a tragédia grega - romilly

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5/10/2018 AtragdiaGrega-Romilly-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/a-tragedia-grega-romilly 1/33 Terinventado a tragedfa e um glorioso :'esse rnetno pertenee aos gregos. Ha, de fato, algo de fascinante no _, ...... '"....... :onheceu esse genero, pois screvemos tragedfas, passados Ja 25 rragedias sao eseritas por toda parte, no 'odo. Mais alnda" continuamos, de fcmn.. .... M :empos, a tam ar emprestado dos grE'go:5l!iI! :emas e s eus p er sonag ens : a inda iteare: e Antigonas. . Nao se trata slmplesmente de fidj"'I/(1afJ~ )assado.brilhante. E evidente que a Irr~AI:lIIII-; Ta ged ia grega se prende a 5lgnificado, a riqueza de pensamento que M8II"_ ' wt or es s ou ber am i mp ri mi r- Ihe. A 1"r", .... """~... " ~presentava, par melo da linguagem ,.-finADII~,oiP: ~cessfvel da emocao, uma r efl ex ao ~omem. Sem duvida, e por /550 que, ~e crise e de renovac;ao como a nossa, ~~cessidade de um retorno aque/a forma ~eneJo. Se 05gregos inventaram a tragedia, n fato de que, entre uma tragedia de L.:;JlJUII1I' ~agediade Racine, as diferenr;as sao r..rl"',fiI••,rl» tontexto das representac;6es Ja nao e 0 rem ea mesma a estrutura das per;as; Dublieopode ser competeve'. Mor1Jr/1COlJ-Si~. fe tudo, a es pi ri to i nt er ior - c ada eo oc » OU Da{sdeo uma interpretac;ao diferente ao ragico)niCial. Mas e nas obras gregas que rraduz com metot vigor, visto que nelas ele :,m a n uaez or rgl nal ~.- - -- - BlbllotKll C en tr al • Un. II I t EDfTORA BE1 UnB " JACQUELINE DE ROMILLY -, ,

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Terinventado a tragedfa e um glorioso

:'esse rnetno pertenee aos gregos.

Ha, de fato, algo de fascinante no _,......'".......

:onheceu esse genero, pois

screvemos tragedfas, passados Ja 25

rragedias sao eseritas por toda parte, no

'odo. Mais alnda" continuamos, de fcmn......M

:empos, a tamar emprestado dos grE'go:5l!iI!

:emas e seus personagens: ainda

iteare: eAntigonas. .

Nao se trata slmplesmente de f idj"'I /(1afJ~

)assado.brilhante. E evidente que a Irr~AI:lIIII-;

Tagedia grega se prende a

5lgnificado, a riqueza de pensamento queM8II "_ '

wtores souberam imprimir-Ihe. A 1"r", ...."""~... "

~presentava, par melo da linguagem , . - f i nADII~ ,o iP:

~cessfvel da emocao, uma reflexao

~omem. Sem duvida, e por /550 que,

~ecrise e de renovac;ao como a nossa,

~~cessidade de um retorno aque/a forma

~eneJo.

Se 05gregos inventaram a tragedia,

n fato de que, entre uma tragedia de L.:;JlJUII1I'

~agediade Racine, as diferenr;as sao r..rl"',fiI••,rl»

tontexto das representac;6es Ja nao e 0r e m e a mesma a estrutura das per;as;

Dublieopode ser competeve'. Mor1Jr/1COlJ-Si~.

f e tudo, a espirito interior - cada eooc» OU

Da{sdeo uma interpretac;ao diferente ao

ragico)niCial. Mas e nas obras gregas que

rraduzcom metot vigor, visto que nelas ele

:,m anuaez orrglnal~.- ----

BlbllotKll Central • Un.

IIIt

ED fTORA

B E 1UnB

"JACQUELINE DE ROMILLY-,,

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6 Jacque lin e de R orn illy

CAPfTUL04

EURiPIDES au A TRAGEDlA DAS PA1XOES, 101

o TE A TR O E A C ID A DE , 10 3

HUMANQS MUlTO HUMANOS, 110

Os lOGOS D A SORTE E OS JOGOS DOS D Et JSES , 124

INOY N;Ao E D E C A D E NC IA , 133Introducao

CONCLUSAO f

A TRAGEDIA EO TRAGICO, 137

Mrro E PSTCANALlSE, 138

ATUAUDADE E ENGAJAMEl'."TO, 142

o T RA GJC O E A FA TA LID A D E , 147

o TR AG JCO E 0 A B SU RD O, 152

A tragcdia e as gregos

ANEXOS

1-CRONOLOGIA DAS DlVERSAS TRAGEDIAS CONSERV ADAS, 165

II-OUTROS AUTO RES TRAGICOS, 168

III - PEQUENO LEXICa DAS PALAVRAS RELATIVAS A TRAGEDIA

GREGA,169

Ter inven tado a tragedia e um glo rio so m erito ; e esse m erito

p erte nce ao s gre go s.

Ha, de fato, alga de fascinante n o sucesso qu e conheceu esse

genero, pais ain da ho je escrevem os tragedies, passados ja 25 se-

culos. Tragedias sao escritas po r toda parte , n o mun do to do . Mais

ain da, co n tin uam o s, de tem pos em tem po s, a tamar em prestado do s

gregos seus t emas e se us p erso nag en s: ain da e scre vem os Electras e

Antlgonas.

: - .JUo s e trata simplesmente de f ide lidade a um passado bri-

Ihan t e . E eviden te que a irrad iacao da traged ia grega se prende aam plitu de d o sig nif icado , a riqueza de pen sam en to que o s seus

a uto re s s ou b er ar n imprirnir-lhe. A traged ia grega apresen tava, par

m eio d a lin gu ag em d ire tam en te .acessfvel da emocao, um a reflexao

sabre 0 h orn ern . S em diivida, e po r isso que, em epocas de crise e

de renovacao c omo a n ossa, sen tim os a n ecessidade de urn r e t omo

aquela fo rma in icial do gen ero +Criticam -se o s estudo s grego s, m as

ain da se represen tam , n o m un do quase todo , as traged ias de E s -quilo , de S6fo cles e de E uripides, po is e n elas que essa re f lexao

sobre 0 h om em b rilh a COIll s ua f o rc a p ri m ei ra ."

Co m efe ito , se cs grego s mvenraram a t ra g ed i a, e inegavel 0

fato de que , en tre urn a tragedia de E squ ilo e um a iraged ia de R aci-

n e , as d ife ren cas sao profundus 0 co n texte das represen taco es ja

n i io e o m esm o, nCIl1 e a mesrna a estru tura dus peen s: sequer 0

P I] h i ico p ode ScI ' com parave l \1 o d if icou-sc . aci rn a de tudo , 0 espf-

BIBUOGRAFIA,159

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B Jacqueline de Romi11y

rita interior - cada epoca OU cada pafs dao uma interpretacao dife-

rente do esquema tragico inicial. Mas e nas obras gregas que ele setraduz com 0maior vigor, visto que nelas ele aparece em sua nudez

original.

(. ~ ~demais, esta. foi, na Grecia, uma eclosao repeotina, breve, es-'I_pJendl~.A ~.?:dla grega, com s~a safra de obras-primas, durou ao

i todo QJtenta a n e s . Em uma relacao que nao pode ser causal, esses

i l ~itenta anos c?rrespondem t:xatalJlente aoperfodo da expansaopolf-

~~_~primeira representacao tragica feita nas festas dio-

nisiacas aten_ie_n_s_~s_sitiia,.~-:-segmidoas_in1oiiiia~_Oes,m torno do

/ ano_534.._dllrante 0_govempg~.p!s_(strata.Mas a primeira tragedia

q _ _ ~ _ f Q _ ~ con~~rvad~_(Q!i_J;~j~_Q!lsidmda d i g m l _ _ 4 ~ estudo pelo,s_aQ_ti:::

gQ_s}Je_mJugar_umia a_p6sa g ra nd e v ito ri a de Arena s sobre os inva-

sores persas. Mais ~ isso, eia pe,~tua a sua le~bran~a' a Yit6ri~

_de Salamina. q y e _ inst i tu i 0poderio ateniense,~co_Q!_~~JJno anQ 480. ;

a primeira 4 " a g O O i a _con~rxaa.4iia_de _ 4 7 2 , t!ll_~:~.ede.iJ£.perms,.rleE..sQIJilO--,-pepoisisso.as obras-primas se sucedem. J A cada ano, 0

teatro v e n~vas pecas, apresentadas em festivais, naTorma de con-

curso, por Esquilo, por S6focles, por Euripides. As datas referentes

a esses autores sao proximas: suas vidas tern aspectos comuns. Es-

quilo nasceu em 525, S6focles em 495, Euripides par volta de 48 5

ou 480. Diversas obras de S6focles, e quase todas as de Euripides,

foram representadas depo is da morte de Pericles, no decurso da

Guerra do Peloponeso, na qual Atenas, prisioneira de urn imperio

que ja nao conseguia manter, sucumbe finalmente sob os golpes de

Esparta] Depo~s de 27 ~nos ~e guerra. ,A.tenas perde, em 404, todo_0 pod e r ' c onqu i st ad o apos a s- g ue r ra s med ic as . Naquela data, haviam

passado Ires anos da morte de Euripides, e dais da de S6focles. Foram

encenadas ainda algumas pecas deles que nao haviam sido acabadas

ou representadas. E isso fo i tudo. Exc1uindo-se a Reso, uma tragedia

que nos foi transmitida como sendo de Euripides, mas cuja autentici-

dade e fortemente contestada, nada mais nos resta, ap6s 404, alern

de names de1utores ou de pec;as, fragmentos e a lu so e s por vezes

irn~iedosas. ~Apartir de 405, ' Aris t6fanes, em As riis, nao via au tromeio de preservar 0genero tragico, a nao ser procurando nos infernos

urn dos poetas desaparecidos.) Quando 0 teatro de Dioniso foi

reconstrufdo em pedra, na segunda rnetade do seculo IV, ele foi

A tragedia grega 9

decorado corn estatuas de Esquilo, S6foc\es e Eur_ipkks. Desde 386

(pelo menos essa e a data mais provavel), havia-se comecado a in-

cluir no programa das festas dionisiacas a repeticao de urna das

tragedias antigas. 0 apice da tragedia terminou ao mesrno tempo

em que acabava a grandeza de Atenas.

rEm outras palavras, quando hoje se fala da tragedia grega,pensa-se quase exclusivamente nas obras remanescentes dos tres

grandes t rag icos: sete tragedias de Esquilo , sete de S6focles e de-

zoito ~e Euripides (se nelas inC\ufm~s 0R~so). A sel~a~ dessas 32tragedias remonta, g rosso modo, ao Inperio de Adriano. I;

Isso e pouco, sob todos as pontos de vista. E pouco se pensa- _

mos ern todos aqueles autores que s6 conhecernos indiretamente, e

dos quais temos ap,enas uma vaga ideia - em particular os grandes

antecessores, como TespiQ_;:_-_~Jatinas,sobretud6Frinicos. E poucose pensamos nos rivais dos tres grandes - como OSI filhos de Prati-

nas e de Fr fn ico , fon de Quios, Neof ron , Nicornaco e varies outrosentre os quais os dais filhos de' Esquilo, Euf6rion e Evaion, e se u

sobr inho ' Philocles, a Antigo. E pouco, enfim, quando recordarnosos seguidores de Euripides, entre eles 16fon e Ariston, as dois fi-

lhos de S6focles, e ~obretudo autores como Critias e Agatao, ou

mais tarde Carcino. E muito pouco , finalmente, quando se leva em

conta a producao dos pr6prios tres grandes, urna vez que Esquilo,

segundo parece, havia composto noventa tragedias, e S6focles rnais

de cern (Arist6fanes de Bizanciomenciona 130, sete das quais pas-

savam por inautenticas). Par fim, Euripides havia escrito 92, 67 das

quais ainda eram conhecidas a epoca em que foi escrita sua biogra-

fia. 0 desastre, portanto, e imenso; e quando se fala das tragediasgregas, e preciso, infelizmente, ter em conta que sao conhecidas

cerca de trinta, entre mais de mil. Sem diivida alguma, elas nos

pareceria '!l tao belas quanta as que p ossu frn o s. A l em disso, desde 0

comeco, Esquilo, S6focles e Euripides nem sempre eram as vence-

dores nos concursos anuais.

Contudo, par mais estranho que possa parecer, essas trinta pe-

cas, distribufdas no periodo de menos de oi t enta anos, sao 0 teste-

J A selecao feita na epoca de Adriano compreendia as sere pecas de Es-quilo, as sete pecas de Sofocles e dez pe9as de Eurfpides: as outras

obras de Euripides conservaram-se de forma independente.

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10 Jacquelin e de R om illy

\I

munho nao apenas daquilo que foi a tragedia grega, mas tambern

da sua historia e sua evolucao. Uma nesga de sombra permanece,

em ambos os lados das fronteiras que encerram a vida do genero,

no seu grau mais elevado: essas fronteiras formam uma especie de

limiar, que nao pode ser transposto sem cairmos naquilo que ainda

nao e, ou naquilo que j a nao e mais, a tragedia em si, digna desse

nome. Entre as dois lirn ites, a "ainda nao" e 0 '~j nao mais", ur n

impulso poderoso arrebata a tragedia num movirnento de renova-

~ao que vai se definindo ana a ana. Sob muitos aspectos, e mais

ampla e mais profunda a diferenca entre Esquilo e Euripides do

que a que existe entre Euripides e Racine.

Essa renovacao interna apresenta dois aspectos complernenta-

res: na verdade, 0 genero literario evolui, seus meios se enrique-

cern, suas form as de expressao variam, e e possivel escrever uma

historia da tragedia que se apresente como alga continuo, aparen-

temente desvinculado da vida cia cidade e do temperamento dosseus autores; por outro lado, no entanto, ocorre que esses oitenta

anos, que vao da vit6ria de Salamina ate a derrota de 404, assina-

lam em todos as dornfnios uma pujanca intelectual e uma evolucao

moral absolutamente inigualaveis .

.A vitoria de Salamina tinha sido conquistada par uma demo-

cracra nova, e par homens ainda completamente imbuidos do ensi-

namento pia e altamente virtuoso de S610n . Depois disso, a

democracia conheceu rapida evolucao. Atenas assistiu a chegada

dos sofistas, mestres do pensamento que eram, antes de mais nada

mestres da ret6ric~, e que colocavam tudo em questao, lancando,

no lugar das doutrinas antigas, mil ideias novas. Por tim, depois doorgulho de haver afirmado gloriosamente seu herofsmo, Atenas

conheceu as sofrin.lent~s de uma guerra prolongada, de uma guerra

entre gregos. 0 clima intelectual e moral dos iiltimos anos do se-

culo e tao feeundo em obras e reflexoes como em seu infcio, mas e ,ao ,mesmo tempo, profundamente diferente. A tragedia reflete, ano

apos ana, esta transformacao; vive dela; dela se nutre, e expande-se

em obras-primas de outra ordem,

Existe, . evidentemente, uma relacao entre a evolucao pura-

mente exterior das formas Iiterarias e a renovacao das ideias e dos

senti.m~ntos. A flexibilidade dos meios explica-se pelo desejo de

expnrrur a1go mais, e 0 deslocarnento continuo dos interesses acur-

re ta um a evo l uciio iguul: 1 1 (: 1 1le co ntin ua n as f (\rn 1< i~ d e e x p re s< :io .

E m (Jutras pala vrus, a aven tura refletida pela Iii~ ('J[ia lb tr "g:~di<t

em Ar ena s e a m esm a que po de se r o bscrvada n o n Ive l das estru tu -

ras 1 i te r ar i a s ou no do s significados e d a i n sp ir ac ii o filosofica.

Somente ap6s te rm o s aco m pan hado essa evo l u~iio dupla, n o

seu impulse interior, e qu e podemos te r a esperanca de cornpreen -de r aquila q ue c o ns ti tu i 0 s eu p ri n ci pi o cornum, e e nq ua dra r d es sa

forma - para alem do genera tragico e seus autores - aquila que

encarna a real espfrito das suas o bras, islO e . aquila que, depo is

delas. jamais deixou de ser chamado 0 tragico.

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Capitulo 1

o genero tragico

Atragedia grega e urn genero a parte que nao se confundecom

.nenhuma das formas assumidas pelo teatro m od ern o. _Todos n6s adorarfamos poder descrever sua origem, para

cornpreendermos urn poueo melhor aquilo que pede suscitar urn

tao notavel sucesso. E nao faltam livros e artigos que tentem des-

creve-la, No entanto, 0 grande mimero de ensaios explica-se justa-

mente pela ausencia de certezas. De fato, pairam muitas duvidas

sabre 0nascimento do genero,

Todavia, possuiamos uma au duas indicacoes seguras, que se

traduzem na pr6pria forma que as tragedias eram representadas e

que, alern das representacoes em si, explicam em que nfvel se situa

a tragedia,

A origem da tragedla

Dioniso e Arenas

,- Antes de mais nada - ja foi dito e repetido -, a tragedia grega

_!em, sem diivida alguma, uma origem reiigiosa.

Essa origem ainda era claramente visfvel nas representacoes

da Atenas ciassica.-t essas derivam claramente do culto a Dioniso.

As tragedias s6 eram encenadas nas festas deste deuS] 0 grandeevento, no perfodo classico, era a festa das dionfsias urbanas, que

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14 - Jacgueline de Romilly

se celebrava na primavera; mas havia tarnbern concursos de trage-

dia na festa das leneanas, que ocorria no final de dezernbro. A pro-

pria representacilo inseria-se, portanto, num contexte

eminentemente religioso, sendo acompanhada de procissoes e sa-

crificios.~or outro lado, 0 teatro em que ela acontecia, cujas ruinas

ainda hoje sao visitadas, foi reconstruido mais de urna vez, mas foi

sempre charnado 0 "teatro de Dioniso"; com urn magnifico trono

de pedra para 0 sacerdote de Dioniso e urn altar para essa divinda-

de no centro, onde se apresentava 0 cora. Este coro, par si s6, evo-

cava 0 lirismo religioso, E as mascaras que coristas e atores

portavarn levam-nos facilmente a pensar nas festas rituais do tipo

arcaico.l

T u d o isso revela uma origem ligada ao culto, e pode perfeita-

mente conciliar-se com 0 que diz, [Arist6teles (EQe t jca ,_ .1_:1:49~) : .

segundo eie, a tragedia teria nascido de imp[QyiSi!~es_,_Elateria se

Qri-£;Lnadoe formas liricas, como 0 ditirambo (canto coral em lou-

vor a Dj_~l_!_iso).s~ri_~~.~?~~_a_~<?_~~dil:!_,~_~Q1_Q_liasftod e u m Iit'?J

[:

Desse modo, a inspiracao fortemente religiosa dos grandes

autores de tragedias apresenta-se como a extensao de urn impulso

nicial. De fato, nao encontramos em suas obras mencao especial a

Dioniso, 0deus do vinho e das procissoes er6ticas, nem mesmo ao

deusque rnorre e renasce com a vegetacao; porern, deparamos-nos

sempre com uma certa presenca do sagrado, que se reflete no pr6-

prio jogo de vida e morte.

Todavia, quando falamos de uma festa religiosa em Atenas, e

preciso cuidado para nao imaginar uma separacao freqtiente nosnossos Estados modemos. A festa de Dioniso era tambem umafesta nacional.

Ir ao teatro, para os gregos, era muito diferente daquilo que fa-zernos hoje em dia - escolhendo 0 dia e 0 espetaculo de preferen-cia, e assistindo a uma representacao que se repete todos os dias,

durante 0 ano todo{!lavia duas festas anuais onde se encenavam, tragedias, Cada festa contava com urn concurso, que durava tresdias, e a cada dia urn autor selecionado com muita antecedenciaapresentava, sucessivamente, tres tragedias, A representacao eraprevista e organizada sob 0 patrocfnio do Estado, pois era urn dosaltos magistrados da cidade quem se incumbia de escolher o~

poetas e de selecionar as cidadaos ricos, encarregados de cobrirJ

A tragedia grega 15

ftadas as despesas. Finalmente, no dia da representacao, todo 0

povo era convidado a comparecer ao espetaculo: a partir da epocade Pericles, os cidadaos pobres podiam ate receber urn pequenoabono, para esse fim.

Consequentemente, esse espetaculo adquiriu as caracterfsticas

de uma manifestacao nacional. 0 fato explica com clareza certosaspectos da inspiracao dos autores de tragedia, Eles se dirigiam

sempre a urn grande publico, reunido numa ocasiao solene: e nor-

mal que eles quisessem atingi-Io e interessa-Io. Portanto, eles es-

creviam na qualidade de cidadaos que se dirigem a cidadaos.

Esse aspecto da representacao tambem tern a ver com as ori-

gens da tragedia: e muito provavel que a tragedia so tenha podido

nascer quando aquelas improvisacoes religiosas das quais ela surgi-

ria foram reorganizadas sob 0 comando _deUIp.aautoridade polftica,

com apoio do povo.~uma caractenstica realmente notavel, 0 nas-

cimento da tragedia esta bastante ligado a existencia da tirania - ou

melhor, de urn regime forte sustentado pelo povo, contra a aristo-cracia. Os raros textos sabre os quais podemos basear-nos, na bus-

ca das orig_ens anteriores _ _ tragedia _atic_!l,conduzem sempre a

ti~aEosJUina Ienda, atribufdaa Sol6n, con~a que a prim,eira repre-

sentacao tragica seria de autoria do.poeta Arion.lOra, Arion vivia

em Corinto, sob 0 reinado do tirano Periandro (do final do seculo

VII ao comeco do seculo VI a.C.). 0 primeiro caso em que Hero-

doto cita os coros "tragicos" e 0 de__icione, onde coros cantavam

as desgracas de Adrasto que foram ''festitufdas a Dioniso";2 ora,

quem as restituiu a Dioniso foi Clfstenes, tirano dessa cidade (inf-

cio do seculo VI). Sem diivida, temos ai somente urn esboco detragedia, Mas e dessa forma que nasceu a verdadeira tragedia. De-

pois dessas tentati vas hesitantes, em diversos pontos do Pelopone-

so, urn bela dia surge a tragedia na Atica: devem ter existido

alguns primeiros ensaios anteriores, mas houve urn infcio oficial,

que e 0 ate do nascimento da tragedia~lre 536 e - 5 : 3 3 ~ T~spioproduziu, pela primeira vez, uma tragedia para a grande festa dio-

I

cr. Jean Diacre, texto citado em Rhe , ( ( !! . sches Museum, 1908. p. 150, e aSouda.

2 cr. Her6doto, V, 67.

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16 Jacqueline de Romilly A tragedla grega 17

nisia~3Ora, tratava-se da epoca em 'We reinava em Atenas 0 tirano

Pisistrato, 0unico que ela conheceu.J

Essa data tern para nos algo de ernocionante: nenhum genero

literario possui urn registro civil Hioprecise. E nao se conhece ou-

tra forma de expressao que teoha permitido cerimenias como as

que aconteceram na Grecia, M alguns anos, por ocasiao da cele-bra~ao dos 2.500 anos da tragedia,

Ao mesmo tempo, alem da precisao destas origens, a data des-

perta, por si 56 , algum interesse.

Tendo ingressado na vida ateniense em virtude de uma decisao

ficial , e inserindo-se em uma polfti .ca de expansao popular, a tra-

& l i a apresenta-se, desde 0priocipio,assOciada a atividade cfvica.

ste la~o s6 podia estreitar-se ainda mais no momento em que 0

povo, reunido no teatro, se tomava arbitro dos seus proprios desti-

nos. Ele explica a liga~ao do genero tragico com a expansao polfti-

ca. Explica tambem 0 lugar ocupado, nas tragedias gregas, pelos

grandes problemas nacionais da guerra e da paz, da justica e docivismo. Pela importancia que os grandes poetas conferem a esses

problemas, eles se coiocam, mais urna vez, como a extensao de urn

impulse inieial.

Entre estes dois aspectos da tragedia existe, ademais, urna re-

ferencia a sua origem. Pisfstrato e , em certo seotido, Dioniso - °tirano ateniense havia desenvolvido 0 culto a essa divindade, Ele

ergueu, aos pes da Acr6pole, urn templo a Dioniso de Eleuterio, e

instituiu em sua honra as fest as dionisias urbanas, que seriam

aquelas da tragedia, 0 fato de que, sob seu reioado, a tragedia te-

nha integrado a ceria do culto a esse deus simboliza, portanto, auniao dos dois grandes patrocinadores daquele nascimento: Dioni-

so e Atena.

Surgern assim dais pontos de partida gerninados, cuja combi-

na~ao parece ter side essencial para 0 nascimento da tragedia, In-

felizmente, isto nao signifiea que nos sejam c1aramente revelados

nem a parte que coube a urn e a outro nessa combinacao, nem a

forma em que eta ocorreu. Alem disso, entre as improvisacoes reli-

giosas iniciais e a representacao oficial, a unica que conhecernos,

faltam-nos os elos de transicao; devemos limitar-nos as hipoteses, e

as modaIidades envolvem-se no rnisterio.

Tracos do culto e da epopeia

p_m1amOl i jnjcialroente desta paJavra' a traghlia, qlle signjfiQ!_

"0 canto do bode" como interpretar esse nome? E0qne Cazer com?

r: A hip6tese majs djfundjda consjste em jrlen1ificar esse bode

:' com os satir~s. nonnalmente assodados ao cuho de Dioniso, e

aceitar as duas.indicaIJOes. fejtas par Arist6teles, que jnjcjalmeme,

na Pq! ( i ca . . . ( 1 449 . a~parece atribuir a tragedja aos autores de<iitjrambos (obms corals execl!tadas. sobretudp, em han Ta a Diooi-

jQ); e Que. mais ad.iante, em 1449 a 20 espeeifica: "A tragedia to-

mau aleoto, abaudonando as f;ibulas curtas e a liniya~ero diyertida~t.~u~, origem saurica. e aos pcmcos revediu-se de majesta-

de". Teriamos entjio para a tragMia !lma origem muito pr6xjmti

da eom¢dja' handos de fiejs a Djoo;so represenrando sa.tiros, cJijg

aspecto Quroupagem lembrariam Qbode

Essa hipotese e coerente e. sob certos aspectos, simpatica. Noentanto, ela apresenta duas dificuldades. A primeira e de ordemtecnica: 0 fato de que os satiros jamais foram identificados CQmos

bodes. Logo, torna-se necessario encontrar uma explicacao. E se

apelarmos para a lascfvia, comum a uns e a outros, livramo-nos da

primeira dificuldade para agravar a segunda - a de que uma geneseassim concebida valeria mais para 0drama satfrico que para a tra-

gedia, Nada nos permite irnagioar que essas cantorias de satires,

mais au menos lascivas, poderiam dar origem a tragedia, visto queesta nao era absolutamente lasciva e nao comportava qualquer tra-

co dos satires.

E essa a razao pela qual, desde a Antiguidade, alguns preferi-

ram interpretar de outra maneira a palavra tragedi~dmi.tiarn..QW!....

o bode era.~~CQmpensa oferec;da 30 melbor partlclpan1e,4 QlJ en-

,7}/ ./

Cf. marmore de Paros: I G XU, 5, I. 444 e Charon de Lampsaque, em

Jean Diacre, cf, acima,

4 Cf. marmore de Paros, a propos ito de Tespio e Eusebio, Chronique,

Olympiade 47.2; tambem Horacio, Ars Poetica, 220.

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18 Jacqueline de Romilly

~~Q.aYiti,,?a?ferecid3 em sacriffcio.bmand Robe"Wvai roais lon~A!nda atnhqmdo a esse bode lim valor catartjco fazendo dele 0

l iQde_ e xpj~ t9 _d O '- e restjtnjndo assim lim a dirnenslio~~;;'::esolene a s djYersas manifestac5es ligadas a esse sl;lcrificio.}{~sse.

casO,a ditirambo teria servido simplesment!;.,g~_mpg~lQ_Jor:maJ.

tantQpara a~t[agedia Quanta para d'drama,.sJl!!ric:o:,6qlle~ao,g~!1_e;r9S

paraleloi, mas de jnspiradio inteiramente d~~_tm_~l!1~~santerpreta-.

~Q _~ui 0 grande menta de resptilar ..!l 4if~r~a entre os dais

gffieros, e de G9Awair diretamente aqui lo . _QJ, I econs ti tu i a originali-

dade intrinseca ao g~nero tragico. EntretantQ,J!'.1>Qnaosignifica que

se resoJyem tOOasas ditk,d<:l~Q~s.Uma delas, evidentemente, e 0

tato de esta interpreta~aG ignorar:.uma. pgme_~o testemunho de

Arist6teles mlma area nnde os testemunhos j a _ n s i i _ Q _ ~ DlJmemJ:ao.

rednzido antra dificllJdade e que a itttelJlret~S'_i!()~_.a_pQiajnteira~mente no sentjdo atribuido 30 sacrificio do .QQde. ._Qm, apesar de

alguns exemplos bastaote notaveis. 0 culto~Dioniso aparece ~~ii~"Jl\ais ligado aos cahritos e a s co~as que ao nossomrerriJii(Ie~-

Qualquer que seja a solucao, de todo modo, permanece

abrupta a passagem entre esses ritos primitivos e a forma literaria

na qual desembocaram. Em urn caso, e preciso imaginar uma mu-

danca profunda de tom e de orientacao; no outro, a evolucao e me-

nos ilogica, mas 0 caminho a ser percorrido e estranhamente longo.

o fato e que essas festas rituais, independentemente do cami-

nbo tornado, derivam mais ou menos da sociologia, enquanto 0

nascimento da tragedia permanece urn acontecimento iinico, sem

equivalente em nenhum outro pais e em nenhuma outra epoca, Ecerto que os improvisos de pastores ocorrem na cultura de muitos

povos, e podem ter sido feitas cornparacoes sugestivas com a tra-

gedia. Mas os pastores, padres e camponeses nao inventaram a tra-

5 Cf. Les etudes classiques, 1964, pp. 97-129.

6 Pratinas de Phlionte teria trazido 0 drama satfricopara Arenas, no infciodo seculoV.

7 0 autor cita quatro exemplos e insiste principalmente em dois epftetosdeDioniso: DionysosAigobolos (que bate nas cabras) e Dionysos Melanai-gis (da cabra negra). Ficartamos evidentemente bern mais satisfeitos se apalavra empregada fosse tragos.

A tragedia grega 19

gedia, Nenhuma das hip6teses levantadas sobre a origem da trage-

dia - das piores a s melhores, mesmo que se provem veridic as - nos

fornece a chave do misterio .

. N a verdade, 0 genero liter.irio chamado tragedia nao vode s~

sxplicado a nao ser em termos literarios.8Uma vez que as tragedias

que foram cQllSIDad~...!l~o falam nem de bodes nem de satires epreciso entao adrnitir que ~eu~-aii~~-~t~-~~~nci~T~'i~procede n ~ mdesse culto, nem desses divertimentos. Estes podem ter proporcio-

Dado a ocasiao; podem ter inspirado essa mistura de cantos e dialo-

gos entre personagens fantasiados, representando uma aifao rnftica

situada fora do tempo; podem ilustrar uma fase mais religiosa, mas

nada alern diSSO.~ tragMia, como ~enero_jjterario, surgiu somente

QQrque aql!.elas~t;;staLe~Qnr~_a_Q_!~niso passaram deliberada-

mente a procurar a subsmncia das suas representac5es Dum espaifo

estranho ao domfnjo.dessa diriru!ade.:J_

A passagem em que Her6dot~-fara de Arion evoca representa-

~oes que ilustram as desgracas de Adrasto, urn dos her6is ligados

ao cicIo de Tebas. Clistenes, diz Her6doto, restituiu os coros em

louvor a Dioniso. Isto quer dizer que ele fizera de Dioniso 0 her6i

da representacao em si? Permitimo-nos duvidar disso. Clfstenes

pode sirnplesmente ter associado 0 conjunto da festa ao culto a Di-

oniso. Uma coisa, em todo caso, e certaG tragedia somente adqui-

riu existencia literaria a partir do momento em que ela se inspirou,

e de maneira ampla e direta, nos fatos de que ja se ocupava a epo-

peia.lfrata-se aqui de urn terceiro elemento, como urn corpo estra-

nho ao culto a Dioniso. Urn conhecido proverbio dizia, em tom decrit ica ou espanto: "Af nao ha nada que diga respeito a Dioniso"."

[ A epopeia e a tragedia tratam, na verdade, dos mesmos as-

suntos)Existiram, por certo, algumas pecas relativas aos mitos de

Dioniso (As bacantes, de Euripides, sao 0 tinico exemplo); ha tam-

bern algumas pecas relativas a fatos marcantes da hist6ria contem-

iII

8 cr. G. F.Else, The origin and early form of Greek tragedy, Martin Clas-sical Lectures, XX. 1965, p. 31.

9 cr. Plutarco, Questoes de banquetes, 615 a, Zenobio, V, 40, e a Souda.Esta cens~ra e dirigida a diversos autores de tragedias, entre os quaisTespio e Esquilo,

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20 Jac qu eli ne d e R om illy A tragedia grega 21

poranea (nosso unico exemplo e Os persas, de Esquilo).Wo en-

tanto, a tragedia esta geraimente ligada aos mesmos mitos da epo-

peia: a Guerra de Troia, as exploracoes de Heracles, as desgracas

de Edipo e sua familia. Com excecao dos dois exemplos citados

anteriormente, todas as pecas que foram preservadas encontram ai

a sua materia-prima.]r Nao devemos surpreender-nos com isso: a epopeia foi, durante

lsoculos, 0 genero literario por excelencia. 0 pr6prio lirismo nutria-

se dela. 0 objeto epico foi 0 objeto natural de toda obra de arte. 0

mais espantoso, na verdade, e que ela permaneceu como objeto da

tragedia, nao apenas na Atenas do seculo V. mas tambern, depois

dos gregos, ate a epoca moderna.

E evidente que existiram, em diversos pafses, tragedies hist6-

ricas. Mas a hist6ria, nessas tragedias, e tratada urn pouco a manei-ra do mito: ela serve de exempio; dela retemos apenas 0 sentido

humano, e a modificamos ao nosso bel-prazer. E preciso dizer, demodo inverso, que os mitos gregos deviarn, desde 0 principio, res-

gatar uma hist6ria distante e her6ica, mas geralmente verfdica.

Embora a diferenca nao seja radical, estes sao, de qualquer manei-

ra, personagens pertencentes a urn passado coberto de heroismo, e

revestidos de certa grandeza.

Essa grandeza, oriunda da epopeia grega, permaneceria para

sempre ligada ao genera t rag ico, Esse genero, dizem as vezes os

autores do seculo xx, e "para os reis": estes reis sao os her6is deHomero, que, tendo urn dia entrado na tragedia, dela jamais have-

riam de sair.

Assim se ex.plicam as Electras e as Orestes que ainda hoje sao

escritos. 0 emprestimo e legftimo e corresponde a urn habito anti-

go bastante interessante para explicar 0destino do genero,

Essas lendas eram de fato conhecidas, As criancas de Atenas

haviam-nas aprendido com a epopeia, 0 publico presente as apre-

sentacoes teatrais conhecia-lhes os elementos. Urn autor tragico

retomava-os; rnais tarde, urn outro voltava ao mesmo terna. lsso

significa que a originalidade dos autores nao estava ali, no nivel

dos acontecimentos, da a~ao e do desfecho, mas sirn no ambito da

interpretaeao pessoal. Ela residia no fato de que 0 autor enfocava

uma emocao, uma explicacao ou urn significado que nao haviam

sido percebidos antes dele. Assim se desenvolveu uma especie de

afastamento, de reeuo em relacao ao tema, 0 que por sua vez pare-

ce ter contribufdo para acrescentar majestade a tragedia e conferir-Ihe uma dirnensao particular. Ela utiliza urna detenninada a~ao

somente como forma de linguagem, urn meio pelo qual 0 poeta

pode exprimir aquilo que 0 emociona ou escandaliza.De qllalquer manejra. os aUtores de tra ge di as b U5 ca ra .m va

epopeja a inspira~ao para suas obras. E niio ha dt iv ida de que dati

extrairarn, ao mesmo tempo, a arte de construir personagens e ce-

nas capazes de comover , Conferir 0 sentimento da vida, inspirar

terror e piedade, partilhar urn sofrimento ou ansiedade foram sern-

pre traces da epopeia, que ela ensinou aos t rag icos, Poder-se-ia

igualmente dizer que, se a festa criou 0 genero tragico, foi a influ-

encia da epopeia que fez dele urn genero literario.

Mas a epopeia assim transmutada tornou-se algo novo. Se a

epopeia narrava, a tragedia mostrava,0

que acarretou uma serie deinova~5es.lNa tragedia tudo se revela aos olhos, real, proximo,

imediato. r m tudo se ere, tudo se teme. E sabemos, por testemu-

nhos antigos, 0 quanto determinados espetaculos assustavam a

plateia, Se a cornparamos com a epopeia, vemos que a forca da

tragedia reside no fato de eia ser tao tangivel e temve.!J

( Por outro lado, a limitacao imposta ao autor obrigava-o a es-

'colher somente urn epis6dio, e os espectadores acompanhavam-Ihe

[

0 desenvolvimento continuo, passando por todos os momentos de

esperanca e de medo, sem perder 0 interesse. A forca da tragedia

tambern reside nessa atencao fixa a uma tinica aC;ao.

I Enfim, as pr6prias condicoes da representacao levavam os

Lautores a enaltecer as her6is e os ternas. E importante lembra-lo,

pois 0 teatro atual, como tambern, ja em sua epoca, 0 teatro latino,

difere nesse ponto do teatro grego. Por realizar-se ao ar livre, este

ultimo foi concebido para representacoes excepcionais, reunindo

urn publico enorme. Os rostos encobertos por mascaras, os papeis

femininos representados por homens exclufam obrigatoriamente

urn teatro de nuancas, dedicado a psicoiogia e aos personagens.

Contrariamente ao que as tenninoiogias poderiam sugerir ao ho-

mern modemo, 0 teatro entre os gregos era menos intimista que a

epopeia.Pelo fato de mostrar, em vez de narrar, e pelas pr6prias condi-

~oes em que mostrava, a tragedia podia extrair dos fatos epicos urn

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22 Jacqueline de RomillyA tragedia grega 23

efeit~ mais im~diato e uma li~ao mais solene, 0 que se encaixava

perfeitamente a sua dupla fun~ao, religiosa e nacional. Os fatos

epicos s6 tinham acesso ao teatro de Dioniso se associados it pre-

~en~a dos d~uses e a preocupacao com a coletividade, porem mais

intensos, mats surpreendentes, mais carregados de sentido e forca,

Basta urn s6 exemplo para dar a exata medida dessa transfor-macae,

. A morte de Agamemnon, assassinado por Egisto, ou talvez por

Chtemnestra, e 0 retorno de Orestes para vingar seu pai eram fatos

~ivulgados pela Odisseia, e narrados pela Orestia de Estesfcoro.

Esquilo, portanto, nada mais fez que retomar urn fato epico, Mas

com ele tudo se organiza: na metade das duas primeiras pecas da

sua Orestia ocorre urn assassinato. Tais mortes sao, ao mesmo

t~~po, sacriffcio e expiacao. 0 assassinato e esperado, temido, as-

sistido ~, por fim, lamentado: cada tragedia apresenta, portanto,

uma unidade solidamente organizada. Na terceira delas, 0 assassi-nato, e su~sti.tuido por urn julgamento, mas nem por isso 0 proble-

ma e mars Simples e menos terrfvel, pois existe, todo 0 tempo, 0

temor por uma vida que esta em jogo. Por outro lado, se 0 publico

nao assistia aos assassinatos, que aconteciam no interior da casa

ele presenciava diretamente 0 terrivel confronto entre mae e filho:

presenciava 0 delfrio de Cassandra; e, vivenciando fatos passados ~

bern conhec~dos, ele via as Erfnias, ou Furias, bern vivas, grunhin-

do de maneira horrivel, seguindo os passos do culpado. Cada tra-

gedia significava presenca, e uma presenca aterradora. Mas

presenca de que? Nao apenas de morte e violencia, pois 0 assassi-

nato era aprovado pelos deuses, e as Fiirias eram divindades. Pode-

se dizer tambern que, na sequencia das tres tragedias, se manifesta-

va a presenca divina. ~esmo no nfvel dos fatos e das a~6es huma-

n~ •. !i.e~t~~~a si?IP!es aaspe·r;a~irfipoe aTgumas·qlies15es e

<!- .~sper ta_- ' l~!~l_l5~?_i!0sespectadores para-os-deuseS: Mas por q-ue

afina~? Por que 0 assassinato de Plgamemnon? E ap6s esse primei-

ro ~nAme.'or que 0 0.utr07 Onde estava 0 pecado? Onde estara a

pennencia; 0 que decidern os deuses? Essa interrogacao atormenta

o :o~o, atormenta os atores. E, na verdade, os deuses estao muito

p~oxlmos. Eles falam por meio de oraculos, falam pela voz de uma

vidente; os homens estremecem ao pressentir sua c6lera; depois,

repentinamente, surge a Erfnia, depois Apolo, em seguida Atena.

_Ca~a_assu1!!_~ valor religiose. Na verdade, 0 conjunto

significa algo mais. Atena, com efeito, e a deusa guardia de Ate-

nas. Gracas a sua intervencao, as Fiirias convertern-se em divinda-

des protetoras da cidade: elas velarao pela ordem e pela

prosperi dade do pais no qual elas se instal am, a partir de agora. Aomesmo tempo em que alcanca esse resultado, Atena da instrucoes

para que seja man~ido 0 tribunal do Are6pago, instituido para jul-

gar Orestes. Ora, Esquilo exalta 0 papel restitufdo a esse tribunal

no exato momenta em que Atena Ihe altera os poderes. Desta for-

ma, a Orestia afeta a vida da cidade: eta fala de civismo, sua inspi-

ra~ao assume uma dimensao nacional.

A Orestia ilustra muito bern os aspectos que constituem a ori-

ginalidade fundamental da tragedia grega, os que simples mente

distinguem 0 genero tragico do genero epico, e aqueles que dife-

renciam a tragedia grega das tragedias posteriores, em virtude de

suas rafzes religiosas ou nacionais.

E preciso acrescentar que, na sua estrutura basic a, a tragedia

grega apresenta traces nao menos originais, e que nao deixam de

refletir fielmente as circunstancias das quais ela se originou.

~utura da tragedla

~

0 principal desses traces originais e evidente a primeira vista:a tragedia grega fun!itt .em urna unica obra dojs elemeRtss Be flaty.

11 eza distinta, 0 cora e os personagens.({ Considerando-se que a tragedia naseeu do ditirambo - ou da

irnitacao dos seus procedimentos -, essa dualidade nada tern de

surpreendente: 0 ditirambo era, com efeito, 0 dialogo de urn perso-

nagem com urn coro.

Na tragedia grega, esta parceria permanece essencial; ela esta

presente na estrutura literaria das obras, na metrica utilizada, cor-

respondendo ate a urn divisao espacial.

l(De fato, uma tragedia grega era representada em duas cenas ao

mesmo tempoJBasta, para entendermos isso, conheeermos as rui-

nas de qualquer teatra grego. Os espectadores ocupavam arquiban-

eadas dispostas num vasto semicirculo. Na sua frente levantavam-

se paredes de fundo, que dominavam uma cena, cornparavel ao

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24 Jacqueline de Romi l ly

cenario dos nossos teatros. Esse era 0 cenario reservado aos perso-

nagens. Sobre ele se erguia uma especie de sacada, onde poderiam

~ aparecer os deuses. Nao havia, na verdade, decoracao, somente

\'('0 algumas portas e sfmbolos evocativos do quadro da a~ao. A a~lio

~ desenrolava-se, normal mente, do lado de fora, as portas de urn pa-

s: lacio , Se fosse necessario, urn dispositivo de palco (ou ekkuklema)podia colocar em cena urn quadro, ou urn breve episodic, que re-

velasse uma a~ao realizada no interior. Tudo isso era simples, e

deixava grande margem a imaginacao dos espectadores; mesmo

~, assim, eram procedimentos comparaveis aos utilizados pelo teatro

", frances tradiciona1.

r Em contrapartida, havia uma grande diferenca. Alem daquele

i cenario, urn teatro antigo dispunha daquilo que se chamava or-

";chestra, ou "a orquestra" no sentido que chamamos os "lugares da

"orquestra", Esta era uma vasta plataforma, de formate circular,

;' cujo centro possuia urn altar redondo dedicado a Dioniso; esta pla-

"":aforma era inteiramente reservada a s evolucoes do coro. E certo

, que 0 palco formava 0 fundo da orquestra, e que poucos passos

levavam de urn para outro. No entanto, os dois espacos permaneci-

am bern distintos; os atores, no palco, nao se misturavam normal-

mente com os coristas da orquestra; e os coristas jamais subiam ao

palco.

Em outras palavras, 0 coro, pelo lugar _queocupava, permane-

cia, de certa forma, independente da a<;:aoem curso; ele podia dia-

logar com os atores, encoraja-los, aconselha-los, teme-los, e

mesmo ameaca-los, mas ficava a parte.

No mais, sua funcao era muito bern definida. Se ele ocupava 0

lugar da orquestra.eraeste o seu-paii~i~Hrico, comportando evolu-

~oes que iam de urn gestual quase imovel a verdadeiros passos de

danca. Em suma, Q coro _c~Dt_a_Va.~y_a.[podia ocorrer, eviden-

temente, que urn mestre de cora (ou corife'iij tivesse urn dialogo

falado com urn personagem (da mesma forma como urn ator podia,

mais raramente, apresentar urn solo). De modo geral, porem, 0 coro

s6 se exprimia cantando, ou pelo menos recitando, Isto se traduz na

metrica empregada: visto que na tragedia grega os atores se expri-

mem em trfrnetros jambicos (adotando a forma lfrica somente num

momento de viva em~ao)J

A tragedla grega

o cora, por sua vez, expressa-se na metrica lfrica caracterfsti-

ca, onde os versos constituem, quase sernpre, conjuntos e estrofes

geminadas, altemadas, sempre diligentemente ordenadas, e sempre

acompanhadas de evolucoes coreograficas, A tipografia das edi-

~5es modemas revela essa diferenca: os caracteres italicos indicam

as partes cantad as , com destaque, entre estas, para os conjuntoscorais. Assim, resulta que a tragedia grega se desenvolve sempre

em dois pIanos, e que sua estrutura e comandada pelo princfpio

dessa alternancia,

i Como era apresentada sern 0 recurso da cortina,_yrna tragedig

\)g!ega nao tinha atos; em contrapartida, a a<;:aodividia-se em urn

icerto mimero de partes, chamadas episodios, separadas por trechosLlfricos executados pelo corona orquestra.

Por outre lado, como era n~~§sari.o..um certo tempo para que

esse coro entrasse na orquestra e af se_acomod<!~s_e,_aestrutura ha-

. bitual da tragedia comportaza.um prologo (que precedia a entrada

( do cora), depois a pr6pria entrada do coro, ou pdrados (muitas ve-

zesescrita em ritmo de marcha), depois os epis6dios..-intercalados

por.cantos do coro (ou stasima), cujo mimero podia variar, segundo

o caso, de dois a cinco, e finalmente a safda do coro, ou exodos.

Isso nao impedia que atores e coristas fossem envolvidos na

, mesma torrente de emocao: e essa relacao traduzia-se de uma for-

; rna precisa, uma especie de recitativo, do qual participavam atores

j e coristas, chamado 0 commos. Como escreveu Arist6teles (Poiti-

I\ ca, 1452 b): "0 commos e urn lamento que vern ao mesmo tempo

I do coro e do palco". Ele traduz a concordancia; ele funde num todo

lcena e a orquestra. Podem-se con tar nos dedos da mao as trage-

dias que nao tern pelo menos urn episodic que culmina no commos.

Tudo isso configura urn esquema bern claro que se encontra no

conjunto das tragedias gregas, distinguindo-as de qualquer outra

obra teatral. Mas falar de regras seria cometer urrr.equfvoco, En-

quanta a tragedia francesa do seculo XVII se preocupou constan-

ternente em adaptar-se a padroes fixos, a tragedia grega nao deixou

nunca de inovar, de inventar, e somente 0 seu vigor interior esc1a-

rece 0 sentido de uma estrutura, a primeira vista, desconcertante,I~to e , na verdade, natural, pais 0 genera era, em si mesmo,

urna lDVe,n~aOecente, que nao contava com nenhum precedente,

nenhurn ~odelo. Foi, portanro, necessario desembaraca-lo, liberta-

10, aper feicoa- lo , como tambem adapta-lo a interesses que se modi-

2527

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UnIVer81dlilde de Brasflla

BIBL IOTECAtragedia grega 2726 Jacqueline de Romilly

Ocoro

Esse hahjto deriya do fata de que jnjcialmente Q..cO[Q detinha

urn papel prepooderante no desenyolvimento da Iragedjj!. Ele re-

_mesentava pessoas estreitamente interessadas na a}ao em cu~o_:_E_

QS seus CiAtOi OCllpayam11mDlimem consideni.vel de versos.

Assim, 0 futuro dos ancioes que cornpoem a coro de Os per-

sas, de Esquilo, depende diretamente do sucesso ou da rufna do seusoberano. E por eles mesrnos que eles temem, e sobre seu pr6priofuturo que eles se perguntarn, pais 0 destino do seu pais depende

do destino do exercito, Da mesma forma, em Os sere contra Tebas,

a coro e cornposto de mulheres da cidade, que temem todo 0 tempo

urn desastre para sua patria, e incessantemente evocam a atmosfera

de uma cidade pilhada e saqueada; elas tern__! 1 _~~~~o__pe)1s,ar_o que

as espe_ra,nQ[uturo reservado asjnulheres - "viiivas de defensores,

af, jovens e ve lhas it o mesmo tempo - arrastadas pelos cabelos,

como eguas ..." (326-329). Eteocles, seu rei, repreende-as e exorta-

as a calma, mas etas nao conseguem controlar-se:

ficavam, a novas curiosidades que surgiam. De 472 a 405, ele so-

freu a efeito de impulsos multiples que, combinados, resultararn

numa evolucao quase contfnua.

[

Em particular, a importancia relativa dos dois elementos da

tragedia - a~ao dramatica e cora Ifrico - modificou-se aos poueos,

a ponto de inverter-se. Esta alteracao, que acarretou conseqtienciasdiversas, acabou par traduzir-se numa renovacao completa: das

pecas arcaicas do infcio chegou-se, em menos de urn seculo, a urn

teatro bastante proximo do nosso,

r Qriginalmente, a coro era 0 elemento mais importaDie da tra-

I.~~~~~ :~~~ ::~ }~~~~~~ ~ (;~~ .

~~~r1~ i1a .~ . ' ~~ . ; :~~ i~ :~ ' i : ~~ -desie-na~l'iodas <;Qr!:g_QS~_isto.e,os cidadaos ricos que, as._P!6prias

expensas, teriam.,a.nonrade recrutar e manter o s q ui nz e _m~mbrQj__10 .. . -.~~

doccraou ccreutas.; Os mesmos magistrados realizavam igual-

mente urna escolha entre os poetas que "solieitavam urn coro", au

seja, que pretendiam concorrer. 0 poeta que desta forma conse-

guisse urn cora tinha entao a tarefa de ensaia-lo, Em princfpio, ele

era pessoalmente encarregado, embora pudesse recorrer ao talento

de urn "mestre de coro''. Vale dizer, 0 cora era considerado 0 ponto

de partida da representacao,

Muitos titulos, alias, dao testemunho dessa importancia. Como

no caso da comedia, nao e raro que uma tragedia seja designadapeia indicacao dos papeis confiados aos coros. Os persas, As supli-

cantes, As coeforas, As eumenides sao alguns exernplos; tambem

As troianas au As bacantes de Euripides. Muitas vezes, tambem,

urn titulo e dado mesrno quando a natureza do cora nao permite

definir 0 conteiido da tragedia - como no caso de As traquinias, de

S6focles, ou de As fenicias, de Euripides.

Eu quisera obedecer-te, mas 0 pavor mantern meu coracao em

vigfl ia , e a a n gu st ia , i n st al ad a as portas da rninha alma, acende

em mim 0 terror: tenho medo do exercito que cerea as nossas

mural has, da mesma forma como a pomba, tremula no seu ni-

nho, terne a serpente com seus aneis de morte ... (287-294).

o mesmo contraste, entre urn homem senhor de si e urn coro

formado de mulheres assustadas, pode ser encontrado em As supli-

cantes. Aqui tambem 0 coro e formado pelas mesmas mulheres emperigo; do mesmo modo, 0 seu pavor subsiste, irreprimfveJ, apesar

das objurgacoes de seu pai: "Calafrios constantes perpassam a mi-

nha alma; meu coracao, agora negro, palpita. Aquila que meu pai

viu do seu posto de vigia sobressaltou-rne: estou morta de pavor"

(784-786).

~

Esses tres exemplos, esses tres gritos de terror, escolhidos urn

pouco a esrno no texto, demonstram bern que em pecas desse gene-

o 0 cora nao e absolutamente urn elemento estranho a ar;ao. Ela,norma1mente, se concentra nele, E por ele, por intermedio dele, que

ela pode tocar os espectadores. Fica claro que ele tinha que inter-

vir, suplicar, esperar, e que, por firn, as suas emocoes acompa-

nhern, do infcio ao fim, as diversas etapas da ar;ao.

~ c oParec.eque, originalmente, 0 cora era formado por c inquenta elementos;

depois passou a contar com doze e, na epoca de Sofocles, quinze,

C "7 I I / , - C . ~ . I

/v ,. '. i. f

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Jacqueline de Romilly

E assirn bern evidente que, em tragedias desse tipo, 0 coro es-

teja, mais do que ninguern, interessado no desfecho dos aconteci-

mentos, sendo, no entanto, incapaz de influir nele por meio de

qualquer a~ao. Ele e, par definicao, impotente. Alias, na maioria

das vezes, 0 coro e formado por mulheres ou velhos, velhos demais

para irem it batalha, velhos demais para se defenderem: os ancioesde Os persas, e os de Agamemnon, constituem exemplos nftidos,

Os de Agamemnon lamentam-se desde 0 infcio da peca,

Para que 0 coro pudesse conciliar tao importante funcao com

essa incapacidade de agir, era necessaria que a a~ao da tragedia

fosse pouco desenvolvida.la partir do momento em que eIa adqui-

riu maior irnportancia, 0 coro deixou de desempenhar 0 papel cen-

tral que ate entdo detinha, !e i nas ultimas~~_?:~~E~g!li19~m_P _ ! _ C !_ _ " !_ e t eua c o _ !_ r e n tq _ d o _ ~ _ _na O r e s t i a --emgeral), a coro e apenas

_s~~~atizante; P O " C O tempo depois, comecarn a aparece-i c o r D S - q u evmam a tornar-se classicos, compostos par mulheres do pals, par

confidentes, por testemunhas. Sem diivida, permanece uma relacao

essencial entre 0 her6i e 0 grupo que dele depende, mas esse elo

tende tomar-se frouxo. Na obra de Euripides, ele se desfaz quase

completamente.

Basta urn exemplo para ilustrar essa evolucao, Em Os sete

contra Tebas, de Esquilo, 0 coro era composto par mulheres ater-

radas, temendo pela cidade e pelas pr6prias vidas, Ora, Euripides

retornou 0 rnesrno tema em sua peca intitulada As fenicias. Desta

vez 0 coro era composto par jovens fenfcias a caminho de Delfos:

elas se encontram em Tebas apenas como familiares em trans ito

cheias de simpatia, porem estrangeiras. As jovens conferem a tra-gedia uma nota exotica, que chegou a seduzir Euripides; todavia,

man tern com a a9ao somente urn laco indireto e tenue. Podemos

imaginar urn passo a mais - urn passo jamais dado pela tragedia

grega, mas alcancado por outros -, e teremos entao uma tragedia

sem coro, pois - isso e 6bvio - a duracao dos cantos do coro e par-cialmente ditada e,? fun'iao da atencao dada aquilo que ele expri-

me. Nas pe~as de Esquilo_,os c a n to s . do _ _ore Si!Q1onlOs, ampl_9§_e

co~plexQs. Como escreveu Maurice Croiset: "E_aLa_.squilo., ~ tra-

gec;haera 0 ~to de urn coro, intercalado aqui e ali por dialogos",

Certas tragedies comport am conjuntas liricos de mais de duzentos

: > ~ ~ _/ '

_ , . u I . -_ [ ' _

A tragedia grega 29

versos. Numa tragedia em que a a~ao se diversificava, ao contrario,

tais conjuntos, durante os quais nada acontecia, s6 podiam parecer

tediosos; assim, as partes cantadas passaram a ser cada vez mais

curtas. Arist6fanes nos traz urn testemunho dessa mudanca de pre-

ferencia, ao introduzir no seu As riis 0 personagem de Euripides

crit icando a obra de Esquilo, Ao falar dos personagens intennina-velmente mudos da tragedia de Esquilo, ele faz 0 seu Euripides

exclamar, it guisa de critica: "0 coro dernorava-se sucessivamente

em quatro series de cantos, sem interrupcao. E eles ficavam cala-

dos!" (As riis, 914-915). Esse lirismo tao extenso, portanto, nlio era

mais compreendido, nem apreciado.

Eis aqui mais urn exemplo, para ilustrar essa evolucao, Em_f\s

coeforas, de Esquilo, rnais de quatrocentos versos sao dedicados . 1 0cora, de urn total de 1.076, ou seja, bern mais de urn terce, Em

Electra, de S6foc1es, que trata do mesmo tema (a mudanca do tf-

tulo ja e par si s6 reveladora), a coro intervern com cerca de du-

zentos versos, do total de 1.510, ou seja, menos de urn sexto. Da

mesma forma, em Electra, de EUripides, ha urn pouco mais de du-

zentos, dos 1.360 que compoem a peca, tambem uma sexta parte.

Uma tal evolucao deveria, naturalmente, retletir-se sabre a

forma da tragedia, Nao h!L_Qt_1yidade_gue a importancia do coro

con feria a s tragedias de Esquilograndeue majestade;:ij~ quais,

todavia, nao tardaram a reduzir-se com selis~~reS imediatos.

Tal duracao e, antes de mais nada, formal. Os coros tragicos

podiam ser arrebatados pela angustia, tomar-se ofegantes e trans-

tornados, mas seus cantos e evolucoes obedeciam sempre a uma

estrutura de conjunto cuidadosamente elaborada e control ada.. , y o Sobre este aspecto, nenhuma traducao pode ser esclarecedora,

e poucas sao as representacoes que compreendem seu princfpio,

_.) A versificacao antiga baseia-se no comprimento das sflabas, e

as ordena segundo ritmos definidos. Ora, 0 principia essencial do

lirismo coral requer que a_~s_!rafeseja respondida por uma anties-

trofe, e que as figuras rftmicas se repitam de uma para outra, metra

par metro,sOaba p O r s l J i E a J Por outro lado, alern desses duetos,

organizarn-se, ocasionalmente, conjuntos mais complexos, sempre

rigorosamente disciplinados. Os cantos do coro, na obra de Esqui-

1 0, contam muitas vezes com duas, tres, mesmo quatro duplas de

estrofes. 0 canto de entrada do cora, em A g a m e m n o n , comport a

ate uma triade (estrofe, antiestrofe, epodo), ap6s versos recitados

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30 Jacqueline de Romilly A tragedla grega 31

em ritmo de marcha, sendo seguida de cinco pares de estrofes: 0

todo forma uma sequencia de 223 versos encadeados, recitados,

falados e cantados, de acordolirofn ritmos que se alteram em fun~ao

do pensame,nto e dos sentime~com estrib!lhos e repeti~oii1Na

metade, esta 0 pensamento mars importante, isolado do resto. Evi-

dente~e ..nt~~rante a representacao, as evolu~Oe~ e os gestos tor-nam vrsivers essas mudancas e essa ord~A paixao do cora era,

portanto, controlada, dominada, transformada em obra de arte. Para

n6s, que nao dispomos de mais que palavras - e~' da pranuncia-

d~rretamente! -, toda essa arte ficou perdida. epresentacoes.

'fi!odema,~ue nos oferecern passeios hannoniosos frios, ou entao

uma especie de transe arcaico e selvlm, sao, em ambos OSSasoB':

falsas e enganadoras, Enfim, mesmo upondoYjtI'eehis.saibam pre~

-;; servar ."ijusta _ e _ g ~ l i p E ; ? nos seria tr smitido pouco mais que uma

,J impressaoaruficial , pois as cadencias do texto ja ~ao nascem dire-

tamente do peso das palavras e das Silab~. -t-.; '-,~Essa grande ~anno~~'!_que realca, ra s ao privilegio da for-

ma, todos os temas sustentados pelo cor reveste-se de outra ma-

jestade, decorrente do sentido desses te as. Pois a esse coro, tao

apaixonadamente interessado no desenvolvimento da a~ao em cur-

so, e todavia incapaz de participar dela, so resta permanecer a dis-

tancia, Nos momentos em que ele nao e submerso pelas ondas de

terror, nos 0 vemos a interrogar-se, procurando as causas, dirigin-

do-se aos deuses. Ele se esforca por compreender, e por esse moti-

vo relembra frequentemente 0 passado, buscando extrair-lhe a

licao. 0 cora oferece, portanto, novas perspectivas ao espfrito dos

espectadores, tao amplas no seu conteudo quanta lhes permitia ad~ra~ao da :orma. ~~sim, ~ medit~~ao,do cor?, confere Ii a~ao pro-pnamente dita uma dimensao -a-rrtttH; '1 " ':" ~ . :- . - ._ _ ; : " " " _ _ -

A entrada do coro do Agamemnon nao constitui apenas urn

conjunto lfrico de extensao excepcional. Este canto encerra tam-

bern uma reflexao mais profunda do' que qualquer outra; sua pro-

pria extensao mostra-se 0 caminho para esse aprofundamento. Com

efeito, 0 cora comeca por dizer por que a situacao deve causar in-

quietacao. Depois, quando comeca a cantar, ele evoca, nurn estado

quase contemplativo, os pressagios funestos que acompanharam a

partida da frota para Troia. A evocacao e solene e permeada de

expressoes religiosas e, na metade do canto, assume a forma de urn

ato de fe na justica de Zeus, E 0 pr6prio nome do rei dos deuses

que irrompe no infcio da estrofe: "Zeus ... qualquer que seja 0 seu

verdadeiro nome, se este for do seu agrado, e por este mesmo queeu chamo". E a lei de Zeus e afirmada em toda a sua forca: essa lei,

proposta aos hornens, ordena "sofrer para compreender" (verso177). A partir desse momento, apos este par de estrofes de tao ele-

vada inspiracao, passa-se Ii lernbranca do crime cornetido par

Agamemnon, quando sacrificou a propria filha. 0 coro, entao, nao

se contenta em deixar entrever urn desastre pr6ximo: apresenta

tambem uma justificativa no tempo e uma tentativa de explicacao

teoI6gica. Gracas a sua extensao, este canto toma-se uma filosofia,, , 1 0 q~e ~~Etida aos acontecimentos qu~ se.seguira£.:)/ '

1 , 0 ' ' / - A presenca dessa ~losofia contribui expressivamente para a

)randeza do teatro de Esquilo, mas ela logo desaparece, au pelo

/ menos perde a sua importancia, guando passamosparaSofocles e

\_£u ripides S\ majestade do pensamento conciliava-se comessa:--

forma urn tanto im6vel, mas solene e inspirada, que era 0 lirismo

coral. 0 declinio de uma corresponde ao deelinio da outra.

I Certos coros de S6focles figuram entre os mais belos do teatro '

I grego, e adquirem, na obra de Euripides, uma graca pungente. 01 .

•e lo com a a~ao, porem, e cada vez mais tenue, e esta nao eneontramais no lirismo aquela extensao que iluminava as sentidos.

Em contrapartida. e evidente que a a~ao tenha se enriquecido

com aquila que perdia a lirismo. E se passannos dos coros para os

personagens, assistiremos, de modo inverso, a urn enriquecimento

progressivo. Do comeco ao fim, a tragedia sempre evoluiu numadirecao, desenvolvendo cada vez mais a parte reservada ao palco.

Os personagens

- - & : > - Unicialmente, antes de Esquilo, havia, aparentemente, urn s6

narrador em frente ao coro (na verdade, 0 pr6prio autor): quando

esse narrador se integrou Ii ficcao poetica, ele se tornou urn perso-

nagem. Mas urn s6 personagem nao era suficiente para constituir

uma a~ao, Eram necessaries pelo menos dois. 0 merito dessa ino-

va~ao, aparentemente, deve-se a Esquilo_)\ristoteles e explfcito

sabre esse ponto:

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32 Jacqueline de Romilly A tragedia grega 33

rESQUilOfoi 0 primeiro a aumentar de urn para dois 0 rnimero de

atores, a diminuir a importancia do coro e a transferir 0 papel

principal para 0 dialogo; S6foc1es aumentou 0 mirnero de atores

para tres, e mandou pintar 0 cenario tPoetica, 1449 a).

Essa breve frase resume a eclosao e a expansao de urn genero,

E possivel que ela deJimite demais as etapas. Na verdade, se S6fo-

des foi 0 primeiro a aumentar para tres 0mimero de atores, certas

tragedias de Esquilo nao podem absolutarnente ser explicadas sem

recorrer a tres atores, Poder-se-ia imaginar que ele adotou de ime-

diato a inovacao do seu jovem rival; e pode-se pensar tambern que,

a despeito de Aristoteles, ele foi 0 primeiro a fazer essa experien-

cia. Parece-nos, em todo caso, que foi justamente a sua obra, que

para n6s resume as formas mais arcaicas da tragedia, aquela que

refletiu 0 mais vigoroso esforco de Iiberar e renovar essas formas.

Mas os novos meios requerem a lg ur n h ab ito ; s o aos poucos e que

sao descobertas as suas possibilidades. Tanto isso e verdade que apresenca de urn maior ruimero de atores s6 se popularizou na epoca

dos seus sucessores,

A diferenca fica clara se compararmos a estrutura das suas tra-

gedias com ados seus sucessores. A tragedia de Esquilo apresenta

uma forma simples, algo rfgida, e por mementos quase hieratica.

Durante epis6dios inteiros, n uo acontece quase nada. Ademais ,

(cada peca comporta, em g er al , a pe n as um evento , que ocupa quase

dois tercos da tragedia: toda a parte inicial consiste em espera-Io, e

toda a p.1"rtefinal em lament<i-lo7E claro que existe arte em manter

renovado0

interesse, deixando que esse famoso evento se mostreaos poucos, mas nao h ri p ro pri am en te su rp re sa, n e rn c om ple xi dad e,

Em Os sete contra Tebas, sabe-se, desde 0 comeco, que Tebas

e atacada par um das filhos de Edipo e defendida pelo outro; sabe-

se igualmente que uma maldiciio paterna condena os dois homens a

morrer golpeando-se urn ao outro. Pois bern, a peca nao contern

nada alem disso. A te a verso 650, 0 espectador esta preso a angus-tia da cidade, eve aproxirnar-se 0momenta em que os dais irmaos

iran se confrontar. Uma cena longa - de trezentos versos - e ocu-pada inteiramente pela descricao dos brasoes dos sete chefes siti-

antes e dos sete chefes defensores. Ou melhor, seis, em vez de sete,

pois quanto mais avanca a li sta, m ai s c laram e nte se percebe que,

inexoravelmente, os dois ultimos serao os dois irmaos. Por fim, a

sorte esta lancadal Eteocles, 0 defensor, abandona a cena para en-

frentar Polinice, 0 sitiante, A partir do verso 800, e anunciada a

morte dos dois, e nada resta a nao ser prantea-los - durante cerca

de duzentos versos.

\0 teatro, tal co~o 0 conhecemos, na~ supo~aria, ne~huma~a de conte6.do tao hnear, nem uma cena tao estatica. E evidente

que a teatro que nos e familiar prefere urn desenvolvimento menos

previsivel: enquanto Esquilo trabalhava com a previsao e 0 efeito

de uma certeza crescente, nos fomos habituados a que a interesse

sej~estimulado pela jncerteza e renovado pe1a s lI t: t : tesa . Tais ha-

blLoSforam.introduddos par obrados sucessores de Esquilo,

Essa evolucao ja havia sido iniciada nas suas ultimas obras. Na

verdade, tal evolucao, no teatro grego, e tao continua e tao regular

que provocou grande espanto quando, ha alguns anos, se descobriu

urn papiro que revelou nao ser 0 drama As suplicantes a peca mais

antiga de Esquilo, como se acreditava, mas que fora, sim, escrito

pouco antes da Orestia.~Esta era u ma pe ca em que 0 cor~ p~ecia

ser compos to por cinquenta elementos (a lenda fala das cinquenta

filhas de Danae, e a peca menciona seus cinqilenta pretendentes.

Acima de tudo, esse cora de se rn pe nhava urn papel excepcional-

mente importante na peca (pais trata-se do destino dessas jovens,

suas emocoes, sentimentos. e de fato elas recitam mais da metade

dos versos da peca). Por fim, a a~ao nao podia ser mais reduzida (a

peca inteira trata de urn pedido de protecao, contra uma ameaca,

pedido que e apresentado, aceito e confirmado). Pelo visto, era

quase certo tratar-se de urn exemplo bern nitido da tragedia no seucomeco ; e muitos ate, mesmo em face de urn documento tao antigo,

sentiram enorme dificuldade em adrnitir urna data mais recente."

- E preciso ainda acrescentar que essa ~xtrema simplicidade,

que caracteriza a estrutura das tragedias de Esquilo, era atenuada,

em certa medida, peia maneira como eram representadas. Elas nao

se apresentavam isoladas, mas formavam conjuntos de tres pecas+

II

E possfvel tambern que Esquilo tenha retomado urn projeto antigo, masa data indicada pelo papiro sugere, ao menos, que esse estilo, urn tanto

arcaico, se conservou entre as preferencias do autor.

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34 Jacqueline de RomillyA tragedia grega 35

12 A A ediessas tres trag", las juntava-se urn ~rama satfrico, apresentado pelo

mesmo poeta: mas mesmo na obra de Esquilo esse drama raramente ti-

nha alguma relacao com 0 tema das tragedias,13 A '1 .

tn ogra era composta das seguintes pecas: Laio, Edipo e Os sere

contra Tebas, as quais sejuntava, como drama satfrico, A esfinge.

como a ?~rie sobr-e--As-troianas, 4- aqual pertencia a tragedia de Eu-

rlplde5. Mas elas nao sao mais ligadas por uma relacao tao estreita

cornu nas tragedias de Esquilo; muitas vezes, ate, essa relacao nao

existe.jpor outro lado, tanto S6focles como Euripides empenharam-

se em elaborar, em cada tragedia, a parte reservada a ar;aoJ

No lugar de uma tragedia resultante de algum golpe cruel dosdeuses, que levava urn cora angustiado a interrogar-se, em grande

temor, 0 interesse passou a centrar-se sabre 0 gue eram e fa qae fa-

ziam os bornens. A tragedia c(im~(;li'·a mostra-Ios em luta com os

, ~_~l!!_ecimel,llOSue recusaxam ou impunham. A isso correspon-

deu, necessariamente, uma renovacao dos meios literarios.

A peca de Esquilo onde Orestes retorna e mata a mae chama-

se As coeforas, porque 0 cora entrava trazendo libacoes funerarias,

au choai. Ambas as pecas - uma de S6foc1es, a outra de Euripides

-. que tratam do mesmo assunto, chamam-se Electra. Com efeito, a

i rma de Orestes tomou-se aqui 0 centra da ar;ao. Ela espera 0 ir-

mao, incita-o ao crime, ajuda-o, Nosso interesse, portanto, residenaquilo que ela sente e faz; comovemo-nos com sua desgraca e

com sua finneza. Electra, na sua dor e na sua determinacao, tor-

nou-se na verdade a herofna da tragedia12.ra, saQ her6~s ~~ ! l 1 .o .la

q~e emp-~s!a!lJ_os.seus.nomes a todas as .outrafi.~o~servadas

~~_~_6r~les, menos u.ma. Temos, assim,.Aj~, ~nt{gon'jo E~ipo rei,

Edipo em Colona, Filoctetes. Poder-se-ia dlzer:~alena de fi-

guras .~!l.&mI1H~9ll:~_p~loof~mentoe pela coragem .=engrande~i-

daspela t(agectia\ A esses nomes corre~~$ .dos .herois _ o e

~~~~~b:~~kd~~~;~~~~~~~~:-~67personagens sao, a partir de agora, O-Gef1troa~)Tal evolucao decorre, naturalmente, do d-esenvolVili lento da

altao. Pois se nos comovemos com 0 destino dos personagens, e

evidente que essa emocao s6 tende a aumentar com os diversos

golpes aos quais eles sao submetidos. E se nos interessamos por

suas virtudes ou paixoes, e igualmente evidente que esse interesse

s6 podera avivar-se se assistinnos a s suas reacoes diante das diver-sas peripecias que deverao enfrentar. A Electra de S6focles, dessa

trilogias.l" Com excecao de Os persas, todas as tragedias conheci-

das de Esquilo pertenciam a trilogias. As suplicantes e Prometeu

acorrentado constitufam, cada uma, a primeira peca de uma trilo-

gia; Os sete contra Tebas, ao contrario, e uma conclusao. Aga-

memnon, As coeforas e As eumenides, por sua vez, cornpoem uma

trilogia completa - a Orestia. Analisando a Orestia, e facil perce-ber quanto ganhava cada tragedia com a conexao com as outras

duas, encontrando urn prolong amento natural, fazendo parte, desde

o infcio, de urn conjunto hannonioso. Agamemnon era morto por

Clitemnestra; depois Clitemnestra por seu filho: 0 assassinato ocor-

rido na segunda peca era explicado pelo da primeira, e vinha em

resposta a ele, Por outro Iado, esse encadeamento levantava urn

problema moral, pois se cada assassinato chamava outro, qual seria

o final? E se cada assassinato era justificado, como se poderia dis-

tinguir entre 0 crime e seu castigo? Esse problema, suscitado pelas

duas primeiras pecas, resolvia-se na terceira. Assim, pode-se ima-

ginar 0 quanta As suplicantes cresceriam aos nosso olhos, se sou-

bessemos como a trilogia das Danaides resolveria 0 problema

levantado por essas virgens que se recusavam a casar; e podemos

imaginar tambem quanto sentido teriam os diversos detalhes de Os

sete contra Tebas, se conhecessernos os eventos, julgamentos, co-

mentarios e problemas aos quais a pelta trazia conclusao.P A trilo-

gia, na obra de Esquilo , e ur n verdadeiro conjunto coeso - quase

uma ar;ao em tres partes.

" No entanto, se 0 prop6sito fosse conferir maior movimento e

{

' var~edade a .a.era., esta solur;ao nao seria suficiente; ela permitia

mars urn prolongamento da ar;ao do que uma aceleracao do seuritmo, P_,?!sso, _SMocles_e-Eudpides--partirampara outro esquema.

Ambos, praticarn_~_n~~_.__~bancloRam- trilogia... Depois de Esquilo,

porvezes, encontram-se ainda tres pe£_astratando do mesmo tema----~--.------ -'

14 A '1 . .tn ogia era cornposta das segumtes pe~as: Alexandre. Palamedes e

As troianas, a s quais se acrescentava, como drama satfrico, Slsijo.

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36 J ac qu el in e d e R o m il1 y A tragedia grega 37

(fonna, tern a chance tanto de nos comover quanta de revelar sua

I verdadeira natureza, gracas it ideia de S6focles de faze-la vf t ima da

\

mentira inventada por seu irmao, Ela esperava por Orestes, quando

fica sabendo de sua morte. Desesperada, decide agir sozinha. Des-

cobre entao que ele nao apenas esta vivo, mas tambern presente,

diante dos seus olhos. Essa provacao e esses contrastes acrescen-tam destaque ao personagem.

Em outros casos, pode ser que 0 pr6prio her6i, por iniciativa

propria, se encarregue de surpreender os outros, revelando de rna-

neira imprevista aquilo de que era capaz. Assim Ajax, que, como

Electra, foi inicia1mente posto a prova por uma brnsca calamidade,devera enfrentar esse desafio. Ele poderia viver e aceitar. Fara

isso? 9s seus prop6sitos parecem sugerir que sirn. Mas Ajax nao

seria Ajax se aceitasse; e eis que, no momento em que todos acre-

ditam que ele esta salvo, Ajax se suicida. A brusca reviravolta da

a~ao e aqui obra sua, e e por meio de1aque se afirma tal como e .

~

Mais que isso, a nova irnportancia conferida aos personagens,

o interior da pr6pria a~ao, traduz-se pelo enriquecimento da anali-

e psieo16gica. ~m_$QfQf_I~s._e_Ewipides. ,assist imos a.personagens

que comecam a se exp1icar,----a--.se-justificar,e mesmomonologar

sabre aquilo que pen_sam-e..sentemJA Electra de S6foc:Jes tem.uma

irma, com a q u ~ i discute; essa distussao pennite ao autor colocar

em evidericia 0 contraste profundo e"rltreas personalidades de cada

urna delas. Da mesrna forma, Ajax discute com Tecmessa, e ambos

expoem detalhadamente a maneira como pensam que se deva agir.

f9s Pt;.rsona~ensja,nao ~econtentam mais em agir: e~es.se explicam]

tE prectso, alem dlsso!_~crescentar que a mu!tlphca~ao Q _ Q nu-

~~!0_99S__p~rSo?a.gens_permfliaJ.D~~t1Ca,Confrontar __)~rotagQ~ _

rnstas eOITl_m~~_ surpresas e mats contr~_~~:;- 0 que, por fim,

sempre lhes confere urna maneira de ser mais rebuscada e mais

matizada. De sobressaltos em sobressaltos, de cenas em cenas, eles

se definem, se enriquecem, se afirmam. A tragedia ernpenha-se

cada vez mais em faze-los viver.

~ _ < ? teatro de S6focles, esses contrastes e desafios servern, aci-

___ de tudo,- para: destacar a'i diferencas entre urn ideal de 'vida e

Q¥:!~?:_~1f-par~~ar-a~a de alma dos-personagens~a medida

em que est~uprocediI1lentQvai-SendiS moldado. com atragedia tor-

nan.Jlo=-se-cada-vez,mais-realistac.chega-se, com Euripides, a urn

t e a t r O onde cada um.defende .seus seatimentos.nu suas.Ideias. De

f~s utilizou amplamente urna forma literaria que tomou

emprestada da vida de sua epoca - 0 debate organizado.

Nascida do habito do debate judiciario, aperfeicoada pela rete-

rica da epoca , a arte do ernbate orat6rio florescia plenarnente. Era 0

que se chamava urn agon.? Ora, quase toda a tragedia de Euripides

contem pelo menos urna cena de agon. 0 agon e urn confronto or-

.. ganizado, no qual se contrapoem dois longos diseursos, geralmente

seguidos de urn intercambio de versos, tomando os contrastes rnais

densos, rnais tensos, mais crepitantes. No agon, cada urn defendia

o seu ponto de vista com toda a forca ret6rica possfvel, numa gran-

de exposicao de argumentos, que naturalmente contribufa para es -

c1arecer seu pensamento, ou sua paixao,

Dois exernplos podem dar urna ideia da diferenca do enfoque

que esses habitos de analise e discussao podem conferir aos perso-

nagens.

Esquilo havia dotado sua Clitemnestra de uma grandeza ines-

quecfvel, Mas parte dessa grandeza residia justamente no silencio

que Esquilo deixava pairar sobre seus motivos, Cliternnestra, urna

vez curnprida a sua vinganca, vangloria-se do seu ato, mas sem

jamais descrever as seus sentirnentos: ela era A Vinganca. Nao ha

como compara-la com a Cliternnestra de Euripides que, em E l e c -

Ira, s6 aparece rnuitos anos depois do assassinato, velha e desiludi-

da. Deve-se antescornpara-la as herofnas de Euripides, urna das

qruUs - Medeia ':"'__.__~xemplo da Cliternnestra de Esquilo, pratiea

urn ~~sinate mOHstruosO:ilo .decOITef'-6e:uma tragedia, Ora, Me-d e l a . . ao contrario de Clitemnestra, fala, grita, .insulta e S~ lamenta.

Desde-o infcio da peca, ela se J a f f i u r l a - sem cessar, nos deixandoa

par de tudo 0 que a esta ferindo. Por duas vezes ela se opoe a Ja-

sao; a primeira traz urn confronto sincero e cheio de irritacao, com

todos os seus raneores asperamente formulados: Euripides faz dis!

so urna cena de agon. Naturalmente, isso e tudo. Quando_Me6€fase decide pelo assassinato, ela precisa explicar-se mais urna vez,

Ela 0 faz num rnon61ogo de quase quarenta versos. Depois, de

IS Cf., entre outros, J. Duchemin, L'ugon dans la tragedie grecque, Paris,1945.

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38 Jacqueline de Romil1y A tragedia grega 39

novo, no momento de passar a a~ao, Euripides brinda-a com outro

mon6logo, com mais de sessenta versos. Nesses dois mon6logos,

vemo-la hesitante, cedendo a todo momento a solicitacoes contra-

dit6rias. A vinganca, 0 orgulho, 0 amor maternal, tudo af tern 0 seu

lugar. Seria precise ainda rnencionar que, ap6s 0 assassinato, bern

no final da peca, urn ultimo enfrentamento com Jasao da 0 toquederradeiro a imagem do seu odio, Assim, nessa tragedia, embora

seja uma das mais simples do autor, os estados de alma da heroina

revelam-se, abertamente, em todos os passos da a~ao._A grandeza ..

de CI~~emn,?stra_estllvano fato de nao deixar transparecer nada; a

grarideza de l \ ! ~ 9 ~ C l .reside no fato.de.elase.revelar _pOrinieiro. ---

Da mesma forma, 0 Eteocles de Esquilo, em Os sere contra

Tebas, partia subitamente para combater 0 seu irmao, impelido por

urna maldicao, ernbora nao fossem claros os sentimentos que 0 fa-

ziam obedecer a tal impulso. Euripides, ao contrario, retomando

esse tema, deleitou-se em imaginar que houvera urn encontro entre

os dois irmaos - urn encontro preparado e arbitrado por Jocasta,

mae de ambos. Eles se queixam, e expoem as suas razoes. Desco-

brimos urn Eteocles inebriado pelo poder, encamando a ambicao.

Esse Eteocles extrai do confronto uma realidade psico16gica nova,

e ao mesmo tempo reveste-se de urn valor quase simb6lico, ao tor-

nar-se porta-voz de urna moral e de uma atitude polftica; postas as

clara.'>,s ua s mo t iv ac o e s conferem-lhe 0 seu sentido pleno.

Confrontos analogos opoem, em Euripides, grande mimero de

ideias, doutrinas e paixoes. Os personagens multiplicam-se-es.pe-

ripecias poem-nos todos a pro-va.-Acompanliairio;;-as suas aventu-

ras c 0 1 1 ' l U " U l a n a m o s com pessoas reais, cujo destino nos intere~sa.-A _Entletall~. -serta uma perspectiva erronea ver na mai~-r-impor-

tii.nCla_c;on~~dl~aaosperscnagens urn interesse antes de tudo psi-

eo16~i~o,.ou imaginar que 0 iinico objetivo - a i l a~ao-seja ressaltar ossentirnentos deuns 'oude outros. 0 teatro grego jarnais foi urn tea-

tro predominantemente psicol6gico, e a psicologia somente obteve

algum destaque na medida em que urna a~ao mais elaborada lhe

abriu, a forca, urn espaco maior.

A a~iio

r Nas tragedies de S6focles ja existe urna arte bern definida, que

tsonsiste em cultivar 0 interesse e desperta-lo sempre de novo. 0

caso de Dejanira, em As traquinias, pode prova-lo. Ela esta a espe-ra do marido. E eis que chegam boas noticias: 0 seu marido che-

gou, esta vivo e prestes a encontrar-se com ela; todos estao felizes.

As notfcias, porem, eram incompletas. Urn personagem mais bern

informado aeaba por revelar-lhe que seu marido esta realmente de

volta e vivo, mas acompanhado de outra mulher, pela qual esta

agora apaixonado. A noticia e evidentemente dolorosa, mas Deja-

nira recupera a esperanca acreditando poder trazer 0 marido de

volta para S 1 . gracas a urna pocao magica, Restabelece-se, portanto,

a esperanca, Mas a droga destroi 0 pedaco de la com 0 qual foi

aplieada, e esta de volta a angustia. E nao sem razao, porque em

seguida Dejanira fica sabendo, por seu gr6prio filho, que ela na

verdade provocou a morte do marido. ~sses efeitos habilmenteconduzidos, essas noticias fragrnentadas, essas altemancias de ale-

gria e desespero encontram-se, em graus diversos, em quase todas

as pecas de S6fodes. Edipo precisa de tres revelacoes sucessivas

para descobrir quem ele e e 0 que faz: a primeira enche-o de ale-

gria, a segunda inquieta-o e a terceira traz-lhe a certeza do desastre.7

Mesmo quando se trata de urn personagem secundario, cotriCi'

Egisto, em Electra, Sofocles deleita-se ao imaginar que ele, venda

urn cadaver, acredita que Orestes esta morto: ele exulta, e ere que

tudo esta salvo; mas logo descobre que se tratava de Clitemnestra,

e sabe entao que esta perdido.

[:

Essas reviravoltas constituem aquilo que Arist6teles chamava

as "peripecias", Quando, na Poetica, ele quer dar-lhes urna defini-

crao,0 melhor exemplo que Ihe ocorre e 0 de Edipo rei, tendo es-

crito (em 1452 a):

( A _ p~ r ip _e _c _i a 0 reverter da a~ao ao seu sentido c on tr ar io , c on -

)

1 fO~!llea que foi _4_ito; t: iss_o,uma vez mais, segundo a verossi-

m_~ __o .u anecessidade: asslrn, em Edipo, 0 mensageiro

chega, na certeza de que vai alegrar Edipo e tranquiliza-lo a

. respeito de sua mae; mas a revelacao de sua verdadeira identi-

\ dade produz em Edipo 0 efeito contrario.

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40 jacquellne de Romilly A tragedia grega 41

Ora. tais artiffcios, capazes de despertar 0 interesse. tomar-se-

iam, na obra de Euripides, a regra do gene r o , Ele inventou 0 que

poderiamos chamar de tram~tea!!"_9_ esta cheio de astucias ,

surpresas, .confusoes e.recoahecimentos. Ele mul i ip l icou os .e p i S O - -

dios e os personagens, vi sando tomar essa tram a mais variada e

emoc ionante.Basta urn exemplo para mostrar ate que ponto se desenvolveu,

com Euripides, 0 usa de van os personagens, e a variedade que ele

confere ao desenrolar da a~ao: As fenicias, tragedia que goza da

vantagem de tratar do mesmo tema de Os sete contra Tebas, de

Esquilo.

A ~a de Esqui lo e bastante simples. A M m de Eteocles e do

coro, s6 ha a intervencao de urn ou mais rnensageiros, e a a~ao

consiste unicamente em aguardar a decisao de Eteocles, para de-

pois lamentar 0 seu defeito. Em As fenicias, ao contrario toda a

famflia de E,ctipo esta envol v ida no drama, e sofre seus golpes.

Aparece Polinice, para fazer oposicao ao seu i rmao Eteocles, nurn

conflito ruidoso; esta presente Jocasta, mae dos dois, assistindo a

esse conflito que a dilacera, h3 . tambern Antfgona e 0 pedagogo,

que fazern urna comovente apresentacao da abertura. Antigona re-

aparece no fim, logo seguida pelo pr6prio Edipo, que, contrariando

toda a tradicao, parece ter permanecido no palacio s6 para unir-se

ao luto de sua filha. Alern disso tudo, no meio da peca, Euripides

apresenta Creonte, irmao de Jocasta, que discute com Tiresias os

meios de salvar a cidade, bern como Meneceu, filho de Creonte,

que morrera para salva-la, Sejuntarmos a essa lista as dois mensa-

geiros do final, teremos nada menos que onze personagens. Muitosdestes tern basicamente a funcao de valorizar e variar a ressonancia

humana do drama, mas e claro que, no conjunto, eles tambem impoem

It ~ ao urn movimento que precipita 0ritmo e renova 0 interesse.

A entrada de Polinice nessa cidade que se tomou inimiga tinha

o prop6sito de instigar a curiosidade. 0 embate entre os dois ir-

maos podia levar a diversas direcoes. A chegada de Tiresias pode-

ria dar origem a novas esperancas, Porern, Tiresias revelou urn

desastre imprevisto para Creonte: para salvar Tebas, ele deveria

matar seu filho Meneceu. Ele faria isso? Ele nao quer, e recusa.

Mas eis que esse filho, de maneira imprevista, se oferece esponta-

peamente It morte. 0 fato suscita muitas emocoes, surpresas e ori-

enta96es diversas. Nesse meio tempo, chega 0mensageiro. Ira ele,

finalmente, como em Esquilo, anunciar a morte dos dois irmaos?

Absolutamente! E le traz not f c ia s da batalha em geral: tudo esta

indo bern, ha esperancas, Quanto aos dois i rmaos , bern, eles estao

se preparando para enfrentar-se! 0 corte in t roduzido no relato fun-ciona como uma especie de "a seguir", no estilo dos nossos seria-

dos. De fato, Jocasta e Antigona precipitam-se imediatamente, na

esperanca de ainda poder deter 0 combate. S6 no epis6dio seguinte

sabe-se que esta esperanca foi frustrada. E facil acreditar que uma

tragedia tao rica em personagens e tao fert il em peripecias nao ti-

vesse necessidade de duas outras para completa-la, nem poderia

inserir-se numa triologia: ela constitui, em si, urn mundo fechado,

onde os acontecimentos se apresentam com toda a gama de suas

implicacoes human as. 16

E, de repente, que intensificacao do patetico! A Iuta entre as

dois i rmaos e uma cena digna de analise: a presenca de Jocasta, suamae, e urn elemento de dor e crueldade: "Desgracada de mim! 0

que fareis agora, meus filhos?" 0 pedido feito por Tiresias a Cre-

onte (sempre em As fenicias) poderia Ievantar urn problema a ser

resolvido entre urn chefe e urn advinho: 0 sacriffcio voluntario do

jovem Meneceu, ainda quase menino, lorna ° episodic comovente.As noticias do combate entre os dais irmaos poderiam ser trazidas

ao coro, como na obra de Esquilo; mas e Jocasta que as recebe, e

parte com Antigona - uma ancia e uma mocinha - para tentar deter

as seus filh<,?s.Do mesmo modo, para prantear os mortos, temos

Antfgona e Edipo - uma jovem e urn velho cego - em vez do coro.Ambos estao feridos nos seus sentimentos rnais intimas. 0 even to

refrange-se em sofrimentos pessoais e impotentes, com 0 proposito

de suscitar a piedade.

Esse aspecto patetico, deliberadamente posto em pratica por

meio de uma a(faOmais elaborada, e uma das tendencias essenciais

16 Par constitufrern urn mundo fechado em si mesmas, e considerando

tambern que Euripides imaginava quase sempre situacoes estranhas alenda, mas que enriqueciam a trama, suas pecas cornecam em geral

com longas explicacoes, dadas num monologo (cf. L. Meridier, 0

prologo na tragedia de Euripides, 1911).

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42 Jacqueline de Romilly A tragedla grega

da tragedia, tal como foi concebida por Euripides. Surgiram varies

instrumentos, todos utilizados para esse fim.

Em primeiro lugar, multiplicaram-se os personagens dignos de

compaixao, Ajax , na peca de S6focles, despede-se de seu filho:

trata-se de uma evocacao direta do canto V I da Iliada, e esta deve-

ria ser uma cena muito impressionante no teatro. Ja Eurfpides, porsua vez, apresentou jovens em Alceste, em Medeia, em a s herdcll-

das, na Andromaca, no Heracles, em As suplicantes, em As troia-

nas : essas criancas eram abandonadas, ameacadas au mortas, seja

em presenca de uma mae impotente para salva-las, seja por obra da

pr6pria mae. Na maioria das vezes, Euripides as fazia falar, ao me-

nos para breves replicas de aflicao ou de sdplica. Por outro lado,

em ruimero quase igual de pecas, ele introduziu velhos alquebra-

dos, tanto peia idade como pelas desgracas, tambern vitimas de

insultos e violencias, contra os quais permaneciam inertes. Mas,

sobretudo, mais do que os personagens pateticos, a tragedia desco-

briu a arte de apresentar situacoes pateticas, Foram vistos infelizes

refugiados ao pe de urn altar, prestes a serem arrancados dati para

serem conduzidos a rnorte, e espadas desembainhadas para execu-

-;oes iminentes. De fonna mais elaborada, viam-se cenas de luta

acontecendo na presenca da vitima, cujo destino estava em jogo:

Andrornaca, com seu filho, encontrava-se ainda sob pesadas amar-

ras, enquanto Peleu e Menelau enfrentavam-se por sua causa. Ifi-

genia escutava sua mae suplicar a Agamemnon por ela. Viarn-se

inclusive personagens utilizando-se de urn Dutro, para fazer pressao

sobre urn terceiro. Fazendo uma chantagern, Menelau consegue a

Iibertacao de Andr6maca, ameacando seu filho de morte: e numbelo rasgo de justica literaria, Orestes, por sua vez, na peca que

leva a seu nome, pressiona Menelau, ameacando sua filha, Her-

mione, que detem a sua merce, sob os olhos do pr6prio Menelau.r - E, finalmente, essas diversas situacoes foram levadas a urn nf-

I v e l aind~ mais pa{(!tic~,com a utilizacao de dois artiffcios que seri-

i am considerados, mars tarde. elementos constitutivos da tragedia

IIgrega.--------_' .._

o primeiro consiste em levar urna situacao ameaeadora ate 0

, seu limite extreme, ate 0momento em que ° desastre e ineVlhI,vel;~0 segundo consiste em tomar a situacao particularmente horrfvel,

o atribuir, a princfpio, urn erro a pessoa. No prirneiro caso, a situ~-"a-;aoleva ao que se denomina golpe teatral; no segund,o, chega-se a

m reconhecimento, 0 qual tambern pode - mas nemsempre - le-

ar a urn golpe teatral.

As cenas de reconhecimento nao eram novidade. E Euripides

nao foi, de forma alguma, 0 primeiro a utiliza-las no teatro, Defato, aqui tambem a epopeia ja havia apontado 0 caminho, pois era

famoso, na Odisseia, 0momenta em que Ulisses e reeonhecido por

sua ama-de-Ieite, a qual, ao banha-lo, se lembra de uma pinta que

ete tinha, identificando-o deste modo. A tragedia encontra af farto

material pateticofQuando Arist6teles, em sua Poetica, fala da ac;:ao

complexa em opbSi~ao a ar;ao simples, define a primeira pelo fato

de que a mudanca no destino ocorre "com 0 reconhecimento, com

a peripecia, ou com ambos" (1452 a). Arist6teles define, inclusive,

as regras para urn born reconhecimento: e preciso que a verossi-

milhanca e 0natural se aliern ao patetico, 0 melbor exemplo, a seu

ver, e 0 Edipo rei de S6focles, onde 0 reconhecimento constitufa,

na realidade, 0 pr6prio rnicleo da a~ao. entrecortando-a com revi-

ravoltas diversajJE evidente que Euripides, com sua sutileza e seu

habito de verossimilhancas ret6ricas, tinha tudo para tornar-se urn

dos mestres do genero, Em todo caso, ele debocha sem pudor do

reconhecimento concebido por Esquilo entre Electra e Orestes -

reconhecimento baseado na descoberta de uma mecha de cabelos e

da marca de uma pegada, confirmado depois pelo achado de urn

velho pano bordado. Mas uma mecha de cabelo e uma pegada seri-

am os mesmos, entre urn irmao e uma irma? Urn tecido estaria ain-

da em uso, depois de tantos anos? Euripides deveria poder faze-tomelhor, E Arist6teles refere-se, de modo favoravel, ao reconheci-

mento concebido por ele, entre Ifigenia e Orestes, em Ifigenia em

Tdurida.

o fato e que cenas desse genera sao freqi.ientes no teatro de

Euripides. ion e uma peca repleta de falsos reconheeimentos, que

culrninam com 0 verdadeiro. E em Helena, Euripides imaginou,

inclusive, circunstancias que exigi am urn reconhecimento, impre-

vista e prodigioso, entre Helena e Menelau, rnarido e mulher. Mas

parece que ele preferia aqueles reconhecimentos que se cornbina-

vam com os golpes teatrais, porque entao 0 interesse na trama e 0

efeito patetico se elevavam ao mais alto grau.

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Ja cq ue lin e d e R om illyA tragedia grega 45

limitados que evocavam mais a tradicao dos misterios religiosos

que a do teatro modemo, constatamos, urn tanto incomodados, que

Euripides, sobretudo na segunda metade da sua vida literaria, se

aproxima, por momentos, da cornedia nova e de Menandro, a s ve-zes ate do drama burgues,

No entanto, a evolucao e c on tf nu a - e breve. 0 impulso inter-no que renova a tragedia grega, multiplicando seus meios e deslo-

cando seus centros de interesse, move-se, no espaco de oitenta

anos, do arcafsmo mais austero a uma modemidade, de certo

modo, excessivamente rapida,

E posslvel tambem que essa modemidade, em certo sentido,

marque 0 fim da tragedia grega, pais a evolucao foi de tal ordem

que urn dos dois elementos da sua cornposicao perdeu totalmente

sua funcdo essencial , 0 coro, em certas tragedias de Euripides, janao desempenha mais do que urn papeJ secundario; e a graca ine-

gavel do lirismo acaba tomando-se urn atrativo dispensavel=- que 0

eatro moderno, de fato, dispensa,Podemos ate nos perguntar se nao foi a percepcao de algo que

se enfraquecia que inspirou uma das duas iilt imas tragedias de Eu-

ripides (a ultima ou peruiltima), uma das mais fieis ao esquema

original da tragedia grega. Trata-se da peca intitulada As bacantes.

Cornposta na corte do rei da Macedonia, PO"CO antes da morte do

poeta, esta e uma tragedia na qua) 0 coro volta a desempenhar urn

papel importante, novamente associado a ayao. E tambern uma tra-

gedia de inspiracao religiosa, que caminha para uma catastrofe tini-

ca. Enfim, e uma tragedia hostil ao espirito racional e sofisticado,

que tanto se destacou na inspiracao de Euripides. Por conseguinte,

tudo leva a crer num retorno a fonte, cuja vertente secaria aos pou-cos, tragada pela areia,

r: De fato, a tragedia, como genero literario, tinha evolufdo ate °i limite daquilo que definia a sua originalidade. Mas ela s6 pode

evoluir assirn em razdo de uma profunda transformacao do espfrito

geral que animava seus autores. E no momento em que a tragedia

grega chega ao seu tim, vemos que a inspiracao religiosa e nacio-

nal, que havia suscitado as suas grandes producoes, estava em de-

cadencia, para logo mais desaparecer.

o impasse a que chega a tragedia grega, quando urn dos seus

elementos basicos perde sua fun<;aoessencial, coincide com 0 im-

passe a que chega Atenas, quando ° individualisrno triunfa sobre 0civismo, assim como 0 ateismo sobre a devocao, e quando final-

mente 0 futuro do homem deve ser repensado.

Ele domina admiravelmente a arte de criar tensao, de infundir

medo, de fazer a plateia pa1pitar! Esta e, pode-se dizer, a arte do

escritor profissional, de urn homem de tetras. 0 caso mais simples

eo da espera de urn salvador, que tarda a urn ponto tal que se ins-

tala 0desespero; e subitamente, quando n in gu em m ai s acredita, eis

que ele aparece. Assim foi 0 aparecimento de Heracles, na ~aque leva seu nome: ele chega para salvar os seus, no exato mo-

mento em que, ap6s muitas lamentacoes, esperancas e suplicas, seu

pai acaba de dizer: "Mas de que adianta i n vo c ar -te : v ao s e sf o rc o s!

Estou vendo, a morte e inevitavel" (502). Da mesma forma, em

Andromaca, 0 velho Peleu surge no momento em que, ap6s muita

discussao e argumentacao, Andrornaca e seu filho estao sendo le-

vados a morte. Eles estao acorrentados; ja deram adeus a vida; Me-nelau acaba de pronunciar palavras inexoraveis, concluindo: ' 'Tu

desceras ao Hades infernal", quando 0 coro anuncia: "Mas eu vejo

Peleu que se aproxirna ..."

Outras vezes, a salvacao nao vern de uma pessoa, mas de uma

notfcia que altera a situacao. Neste caso, ° reconhecimento assume

a forma de urn golpe teatral, pois vern encerrar uma situacao que

acabaria em urn drama mons t ruoso , Muitas vezes sao parentes pr6-

ximos - ou mesmo pais e filhos - que estao a ponto de se eliminar,

sem conhecimento do que se passa. E assim em lon, onde a mae

quer, no infcio, matar aquele que e , de fato, seu filho; depois essemho prepara-se para a sua vinganca; e esta a ponto de faze-lo,

quando surge a Pftia: "Alto hi, meu filho!" No ultimo minuto,

acontece 0 reconhecirnento tardio entre mae e filho, Ja foi dito que,

nas PC9asque se perderam, como Cresfonte, Alexandre, Hipsipila,Euripides extrafa efeitos surpreendentes de situaeoes analogas , E

mesmo na lf igenia em Tdurida, 0 reconhecimento entre irmao e

irma alcanca uma dimensao ainda mais patetica pelo fato de que

Ifigenia, sem de nada saber, esta prestes a imolar esse irmao no

culto de Artemis.

Estes sao apenas alguns exemplos. Se fossemos alem, arrisca-

rfamos dar a impressao de que 0 teatro de Euripides nao ia alem de

artiffcios da profissao e de cenas de efeito. Naturalmente, nao e~ada disso, Todavia, no momento em que as primeiras tragedias de

Esquilo poderiam desorientar-nos. com seu porte hieratico e meios

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46 jacqueline de Romilly

Esta coincidencia confirma a originalidade da tragedia grega e

seu vigor profundo. Mas, ao mesmo tempo. ela nos convida a ob-

servar mais de perto 0 que cada urn dos tres tragicos tinha a dizer

sabre 0 homem. Esta evolucao do pensamento e da inspiracao pode

definitivamente esclarecer nao apenas as transformacoes literarias

aqui destacadas, mas tambem 0 que ainda nao foi definido - 0 sen-

tido que se deve atribuir a nor;lio do tragico, Capitulo 2

E squilo au a tragedla

da justica divina

Esquilo e0

hornem das Guerras Medicas, Em duas oportuni-dades, ele viu sua patria ameacada, depois salva, e por tim triun-

fante. E ele e urn dos que lutaram por essa vitoria, Em 490, ele

participou da Batalha de Maratona (como dela tambern participou

urn irmao seu, cujo heroismo e mencionado por Her6doto). Em

480, ja com 45 anos, ele lutou em Salamina, quanta Atenas foi

evacuada, ocupada, incendiada.

: E perfeitamente cornpreensfvel que uma tal aventura marque

urn homem pelo resto da vida. E a obra de Esquilo da muitas pro-

vas disso. Existe urn epitafio atribufdo a ele, e que bern poderia ser

seu, no qual a gl6ria de haver combatido contra 0 invasor barbara

parece 0 principal merito reivindicado por esse poeta. Diz 0 epita-fio: "Pelo seu valor, pode-se acreditar no famoso cerco de Marato-

na: ele 0 conhece bern".

Isso nao significa que Esquilo tenha esperado nem seus 45

anos, nem essa provacao nacional, para escrever as suas tragedias:

na realidade, ele parece ter iniciado sua carreira aos 25 anos, no

1 t I } Q 5 0 0 . Mas 0 fato e que ,ganhou seu Qrimt;:.i..au;.~~~-urSom - 4 8 4 ,

entre as duas Guerras MMicas; e e fato tambern que a tragedia

mais antiga conhecida seja, ao que parece, Os persas: ora, essa tra-

gedia foi representada em 412, oito anos depoisda grande vit6ria.

De certo modo, e muito estimulante 0 fato de que a entrada de Es-quilo no mundo da tragedia, tal como 0 conhecemos, tenha ocorri-

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136 jacqueline de Romilly

imperio soa urn pouco como urn cortejo fiinebre da vida cfvica,

S6crates e condenado a morte. 0 jovem Xenofonte vai servir no

estrangeiro. Is6crates abre a sua escola, mas jamais falou diante da

assembleia do povo , E Platao sonha em fundar, em algum lugar,

uma cidade digna desse nome. A vida da cidade vegeta: Dem6ste-

nes jamais deixou de lamentar profundamente esse fato, evocando

inutilmente 0 sentido da grandeza passada.

Numa tal atmosfera, 0 teatro passava a ser, cada vez mais,

obra de letrados, dirigindo-se a urn publico de curiosos. A pr6pria

vida do g~nero tragico dependia da participacao de todos, de urna

manifestacao coletiva, ao mesmo tempo nacional e religiosa. Tor-

nando-se mais refinada, a arte drarnatica mudou de tom e de senti-

do. Racine deveria imitar Euripides, mas diante de urn publico

seleto e limitado, 0 que nao ocorria em Atenas. De fato, a tragedia

grega morreu, quando se cortou 0 laco que a ligava a sua cidade.

Conclusao

A tragedia e 0 tragi co

De Esquilo a S6focles e a Euripides, a tragedia grega passou

por urna transformacao e renovacao profundas. A visao do mundo

mudou, os meios literarios tambern rnudaram, 0 gosto, 0 tom, as

ideias, tudo se alterou, Todavia, a forma literaria permaneceu a

mesma, como permaneceu 0 mesrno 0 espfrito que a animava. E

este espfrito revelou-se bastante caracterfstico para que, a partir

dar, todo teatro que bebesse da mesma fonte de inspiracao Fosse

chamado "tragico", e tambem para que toda desgraca ou situacao

que apresentasse alguma analogia com os fatos daquelas pecas fos-

se igualmente qualificada como "tragica", 0 bode, que emprestou

o seu nome a tragedia grega, acabou por invadir, de maneira urn

tanto quanto inesperada, 0vocabulario rnoderno da ernocao ...

Naturalmente, urna tal tendencia nao ocorre sem esquerdismos

ou deformacoes, Da mesma forma como, na representacao das tra-gedias gregas, cada epoca ou cada autor ressaltavam certas caracte-

rfsticas em detrimento de outras (ora 0 equilfhrio e a harmonia, ora

a aspereza arcaica, ora urna polftica predominante, ora uma religiao

atemporal), e tambem como as adaptacoes dessas pecas variavam

de acordo com 0 espfrito e a inspiracao, segundo 0momento ou a

moda, assim tambern cada epoca e cada corrente acabam por pri-

vilegiar, dentro da pr6pria norrao do tragico, ora urn aspecto, ora

outro. 0 reflexo das tendencias contemporaneas esclarece essa no-

~ao, de uma ou de outra forma. Se reagruparmos aqui alguns tracos

essenciais que conferiram ao teatro tragico grego a sua excepcional

grandeza, encontraremos esses reflexos diversos, e estaremos as-

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138 ' Jacqueline de Romilly A tragedia grega 13 9

sim prontos para identificar os eventuais erros que eles poderiam

suscitar.

Antes de mais nada, nos pr6prios componentes da tragedia,

podemos perceber que 0 vigor da a~ao das pecas gregas se baseava

em duas fontes de inspiracao, que impiicavam, ambas, urn risco de

deformacao: 0passado mftico e a atualidade polftica.

que possufmos, uma de S6focJes (Electra) e quatro de Euripides

(Orestes, Electra, Ifigtnia em AuUda.lfigenia em Tdurida.

A famflia dos Labdacidas nao recebeu menor quinhao, muito

pelo contrario, A juventude de Laio, 0 pai de Edipo, e marcada porassassinatos, aos quais se dedicaram as tragedias hoje perdidas,

como a Antiope, de Euripides. Quando se tomou rei, ele foi amea-cado de ser morto pelo pr6prio mho; ao nascer esse fiiho, trata de

faze-Ia desaparecer, mas inutilmente: em virtude de uma serie de

enganos preparados pelo destino, Edipo mata 0 pai, casa-se com

sua propria mae e gera filhos que, de certa maneira, sao seus ir-

maos , Segundo palavras que S6focles Ihe atribui: "Acaba sendo-

me revelado que sou 0 filho de quem nao devia nascer, 0 esposo de

quem nao devia se-lo, a assassino de quem nao deveria ter matado

CEdipo rei, 1185). Esse personagem, destinado ao monstruoso,

agride, portanto, todas as relacoes normais no seio de uma familia;

e, diante do mundo que se lhe abre, ele prefere fugir de tudo, va-

zando-se os olhos. Mas esse gesto nao poe urn fim aos males dasua linhagem. Resta-lhe ainda maldizer os seus fiihos, que acabam

por matar-se urn ao outro: Edipo em Colona, de S6focies, Os sete

contra Tebas, de Esquilo. As fenicias, de Euripides, sao tres pecas

que se dedicam a esse confronto monstruoso. 0 que vale para essas

duas famflias privilegiadas apiica-se tambem a todos os compo-

nentes miticos que inspiraram a tragedia grega. As herofnas de As

suplicantes, de Esquilo, massacram seus jovens maridos por horror

ao laco matrimonial (esse crime nao aparece na peca que se con-

servou, mas pesa evidentemente sobre ela de certa maneira). A

Dejanira de S6foc1es, sem querer, mata 0 seu marido bern-amado,Heracles, e com isso e amaldicoada por seu pr6prio filho. 0 Hera-

des de Euripides mata os seus filhos num momento de delfrio, da

mesma forma como a Agave, do mesmo Euripides, mata 0 filho

num momenta de loucura dionisfaca. Ainda na obra de Euripides,

Teseu entrega seu filho a morte, por engano, e Medeia mata os fi-

lhos deliberadamente, sob 0 efeito da paixao. Isto sem falar da-

queJas tragedias em que assassinatos igualmente monstruosos sao

evitados no ultimo instante, devido a uma revelacao imprevista.

Todos esses horrores representam casos extremos. Mas, quan-

do levados ao palco, eles conferem as desgracas uma dirnensao

mais perturbadora. E Arist6teles, sem diivida, de uma maneira urn

Mito e pslcanalise

Os mitos gregos, em que se inspiravam as tragedias, sao carre-

gados de horror, e afetam os lacos primaries entre os homens.

Certamente isso tambem ocorre com mitos de outras civilizacoes,

Mas aqui eles se tomaram 0 objeto de obras literarias, que insistem

justamente na crueldade e no escandalo destes crimes contra a na-

tureza. Assim, a ernocao suscitada pela tragedia nutre-se de experi-

encias mais elaboradas do que outras, visando transtomar 0 homemnas suas emocoes essenciais.

Na realidade, duas grandes familias de her6is dominam a tra-

gedia: os Atridas e as Labdacidas. E ambas carregam em seu seio

uma serie de crimes monstruosos.

Atreu e Tieste eram dois i rmaos, Mas havia urn terceiro irmao,

Crisipo, que de comum acordo os dois decidiram matar. Depois

disso, voltaram-se urn contra 0 outro. Atreu matou os filhos de Ti-

este, e fez com que 0 pr6prio pai os comesse, durante urn festim. A

lembranca deste horror pesa sabre a familia de Atreu e sobre as

seus dois filhos, Agamemnon e Menelau. E e sabido que, no que

conceme a Agamemnon. 0 horror prossegue: ele sacrifica sua filha

Ifigenia, e mais tarde e morto por sua mulher, Clitemnestra. A pr6-

pria Clitemnestra acaba sendo morta por seu filho Orestes. Assis-

timos, pais, no espaco de duas geracoes, e no seio de urn pequeno

grupo familiar, aos crimes mais monstruosos; as pessoas se matam,

entre irmaos, esposos, pais e filhos; e assim as rela~Oes familiares

mais elementares sao questionadas. Pode-se dizer que nao existem

crimes mais bern arquitetados para escandalizar ou espantar. Ora, a

familia dos Atridas ocupa tres tragedias de Esquilo, dentre as sete

.. " ..~

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l4 0 Jac qu eli ne d e R om illy A tragedia grega l4 l

entre as pessoas amigas fossern produzidos os dramas - por

exemplo, quando urn irmao mata seu proprio irmao, ou urn filho

o seu pai, ou uma mae 0 seu tilho, ou urn filho a sua mae. ou

quando se dispoem a isso, ou cornetern outros atos desse genero

iPoetica, 1453 b).

Mas estava af a ocasiao de abrir as portas a uma certa inter-

pretacao literaria que, nos espfritos conhecedores da doutrina freu-

diana. mas a s vezes menos familiarizados com as obras gregas em

geral, corria 0 risco de provocar urn mal-entendido,

Este risco aumentava, na medida em que a sobriedade das ex-

plicacoes psicol6gicas fomecidas pela tragedia, principalrnente nos

seus comecos , deixava bastante campo para interpretacoes, Os si -

lencios tragicos podem encobrir muitas coisas.

Se tratamos de esmiucar 0 significado de uma obra, a despeito

do seu autor, as tragedias gregas sao, seguramente, urn exemplo

que vale tanto, au mais, que outros. Mas nao se pode dizer que a

silencio dos autores seja uma forma de aquiescencia, e pareca co-

brir os sentidos que eles perceberam, de modo mais ou menos con-

fuso. A tragedia, com efeito, nao e 0 mito. Ela e a obra de poeta s,que deliberadamente transpuseram 0 mito, para nele inserir ur n

sentido pessoal. Fizeram-no em funcao de determinados esquemas

e interesses, os quais nao eram de ordem psicologica. Alem disso.aquila que a psicologia modema acredita ler naquelas obras e, asvezes, mais distante do espfrito que as animava do que 0 seria, no

caso de obras mais modemas. E e pelo menos justo manter em

mente a n~ao dessa diferenca.

Nao ha duvida de que 0 &lipo concebido por Sofocles so-

mente mata 0 seu pai e casa-se com sua mae por causa de urn cruel

equfvoco, e que ele nao 0deseja de forma alguma. Quanta ao mais,

nao existe na lenda qualquer recordacao da sua tenra infancia; ele

nao conhece os seus pais, jamais os viu, nada sabe. Foi preciso urn

Cocteau para inventar urn Edipo bern diferente, e tingir essa uniao,ocorrida por engano, de urn carater incestuoso, Assim tambern a

Clitemnestra, concebida por Esquilo, por S6focles e por Eurfpides,

age por razoes que nada tern a ver com 0 6dio Intimo que pode

nascer entre urn casal. E foi necessaria urn Giraudoux para em-

prestar-lhe essa hostilidade que teria brotado desde 0 primeiro

momento contra seu esposo.

Mesmo quando 0 tema da peca grega possa estar diretamente

relacionado com os problemas apresentados pela psicologia 010-

derna, e com os temas aos quais ela se dedica, na realidade parece

que os interpretes, no intuito de formular-lhe 0 conteddo, tenham

sido fatalmente levados a ultrapassar as intencoes do autor do se-

culo V a. C. E verdade que Hipolito e exageradamente devotado a

tanto quanto fria, t inha-o em mente, quando recomendava aos auto-

res tragicos temas onde

E sem entrarmos aqui no problema do "expurgo das paixoes",

de que fala 0pr6prio Aristoteles, pode-se ao menos pensar que essa

catarse era mais eficaz, na medida em que aquelas ernocoes, na-

quele momenta. se baseavam em casos nascidos do imaginario,

sendo, porem, particularmente chocantes e excepcionais,

De qualquer maneira, e perfeitamente cornpreensfvel que a

evocacao dessas desgracas e emoc o e s repercuta no Amago da sen-

sibilidade humana. E a tragedia grega extrai disso uma forca que s6a ela pertence. Em particular, el a se distingue, sob esse aspecto, da

nossa tragedia classica, mais reservada e mais recatada, que sempre

se manteve a distancia das lendas mais brutais , ou que diluiu a sua

aspereza mediante retoques detalhados.'

Mas, assim sendo, compreende-se tambem que essa mesma

aspereza tenha estimulado a psicanalise a reconhecer, naqueles da-

dos tao diretos e naquelas e rnocoe s tao fundamentais, urn campo

que lhe pertence. Conhecemos a importancia que, ;Iepois de Freud,

adquiriu aquilo que ele cha rnou de complexo de Edipo. Freud, se-

gundo parece, estava convencido de que a constanc ia das tendenci-

as que levavam a este complexo teve grande peso no sucesso

litenirio de Edipo rei.

1Em relacao a isso, vale a pena observar que 0 tema de Edipo, tao em

moda na epoca modema, niio inspirou absolutamente 0 seculo XVII. De

outro lado, em uma tragedia como Andromaca, a herofna raciniana tern

por certo urn filho, mas niio e mais 0 de Pirro; e as razoes pelas quais se

arrisca a mata-lo sao de natureza puramente polft ica : a nudez do conflito

entre as duas mulheres foi dissimulada, Da mesma forma, Hipolito, em

Racine. ja nlio encama mais a castidade, As nuances de seruimentos

ocuparam 0 lugar de problemas mais essenciais.

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14-2 Jacqueline de Romilly A tragedia grega 14-3

sua castidade, e que a sua morte, na peca de Euripides, mostra 0

quanta ele estava errado, ao opor-se tao drasticamente a deusa doamor, Mas se falarmos de rancores reca1cados, ou se mencionar-

mos, sob quaJquer forma, a atividade sexual e suas exigencias, 0

conflito muda de figura, e nso sera rnais 0 contlito entre urn ho-

mem e uma divindade. E sendo apresentado em outra linguagem,

ele assume imediatamente urn outre sentido.' Sem duvida, essas

observacoes de cunho modem a podern, aqui ou ali, Iancar urna

nova luz sobre detenninado aspecto de uma tragedia, acrescentar

uma nuance, urna sombra, urna sugestao, Mas a partir do momenta

em que se acrescenta alga na leitura de urn texto, corre-se facil-

mente 0 risco de acrescentar demais.

Em outras palavras, as tragedias gregas tratam de temas que

envolvem emocoes essenciais do hornem; podem ate utilizar-se

disso para afetar, de modo certeiro, tanto os espectadores quanto os

leitores. Mas elas tratam dessas emocoes dentro de urn certo espf-

rito, que nao e necessariamente 0 00550. Podem buscar nos grandestemas mfticos uma capacidade maior de comover; mas elas trans-

puseram esses temas, modifiearam-nos , elaboraram-nos, em fun'Tao

de problemas outros que nao os da psicologia modema.

Em particular, acontecia freqtlentemente que aqueles temas s6

serviam como moldura a uma irnaginacao total mente voltada para

a atualidade - e isso nos leva a fonte de urn segundo provavel mal-

entendido.

dispornos somente de urn exemplo - 0 da peca Os persas, de Es-

quilo.

Em contrapartida, os temas tragic os sao frequentemente des-

envolvidos de maneira que a peca, no seu conjunto, ou pelo menos

em certas passagens, con vide 0 espectador a urna aproximacao com

o presente. 0 carater nacional e coletivo da representacao favoreciaessa tendencia, AMm do mais, a importancia primordial da cidade

na vida dos atenienses do seculo V tomava praticamente impossl-

vel que isto se passasse de forma diversa. Com efeito, os atenienses

participavam da vida publica muito mais do que podemos imagi-

nar. Eles pr6prios se encarregavam de certas tarefas, eram respon-

saveis, conheciam uns aos outros, acompanhavam suas acoes, E

num Estado tao reduzido, os sucessos e fracassos piiblicos reper-

cutiam imediatamente na vida de cada urn. Dessa forma, e perfei-tamente normal que a tragedia grega tenha exercido, quase sempre,

algum impacto coletivo e nacional.

De fato, e raro que 0 autor se detenha a este micleo familiar ao

qual se referia, essencialmente, 0 mito. Acima de tudo, Aga-

memnon e Edipo eram reis, e esse fato influencia tanto seu destino

quanto seus sentimentos. Edipo seria tao como vente, e agiria da

forma como agiu, se nao carregasse, em todos os momentos, a res-

ponsabilidade pela cidade? A primeira palavra que ele pronuncia e"filhos'', mas essa palavra nao e dirigida a sua monstruosa familia.

Esses "filhos" sao as suplicantes, que representam 0 povo de Te-

bas: "Todo 0 restante do povo, fervorosamente a postos, esta ou de

joelhos, ou nas pracas, ou diante dos dois templos consagrados a

Palas, ou ainda junto a s cinzas profeticas de Ismeno", E no intuitode salvar Tebas do flagelo que Edipo comeca a agir. E em nome da

salvacso de Tebas que eIe, do comeco ao fim, insistira em saber a

verdade. Essa nobreza cfvica toma seu desastre ainda mais como-

vente.

Da mesma forma, Agamemnon e responsavel par Argos. Masele nao cuida 0 bastante, ou suficientemente bern. E se 0 coro Jhe

pennanece fiel, sabendo que a sorte da cidade esta Jigada aquela do

soberano, ele sabe tambern que os atos de Agamemnon nem sem-

pre trouxeram a felicidade dos cidadaos: "pesada e a reputacao

atribuida pela indignacao de todo urn pafs: e necessario que ele

pague a sua dfvida pela maldicao de urn povo".

Atualidade e engajamento

E raro encontrannos, na vida modema, 0 tema de urna tragedia

grega; ou mais exatamente, entre as tragedias que se conservaram,

2 Mesmo detalhes verdadeiros correm a risco, nessecaso, de adquirir urndestaque exagerado. Por exemplo, e bern verdade que a animal que ser-ve para matar Hipolito e urn touro (M, Delcourt, em Euripide de la Plei-ade, pp, 206-207); mas esse touro e enviado po r Poseidon. E nasuposicao de que ele jamais tenha tido urn significado simbolico, Euri-pides nao revelou nem sugeriu em memento algum; ele insiste muito

mais sobre 0 papel desempenhadopelos cavalos, tao caros a Hip6lito.

t o~ , ." ,

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144 Jacqueline de Romiliy

Esse eco provocado pela a9ao dos prfncipes, para 0 bern ou 0

mal do pais. evidencia ainda mais a dirnensao tragica dos seus atos.

Ao rnesmo tempo. tal a9ao imprirne, consequentemente, uma signi-

ficacao tambem polftica a obra.

Agamemnon, alern de marido de Clitemnestra, e tambem 0 rei

imprudente, que empreendeu a guerra por "urna mulher que foi de

mais de urn homem". E tambem 0 homem que levou a guerra ao

extrema e ao sacrilegio: permitiu que se incendiassem os santuari-

os dos deuses. Por tudo isso, 0 seu exemplo equivale ao do jovem

Xerxes. E compreende-se que, em certos casos, essa condenacao

pelos excessos da guerra venha a ser uma condenacao pela guerra

em si. Em Os persas, em Os sete contra Tebas, em Agamemnon,

Esquilo exprimiu com forea os horrores da guerra, da pilhagem e

da morte. Euripides, em plena Guerra do Peloponeso, empenhou-se

em reiterar as desgracas dos veneidos, nas tragedias Andr6maca,

Hecuba e As troianas.

Alem do mais, a prop6sito de qualquer terna, os poetas tragi-cos encontrarn, oportunamente, ideias ou problemas que evocam

imediatamente 0 presente. A Orestia termina com comentarios so-

bre 0 papel do Areopago e sobre 0 perigo da guerra eivil; de outro

lado, Orestes promete a Atenas urna alianca com 0 pais de Argos.

Todos estes eram assuntos atuais. Edipo em Colona chega a mos-

trar que 0 corpo de Edipo resguardaria para sempre Atenas de urna

invasao dos tebanos. Ora, quando a peca foi escrita, a cavalaria

be6eia, sob 0 comando do rei de Esparta, acabava de ten t ar uma

expedicao na Atica, justamente pelo lado de Colona. Da rnesma

forma,As suplicantes

de Euripides abordam urna recusa de sepuJtar

os mortos, depois de uma batalha. Ora, quando a peca foi escrita,

os be6cios acabavam de negar aos atenienses 0 direito de recolher

os corpos dos soldados mortos em Delion, enquanto Atenas ocu-

passe seu santuario; a batalha havia durado dezessete dias, e abala-

do profundamente a opiniao publica ateniense. Em todos os casos,

consequentemente, 0milo era evocado de uma forma e em termos

diretarnente relacionados com as emocoes e com os problemas domomento.

E . portanto, natural que se tenha procurado discernir, na obra

dos tres grandes tragicos, particularmente naquela de Euripides

!

~

A tragedla grega 145

(que escrevera num teatro, sob esse aspecto, mais livre), toda uma

serie de alusoes, transposicoes, intencoes polemicas ou apologias

que conferissem ao texto urn eco, ou uma dimensao, que urn lei tor

talvez a custo percebesse. E e natural tambem que 0 teatro grego

tenha sido urn exemplo para aqueles que esperam da literatura mais

que urn prazer puramente artfstico, e desejam que 0poeta seja tam-

bern urn cidadao, engajado na realidade polltica, tomando partido e

servindo a urna causa.

De fato, na verdade, a tragedia grega apresentava, sob esse as-

pecto, urna dirnensao a mais - urna dimensao que nao conheceria,

por exernplo, a tragedia francesa do perfodo classico,

Todavia, devemos, mais uma vez, fazer algumas reservas, se

quisermos evitar confusao, Antes de mais nada, e preeiso evitar aexpectativa de que 0 poeta diga mais do que diz. A caca a s alusoese perigosa, porque facilmente faz referencias excessivas. E urn

convite a engenhosidade. correndo 0 risco de dar ao detalhe urna

importancia exagerada. Ela parece fomecer chaves de interpreta-9ao, quando muitas vezes, na realidade, existe apenas uma seme-

lhanca distante, que despertou 0 interesse do autor, sem inspirar-

lhe, no entanto, 0desejo de provar 0 que quer que seja.

E, sobretudo, referir-se a literatura engajada, a prop6sito da

tragedia grega, e evocar urn movimento de espfrito muito diferente

daquele que animava os poetas do seculo V.

Aqueles poetas eram, efetivamente, cidadaos. Viviam engaja-

dos, porque 0 pr6prio estatuto da cidade irnplicava urna partieipa-

9aO constante e profunda. Mas sua obra como poetas consistia, 0

mais das vezes, em transcender esses interesses irnediatos, e em

transpo-los ate 0 nfvel dos interesses humanos. Trata-se da rnesrna

atitude adotada por Tucfdides, quando deseja fazer da sua hist6ria

urna "conquista para sempre", descartando desta hist6ria todas as

indicacoes de detalhe, ligadas aos debates diaries. Com mais razao

ainda, encontramos essa atitude nas transposicoes tragicas,

A tragedia Os persas da 0 tom, ja que essa peea de atualidade

se cala com relacao aos indivfduos, as responsabilidades, falhas e

sucessos, para ater-se exclusivamente aos grandes temas atempo-

rais, como a insolencia punida, ou os horrores da guerra. Ora, as

tragedias gregas seguirarn, em geraJ, este exemplo. Certamente nao

seria razoavel procurar em Creonte caricatura de Pericles, mesmoque, neste ou naquele detalhe, 0 pensamento de Sofocles tenha se

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14-6 jacquel ine de Romilly A tragedia grega H7

alimentado daquilo que ele via au escutava ao seu redor.' Ao con-

trario, e justamente porque Creonte nao e Pericles que a debate

entre Antfgona e ele se torna urn debate eterno, claro como urn de-

senho acabado, sempre tao atual e tao vivo: Antigona, durante a

ultima guerra mundial, encamava a resistencia a opressao. Da

mesma forma, n ao seria razoavel reconhecer, nos dois i rm ao s i ni -migos de As fenicias, os homens au os partidos de 411 a.e.: dizer

que Polinice representa Alcebiades porque, como ele, permanece

exilado, ou que Eteocles representa 0 partido oligarquico porque

tenciona conservar 0 poder, sem compartilha-lo com outros, sao

interpretacoes que enfrentam mil dificuldades, e nao resistem a

uma analise. Por outro lado, e bastante visivel que nesta pe<;:a,es-crita numa epoca de guerra civil, Euripides optou por descrever

uma luta fratricida, mostrando os sofrimentos que ela semeia e

evocando com insistencia 0 sonho de uma reconciliacao impossf-

vel. Ele, portanto, denunciou 0mal, em seu aspecto humano e ge-

ral: mas evocou, em contrapartida, 0 esplendor do patriotismo emsi, Ultrapassou 0 atual para atingir 0 t ipologico, Do mesmo modo,

alimentada pela experiencia contemporanea, sua tragedia elevou-se

acima do conternporaneo: ela pode atingir a quem quer que seja,

em qualquer epoca, independente da de guerra civil . E seu Eteocles

nao e nem urn oligarca, nem urn tirana: ele encama a ambicao em

seus traces eternos, e adquire 0 valor de urn sfrnbolo humano. Os

jovens alunos do seculo III a.e. estudavam em sala de aula 0 que

Jocasta disse daquela ambicao: e CIcero nos relata como Cesar

gostava de citar as palavras de Eteocles, Em qualquer pals, ama-

nha, essas palavras poderiam novamente carregar-se de urn valoratualizado, porque a atualidade de 41] foi transposta em uma expe-

riencia humana de ordem moral.

E por isso que nao se pode falar de literatura engajada sem a

risco de confusao. Uma literatura engajada implica a desejo de

aproximar-se, tanto quanta possfvel, ao presente - enquanto a tra-

gedia grega, embora dele se nutra, se esforca constantemente em

extrair-lhe a segredo atemporal.

No seu conjunto, a tragedia grega adquire uma ressonflncia

particular, pelo fato de ter mantido urn cantata constante com as

realidades coletivas da vida polftica, enquanto se revestia tambem

de uma forca mais austera, par ter conservado a ligacao com os

mitos originais, Mas em nenhum dos casas ela se confunde com a

materia que, dessa forma. Ihe e fomecida. A sua real grandeza pro-

cede da interpretacao humana dada aos males que ela evoca. E e

apenas essa interpretacao a que define verdadeiramente 0 tragico.

o tragico e a fatalidade

3 N .em par 1SS0 essas comparacoes deixarn de ser interessantes, contato

que niio lhes seja dada uma importancia sistematica. Sobre esse caso

particular, cf. V. Ehrenberg, Sophocles and Pericles, Oxford, 1954

(texto alernao, Munique, 1956).

A descricao do assassinate no qual uma mulher mata 0 seu

marido, ou uma mae mata as seus filhos, a relata do desespero de

urn homem que se descobre casado com a pr6pria mae, tudo issopoderia ser assunto de belos melodramas. Mas, para que esses fatos

aparecarn como tragicos, e preciso urn elemento a mais, urn enfo-

que diferente, um significado pr6prio. Qual e entao esse enfoque

tragico?

Como ja foi dito uma vez, ele pressupoe urn "drama serio,

atingindo alguns dos problemas fundamentais da condicao huma-

oa".4 Em outras palavras, para que esses assassinatos sejam tragi-

cos, e preciso que estejam ligados a causas que uJtrapassem 0 caso

individual, que as tornem necessaries em vinude de circunsiancias

impostas ao homem,

Clitemnestra mata Agamemnon porque todo erro atrai, cedo

ou tarde, a colera dos deuses justos, e porque Agamemnon, de fato,

errou. Edipo desposou sua mae, porque 0 homem nao e capaz, pormais que se esforce, de evitar urn destino que ele se recusa a acei-

tar. Medeia mata os seus proprios filhos porque a paixao humana

leva 0 hornern a destruir precisamente aquila que Ihe e mais caro.Clitemnestra, Edipo, Medeia s5.ocasas extremos e rnonstruosos; no

entanto, seus crimes sao 0 resultado inevitavel de urn certo arranjo

~ H . D . F. Kit to , U' tMiilre tragique (co le tf in ea d e expo sico es reu nidas po r

J. Jacquot), 1962, p. 65.

r

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148 Jacqueline de Romilly t

I

do mundo. Nesse sentido, eles poderiam tambern ter sido nossos. E

eles inspiram, alern da compaixao por suas vftimas, a compaixao

por eles mesmos e pelo proprio homem.

E essa a razao pela qual, ao escrever sobre a tragedia grega,

somos obrigados a lancar-nos em consideracoes sobre a filosofia

dos autores, ou a falar dos deuses e dos hornens. Tal modo de ex-

posi~ao nao seria adequado para qualquer forma teatral. Mas e im-possfvel evita-Io quando se trata da tragedia grega, com aquele

coro que diz a cada instante: "Vede 0 destino do homem", "Vede 0

poder dos deuses", au "Decididamente, a condicao humana apre-

senta tal ou tal carater", A tragedia grega sempre da urn testemu-

nho sabre 0homem em geral, e, gra'fas ao coro, esse testemunho 6

constantemente chamado a aten~ao dos espectadores.E pode ser exatamente esse trace, tao caractenstico da tragedia

grega, aquila que as tragedias de outras epocas tiveram grande di-

ficuldade em conservar. Isto se aplica tanto a tragedia latina quanto

a tragedia francesa, pois, se Fedra alcanca 0 seu porte e sua riquezapor representar, segundo urna formula celebre, urna crista a qualfaltou a graca, nao e cecto que os lrmdos inimigos tenham atingido

a grandeza de Os sete contra Tebas. Estes her6is, mais ocupados

com 0 arnor e com a politica, nao podiarn apresentar facilrnente

problemas tao essenciais ao homern; e a cora ja nao estava mais Ia

para ajuda-los,

Seja como for, essa nocao dos limites inerentes a condicao

humana estava sempre presente na tragedia grega. Manifestava-se

sob formas diferentes, mas 0 espfrito era 0 mesmo. Isto explica,

sern diivida, 0 fato de se ter muitas vezes traduzido esse sentirnentopor meio da palavra fatalidade.

Em certo sentido, isso se justifica, pais e verdade que a trage-

dia greg a nao se cansa de apontar, alem do homern, forcas divinas

ou abstratas que decidem sabre seu destino, e decidem sem apela-

'fao. Pode tratar-se de Zeus soberano, ou dos deuses, ou ainda, ern-

pregando urn termo bela, neutro e misterioso, do daimon, au

divino. Pode ser tambern 0 destino, a Moira, ou entao a necessida-

de. E 0 coro menciona, incansavel a cada instante, a arrao dessas

forcas sobre-humanas,

':~..

A tragedla grega

A obra de Esquilo trata, quase sempre, dos deuses. Desta for-

ma, Zeus e quem provocou a queda de Tr6ia (Agamemnon, 367), e

sao os deuses que incitam os excessos de Agamemnon (461). Mas.

ao decidir sacrificar a sua filha, 0mesmo Agamemnon "curva sua

fronte ao jugo do destino" (218). E quando ele rnorre, 0 coro reco-

nhece que foi urna acao do destino: "Genie (daimon), que te abatessobre a cabeca das duas criancas de Tantalo, tu te serves de rnulhe-

res de almas iguais para triunfar, dilacerando as nossos coracoes ..."

(1468-1471), A palavra daimon e repetida na cena em diversas

oportunidades, tanto por Clitemnestra como pelo cora: 0 assassi-

nato de Agamemnon nao tern a caracterfstica do melodrama, por-

que ele e obra do daimon.'Encontramos esta mesma n~ao na obra de S6focles. 0 desti-

no, embora menos ligado a ideia de justica, nao deixa, nem por

iS5O, de ser soberano. Pode-se ate dizer que 0 lema de Edipo rei esomente 0 triunfo de urn destino que os deuses haviam anunciado,

e que 0 homem nao conseguiu evitar, Nao precisamos de muitos

comentarios para que se revele, aos olhos de todos, essa ostensiva

vit6ria do destino. Tanto 0 com quanto as personagens, no pouco

que dizern ao evocar a vida de Edipo, falam sempre do seu "desti-

no", ou do seu "quinhao". E quando 0 coro comenta a desastrosa

notfcia, dec1ara que nao pode mais considerar nenhurn hornem feliz

diante do exemplo de Edipo, do daimon de E;ctipo (1194). Ele pro-

prio exclama entao: "6 meu destine (daimon), onde foste precipi-

tar-te?' (1311).

Isso j a nao e mais tao evidente no teatro de Euripides, ou tal-

vez a ideia de necessidade tenha se interiorizado. Nenhurn destinoirnpele Medeia a matar os seus filhos, mas tantas sao as forcas que

pesam sabre ela! Primeiro, a longa sequencia de acontecimentos

que a conduziram ao impasse em que se encontra; e a ama que abre

a peca 0 faz com urna lamentacao caracterfstica: "Quis a Ceu que a

nau Argos, em seu v60 a terra de Colquida, nao tivesse transpostoas Simplegades com sua sombra azul...", pois entao nada teria

acontecido. Depois, existe a paixao em si mesma, da qual Medeia

5 0 tenno encontra-se no singular, mais de uinta vezes, na obra de E s -quilo, sem contar uns quarenta exemplos em que esta no plural, tendo

entao urn sentido mais pessoal.

r

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150 Jacqueline de Romilly

se confessa escrava (1078-1080). E urna vez dado 0 primeiro pas-

so, a herofna torna-se prisioneira da sua propria iniciativa: "Va-

mos! encouraca-te, coracao meu! Par que tardamos em executar a

perversidade terrfvel e necessaria?" Medeia forja seu pr6prio des-

tino; mas isso nao quer dizer que ela possa fugir-lhe.

Se e verdade que, mesmo num caso desse genero, paira sobre

todo 0 conjunto a ide ia de uma necessidade, e que dessa f o rma a

destino de Medeia ilustra a fraqueza do homem e a fragilidade da

sua condicao (como de fato 0 cora 0 afirma), pode-se compreender

que a s d es gr ac as dos he ro i s tragicos possam revest ir -se de urna

dirnensao aterradora para todos. E compreende-se tambern par que

se instalou 0uso generalizado da palavra fatalidade.

Entretanto, aqui uma vez mais, 0 termo corre 0 risco de ocasi-

onar confusoes, e requer ao menos algumas reservas. Em primeiro

lugar, existem tragedias, particularmente nas pecas de Euripides,

onde nada indica a fatalidade: 0 acaso dos encontros e 0 sobres-

salto dos golpes teatrais dao, muito mais, a impressao de uma ayaoprovocada por si mesma, livremente. A propria Medeia hesita, au

seja, ela poderia ter agido de outra forma, E nao e nenhuma fatalida-de que decide a tomada de Tr6ia, a vinganca de Hecuba, ou a sorte

de Andromaca, A fatalidade, portanto, nao e essencial ao tragico.De resto, mesmo quando os acontecimentos sao apresentados

como decorrentes de urna decisiio divina, irrevogavel e soberana,

falar de fatalidade equivaleria ainda a simplificar as coisas ou, ao

menos, caracterizaria 0 termo de maneira impr6pria, se ele sugerir

a negacao da responsabilidade. Urn dos traces mais marc antes do

pensamento gregoe ,com efeito, a possihilidade de explicar todo

acontecimento em dois pianos simultaneos, e por meio de uma du-

pla causalidade, que se combina ou se sobrepoe, Presente ja desde

Homero, essa dupla causalidade existe em quase toda a tragedia, A

condenacao de Agamemnon resulta de urn veredito divino; mas a

sua concretizacao atravessa urna serie de vontades humanas: Cli-

6 Evoca-se aqui, inclusive. a lernbranca dos crimes passados: "Pesa sobreos mortals a purificacao do sangue familiar; a medida do crime. ela des-perta, contra os assassinatos da sua pr6pria ra\a, sofrimentos que a maodos deuses faz criar sobre as suas casas" (1268-1270).

A tragedia grega 151

temnestra e 0 agente do assassinato, mas ela age por rancor, vin-

ganca e ciume, pelo efeito de urn Odio inteiramente pessoal, e de-

vera responder por isso. Quanto ao proprio Agamemnon, ele s6 econdenado a morrer sob o s golpes dela porque, deliberadamente,

ofendeu as leis dfvinas e humanas, tanto ao sacrificar sua filha,

como ao cometer crimes varies que marcaram a tomada de Tr6ia.

Levantar 0 problema da liberdade human a, a proposito de tais

eventos, constitui uma atitude modema. Para urn antigo grego, as

duas causalidades coexistem sem contradicao. Como diz Esquilo,

"quando ur n mortal se empenha na sua ru fna , os deuses vern ajuda-

10 " ( O s p e rs a s, 742), Nada acontece sem a vontade de urn deus;

mas nada tampoueo aeontece sem que a hornem participe e se en-

gaje, 0 divino eo humane combinam-se, sobrepoem-se . E por issoque, em ultima instancia, se pode dizer que a morte de Hip6lito se

deveu ao arnor ou a Afrodite; que Heracles sueumbe a urn mo-

menta de loueura au a ar;ao da raiva, enviada por Hera; au ainda

explicar a morte de Penteu por se recusar a admitir certas tendenciasnaturais au a reconhecer 0 deus Dioniso.

Par certo, as coisas nao sao sempre lao simples. Mas, de modo

geral, a fatalidade grega nao elimina a responsabilidade humana,

como 0 sentido da palavra poderia sugerir.

Par outro lado, mesmo onde 0 destino parece reinar absoluto,

ele nao envolve qualquer especie de abdicacao par parte do ho-

memo Dizer que uma coisa foi determinada pelo destino significa

dizer que ela esta ai, pura e simples mente. Signifiea constatar 0

fracasso do homem. Signifiea mostrar que ele se debate contra urn

universo que nao pode comandar. Mas nao significa tamar partido

sobre como e regido esse universe, nem renuneiar ao exercicio de

urn detenninado papel dentro dele. Mesmo urn homem avisado

pelos oraculos, como Edipo, procura lutar. Ese, de outra parte, ele

se lorna presa do impasse do t rag ico, permanece sempre 0 senbor

da sua pr6pria rea~ao. A tragedia Ajax comeca quando 0 destino ja

havia cumprido a sua parte; e 0 heroi, acuado pelo impasse, res-

ponde com uma morte voluntaria,

Portanto, em vez de fatalidade, seria preciso usar urna palavra

recentemente proposta por urn fil6sofo - transcendencia.' Pois a

7 cr. H. Gouhier, "Tragico e transcendencia", Le theatre tragique, coleta-

nea de exposicdes publicada em Paris, em 1962.

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15 2 Jacqueline de Romilly A tragedia grega 15 3

que confere aos desastres da tragedia grega essa dimensao particu-

lar, sem a qual nao ha tragedia, nao e 0 fato de que tenham side

previamente desejados pelos deuses, mas sim de que eles adquirem

urn sentido em relacao aos problemas maiores relativos a condicaohumana. A tragedia define-se muito mais pela natureza das ques-

toes que levanta do que pelo tipo de respostas que oferece. Eo tra-gico consiste em medir a sorte do homem em geraI, em fun~ao de

desgracas individuais, muitas vezes excepcionais.

Uma situacao pode ser tris te, horrfvel, dramatica: nesse caso,

ela inspira a compaixao para com aquele que nela se encontra. Diz-

se que eia e tragica quando acontece uma especie de recuo, gracas

ao qual ela aparece como uma prova dos sofrirnentos que 0 hornem

pode vir a suportar, sem solucao e sem recurso.

pois na tragedia luta-se, tenta-se fazer 0 que se deve, E tudo 0 que

se faz, seja 0 bern ou mal, acarreta serias consequencias, Isso, e

nada alern disso, constitui a tonica da tragedia,

Alem disso, na medida em que 0 hornem enfrenta obstaculos

contra os quais nada pode fazer, ele fica de certa forma engrande-

cido e inocentado. 0 caso dos viloes realmente nao prova nada. E

se estivernos falando tao livremente de fatalidade, com relacao atragedia, e em parte porque as desgracas apresentadas nas pecas

resultam, aparentemente, muito mais da condicao humana do que

da perversidade das vitimas, ou agentes da trama. Seja por sofre-

rem urn desfgnio detenninado pelos deuses, por pagarem por urn

pecado de seus pais, au par responderem por sua pr6pria impru-

dencia, M sempre neles urna parte de inocencia E mesmo quando

nos sao apresentados como culpados, mesmo quando se deixam

arrastar por suas paixoes, isto so ocorre porque 0 erro e 0 quinhaodos homens, ou porque eles estao respondendo por sofrimentos que

sao, igualmente, 0 quinhao hurnano. Podemos falar de urn traidornum melodrama; mas nao podemos falar de urn traidor numa tra-

gedia, A tragedia nao admite nenhuma pequenez.

Sob esse aspecto, poderfamos citar dois testernunhos moder-

nos que, sem concordarem no restante.! soam, a este respeito, es-

tranhamente pr6xirnos.

Giraudoux escreveu em Electra:

o tragico e 0 absurdo

A ideia dos sofrimentos reservados ao hornern, se colocada de

forma imprecisa, corre 0risco de dar do tragico uma ideia inexata e

prestar-se a urna confusao inversa a anterior. A confusao anterior

considerava 0 evento como 0 resultado de urna ordem implacavel:

esta, em vez disso, tenderia a considera-lo como desprovido de or-

dem e de sentido. Com efeito, na medida em que 0 destino nao esta

ligado a uma vontade coerente - 0 que acontece, com mais fre-

quencia, depois de E sq ui lo - , corre-se 0 risco de cair numa atitude

pessimista, tendendo-se a acreditar que nada tern sentido, Estaria-

mas entao bern pr6ximos de urn determinado espfrito moderno queprivilegia 0absurdo.

Esse espfrito pode produzir obras que nao deixam de relacio-

nar-se com a tragedia, visto que questionarn a pr6pria condicao

bumana. Na rea1idade, elas nao tern outro objetivo, nem outro

tema. Mas estao fundadas na amargura e no desanimo. Elas denun-

ciam, etas desesperam. E e isso que revela claramente a diferenca

entre elas e a tragedia, pois a tragedia vive de a~ao, e irnplica he-rofsmo,

Construfda em tome de urn ato a ser cumprido, a tragedia en-

volve urna afirmacao do homern. A palavra drama quer dizer a~ao,

Realizam-se com os reis as experiencias que nao se verificam

jamais entre os hurnildes, como 0 6dio puro, a c61era pura. Por

toda parte, a pureza. Isso e a tragedia, com seus incestos, seus

parricfdios: pureza quer dizer, em suma, inocencia.

E Anouilh, em Antfgona, diz:

No drama, com seus perversos encarnicados, com essa inocen-

cia perseguida, esses vingadores, esses terras-novas, esses lam-

pejos de esperance, tudo isso toma a morte espantosa, como urn

acidente. Talvez tivesse sido poss fvel salvar-se, 0 born jovem

talvez pudesse ter chegado a tempo com os homens armados,

8 Urn fala de esperanca, 0 outro, de falta de esperanca,

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154- Jacqueline de Romilly A tragedia grega

Na tragedia, estarnos tranqtli los. Antes de tudo, estarnos entre

iguais, Enfim, somas todos inocentes.

ofensa que sofreu como mae. Sua ira toma-se engrandecida. por

identificar-se, de fato, com a coleta divina,

Na obra de Sofocles, a n~ao de heroisrno e ainda mais acen-tuada. POT certo, 0 her6i pode enganar-se; ele pode, depois de urn

momenta de orgulho, ver-se ridicularizado pelos deuses, como

Ajax. Ete pode, levado pelas elrcunstancias, a~n:sentar-se muit~

severo e duro, como Heracles, Ele pode, como EdlPO, ser excessi-

vamente seguro de si. Ele pode, como Neopt6lemo, hesitar por urn

momento entre dais deveres. Mas S6focles nao deixa jamais a es-

pectador com a impressao de que essas imperfeicoes diminu~ .a

grandeza dos personagens, au que, de alguma forma, possam jusu-

ficar a desgraca que os atinge. Ajax, Heracles, Edipo. Neopt6~emo

sao, da mesma forma como Antigona, as porta-vozes de urn Ideal

de honra e as vftimas de urn destino injusto.

Poderfamos pensar, por outro Iado, que as coisas nao sao ma~s

assim no teatro de Euripides. pois os homens ja nao agem exclusi-

vamente em funciio do seu ideal. e infligem-se 0mal entre si, deli-beradamente. E isso sem mencionar que, no teatro de Euripides,

existem a s vezes personagens que beiram 0 ridfculo, tamanha a sua

mediocridade. E, no entanto, no seu conjunto, poderfamos chamar

de mesquinho 0mundo de Euripides? Nao seria antes que os per-

sonagens mesquinhos se destacam precisamente porque as outros

nao 0 sao?Como nao lembrar aquelas figuras ideais e comoventes que

permeiam tantas pecas, reavivando-lhes 0 brilho? Alceste, a Maca-

ria de Os herdclidas, Hip6lito, Andromaca, Polixena em Hecuba,

ion, 0 Meneceu de As fenicias, Ifigenia? Todos eles morrem, ou

estao dispostos a morrer, pela honra; todos eles sao personagens

imaculados.As suas figuras junta-se 0 ideal encarnado por salvadores e

protetores, como esses reis de Atenas, soberanos constantemente a

service dos outros, intervindo com generosidade, mesmo onde apa-

renternente nao seria necessar io ,E, sobretudo, nao podemos deixar de reconhecer que ate os

personagens mais engajados na tragedia, os rnais envolvidos na

ar;lio, mesmo na a~ao horrfvel, conservam, apesar de, tU?O, ~ma

grandeza que encanta e encoraja. A pr6pria Fedra, a propna Hecu-

ba, a pr6pria Medeia,

A tragedia grega, tanto pela sua otica quanto pelas proprias

condicoes de suas representacoes, dava as costas ao realismo. Con-

ferindo-lhe a dimensao mais ampla, ela desenhava destinos exem-

plares , atingindo herois fora do comum. E isso que os autores do

seculo XX tendem a exprimir, ao usarem a palavra inocencia, e que

os antigos gregos teriam, anterionnente, definido por herofsmo.

Mesmo quando urn homem e abatido pela vontade de um deus,

no decorrer de uma tragedia, 0 autor reserva-lhe uma certa maneira

de ser abatido que encerre grandeza. Preserva-Ihe urna parte da

mais elevada honra. Eteocles e abatido dessa forma, segundo Es-

quilo. Mas ele se mostrara, em toda a primeira parte da peca, urn

chefe fervoroso, energico, liicido, apaixonadamente dedicado a suapatria, E se ele parte para combater 0 irmao, 0 faz somente por

obedecer a urn decreto dos deuses, obediencia decorrente de suapropria coragem. Eteocles e urn heroi. Ajax tambern recebe de So-foeles urn tal tim. Mas ele reage a sua desgraca como urn homem

que nada poderia deter: ele s6 pensa em sua honra e, com plena

conhecimento de causa, se entrega a morte, esperando que, na se-

gunda metade da peca, seus proprios inimigos reconhecam os seus

direitos e a sua valentia, Tambem 0Heracles de Euripides e vftimade uma visao divina, que 0 leva a matar seus filhos: arras ado pela

dor, encontra, entretanto, a coragem de suportar a provacao. Mor-

rer parece-lhe covarde: "Quero enfrentar a tentacao da morte", diz.

Ajax e Heracles sao verdadeirarnerue herois; e existe urn pouco de

triunfo humane na sua rufna,

Pode tambern haver uma certa grandeza na forma como os he-

r6is agem, mesmo quando nao estao compietamente isentos de

erro. Agamemnon podia, aos olhos da justica divina, ter merecido a

sua sorte. Mas ele era urn rei nobre e capaz, que realizou grandes

feitos, que fala com ponderacao, e que acredita poder orgulhar-se

de tudo 0 que fez; 0 remorse dos seus filhos, nesse sentido, ira fa-

zer-Ihe justica, A pr6pria Cliternnestra, a esposa culpada, e uma

mulher corajosa, hicida, superior; e sua c61era e proporcional a

. . . .

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15 6 Jacqueline de RomiHy

Essas tr@smulheres podem servir de exemplo. Criminosas as

tres, sao, no entanto, levadas ao crime pela pressao da desgraca: no

principio, elas aparecem simplesmente abandonadas em seus ge -

midos; depois, a sua desgraca, bruscamente engrandecida, provoca

urn sobressa1to de defesa, de vinganca , Hecuba foi ferida no seu

arnor maternal, Fedra e Medeia na sua honra de mulheres. E a suavontade subitamente se afirma: 0 ate pelo qua1 elas se vingam nao

significa para elas nada alem da destruicao daquilo que as destruia.

E isso , po r vezes, a custo de toda a esperanca , pois Fedra vinga-se

morrendo, e Medeia executando urn crime que, ela bern 0 sabe, vai

leva-la ao desespero. A rainha de Tr6ia, a filha de Minos, a neta do

Sol nada trazern em si de mesquinho. Pelo contrario, seus pr6prios

crimes tornam-se uma forma de herolsmo; e quaJquer coisa, em

Medeia, proclama a forca terrfvel de que pode revestir-se a vontade

humana,quando se trata d e seres de certa tempera.

Sem diivida, e nesse sentido que se explica uma outra observa-~ao de Arist6teles sobre os personagens tragicos, observacao que, aprirneira vista, poderia parecer i n genua e desconcertante. Trata-se

da passagem em que diz que 0 primeiro ponto a ser analisado, no

tocante aos personagens, e que eles "devem ser bons" (Poetica,

1454 a). Nao se poderia exprimir com maior modestia a irradiacao

do herofsmo, pois esta e a questao fundamental. Com efeito, 0he-

roismo suscita a simpatia, portadora da compaixao e do terror; ele

transforma 0 espetaculo tragico, que infunde a compaixao e 0 ter-

ror, em algo tonica, estimulante, enobrecedor.

Esta f e no hornem, que ilumina, a partir do interior, todas as

tragedias, mesmo as mais sombrias, corresponde perfeitamente aoespfrito grego do seculo V a.C. Citamos aqui, a respeito de S6fo-

des, 0 admiravel canto de Antigona, que fala das belezas da civili-

za~ao criada pelo homem: "Existem tantas maravilhas neste

mundo, nenhuma delas porem maior do que 0 homem ..." M as po-

demos acrescentar que essa elegia ao progresso ea civilizacao hu-

mana, que normalmente nada teria a ver com a trage?ia, se

encontra na obra de todos os tres grandes tragieos gregos. Esquilo

dedicou-lhe uma cena do Prometeu, e Euripides uma passagem

bastante extensa de As suplicantes. 0 seculo V tinha f e no homem.

A tragedla grega

IsIO explica por que, desde sempre, as desgracas representadas

na tragedia apareciam envolvidas numa determinada luz, que lhes

resgatava a horror e a tristeza. 0 exemplo de Antigona e a provamais brilhante. Assistindo a ~a de Sofocles, ninguem se prende,

em momenta algum, ao aspecto desolador do drama: guarda-se

muito mais no coraeao a admiracr30 pela heroina. E em todos os

momentos da hist6ria houve homens que se sentiram estimulados e

encorajados por ela.

Giraudoux, que se havia embriagado das letras gregas, parece

haver reconhecido perfeitamente essa dupla face do tragico, E po-

demos ilustra-lo citando as betas palavras que eJe coloca no f ina l

da sua Elec t ra :

Como se chama aquilo, quando 0 dia desponta, como hoje, e

que:tudo esta em desordem, tudo exaurido, e no entanto 0 ar se

respire; e quando se perdeu tudo, e a cidade esta em c.hamas, e

os inocentes se matam entre si, mas os culpados agomzam, em

algum canto do dia que se levanta? - Pergunte ao mendigo, ele

o sabe. - Isso tern urn belo nome. dona Narses, Isso se chama

aurora.