a visão cyberpunk de mundo através das lentes escuras de matrix

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  • 8/16/2019 A visão cyberpunk de mundo através das lentes escuras de Matrix

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    A visão cyberpunk de mundo através das lentesescuras de Matrix

    Adriana Amaral∗

    O cyberpunk é tanto como um subgênero

    da literatura de ficção-científica como umavisão de mundo que acompanha as transfor-mações tecnológicas. Sua estética está espa-lhada por filmes, revistas em quadrinhos, jo-gos, moda, música, RPGs, videoclipes, etc.Mas, de que forma os filmes dos Irmãos Wa-chowsky podem ser relacionados a ela?

    As artes sempre trataram das angústias doshomens de seu tempo e exprimem o imagi-nário de sua época. A cultura tecnológica –

    cuja transformação ainda está em andamento– encontra-se na essência do ser humano eapenas começa a potencializar-se enquanto“realidade” no século XX. As imagens quefundamentam essa mudança acompanham asociedade ocidental desde os mitos mais dis-tantes e perpassam também a literatura. Aficção-científica nasce no contexto da Revo-lução Industrial e consolida o cientificismo,no qual máquinas, robôs e viagens espaci-

    ais convivem com seres humanos. A ficção-científica surge como gênero literário defi-nidor da sociedade contemporânea. O cy-berpunk, seu rebento mais novo, é herdeirode uma tradição literária que vem do roman-

    ∗Mestre em Comunicação Social pelo Programade Pós-graduação em Comunicação Social pela Pon-tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,Brasil e Doutoranda pelo mesmo programa.

    tismo dos séculos XVIII e XIX, sobretudo

    dos contos góticos e de horror. O gótico por-que atenta para a sublimidade, para os extre-mos e a violência da condição humana frentea um mundo em constante transformação. Ohorror porque apresenta o encontro com o“outro”, num misto de fascínio e rejeição,atração e medo. O outro, seja ele um ali-enígena, uma máquina dotada de inteligên-cia artificial ou um robô, representa a alteri-dade, posta diretamente em conflito com o

    humano, questionando assim a sua própriavalidade, identidade e existência. Além doromantismo, a literatura cyberpunk tem suasorigens no simbolismo, no surrealismo, noexistencialismo e na geração beatnik. Todosesses movimentos literários têm como focoo sentimento de desencantamento do mundo,onde real e sonho ou verdade e absurdo pare-cem indistintos. O conflito homem-máquina(seja pelo medo de dominação ou pela eufo-

    ria) e o questionamento a respeito da existên-cia humana constituem os fios condutores datrilogia Matrix. Esse misto de medo e adora-ção gera histórias que tanto parecem ser con-tra quanto a favor da tecnologia. Matrix teceuma crítica à tecnologia, mas em contrapar-tida utiliza-se da tecnologia dos efeitos espe-ciais, quase que, comprovando ser impossí-vel escapar a ela.

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    Já o termo cyberpunk foi cunhado pelo es-critor norte-americano Bruce Bethke em seuconto homônimo, publicado primeiramenteem um fanzine em 1980. Em 1984, Bethkerepublicou a estória na prestigiosa revista deficção-científica Amazing Stories. Tambémem 1984, o escritor William Gibson lança,Neuromancer, primeira parte da sua trilogiasobre o ciberespaço. Ao contar a estóriade Case, um pirata digital, Gibson estabe-lece toda uma problemática e estética (seus

    personagens foram chamados de Mirrorsha-des porque usavam um figurino de jaquetasde couro pretas e óculos escuros espelhados)para uma geração de escritores. A estória so-bre a paranóia de um hacker frente ao po-der das megacorporações que aprisionam osindivíduos é a principal narrativa de Neuro-mancer e, também está presente em Matrix,na dicotomia Anderson/Neo, em sua pas-sagem do mundo “real/aparente” ao mundo

    virtual. Ainda nesse mesmo ano, o termocyberpunk foi popularizado, quando o jor-nalista do Washington Post, Gardner Ozois,rotulou de cyberpunk o movimento de novosautores de ficção-científica. William Gibson,Bruce Sterling, Bruce Bethke, Pat Cadigan,Lewis Shiner, Greg Bear, entre outros estãoentre os expoentes dessa tendência literária.A palavra cyberpunk origina-se do termo ci-bernética – que é derivada do grego kuber-netes, que significa piloto, ou governador,num sentido daquele que conduz. A ciberné-tica é um conceito cunhado pelo matemáticoNorbert Wiener em 1948 e trata das relaçõeshomem-máquina em relação à troca de infor-mações entre ambos. Neo, é o piloto, o líderde um povo, um cyberpunk na acepção ori-ginal.

    O cyberpunk também é fruto da culturapop. Ao prefixo cyber foi agregado o punk,

    termo que originalmente designava os vaga-bundos, mas que adquiriu uma outra cono-tação a partir do movimento punk na mú-sica (com seus sons selvagens de três acor-des, visual inspirado nos sadomasoquistas elemas como faça você mesmo). A visão demundo atual que o cyberpunk expressa, en-globa, literatura, música, cinema, teorias so-ciais e filosóficas, a cultura jovem, a cul-tura da MTV e a cultura do PC/Macintosh.Escritores como Mary Shelley, Philip K.

    Dick e J.G. Ballard, Gibson, teóricos comoMcLuhan, Wiener, Kroker e Baudrillard e amúsica de Patti Smith, Velvet Underground,Ramones, Sex Pistols são tidos como fon-tes de sua influência. Larry McCafferry,editor da coletânea de ficção e não-ficçãocyberpunk, Storming the reality studio, in-dica que os autores da geração cyberpunkestão para a fição-científica como o punkrock está para a música pop: ambos criaram

    uma ruptura em seus paradigmas. Essa pos-tura frente ao mundo contemporâneo tam-bém está presente na ideologia californianados primeiros hackers da década de 60, quevisavam partilhar o conhecimento através deuma tecnologia acessível a todos, personifi-cada nos microcomputadores pessoais, lan-çados no mundo no ano de 1984. A visãocyberpunk reconhece um espaço público emque a tecnologia media nossas vidas sociais.

    Segundo o pesquisador Kevin McCarron,o cyberpunk apresenta questões filosóficasde ordem moderna, nos remetendo à dicoto-mia cartesiana mente/corpo, no qual a mentepura apresenta um desprendimento puritanodo corpo, sendo este, um acidente de per-curso. A narrativa cyberpunk questiona ashierarquias humanas propondo uma diminui-ção e, quase um borrão, nas diferenças en-tre animais, humanos, andróides, etc. Há um

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    desdém em relação ao físico, uma fascina-ção com as formas pelas quais a carne é irre-levante comparada com a memória Em Ma-trix, corpo e mente encontram-se desprendi-dos e há uma glorificação da mente enquantoelemento superior ao corpo, afinal é atravésdela que são acessados os mundos dentro efora da própria matrix. A superioridade damente sobre o corpo é ressaltada nos filmes,uma vez que a mente desencadeia e comandaas ações de luta entre as personagens. As es-

    tórias também destacam a questão da iden-tidade/existência e o fim da memória pri-vada. O computador, seja o   hardware ou osoftware, é importante por ser uma metáforapara a memória humana. Nesse sentido, ogrupo de resistência montado por Morpheusestá tentando preservar a memória humanado esquecimento provocado pelas máquinas.

    McCarron lista ainda outros pontos cen-trais na ficção cyberpunk, dos quais desta-

    camos os mais importantes, relacionando-oscom os filmes:

    •  Falta de interesse pela reprodução bio-lógica – O interesse pelo sexo só apa-rece para os que estão fora da Matrix,seja quando Neo e Trinity transam oumesmo na “rave”/ orgia protagonizadapelos habitantes de Zion nesse mesmomomento.

    •  Há possibilidade de mundos paralelos –Os mundos de dentro e fora da Matrix.

    •  O ciberespaço é apresentado teologica-mente – Conceitos religiosos permeiama trilogia com o intuito de apresentar amatrix como uma entidade simbólica emística.

    •  Há uma sátira ao “capitalismo” e à “so-ciedade” em geral, mas, há uma utiliza-

    ção extensiva dos meios de comunica-ção para divulgar as obras – Essa carac-terística é o grande paradoxo de Matrixe de toda a cultura cyberpunk, ou seja, éum produto que critica os usos da tecno-logia pela sociedade e ao mesmo tempoutiliza-se das estratégias de mídia exis-tentes nela para se promover.

    Em termos de estética cyberpunkdestacam-se dois elementos fundamen-

    tais: a cidade e o personagem. A cidadeaparece tanto como um parque temático,quanto uma simulação, combinando símbo-los da era espacial de alta tecnologia com avisão vitoriana do crescimento desordenadoe não planejado. É uma entidade negativa,um espaço escuro e superpovoado, claustro-fóbica, quebrada por formas de neon . Nessecenário, o submundo e a escuridão da ruasão componentes essenciais do gênero.

    Quanto aos personagens do cyberpunk háuma ampla variação, de hackers a mercená-rios. Contudo, o andarilho é um dos arqué-tipos centrais. Figura presente na literaturade estrada dos beatniks, herdeiro da filosofianietzscheana e descrito pela poesia de Bau-delaire como “o pesquisador do infinito”, oandarilho é trazido das estradas empoeiradaspara o ciberespaço. Ele é o cowboy digi-tal Case, de Neuromancer, que inspirou tantoa canção “The Wanderer” (O Andarilho) doU2, como o hacker Neo de Matrix. Ander-son representa o cidadão comum, que possuiuma rotina e um lar fixos. Neo é o andari-lho, um Johnny Cash que em vez do violãoperambula com armas pesadas pela rede.

    Seja por suas relações com a cultura tec-nológica, pela herança do movimento lite-rário cyberpunk, pela visão tecnológica demundo, pela estética da cultura pop (moda,

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    música, etc), Matrix está indissociavelmenteligado à cultura cyberpunk, apresentando-secomo uma obra que exprime visões sobre opensamento contemporâneo sobre a tecnolo-gia.

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