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verve A tragédia russa 81 a tragédia russa (uma revisão e uma perspectiva – ou panorama) alexander berkman * Prefácio Nós vivemos em uma época na qual duas civilizações estão lutando pela existência. A sociedade de hoje atraca- se mortalmente com o Novo Ideal. A Revolução Russa foi apenas o primeiro combate sério das duas forças, cuja luta deve continuar até o triunfo final de um ou de outro. A Revolução Russa falhou — falhou em seu propósito último. Mas esta falha é temporária. No que se refere a *Imigrante russo que se tornou proeminente anarquista nos EUA. Cometeu um atentado contra um industrial durante uma greve operária e passou 14 anos na prisão. Em 1919, devido a contundentes manifestações contra a guerra, foi deportado para a Rússia junto com vários anarquistas, inclusive Emma Goldman, sua companheira na vida amorosa e política. Depois de dois anos, deixaram o país e lideraram a crítica libertária aos rumos autoritários da revolução russa e das ações do Partido Comunista. Gravemente doente, Berkman morreu aos 66 anos, na França, em 1936. verve, 12: 81-115, 2007

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A tragédia russa

81

a tragédia russa (uma revisão e umaperspectiva – ou panorama)

alexander berkman*

Prefácio

Nós vivemos em uma época na qual duas civilizaçõesestão lutando pela existência. A sociedade de hoje atraca-se mortalmente com o Novo Ideal. A Revolução Russafoi apenas o primeiro combate sério das duas forças, cujaluta deve continuar até o triunfo final de um ou de outro.

A Revolução Russa falhou — falhou em seu propósitoúltimo. Mas esta falha é temporária. No que se refere a

*Imigrante russo que se tornou proeminente anarquista nos EUA. Cometeu umatentado contra um industrial durante uma greve operária e passou 14 anos naprisão. Em 1919, devido a contundentes manifestações contra a guerra, foideportado para a Rússia junto com vários anarquistas, inclusive EmmaGoldman, sua companheira na vida amorosa e política. Depois de dois anos,deixaram o país e lideraram a crítica libertária aos rumos autoritários da revoluçãorussa e das ações do Partido Comunista. Gravemente doente, Berkman morreuaos 66 anos, na França, em 1936.

verve, 12: 81-115, 2007

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revolucionar o pensamento e sentimento das massasda Rússia e do mundo, a minar os conceitos fundamentaisda sociedade existente e a acender a tocha da fé e daesperança pelos Dias Melhores, a Revolução Russa temsido de incalculável valor educativo e inspirador para ahumanidade.

Embora a Revolução Russa tenha falhado em atingirsua verdadeira meta, permanecerá para sempre ummagnífico evento histórico. E, mesmo assim — tremendacomo é — não passa de um incidente na gigantesca guerraentre dois mundos.

A guerra continua e continuará. Nesta guerra ocapitalismo já está enfrentando seu declínio. Ainda maiscom o capitalismo, o governo político centralizado, oEstado, está também em declínio — e esta é a lição maissignificativa da Revolução Russa como eu a considero.

Este panfleto foi recentemente publicado em holandês.Daí, um crítico da Holanda me escreveu: “Você falhou emmostrar a lição plena da Revolução Russa.”

Eu concordo com ele. Serão necessários diversosvolumes para fornecer a “lição plena” de um evento tãotremendo como a Revolução Russa. Meu propósito é maismodesto. Será necessário o esforço de muitas mentespara esclarecer ao mundo o significado da RevoluçãoRussa, a potencialidade dos enlaces de ideais e idéiasenvolvidas nisso. Eu apenas quero contribuir com minhapequena parte.

Eu decidira incorporar o resultado de meus dois anosde estudo e observação na Rússia em uma série depanfletos sob o título geral de Série da Revolução Russa.1

A Série englobará uma revisão crítica das fases maisimportantes da revolução conjuntamente com umaanálise construtiva de algumas das lições vitais que delaforam extraídas.

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Se a Série aqui presente for capaz de tornar as coisasmais claras em relação à Rússia, se ajudar ostrabalhadores a enxergar a trilha da liberação um poucomais reta, então considerarei meu esforço inteiramenterecompensado.

Maio de 1922.

I

É extremamente surpreendente como, fora daRússia, pouco é conhecido acerca da situação e dascondições atuais preponderantes no país. Mesmopessoas inteligentes, especialmente entre ostrabalhadores, têm as mais confusas idéias sobre ocaráter da Revolução Russa, seu desenvolvimento eseu status político e socioeconômico atual. Compreendera Rússia e o que tem acontecido lá desde 1917 temsido por demais inadequado, para dizer o mínimo.Embora a grande maioria das pessoas que se colocacontra ou a favor da revolução, fala ainda contra ou afavor dos bolchevistas, em quase lugar algum, porém,há clareza e conhecimento concreto em relação aosassuntos vitais envolvidos. Genericamente falando, ospontos de vista expressados — amigáveis ou não — estãobaseados em informação incompleta e não confiável,freqüente-mente falsa, sobre a Revolução Russa, suahistória e a fase atual do regime bolchevista. Mas, emgeral, não apenas as opiniões contempladasfundamentaram-se em dados errados ou insuficientes;com freqüência são profundamente avivadas — oumelhor, distorcidas —, por sentimentos partidários,preconceitos pessoais e interesses de classe. Noconjunto, é a completa ignorância que caracteriza deuma forma ou de outra, a atitude da grande maioria dopovo em relação à Rússia e seus eventos.

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E, apesar disso, entender a situação russa é umconhecimento dos mais vitais ao progresso e ao bem-estarfuturo do mundo. De uma correta avaliação da RevoluçãoRussa, do papel dos bolchevistas e dos outros partidos emovimentos políticos nela, e das causas que acarretarama situação atual — em suma, de uma concepção acabadade todo problema — dependem quais lições podemos tirardos grandes eventos históricos de 1917. Essas lições irão,para o bem ou para o mal, afetar as opiniões e as atividadesde grandes massas da humanidade. Em outras palavras, oadvento de mudanças sociais — e o trabalho e esforçorevolucionários que as precedem e as acompanham —serão profunda e essencialmente influenciadas pelacompreensão popular do que realmente aconteceu naRússia.

É geralmente admitido que a Revolução Russa é o maisimportante evento histórico desde a Grande RevoluçãoFrancesa. Eu até estou inclinado a pensar que, daperspectiva de suas conseqüências potenciais, a revoluçãode 1917 é o mais significativo fato em toda históriaconhecida da humanidade. É a única revolução quealmejou de fato uma revolução social mundial, é a únicaque realmente aboliu o sistema capitalista na escala amplade um país e fundamentalmente alterou todas relaçõessociais existentes dentro dele. Um evento de tal magnitudehistórica e humana não pode ser julgado sob um estreitoponto de vista partidário. Nenhum sentimento subjetivonem preconceito devem ser conscientemente permitidospara enfeitar as atitudes de alguém. Acima de tudo, cadafase da revolução deve ser cuidadosamente estudada, semviés ou idéia pré-concebida, e todos os fatos consideradosdesapaixonadamente, para nos permitir formar umaopinião justa e adequada. Eu creio — estou firmementeconvicto — que, deixando de lado qualquer outraconsideração, apenas a verdade total sobre a Rússia podeser de extremo auxílio.

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Infelizmente, como regra geral, tal não tem sido ocaso até agora. É natural que a Revolução Russa desperte,de um lado, os mais amargos antagonismos, e de outro,a mais apaixonada defesa. Mas o partidarismo, emqualquer campo, não é um juiz objetivo. Falandofrancamente, as mentiras mais atrozes tanto quantoridículos contos de fadas têm sido espalhados sobre aRússia e continuam a ser espalhados até hoje.Naturalmente não deve surpreender que os inimigosda Revolução Russa, os inimigos da revolução enquantotal, os reacionários e seus instrumentos, tenhaminundado o mundo com as mais malévolas falsificaçõesdos eventos ocorridos na Rússia. Sobre eles e sua“informação” não preciso gastar nenhuma palavra amais: aos olhos das pessoas inteligentes e honestas,eles já foram desacreditados há muito tempo.

Mas, triste dizer, que são os pretensos amigos daRússia e da Revolução Russa que têm feito o maiorestrago à revolução, ao povo russo e aos melhoresinteresses das massas trabalhadoras do mundo emvirtude do seu exercício de um zelo sem o feitio daverdade. Alguns inconscientemente, devido à ignorância,mas a maioria deles consciente e intencionalmente temmentido de modo persistente e vivo, desafiando todos osfatos, com a noção errada de que estão “ajudando aRevolução”. Razões referentes à “conveniência política”,à “diplomacia bolchevista”, à alegada “necessidade domomento” e, freqüentemente, motivos de consideraçõesmenos altruístas os têm movido. A única consideraçãolegítima de homens decentes, de amigos reais daRevolução Russa e da emancipação humana, — assimcomo a de uma história confiável — a consideração pelaverdade, eles têm ignorado completamente.

Há honrosas exceções, infelizmente muito poucas:suas vozes têm sempre se perdido na selvageria do

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equívoco, da falsidade e do exagero. Mas a maioriadaqueles que visitaram a Rússia simplesmentementiram sobre as condições naquele país, — repito issodeliberadamente. Alguns mentiram pois não tiveramconhecimento de nada melhor, não tiveram o temponem a oportunidade de estudar a situação, de aprenderos fatos. Fizeram excursões ligeiras, passando dez diasou poucas semanas em Petrogrado ou Moscou, semfamiliaridade com a língua, nem por um momentoentrando em contato com a vida real das pessoas, ouvindoe vendo apenas o que lhes era dito ou mostrado pelosprestativos oficiais que os acompanhavam em cadapasso. Em muitos casos estes “estudantes” da Revoluçãoeram verdadeiros inocentes no exterior, ingênuos aponto do ridículo. Estavam tão sem familiaridade com oambiente, que na maioria dos casos, não tinham nemmesmo a mais débil suspeita que seu afável“intérprete”, tão dedicado em “mostrar e explicar tudo”,era na realidade um membro dos “homens de confiança”especialmente designado para “guiar” visitantes dedestaque. Muitos desses visitantes escreveram efalaram copiosamente sobre a Revolução Russa, compouco conhecimento e muito menos compreensão.

Houve outros que tiveram tempo e oportunidade, ealguns deles realmente tentaram estudar a situaçãoseriamente, e não com a mera intenção de obteradequada “fonte” jornalística. Durante os dois anos deminha estadia na Rússia, eu tive oportunidade de entrarem contato pessoal com quase todos visitantesestrangeiros, com as missões sindicais, e compraticamente cada delegado da Europa, Ásia, América eAustrália que se reuniu em Moscou para comparecerao Congresso da Internacional Comunista e aoCongresso Sindical Revolucionário ocorrido lá anopassado, 1921. A maioria deles pôde ver e entender oque estava acontecendo no país. Mas, de fato, foi uma

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rara exceção alguém que tivesse visão e coragemsuficientes para se dar conta que apenas a verdadeintegral poderia servir aos melhores interesses dasituação.

Como regra geral, entretanto, os diversos visitantesda Rússia foram de modo sistemático extremamentedescuidados com a verdade no momento em quecomeçaram a “iluminar” o mundo. Suas afirmaçõesresvalaram, freqüentemente, a uma idiotice criminosa.Pense em George Lansbury (editor do “Daily Herald” deLondres), por exemplo, afirmando que os ideais defraternidade, igualdade e amor pregados por JesusNazareno estavam sendo realizados na Rússia e isso aomesmo tempo em que Lênin estava lamentando a“necessidade do comunismo militar imposto a nós pelaintervenção e bloqueio dos Aliados”. Considere-se a“igualdade” que dividiu a população da Rússia em 36categorias, de acordo com a ração e salários recebidos.Outro inglês, um conhecido escritor, enfaticamentedeclarou que tudo estaria bem na Rússia, não fosse pelainterferência externa, enquanto que distritos inteirosdo Leste, Sul e na Sibéria, alguns mais extensos que aFrança, estavam em rebelião armada contra osBolchevistas e sua política agrária. Outros literatosestavam glorificando o “sistema soviético livre” daRússia, enquanto 18 mil de seus filhos tombavammortos em Kronstadt na luta para alcançar sovieteslivres.

Mas para que ampliar esta prostituição literária? Oleitor facilmente se recorda da legião de Ananias2 quetem arduamente negado a existência das coisas queLênin tentou explicar como inevitáveis. Eu sei quemuitos delegados e outros acreditaram que a situaçãoreal russa, se conhecida no exterior, poderia fortalecera mão dos reacionários e intervencionistas. Forjar uma

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crença, entretanto, não exigiu pintar a Rússia como umverdadeiro Eldorado proletário. Mas a época em quepoderia ter sido considerado desaconselhável falarplenamente da situação russa, passou há tempos. Esteperíodo terminou, foi relegado aos arquivos da históriapela introdução da “nova política econômica”. Agorachegou a época de aprender a lição plena da revolução eas causas do seu desastre. Para que possamos evitar oserros cometidos (Lênin disse francamente que sãomuitos), para que sejamos capazes de adotar seusmelhores traços, devemos conhecer toda verdade sobrea Rússia.

É por isso que considero as atividades de certosproletários como categoricamente criminosas etraidoras dos verdadeiros interesses dos trabalhadoresdo mundo. Eu me refiro aos homens e mulheres, algunsdeles delegados do Congresso organizado em Moscou em1921, que ainda continuam a propagar as “amigáveis”mentiras sobre a Rússia, iludem com quadros róseosacerca das condições de trabalho naquele país e buscaminduzir, mesmo, os trabalhadores de outras terras amigrarem para a Rússia. Eles estão fortalecendo aespantosa confusão já existente na mente popular,enganando o proletariado com falsos relatos sobre opresente e promessas vãs para o futuro próximo. Estãoperpetuando a perigosa ilusão de que a revolução estáviva e continuamente ativa na Rússia. É uma tática pordemais desprezível. Claro que é fácil para um lídertrabalhador norte-americano, atuando para elementosradicais, escrever ardorosos relatos sobre a condição dostrabalhadores russos, enquanto está sendo entretido noLuxe, o mais lucrativo hotel de Moscou, às expensas doEstado. Certamente ele pode insistir que “dinheiro nãoé necessário”. Afinal ele não recebe livre de encargostudo que seu coração deseja? Ou por que não deveria opresidente dos sindicatos dos agulheteiros não afirmar

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que os trabalhadores russos desfrutam de plenaliberdade da palavra? Ele é cauteloso em não mencionarque apenas os comunistas e os elementos de confiançaforam permitidos dentro do âmbito de conversa enquantoque o distinto visitante estava “investigando” ascondições das fábricas.

Que a história seja misericordiosa com eles.

II

Para que o leitor possa formar uma justa estimativaacerca do que direi a seguir, penso ser necessário esboçar,resumidamente, minha atitude mental no momento deminha chegada na Rússia.

Foi há dois anos atrás. Um governo democrático, “o maislivre na terra”, deportou-me junto com outros 248 políticos,do país onde vivi por mais de trinta anos. Eu haviaprotestado enfaticamente contra o erro moral perpetradopor uma alegada democracia em utilizar métodos quecondenou veementemente no caso da autocracia czarista.Eu condenei a deportação de políticos como um ultraje aosmais fundamentais direitos do homem, e eu lutei contraisso como uma questão de princípio.

Mas meu coração estava radiante. Já na explosão darevolução de fevereiro eu almejara ir à Rússia. Mas o casoMooney3 me deteve: eu não estava inclinado a abandonara luta. Então, eu mesmo fui feito prisioneiro pelos EstadosUnidos e penalizado por minha oposição à carnificinamundial. Durante dois anos, a hospitalidade forçada dapenitenciária federal de Atlanta, Georgia, impediu minhapartida. Seguiu-se a deportação.

Meu coração estava radiante, eu disse isso? Fracaspalavras para expressar a alegria apaixonada que me

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inundou quando da certeza da visita à Rússia! Eu iriapara o país que varreu o czarismo para fora do mapa, euestava preste a contemplar a terra da revolução social!Poderia haver maior alegria a alguém que, desde a tenrainfância, fôra um rebelde contra a tirania, cujos sonhosincertos da juventude haviam previsto fraternidade efelicidade humanas, cuja vida inteira estava devotadaà revolução social?

A viagem foi um alento. Embora nós fossemosprisioneiros, tratados com severidade militar e o “Buford”uma velha banheira furada ameaçando repetidamentenossas vidas durante o mês da Odisséia, entretanto, opensamento de que estávamos a caminho da terra dapromissão revolucionária mantinha todo grupo dosdeportados com bom humor e uma agitação em virtudeda expectativa do grande dia que estava para chegar embreve. Longa, longa foi a viagem, vergonhosas ascondições às quais fomos forçados a enfrentar:amontoados abaixo do convés, vivendo em constanteumidade e ar viciado, alimentados pelas mais fracasrações. Nossa paciência estava quase exaurida, nãoobstante nossa coragem persistente e, por fim,alcançamos nosso destino.

Era 19 de Janeiro de 1920, quando tocamos o solo daRússia Soviética. Um sentimento de solenidade, deveneração, quase me aniquilou. Assim devem tersentido meus piedosos antepassados entrando pelaprimeira vez no Santo dos Santos do Templo deJerusalém.4 Um forte impulso me fez ajoelhar e beijar ochão — o chão consagrado pelo sangue vivo de geraçõesde sofredores e mártires, consagrado outra vez pelosrevolucionários triunfantes do meu tempo. Nunca antes,nem mesmo quando fui solto do horrível pesadelo de 14anos de prisão, estive eu tão profundamenteemocionado, ansiando por abraçar a humanidade, por

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depositar meu coração a seus pés, por dar minha vidamil vezes, se fosse possível, a serviço da RevoluçãoSocial. Foi o dia mais sublime da minha vida.

Fomos recebidos de braços abertos. O hinorevolucionário tocado pela Banda Militar vermelha nosrecepcionou entusiasticamente enquanto cruzávamosa fronteira russa. Os “vivas” dos defensores da Revoluçãocom seus gorros vermelhos ecoaram através dasflorestas, atravessando as distâncias como ameaçastrovejantes. Com a cabeça inclinada em reverência eupermaneci na presença dos símbolos visíveis daRevolução Triunfante. Com cabeça e coraçãoreverentes. Meu espírito estava orgulhoso, sossegado,porém, com a consciência da genuína Revolução Social.Quanta profundidade, quanta grandeza residiam nisto,que possibilidades incalculáveis estendiam-se em seupanorama!

Eu ouvi a tranqüila voz de minha alma: “Que tuavida pregressa possa ter contribuído, ainda que pouco,para a realização do grande ideal humano, para isso,para seu bem sucedido começo.” Conscientizei-me dagrande felicidade oferecida a mim: fazer, trabalhar,ajudar com cada fibra do meu ser a completa expressãorevolucionária deste povo maravilhoso. Eles lutarame ganharam. Eles proclamaram a Revolução Social. Issosignificou que a opressão foi encerrada, que a submissãoe escravidão, as maldições gêmeas dos homens, foramabolidas. A esperança de gerações, de épocas, finalmentefoi realizada, a justiça foi estabelecida sobre a terra, aomenos sobre a parte em que está a Rússia.

Mas os anos de Guerra e revolução exauriram o país.Há sofrimentos e fome, e muita necessidade de coraçõesfirmes e mãos ansiosas por fazer e ajudar. Meu coraçãocanta por alegria. Ah! Eu me doarei inteiro, completamente,ao serviço do povo; eu me rejuvenescerei e voltarei a ser

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jovem novamente a cada esforço maior, na mais duratarefa, para o auxílio da prosperidade comum. Minhaprópria vida eu consagrarei à realização da maioresperança do mundo, a Revolução Social.

Logo no primeiro posto do Exército russo, umaassembléia foi preparada para nos recepcionar. O amplosalão, lotado de soldados e marinheiros, as mulheresuniformizadas no palanque dos oradores, os discursos,toda atmosfera palpitando com a Revolução em ação —isso tudo deixou uma profunda impressão em mim.Estimulado a dizer algo, eu agradeci aos camaradasrussos pela calorosa recepção de boas vindas aosdeportados americanos, congratulei-os por sua lutaheróica e expressei a minha grande alegria em estarjunto a eles. E então todo meu pensamento esentimentos fundiram-se em uma só sentença:“Queridos camaradas,” — eu disse — “viemos aqui nãopara ensinar, mas para aprender, aprender e ajudar.”

Desse modo eu entrei na Rússia. Desse modosentiam meus colegas deportados.

Eu permaneci dois anos. O que aprendi, aprendigradualmente, a cada dia, em várias partes do país. Eutive oportunidades excepcionais de observação e estudo.Eu fiquei perto dos líderes do Partido Comunista,associei-me com os mais ativos homens e mulheres,participei de seus trabalhos, e viajei amplamente atravésdo país nas mais favoráveis condições para contatopessoal com a vida dos trabalhadores e camponeses. Aprincípio não pude acreditar que o que eu via era real.Não podia acreditar nos meus olhos, nos meus ouvidos,no meu julgamento. Tal qual aqueles espelhosdeformantes que fazem você parecer horrivelmentemonstruoso, assim a Rússia parecia refletir a Revoluçãocom uma assustadora perversão. Era uma caricaturapavorosa da vida nova, da esperança do mundo. Eu não

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entrarei agora em descrições detalhadas das minhasprimeiras impressões, das minhas investigações e dolongo processo que desembocou na minha convicçãofinal. Eu lutei sem descanso, amargamente, contra mimmesmo. Durante dois anos eu lutei. O mais difícil éconvencer alguém de algo que ele não quer serconvencido. E eu admito, eu não quis ser convencidoque a revolução na Rússia se tornara uma miragem,uma perigosa decepção. Por muito tempo eu luteiduramente contra esta convicção. No entanto as provasestavam se acumulando e cada dia trazia maisdestrutivos testemunhos. Contra minha vontade, contraminhas esperanças, contra o fogo sagrado da admiraçãoe entusiasmo pela Rússia que queimava dentro de mim,eu fui convencido que a Revolução Russa fora levada àmorte.

De que modo e por quem?

III

Tem sido dito por alguns escritores que a ascensãobolchevista ao poder decorreu de um coup de main5, e adesconfiança fora expressa referindo-se à naturezasocial da transformação de Outubro.

Nada poderia estar mais longe da verdade. Enquantorealidade histórica, o grande evento conhecido comoRevolução de Outubro foi no sentido mais profundo, umarevolução social. Caracterizou-se por todos princípios deuma tal fundamental mudança. Foi efetuada, não poralgum partido político, mas pelo próprio povo, de um modoque transformou radicalmente todas relaçõessocioeconômicas e políticas existentes até então. Masela não aconteceu em outubro. Esse mês testemunhouapenas a “sanção legal” formal dos eventos revolucionáriosque a precederam. Por semanas e meses antes disso, a

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real Revolução estava marchando por toda Rússia: oproletariado urbano estava tomando posse das lojas efábricas, enquanto os camponeses expropriavam asgrandes propriedades e faziam a terra voltar para seu usopróprio. Ao mesmo tempo, delegações de trabalhadores,comissões de camponeses e sovietes brotavam por todopaís e aí começou a transferência de poder do governoprovisório aos sovietes. Isto teve lugar, primeiro emPetrogrado, a seguir em Moscou e rapidamente se espalhoupela região do Volga, do distrito de Ural e para a Sibéria. Avontade popular encontrou expressão no slogan Todo poderaos Sovietes, e continuou varrendo pela largura e extensãodo país. O povo levantou-se, a Revolução estavaacontecendo. O princípio central da situação foi captadopela proclamação do Congresso dos Sovietes do Norte: “Ogoverno provisório de Kerensky deve ir; os Sovietes são oúnico poder!”

Era 10 de Outubro. Praticamente todo poder efetivo jáestava com os Sovietes. Em Julho a revolta de Petrogradocontra Kerensky fora esmagada, mas em agosto ainfluência dos trabalhadores revolucionários e daguarnição era suficientemente forte para permitir que elesobstruíssem o ataque planejado por Korniloff. O Soviete dePetrogrado ganhava força dia após dia. Em 16 de outubro,organizou seu próprio Comitê Revolucionário Militar, umato de desafio e de aberta provocação ao governo. O Soviete,por intermédio do seu Comitê Revolucionário Militar,preparou-se para defender Petrogrado contra o governo decoalizão de Kerensky e o possível ataque do General Kaledine seus cossacos contra-revolucionários. Em 22 de outubro,toda população proletária de Petrogrado, com o apoiosolidário das tropas, manifestou-se por toda cidade contrao governo e a favor de Todo poder aos Sovietes.

O Congresso dos Sovietes de todas as Rússias estavapara abrir em 25 de outubro. O governo provisório,

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sabendo do iminente perigo à própria existência, apeloupara uma ação drástica. Em 23 de outubro, o soviete dePetrogrado ordenou ao Gabinete de Kerensky a renunciardentro de 48 horas. Levado ao desespero, Kerenskyencarregou-se de suprimir a imprensa da revolução,prender os mais proeminentes revolucionários dePetrogrado, e remover os ativos Comissariados doSoviete. O governo contava com as “fiéis” tropas e a jovemnata dos estudantes das escolas militares. Mas era tardedemais: a tentativa de segurar o governo falhou. Durantea noite de 24 e 25 de outubro (6 e 7 de novembro) ogoverno de Kerensky foi dissolvido — pacificamente, semderramamento de sangue — e a supremacia exclusivados sovietes foi estabelecida. O Partido Comunistaocupou o poder. Foi o auge político da Revolução Russa.

IV

Vários fatores contribuíram para o sucesso darevolução. Para começar, ela não encontrou nenhumaoposição ativa: a burguesia russa era desorganizada efraca e sem disposição militante. Mas as principaisrazões consistem no envolvente entusiasmo com o qualos slogans revolucionários atiçaram todo povo. “Fora coma guerra!”, “Paz Já!”, “A terra para o camponês, a fábricapara o operário!”, “Todo poder aos Sovietes!” — esses eramexpressão do grito da alma apaixonada e das necessidadesmais profundas das grandes massas. Nenhum poderpoderia conter seu maravilhoso efeito.

Outro fator muito potente foi a união de várioselementos revolucionários em oposição ao governo deKerensky. Bolchevistas, anarquistas, o Partido SocialistaRevolucionário de esquerda, os numerosos políticos livresda prisão e do exílio siberiano e milhares de emigrantesrevolucionários retornando, todos trabalharam durante

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os meses de fevereiro a outubro em direção a uma metacomum.

Mas se “foi fácil começar” a revolução, como Lêninhavia dito em um dos seus discursos, fomentá-la, levá-la ao termo de sua lógica conclusão foi outro e mais di-fícil assunto. Duas condições eram essenciais para talconsumação: união contínua de todas as forças revolu-cionárias e a aplicação da iniciativa voluntária do paíse das melhores energias para o importante trabalho danova construção social. Sempre deve ser lembrado, ebem lembrado, que a revolução não implica apenas des-truição. Implica destruição mais construção, com gran-de ênfase no mais. Infelizmente, os métodos e princípi-os bolchevistas logo foram levados a se mostrarem umobstáculo, um atraso em relação às atividades criativasdas massas.

Os bolchevistas são marxistas. Embora nos dias deoutubro eles tivessem aceitado e proclamado lemasanarquistas (ação direta pelo povo, expropriação, sovieteslivres e assim por diante), não fora sua filosofia social queditou esta atitude. Eles sentiram que a pulsação popular— as ondas elevadas da Revolução os levaram muito alémde suas teorias. Mas eles permaneceram marxistas. Decoração eles não tinham nenhuma fé no povo e em suasiniciativas criadoras. Como os social-democratas elesdesconfiavam do campesinato, contando um pouco maiscom o apoio da pequena minoria revolucionária entre oselementos da indústria. Eles defenderam a AssembléiaConstituinte, e apenas quando se convenceram que nãoteriam maioria lá e, portanto, não seriam capazes de ter opoder de Estado em suas mãos, subitamente decidirampela dissolução da Assembléia, embora este passo fosseuma refutação e negação de princípios marxistasfundamentais. (Incidentalmente, foi um anarquista,Anatoly Zheleznyakov, no comando da guarda do palácio,

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que se encarregou da iniciativa no assunto). Enquantomarxistas, os bolchevistas insistiram na nacionalizaçãodo país: propriedade, distribuição e controle passariampelas mãos do Estado. Eram em princípio opostos àsocialização, e apenas a pressão dos socialistasrevolucionários de esquerda (a facção Spiridonova-Kamkov), cuja influência entre os camponeses eratradicional, forçaram os Bolchevistas a “engolir oprograma agrário do conjunto dos socialistasrevolucionários”, como Lênin posteriormente colocou.

Desde os primeiros dias de seu acesso ao poderpolítico, as tendências marxistas começaram a semanifestar, em detrimento da Revolução. A desconfiançasocial-democrata em relação aos camponesesinfluenciou seus métodos e medidas. Nas Conferênciasde todas as Rússias os camponeses não receberamrepresentação igual aos dos trabalhadores industriais.Não apenas os especuladores e exploradores das cidades,mas também toda população agrária foi estigmatizadapelos bolchevistas como “pequenos patrões” e“burgueses”, “incapazes de manter o passo com oproletariado no caminho para o socialismo”. O governobolchevista colocou de lado os representantescamponeses nos Sovietes e na Conferência Nacional,buscaram obstruir seus esforços independentes esistematicamente estreitaram o escopo e as atividadesdo Comissariado da Terra, até então de longe, o fatormais vital na reconstrução da Rússia. (O Comissariadoera então presidido por um socialista revolucionário deesquerda). Inevitavelmente esta atitude levou a muitainsatisfação por parte das grandes massas camponesas.O mujique russo é simples e ingênuo, mas com oinstinto do homem primitivo, ele rapidamente percebeum erro e nenhuma requintada dialética pode movê-lode sua convicção uma vez esta estabelecida. A pedrainaugural do credo marxista, a ditadura do proletariado,

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serviu como uma afronta e injúria ao campesinato. Elesdemandaram uma partilha igual na organização eadministração dos assuntos do país. Não tinham sidoeles já suficientemente escravizados, oprimidos eignorados? O camponês ressentia-se da ditadura doproletariado como discriminação contra ele. “Se aditadura deve existir”, argumentava, “por que não a detodos que trabalham, do trabalhador urbano e docamponês, juntos?”

Então veio a paz de Brest-Litovsk. Devido ao longoalcance de seus resultados, esta se mostrou ser o golpemortal na Revolução. Dois meses antes, em dezembrode 1917, Trotsky recusara, com o gesto elegante de nobreindignação, a paz oferecida pela Alemanha em condiçõesmuito mais favoráveis à Rússia. “Nós não levamosadiante nenhuma guerra, nós não assinamos a paz” —tinha ele dito, e a Rússia revolucionária o aplaudiu.“Nenhum compromisso com o imperialismo alemão,nenhuma concessão”, ecoava por toda extensão do país,e o povo permaneceu pronto para defender a revoluçãoaté a morte. Mas agora, Lênin exigiu a ratificação deuma paz que significou a traição mais mesquinha emrelação à maior parte da Rússia, da Finlândia, Letônia,Lituânia, Ucrânia, Rússia Branca, Bessarábia — todaselas ficaram para ser entregues à opressão e exploraçãodo invasor alemão e de sua própria burguesia. Foi algomonstruoso — o sacrifício imediato dos princípios darevolução e também de seus interesses.

Lênin insistiu na ratificação, alegando que a Rússiaprecisava de uma “pausa para respirar” que a Rússiaestava exausta e que a paz poderia trazer o “oásisrevolucionário” para reunir forças para novos esforços.Radek denunciou a aceitação das condições de Brest-Litovsk como traição da Revolução de Outubro. Trotskydiscordou de Lênin. As forças revolucionárias racharam.

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Os socialistas revolucionários de esquerda, a maioriados anarquistas, e muitos dos elementos revolucionáriosnão partidários estavam amargamente contrários a fazera paz com o imperialismo, especialmente nos termosditados pela Alemanha. Declararam que tal paz seriafatal para a Revolução; que o princípio “paz semanexações” não deveria ser sacrificado; que as condiçõesalemãs envolviam a mais baixa traição aos operários ecamponeses das províncias demandadas pelosprussianos; que a paz sujeitaria o conjunto da Rússiaao imperialismo alemão, que os invasores tomariamposse do pão ucraniano e do carvão de Don e levariam aRússia à ruína econômica.

Mas a influência de Lênin era potente. Ela prevaleceu.O tratado de Brest-Litovsk foi ratificado pelo 4º CongressoSoviético.

Foi Trotsky o primeiro que afirmou, ao recusar ostermos da paz alemã oferecidos em dezembro de 1917,que os operários e camponeses, inspirados e armadospela revolução, pela luta de guerrilhas, poderiam derrotarqualquer exército invasor. Os socialistas revolucionáriosde esquerda, agora chamados por levantes camponesespara se opor aos alemães, confiantes de que nenhumexército poderia conquistar o ardor revolucionário de umpovo lutando pelos frutos de sua grandiosa revolução.Operários e camponeses reagiram ligeiro para ajudarUcrânia e Rússia Branca, então valentemente, lutandocontra o invasor alemão. Trotsky ordenou o ExércitoRusso a perseguir e eliminar estas unidades

Seguiu-se o assassinato de Mirbach.6 Foi o protestoe o enfrentamento do Partido Socialista Revolucionáriode Esquerda contra o imperialismo prussiano dentro daRússia. O governo bolchevista iniciou medidasrepressivas e agora se sentia, e de fato estava devendoobrigações à Alemanha. Dzerzhinsky, chefe da Comissão

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Extraordinária de todas as Rússias, 7 solicitou a entregado terrorista. Foi uma situação única nos anaisrevolucionários: um partido revolucionário no poderexigindo de outro partido revolucionário, com o qual atéentão estiveram cooperando, a prisão e a punição deum revolucionário por executar o representante de umgoverno imperialista! A paz de Brest-Litovsk colocou osbolchevistas na posição anômala de gendarme do Kaiser.O Partido Socialista Revolucionário respondeu à demandade Dzerzhinsky prendendo-o. Este ato e os conflitosarmados que se seguiram (embora insignificantes em si)foram politicamente explorados a fundo pelos bolchevistas.Eles declararam que isso fora uma tentativa do PartidoSocialista Revolucionário de tomar as rédeas do governo.Declararam aquele partido como fora da lei e oextermínio começou.

Estes métodos e táticas bolchevistas não foramacidentais. Logo se tornou evidente que esmagarqualquer forma de expressão em desacordo com ogoverno é a política estabelecida pelo Estado Comunista.Depois da ratificação da paz de Brest-Litovsk, o PartidoSocialista Revolucionário de Esquerda retirou seusrepresentantes do Soviete dos Comissários do Povo.Assim, os bolchevistas permaneceram no controleexclusivo do governo. Sob um pretexto ou outro, seseguiu a mais arbitrária e cruel supressão de todosoutros partidos e movimentos políticos. Os menchevistase os socialistas revolucionários de direita já tinham sidoliquidados há um tempo atrás, junto com a burguesiarussa. Agora era a vez dos elementos revolucionários —o Partido Socialista Revolucionário de Esquerda, osanarquistas, os revolucionários não-partidários.

Mas a “liquidação” destes envolveu muito mais doque a supressão de pequenos grupos políticos. Esseselementos revolucionários têm fortes seguidores, os

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socialistas revolucionários de esquerda entre oscamponeses, os anarquistas, principalmente, entre oproletariado urbano. As novas táticas bolchevistasincluem sistemática erradicação de cada sinal deinsatisfação, sufocando toda crítica e esmagando esforçoou opinião independente. Com esta fase, os bolchevistascomeçam a ditadura do proletariado, como isso épopularmente caracterizado na Rússia. A atitude dogoverno em relação ao campesinato é agora dehostilidade aberta. Mais crescente ainda é o uso daviolência. Sindicatos são dissolvidos, freqüentementepela força, quando a lealdade ao Partido Comunista écolocada sob suspeita. As cooperativas são atacadas. Estaorganização especial, o vínculo fraterno entre cidade ecampo, cujas funções econômicas são tão vitais para osinteresses da Rússia e da Revolução, é obstruída emseu trabalho importante de produção, troca e distribuiçãodos bens essenciais da vida, é desorganizada, e por fim,completamente abolida.

Prisões, buscas noturnas, zassada (bloqueio de casa),execuções, estavam na ordem do dia. A ComissãoExtraordinária (Tcheka), originalmente organizada paracombater contra-revolucionários e a especulação, temse tornado o terror de cada operário e camponês. Seusagentes secretos estão em toda parte, sempredesenterrando “tramas”, o que significa razstrel (disparos)contra milhares sem audiência, julgamento ou apelação.Da pretensa defesa da Revolução, a Tcheka se tornou aorganização mais odiada, cuja injustiça e crueldadeespalham terror sobre todo país. Toda poderosa, sem queninguém se responsabilizasse por ela, a Tcheka é umalei em si mesma, possui seu próprio exército, assumepoderes de polícia, administrativos, judiciais eexecutivos e pratica suas próprias leis, as quais superama do Estado oficial. As prisões e campos de concentraçãoestão lotados com supostos contra-revolucionários e

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especuladores, 95 por cento deles são operáriosfamintos, rudes camponeses e mesmo crianças de 10 a14 anos (Veja “Relatórios das investigações sobreprisões”), Petrogrado: “Krasnaya Gazetta” e “Pravda”;Moscou: “Pravda”, maio, junho, julho, 1920). Na mentepopular comunismo tornou-se “tchekismo”, este últimoo epítome de tudo que é vil e brutal. A semente dosentimento contra-revolucionário semeou-se por todaparte.

As outras políticas do “governo revolucionário”mantêm o passo junto com estes desdobramentos. Acentralização mecânica, correndo sem limites, estáparalisando as atividades industriais e econômicas dopaís. Franze-se a testa em relação às iniciativas, osesforços livres são sistematicamente desencorajados.As grandes massas estão privadas da oportunidade deforjar as políticas da revolução, ou tomar parte daadministração dos assuntos do país. O governo estámonopolizando cada caminho da vida: a revolução seencontra divorciada do povo. A máquina burocrática écriada de modo pavoroso em seu parasitismo,ineficiência e corrupção. Apenas em Moscou esta novaclasse de sovburs (burocratas soviéticos) excede, em1920, o total dos funcionários por toda Rússia no tempodo Czar, em 1914 (Ver “Relatório Oficial de Investigação”,pelo Comitê do Soviete de Moscou, 1921). As políticaseconômicas bolchevistas, efetivamente auxiliadas poresta burocracia, desorganizaram completamente a jácapenga vida industrial do país. Lênin, Zinoviev e outroslíderes comunistas vociferam diatribes contra a novaburguesia soviética, e distribuem sempre novos decretosque fortalecem e aumentam seus números e influência.

O sistema de yedinolitchiye — a administração poruma pessoa — é introduzido. O próprio Lênin é o seucriador e o principal defensor. De agora em diante, os

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comitês das lojas e das fábricas estão para ser abolidos,alijados de todo poder. Cada moinho, mina e fábrica, asferrovias e todas outras indústrias estão para sergerenciadas por uma única cabeça, por um“especialista”, e a velha burguesia czarista estáconvidada a entrar. Os antigos banqueiros, os operadoresda bolsa, os proprietários de moinhos e os patrões dasfábricas tornam-se os administradores, com plenocontrole das indústrias, com poder absoluto sobre ostrabalhadores. Eles são revestidos com autoridade acontratar, empregar e demitir as “mãos”, a dar ou privá-las do payok (ração de alimento), e mesmo a puni-las eencaminhá-las à Tcheka. Os trabalhadores, que lutarame sangraram pela revolução e estiveram dispostos asofrer, congelar e passar fome em sua defesa, seressentem dessa obscura imposição. Consideram issocomo a pior traição. Recusam a ser dominados pelosmesmos proprietários e capatazes que eles expulsaram,nos dias da revolução, para fora das fábricas e quetinham sido tão autoritários e brutais para com eles.Não têm nenhum interesse em tal reconstrução. O “novosistema”, proclamado por Lênin como a salvação dasindústrias, resulta na completa paralisia da vidaeconômica da Rússia, empurra em massa os operáriospara fora das fábricas, e os enche de amargura e ódio atudo “socialístico”. Os princípios e táticas da mecanizaçãomarxista da Revolução estão assinando sua ruína.

O fanático delírio de que um pequeno grupoconspirativo, como este o foi, poderia empreender umatransformação social fundamental resultou noFrankenstein dos bolchevistas. Levou-os às incríveisprofundezas da infâmia e barbarismo. Os métodos de talteoria, seus meios inevitáveis, são duplos: decretos eterror. Nenhum desses meios os bolchevistas regatearam.Como Bukharin, o principal ideólogo comunista militante,ensinou, o terrorismo é o método pelo qual a natureza

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humana capitalista será transformada em adequadacidadania bolchevista. Liberdade é um “preconceitoburguês” (na expressão favorita de Lênin), liberdade de falae de imprensa é desnecessária, perigosa. O governo centralé o depositário de todo conhecimento e sabedoria. Farátudo. O único dever do cidadão é a obediência. A vontadedo Estado é suprema.

Despojada de frases refinadas, destinadas aoconsumo ocidental, esta foi, e ainda é, a atitude práticado governo bolchevista. Este governo, o real e únicogoverno da Rússia, consiste em cinco pessoas, membrosdo círculo interno do Comitê Central do PartidoComunista da Rússia. Esses “cinco grandes” sãoonipotentes. Este grupo, conspiratório em sua verdadeiraessência, tem controlado os destinos da Rússia e daRevolução desde a paz de Brest-Litovsk. O que aconteceuna Rússia, desde então, tem sido em estrito acordo coma interpretação bolchevista do marxismo. Aquelemarxismo, refletido através da megalomania deonisciência e onipotência do círculo interno comunista,ocasionou a presente ruína da Rússia.

Em consonância com essa teoria, os fundamentos daRevolução de Outubro têm sido deliberadamentedestruídos. O objetivo final sendo um poderoso Estadocentralizado com o Partido Comunista no controleabsoluto fez com que a iniciativa popular e as forçascriativas revolucionárias das massas precisassem sereliminadas. O sistema eleitoral foi abolido, primeiro noexército e na marinha, depois nas indústrias. Os sovietesdos camponeses e operários foram castrados etransformados em obedientes comitês comunistas, coma temível espada da Tcheka sempre pendurada sobreeles. A direção dos sindicatos achacada, suas atividadesespecíficas suprimidas, assim estes se tornaram merostransmissores das ordens do Estado. Serviço militar

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obrigatório, acoplado com pena de morte para os objetoresde consciência; trabalho forçado, com um vasto corpo defuncionários para a apreensão e punição de “desertores”;conscrição agrária e industrial do campesinato;comunismo militar nas cidades e o sistema derequisição no campo, caracterizado por Radek comosimplesmente pilhagem de grãos (Correspondência daImprensa Internacional, edição inglesa, vol. 1, nº 17); asupressão dos protestos dos trabalhadores pelosmilitares, o esmagamento com mão de ferro dainsatisfação dos camponeses, chegando até aoaçoitamento destes e ao arrasamento de suas aldeiascom artilharia (nos distritos de Ural, Volga e Kuban, naSibéria e na Ucrânia) — isso caracteriza a atitude doEstado comunista em relação ao povo, isso engloba “aspolíticas construtivas sócio-econômicas” dosbolchevistas.

Apesar de tudo, os operários e camponeses russos,prezando a Revolução pela qual sofreram tanto,mantiveram-se lutando bravamente em numerosasfrentes militares. Estavam defendendo a revolução,assim pensavam. Passaram fome e frio e morreram aosmilhares, na profunda esperança de que as coisasterríveis que os comunistas faziam cessariam em breve.Os horrores bolchevistas foram, de algum modo — orusso simples pensava — o resultado inevitável depoderosos inimigos “do estrangeiro” atacando seu amadopaís. Mas quando as guerras por fim acabassem — o povoingenuamente assim reproduziu a imprensa oficial —os bolchevistas seguramente voltariam à trilharevolucionária na qual entraram em outubro de 1917, atrilha que as guerras os forçaram a abandonartemporariamente.

As massas assim esperavam e agüentaram. E então,enfim, as guerras terminaram. A Rússia esboçou umquase audível suspiro de alívio, alívio vibrando com

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profunda esperança. Foi o momento crucial: o grandeteste começara. A alma de uma nação estava emagitação. Ser ou não ser? E então, a plena realizaçãochegou. O povo permaneceu horrorizado. As repressõescontinuaram, crescendo de modo ainda pior. Asusurpadoras razvyorstka,8 expedições punitivas contraos camponeses, não cessaram sua atividade assassina.A Tcheka estava desencavando mais “conspirações”,execuções estavam ocorrendo como antes. O terrorismoestava desenfreado. A nova burguesia bolchevista agiacom arrogância em relação aos operários e camponeses,a corrupção oficial grassava solta, imensos estoques dealimentos apodreciam em virtude da ineficiênciabolchevista e do monopólio centralizado do Estado — opovo estava faminto.

Os operários de Petrogrado, sempre proeminentes noesforço revolucionário, foram os primeiros a dar voz aseu descontentamento e protesto. Os marinheiros deKronstadt, com base na investigação das demandas doproletariado de Petrogrado, declararam-se solidários aostrabalhadores. Por sua vez, anunciaram seu apoio asovietes livres, sovietes livres da coerção comunista,sovietes que realmente representassem as massasrevolucionárias e dessem voz a suas necessidades. Nasprovíncias centrais da Rússia, na Ucrânia, no Cáucaso,na Sibéria, em toda parte o povo fez conhecer suavontade, expressou suas reclamações, informou osgovernos acerca de suas reivindicações. O Estadobolchevista respondeu com seu argumento usual: osmarinheiros de Kronstadt foram dizimados, os “bandidos”da Ucrânia massacrados, os “rebeldes” do Leste abatidoscom metralhadoras.

Isso feito, Lênin anunciou no X Congresso do PartidoComunista da Rússia (março 1921) que suas políticasanteriores estavam todas erradas. A requisição de

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alimento, razvyorstka, foi pura roubalheira. A violênciamilitar contra o camponês um “sério equívoco”. Ostrabalhadores precisam receber alguma consideração.A burocracia soviética é corrupta e criminosa, umenorme parasita. “Os métodos que vínhamos usandofalharam. O povo, especialmente a população rural, nãoestá ainda à altura dos princípios comunistas. Apropriedade privada deve ser reintroduzida, o livrecomércio estabelecido. Daí, o melhor comunista seraquele que pode impulsionar a melhor barganha”.99

Expressão de Lênin.

V

De volta ao capitalismo!

A situação atual da Rússia é por demais anômala.Economicamente é uma combinação de Estado ecapitalismo privado. Politicamente permanece a“ditadura do proletariado” ou, mais corretamente, aditadura do círculo interno do Partido Comunista.

O campesinato forçou os bolchevistas a fazeremconcessões. Requisições forçadas foram abolidas. Em seulugar foi colocada a taxa em espécie, uma certapercentagem do produto agrícola indo para o governo. Alivre troca foi legalizada e o agricultor passou a trocarou vender seu excedente para o governo, para ascooperativas restabelecidas ou no mercado aberto. Anova política econômica escancarou as portas daexploração. Sancionou o direito de enriquecimento e deacumulação de riquezas. O lavrador passou a lucrar comsuas bem sucedidas colheitas, arrendar mais terra eexplorar o trabalho daqueles camponeses que têm poucaterra e nenhum cavalo para o trabalho. A escassez degado e ceifas ruins em algumas partes do país criaramuma nova classe de “mão de obra agrícola” que se oferece

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ao camponês próspero. As pessoas pobres migram dasregiões em que estão sofrendo de fome e engrossam asfileiras dos miseráveis. A aldeia capitalista está sefazendo.

O trabalhador urbano na Rússia hoje, sob a novapolítica econômica, está exatamente na mesma posiçãocomo em qualquer outro país capitalista. A distribuiçãogratuita de comida está abolida, exceto em algumasindústrias operadas pelo governo. Ao trabalhador sãopagos salários, e estes devem cobrir suas necessidades,como em qualquer outro país. A maioria das indústrias,onde estejam ativas, tem sido deixada ou arrendada paraparticulares. O pequeno capitalista agora tem a mãolivre. Ele tem um largo campo para suas atividades. Oexcedente do lavrador, o produto das indústrias, docomércio camponês e todos os empreendimentos dapropriedade privada estão sujeitos aos processosordinários de negócios, podem ser comprados e vendidos.A competição dentro do comércio varejista leva àincorporação e à acumulação de fortunas nas mãos deindivíduos.

O desenvolvimento do capitalismo urbano não podecoexistir por muito tempo com a ditadura do proletariado.A aliança artificial entre este e o capitalismo estrangeiroprovará em futuro próximo outro fator vital no destinoda Rússia.

O governo bolchevista ainda se esforça em sustentara perigosa ilusão de que a “revolução está progredindo”,que a Rússia é “governada pelos sovietes proletários”,que o Partido Comunista e seu Estado são idênticos aopovo. Ainda estão falando em nome do “proletariado”.Estão buscando dopar o povo com uma nova quimera.Depois de algum tempo — os bolchevistas agora simulam— quando a Rússia tiver se tornado industrialmenteressuscitada, através das realizações de nosso veloz

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capitalismo crescente, a “ditadura do proletariado” terátambém se fortalecido, e retornaremos à nacionalização.Então, o Estado abreviará e suplantará sistematicamenteas indústrias privadas e assim quebrará o poder daburguesia desenvolvida neste ínterim.

“Depois de um período de desnacionalização parcial,uma nacionalização mais forte começa”, dizPreobrazhensky, Comissário das Finanças, em seurecente artigo “As perspectivas da Nova PolíticaEconômica”. Então, “o socialismo será vitorioso na linhade frente inteira”. Radek é menos diplomático.“Certamente nós não pretendemos” — ele nos assegurana sua análise política da situação russa, intitulada “Éa Revolução Russa uma Revolução Burguesa?”(Correspondência da Imprensa Internacional, 16dez.1921) — “que ao final de um ano nós tenhamosconfiscado os bens novamente acumulados. Nossapolítica econômica é baseada em um período mais longode tempo... Estamos conscientemente nos preparandopara cooperar com a burguesia; isso é sem dúvidaperigoso para a existência do governo soviético, porqueeste último perde o monopólio da produção industrialem contraste com o campesinato. Isso não significa avitória decisiva do capitalismo? Não devíamos então falarde nossa revolução como tendo perdido seu caráterrevolucionário?”

A estas questões tão oportunas e significativas, Radekresponde animadamente com um categórico Não! Éverdade, obviamente, como Marx ensinou, que asrelações econômicas determinam as políticas, e que asconcessões econômicas à burguesia devem acarretartambém concessões políticas. Ele lembra que quando apoderosa classe latifundiária da Rússia começou a fazerconcessões econômicas à burguesia, tais concessõesforam logo seguidas pelas políticas e finalmente pela

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capitulação dos latifundiários. Mas ele insiste que osbolchevistas manterão seu poder mesmo sob ascondições da restauração do capitalismo. “A burguesiaé uma classe moribunda, historicamente deteriorada...Por este motivo a classe trabalhadora da Rússia pode serecusar a fazer concessões políticas à burguesia; desdeque isso se justifique na expectativa de que seu podercrescerá em uma escala nacional e internacional maisdo que o poder da burguesia russa.”

Nesse meio tempo, embora fôra autoritariamenteadmitido que seu “poder deverá crescer em escala naci-onal e internacional”, o trabalhador russo está em apu-ros. A nova política econômica transformou o proletário“ditador” em um escravo assalariado comum, como seusirmãos em países não abençoados pela ditadura socia-lista. A redução do monopólio nacional do governo resul-tou no lançamento de centenas de milhares de homense mulheres para fora do trabalho. Muitas instituiçõessoviéticas foram fechadas, as restantes dispensaram 50a 70 por cento de seus empregados. O enorme afluxopara as cidades de camponeses e aldeões arruinadospela razvyorstka, e daqueles foragidos de distritos de fome,produziram um problema de desemprego de alcanceameaçador. O reavivamento da vida industrial pelo ca-pital privado é um processo muito lento, devido à au-sência geral de confiança no Estado bolchevista e emsuas promessas.

No entanto, quando as indústrias voltarem afuncionar, mais ou menos sistematicamente, a Rússiaenfrentará uma situação trabalhista muito difícil ecomplexa. Os sindicatos e grêmios de trabalhadores nãoexistem na Rússia, assim como as atividades legítimasrelativas a tais organizações. Os bolchevistas os aboliramtempos atrás. Com o desenvolvimento da produção e docapitalismo, governamental tanto quanto privado, a

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Rússia verá o surgimento de um novo proletariado cujosinteresses naturalmente deverão entrar em conflito comaqueles da classe empregadora. Uma luta amarga éiminente. Uma luta de dupla natureza: contra o capitalistaprivado e contra o Estado enquanto empregador detrabalho. É mesmo provável que a situação deva aindadesenvolver outra fase: o antagonismo dos trabalhadoresempregados nas indústrias pertencentes ao Estado emrelação aos trabalhadores melhor pagos pelas empresasprivadas. Qual será a atitude do governo bolchevista? Oassunto da nova política econômica é encorajar, em cadavia possível, o desenvolvimento do empreendimentoprivado e acelerar o crescimento do industrialismo.Lojas, minas, fábricas e moinhos têm sido já arrendadosaos capitalistas. As demandas trabalhistas têm atendência de cortar lucros, interferem como os“obedientes processos” do negócio. E quanto às greves,elas limitam a produção, paralisam a indústria. Nãodeveriam os interesses do Capital e do Trabalho serdeclarados solidários na Rússia bolchevista?

A exploração econômica e agrária da Rússia, sob anova política econômica, deve inevitavelmente levar aocrescimento de um poderoso movimento trabalhista. Asorganizações dos operários unificarão e solidificarão oproletariado urbano com o agricultor pobre, na demandacomum por melhores condições de vida. A partir dotemperamento atual do trabalhador russo, agoraenriquecido por quatro anos de experiência do regimebolchevista, pode-se afirmar com alto grau deprobabilidade que o futuro movimento trabalhista daRússia se desenvolverá por linhas sindicalistas. Osentimento é forte entre os trabalhadores russos. Osprincípios e métodos do sindicalismo revolucionário nãolhes são estranhos. O trabalho efetivo dos comitês defábrica e lojas, os primeiros que iniciaram a expropriaçãoindustrial da burguesia em 1917, é uma lembrança

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inspiradora ainda fresca nas mentes do proletariado.Mesmo no próprio Partido Comunista, entre seuselementos operários, a idéia sindicalista é popular. Afamosa Oposição Trabalhista, liderada por Shliapnikove Sra. Kollontay dentro do Partido, é essencialmentesindicalista.

Qual atitude o governo bolchevista tomará em relaçãoao movimento trabalhista em vias de aparecer naRússia, seja este total ou apenas parcialmentesindicalista? Até agora o Estado tem sido inimigo mortaldo sindicalismo trabalhista dentro da Rússia, emboraencorajem-no em outros países. No X Congresso doPartido Comunista Russo, em março de 1921, Lênindeclarou guerra sem trégua contra o mais tênue sintomade tendências sindicalistas, e mesmo discussões deteorias sindicalistas foram proibidas aos Comunistas,sob pena de exclusão do Partido (Ver Relatório Oficial, XCongresso). Alguns da Oposição Trabalhista forampresos. Não se pode afirmar superficialmente que aditadura comunista possa resolver satisfatoriamente osproblemas difíceis a surgirem de um efetivo movimentotrabalhista baixo à autocracia bolchevista. Daí, ostrabalhadores da Rússia deverão lutar não apenas contraos grandes e pequenos capitalistas. Eles irão de fato seenfrentar com o próprio Estado capitalista.

Para se entender corretamente o espírito e o caráterdesta presente fase bolchevista, é necessário se darconta de que a assim chamada “nova política econômica”não é nem nova nem econômica, se consideradasliteralmente. É o velho marxismo político, a única fonteoriginária da sabedoria bolchevista. Enquanto sociaisdemocratas, os bolchevistas permaneceram fiéis à suabíblia. Apenas em um país onde o capitalismo é maisaltamente desenvolvido pode contar com uma revoluçãosocial, que é o ápice da fé marxista. Os bolchevistas estão

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a ponto de aplicar isso na Rússia. Verdade foi que nosdias da revolução de outubro eles repetidamentedesviaram do caminho reto e estreito de Marx. Nãoporque duvidaram do profeta. De jeito nenhum. Até certoponto Lênin e seu grupo, políticos oportunistas, foramforçados pela irresistível aspiração popular a conduzirum verdadeiro percurso revolucionário. Mas todo o tempoeles se penduravam nas saias de Marx e buscavam acada oportunidade direcionar a revolução para canaismarxistas. Como Radek ingenuamente nos lembra: “jáem abril de 1918, em um discurso do camarada Lênin, ogoverno soviético intentou definir novas tarefas eapontar o caminho o qual hoje designamos como a novapolítica econômica”. (Correspondência da ImprensaInternacional, vol 1, nº 17).

Significativa confissão! Na verdade, as atuais políticasbolchevistas são a continuação do bom marxismoortodoxo de 1918. Líderes bolchevistas agora admitemque a revolução, nos desenvolvimentos pós-outubro, foiapenas política e não social. A centralização mecânicado Estado comunista — isso deve ser enfatizado —provou-se fatal à vida econômica e social do país. Aviolenta ditadura partidária destruiu a unidade dostrabalhadores e dos camponeses, e criou uma pervertidaatitude burocrática em relação à reconstruçãorevolucionária. A completa negação da livre expressãoe crítica, não apenas às massas, mas mesmo para onível e escala do próprio Partido Comunista, resultouem sua ruína através de seus próprios erros.

E agora? O marxismo bolchevista, em suamonstruosidade criminosa, continua na pobre Rússia aprolongar sua sangrenta Comédia de Erros. A construçãodo comunismo não é possível conjugado a umcapitalismo doentio, desenvolvido artificialmente. Ocapitalismo não pode nunca ser destruído — como Lênin

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& Cia presumem acreditar — pelos processos regularesdo Estado bolchevista crescido economicamente forte.As “novas” políticas são portanto uma ilusão e umacilada. Estas acabaram criando a necessidade de outrarevolução.

É imprescindível que a torturada humanidade trilhesempre o mesmo círculo vicioso?

Ou, finalmente, os trabalhadores aprenderão a grandelição da Revolução Russa? A de que qualquer governo,qualquer que seja o nome e as doces promessas, emvirtude de sua natureza intrínseca, é destrutivo dosgenuínos propósitos da revolução social. É missão dogoverno governar, sujeitar, fortalecer-se e se perpetuar.É urgente que os trabalhadores aprendam que apenasos seus próprios esforços criativos, livres dainterferência da Política e do Estado, podem fazer de suaconstante luta pela emancipação um sucesso duradouro.

Tradução do Inglês por Beatriz Carneiro.

Notas1 O presente artigo compõe a Série Revolução Russa, n°1 (NE).2 Ananias, personagem bíblico, aqui com o sentido de um mentiroso habitual.3 Thomas Mooney (1888-1942) foi líder operário norte-americano, acusadoinjustamente de colocar bombas em uma parada de preparação para entrada dosEUA na I Guerra, em 1916. Alexander Berkman empenhou-se em campanhas parasua libertação, e conseguiu ao menos que a pena de morte fosse suspensa.Posteriormente, devido à sua atuação em movimentos contra a guerra, Berkmanfoi preso, passou dois anos em um presídio em Atlanta e foi deportado para aRússia, em 1919.4 “Santo dos santos” é o nome do local mais sagrado dentro do antigo templo deJerusalém.5 Coup de main, ataque militar realizado por um único golpe com base emsurpresa e velocidade.

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6 Conde Mirbach. Embaixador alemão em Moscou; participou das negociaçõesde paz em Brest-Litovsk. Foi assassinado, em julho de 1918, por um membrodo Partido Socialista Revolucionário que discordava dos termos deste tratadode paz com a Alemanha.7 Tcheka. Nome abreviado da Comisão extraorinária panrussa para a repressãoda contra-revolução e da sabotagem, polícia secreta criada em 1917 paracombater os inimigos do governo revolucionário.8 Razvyorstka, programa do governo que obrigava o agricultor a entregar oexcedente de sua produção a um preço fixo.

RESUMO

Neste artigo Berkman apontou a situação e as condições

prevalecentes na Rússia como sendo muito diversas do que se

divulgava pelo mundo entre os simpatizantes da revolução.

Focalizou os efeitos sociais da nova política econômica associada

à repressão política, enquanto desenvolvimento do empreendimento

privado e mesmo enquanto crescimento de uma nova classe

industrial.

Palavras-chave: Revolução Russa, anarquismo, repressão

bolchevista

ABSTRACT

In this article Berkman pointed out the situation and the conditions

prevailing in Russia as being completely different from what had

been publicized among the sympathizers of the revolution. He

focused the social effects of the new economic-policy associated

with political repression, as the development of private enterprise

and even as the growth of a new industrialist class.

Keywords: Russian Revolution, anarchism, bolchevist repression

Recebido para publicação em 5 de março de 2007. Confirmado em

4 de junho de 2007.