posteriormente em todas as minhas obras, pois,
desprezando o lado material do lucro ou da glória, apenas me
preocupo com o fundo moral dos temas que apresento.E é assim
que dignifico Erasmo e não Lutero; Maria Stuart e não Isabel;
Castelio e não Calvino” explica na sua autobiografia, mas, como
conclui Dines, este estranho magnetismo que empurra Zweig
para perto dos vencidos e tão forte “que às vezes parece um
deles”.
Dois dos seus livros biográficos, seguindo o modelo plutarquiano
das vidas paralelas, tentaram abordar o confronto entre duas
personalidades históricas, um vencedor de facto perante um
vencedor moral: Castelio contra Calvino e Erasmo de Rotterdam
(onde é analisado o conhecido confronto entre Erasmo e
Lutero).
A vida de Zweig também poderia ser abordada em paralelo com
duas personalidades empolgantes da sua época: Freud e Hitler.
Com Freud – também vienense e judeu - manteve uma longa
relação epistolar e de amizade. Convém recordar que foi Zweig
o autor da primeira interpretação da psicanálise para o grande
público (A cura pelo espírito) e já no exílio londrino, fugindo os
dois do terror nazi, Zweig foi escolhido - juntamente com Ernst
Jones, que falou em nome dos psicanalistas de todo o mundo –
para fazer a leitura da elegia final perante as cinzas do ilustre cri-
ador da psicanálise. Zweig sentia-se em dívida com Freud.
Apercebia-se que os seus romances psicológicos não existiriam
sem a influência das leituras da obra de Freud. Numa das suas
cartas reconhece: “ sob o ponto de vista espiritual pertenço a
uma geração que, relativamente ao conhecimento, a ninguém
deve tanto como ao senhor, e sinto, simultaneamente com ela,
que se aproxima a hora em que a importância da sua descober-
ta da alma transformar-se-á num património comum para a ciên-
cia europeia”. A Freud dedicou um dos seus ensaios mais
famosos (A luta contra o demónio: Hölderlin, Kleist e Nietzsche) e é
conhecido que Freud, leitor fiel da obra de Zweig, gostava espe-
cialmente de duas obras do nosso romancista: Confusão de senti -
mentos e Vinte e quatro horas da vida de uma mulher (um estudo
psicológico brilhante sobre um ludopata).A propósito desta últi-
ma obra, afirmava Freud que, mesmo sem conhecer as técnicas
psicanalíticas, Zweig as utilizava literariamente de forma perfeita.
Quanto aos paralelismos com Hitler, começam pela fisionomia:
os dois usavam um bigode semelhante, existindo até alguma
semelhança geral nos traços da face.Ambos austríacos, de idade
semelhante, coincidiram na mesma época em Viena, quando o
ditador, rejeitado pela Academia de Viena, arrastava o seu fracas-
so como pintor pelas ruas da cidade. Na sua autobiografia, O
Mundo de Ontem, Zweig relata as suas estadias na sua casa perto
de Salzburgo:“Tantas vezes passamos ali horas agradáveis, olhan-
do desde a varanda a bela e pacifica paisagem, sem suspeitar que
mesmo em frente, na montanha de Berchtesgaden, alojava-se o
homem que haveria de destruir tudo aquilo”. Hitler também
apreciava a obra de Zweig, especialmente a biografia de Joseph
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Fouché, o político maquiavélico que sobreviveu à Revolução
Francesa, a Napoleão, ao Congresso de Viena, chegando até à
Restauração Borbónica. Um mês antes do suicídio do autor, no
lago de Wannsee, perto de Berlim, os chefes da SS tinham tido
uma reunião secreta, organizada por Hitler, para decidir a
“Solução Final” para o problema judeu. O paralelismo completa-
se com a morte, também voluntária, de Hitler no seu bunker
berlinês, três anos após a morte do nosso escritor.
Qual era a situação anímica de Zweig em 1942? O seu país, em
vinte anos, tinha passado de ser um império multicultural e mul-
tilinguístico – o Império Austro-húngaro – para se transformar
numa república, terminando por desaparecer como estado – o
chamado finis Austriae - com o Anchsluss, a anexação de Áustria
ao Terceiro Reich. O nosso autor, que tinha fugido de Áustria, já
não tinha nacionalidade. A sua língua, o alemão, era a língua
daqueles que tentavam eliminar os membros da sua raça com a
máquina de morte mais sofisticada criada pela mente humana. Em
1933, numa praça perto da Unter den Linden, colunas de estu-
dantes nazis, com tochas acesas, tinham invadido a Universidade
de Berlim e queimaram vinte mil livros tirados da biblioteca,
entre outros, obras de Zweig, ficando o seu nome banido do
mercado editorial de Alemanha.A partir dessa altura teve que se
conformar com publicar os seus livros traduzidos em outras lín-
guas.Ao editor francês Max Fischer confessa no exílio brasileiro
“sua língua é a francesa, o senhor pode pensar em francês. Eu sou
obrigado a pensar em alemão… em alemão como…”
Relativamente à raça e a religião, como muitos dos membros da
burguesia urbana vienense, a sua família tinha abandonado a sua
religião e tinha sofrido um processo gradual de assimilação, per-
dendo quase totalmente a sua vinculação com o seu povo, até ao
momento em que os nazis os voltaram a colocar na sua situação
de origem de povo perseguido.
Muitos outros intelectuais judeus austríacos também desistiram,
embora de formas mais subtis. Joseph Roth, o autor da Marcha
Radetzky e da Lenda do Santo Bebedor, o cantor da morte do
Império e do fim da casa dos Habsburgo, no seu exílio parisiense,
morreu afogado em álcool. Herman Broch, o autor do famoso
romance A morte de Virgílio, como recorda Dines, em 1951, exila-
do nos Estados Unidos, provavelmente também terá forçado a
sua morte: proibido de fazer esforços físicos, subiu três andares
carregando um baú. Mais tardiamente outros judeus testemunhas
do holocausto puseram fim aos seus dias voluntariamente: Paul
Celan, Primo Levi e Bruno Bettelheim (o autor da Psicanálise dos
contos de fadas).
Dines defende uma tese com a qual é difícil não concordar, isto
é, que, independentemente da análise das causas, Zweig era víti-
ma de uma depressão profunda, agravada provavelmente pelo
consumo exagerado de hipnóticos que o autor usava como auto-
tratamento para o seu problema crónico de insónia. O próprio
Zweig, embora não aceitasse iniciar tratamento específico para a
depressão, era ciente da situação psíquica pela qual estava a pas-
sar. Dias antes de se matar, explicou a vários amigos do Rio de
Janeiro o motivo do seu abatimento: estava tomado pela melan-
colia, “ich habe meine schwarze Leber” (tenho meu fígado negro)
explicava aos amigos mais próximos.Dines reproduz no seu livro
a lúcida “autópsia psiquiátrica” do médico e perito forense
Cláudio de Araújo Lima:
“Ciclotímico… maníaco-depressivo… matou-se como qualquer tuber -
culoso pode sucumbir, de súbito, a uma hemoptise. Ou como o
hipertenso por uma crise fulminante de angina… acidente talvez
evitável… se perto dele existisse alguém capaz de interpretar menos
poeticamente o estado doentio do seu espírito… suicídio de melancóli -
co, de vítima de uma depressão de climatério, agravada por factores
reactivos externos… que, até pelo envolvimento da companheira, traz
uma sugestão capaz de valer como elemento de diagnóstico”
Zweig tinha fugido inicialmente para Inglaterra, mas quando a
situação na Europa se tornou insustentável decidiu fugir para o
Brasil. De Lisboa, saiu de barco para o Rio de Janeiro.Ao chegar
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ao Brasil, declarou a um jornalista “sinto-me feliz por ter aban-
donado a incerteza, a inquietação e a insegurança de Europa”.
Mas, como refere Dines,“o exílio é sempre desolador, mesmo no
mais aprazível recanto. O trópico viçoso não espanta todas as
sombras,o sol nunca basta para secar os náufragos encharcados”.
Previa um conflito longo e devastador e sentia o cerco fechar-se
à sua volta. O afundamento de vários navios brasileiros por parte
de submarinos alemães aumentou a sua angústia. O seu estádio
depressivo foi testemunhado por diferentes pessoas.Assim, Klaus
Mann, o filho do prémio Nobel alemão, encontrou-o na 5ª
Avenida de Nova Iorque (para onde tinha ido, convidado como
palestrante) “derreado, imerso em profunda tristeza, a barba por
fazer, aparência amarfanhada”. No Rio, o editor francês Max
Fisher, refere, sempre seguindo o livro de Dines: “senti nele o
pavor de ficar sozinho, telefonava-me cedo e vinha conversar
comigo no quarto ou ficávamos no hall do hotel… desde o
primeiro dia estava abatido. Expressão melancólica, a tristeza
estava nos olhos”.
A tragédia de Zweig é a mesma que viveram muitos judeus que,
como Joseph K, o famoso protagonista de O Processo, eram cul-
pados e sacrificados por um crime que não conseguiam entender.
O autor vienense apercebeu-se desta tragédia, escrevendo na sua
autobiografia: “mas o que de mais dolorosamente trágico havia
neste novo fadário dos judeus do século XX era, com certeza,
que, de facto, não sabiam porque eram tão cruelmente persegui-
dos. Outrora, na Idade Média, os seus antepassados ainda tinham
o consolo moral de saber que eram imolados à causa da sua fé
que os animava, ainda dispunham do talismã maravilhoso da indis-
cutível e absoluta crença no seu Deus, crença que de há muito já
não era apanágio dos judeus contemporâneos (…) Se por acaso
os expulsavam da pátria tinham ainda o refúgio inviolável da man-
são de Deus, de onde não havia nenhum imperador, nenhum rei,
nenhuma Inquisição, nenhuma força terrestre, enfim, que os
pudesse banir (…) Mas outro tanto já não se podia dizer dos
judeus do século XX, que, de facto, desde há muito nas consti-
tuíam uma comunidade, nem sequer estavam unidos estreita-
mente pela fé, e para quem, ser judeu, era mais um motivo de
pesar que de orgulho, acrescendo ainda que já não acreditavam
na lenda do povo eleito.As leis e os preceitos sagrados de antan-
ho foram-se transformando em letra morta, e até a língua
hebraica se foi sumindo no desuso, visto que cada qual tinha ape-
nas a preocupação de se diluir no agregado nacional onde vivia,
de modo a afastar para sempre o negro fantasma do banimento,
pondo um ponto final no interminável drama do judeu errante.
Animados desse desejo, era natural que não se entendessem per-
feitamente unos com os outros. Procurando assimilar a cultura
dos povos onde viviam, sentiam-se mais franceses, alemães, ingle-
ses ou russos do que propria-mente judeus. Porém, eis que o
mundo os obrigava a reconstituir à força a comunidade de ou-
trora, tantas vezes fortalecida e desfeita desde os tempos de
Egipto (…) tinham sido condenados sem apelação, não havia
dúvida. E cada qual, na febre que a inacreditável tragédia fazia
nascer, balbuciava: Por que estou aqui? Sim! E tu? E aquele? E
aqueleoutro? Sim! Porque estou junto a ti, e daquele e deste, se
não há nada que nos ligue, nem moral, nem religião, nem ideal, e
se, em boa verdade, somos de mundos completamente distintos?
Todos formulavam a mesma pergunta e todos obtinham a mesma
resposta - nada.”. Zweig relata, na sua biografia de Maria
Antonieta que, no turbilhão revolucionário, pouco tempo antes
de ser decapitada, a rainha escreveu no seu caderno diário “só na
desgraça conseguimos saber quem realmente somos” e Zweig
compreendeu na desgraça quem realmente era, mas não con-
seguiu encontrar para esse ser um espaço e um tempo próprios,
“em parte alguma poderia reconstruir a minha vida” escreveu na sua
declaração.
O livro de Dines, fruto de um feliz encontro precoce (Dines,
membro da comunidade hebreia do Rio de Janeiro, teve a opor-
tunidade de conhecer Zweig, em criança, na visita que o escritor
fez à sua escola) é uma leitura obrigatória, rica em material epis-
tolar inédito, imprescindível não só pela análise lúcida da vida do
escritor, mas também como reflexão única sobre uma geração e
um mundo - o que surgiu da simbiose austro-judia - definitiva-
mente desaparecidos.
B i bl i o graf i a
Dines A (2005): M o rte no Paraíso:A Tragédia de Stefan Zwe i g . Editora Rocco
– Temas e Debates. L i s b o a .
Durkheim E (1998): El suicidio. Editorial A k a l . M a d r i d .
Z weig S (1953): O Mundo de Ontem. Editora Civilização. Po rt o. (esta foi a
versão usada para as re ferências do art i go ) .
Z weig S (2003): Maria A n t o n i e t a : Retrato de una reina mediocre. E d i t o r i a l
D e b a t e.B a rc e l o n a .
Z weig S (2004): C o rrespondencia com Sigmund Fre u d , Rainer Maria Rilke y
A rtur Schnitzler. Editorial Paidós Te s t i m o n i o s . B a rc e l o n a .
Z weig S (2004): Confusão de sentimentos. Editora A n t í go n a . L i s b o a .
Z weig S (2005): O Mundo de Ontem: re c o rdações de um euro p e u . E d i t o r a
Assírio & A l v i m . L i s b o a .
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