A Viagem do Elefante

“Aí estão os alpes. Sim, estão, mas mal se vêem. A neve desce de manso, como leves farrapos de algodão-em-rama, mas essa suavidade é enganosa, que o diga o nosso elefante, que leva às costas, cada vez mais visível, uma mancha de gelo que já deveria ter sido objecto da atenção do cornaca[1] se não fosse a circunstância de ele ser oriundo das terras quentes onde esta espécie de inverno nem sequer por imaginação se concebe. Claro que na velha índia, lá para o norte, não hão-de faltar montanhas e neve em cima delas, mas subhro[2], agora fritz[3] nunca gozou de meios para viajar por seu próprio prazer e ver mundo. A sua única experiência de neve teve-a em Lisboa poucas semanas depois de haver chegado de Goa, quando, numa noite fria, viu descer do céu uma poalha branca, como farinha caindo da peneira, que se derretia mal tocava o solo. Nada portanto que se pareça com a vastidão branca que tem diante dos olhos, até onde a vista pode alcançar. Em pouco tempo, os farrapos de algodão tinham-se convertido em grandes e pesados flocos que, empurrados pelo vento, vinham fustigar como bofetadas a cara do cornaca. Escarranchado na nuca de solimão[4], embrulhado no capote, fritz não sentia demasiado o frio, mas aqueles golpes contínuos, incessantes, inquietavam-no como uma ameaça perigosa.”

[1] Tratador de elefantes.[2] Nome próprio do tratador do elefante.[3] Nome atribuído posteriormente ao tratador do elefante.[4] Nome do elefante.

José Saramago

José Saramago nasceu no dia 16 de Novembro de 1922 em Azinhaga (Ribatejo), mas foi para Lisboa ainda em criança. Completou o ensino secundário, mas não prosseguiu os seus estudos por motivos económicos. Publicou o seu primeiro livro, Terra do Pecado, em 1947. Em 1998 ganha o prémio Nobel da Literatura. Memorial do Convento (1982), Ensaio sobre a cegueira (1995) e A Viagem do Elefante” (2008) são algumas das suas muitas obras. Relativamente a esta última, o próprio escritor afirma que é "um livro divertido", apesar dos momentos difíceis causados pela doença que sofreu enquanto o escrevia.

Sara Novo – 12º B