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A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO: NOTAS CRÍTICAS SOBRE AS POSIÇÕES DE ALF
ROSS E HANS KELSEN
Newton de Oliveira Lima1
Resumo: O problema da legitimação do
Direito na sociedade moderna implica o
reconhecimento da insuficiência do
positivismo, por isso deve-se fazer em
confrontação da obra de Kelsen e Ross
como paradigmas a ser criticados nesse
processo de estudo da legitimação.
Abstract: The problem of the legitimation
of the Right in the modern society implies
the recognition of the insufficience of the
positivism, therefore it must be made in
confrontation of the workmanship of
Kelsen and Ross as paradigms to be
criticized in this process of study of the
legitimation.
Palavras-chave: legitimação – sociedade
moderna – Kelsen – Ross- positivismo
Keywords: legitimation – modern society-
Kelsen – Ross-positivism
1. O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DO DIREITO E O CONTEXTO DA
DOUTRINA POSITIVISTA NO SÉCULO XX
Reconhecer o ordenamento jurídico como ordem social válida e eficaz tem sido
uma problemática de cunho efetivamente relevante ao longo da história do
pensamento jurídico: encontrar o fundamento pelo qual as pessoas obedecem e
reconhecem as normas como eficazes e respeitam o ordenamento jurídico implica
1 Mestre em Direito pela UFRN.
um desafio histórico para a Ciência do Direito e um debate constante no âmbito da
filosofia jurídica.
O tema da legitimidade, enquanto fenômeno jurídico de efetividade global do
ordenamento jurídico e o respeito pelo mesmo no contexto de sua incidência social,
inserem múltiplas análises de cunho político, sociológico, axiológico etc, porém no
presente trabalho monográfico as discussões serão conduzidas no âmbito da teoria
positivista, que possui paradigmas bem objetivos em torno da discussão desses
âmbitos culturais relacionados à legitimidade do direito.
O positivismo em geral buscou estudar o direito em vista de suas
fundamentações pós-metafísicas e predominantemente vinculadas com a
problemática de um direito estatal, não se deixando influenciar pela torrente
axiologista, sociologista ou culturalista de maneira unilateral ou predominante.
O estudo do reconhecimento do ordenamento como um todo válido implica um
estudo de algumas de suas nuances constitutivas, a validade, a eficácia e a
efetividade, sendo que a discussão em torno da legitimidade passa pela análise
dessas estruturas, mas não se resume a elas, exatamente por se interligar aos
supra-citados âmbitos culturais.
As visões sobre a questão da legitimidade apresentaram-se as mais
diversificadas ao longo da história, sendo que o presente trabalho monográfico
pretende abordar, em uma análise comparativa e crítica, as posições sobre o tema
exaradas por dois grandes expoentes do positivismo jurídico no século XX, Alf Ross
e Hans Kelsen.
A fim de situar o debate sobre o tema da legitimidade em função da corrente
jusfilosófica positivista e especificar dentro da mesma os posicionamentos de Kelsen
e Ross, procurar-se-à nesse primeiro momento uma pequena caracterização do
ideário positivista jurídico e, logo em seguida, situar os dois doutrinadores no
contexto do mesmo.
Observa-se que o positivismo jurídico foi uma das correntes de pensamento
jurídico que mais estudou o problema da efetividade, validade e vigência do direito,
tanto que a teoria da norma jurídica recebeu ao longo do século XX importantes
formulações, principalmente concernentes ao estado de desenvolvimento
encontrado no âmbito das teorias positivistas, neokantianas e realistas da Filosofia
do Direito, a qual se pauta em uma nova diretriz em relação ao sistema de
fundamentação que até então recebera do positivismo tradicional advindo do século
XIX e do jusnaturalismo em suas múltiplas vertentes.
O positivismo tradicional, principalmente de matriz francesa(BATALHA,
1999,p.45), apregoava que o fazer filosófico era um misto de experiência e razão,
onde o método científico determinaria qual seria o verdadeiro objeto de estudo do
conhecimento, e aceitando tão-somente o método científico como revelador da
verdade, na sua esquematização racional e descritiva de conceitos após a extração
do conteúdo empírico concreto da realidade social, no chamado raciocínio indutivo,
o qual generalizava os conteúdos empíricos da realidade e depois normatizava.
A própria atividade filosófica era passível de questionamento pela ciência e
filosofia positivas, pois os conceitos de conhecimento da Filosofia tradicionalmente
considerados, principalmente de ordem metafísica, foram considerados pelos
positivistas como pseudo-científicos, e assim eles passaram a pregar a substituição
da atividade filosófica pela científica. Nesse sentido:
o caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os
fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja
descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível
constituem o objetivo de todos os nossos esforços(...)
Pretendemos somente analisar com exatidão as
circunstâncias de sua produção e vinculá-las umas às outras,
mediante relações normais de sucessão e de
similitude.(COMTE, 1996, p.7).
O positivismo é, pois, um método e uma vertente do conhecimento que centra
sua técnica cognitiva na verificação empírica dos objetos cognitivos e numa rígida
concepção do real como sendo direcionado por um esquema explicativo-causalista
calcado na verificação científica de dados controláveis objetivamente, buscando
descreve leis causais de conexão entre os fenômenos observáveis.
No âmbito jurídico, a ascendência do positivismo foi enorme porquanto o
novo espírito científico erigido pelo movimento alargou-se pela Europa e seu círculo
de influência como o verdadeiro modelo de conhecimento. Várias correntes do
pensamento jusfilosófico dialogaram com o movimento positivista, a normativista, a
sociológica, a neokantiana etc.
O problema da legitimidade na senda do positivismo clássico é estudado na
Alemanha do Século XIX por Bierling, Bergbohm, dentre outros, no âmbito da
“Teoria Geral do Direito” (Algemeine Rechtslehre), calcada nos conceitos dos
pandectistas teutônicos e sua ‘Jurisprudência dos conceitos’(principalmente
Windscheid),com o que procuravam substituir a Filosofia do Direito como
instrumento hermenêutico da juridicidade através da constatação científica da
normatividade que eles julgavam primordial no fenômeno jurídico; só teria valor
investigativo para o cientista do Direito os conceitos positivos presentes nas normas
e oriundos do legislador (REALE, 1998, p.16).
Bierling, além de ser um dos corifeus máximos da Algemeine Rechtslehre
formulou, outrossim, a “Teoria do Reconhecimento”(Anerkennung Rechtslehre),
apregoando que o Direito só teria validade com o reconhecimento
social(legitimidade), reavivando dessa forma o contratualismo clássico de Hobbes e
Locke, posição qualificada por Reale(1998, p.16) de neocontratualismo.
Reale (1998, p.17) leciona que essa posição revigora mais uma validade
externa, que legitima o direito por meio de uma eficácia social, que interna
(coerência do sistema consigo próprio).
Em Bierling, contudo, já está presente uma noção não apenas de adesão
contratual à norma jurídica mas um reconhecimento com efeito psicológico, de
vontade, de temor e vinculação ao ordenamento jurídico.
Essa posição de reconhecimento do direito legítimo a partir da noção de
“contrato” foi de certa forma reforçada pelo sociologismo (Roscoe Pound, Summer
Maine) que se fundamentou, segundo Reale (1998, p. 59 ss), nos arrazoados de
Émile Durkheim, o qual criou o conceito de “consciência coletiva”, o conjunto de
conteúdos psicológicos somados ao longo da historicidade humana; essa entidade
psicossocial determinaria o conteúdo da juridicidade, e formaria os ideais e
conceitos do Direito os quais seriam, portanto, mutáveis dentro desse grande
esquema sócio-psíquico, mas que serviriam de base para a legitimação da norma
jurídica.
Pedro Lessa, positivista brasileiro, também vincula a legitimidade do direito
em função de elementos extraídos da realidade da vida humana em sociedade
perfazendo o sistema de controle social dentro de um conjunto de leis constituídas
pela experiência social (BATALHA, 1981, p.166). No fundo, o juízo subjacente ao
positivismo sociológico é que a legitimidade é oriunda da vinculação com a matriz do
‘espírito social’. Nesse sentido apregoa Lessa:
Ao cientista compete averiguar quais são as condições de
vida e desenvolvimento do indivíduo e da sociedade,
dependentes da vontade humana e formar uma teoria da
limitação das atividades voluntárias, tendo em atenção essas
condições. Ao legislador incumbe indagar quais são os meios
de que pode dispor o Estado para assegurar, quanto
possível, a realização dessas condições voluntárias (apud
BATALHA, 1981, p.167).
Outro expoente do positivismo que tratou do problema da legitimidade, mas
vinculando esta última à validade do direito foi Georg Jellinek, que na senda do
relativismo jurídico de cunho positivista, desenvolveu uma teoria eclética que abarca
elementos sociológicos e normativos como constitutivos da juridicidade.
Admitindo elementos volitivos e racionais, bem como individuais e coletivos
na formação e legitimação do Direito e do Estado no universo histórico, Jellinek
assevera na sua “Teoria do Estado” que este pode encarado tanto no aspecto
histórico-social como no aspecto ideal(jurídico-axiológico),havendo uma verdadeira
oposição entre ambas as acepções(REALE, 1998, p.95 ss).
A par dessa inovadora concepção estatal, que Kelsen critica por considerar
contraditória (SGARBI, 2007, p.141) e (REALE, 1988, p.160), Jellinek tinha um
entendimento sui generis da fundamentação do Direito, baseado em elementos
diferentes mas complementares entre si.A legitimação seria a tentativa de
coordenação entre esses elementos constituintes.
2. KELSEN : POSITIVISMO E NEOKANTISMO GNOSEOLÓGICO
Em Kelsen fica estabelecida a conjuntura de uma nova formulação da teoria
das normas, posto que seu pensamento desenvolveu-se como uma vinculação com
a realidade associativa de uma doutrina gnoseológica neokantiana da Escola de
Marburg de onde inspira-se para construir o método da pureza formalista de que é o
sujeito que cria o objeto de estudo, da doutrina lógico-formalista do Círculo de Viena
e sua análise linguística e analítica do discurso jurídico, e de uma conotação
positivista, como ele próprio assevera na teoria pura (KELSEN, 1984, p.17).
Por positivismo Kelsen entende um estudo da estrutura dogmática jurídica tem
do em vista fatores que sejam determinantemente objetos da ciência jurídica
enquanto tal. A definição da metodologia jurídica possuindo apenas objetos ditos
“puros”(as normas),que não sejam oriundos de outras áreas do conhecimento ou de
áreas diversas do âmbito cultural decorre de um esforço metodológico de definir um
objeto do direito não dependente de aspectos mutáveis, advindos de outras
ciências, ou extrínsecos ao sistema jurídico (KELSEN, 1984, p.17).
Na teoria pura a norma jurídica enquanto objeto central da Ciência do Direito
não é tratada no paradigma distanciado entre a realidade do Estado e a realidade
do Direito que marcou o culturalismo, positivismo sociológico ou a “jurisprudência
dos interesses”, mas com a identificação de ambos o pensador austríaco estatui
uma nova fenomenologia do campo jurídico, a qual se faz presente como uma
sistemática organização de dados concatenados a uma finalidade: a pureza
científica do sistema jurídico.
Kelsen (1984, p.18) elabora a crítica da Ciência do Direito e da Filosofia
Jurídica do século XIX no sentido de que as teorias desenvolvidas não se pautaram
pela pureza metódica do conhecimento dogmático do sistema jurídico.
Amalgamaram fatores extrínsecos e não pertinentes ao sistema dogmático-positivo
jurídico.
A normatividade para Kelsen não era entendida simplesmente em sentido de
uma relação de poder estatal que se serve da estrutura cultural para se firmar e ser
obedecida sem efetividade social.
Para Kelsen, a visão panorâmica do fundamento da Jusfilosofia seria outra que
a do positivismo tradicional, pois ele foi formado no âmbito da Escola de Marburg e,
pelo menos na primeira fase de seu pensamento a norma seria um construto lógico,
um produto da relação lógica entre conceitos formais que se auto-sustentariam e se
delineariam a partir da sua vinculação escalonada com a norma hipotética
fundamental e dentro da estrutura estatal, que é una com a estrutura jurídica.
Kelsen, dentro dos pressupostos neokantianos que seguia, afirmou que o
Direito é fenômeno social de incidência regulatória, caracterizado pela
normatividade e pela coercibilidade, pois enquanto estrutura cultural o fenômeno
jurídico é formal, isto é, depende de uma estrutura conceitual, construída
racionalmente para que possa se caracterizar e se separar do restante das ciências
humanas e depois atingir um campo de incidência (efetividade) próprio.
Levando em conta sua formação no âmbito da Escola de Marburg, para a qual
o embasamento logicista neokantiano concebia que é o sujeito quem constrói seu
objeto de compreensão, Kelsen constrói uma visão formalista do objeto jurídico
exatamente em decorrência do procedimento gnoseológico que desenvolve para
delimitar o campo de estudo do Direito.
A Escola de Marburg deu mais importância ao estudo do elemento
gnoseológico no pensamento de Kant, fazendo a análise do livro ‘Crítica da Razão
Pura’, enfatizando a questão do conhecimento, do método, afirmando que é o
pesquisador que constrói o objeto de pesquisa, assumindo dessa maneira uma
postura eminentemente gnoseologista(valorização excessiva da análise do
conhecimento) e logicista(apego exacerbado às indagações do raciocínio formal),a
qual firmou um precedente de apriorismo científico e filosófico.
A Escola de Marburg cerrou-se, destarte, num sistema logicista e cético-
relativista, prendendo-se mais às raízes do kantismo gnoseológico.
O logicismo de Kant foi igualmente seguido por Kelsen através da influência de
Marburgo no pertinente à teoria dos juízos sintéticos e analíticos como fator
principal(juntamente com as categorias apriorísticas espirituais) na hermenêutica da
realidade foi adotada amplamente atraves do metodo formalista. Nisto consiste
principalmente o formalismo logicista(analítica transcendental) de Kant, que como tal
pretende que a partir do sujeito seja criado o objeto pela interpretação do real.
O apriorismo racionalista kantiano foi igualmente adotado por Kelsen, que
acreditava no apriorismo da razão como origem do conhecimento e na presença de
estruturas transcendentais no espírito possibilitadoras de todo ato cognitivo. A
experiência seria uma fonte secundária do conhecimento e a lógica transcendental
desenvolvida a partir das categorias do entendimento seria predominante. Kelsen
seguia também a tese de Kant e da Escola de Marburgo de que não há um
conhecer específico, mas apenas genérico, que pode ser extraído da razão.
2.2. CONCEITO DE NORMA E DE VALIDADE, VIGÊNCIA E EFICÁCIA EM
KELSEN A PARTIR DO DESENVOLVIMENTO DE SEUS PRESSUPOSTOS
GNOSEOLÓGICOS
Como normativista do Direito, Kelsen adentrou no âmago do neokantismo
jurídico, e se imiscuiu da carga gnoseológica relativista(não aceitação de posições
arbitrárias e radicais sem crítica), formalista logicista(não esquecimento da teoria
das categorias a priori e da lógica como estruturação do conhecimento).Conferindo
esses pressupostos formalistas e logicizantes à metodologia da pesquisa jurídica,
baseando primordialmente em Cohen, neokantiano da tendência formalista, e de
Rudolf Stammler, fundador do normativismo em Marburg (GONÇALVES, 2001,
p.75).
Kelsen assimila toda a profundeza da lógica transcendental kantiana e passa
a considerar primordialmente a concepção da teoria de Kant acerca dos juízos de
valor e juízos de realidade, exatamente para separar o mundo normativo do dever-
ser do mundo do ser, isto é, dos fatos. Afirma Gustav Radbruch (1974,p.48)
explicando a teoria de separação de ser e dever-ser que se deduz do neokantismo:
Os preceitos do dever-ser, os juízos de valor, as valorações,
não podem fundar-se indutivamente sobre verificações do
existente mas só dedutivamente sobre outros preceitos,
outros juízos de valor, outras valorações de idêntica natureza.
Ora os juízos de valor e os juízos de existência pertencem a
dois mundos completamente independentes que vivem lado-
a-lado um do outro, mas sem se penetrarem reciprocamente.
E é esta consideração que está na base daquilo a que
chamamos dualismo metodológico.
Kelsen seguia ainda a posição kantiana de que o fenômeno dependeria da
definição, do conceito basilar que conduziria a regulação dos fenômenos jurídicos.
Para ele, um pensamento jurídico calca-se na conceituação formal, definindo o
campo de abrangência do Direito a partir de categorias internas, somente assim
haveria direito verdadeiramente científico.
Para Kelsen somente após a caracterização formal é que se pode efetivamente
se uma conduta ou uma relação social possuiriam ume caráter jurídico ou não, pois
os fenômenos seriam conhecidos como jurídicos porque o Direito os definia como
tais.
A noção da metodologia purista e unificadora a priori do fenômeno jurídico,
conquista indelével do neokantismo kelseniano, é o instrumento de maior eficiência
para se distinguir o jurídico do não-jurídico, trazendo à baila a matéria jurídica,
evitando que aquilo que deva ser tutelado em prol dos valores jurídicos seja
aproveitado e aquilo que não o seja possa ser descartado.
Para o sistema kelseniano, o norteamento formal é fundamental, pois só pela
análise formal apreende-se o Direito como fenômeno; a importância da forma foi
expressa por Giorgio Del Vecchio:
Uma proposição jurídica só é tal, enquanto partícipe da forma
lógica, universal, do Direito. Fora dessa forma, que é
indiferente à variabilidade do conteúdo, nenhuma experiência
jurídica é possível, pois lhe falta justamente a qualidade que
permitiria incluí-la nessa espécie. A forma lógica do Direito é
um dado a priori, isto é, não empírica, e constitui
precisamente a condição-limite da experiência jurídica em
geral (apud REALE, 1998,p. 47).
Assim, se o Direito é que prescreve o que é o fenômeno jurídico e constrói sua
normatividade intrisecamente, pela metodologia lógica, formalista e auto-referente,
somente o direcionamento normativo pode definir o campo de incidência jurídico.
Não se pode, assim, explicar as funções do direito nem diferenciar um fenômeno
jurídico de um não-jurídico sem referí-lo a normas. É necessário, portanto, para se
definir o que é o Direito, saber o que é uma norma.
Na tentativa de determinar o conceito de norma, Kelsen explica que a norma
possui um significado, expresso no sentido que o homem atribui aos seus atos. O
que objetiva dentro do direito o sentido subjetivo de um ato de vontade é a
existência de uma norma jurídica que preveja esse fato e lhe atribua efeitos
jurídicos.
O dever ser é o sentido subjetivo de qualquer ato de vontade dirigido à conduta
de outrem. Essa distinção entre um plano do ser, que congrega o mundo dos fatos,
e um plano do dever ser, onde encontrar-se-iam as normas, é mais um produto da
formação marburguiana de Kelsen, que seguia a distinção elaborada por Kant entre
ontologia e deontologia. Pronuncia o pensador austríaco:
A diferença entre ser e dever ser não o ser não pode ser
ulteriormente explicada. É um dado imediato da nossa
consciência. Ninguém pode negar que dizer: ´Uma coisa
existe` (afirmação com a qual se descreve um objeto real)
seja essencialmente diverso de dizer: `Uma coisa deve ser'
(afirmação com a qual se descreve uma norma); e ninguém
pode negar que do fato que alguma coisa existe não pode
derivar que alguma coisa deve ser, assim como do fato que
alguma coisa deve ser não se pode derivar que alguma coisa
é (KELSEN, 1984, p.23).
Estabelecendo o caráter normativo do fenômeno jurídico o sistema kelseniano
distingue o direito como ordem normativa coercitiva diferenciado em elação à moral
e a outros sistemas sociais.
O Direito enquanto ordenamento é um sistema de normas. A norma possui
então, dentro do sistema, os planos de validade, eficácia e vigência.
Vigência, portanto, é a existência específica da norma(KELSEN, 1984, p.28),
que se insere no âmbito do dever-ser. Se uma conduta prevista na norma jurídica
não é efetivada no mundo dos fatos num sentido de concretizar-se como ato de
vontade querido pelo sujeito regulado, ela é ineficaz, mas não inválida, pois continua
vigente, já que a vigência caracteriza-se pelo dever-ser e não pelo ser (KELSEN,
1984, p.30).
O domínio de vigência de uma norma é um elemento de seu conteúdo e este
pode ser pré-determinado por uma norma superior (KELSEN, 1984, p.32). Daí
porque o conceito de vigência depende do de validade. A validade de uma norma
vincula-se a um procedimento específico de produção de normas.
O ato criador do sistema normativo é a norma fundamental (grundnorm), que
baseia num sentido lógico-transcendental a validade no sistema, que funda a cadeia
de validade normativa do ordenamento (KELSEN, 1984, p. 33).
A norma fundamental não é uma norma posta, positiva. É uma norma
pressuposta. O ordenamento jurídico é um sistema dinâmico. A validade de uma
norma no seu interior deriva do fato de ter sido produzida do modo previsto em uma
outra norma. A norma fundamental, em um sistema dinâmico, não pode ser senão
uma norma que estabelece um procedimento produtor de normas, isto porque
Kelsen concebia que a norma fundamental de um ordenamento jurídico positivo é
precisamente a regra básica de acordo com a qual as várias outras normas do
ordenamento são construídas.
O Direito como sistema de organização social implica numa desnecessidade de
justificação ética, assim, não se requer que uma ordem jurídica tenha um
fundamento moral, daí porque a discussão colocada na obra kelseniana, baseada
na problemática incitada por Sto. Agostinho sobre a diferença entre a ordem jurídica
e a ordem de salteadores, sendo que essa última, para Kelsen (1984,p.75), por não
possui a sanção normativo-estatal, não é uma ordem válida e não pode ser
reconhecida pela comunidade, pois suas sanções não possuem reconhecimento.
O direito, para Kelsen, possui eficácia porque deduz-se de um sistema
normativo válido e, como tal, pode ser imposto aos indivíduos de uma dada
comunidade e ser aceito como norma portadora de sanção: o sistema jurídico é
eficaz contra a ordem de salteadores, por exemplo, porque sua ordem é
reconhecida como válida(e possui coação) e a dos salteadores não.
O sistema jurídico exerce pela eficácia de suas sanções uma pacificação social
que culmina na segurança coletiva, no entanto, não se pode tratar tal eficácia como
um elemento de justificação do direito a partir da problemática axiológica, buscando
identificar, por exemplo, um valor de justiça, que é sempre relativo, se for levado em
consideração, ao sistema jurídico ao qual se refere.
O sistema jurídico não pode deixar de comportar sanções em caso de
descumprimento de seus preceitos, isto porque caso assim ocorresse, atingiria-se
uma situação crítica de descumprimento das normas. Dessa forma, mesmo os
deveres jurídicos que aparentemente não possuem sanção, como as denominadas
obrigações naturais ou as normas procedimentais, vinculam-se indiretamente ou
como conseqüência de sua aplicabilidade a normas portadoras de sanção
(KELSEN, 1984,p.86-87).
2.3. O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE EM KELSEN
Dada a caracterização dos conceitos de validade, vigência e eficácia acima
referidos, observa-se que as normas do direito positivo são antes de mais nada
válidas, isto é, elas devem ser obedecidas, não porque elas são, como as leis do
direito natural, derivadas da ditames cosmológicos, divinos ou racionais abstratos,
nem muito menos de um princípio do absolutamente bom, certo ou justo, de um
valor absolutamente supremo ou norma fundamental que se revista da pretensão de
uma validade absoluta, mas meramente porque a ordenação normativa é produto de
um procedimento específico e protegido por sua estrutura coercitiva.
Observou-se que as normas não existem de forma isolada. Elas estão unidas
em um sistema. No ordenamento jurídico, as normas distribuem-se em camadas
hierárquicas, que descem da norma fundamental até as normas individuais
prolatadas pelos órgãos aplicadores.
Esta estrutura escalonada tem a ver com o processo de produção normativa: as
normas superiores dispõem sobre a criação das normas inferiores, não podendo
haver nenhuma norma válida que não tenha sido criada de acordo com o previsto
em outra norma do sistema.
Mas para determinar o estatuto da eficácia da norma na obra de Kelsen,
deve-se primeiramente determinar a sua relevância no nível do ordenamento
jurídico, pois mesmo com o interesse centrado na questão da validade e da eficácia
da norma singular, não se pode desconsiderar o fato característico de que a eficácia
da ordem jurídica como um todo é uma condição necessária para a validade de
cada norma individual da ordem.
Para Kelsen, somente ordenamentos coercitivos em relação aos quais se
pressupõe a norma fundamental podem ser considerados direito. E somente em
relação a ordenamentos eficazes essa pressuposição pode ser feita, pois somente
ordenamentos eficazes podem ser considerados válidos.
O conteúdo da norma fundamental se encontra determinado pela matéria
fáctica que legitima a criação e a aplicação de um ordenamento jurídico dela
decorrente, e sua efetividade é garantida pela generalidade dos casos em que a
conduta dos indivíduos regidos por esse mesmo ordenamento é tutelada por uma
aplicação incidental e eficiente das normas desse ordenamento.
Vista a eficácia como condição da validade do ordenamento jurídico, serão
examinadas agora as conseqüências da perda da eficácia do ordenamento jurídico
como um todo. Este é um problema que Kelsen analisa quando trata do conceito de
revolução.
O ordenamento ineficaz perde validade porque simplesmente ele não possui
mais uma norma fundamental que lhe confira validade. Em geral, a norma
fundamental refere-se a ordenamentos coercitivos eficazes.
Kelsen (1984, p.292) tenta definir o quantum de eficácia necessário à validade
do ordenamento ou de uma norma. No caso do ordenamento, ele é considerado
válido quando as suas normas são eficazes de um modo genericamente
abrangente.
Assim como não se exige uma obediência integral ao ordenamento para este
ser considerado válido, assim também para as normas singulares serem tidas como
válidas, não é exigida uma conformidade plena entre o que ela estatui e o
comportamento concreto dos destinatários, pois isso suporia que ela prescreve algo
que deve ocorrer necessariamente como se fosse um ser, uma vinculação mecânica
ou natural nu sentido determinístico. Não se pode olvidar jamais o caráter de dever-
ser da norma e do próprio ordenamento jurídico.
Sua eficácia, contudo, é uma condição essencial da sua validade, e sua
ineficácia uma condição essencial de sua carência de validade. A validade de uma
norma traz consigo a sua obrigatoriedade. Dizer que uma norma é válida equivale a
afirmar que deve-se agir em conformidade com ela (KELSEN, 1984, p.28).
O direito, para Kelsen, possui eficácia porque deduz-se de um sistema
normativo válido e, como tal, pode ser imposto aos indivíduos de uma dada
comunidade e ser aceito como norma portadora de sanção: o sistema jurídico é
eficaz contra a ordem de salteadores, por exemplo, porque sua ordem é
reconhecida como válida(e possui coação) e a dos salteadores não.
O sistema jurídico exerce pela eficácia de suas sanções uma pacificação social
que culmina na segurança coletiva, no entanto, não se pode tratar tal eficácia como
um elemento de justificação do direito a partir da problemática axiológica, buscando
identificar, por exemplo, um valor de justiça, que é sempre relativo, se for levado em
consideração, ao sistema jurídico ao qual se refere.
O sistema jurídico não pode deixar de comportar sanções em caso de
descumprimento de seus preceitos, isto porque caso assim ocorresse, atingiria-se
uma situação crítica de descumprimento das normas. Dessa forma, mesmo os
deveres jurídicos que aparentemente não possuem sanção, como as denominadas
obrigações naturais ou as normas procedimentais, vinculam-se indiretamente ou
como conseqüência de sua aplicabilidade a normas portadoras de sanção(KELSEN,
1984,p.86-87).
O fato é que toda norma jurídica possui uma interligação com a sanção jurídica
extensiva ao sistema como um todo e, como tal, possui uma função coativa,
presente mesmo nas assim denominadas normas jurídicas autônomas, que servem
apenas para a consecução ou a interpretação de outras normas.
Assim, podemos reduzir o problema da legitimidade para Kelsen nos seguintes
pontos essenciais: 1- Em última análise, todo ordenamento é válido porque é
produzido dentro de um procedimento que implica a fundamentação em uma norma
hipotética lógico-transcendental fundamental; 2- essa norma fundamental encontra-
se como fundamento de validade do sistema, e conseguintemente é reconhecida
imemorialmente como condição inicial e transcendental de validade, sendo que o
reconhecimento não é necessariamente uma externação psicológica palpável, mas
representa uma adesão social, política e, conseguintemente pode-se dizer “natural”,
sedimentada no direito vigente; 3- Mesmo que eventualmente uma norma válida do
ordenamento vigente deixe de ser aplicada por qualquer fator extrínseco à ordem
jurídica, ocorrendo o fenômeno pontual da ineficácia, se o ordenamento jurídico
globalmente continuar a ser aplicado, ele ainda será válido, eficaz, vigente e, por
conseguinte, legítimo, pois ainda possuirá a validez decorrente da norma
fundamental associada ao reconhecimento sócio-político da sua capacidade de
coação e vigência.
Sucintamente, o ordenamento jurídico ainda possui legitimidade mesmo diante
do fenômeno social da ineficácia pontual, acidental, do sentido de aplicação de uma
norma ou mesmo de algumas normas desse ordenamento.
A legitimidade, em Kelsen, possui vinculação com o reconhecimento não
apenas sociologicamente(positivismo sociológico), nem somente
psicologicamente(“teoria do reconhecimento”), mas sobretudo de natureza lógico-
transcendental, um reconhecimento subsumido à norma fundamental, uma crença
na eficácia, validade e vigência do ordenamento, a qual expressa-se de modo
natural, oriunda da vontade humana(portando, aqui, um elemento psicológico), e
não de uma dedução racional ou mero temor reverencial ou emprego da força física.
Kelsen admitia a função legitimadora da norma fundamental quando se
apercebia da questão da necessidade da adesão política à ordem jurídica vigente
por parte dos comandados, os quais teriam que aderir ao comando normativo para
fazer valer materialmente o conteúdo do Direito.
Assim, o problema da legitimidade da norma jurídica num sentido amplo, ou
social, se quiser-se definir o campo de incidência tal como aqui pretendido, é
realmente uma questão que assume o fator de uma problemática resolvida por
Kelsen num sentido de enquadramento com a normatividade pressuposta ao
sistema do ordenamento, que através da coerção garante sua eficácia e,
consequentemente, sua legitimidade.
3. ROSS : POSITIVISMO E REALISMO JURÍDICO
O realismo jurídico foi outra vertente filosófico-jurídica que influiu bastante na
época atual; aparentado do historicismo, com o qual comunga numa apreciação
eminentemente sociologista do Direito, pode ser como típica gestação intelectual
nórdica, calcada num realismo filosófico de matriz aparentada com o positivismo
pela adesão ao esquema empirista de fonte do conhecimento e pela pós-metafísica
radical, que vê no fenômeno jurídico uma exclusiva produção encoberta da força
política vinculativa entre Direito e querer-poder do intérprete (juiz).
Na escola de Upsala (Suécia) encontra sua base primordial, e tem em
pensadores como Karl Olivecrona, Axel Hargenstrom, dentre outros, seus principais
corifeus (GUSMÃO, 2006, p. 191).
Para o realismo jurídico, não existe valor jurídico em si, como ente
independente espiritualmente, mas apenas atos de valoração do Direito por quem
detém o poder - para o realismo escandinavo, que segue a acepção psicologista do
fenômeno jurídico, valor é igual a valorar, assim, impingir valor ao Direito é tarefa de
quem possui o controle do poder político ou de quem possa exercer função política
sobre a estrutura jurídica.
O realismo estuda a aplicação do poder em relação ao direito, e como o
fenômeno “poder” na sociedade incide sobre a estrutura jurídica. O poder como
meio de consecução da norma jurídica e os fatores ideológicos e motivacionais,
sociológicos e políticos que influem na decisão judicial, a qual sintetiza o sistema e
serve de instrumento de aplicação e construção exclusiva do aparato finalístico do
Direito.
Comumente tem-se a idéia de que o realismo pretende ‘reduzir’ o Direito à
força, mas em verdade nota-se pelo estudo da obra de Ross que o que se pretende
é estudar os fatores de poder a consecução do direito pelo juiz e a aplicação do
direito por este último como um elemento de poder social.
Outros pressupostos filosóficos de Alf Ross são os advindos do Círculo de
Viena - neopositivismo empirista lógico (Carnap, Wittgenstein) e da Escola de
Oxford – método analítico do discurso jurídico (Austin).
O critério de verificação deve ser utilizado na busca pela verdade – o discurso
deve ser submetido à verificabilidade com sua correspondência empírica. O sentido
de uma expressão ou conceito linguistico é o que a experiência de seu uso nos
indica, conforme aduz Ludwig Wittgenstein(MONDIN, 2000, p.123). Não é válido
fazer generalizações nem abstrações sem uma correspondência com a base
empírica referencial, como asserta Carnap apud Mondin (2000, p.119).
A construção de um discurso plausível(inclusive do discurso jurídico), passa
pela interligação coerente, de base realística e empírica, que se faz entre as
expressões linguisticas utilizadas no discurso. Não existe verdade em si(ideal)mas
somente pragmática- a verdade é uma função relacional entre termos
empiricamente fundamentados e coerentemente interligados, ensinamentos de
Carnap e, em geral, da Escola de Oxford.
3.1. VALIDADE, VIGÊNCIA E EFICÁCIA EM ROSS
Alf Ross (2003, p.103) doutrina que o ordenamento jurídico não é uma
multiplicidade de normas conjugadas lógica e racionalmente, mas um todo coerente
sujeito a um contínuo processo de evolução.
Para Ross o direito é produto da sociedade,mas não apenas como referencial
fático ou empírico, porém num sentido de validade como categoria de um direito
efetivamente existente (BARZOTTO, 2000, p.80),sendo que o direito deve ser
entendido como um sistema legal, porém com efetividade.
Praticamente, Ross funde os conceitos de efetividade e validade. Partindo da
análise da própria terminologia alemã e dinamarquesa correspondente ao termo
valid(inglês)- que expressa o direito válido mas sem referência direta a sua
efetividade, ele encontra na tradição nórdica e alemã as palavras gyldig
(dinamarquês) e gultig (alemão) que expressam exatamente validez num sentido de
efetividade (BARZOTTO, 2000, p.79).
Na linguagem jurídica dinamarquesa gyldig expressa algo efetivamente
existente. Isso implica conceitualmente, para Ross, uma validade não apenas formal
do sistema legal, mas efetiva, com cumprimento das normas pelas pessoas e a
aplicação efetiva do direito pelo juiz (BARZOTTO, 2000, p.80).
O sistema legal implica, desse modo, um fundamento de validade que se
assenta não apenas na validade,mas na vigência do direito, aqui entendida vigência
como aplicabilidade efetiva do direito pelo juiz – no reconhecimento que o julgador
faz de uma regra válida. O fato é que o juiz deve reconhecer, validando
efetivamente a norma escrita, formal, constitutiva do ordenamento.
A metodologia na tradição anglo-saxã segue uma tendência à convalidação do
pressuposto de validez pela ação orientadora do juiz e pode ser considerada
centrada na empiricidade da vivência do caso concreto, ao passo que a metodologia
do sistema positivo centra-se na visualização da doutrina intelectualizada e
racionalmente construída pela ação dos doutrinadores que esclarecem e orientam o
direito vigente, sendo que a técnica de argumentação nesse caso consiste em
desenvolver o significado do que a lei prevê, qualificando os fatos a partir desse
esclarecimento prévio (ROSS, 2003, p.138).
O fato, porém, é que todo juiz insere-se numa corrente de influência oriunda da
sua visão ideológica, ético-política e não pode fugir à ascendência de suas
inclinações, ao tempo que necessita, a fim de persistir no mundo das decisões
jurídicas dominantes, da ideologia vigente no sistema jurídico no qual se encontra
inserido e que embasa a metodologia jurídica orientadora do processo de
interpretação das normas (ROSS, 2003, p.137).
No processo de efetivação do direito, de procedimentalização da vigência - que é
a relação entre interpretação e técnica argumentativa, tem muito a construir-se com
base nas possibilidades de aplicação da lei – fatores como o texto legal, as
considerações pragmáticas e avaliação fática.
O fato, porém, da realidade do fenômeno jurídico, é que o juiz concede um
propósito à lei que ele na verdade cria em sua ideário e vontade subjetivas em
consonância com os fatos metodológicos, sociológicos, lingüísticos, políticos e
ideológicos dominantes no sistema jurídico do qual ele faz parte (ROSS, 2003,
p.183).
As técnicas de argumentação, muitas das vezes são empregadas com o sentido
de que o juiz justifique uma decisão que na verdade constrói, num sentido mais
amplo, em função da interpretação que ele faz de um texto, e assim instaura uma
aura de justificação para o “fato de poder” construído por ele (ROSS, 2003, p. 183).
O fato é que a des-ideologização da função judicaturial passa exatamente pela
análise e, conseguintemente, revelação dos fatores de poder reais que existem por
trás da decisão, perfazendo uma verdadeira psicologia social da norma pela análise
e dscrição da mesma e não pela mera construção conceitual lógico-dogmática
(ROSS, 2003, p.185).
A análise, pois, do processo de interpretação, revela o caráter
predominantemente centrado na noção material de vigência que Ross imprime ao
direito, o que abre as portas para a discussão em torno da legitimidade.
3.2. O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE EM ROSS
O fato, portanto, do direito vigir pela interpretação dada pelo juiz de acordo
com suas inclinações, ideologia, sentimentos, enfim, pela interação entre o direito
formal com as condições políticas efetivas e pessoalmente significantes
reconhecidas pelo julgador, implica o problema da incidência social do direito e de
como as pessoas aceitam o ordenamento jurídico, como o legitimam como válido.
O problema da legitimidade, para Ross, passa pelo sentido de aplicação da
força, do poder, sobre a regulação das relações sociais – é exatamente isso que o
o julgador perfaz. Ele constitui uma força legitimada pelo aparato jurídico e faz
vigorar o direito a partir dessa estrutura com o processo de interpretação que faz do
ordenamento, no entanto, realmente as pessoas aceitam as decisões judiciais ?
Elas reconhecem como legítimo esse processo decisório ?
Buscar responder a essa indagação sobre a legitimidade dentro do sistema
de Alf Ross implica reconhecer a análise sócio-psicológica que ele faz da relação
direito-sociedade. Ross centra sua análise nos elementos constitutivos da psique
humana, quais sejam, a vontade e a razão.
Implica reconhecer, para Ross, uma série de fatores que influem na formação
da vontade (ROSS, 2003, p.79), os impulsos fundados na necessidade,nascidos do
mecanismo do interesse, e o impulsos calcados no indivíduo pelo meio social, sendo
que os do segundo grupo são interpretados como metafísicos e provenientes de
uma vontade “superior”.
O fato é que a formação da consciência jurídica de obediência à lei implica
uma obediência desinteressada, implica na adesão sem que haja uma constrição à
vontade por meio da força, mas existe um temor de risco pela desobediência, mas
isso para Ross (2003, p.80) não é determinante, porém secundário.
O sistema de obediência à lei, consiste, portanto, em uma adesão em forma
de consciência jurídica, que, se meramente associada ao plano da validade, implica
em consciência jurídica formal, mas se atrelada ao aspecto da transformação do
sentido das normas de acordo com a significação material das mesmas, fundamenta
a consciência jurídica material (ROSS, 2003, p.81).
O fato e que as pessoas em geral possuem uma consciência formal que
mantém a ordem jurídica estável pela adesão aos governantes, aos juízes e ao
direito. Porém, isso não impede uma modificação da consciência jurídica com as
transformações sócio-políticas e, dessa forma, se ocorrer a desvinculação da
consciência ao sistema objetivo jurídico-político, ocorrerá uma ruptura da
legitimidade do mesmo. O governo pode passar a ser considerado tirânico, ilegítimo,
opressor, e não mais jurídico, legítimo – isso significa precisamente a ruptura dessa
consciência jurídica de legitimação do direito (ROSS, 2003, p.81).
O sistema jurídico pode ser considerado legítimo apenas, para
Ross(2003,p81), em função de um elemento de reconhecimento consciencial e
ideológico. Essa parece ser a posição global, inclusive, da própria escola realista de
Uppsala, visto que Olivecrona, segundo Ross (2003, p.80), concorda com essa
posição a respeito da legitimidade.
A consciência jurídica é tão presente como critério de legitimação que
segundo Ross as pessoas seguem as normas mesmo estando as mesmas em
conflito com seu pensamento jurídico específico a respeito da justiça. A força da
consciência de adesão ao direito é um fator de formação da legitimidade.
A alimentação dessa consciência dá-se, por conseguinte, de diversos fatores.
Primeiramente, o pode social, policial, intimidativo do sistema e seu aparato de
força, implica na adesão por ‘temor’ ao sistema – a força constitui elemento
constitutivo da formação da vontade de adesão.
A força pode ser utilizada e representa um poder de coação potencial que
gera um fator de formação da vontade de adesão na consciência jurídica (ROSS,
2003, p.82). Isso é reforçado, logicamente, quando efetivamente a força é utilizada.
A força é sempre um poder que influi na vontade de adesão e que constitui,
segundo Ross (2003, p.83), função da validade do direito.
Ross, como já dito, nem de longe fundamenta a validade do direito na força,
mas reconheça nela um elemento constitutivo da formação da vontade de adesão,
implicando, dessarte, um fator de formação da legitimidade.
O fato é que para Ross o poder e a força como corolário do mesmo
dependem da estrutura jurídica para garantir sua eficácia e ação, dessa forma, não
há uma construção de poder que não tenha de ser competência jurídica legitimada.
O fato é que o direito assegura ao poder a vinculação sócio-psico-ideológico-
política com um sistema de validade que através da adesão psíquica estabiliza as
relações sociais. O fato é que a consciência jurídica formal é adesão ao poder
racional, de legitimação pela validade do ordenamento, na vigência da interpretação
que lhe dá o juiz, aproxima-se do modelo de Max Weber traça em sua sociologia
compreensiva de legitimidade racional-legal (BARZOTTO, 2000, p.84).
A consciência jurídica material, instável se revolucionária, implica numa
proximidade com o modelo moral e perfaz uma natureza de cunho não jurídica,
porque exatamente rompe com a consciência formal do respeito à lei, corroendo,
assim, a legitimidade do sistema.
Esquematicamente, tem-se os elementos de composição da legitimidade
para Ross: 1- A vontade de aderir ao direito é formada por elementos psicológicos
que constituem a vontade jurídica formal, implicando na formação da consciência
jurídica formal de obediência ao sistema e a uma consciência material que pode
transformar-se ao longo do tempo e que, caso desvincule-se do sistema ,corrói sua
legitimidade. 2- A ideologia de obediência ao Estado é reforçada por fatores
culturais, políticos, sociológicos etc, servindo para formar um estatuto psicológico de
validade tanto na mente do juiz como na do cidadão. 3- A consciência jurídica
psicológica fundamenta, lato sensu, a validade e esta estabiliza-se como
legitimidade em torno da adesão e do respeito à decisão judicial e ao direito. 4- O
direito legitima-se pela ideologia do poder como coação, que pelo poder compulsório
representa outro fato importante na consubstanciação da legitimidade. O elemento
coativo implica em garantia da força à legitimidade, mas não para ser utilizado
aleatoriamente, mas tão-somente em caso de descumprimento da ordem judicial ou
da norma. 5- Ross conclui que todo poder necessitada da legitimação jurídica, pois
funcionada por meio do direito, é uma competência jurídica, somente assim
podendo legitimar-se e, nesse ato, garante a eficácia do direito.
4. ANÁLISE COMPARATIVA DO CONCEITO DE LEGITIMIDADE EM KELSEN E
ROSS
O debate entre Ross e Kelsen foi profícuo e representou o embate entre um
sistema empirista de cunho psicologista e sociológico em Ross, com o racionalismo
formalista e logicista de Kelsen.
Os dois reforçaram, todavia, a posição positivista, advinda desde a chamada
escola técnica de Laband, Gerber, Orlando (REALE, 1998, p.157 ss) de reconhecer
um direito vigente, materialmente normativo, afastando o puro formalismo das
construções irrealistas, quer metafísicas(algumas correntes do neokantismo) ou
propriamente oriundas de um positivismo sem a vinculação com o problema da
eficácia(jurisprudência dos conceitos).
Nesse sentido, quando Kelsen assinala com uma preocupação para a
eficácia global do sistema assegurar a legitimidade do mesmo, demonstra sua
preocupação com a efetividade, a vinculação com a realidade. Não existe norma
fundamental sem o reconhecimento de sua eficácia, senão, seria a mesma ilegítima.
Ross, todavia, comunga da posição kelseniana de estabilização da
legitimidade em torno da validade. Direito válido é direito eficaz e,
consequentemente, para portar eficácia é necessário uma vinculação com a
legitimação. Se o direito não for sócio-psicologicamente legítimo não é mais direito,
é tirania. Ora, se a validade é o conceito estabilizador da legitimidade para ambos,
onde mora a divergência entre os jusfilósofos aqui estudados ?
Precisamente na problemática do fundamento da validade, a legitimidade. Se
a eficácia é condição da validade, e a vigência o prolongamento efetivo da validade,
a legitimidade, isto é, o porquê o direito obriga, implica em posicionamentos
filosóficos os mais diversos.
Assumir com Bierling o reconhecimento como regra de legitimação,
restaurando a cada momento o pacto social originário como condição de
legitimidade do direito, não pareceu uma idéia muito aceita pelo positivismo no
século XX e mesmo Hart, ao tentar rememorar essa idéia, não perfez um sistema
considerado coerente (BARZOTTO, 2000,p. 117).
O fato é que Kelsen deixa transparecer em seu sistema a obrigatoriedade de
um ponto de vista objetivista, ele não analisa profundamente os motivos da adesão
da vontade à estrutura sistemática do direito, e, assim, fazendo, constrói uma teoria
objetivista-formalista da legitimidade.
Para Kelsen, a validade só pode ser referida ao seu fundamento, que é a
norma fundamental, assim, ele foca a legitimidade no próprio processo de validade
lógico-transcendental, descartando qualquer vinculação com o problema axiológico
ou da eficácia.
Nesse ponto Kelsen ataca Ross (BARZOTTO, 2000,p.57), identificando no
realismo um apelo injustificado à eficácia da aplicação da norma em relação à
conduta, como se o processo de desenvolvimento e auto-reprodução do sistema
jurídico implicasse numa identificação com a conduta por ele tutelada. Novamente,
aplica Kelsen a distinção radical entre ser e dever-ser - não se deduz direito do
campo fático da ação humana.
Apesar de Kelsen (1991, p.123) defender que uma norma em particular pode
até perder a validade por desuso, com o sistema jurídico a eficácia global continua a
assegurar a validade do mesmo, reforçando sua legitimidade.
Observa-se que para Kelsen, ao contrário de Ross, os fundamentos de uma
consciência jurídica formal ou material são irreconhecíveis pela dogmática e a
ciência do direito, sendo tarefa talvez da sociologia ou da psicologia buscar
encontrar os motivos de adesão ao sistema, mas em todo caso a validade do
sistema encontra-se nele próprio e no estudo objetivo da sua estruturação formal.
Ross, ao identificar o fundamento da legitimidade com a consciência jurídica
formal, faz um salto à sociologia, à política e a psicologia. Identificar o “sentido de
aplicação da força” e os “motivos determinantes” na configuração de um ato de
vontade que construa a legitimidade do sistema jurídico parecem, em todo caso,
uma tese divergente do paradigma do positivismo formalista e lógico de Kelsen, que
influencia predominantemente no século XX o chamado pós-positivismo de cunho
analítico da linguagem (BOBBIO, 1995, p. 131 ss).
O problema da eficácia talvez seja melhor trabalhado em Ross, quando
analisa o papel da adesão à decisão e a psicologia do julgador na interpretação do
direito vigorante. O sistema jurídico e sua natureza destinada à regulação da
conduta devem requerem uma eficácia e devem realmente manter pertinência com
a realidade social e a vida concreta dos atores do direito – juiz, partes, comunidade
etc.
Uma teoria da legitimidade multidisciplinar é efetivamente construída por
Ross, mas não é suficiente para afastar o problema da auto-referencia do sistema
jurídico e se pensarmos que grande parte da dogmática e da sociologia e filosofias
do direito ainda seguem um postulado de auto-poiese (auto-referente e fechado), e
não de alopoiese (aberto e heterônomo), a vinculação a uma teoria da legitimidade
que fuja do paradigma da referencia prioritária ao próprio sistema parece não ser
bem vinda.
No entanto, o sucesso de uma posição não é a adesão prática da maioria,
mas a busca pela fundamentação de sua coerência verídica intrínseca. De fato,
Ross não sustenta sua posição dentro da dogmática jurídica dominante, mas sua
consideração de que a legitimidade em último caso depende do reconhecimento
político (não no sentido contratualista já ultrapassado, acima referido), mas no
sentido de valor político social e de legitimidade psicológica dos indivíduos pode ser
interessante para desdobramentos de psicologia forense, sociologia do
comportamento jurídico dentre outras aplicações.
Na prática, todavia, o sistema se dinamiza e se reproduz em função da
pressuposição de validade intrínseca e da vinculação com um fundamento de auto-
reconhecimento interno (a Constituição, por exemplo, no caso dos sistemas
democráticos) é de fundamental importância para o tratamento objetivo e científico
pela ciência direito das aplicações normativas do ordenamento jurídico – a
perenidade de Kelsen parece mais visível.
5. CONCLUSÃO
É longo o processo de desconstrução da legitimidade em termos de
vinculação com fundamentos absolutos – baseado na religião, na ética, no dever,
enfim, tudo isso na torrente de laicização progressiva e radical que gerou a crise da
legitimidade política do Estado Moderno, e a um tempo a gestação de um direito
positivo com validade cada vez mais auto-referente (SALDANHA, 1993, p.56).
O problema é que a existência do Estado e a obediência pelos cidadãos de
suas normas requer uma justificação de legitimidade nem sempre é aceita sem
tortuosos questionamentos, sem desavenças e críticas a seus fundamentos.
A situação em que o positivismo encontra o direito no século XX, e a tentativa
de justificá-lo utilizando categorias auto-poiéticas (LUHMANN, 1980), esbarra nos
conflitos intestinos da democracia, voltada para a multiplicidade de posicionamentos
e a crítica dos fundamentos “estabilizados”, bem como nas relações de poder e suas
acomodações (ADEODATO, 1989, p.3).
Certamente as posições de Kelsen e Ross são contribuições importantes e
paradigmáticas na senda da tentar-se legitimar o direito, porém, é preciso frisar a
necessidade da discussão crítica que envolve, na democracia, a revalidação
constante dos pressupostos de legitimação do sistema jurídico e não a estabilização
dos mesmos em função de conceitos advindos de uma racionalidade intra-referente
e abstracionista ou de um sociologismo político que legitima o direito a partir do
reconhecimento de ‘fatos’ ou das forças políticas dominantes, interpretadas pelos
magistrados, que como profetas pitônicos gregos ou pretores romanos são
intérpretes privilegiados do direito (LEAL, 2002, p.23).
A preocupação da legitimação do direito em Habermas (MOREIRA, 1999,
p.43) ao expor a tensão entre faticidade e validade e a busca pelo aprofundamento
crítico-discursivo que desconstrói e reconstrói fundamentos, buscando legitimar-se
no seio de uma sociedade plural e internamente contraditória (capitalismo pós-
industrial) – com certeza valoriza os âmbitos da validade interna e vinculação sócio-
psíquica como topoi discursivos relevantes porém não exclusivos e finalizantes, para
o debate em torno da legitimidade do direito na pós-modernidade.
As posições enfim, de Ross e Kelsen são tão relevantes que o dilema da
legitimação do direito construído por Habermas gira em torno precisamente, mas
não exclusivamente, da dialética do direito entre a faticidade (Ross) e a validade
(Kelsen) – o que ainda tecerá talvez as principais disputas no horizonte democrático
dialético possível de uma práxis da ação e uma crítica discursiva dos fundamentos
da legitimidade jurídica na sociedade democrática no terceiro milênio.
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