accountability seletiva_jaquie muniz

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Da Accountability Seletiva à Plena Responsabilidade Policial 1 Profa. Dra. Jacqueline de Oliveira Muniz Prof. Dr. Domício Proença Júnior 1. INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 2 2. O QUE É ACCOUNTABILITY? .................................................................................................... 3 2.1 O QUE É UM MANDATO? ............................................................................................................ 4 2.2 O QUE É SER ACCOUNTABLE? .................................................................................................... 5 2.3 O QUE É O ACCOUNT? ................................................................................................................ 5 2.4 O QUE É ACCOUNTABILITY?....................................................................................................... 6 2.5 QUAIS SÃO OS LIMITES DO ACCOUNT E DA ACCOUNTABILITY? ................................................. 8 2.6 PORQUE FULL RESPONSIBILITY É SELECTIVE ACCOUNTABILITY?............................................ 10 2.7 UMA SÍNTESE........................................................................................................................... 13 3. ACCOUNTABILITY POLICIAL ................................................................................................. 13 3.1 O MANDATO POLICIAL ............................................................................................................ 14 3.2 DISCRICIONARIEDADES ............................................................................................................ 16 3.3 OS TERMOS DO MANDATO POLICIAL ....................................................................................... 18 3.3.1. ÂMBITO.................................................................................................................................... 18 3.3.2. ALCANCE ................................................................................................................................. 19 3.3.3. CONTORNOS ............................................................................................................................. 20 3.4 UMA DIMENSÃO INSTRUMENTAL DE ACCOUNTABILITY POLICIAL........................................... 23 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................... 32 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................................................. 36 SOBRE OS AUTORES ............................................................................................................................... 40 1 Texto originalmente apresentado no Primer Curso Internacional em Rendición de Cuentas de la Policía, 14 a 18 de maio de 2007, cidade do México, organizado por INSYDE (México), com apoio do CESC (Chile) e da rede Altus, e que compõe o material didático do “Curso de Liderazgo para el Desarrollo Institucional Policial”, da Rede de Policiais e Sociedade Civil da América Latina. In: CARUSO, MUNIZ e CARBALLO BLANCO (orgs.). Polícia, Estado e Sociedade: Práticas e Saberes Latino-americanos. Rio de Janeiro, Ed. PUBL!T, 2007, PP: 21-73.

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DDaa AAccccoouunnttaabbiilliittyy SSeelleettiivvaa àà PPlleennaa RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee PPoolliicciiaall11

Profa. Dra. Jacqueline de Oliveira Muniz Prof. Dr. Domício Proença Júnior

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................................2

2. O QUE É ACCOUNTABILITY? ....................................................................................................3

2.1 O QUE É UM MANDATO? ............................................................................................................4 2.2 O QUE É SER ACCOUNTABLE? ....................................................................................................5 2.3 O QUE É O ACCOUNT? ................................................................................................................5 2.4 O QUE É ACCOUNTABILITY?.......................................................................................................6 2.5 QUAIS SÃO OS LIMITES DO ACCOUNT E DA ACCOUNTABILITY? .................................................8 2.6 PORQUE FULL RESPONSIBILITY É SELECTIVE ACCOUNTABILITY?............................................10 2.7 UMA SÍNTESE. ..........................................................................................................................13

3. ACCOUNTABILITY POLICIAL.................................................................................................13

3.1 O MANDATO POLICIAL ............................................................................................................14 3.2 DISCRICIONARIEDADES ............................................................................................................16 3.3 OS TERMOS DO MANDATO POLICIAL .......................................................................................18 3.3.1. ÂMBITO....................................................................................................................................18 3.3.2. ALCANCE .................................................................................................................................19 3.3.3. CONTORNOS.............................................................................................................................20 3.4 UMA DIMENSÃO INSTRUMENTAL DE ACCOUNTABILITY POLICIAL...........................................23

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................................32

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................................................36 SOBRE OS AUTORES ...............................................................................................................................40

1 Texto originalmente apresentado no Primer Curso Internacional em Rendición de Cuentas de la Policía, 14 a 18 de maio de 2007, cidade do México, organizado por INSYDE (México), com apoio do CESC (Chile) e da rede Altus, e que compõe o material didático do “Curso de Liderazgo para el Desarrollo Institucional Policial”, da Rede de Policiais e Sociedade Civil da América Latina. In: CARUSO, MUNIZ e CARBALLO BLANCO (orgs.). Polícia, Estado e Sociedade: Práticas e Saberes Latino-americanos. Rio de Janeiro, Ed. PUBL!T, 2007, PP: 21-73.

DDaa AAccccoouunnttaabbiilliittyy SSeelleettiivvaa àà PPlleennaa RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee PPoolliicciiaall

Profa. Dra. Jacqueline de Oliveira Muniz Professora do Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes

Prof. Dr. Domício Proença Júnior, O.M.D. (IISS, IACP)

Professor da Coppe/UFRJ

Diretores Científicos do Instituto Brasileiro de Combate ao Crime (IBCC)

Abstract: This essay addresses police accountability explanatorily, starting ab initio. Firstly, it lends rigor and constancy to the terms that describe the issuance of a mandate by a constituency to a delegate, and thus what would be the meaning of being accountable (an attribute), making account (a process) or producing accountability (a product). Secondly, it discusses how the understanding so established would apply to police accountability. It clarifies the peculiar situation that results from the fact that the polity is at the same time the constituency and the object of the police mandate. This qualifies this mandate as that of the use of coercion with endorsement of force under social consent and the Rule of Law. It proposes a differentiation among the scope (the object), the reach (the competencies of delegates) and the boundaries (the admissible alternatives) of the police mandate of a given police, in a given polity, at a given time. These support a short example of the way the appreciation of the opportunity (to act or not to act) and the propriety (how to act) of police action, as constrained by the specific terms of its police mandate and by available police resources, might better construe police accountability. A few brief remarks on the wellsprings and immediate consequences of the present essay round up the text.

Nota Inicial dos Autores: Foi uma decisão autoral utilizar alguns termos em inglês sem traduzi-los, escolhendo explicar o significado que se atribuiu a eles de forma sumária antes de aperfeiçoar o seu conteúdo. Isso pareceu necessário porque o esforço de sua tradução não produziu resultados satisfatórios, ou mesmo amplamente difundidos, ao longo do tempo. Ter que ligar com os (mal)entendidos prévios não serviria ao propósitos deste texto, daí o seu uso como um tipo de jargão, ao início, e com a ambição de categorias a partir de seu detalhamento2.

2 Somos devedores das lúcidas observações de Vargas (2005) em sua nota de título (p. 19).

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1. Introdução

O que é accountability3 policial? Essa é a pergunta que anima o presente ensaio. Sua ambição é a de expor os limites da leitura que toma a accountability policial como uma espécie de concessão expediente a uma demanda externa oriunda de uma ou outra fatia do público. Enfim, como algo adicional, dispersivo, ou até restritivo ao trabalho da polícia. Ao contrário, este texto argumenta que a accountability consiste no espaço por excelência de vivificação do mandato policial, tão importante para a polícia quanto para o público a quem ela serve. Apresenta a accountability como algo intrínseco, vital, multiplicador e essencialmente benéfico para o trabalho policial.

É justo colocar alguns elementos que permitam a quem se aproxima deste assunto pela primeira vez, ou que apenas volte a ele sem tê-lo estudado, compreender algo do estado atual da discussão. Nos últimos anos, talvez mesmo na última década, as discussões sobre como aprimorar ou mesmo ampliar a accountability tem sido marcantes. Elas têm sido tomadas como um dos mais importantes rumos para a modernização, a melhora do desempenho, o incremento da qualidade, do controle, e de tudo o mais que se possa associar à atividade policial. Isso tem se traduzido de diversas maneiras. Há quem veja accountability como o resultado da adoção de determinadas rotinas, procedimentos e formas de relato das atividades policiais. Há quem a entenda como uma ampla demanda por transparência sobre o que a polícia faz, como faz, e por que faz o que faz. Há ainda quem a entenda como uma forma de monitorar, e controlar, a ação policial em tanto detalhe e tão próximo do tempo real quanto possível. Essas amplitude, promessa e alternativas da accountability como vereda do progresso policial precisam ser qualificadas.

O que é, por que, e como acompanhar, orientar, avaliar e controlar, a ação da polícia não são questões novas, recém-descobertas. Em verdade, estão na raiz da criação das polícias modernas. São mesmo aquilo que fez de determinadas organizações de força, polícias e modernas. O que se vê hoje é mais um capítulo da história das formas de como se responder a estas questões, e de como as respostas elaboradas no passado dialogam com a construção de respostas no tempo presente. Estas perguntas servem, mesmo, como uma chave para compreender o percurso das histórias das polícias. Elas permanecem não porque não tenham tido respostas satisfatórias ou suficientes, mas porque as respostas de cada período, para cada polícia, em cada mandato policial, numa certa sociedade, foram e seguem sendo a materialidade de seu aprimoramento. Estas mesmas perguntas estruturais levaram a novas formulações em novas bases. Há, portanto, algo de verdade na impressão de tantos policiais de que na 3 Como explicado na nota inicial, foram mantidos diversos termos em inglês, como forma de poupar a exposição do trabalho de uma revisão dos esforços anteriores de tradução. Essa adesão circunstancial a termos em idioma estrangeiro como vocábulos em um idioma latino necessita de uma breve explicação de sua flexão. Sem embargo, para além da imposição de um gênero (a “accountability”, o “account”), estes termos são tratados como palavras de pleno curso no idioma do texto. Assim diz-se “a accountability” quando se referencia a classe, “uma accountability” uma instância da classe, como em “o mandato” e “um mandato”. Note-se que isso é um pequeno ganho em relação à língua inglesa que não tem este uso para, por exemplo, “accountability”. “The accountability”, a “accountability” de alguma coisa é uma construção rara, “an accountability”, uma construção em desuso. Em inglês se usa, de fato “accountability tanto para a classe geral quanto para o caso específico sem artigo, como em “police accountability” ou até só “accountability” como sujeito de uma oração.

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polícia “nada se cria de novo”, desde que se qualifique. A reedição destas mesmas perguntas anuncia uma estabilidade essencial: o exercício sempre atual, cambiante em meios, e constante em propósitos, do mandato policial.

Essa carga presente e essa herança de história deixam diversas questões sobre accountability policial. Existe um modelo ideal a ser seguido? Ou, ao contrário, cada lugar deve ter sua accountability policial particular, característica de seu tempo? A accountability policial é uma questão política? Em que sentido? A accountability policial é uma discussão sobre como ser popular, ou aprovado, pelo público? Ou ela é uma discussão sobre como melhorar a polícia? Qual a diferença entre uma e outra? A accountability policial é uma questão técnica? Em que sentido? É uma discussão sobre qual é a melhor rotina, o melhor mecanismo, a regularidade mais benéfica ou o formato de relato mais preciso? Ou ela é uma discussão sobre como relacionar decisões policiais com resultados policiais, seus efeitos e conseqüências? Ou ela é um pouco de tudo isso? Ou é mais algumas coisas que outras? Voltamos assim ao início, compreendendo um pouco a sua razão de ser. Essa é a lacuna presente: afinal, o que é accountability policial?

Essa resposta tem duas partes, as duas partes deste texto. A primeira é a que busca explicar o que é accountability, ela mesma. Trata-se de um exercício exploratório, que ensaia corporificar para um idioma latino termos do inglês que não têm mais, realmente, como serem simplesmente traduzidos. Aí se estabelecem o que é accountability em geral, de forma universal.

A segunda parte da resposta busca aplicar os resultados da primeira parte para o caso da accountability policial. Trata-se de um desdobramento, que aproveita uma diversidade de resultados dos Estudos Policiais no tema da accountability policial. É devedor de uma variedade de estudos e trabalhos, listados nas referências bibliográficas, mas que não têm atribuição pontual ao longo do texto (que é o que seria correto, não fosse este um ensaio). Isso não significa que não se reconheça, aprecie e, de fato, se use o que estes trabalhos e autores tinham a dizer. Ao contrário, a apresentação que se faz seria impossível sem eles. É apenas que nesta ocasião fazer-lhes justiça na forma adequada roubaria espaço do que se deseja dizer. Um breve conjunto de considerações finais permite um relance à parte do débito que se deve a estes autores e obras.

2. O que é Accountability? Essa é uma pergunta necessária, porque há diversas respostas e interpretações. Algumas são contraditórias entre si, outras são vagas e conciliatórias, e outras mais se apresentam como desdobramentos, expansões ou acréscimos de diversas inspirações, com distintos focos e conteúdos. “Ser obrigado a”, “prestar contas”, “dar satisfação”, “responder por”, “explicar, esclarecer, justificar”, “obter a aprovação”, “identificar responsáveis”, “controlar, monitorar, aditar”, “supervisionar, gerir, administrar”, “avaliar e diagnosticar”, “premiar e punir”, “corrigir e aperfeiçoar”, “tornar público”, ou “dar a conhecer ou divulgar”, fazem parte da extensa lista de significados atribuídos, ou atribuíveis, à accountability policial. O que seja ou deva ser a accountability policial na prática tem uma forte componente contextual. Expressa processos históricos particulares, realidades e arranjos locais. A accountability policial recebe diversas terminologias mais específicas ou de ambição mais universal conforme características culturais,

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composições políticas, compromissos institucionais, vivências corporativas, prescrições ou modelos de mudança.

Esta diversidade não é gratuita: traz consigo questões e aspectos relevantes do fazer e gestão policiais que não podem ser ignorados ou esquecidos. Situa o que seja ou deva ser a accountability policial em um determinado estágio de discussão, entendimento ou instrumentalização. Corresponde, na vida prática, a uma bricolagem de visões, crenças, expectativas e rotinizações convergentes ou não. Reflete a necessidade de respostas pragmáticas, que atendam as demandas ou pressões públicas, diante de resistências ou adesões corporativas. A dinâmica que aperfeiçoa a accountability depende em boa medida do questionamento cotidiano sobre o que é, porque, para quem, para que, sobre o que, como, quando, e quem faz o account, o “relato para produzir accountability”, policial. Mas quando este questionamento fica restrito ao experimentalismo, isto é, a uma compreensão da prática pela prática na prática, arrisca-se a confundir fins com meios, mecanismos com instrumentos, rotinas com procedimentos. Confunde-se o que é ser accountable, “estar sujeito a ter que produzir accountability”, com a feitura do account e com a accountability policial em seus diversos usos.

A accountability policial carece de uma formulação propriamente conceitual, de raiz teórica, que estabeleça o que é essencial e invariante no processo de account e, sobretudo, no account da polícia. Só assim se pode compreender, e valorar, o que é específico e particular na accountability policial. Só a partir daí se pode apreciar de maneira sistemática a variedade do estado-das-(suas)-práticas, compreendendo sua riqueza, aferindo seus avanços e retrocessos. Tal formulação, por isso mesmo, deve ser capaz de revelar a unidade sistêmica e abrangente que circunscreve e explica todas as lógicas, sentidos e usos de accountability policial.

A necessária limpeza do terreno rumo à construção do conceito de accountability policial começa por deixar claro que não há nada de particularmente distintivo, especial ou inédito no fato de que a polícia tenha de ser accountable. Qualquer indivíduo, grupo ou instituição que recebe um mandato é accountable àqueles indivíduos, grupos ou instituições que lhe delegaram tal mandato.

2.1 O que é um Mandato? Todo mandato compreende a outorga de determinado poder por uma constituency, “pessoa ou grupo que delega autoridade, ou se faz representar”, para quem venha a exercê-lo em seu nome para um determinado fim. Um mandato é uma procuração, uma delegação, uma incumbência para praticar certos atos, num certo assunto, para uma determinada finalidade, de uma determinada maneira, em nome desta constituency. Todo mandato traz consigo a concessão de poderes da parte de quem o concede e a assunção de responsabilidades da parte de quem o recebe.

Existem os mais diferentes tipos de mandatos. Mandatos podem ser provisórios, contingentes, de duração longa ou indefinida; podem autorizar a poucos ou a muitos; podem expressar atribuições restritas ou de grande extensão; podem estabelecer termos mais estreitos ou mais amplos para sua execução. Com tudo isso, pode-se extrair de qualquer mandato um núcleo comum de responsabilidades que corresponde à própria condição de possibilidade da idéia

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de mandato. Quem recebe um mandato, qualquer mandato, recebe poderes delegados que são definidos, estão condicionados e se explicam pela busca de determinadas finalidades. Quem recebe um mandato, qualquer mandato, compromete-se a:

i) Usar os poderes delegados apenas para buscar o fim que justifica o mandato;

ii) Exercer os poderes delegados escolhendo meios e formas de ação (ou inação) que não contradigam este fim;

iii) Responder por estas escolhas, seus resultados e conseqüências, à luz deste fim.

2.2 O que é ser Accountable? Ser accountable é ser responsável pela obrigação de atender a estas exigências intrínsecas a qualquer mandato. Ser accountable é um atributo inseparável de quem aceita um mandato. Ser accountable é ser responsabilizável por tudo que se venha a fazer no exercício de um mandato. Isto significa dizer que quem recebe um mandato é, ipso facto, accountable: a despeito de reconhecer-se (ou não) como tal; mesmo quando não se tem demandas explícitas de quem concede o mandato; independentemente da existência de mecanismos, instrumentos, rotinas e procedimentos pelos quais fazer account. Por exemplo, quem recebe uma procuração particular da venda de uma casa torna-se accountable, responsabilizável, por esta venda. Pode ser chamado a se explicar, a qualquer momento, por quem deu a procuração, pelo preço, pelas condições da venda ou quaisquer outras questões relacionadas com o mandato da venda da casa. E isso é assim, mesmo que não se tenha explicitamente mencionado tal possibilidade quando se deu a procuração, ou mesmo que não se tenha determinado como tal “prestação de contas” deveria ser feita.

2.3 O que é o Account? Fazer account é o processo pelo qual se materializa a obrigação de ser accountable, identificando responsabilidades no exercício de um mandato. Fazer account é o processo pelo qual se identificam as relações de causa e efeito entre escolhas, seus resultados e conseqüências no exercício dos poderes delegados. Fazer account é relatar responsabilidades decorrentes da liberdade de escolha contida num mandato. É esclarecer contexto e conteúdo das escolhas de meios e formas de ação (ou inação), considerando o exercício de poderes delegados à luz das finalidades de uma delegação recebida. Isto significa dizer que as próprias escolhas realizadas no cumprimento de um mandato instruem os termos de seu account, a despeito da existência prévia de normatização, regularidade ou padronização de mecanismos, instrumentos, rotinas ou procedimentos.

Fazer account se beneficia, mas independe, de alguma institucionalidade pré-estabelecida, porque decorre diretamente do relato de contexto e conteúdo das escolhas realizadas. Pode-se inaugurar a feitura de account sobre o que quer que se deseje conhecer, a qualquer momento, diante de qualquer questionamento, ao redor de qualquer questão que remeta ao, ou referencie o exercício do mandato. Dito de outra forma, é sempre possível inaugurar a feitura de account tendo como referência tão somente a consideração direta do contexto e

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conteúdo de escolhas, apreciando resultados e conseqüências, diante, contra, ou na ausência de uma institucionalidade que o enquadre. Dar conta do desmoronamento da parede de uma escola pode, por exemplo, inaugurar a rotina de account sobre as condições e decisões da manutenção dos prédios escolares.

A autonomia diante de uma institucionalidade prévia é a maior virtude do account, cujos fazeres podem inaugurar, (re)criar, (re)definir, emendar, excluir, reduzir ou ampliar mecanismos, instrumentos, rotinas ou procedimentos diante de questionamentos os mais diversos. Esta maleabilidade compreende e esclarece a diversidade dos processos de account, cada um deles específico porque orientado pela busca de resposta a um questionamento singular quanto a um exercício, também singular, de um mandato. Os processos de account se adequam, e por isso, retratam as especificidades das realidades locais em termos de objetos, formas e arranjos distintos.

É possível fazer diversos accounts sobre as mesmas escolhas, resultados e conseqüências em função de questionamentos, prioridades ou demandas sociais, políticas, econômicas, organizacionais, etc.. Por exemplo, pode se fazer diferentes accounts de um mesmo evento: o exercício orçamentário de uma organização. Pode-se fazer um account que prioriza despesas de capital, outro que prioriza as despesas de custeio, outro ainda que se ocupa das despesas de pessoal; um account que enfoca principalmente o fluxo de caixa, outro que se debruça sobre a temporalidade do controle de gastos. Cada um destes accounts pode, ou não, conter elementos suficientes para responder a outros questionamentos. Mas, em princípio, cada account só seria suficiente ou completo para atender ao questionamento que lhe deu origem, produzindo respostas: accountability.

2.4 O que é Accountability? Accountability é o produto do account, um resultado específico que atribui responsabilidades a quem se tornou accountable pela aceitação dos poderes delegados de um mandato. Accountability é a resposta concreta a um dado questionamento que orientou a feitura de um determinado account. É a resposta que dá instrumentalidade às responsabilidades identificadas por determinadas escolhas, resultados e conseqüências no uso de poderes delegados, à luz de determinado fim. Accountability corresponde à identificação de um curso de responsabilização de indivíduos, grupos ou instituições que foi extraído de um determinado account. Isto significa dizer que accountability é o produto que permite converter e materializar responsabilidades em responsabilização.

É possível extrair diversas accountabilities de um mesmo account. Por exemplo, questionam-se as despesas de capital na execução de um orçamento. Para responder esse questionamento, para produzir accountability sobre estas despesas, se faz um determinado account. Mais tarde, questionam-se as despesas de pessoal na execução deste mesmo orçamento. Verifica-se que o account que foi feito, originalmente, para dar conta do questionamento sobre as despesas de capital, já contém os elementos de informação necessários para produzir uma outra accountability que responde satisfatoriamente a esta nova questão. Neste caso, um mesmo account produziu não só a accountability sobre despesas de capital como a accountability sobre despesas de pessoal.

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O fato que um mesmo account pode vir a produzir várias accountabilities revela o potencial de economias de escala e âmbito na produção de accountability. Quando se soma isso à virtude do account iniciar, consolidar ou rever a institucionalização de seus fazeres, percebe-se como uma abordagem sistêmica para a produção de accountability pode ser útil. Esta abordagem apresenta-se como um desdobramento lógico e conseqüente do atributo de ser accountable e da necessidade de fazer accounts, diante da exigência de se produzir accountabilities sobre o exercício de um mandato.

Pode-se institucionalizar a feitura de accounts abrangentes, que possibilitem um conjunto de accountabilities afins ou relacionadas, sempre que houver demanda por qualquer uma delas. Isso pode refletir o aprendizado de uma organização, sua memória cumulativa de accounts e accountabilities; pode dar conta de prioridades explícitas ou de questionamentos recorrentes. Por exemplo, diante da demanda regular por accountabilities quanto às despesas de capital, pessoal ou custeio de um orçamento, é razoável institucionalizar o procedimento pelo qual a feitura de um account do orçamento atenda a qualquer uma delas. Economizam-se recursos, evitando a duplicação de esforços que ocorreria se cada demanda tivesse que ser atendida por um account em separado.

Viu-se que um único uso de poderes delegados pode ser objeto de diversos accounts. Constatou-se, também, que um mesmo account pode servir à produção de distintas accountabilities. Cabe, ainda, evidenciar que uma mesma accountability pode vir a ter diversos usos.

Figura 1. Fluxos de Accounts, Accountabilities e seus Usos.

Em si mesma a accountability responde às duas questões conexas que atendem ao exercício de qualquer mandato: permite a quem recebe mostrar-se digno da delegação recebida e a quem outorga aferir se esta delegação, ou seu exercício, segue atendendo a seus propósitos. Por esta razão, a accountability pode servir de base a diversos tipos de juízo e, por sua vez, a uma variedade de aplicações para quem recebe ou outorga um mandato. A accountability pode ser parte de esforços que buscam rumos para o aprimoramento de práticas, ou para o controle do desempenho de indivíduos e grupos, ou para a aferição de custos diante de benefícios. Pode alimentar a formulação de policies, “políticas, diretrizes institucionalmente situadas”, ou planejamentos, a avaliação da adesão a prioridades, procedimentos e rotinas. Por exemplo, a accountability orçamentária pode contextualizar e mesmo justificar mudanças de práticas contábeis, alterações na legislação, criação de novas instâncias de controle, supressão ou expansão de rubricas, alocação de mais recursos e, até mesmo, a redefinição dos termos pelos quais se faz e executa um orçamento.

Uso de poderes delegados

Account 1

Account 2

Account 3

Accountability I

Accountability II

Accountability III

Uso A

Uso B

Uso C

Uso de poderes delegados

Account 1

Account 2

Account 3

Accountability I

Accountability II

Accountability III

Uso A

Uso B

Uso C

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As inúmeras aplicações que podem usar da accountability explicam, em larga medida, que se confunda o seu conteúdo com a sua instrumentalidade, ou melhor, com as possibilidades e impactos do seu uso. Assim, se chegam a listas como as apresentadas ao início do texto, cujo equívoco é o de tomar um dentre muitos usos possíveis como definidor do que seja a accountability. Tem-se com isso um lapso lingüístico corriqueiro, que induz ao erro que oculta, perverte ou restringe o entendimento integral de todos os usos, que é o de converter responsabilidades em responsabilização. Por isso, accountability permite “prestar contas”, mas “prestar contas” não é e não esgota tudo o que se pode extrair da accountability. A isto se acrescenta um outro problema derivado da tolerância para com essa imprecisão: o de se impor um entendimento restritivo que embaraça a compreensão, ou mesmo desqualifica arranjos válidos de accountability que dão conta de realidades locais. Se “prestar contas” e apenas “prestar contas” é accountability, então quem identifique cursos de responsabilização para outros fins, o auto-aperfeiçoamento ou a aderência às normas legais, por exemplo, não estaria produzindo accountability? Estaria sim, porque o que distingue e estabelece a accountability é a responsabilização pelo que se faz ou deixa de fazer, seus resultados e conseqüências.

Com tudo isso, a accountability pode ter muitos usos, mas não serve a qualquer propósito. Alcança somente o que foi realizado, as escolhas que foram feitas e as conseqüências destas escolhas no cumprimento de um determinado mandato. É por isso que não se pode tratar o (processo de) account como sinônimo dos diversos usos que podem ser dados aos seus resultados (accountability). Da mesma forma, não se pode confundir accountability com alguma forma de gestão. Accountability pode orientar as tomadas de decisão. Pode subsidiar a elaboração de novas normas ou sugerir o emprego de certos instrumentos de gestão ao invés de outros, por exemplo. Mas isto não quer dizer que se administre por accountability. Ao contrário, se faz account sobre como se administrou. A accountability reporta-se, exclusivamente, ao repertório de respostas a questões e implicações oriundas das escolhas feitas em prol dos fins estabelecidos na delegação ou incumbência recebida. Toda accountability tem, portanto, dois limites insuperáveis que circunscrevem sua realização: o que decorre da natureza de qualquer account e o que corresponde aos conteúdos pelos quais se é accountable.

2.5 Quais são os Limites do Account e da Accountability? Um account só é account porque diz respeito ao que já aconteceu. Refere-se a escolhas feitas no passado. Todo account é inescapavelmente a posteriori. Daí decorre a impossibilidade de se fazer account em tempo real ou em antecipação a uma escolha. Não há como fazer o account de algo que ainda não se fez; de algo que ainda não se terminou de fazer; de um contra factual; de uma conjectura; de uma possibilidade não realizada; enfim, de um desejo. Assim, é inexeqüível fazer o account de um tratamento médico que nunca existiu. Da mesma forma, é impossível fazer o account de uma aula de literatura que o professor ainda não encerrou. É, também, absurdo fazer o account da suposição de que a porta seria arrombada pelo bombeiro mesmo se não tivesse ocorrido um incêndio. Por fim, é nonsense fazer o account da inferência de que o policial teria sido racista caso a vítima fosse negra. Um account só é account porque relata algo que já teve início, meio e fim; algo em que se fizeram escolhas diante de uma situação, e já se conhecem seus resultados e conseqüências.

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Só se é, e só se pode ser accountable pelo que se fez ou deixou de fazer em prol do fim que justifica a delegação recebida de uma dada constituency. Isto significa dizer que se é accountable sobre um determinado conjunto de coisas, que correspondem aos termos específicos que singularizam um determinado mandato, ou seja, o que se poderia descrever como sendo seu âmbito, alcance e contornos.

O âmbito de um mandato estabelece o objeto sobre o qual incidem os poderes delegados. Isto pode se expressar em requisitos ou restrições para e da ação; pode incluir um evento ou classes de eventos; abranger distintos indivíduos e grupos em diversas circunstâncias; compreender determinados locais, lugares ou territórios. Por exemplo, socorrer como requisito, o afogamento como evento, os banhistas de uma praia durante o dia como abrangência, e as praias públicas como território poderiam expressar o âmbito do mandato de uma determinada organização de salva-vidas.

O alcance de um mandato distingue quem exerce os poderes delegados. Esclarece sobre a exclusividade, concorrência, sobreposição ou compartilhamento de uma mesma delegação ou entre delegações distintas que incidem sobre um mesmo objeto. Por um lado, distribui a execução de um único mandato entre diversos agentes delegados. Por outro, baliza as linhas divisórias entre múltiplos mandatos (e seus procuradores) que possuem, ou podem possuir, âmbitos coincidentes. Por exemplo, o socorro aos banhistas nas praias públicas é, ou pode ser, compartilhado por salva-vidas, para-médicos, policiais ou até pelos próprios cidadãos; mas é o salva-vidas que tem precedência no salvamento no mar, como entre os salva-vidas há precedência sobre quem irá agir num determinado caso.

Os contornos de um mandato determinam como se pode exercer os poderes delegados. Indicam exigências e predileções de quem outorga o mandato sobre alternativas desejáveis ou toleráveis de ação. Estabelecem, portanto, as fronteiras contextuais do que se está autorizado a fazer. Identifica o que estaria aquém ou além da intenção da procuração concedida. Em outras palavras, os contornos de um mandato arrolam determinados “modos e meios” de agir ou fazer; tipos particulares de capacidade de ação; os requisitos expressos em determinadas legislações, normas ou procedimentos, associados a uma dada qualificação profissional ou contidos nos elementos de determinada práxis. Por exemplo, impedir banhistas de entrarem num mar bravio está aquém da autorização dada aos salva-vidas que podem apenas usar de procedimentos de alerta; da mesma forma, impedir um banhista resgatado de voltar ao mar está além desta autorização. Num salvamento no mar, a autorização pode desaconselhar ou excluir alternativas de resgate que vitimem o banhista em função de códigos ou normas estabelecidas; pode ainda, diante de resistências do banhista, recomendar ou preferir alternativas mais ou menos impositivas que permitam o resgate.

As liberdades de escolha de quem outorga um mandato e de quem o recebe impõe níveis de flexibilidade intrínsecos, essenciais ao exercício concreto de poderes delegados. Isto empresta especificidade e singularidade ao âmbito, alcance e contornos do exercício de um mandato. É dizer: uma medida de arbítrio perpassa qualquer delegação recebida desde a sua definição até as alternativas reais de seu cumprimento. Tem-se, assim, múltiplas instâncias de discricionariedade que se combinam e interagem, respondendo às demandas de

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uma constituency. Resultam a seu turno, de visões e interesses em conflito e em barganha daqueles que concedem e recebem um mandato.

Na prática, isto se traduz em um processo continuado de afirmação ou alteração dos termos de um mandato. Reafirma-se ou modifica-se os âmbito, alcance e contornos de uma procuração, repartindo-a entre distintos delegados ou mandatos. Dá-se conta de interseções, justaposições ou lacunas. Modificam-se âmbito, alcance, contornos, afinando-os tanto às expectativas da constituency quanto pela consideração de meios e capacitações disponíveis ou possíveis aos agentes delegados (estado-das-práticas, ou até, estado-da-arte). Vê-se aqui o destino supremo do account, que seria por si só razão suficiente para ser accountable. Revela-se o propósito primeiro, ou a materialidade fundante, dos diversos usos da accountability: o aperfeiçoamento do mandato.

2.6 Porque Full Responsibility é Selective Accountability? Ser accountable, fazer account e produzir ou oferecer accountability constituem, em seu conjunto e integralidade, a contraparte dos poderes delegados de um mandato. Correspondem ao atributo de ser responsabilizável, ao processo de identificar responsabilidades, e à responsabilização por escolhas, resultados e conseqüências, no exercício de um mandato à luz de seu fim.

É-se, a priori, responsabilizável, accountable, por tudo o que se faz, ou se deixa de fazer, no exercício de um determinado mandato. Neste sentido, a responsabilidade pela delegação recebida é, em si mesma, sempre plena. Tem-se sempre full responsibility, é-se sempre integralmente responsabilizável pelo (que se faz no) uso dos poderes delegados.

Embora se seja accountable por tudo, não se pode fazer account, ou produzir accountability, de tudo. Há limites insuperáveis para a ambição de uma full accountability, de uma plena responsabilização, que exaurissem todas as escolhas realizadas por cada um dos atores envolvidos, dando conta de todos os resultados e conseqüências em cada evento relacionado ao exercício de um mandato4.

É impossível esgotar ou reconstituir todos os cursos de ação, suas condições e efeitos. É impossível esgotar ou reconstituir plenamente a realidade em toda a sua riqueza e complexidade. É impossível saber tudo, dar conta de tudo. As escolhas, resultados e conseqüências no uso dos poderes delegados que se tornam objetos de account para produzir accountability constituem um recorte da realidade. Reportam-se a um evento ou conjunto de eventos concretos, que foram selecionados em função de questionamentos, prioridades ou demandas. Revelam uma forma particular de olhar, recortar, apreender, reconstruir uma dada realidade que se quer conhecer. Expressam instâncias de discricionariedade que vão, desde um questionamento individual, passando

4 A responsibility é full, é-se plenamente responsabilizável, porque se responde, sempre, pelos resultados dos atos e omissões. Não há, nem se pretende imunidade de quem quer que seja e muito menos da polícia. Tudo o que decorre de um mandado é accountable em termos dos diagnósticos, prognósticos e por extensão do desempenho de uma determinada ação; por outro lado, o diagnóstico, o prognóstico e a justificativa de uma determinada inação. Isso inclui até mesmo a consideração do account de atos presumidamente decorrentes do mandato, mas cuja pertinência à atenção de quem detém o mandato pode vir a ser questionada.

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pelas rotinas de quem exerce o mandato até o atendimento de demandas explícitas da constituency.

Por conta disto, a concreção do account para produzir accountability, e da própria accountability, é, por natureza, seletiva, pois fica sempre aquém da pretensão de se saber tudo sobre tudo. Está sempre, de alguma forma, limitada pelas circunstâncias, pela realidade. Mesmo uma accountability que se anuncia como plena, está fadada a ser seletiva. Se a quimera de uma full accountability é potencial, latente em qualquer mandato, como espelho do atributo de ser-se accountable, é a selective accountability que vige como realidade do exercício de qualquer mandato.

Há questões em que a responsabilização desejada almeja aproximar-se o máximo possível de uma full accountability. Isto conduz a uma accountability exaustiva das escolhas realizadas num certo evento, seus resultados e conseqüências. Por exemplo, é comum que se ambicione fazer um account exaustivo do dispêndio de fundos públicos. Neste caso, os mais diversos cursos de responsabilização, expressáveis em accountability, tornam-se relevantes para se produzir uma resposta que vai desde os porquês e como(s) de um gasto individual até o limite daqueles gastos que são explicáveis num orçamento. Note-se que esta busca por uma resposta exaustiva, baseada num account exaustivo, para uma accountability plena segue sendo seletiva, no caso, limitada ao que se pode saber, ao que se pode reconstruir, ao que se pode explicar.

Há situações em que a responsabilização desejada é satisfeita pela produção de uma accountability que está deliberadamente muito aquém do que seria o limite do possível. Neste caso, a accountability atinge apenas algumas, mas não todas as escolhas, resultados ou conseqüências contidas em determinados eventos ou classes de eventos. Qual seja o critério de seleção orienta-se pela demanda de responsabilização: pode privilegiar determinadas escolhas (operar ou não, na medicina); ou determinados resultados (insucesso de transplante); ou determinadas conseqüências (morte do paciente). Qualquer um destes critérios pode estar posto, a priori, quando da aceitação do mandato; pode ser posto em vigor num determinado momento, por um determinado prazo; ou pode nascer de uma demanda por accountability a partir de um caso individual. Todas estas possibilidades refletem instâncias de discricionariedade, seletividade na produção de cursos de responsabilização desejados. Por exemplo, é comum que a accountability no ensino seja explicitamente seletiva, confinada ao acompanhamento de determinados resultados: o plano de aulas, o número de horas aulas dadas e à apresentação de fichas de presença e notas de alunos. Mas a administração escolar pode demandar account das escolhas de quem ensina diante de uma dúvida ou uma denúncia de certos resultados ou conseqüências. Quem ensina é accountable por tudo, mas só se produz accountability para além destes itens usuais sob demanda. Essa demanda pode estar condicionada a uma rotina, uma amostra entre diversos casos ou a prazos regulares; pode responder à ocorrência de algum fator diferenciador que chamou a atenção; mas podem também corresponder exclusivamente a demandas ad hoc, expedientes, volitivas, nascidas do exercício de discricionariedade de quem concede ou de quem recebe o mandato.

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A realidade dos mandatos é a perspectiva de full responsibility por

meio de selective accountability5. A responsabilidade plena se realiza na identificação (account) e pela atribuição (accountability) seletiva de responsabilização. Esta seletividade, nascida de decisões discricionárias motivadas por questionamentos, prioridades ou demandas, encadeia uma sucessão de traduções do que é potencial no que se pode obter do real, cujo rumo é o da qualificação progressiva da responsabilidade concreta de quem exerceu poderes delegados. Por meio de accounts converte-se a priori o responsabilizável em cursos de responsabilidades identificadas. Por meio do account, vai-se do potencial daquilo pelo que se é responsabilizável (accountable) para a identificação de responsabilidades no desenrolar de um determinado evento. Através da accountability, vai-se destas responsabilidades para a responsabilização de indivíduos, grupos ou instituições por determinadas escolhas, seus resultados e conseqüências neste evento. Tem-se, portanto, um encadeamento de discricionariedades, de seletividade, que articula sobre o que se é accountable, qual accountability se deseja, e qual account pode produzi-la.

Há ainda um outro aspecto fundamental a ser considerado para que se possa compreender como se tem full responsibility por meio de selective accountability. Trata-se da questão das externalidades. No mundo real há mais que intenções e escolhas. Há acaso, há imponderáveis, há acontecimentos que independem da vontade humana, e que alteram ou podem desviar o rumo das ações, seus resultados e conseqüências. Por esta razão, não se é accountable por tudo o que acontece, ou por todos os resultados e conseqüências de uma forma particular de decidir ou agir.

Não é cabível ser accountable por externalidades, pelo que quer que aconteça no exercício de um mandato que não seja decorrente de escolhas. Contudo, é-se accountable pelo que se fez ou deixou de fazer diante de externalidades. É-se, ainda, accountable pelo que se fez ou deixou de fazer diante da possibilidade da ocorrência de externalidades “previsíveis”. Note-se que não há nenhuma contradição entre natureza a posteriori do account e a sua realização sobre decisões ou ações diante de uma possibilidade. O que está em jogo é o account sobre o que se fez no passado, diante da oportunidade de um determinado evento futuro. Trata-se, então, de ser accountable pelo que foi ou não foi antecipado.

Um critério comum a países de tradição do Direito Comum é o de limitar o alcance do “ser accountable pela antecipação” aos “eventos previsíveis por uma pessoa razoável”. Algum critério deste tipo é necessário para refrear uma obrigação de ser presciente sobre tudo, o que é nonsense. Serve para estabelecer sobre o que se pode ser accountable no preparo diante de antecipações “razoáveis”. Como em qualquer account, o account sobre a antecipação remete a explicação sobre como se lidou (o que se fez ou deixou de fazer) diante da possibilidade da ocorrência de um evento, considerando as expectativas da constituency e o que era possível fazer com os meios e capacitações disponíveis. 5 É precisamente porque a accountability corresponde à responsabilização por escolhas que não há contradição ao se afirmar que vai de full responsibility para selective accountability. A realidade de ser-se plenamente responsabilizável corresponde a uma accountability seletiva, melhor ainda, a accountability seleta do que é relevante para ou pelo mandato. Que a plena responsabilização só pudesse existir diante de uma accountability completa, total e contínua revela-se assim como uma fantasia pedante.

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Por exemplo, não se pode ser accountable, responsabilizável, pela chuva forte ou por um equipamento que falha quando dele se necessita; mas se é accountable pela preparação para lidar com a chuva forte e pela manutenção do equipamento, porque é “razoável” antecipar que em algum momento irá chover forte, e que equipamentos falham quando não são mantidos.

2.7 Uma Síntese. Viu-se que um mandato corresponde à busca de um determinado fim pela delegação de poderes, identificando quem o outorga e quem o recebe. A finalidade de um mandato determina os objetivos a serem atingidos, delimitando efeitos e resultados desejados. A delegação de poderes corresponde à concessão de autorizações que circunscrevem decisões, meios e ações compatíveis com a busca destes objetivos. Quem outorga um mandato responde pelo conteúdo, contexto e controle dos poderes que delega. Quem recebe um mandato responde pelo conteúdo, contexto e controle do exercício dos poderes recebidos.

Viu-se que quando se recebe um mandato é-se accountable por ele, responsabilizável por todas as escolhas, resultados e conseqüências do exercício dos poderes delegados diante de quem os outorgou. Viu-se que a materialidade do ser accountable corresponde à accountability, à responsabilização, construída a partir da identificação de responsabilidades, isto é, pela feitura de um determinado account. Viu-se que a accountability serve primeiramente ao aperfeiçoamento do mandato concedido, permitindo (re)afirmar ou rever seus objetivos e poderes. Viu-se, também, que ser accountable, fazer accounts e produzir accountability correspondem, em sua totalidade, à contrapartida necessária do recebimento de poderes. Viu-se, ainda, que a realidade da full responsibility corresponde a uma selective accountability, ou melhor, a uma accountability do que é relevante no e para o exercício do mandato. Viu-se, por fim, que é apenas diante da caracterização de um mandato concreto, isto é, da sua qualificação em termos de âmbito, alcance e contornos, que se podem materializar cursos de responsabilização, accountability, institucionalizando seus usos no mundo real.

3. Accountability Policial Em um sentido geral, a accountability policial corresponde a uma aplicação da definição de accountability aos casos particulares dos mandatos policiais. Refere-se, tão somente, ao repertório específico de respostas a questões e implicações oriundas das ações, seus resultados e conseqüências feitos em prol das finalidades estabelecidas por estes mandatos. Constitui, em sentido estrito, o produto do processo de account sobre o que se fez ou se deixou de fazer por aqueles que receberam da polity a autorização para o exercício de um mandato específico, o mandato policial. A accountability policial reflete as instâncias de discricionariedade ou dinâmicas de seletividade sobre o que certa comunidade política quer saber sobre o exercício de certo mandato policial, em termos de seu âmbito, alcances e contornos.

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3.1 O Mandato Policial Há dois elementos distintivos no mandato policial. O primeiro deles é que a constituency que outorga o mandato policial é a polity. É dizer: o mandato policial é concedido por uma comunidade política, constituída pela sociedade e seu governo, que exerce uma dada governança num determinado território. Isto significa dizer que o mandato policial é, por natureza, uma procuração pública, e, por razões históricas, uma tarefa estatal. Pública, uma vez que se reporta a uma concessão da coletividade. Estatal, já que sua administração cabe ao governo.

O segundo é que o mandato policial incide sobre a própria polity que o outorga. É dizer: o mandato policial corresponde ao exercício de poderes delegados sobre a própria comunidade política que os delegou. Em outras palavras, o mandato policial é a autorização dada por uma polity para ser, ela mesma, objeto da ação de alguns de seus integrantes.

A natureza política, pública, doméstica e comunal do mandato policial permite caracterizar a sua finalidade por excelência: sustentar a ordem social, pactuada na e pela polity, de tal forma a impedir que o exercício dos poderes que a polity concede dela se emancipe, voltando-se contra ela sob a forma da tirania do governo, opressão por seus procuradores ou aparelhamento para propósitos particulares.

A especificidade do mandato policial é a produção autorizada de enforcement em prol da paz social ou da sustentação das regras do jogo social estabelecidas pela polity, sem cometer violações ou violências. Trata-se, portanto, de produzir alternativas de obediência que garantam um determinado status quo desejado numa polity, com o seu consentimento e sob o império de suas leis. De forma sucinta, é isso que define o mandato policial: o exercício do poder coercitivo autorizado pelo respaldo da força de forma legítima e legal.

As diversas autorizações concedidas por uma polity para o exercício do mandato policial têm como fonte o poder coercitivo. Estas autorizações ou poderes delegados podem variar em conteúdo, qualidade e extensão em cada polity. Contudo, são derivações, contextuais e funcionais que gravitam em torno da instrumentalidade do poder coercitivo. O conteúdo instrumental que materializa o poder coercitivo é o uso da força para a polity, na polity, da forma que a polity estabelece. Isto impõe uma inescapável digressão que busca esclarecer este elemento central: o uso da força.

Não há como compreender o uso de força como um fenômeno autônomo, que existe em si mesmo, algo exterior às relações sociais e, por isso, capaz de interrompê-las ou substituí-las. O uso de força é um instrumento a serviço das formas de exercício de poder, com tudo que este tem de paixões, vontades e interesses. A alternativa do uso de força expressa um modo particular de interação social, tão previsível como qualquer outro6. Neste sentido, o uso de

6 No contexto dos relacionamentos humanos o uso de força expressa uma forma particular e distintiva de produzir coerção. Seus fins são os mesmos que os de qualquer alternativa coercitiva: submeter vontades, alterando atitudes e influenciando comportamentos de indivíduos e grupos. O que o distingue de todas as outras formas coativas são seus meios, os meios de força.

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força reflete as expectativas sociais presentes numa comunidade política, quanto à sua possibilidade, manifestação e conseqüência. Isto circunscreve a experimentação antecipada do uso de força como um fato possível ou sua vivência como um ato manifesto. Revela, ainda, a integralidade das expressões empíricas do uso (potencial e concreto) de força. Permite compreender seus efeitos, sobretudo onde a sua manifestação em ato não teve lugar, isto é, onde a apreciação de sua potencialidade foi suficiente para dobrar vontades. Este efeito não é menos uso de força porque prescindiu da realização em ato. Ao contrário, revela-se plenamente uso de força ao instrumentalizar coerção.

Com o exposto, esclarece-se o universo de resultados plausíveis da instrumentalidade do mandato policial em termos do uso autorizado da coerção com respaldo da força. O potencial de força compreende os efeitos dissuasórios e, em alguma medida, preventivos diante da perspectiva ou mesmo apenas da possibilidade do exercício do mandato policial. O concreto de força compreende os efeitos repressivos e, em alguma medida, dissuasórios do exercício do mandato policial.

A forma que uma dada polity estabelece para o exercício autorizado do uso da força configura o rol de alternativas táticas admissíveis na execução do mandato policial. É, precisamente, a autorização de uma comunidade política ou o consentimento social, traduzido em aderência coletiva, pactuação política e dispositivos legais, que dão o conteúdo do uso da força no exercício do mandato policial. Isso é tão mais evidente e distintivo quanto mais próximo se está da ação manifesta, onde a oportunidade do concreto de força se põe. Uma polity pode exigir, modificar, moderar ou proibir alternativas de uso de força, dando conta das representações, expectativas e contextos sociais específicos em relação ao mandato policial. Vê-se, assim, como o uso de força que uma polity admite, ou pode admitir, no exercício do mandato policial depende do que ela espera de, e consente a, seus procuradores.

As organizações estatais de força capazes de atender aos requisitos das polities para o exercício do mandato policial diferenciaram-se das forças armadas nos últimos dois séculos7. O resultado deste processo levou à criação de diversas organizações conhecidas hoje como polícias. A rigor, só é polícia quem recebe da polity o mandato policial como apresentado acima, quem está autorizado a, e responde por, todos os elementos deste mandato.

A polícia é um instrumento de poder para fins restritos e transparentes, autorizada a intervir para produzir obediência na polity pelo uso de força

7 Klockars (1985) conclui que ainda que se possam encontrar diversos antecedentes e experimentos anteriores rumo à “polícia”, foi a experiência da Nova Polícia de Londres 1832 que veio a se estabelecer como o marco na fundação das modernas burocracias policiais estatais, tanto em termos de sua repercussão e emulação quanto como resultado de reconstrução das trajetórias históricas que produziram a “polícia”. Sem embargo, o que se exprime no texto significa que quem quer que receba o mandato policial, não importando se o exerce de maneira permanente, interina, ou pontual, é de facto polícia, independentemente de sua destinação formal ou de sua identidade institucional, como é o caso, por exemplo, do uso de contingentes de voluntários civis ou de efetivos militares como polícia. Assim, o processo de especialização de organizações estatais de força exclusivamente orientadas para o mandato policial não se confunde com algum tipo de monopólio, mas expressa uma realidade histórica presente em termos da divisão social do trabalho e de determinadas soluções para o problema da governabilidade.

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sempre que necessário, nas ocasiões e formas estabelecidas pela polity8. Por esta razão, a polícia se interpõe, e se espera que ela se interponha, entre vontades em oposição ou interesses em conflito, enfim, em qualquer situação que ameace a continuidade dos termos presentes que expressam as pactuações sociais. É porque a polícia existe para preservar, sustentar, garantir que se pode caracterizá-la como defensiva, independentemente da escolha de formas de ação antecipatórias, preemptivas ou restauradoras.

Uma realidade fundamental emerge deste entendimento da polícia como sendo quem recebe o mandato policial de uma polity: a qualidade da definição e do exercício deste mandato, isto é, o modo como ele é estabelecido e executado. Trata-se de apreciar o quanto as atividades de uma polícia se aproximam ou se afastam da integralidade do mandato policial de uma polity, e como este mandato é estabelecido e expresso. Em outras palavras, o quanto o exercício do mandato manifesta a adesão e aderência de uma polícia diante das formas estabelecidas pela polity para a ocasião e uso dos poderes delegados. São estas considerações estruturais que mais imediatamente evidenciam o ciclo de responsabilização que conecta quem delega a quem recebe o mandato policial na busca de sua finalidade, orientando os termos em que cada um deles responde pelo controle, conteúdo e contexto da concessão ou do exercício do poder coercitivo. Revela-se assim como a responsabilização, como a accountability, percorre todo o mandato policial.

3.2 Discricionariedades Há diversas instâncias de discricionariedade que se manifestam no mandato policial. A primeira delas, e a mais importante, é a discricionariedade expressa nas decisões da polity9 que remetem a múltiplos atores, contextos, e temporalidades que conformam o mandato policial e seus termos concretos. Sociedade e governo que configuram a governança de uma polity diferenciam-se internamente. A sociedade é constituída dos mais diversos grupos sociais que partilham e divergem sobre crenças, valores, normas. O governo, por sua vez, contém e expressa disputas entre grupos de interesse. Um e outro podem ou não convergir quanto ao que seja, ou deva ser, ou o que se espera que seja o mandato policial. O que esteja estabelecido como sendo o mandato policial está aberto a esta dinâmica de construção de legitimações, composições e rupturas que caracterizam a governabilidade. Revela-se, aqui, a multiplicidade de instâncias discricionais na confluência de autorizações, questionamentos e direções harmoniosos ou não, emanados da polity sobre a definição e o exercício do mandato policial.

A segunda delas corresponde às decisões e escolhas que selecionam qual accountability a polity, em sua diversidade, deseja, prioriza, descarta e como a utiliza. Em termos concretos, esta instância de discricionariedade compreende as tomadas de decisão do governo, da sociedade e da própria polícia sobre o

8 Isto corresponde a desenvolvimentos, cuja semente está em Bittner (1974) à luz de Bittner (1990b), e que teve tratamento inicial em Proença Jr & Muniz (2006b).

9 É oportuno lembrar que a discricionariedade foi “descoberta” pelos estudos policiais, revelando o equívoco interpretativo pelo qual a lei teria inventado, e seria a mestra, do mandato policial. Ver para uma trajetória deste entendimento Skolnick (1966), Goldstein, (1977), Bittner (1970), Bayley (1982), Klockars (1985).

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porque, sobre o que, quando, como e para que produzir accountability; e mais ainda, sobre como utilizar-se de qualquer accountability produzida ou a produzir. Isso tem lugar tanto em termos do que esteja estabelecido antes da ação policial quanto ainda na forma pela qual se percebe e aprecia, neste sentido, tudo o que se possa questionar por accountability, depois da ação policial. É nesta dinâmica que a selective accountability se faz, e serve a full responsibility.

São estas discricionariedades que contextualizam e conformam a discricionariedade no e do exercício do mandato policial. O poder de decidir sobre a ação policial mais adequada a um certo tipo evento, ou mesmo de decidir agir ou não agir numa determinada situação diante de um evento ou de sua antecipação, revela que a tomada de decisão discricionária é a práxis essencial da polícia, do exercício do mandato policial.

Por sua própria natureza e contexto, a ação policial só pode ser produzida através de uma abordagem autônoma. A produção da solução policial, conformada pelas discricionariedades da polity, premida pelas circunstâncias do momento e exposta às contingências da vida social, possui uma temporalidade particular. A ação policial responde a demandas inadiáveis, a atos ou fatos que estão em curso, e que têm que ser enfrentados, encaminhados, no “agora”. Por isso, a ação policial se dá num tempo presente que é estendido pela duração, pelas necessidades de resolução, da ação. Ela tem lugar numa sucessão de eventos, conexos ou desconexos, contínuos ou descontínuos, envolvendo dinâmicas multi-interativas entre diversos atores. As intensidade, densidade e conseqüência destas dinâmicas impõem a tempestividade do agir policial e explica o caráter limitado, provisório de suas soluções. Isto torna impossível pré-determinar a ação policial em cada situação, exigindo o uso discricionário dos poderes do mandato. Afinal, os elementos singulares presentes em uma situação particular podem constituir o relevo mais importante na solução policial. E é impossível conhecê-los até que se revelem de maneira concreta, imediata, presente numa situação.

A discricionariedade da polícia revela-se, então, bem mais ampla. Vai além das alternativas coercitivas, modos de uso de força, e atravessa integralmente a ação policial. Reporta-se não apenas às oportunidade e propriedade do uso de força, mas alcança toda e qualquer atividade policial. Com o benefício destas considerações, percebe-se como o exercício do mandato policial é uma materialidade da governança, correspondendo à tomada de decisão política na esquina (streetcorner politics)10. Sem embargo, o poder discricionário ganha em complexidade e latitude quanto mais o agente policial esteja envolvido com as tarefas de policiamento, as quais estão, por sua visibilidade, mais expostas à apreciação e ao controle sociais, isto é, mais expostas à demandas por accountability.

Pode-se dizer que a discricionariedade policial ecoa as discricionariedades saídas da polity, e isso de tal maneira que o conteúdo do que seja a ação policial não é redutível a um roteiro pré-determinado, nem mesmo à rigidez de princípios normativos. Ao contrário, o conteúdo da ação policial é determinado diante do contexto de cada situação particular, considerando as direções

10 Na fórmula extraordinariamente feliz de Muir (1977).

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emanadas da polity quanto a oportunidade e a propriedade de um determinado curso de ação. A decisão sobre uma e outra pertence inescapavelmente ao policial individual, que depende de seu poder discricionário para poder realizar o seu trabalho.

Por conta disso, a ação policial está sujeita à apreciação política, social, legal ou administrativa apenas a posteriori, através de accountability. É diante deste entendimento que se pode compreender como a iniciativa da ação policial resulta de uma avaliação ad hoc pelo agente policial. Esta avaliação está também sujeita a diretrizes amplas quanto a sua oportunidade e iniciativa, quanto a sua prioridade e conteúdo, emanadas da organização policial ou apreendidas num determinado contexto. Vê-se aqui como a legalidade da ação policial não resulta de uma abordagem mecânica e auto-referida da lei, e como a sua legitimidade não se constitui pela reprodução cega das exigências da polity, mesmo que expressas em requerimentos ou manuais11. Resultam de interpretações, de um processo de ajustes e adequações aos termos concretos do mandato policial, conduzido em ato pelo agente policial durante sua ação.

3.3 Os Termos do Mandato Policial As instâncias e dinâmicas de discricionariedade permitem compreender como o mandato policial, potencialmente amplo e tão pervasivo, reduz-se a termos concretos mais limitados e restritos. É por isso que só é útil avançar rumo a instrumentalidade da accountability à luz da qualificação do âmbito, alcance e contornos do mandato policial. Estes últimos traduzem os distintos limites e cautelas que tornam real um determinado mandato policial, numa determinada comunidade política.

3.3.1. Âmbito O âmbito reporta-se ao objeto sobre o qual incidem os poderes delegados do mandato policial. O âmbito do mandato policial é a própria polity, decantada pelos mais diversos recortes empíricos. Um recorte freqüente é o que desdobra o âmbito do mandato policial em termos geográficos. Assim o âmbito pode abranger todo o território de uma comunidade política, ou reparti-lo. Estes recortes podem aproveitar divisões geográficas pré-existentes, como bairros, zonas, cidades, áreas metropolitanas, províncias, estados ou grandes regiões de um país. Pode ainda, restringir-se a lugares específicos mais, ou menos, restritos, contínuos ou descontínuos, como as vias ou parques públicos; um porto ou um shopping center; os quartéis militares, os presídios, as agências postais ou bancárias; a vizinhança das escolas, ou o fluxo e as margens de um rio.

11 Revela-se, com isso, a dimensão do equívoco de se querer “legislar a ação policial”, da ambição de controlá-la antecipadamente em lei, o que, paradoxalmente, sabotaria a própria legalidade da ação de polícia. Pois tal legislação não poderia ser cumprida sem produzir imediatamente a sua desqualificação, e, portanto, seria uma lei escrita para ser desobedecida. Aí tudo da ação policial concreta seria ilegal. É essa a discussão que informa a questão do “profissionalismo policial” em Bayley & Bittner (1989) e que motivou a discussão anterior de seu conteúdo como sendo a perspectiva de um “novo profissionalismo” em Klockars (1985).

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Um outro recorte comum é o que desdobra o âmbito do mandato policial em termos de eventos. O âmbito do mandato policial pode abarcar conjuntos de eventos sob rubricas amplas como “Segurança Pública”, “Ordem Pública”, “Law Enforcement”, “Securité Interieur”. Pode restringir-se a certos eventos ou classes de eventos, refletindo autorizações específicas para atuar diante de um ou outro tipo de crime, um ou outro tipo de violência, um ou outro tipo de situação ou perturbação. Assim, pode-se ter âmbitos que circunscrevem um determinado mandato policial ao homicídio ou ao tráfico de drogas; ao terrorismo ou às violências doméstica, de gênero ou intra-familiar; às partidas de futebol ou passeatas políticas; à escolta de autoridades ou à ocasião de eleições; ao cybercrime ou à falsificação de documentos.

Outro recorte é o que desdobra o âmbito do mandato policial pela atenção especial a determinados grupos de pessoas. O âmbito do mandato policial pode estar delimitado a segmentos da população como os contribuintes ou uma comunidade indígena; os parlamentares, os militares ou os policiais.

Os diversos âmbitos dos mandatos policiais estabelecidos por, e numa, polity se sobrepõem, combinam, interpenetram, produzindo uma variedade de arranjos policiais que co-existem de forma mais ou menos atritiva ou cooperativa. Assim, numa mesma polity, a investigação de homicídios pode pertencer, simultaneamente, ao âmbito de distintos mandatos policiais com recortes territoriais local e provincial. Qualificam, ainda, as diferenças de âmbito dos vários mandatos policiais numa mesma polity ou entre distintas polities. Assim, numa dada polity, a circulação de determinadas mercadorias como armas, álcool e tabaco correspondem ao âmbito de um determinado mandato policial específico, e noutras o fluxo destas mercadorias não são objeto de um âmbito distintivo.

3.3.2. Alcance O alcance distingue competência e precedência de quem exerce os poderes delegados numa dada polity. O alcance do mandato policial esclarece sobre a exclusividade, concorrência, sobreposição ou compartilhamento de um mesmo mandato ou de mandatos distintos que têm âmbitos sobrepostos ou coincidentes dentro de uma mesma polícia ou entre distintas polícias.

O alcance permite distribuir a execução do mandato policial entre os diversos policiais de uma mesma polícia. Para lidar com homicídios, há polícias em que a investigação pertence exclusivamente a um departamento especializado em homicídios; há outras em que a investigação do homicídio de certos tipos de vítima pertence a um departamento voltado para pessoas mais expostas a riscos; há ainda polícias em que esta investigação fica a cargo da equipe de policiais que chegou primeiro na cena do crime.

Há polícias em que a investigação de um homicídio por um departamento especializado obedece a precedência do mais sênior, que escolhe seus casos; há outras em que o primeiro policial a lidar com o caso conduz a investigação até o seu final; há outras em que se realiza uma avaliação sobre qual seria o melhor policial para lidar com um caso específico; há outras ainda em que vários policiais entram e saem de um mesmo caso que permanece sendo coordenado por quem tenha começado a investigação.

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Para lidar com situações de alto risco, há polícias que reúnem os policiais convencionais em unidades táticas provisórias, que se dissolvem após sua ação; há outras que dispõem de unidades de operações especiais permanentes; há outras ainda que mantém capacidades táticas, médicas, de negociação e apoio psicológico em unidades especializadas para o atendimento geral de emergências.

O alcance do mandato policial possibilita, também, balizar as linhas divisórias entre diferentes polícias, que possuem, ou podem possuir âmbitos coincidentes. Orienta, por sua vez, arranjos entre organizações policiais que permitem determinar qual polícia deve agir quando há conflitos de competência entre elas.

A administração do trânsito urbano sobrepõe as competências de uma Polícia Municipal com as de uma Polícia Estadual. Diante de um acidente trânsito com morte, pode haver conflito sobre quem é competente para cuidar dessa situação. Se está previamente estabelecido que o âmbito da Polícia Municipal não cobre acidentes fatais, então não há necessidade de discussão de alcance. Cada Polícia cuida de sua parte: a Municipal faz isso e aquilo, a Estadual aquilo outro. Mas se tanto uma quanto a outra podem lidar com o problema, tem-se alguma acomodação, e esta é uma questão de alcances. Há arranjos entre as polícias em que a primeira a se fazer presente no local é quem assume; há arranjos em que as polícias se alternam, ora uma, ora outra na condução do problema; há arranjos em que se convenciona que a precedência entre as polícias decorre de determinados fatores presentes nas circunstâncias do acidente que o fazem atribuição de uma ou da outra.

A circulação de mercadorias através de fronteiras sobrepõe as competências de uma Polícia Municipal com as de uma Polícia Estadual e, ainda, com as de uma Polícia Federal. Diante da apreensão de uma mercadoria contrabandeada na feira pela polícia municipal, pode haver divergências sobre qual polícia dar continuidade ao caso. A discussão de alcance pode permitir uma acomodação que oriente as competências policiais em conflito, em função da origem doméstica ou estrangeira da mercadoria, do tipo ou valor da mercadoria apreendida, ou ainda da suspeita ou não do envolvimento de organizações criminosas.

A administração penitenciária pode levar à sobreposição de competências de uma polícia penitenciária e uma polícia estadual diante de uma rebelião de presos com reféns. A discussão de alcance pode permitir uma acomodação das competências em conflito em função da extensão, duração, gravidade ou repercussão da rebelião, deslocando a precedência de uma polícia para a outra.

3.3.3. Contornos Os contornos determinam como se pode, ou deve exercer os poderes delegados numa dada polity. Os contornos de cada mandato policial indicam exigências e predileções da polity, estabelecendo alternativas desejáveis ou toleráveis para a ação policial. Estabelecem, portanto, os limites contextuais do que uma polícia está autorizada diante da delimitação de seus alcance e âmbito de atuação. São precisamente os contornos do mandato policial que buscam atender às exigências e predileções da polity, identificando o que estaria aquém ou além da intenção da procuração concedida. Por esta razão, os contornos do mandato

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policial qualificam o conteúdo, os “modos e meios” do agir e fazer policial de cada polícia e de suas subdivisões.

Expressam o universo de valores culturais e expectativas sociais de uma polity sobre o mandato policial, estabelecendo diversas instâncias de instrumentalidade que buscam aproximar o exercício do mandato destes valores e expectativas. Os contornos do mandato policial retratam de maneira sensível as interações entre a sociedade e seu governo, buscando dar conta da pluralidade de convicções, interesses e opiniões. Refletem, portanto, um processo continuado de aproximações, um ir e vir, que se apresenta na forma de prioridades políticas, expedientes legais e normativos, diretrizes organizacionais ou administrativas, doutrinas ou métodos de ação, demandas locais, comunais ou minoritárias, clamores, vivências e proposições nascidos das experiências e experimentos diante das circunstancias da vida real.

É na apreciação dos contornos que se revela a centralidade, a onipresença e a constante interferência das instâncias de discricionariedade na, e como, práxis do mandato policial. As escolhas e tomadas de decisão que traduzem as representações e percepções da sociedade, seu governo e sua polícia são o que configura o conteúdo vigente dos contornos de uma determinada organização policial num determinado contexto, num determinado momento do tempo. São nos contornos que se expressam as mudanças mais freqüentes e substantivas no exercício do mandato policial. Os contornos constituem a expressão mais dinâmica, mais vigorosa, do processo de transformação histórica das polícias, uma vez que buscam fazer dialogar o geral com o particular, o formal com o informal, o estrutural com o conjuntural, o que tem a ambição de ser permanente com o contingente.

Este caráter processual e dinâmico dos contornos é uma característica distintiva do mandato policial. Em cada momento, o que sejam os contornos corresponde a uma síntese que busca traduzir as múltiplas instâncias discricionais expressas na concessão do mandato policial pela polity, na execução dos termos deste mandato por uma polícia, e na produção e usos da accountability policial para o aperfeiçoamento do mandato e de seus termos. O que se espera que a polícia seja ou deva ser, faça ou deva fazer à luz da finalidade de seu mandato compreende expectativas e conteúdos de contornos, os quais invadem e (re)configuram os demais termos do mandato, âmbito e alcances, orientando, embasando ou contestando alternativas de ação policial.

A apreciação dos contornos dos mandatos policiais permite comparar os arranjos policiais de uma polity ou de polities distintas. O uso de algemas revela como pode haver diferenças substanciais no propósito e na prioridade de uso de um único instrumento em função de diferentes contornos. Há polícias que estão orientadas a usar algemas diante de qualquer resistência, mesmo a verbal, com o propósito de preservar a incolumidade física dos envolvidos e evitar qualquer uso adicional de força pelo policial; há polícias em que as algemas são usadas principalmente para isolar os envolvidos numa dinâmica conflituosa; há polícias em que as algemas só são usadas para consubstanciar o ato da prisão e para conduzir presos. Há, ainda, polícias cujas polities toleram que as algemas sejam utilizadas para expor presos à humilhação pública de serem vistos algemados.

Os contornos atualizam os âmbitos e alcances dos diversos mandatos policiais concretos de uma dada polity. Isso faz com que se possa apreciar os possíveis conflitos entre polícias com âmbitos coincidentes ou dentro de uma mesma

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polícia com alcances sobrepostos. Pode ser pertinente para uma polity manter polícias autorizadas a agir no mesmo território para impedir monopólios policiais que vulnerabilizem a governabilidade. Pode ser pertinente para uma polícia que a apuração de desvios de conduta de seus integrantes possa ser feita de forma redundante por mais de um departamento para impedir corporativismos. Pode ser pertinente para uma polícia fazer concorrer alcances de coleta de evidências entre os departamentos de ciência forense, investigação e patrulha, de maneira a poder alocar os mais especializados para os casos mais difíceis ou sensíveis, ou mesmo para aprimorar a sua capacidade de pronta resposta.

Os contornos admitem diferenciação nos “modos e meios” de agir ou fazer policiais, que aproximam o que se deseja de uma determinada polícia numa dada polity, beneficiando-se de diferentes instâncias de instrumentalidade.

A preservação, sustentação e garantia dos Direitos Humanos adquire materialidades distintivas no exercício de diferentes mandatos policiais. Há polícias em que os procedimentos de abordagem policial correspondem ao esforço deliberado de evitar questionamentos quanto a possíveis conteúdos discriminatórios ou excludentes em suas práticas. Para tanto, aprimoram suas técnicas de maneira a serem capazes de afirmar, em sua ação, o respeito às diferenças de raça, credo, gênero, idade, orientação sexual, condição sócio-econômica, nacionalidade ou naturalidade.

O acesso a bebidas alcoólicas é objeto de diferentes enquadramentos sociais e legais. Onde vige a lei seca, a polícia deve impedir qualquer consumo de tais bebidas em qualquer lugar por qualquer pessoa; onde a lei seca é um dispositivo limitado no tempo, no espaço, ou ao requisito de uma determinada idade legal, são estes os contornos da ação policial.

A discussão sobre a letalidade dos armamentos policiais tem levado a diversos experimentos sobre os contornos adequados para o uso de armas “não letais”. O caso do Tazer é ilustrativo da maneira pela qual os contornos podem variar diante de experiências e experimentos. O Tazer atende à demanda por uma arma que produzisse incapacitação não letal, e se pensava em adotá-lo como o principal o armamento policial. Mas constatou-se que o Tazer, apesar de não ser letal para a maioria das pessoas, podia ser letal, e mais letal que a arma de fogo quando utilizado contra pessoas de pequena massa corporal, cardíacas ou com propensão fatal a choques elétricos. Isso possibilitou uma reavaliação quanto à pertinência e efetividade do Tazer como arma policial de uso geral.

Há grande variedade nos contornos do contrato de trabalho que vincula, ou investe o profissional de polícia. Há polities que proíbem que o agente policial possa ter outro emprego; ou que possa ter outra atividade profissional na vigilância ou segurança privadas. Há polities em que esta proibição não existe, ou em que, ao contrário, a própria organização policial está autorizada a administrar, e se espera que ela administre a contratação de policiais para vigilância e segurança privadas, usando, ou não, seus uniformes e insígnias.

Finalmente, existe uma ampla variedade de práticas sobre o que sejam os requisitos, o tempo, o conteúdo e as formas de aferição de aprendizado que fazem de um cidadão um policial. Há polícias em que o processo formativo é exclusivamente on-the-job; há outras em que corresponde a um treinamento de maior ou menor duração; há outras em que é um curso de formação ou

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especialização pós-secundário; e há outros em que para ser policial é preciso ter passado por uma formação universitária, geral ou até específica.

A contrapartida à delegação aos policiais de poderes superiores aos de uma pessoa comum, em especial o recurso à coerção pelo uso de força, é a apreciação cotidiana dos atores sociais que compõe a polity e sua governança diante de cada fazer policial. Estes atores reiteram, ou não, sua confiança na polícia. Como resultado desta apreciação, confere-se, ou não, legitimidade, empresta-se ou não credibilidade às polícias, afirmando ou modificando os contornos vigentes de um mandato policial. Neste sentido, “cada sociedade tem a polícia que merece”, ou a polícia que faz por merecer, como se diz em círculos policiais. Apesar de ser tomada como um lugar comum, esta frase corresponde a um entendimento profundo do que é, do que deva ser, a polícia. A “melhor” polícia é a que vivifica cotidianamente os contornos de seu mandato, para corresponder, para aproximar, o que é que a polity deseja que fosse feito em cada situação, em cada ação. Não pode ser diferente. O objeto da polícia é a própria polity, que exercita a sua discricionariedade de outorgante do mandato para demandar as formas, modos e meios que deseja na ação de sua polícia.

3.4 Uma Dimensão Instrumental de Accountability Policial A accountability policial expressa as instâncias de discricionariedade de uma determinada polity, sobre o que se deseja saber do exercício de um mandato policial, por uma determinada polícia, apreciando as escolhas, resultados e conseqüências de sua ação num determinado momento. Assim, não é possível imaginar que um modelo universal de accountability policial possa atender todas as polities e todos os mandatos de forma uniforme, homogênea e satisfatória. É um erro que se pense a accountability policial como uma aplicação mecânica e cega de uma fórmula que teria dado certo em algum lugar, em algum momento. A accountability policial não existe em si mesma, emancipada do contexto que decide sobre sua produção e seus usos. Uma certa accountability policial está associada a uma certa polícia, ao exercício de um certo mandato policial, numa certa polity que define os termos do seu âmbito, alcance e contornos.

O que se pode ter em comum na accountability policial de diversas polícias, ou de diversas polities, é o seu processo, o modo mesmo de sua produção. Toda accountability é seletiva, e resulta da busca pela resposta a um questionamento a partir de um determinado account, circunscrita pelos termos concretos do mandato policial. Pode-se aprender com a experiência, o sucesso ou o fracasso de outros que tiveram que produzir accountability policial. Há o que extrair da forma pela qual se deram conta de problemas, ou requisitos, ou limitações, semelhantes as que se deseja tratar. Em termos mais amplos, nada é mais útil para educar o espírito e a mente de quem considere as questões policiais, no caso, a accountability policial, do que o estudo dos diversos casos e trajetos com o benefício da reflexão e da teoria. Um destes aprendizados é o valor de rotinas e mecanismos que emprestam institucionalidade, sistematicidade, à feitura de account e à produção de accountability. Isto responde à natureza dos questionamentos e respostas articulados pela accountability policial, mas não responde diretamente a seus conteúdos particulares, que seguem sendo singulares de uma realidade específica.

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Muito da accountability policial trata daquilo que as organizações policiais têm em comum com outras agências públicas, como os Correios, ou com outras organizações de serviços, como as Escolas, ou com rotina diuturna de trabalho, como Hospitais, ou mesmo simplesmente com organizações que empregam um efetivo de tamanho comparável: desde a pequena loja comparada a um departamento policial municipal de uma dezena de pessoas até as grandes empresas comparadas a departamentos ou forças policias metropolitanas de dezenas de milhares de pessoas. Demanda-se, basicamente, accountability sobre a administração: o uso dos recursos do orçamento, as políticas de recursos humanos, a regularidade e qualidade do atendimento a “clientes”, os processos de definição de normas, controle de qualidade, aquisição de bens de capital e custeio, gerências dos processos de todo tipo. Há elementos especificamente policiais em cada um destes elementos, porque cada um deles se reveste de conteúdos distintivos em função dos termos concretos do mandato de uma polícia.

A isso se soma, ainda, as demandas que produzem accountability pelas ações policiais no exercício do seu mandato no sentido estrito. O questionamento quanto ao uso autorizado da coerção com o respaldo da força, freqüentemente expresso nas suspeitas de violências, violações ou corrupção nas atividades policiais, inaugura a produção de accountabilities que servem como insumos, exemplos ou pontos de partida para a criação de diversas rotinas dentro e fora das organizações policiais. Pode instituir a elaboração e publicação de relatórios sobre atendimentos policiais, sobre o uso de armas de fogo por policiais, sobre desvios de conduta, sua apuração, e o desempenho da corregedoria. Pode instituir organizações ou recursos que passam, por exemplo, a produzir anuários estatísticos sobre as incidências criminais; dossiês quantitativos ou qualitativos sobre a vitimização de cidadãos e policiais por policiais; indicadores do desempenho policial. Ou mesmo levar a organismos fora da polícia, como ouvidorias (ombudsman), esforços como o Crime Stoppers e suas diversas adaptações, agências civis de certificação policial, observatórios em organizações não governamentais ou ainda linhas de pesquisa nas Universidades. Tudo isso acrescenta demandas à polícia.

Como qualquer outra organização, a polícia se ressente de qualquer demanda direta ou indireta que não seja a reprodução de seus hábitos ou atividades regulares. Tende a perceber cada uma delas como desvios de função que irão subtrair pessoal, recursos e tempo (e, em termos estritos, até corretamente) de suas atividades. Tende, ainda, a vê-las como desperdício ou dispersão sem outro mérito senão o de acomodar pressões externas. Claro que é sempre mais forte, retoricamente, afirmar que essa subtração comprometerá as atividades-fim mais valoradas ou sensíveis do ponto de vista de quem fez a demanda: a “prevenção e redução da criminalidade violenta”, por exemplo.

Contudo, essa é uma percepção míope. É a partir dos acervos e experiências destas atividades que se pode avançar na construção de accountabilities mais e mais capazes de orientar o aprimoramento do exercício do mandato policial. Neste sentido, o argumento de que a produção de accountability e sua institucionalização desperdiçam recursos policiais é falsa. Podem ser mesmo investimentos, que orientam as formas capazes de multiplicar, aperfeiçoar, ampliar, os efeitos da ação policial.

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Dentre os diversos recortes possíveis, a ação policial destaca-se. Trata-se de um recorte essencial para a produção de accountability por remeter à atividade-fim das organizações policiais. Considerar a ação policial como uma categoria de análise significa buscar as alternativas possíveis de suas escolhas, resultados e conseqüências desde um determinado ponto de vista. A instrumentalidade da accountability policial ela mesma corresponde à perspectiva que retorna a esta relação para apreciar causas a partir de efeitos, isto é, a partir de resultados e conseqüências, identificar as escolhas que os explicariam, rumo à identificação de cursos de responsabilização.

Isso permite um exemplo instrumental de accountability policial descrito em quatro passagens. A primeira estabelece como, sob que critérios, “era oportuno agir”, dando conta da decisão de agir, ou não; sob que critérios “agiu-se apropriadamente”, dando contra da forma como se agiu. A segunda passagem exercita estes critérios em termos da combinação lógica de ações “oportunas” e “inoportunas” com ações “apropriadas” e “inapropriadas”. A terceira passagem identifica árvores de responsabilidade associadas à possibilidade de identificar causas para efeitos, problematizando o uso de algum account para produzir accountabilities. A quarta passagem considera o que não se pode extrair do exercício dos critérios de “oportunidade” e “propriedade” da ação policial.

Ainda que qualquer ação policial seja, a um só tempo, “oportuna”, ou não; “apropriada”, ou não; é útil distinguir estas duas dimensões para propósitos analíticos. Por oportunidade se entende a escolha policial de agir, ou não, diante de uma determinada situação. Não-agir, não intervir na situação, é uma alternativa possível, e assim quando se considera a oportunidade da ação, isto inclui a decisão de não fazer nada. Por propriedade se entende a escolha policial da forma de agir entre diversas alternativas possíveis. Neste sentido, uma ação só é “apropriada”, ou não, diante da decisão de agir, mas mesmo a decisão de não fazer nada admite a consideração da forma apropriada de não se fazer nada. Com isso, tem-se claro que “oportunidade” e “propriedade” de uma ação policial são dimensões distintas que se complementam.

Nenhuma ação policial é “oportuna” ou “apropriada” em si mesma, mas apenas diante dos termos concretos de seu mandato. Sem dúvida que os mandatos policiais das mais diversas polities podem compartilhar diversos elementos de âmbito, alcance e contornos similares. Assim, é possível, mesmo esperado, que haja ações policias que seriam vistas como “oportunas” ou “inoportunas”, ou “apropriadas” ou “inapropriadas”, por um grande número de pessoas ou policiais das mais diferentes polities. Ainda assim, em termos rigorosos, o que seja uma ação policial oportuna, ou uma ação policial apropriada de uma dada polícia para fins de accountability não necessitam ficar reféns da esperança destas semelhanças. Estas considerações emergem e são estabelecidas num determinado contexto, numa determinada comunidade política, por uma polícia específica à luz dos termos concretos de seu mandato vigente. Os termos concretos do mandato policial, neste sentido preciso e específico, dependem da maneira pela qual âmbito, alcances e contornos são configurados. Como os termos de um mandato policial são previamente estabelecidos por qualquer polity para qualquer uma de suas polícias, pode-se falar de “oportunidade” e “propriedade” da ação policial como categorias gerais e aplicáveis a qualquer uma polícia específica.

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Para os propósitos deste exercício, os termos do mandato policial se encontram expressos, subentendidos, nas categorias “oportunidade” e “propriedade”. Essas categorias embutem a autorização do mandato policial pela polity. O consentimento social para produzir alternativas de obediência com respaldo da força sob o império da lei pode ser referenciado em três ordens de consideração que se interpenetram, se confirmam, se modificam, se contradizem: as exigências de natureza política, do governo, expressas em termos de diretrizes e prioridades; as exigências de natureza social, da coletividade, expressas em termos de demandas das comunidades policiadas ou de grupos sociais; e as exigências de natureza legal, expressas na legislação e normas que refletem uma dada pactuação social num determinado momento do tempo. As duas primeiras exigências reportam-se à caracterização da legitimidade da ação policial e os processos de legitimação; a terceira remete de maneira mais aparente à caracterização da legalidade da ação policial. Assim, pode-se tomar a “oportunidade” de uma ação policial e a “propriedade” de uma ação policial como juízos que se orientam a partir das exigências de legitimidade e legalidade de uma dada polity.

Ao se considerar as alternativas lógicas que combinam as categorias “oportunidade” e “propriedade”, realiza-se um experimento mental, em que se imagina considerar uma determinada ação policial (agir ou não agir, como agiu) ocorrida no passado, e que corresponde ao descritivo de uma destas alternativas lógicas de combinação. Isso significa que o que se realiza aqui é um exercício qualitativo, que busca apresentar apenas as quatro possibilidades presentes na figura abaixo como símbolos de quatro caracterizações possíveis de uma ação policial a ser objeto de accountability.

Figura 2. Oportunidade e Propriedade da Ação Policial.

1. Ação policial oportuna e apropriada. Corresponde a uma ação em que i) a escolha do policial (de intervir, ou não) é compatível com os termos do seu mandato e ii) a forma de ação do policial é compatível com os contornos do seu mandato. Esta caracterização dá conta de todas as situações em que o policial agiu quando devia agir e da forma como devia agir. Neste caso, tem-se iniciativa e tática policiais adequadas.

Oportunidade: juízo sobre a pertinência do agir policial

Propriedade: juízo sobre a forma do agir policial

3 - “Devia agir,não dessa forma”oportuno e inapropriado

2- “Não devia agir,não dessa forma”inoportuno e inapropriado

1 - “Devia agire dessa forma”oportuno e apropriado

4 - “Não devia agir,mas dessa forma”inoportuno e apropriado

x

y

Oportunidade

Propriedade

( - ) ( + )

( -

)(

+ )

( x, y )

( - , - ) ( + , - )

( + , + )( - , + )

Oportunidade: juízo sobre a pertinência do agir policial

Propriedade: juízo sobre a forma do agir policial

3 - “Devia agir,não dessa forma”oportuno e inapropriado

2- “Não devia agir,não dessa forma”inoportuno e inapropriado

1 - “Devia agire dessa forma”oportuno e apropriado

4 - “Não devia agir,mas dessa forma”inoportuno e apropriado

x

y

Oportunidade

Propriedade

( - ) ( + )

( -

)(

+ )

( x, y )

( - , - ) ( + , - )

( + , + )( - , + )

3 - “Devia agir,não dessa forma”oportuno e inapropriado

2- “Não devia agir,não dessa forma”inoportuno e inapropriado

1 - “Devia agire dessa forma”oportuno e apropriado

4 - “Não devia agir,mas dessa forma”inoportuno e apropriado

x

y

Oportunidade

Propriedade

( - ) ( + )

( -

)(

+ )

( x, y )

( - , - ) ( + , - )

( + , + )( - , + )

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2. Ação policial inoportuna e inapropriada. Corresponde a uma ação em que i) a escolha do policial (de intervir, ou não) é incompatível com os termos do seu mandato e ii) a forma de ação do policial é incompatível com os contornos do seu mandato. Esta caracterização dá conta de todas as situações em que o policial agiu quando não devia agir e de uma forma inaceitável. Neste caso, tem-se iniciativa e tática policiais inadequadas.

3. Ação policial oportuna e inapropriada. Corresponde a uma ação em que i) a escolha do policial (de intervir, ou não) é compatível com os termos do seu mandato mas ii) a forma de ação do policial é incompatível com os contornos do seu mandato. Esta caracterização dá conta de todas as situações em que o policial agiu quando devia agir, mas de uma forma inaceitável. Neste caso, tem-se uma iniciativa policial adequada e uma tática policial inadequada.

4. Ação policial inoportuna e apropriada. Corresponde a uma ação em que i) a escolha do policial (de intervir, ou não) é incompatível com os termos do seu mandato mas; ii) a forma de ação do policial é compatível com os contornos do seu mandato. Esta caracterização dá conta de todas as situações em que o policial agiu quando não devia agir, mas da forma como devia agir. Neste caso, tem-se uma iniciativa policial inadequada e uma tática policial adequada.

O enquadramento de uma determinada ação policial numa destas caracterizações é o primeiro passo do processo de accountability. É o que permite fazer dialogar os termos do mandado concreto com determinadas escolhas que foram feitas numa determinada ação policial, numa determinada situação real. Isso compreende uma análise que se inaugura pelo contraste entre a decisão tomada nesta ação policial e outras decisões tomadas em outras ações de acordo com o que esta polícia orienta a tomada de decisão. No caso deste exercício, em termos de oportunidade e propriedade. Assim, em termos de oportunidade da iniciativa policial, da decisão de agir ou não, aprecia-se a situação e se afere se a decisão tomada foi, ou não, compatível com o que é o estado das práticas, ou com as diretrizes, da organização policial. Em termos da propriedade a ação policial, da forma como se agiu, aprecia-se se esta forma de agir foi, ou não, compatível com o estado das práticas, os procedimentos, com as diretrizes, da organização policial.

Isso significa que pode existir latitude tanto numa quanto noutra decisão. Para uma polícia, pode haver situações diante das quais tanto a iniciativa de agir quanto a de não agir são igualmente oportunas. Para uma polícia, pode haver uma diversidade de alternativas de condução, de táticas policiais. Estas podem ter diversos enquadramentos, sendo mais ou menos hierarquizadas como formas de agir aceitáveis, recomendáveis, obrigatórias. Em termos de formas de agir, o que é apropriado expressa um determinado estado da arte da tática policial, conformada pelos contornos do mandato policial concreto de uma polícia, numa determinada polity, num determinado momento do tempo.

Cada uma destas caracterizações supõe que uma ação policial já teve lugar, já produziu resultados e se conhecem suas conseqüências, e que esta ação foi objeto de questionamento, fazendo-se necessário produzir accountability sobre ela, do ponto de vista de oportunidade e propriedade. Isso significa, ainda, que previamente a seu enquadramento nestas categorizações, existe um

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determinado juízo, mais ou menos impressionista, mais ou menos tácito, mais ou menos fundamentado, sobre se essa ação “deu certo” ou “deu errado”, se ela foi mais um “sucesso” ou um “fracasso”.

Este juízo de sucesso ou fracasso decorre da leitura que os integrantes da polity fazem da ação, à luz de suas representações, expectativas sobre o mandato de uma polícia, alimentando percepções e opiniões construídas a partir das informações a que cada um teve acesso. Por esta razão, ter agido com oportunidade e propriedade não necessariamente conduz ao juízo de que a ação policial foi um sucesso; ter agido inoportunamente e inapropriadamente não necessariamente conduz ao juízo de que a ação policial foi um fracasso.

Diante da caracterização de uma determinada ação policial em termos de oportunidade e propriedade, dá-se seguimento ao processo de accountability pelo delineamento de árvores de responsabilidades, isto é, das causas possíveis dos efeitos encontrados. Trata-se de escolher ramos de causas através de ponderações regressivas, que recuam do momento em que a ação produziu seus resultados e conseqüências, para explicar e responsabilizar porque ela foi (in)oportuna e (in)apropriada. Neste processo, não há limites lógicos o quão para traz se pode chegar. O limite desta regressão é a identificação de causas demonstráveis, partindo daqueles efeitos tomados como relevantes pelo desejo de uma determinada accountability.

Este percurso admite aberturas e fechamentos de linhas de responsabilidade, em virtude dos resultados da própria accountability que afere a relevância de uma certa linha de responsabilidade para explicar os efeitos evidenciados numa ação policial. Exercitam-se discricionariedades, pratica-se seletividade, na escolha das árvores de responsabilidade sobre os quais se busca identificar cursos consistentes de responsabilização. Novamente, não há limites lógicos a este processo de abertura ou fechamento, nem qualquer critério próprio, imanente, pelo qual se possa dar rumo a accountability. Ela é inteiramente dependente da combinação das instâncias de discricionariedade que articulam questionamentos, a busca de respostas, a relevância das respostas e a satisfação ou não com tais respostas.

Ainda que se possam acrescentar outras instâncias e espaços no processo de accountability, o ponto de partida necessário para a sua realização é a consideração da materialidade da polícia. Ordinariamente, isto remete à apreciação dos recursos policiais que estavam disponíveis para, e na, ação sob análise. Isso por si mesmo já exige o desdobramento de quais recursos poderiam estar disponíveis, se eles poderiam ser mais adequados, e tudo o mais. Essa não é uma violação da lógica da accountability ao inquirir sobre alternativas, ao contrário: é o rumo de poder produzir de maneira precisa as respostas às perguntas: quais eram os recursos disponíveis para essa ação? Por que estes, e não outros recursos foram os disponíveis? Quão adequados foram estes recursos para a ação policial? Como eles influenciaram, ou não, as escolhas da iniciativa e da tática policial?

Assim o espaço natural para o desenho de árvores de responsabilidade é a materialidade da combinação dos recursos policiais. Faz-se polícia com a polícia que se tem, seja em função dos recursos disponíveis para uma polícia, seja em função daquela fração singular de recursos disponíveis para a ação da qual se deseja accountability. Faz-se accountability do que a polícia fez diante do que ela devia ter feito, considerando o que ela, de fato, podia fazer. Novamente, faz-

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se accountability do que a polícia fez, das escolhas de oportunidade e propriedade da ação policial; diante do que ela devia ter feito, diante dos termos concretos do mandato; considerando o que ela, de fato, podia fazer, isto é, a disponibilidade de recursos na, e para, a ação. Isso tem lugar através do mapeamento dos fluxos decisórios que produziram uma dada disponibilidade de recursos e não outra.

Pode haver, de fato, tantas maneiras de descrever os recursos policiais quanto as polícias. Isso não é empecilho para que se possa compartilhar uma determinada visão sobre como descrevê-los. Como os recursos policiais são multidimensionais e variados, é útil agrupá-los em conjuntos de recursos agregados pela sua afinidade desde o ponto de vista do delineamento de causas a partir de efeitos na accountability da ação policial. Neste sentido, seria possível descrever os conjuntos de recursos como sendo agrupamentos “orientados a problemas”.

Os conjuntos de recursos não são nem equivalentes, nem homogêneos em uma determinada organização policial. Eles são descontínuos no que se refere à sua distribuição e uso no tempo e no espaço. Isto significa dizer que em uma mesma polícia podem co-existir diferentes disponibilidades, e distintas qualidades de uso, de cada conjunto de recursos. É possível que todos os agentes policiais tenham uma arma de fogo, mas nem todos estejam capacitados ou tenham competência policial no seu uso. Estes conjuntos correspondem a:

i) Suporte e articulação organizacionais, que compreendem o que a organização policial pode prover a indivíduos ou equipes policiais em termos de seu mútuo apoio, incluindo aí a distribuição do efetivo policial no espaço e no tempo, a capacidade de reforço ou acesso a recursos especializados, etc.

ii) Equipamentos e materiais, que compreendem amplamente a logística de uma organização policial em termos materiais, incluindo desde o fardamento, armamento e munição até o suprimento de ataduras no kit de primeiros socorros, passando pelos instrumentos de comunicação, de proteção pessoal, ou o talonário de multas.

iii) Acervo de procedimentos, que compreende o conjunto de condutas de ação, que inclui a aplicação dos contornos em diversas circunstâncias particulares, e espelha o conhecimento e os saberes policiais, enfim, o estado das práticas partilhado pelos policiais, construído pela experiência coletiva no planejamento e execução da ação policial, na forma de expedientes informais ou normas e procedimentos padrão.

iv) Capacitação de indivíduos e equipes, que compreende os resultados dos processos educacionais, isto é, a capacidade de fazer uso concreto do que foi aprendido, seja em percursos de formação geral, seja em percursos de formação específica. Isto se expressa em diferentes qualidades individuais, em diferentes habilidades para o empreendimento de uma determinada tarefa policial.

v) Capacidade decisória, que compreende a qualidade decisória de indivíduos ou grupos policiais na realização de diagnósticos e

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prognósticos em tempo hábil diante de determinadas situações, e de decidir, implementar e supervisionar cursos de ação, usando os recursos disponíveis e comandando indivíduos ou equipes policiais.

vi) Competência policial, que compreende os diferentes perfis de maior ou menor grau de especialidade ou experiência dos profissionais de polícia envolvidos na ação diante das tarefas que a situação demanda.

A apreciação destes recursos para fins de accountability depende de sua ponderação pelas condições reais de saúde ocupacional dos policiais. Isso se expressa, por exemplo, na apreciação da curva de fadiga e estresse ao longo de um turno de trabalho ou ao longo da trajetória individual de trabalho.

Imagine-se que a ação policial sobre a qual se deseja accountability refira-se a um questionamento que suspeita que teria havido uso excessivo da força, e que a ação seria um exemplo de violência policial. A situação seria em que um assaltante foi alvejado pela polícia depois de ter sido desarmado e rendido.

O primeiro passo é considerar o enquadramento desta ação em termos de uma das categorizações indicadas. Considerou-se que a ação policial foi “oportuna”, pois a iniciativa policial de agir para frustrar o assalto foi compatível com os termos do mandato desta polícia. Considerou-se, ainda, que a forma da ação policial foi “inapropriada”, pois ter atirado no suspeito depois de rendido era, de antemão, incompatível com os contornos do mandato desta polícia nesta situação. Tratou-se de uma iniciativa policial entendida como adequada, porém com uma tática policial considerada inadequada.

O segundo passo é delinear as árvores de responsabilidade capazes de identificar as causas deste efeito indesejado, a vitimização do suspeito sob custódia. O que pode explicar este efeito? A busca pelas causações por sobre os recursos policiais disponíveis pode produzir diversas respostas que se complementam ou se excluem na identificação de cursos de responsabilização. Em termos amplos, pode-se dizer que estas respostas poderiam apontar para incapacidades, incompetências ou erros. Cada uma delas poderia referenciar um determinado desenlace do processo de accountability.

Identificou-se, por exemplo, uma incapacidade de equipamento: a arma do policial disparou sozinha, após o policial guardá-la no seu coldre conforme o procedimento padrão. A arma estava degradada e sua trava de segurança não funcionou quando o policial imobilizava o suspeito. Concluiu-se que isso sugere uma falha de manutenção ou até de aquisição do armamento policial. Diante da importância conferida a esta incapacidade, pode-se institucionalizar accountability sobre a aquisição e manutenção do armamento policial. O curso de responsabilização incide sobre o policial, mas aponta na direção dos que respondem pelo armamento da polícia.

Identificou-se, por exemplo, que o policial autor do disparo foi incompetente: o disparo teria sido acidental, porque o tiro aconteceu quando ele tentava travar sua arma. Conclui-se que isso sugere uma falha na sua capacitação para o manuseio da arma, o que pode indicar a necessidade de revisão do treinamento policial do uso da arma de fogo. Diante da importância conferida a esta incompetência, pode-se institucionalizar accountability sobre a formação policial. O curso de responsabilização incide sobre o policial, mas aponta na direção dos que respondem pelo treinamento da polícia.

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Identificou-se, por exemplo, que o policial autor do disparo errou ao reagir com sua arma a uma agressão verbal de parte do suspeito. Conclui-se que isso foi uma falha motivada pela inexperiência do policial na administração do uso da força, reagindo desproporcionalmente à situação. Diante da importância conferida a erros deste tipo, pode-se institucionalizar accountabilities sobre o processo de recrutamento, seleção e formação de policiais, a gestão das carreiras policiais e suas trajetórias e o acervo de procedimentos no uso de força. O curso de responsabilização incide sobre o policial, mas aponta na direção de vários outros que respondem por diversos aspectos da polícia.

Independentemente do seu propósito, no exemplo a suspeita de uso excessivo da força ou violência policial, a accountability produzida para responder a este questionamento pode ter outros usos. Nos breves exemplos imaginados acima, tem-se a compreensão de quais recursos policias estavam, de fato, disponíveis numa determinada ação. Encaminha-se a construção de um entendimento das causas desta disponibilidade. Edifica-se um acervo de explorações que pode servir à organização para além do estudo de caso que deu origem a uma determinada accountability.

A apreciação destas árvores de responsabilidades e suas causações têm ainda que considerar a possibilidade da interferência de externalidades, isto é, de imponderáveis que não derivaram de vontades e escolhas policiais. No caso das situações imaginadas, foi possível distinguir que eventos exteriores à situação não foram relevantes para a identificação de causas e, portanto, de cursos de responsabilização.

Há limites sobre o que se pode obter com a aplicação do enquadramento da ação policial em categorizações que combinam oportunidade e propriedade. Este tipo de ferramenta de análise não pretende dar conta, por exemplo, das motivações e intenções pessoais ou grupais que levam os policiais a decidirem ou agirem de tal ou qual maneira. Reflete, tão somente, as escolhas realizadas em si mesmas e ações empreendidas à luz de sua adesão aos termos do mandato policial. Assim, a intenção deliberada de policiais ou grupos de policiais de agirem como “justiceiros”, “matadores de bandidos” consiste numa violação explícita do mandato policial. Isto demanda outros percursos de accountability, complementares ao enquadramento da ação policial em termos de oportunidade e propriedade. Isto por que estas perversões do mandato policial podem ser invisíveis a este enquadramento, podendo ser camufladas, disfarçadas em ações oportunas e apropriadas pela construção deliberada de falsas oportunidades e propriedades. Podem-se constituir disfarces de ações policiais oportunas e ou apropriadas pela fabricação de falsos cenários, falsificação ou ocultação provas, montagem de locais de crime, e mesmo a produção de apreensões e prisões. Tudo isso para ocultar fracassos, ou inventar sucessos que acobertem a violação do mandato policial e suas possíveis licenciosidades.

O enquadramento da ação policial em categorizações que combinam oportunidade e propriedade também não tem como dar conta da corrupção policial em toda a sua complexidade. A possibilidade de corrupção perpassa todas as quatro alternativas lógicas de categorizações apreciadas, podendo se fazer presente antes, durante e depois de ações policiais (in)oportunas e (in)apropriadas.

Esta característica pervasiva da corrupção torna complexa e desafiante sua apuração e controle. Ações policiais oportunas e apropriadas podem ser

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motivadas, criadas, modificadas ou aproveitadas para atender interesses particulares de policiais ou de outros. Isto significa dizer que podem ocorrer modalidades ou práticas corruptas que não violem de forma explícita o mandato policial, pois se colocam e se beneficiam de lacunas, brechas e intervalos comuns e freqüentes entre contornos, alcance e âmbito dos mandatos policiais concretos. Estas práticas podem ter lugar nas interseções inescapáveis e folgas necessárias entre o que se deseja de um mandato policial e as formas concretas de seu atendimento, entre o que pode e o que não pode ser feito. Por isso mesmo, estas tendem a ser menos visíveis e palpáveis, mais enraizadas e longevas do que aquelas que confrontam explicitamente o mandato policial.

A isto se soma um fator complicador que é o contexto de uma polity, que constrói e admite distintos níveis de tolerância ou aceitação social. Em muitas comunidades, as fronteiras que distinguem o que se costuma definir as atividades policiais como corruptas podem ser muito fluidas, pouco nítidas. Elas podem ser favorecidas pelas, ou mesmo se confundirem com, práticas culturalmente estabelecidas de trocas sociais, com mecanismos informais de reciprocidade e gratuidade. Em suma, podem ser inscritas nas dinâmicas de prestações e contraprestações que alimentam e vivificam elos entre distintos grupos sociais.

Viu-se, pois, a abrangência e os limites da apreciação da ação policial pelas considerações de oportunidade e propriedade como uma ferramenta para o exercício de accountability policial. Esta ferramenta não cobre e nem ambiciona cobrir indagações sobre as possíveis motivações ou intenções para a ação policial. Ela as toma como elementos de partida de qualquer escolha ou juízo, embutidos nos resultados e conseqüências que se presente avaliar. Restringe-se, portanto, e esta é sua virtude, ao mérito substantivo da oportunidade e propriedade da ação policial, orientando o estabelecimento de cursos de responsabilização que, mediante orientação da polity, pode seguir rumo ao entendimento das motivações ou intenções as mais diversas.

4. Considerações Finais O propósito deste ensaio foi o de enquadrar a questão da accountability policial de maneira útil. Assim sendo, ele dispensou, nesta ocasião, o preâmbulo usual de uma revisão sistemática da considerável literatura sobre o assunto, que pode ser encontrada nas obras referenciadas mais abaixo. Ainda assim, é oportuno compartilhar alguns dos vínculos com algumas obras que, é importante assinalar, são a semente, a provocação, o convite a partir dos quais se pode apresentar os elementos acima.

O vínculo mais tênue diz respeito à transitividade, à passagem, dos termos centrais da problemática tratada (accountable, account e accountability). Esforços anteriores já haviam identificado o conjunto de expectativas, de significados socialmente situados, que se associam a cada um deles no idioma inglês. Aqui foi necessário romper com a ambição, em si mesmo meritória, de intentar uma tradução, como apresentado na nota inicial que abre o texto. O fato simples é que, como dizem os italianos, traduttore tradittore, toda tradução é (alguma) traição. E o acervo de alguns desvios apresentou-se como demasiado para os propósitos do texto.

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Revelou-se oportuno priorizar a discussão do conteúdo dos termos, preservando-os em seu idioma original. Aqui a discussão foi propriamente exploratória. É oportuno registrar, apenas, o caráter do uso das palavras em idiomas latinos, onde raiz e trajetória histórica apontam para significados precisos, e a forma própria do uso do idioma inglês. Até onde é possível perceber, por exemplo, por responsible se entendem simultaneamente, ou se admite entender alternadamente, tanto responsável quanto responsabilizável. Aqui os autores admitem francamente que o que se apresenta mais acima é um esforço inicial que busca imprimir algum rigor a termos que se ambiciona possam vir a ser categorias úteis.

Já o vínculo com a temática tratada, ela mesma, é bem mais firme e fácil de relatar. O problema mais amplo do que é a accountability policial tem sua expressão mais límpida no trabalho de Goldstein (1977). A responsabilidade por um evento de violência policial é ilustrada e problematizada pelo autor, a partir da explicitação de uma árvore de responsabilidades possíveis, que se inicia na polícia, vai ao governo e chega até a sociedade policiada: inicia-se com o policial individual, passando por seus superiores até o chefe de polícia, daí para o executivo e para o legislativo (que controla e aprova decisões de nomeação), e culmina atingindo os próprios cidadãos que elegeram a um e outro. Revela-se, com isso, um problema central explorado neste texto. Esforços de imputação de responsabilidade não chegam a lugar nenhum quando eles perdem de vista o encadeamento de instâncias de discricionariedade, de processo, de mediação e articulação entre a polity (que concede e é objeto do mandato policial) e a polícia (que o recebe e o executa). Produzem, no limite, o inverso da responsabilização, uma vez que conduz à total indistinção entre delegações, escolhas, ações, seus resultados e conseqüências: se todos são, a todo tempo, responsáveis por tudo, então não se tem como atribuir responsabilidades concretas a alguém em particular. Sem a pretensão de resolver este problema, Goldstein sugere a responsabilização política como um ramo frutífero a ser explorado nas democracias, indicando, por exemplo, o processo eleitoral como um espaço relevante de expressão das autorizações, demandas e questionamentos do público, enfim, de sua aprovação ou desaprovação em relação ao governo e às polícias.

Um encaminhamento contemporâneo de alguma influência é o esforço de Bayley (2001b), que ambiciona compreender a democratização das polícias no mundo a partir da replicação de determinadas normas e rotinas. Sua maior preocupação é a perversão, no sentido estrito, da polícia, num instrumento do Estado contra a sociedade, num primeiro momento, e de grupos de poder sobre a sociedade, logo em seguida. Aqui o problema é outro. Trata-se da difícil passagem entre o que se ambiciona produzir pela adesão a normas ou rotinas e a construção de mecanismos capazes de produzi-las numa dada polícia, com um dado mandato policial, numa dada polity, num determinado momento. A generosidade e a coragem de oferecer um modelo são empanadas, portanto, pela carga de elementos deixados implícitos do contexto de origem, isto é, a falta de uma explicação sobre como se operam tais normas e rotinas diferenciadamente na solução múltipla e concorrencial dos EUA para a questão policial, que admite uma infinidade de polícias com âmbitos e alcances sobrepostos ou coincidentes, e com elementos de contorno afins e conflitantes. Claro, isso significaria ter que lidar com o quanto este modelo é mais um amálgama de experiências e experimentos do que um modelo propriamente

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dito, e aí exatamente está o ponto: fazer polícia democrática seria, então, adotar práticas policiais dos EUA? Esse é um dos elementos centrais que motivou a clarificação dos aspectos específicos que singularizam o processo de accountability policial quando ele se faz, se coloca, e pretende ser útil para uma dada realidade social, ou seja, para uma dada polícia numa determinada polity num determinado momento.

Quando Walker (2005) oferece mecanismos adaptáveis, ou a inspiração para a edificação de tais mecanismos, na sua “nova accountability”, a seu turno, ele arrisca-se ambicionar demasiado, além do seja o possível para a produção de accountability policial e seus usos. Sua proposta é estabelecer mecanismos em tempo-real, abrangentes, automáticos e redundantes. Sistemas de account autônomos e sobrepostos que se acionam automaticamente para todo e qualquer incidente, por exemplo, de uso arma de fogo pela polícia. Estes sistemas incluiriam os próprios policiais da unidade envolvida, uma primeira cobertura; departamentos especializados em account da polícia, uma segunda cobertura, automática e paralela a primeira; e ainda uma auditoria externa de account, que monitora em tempo real as duas primeiras, oferecendo uma terceira cobertura paralela e com autonomia para rever ou refazer account. A partir de um certo ponto, se arrisca emancipar toda esta atividade do que é que a polity, ou a polícia, desejam para diversos propósitos, pondo em tela a questão da oportunidade dos custos e recursos necessários para tal sistema. Um primeiro olhar é que isso enfrenta problemas crescentes, de deseconomias de escala, quanto maior seja a organização policial que ensaie esta proposta. O que pode ser fácil para departamentos de algumas centenas de policiais pode ser difícil para departamentos com milhares e impossível para departamentos com dezenas de milhares de policiais. Fica, ainda, uma questão de deseconomias de âmbito, isto é, da disponibilidade de pessoas, da factibilidade concreta, e mesmo da utilidade de account em tempo real de tudo num nível padrão de detalhamento. Há trade-offs, trocas cruzadas, evidentes em qualquer proposta deste tipo, e no caso da accountability policial a sua solução é evidente: escolhas nas diversas instâncias de discricionariedade. Mas Walker não enfrenta o problema da discricionariedade que permeia e perpassa todo o mandato policial, mesmo que se sujeite a ele, no mesmo exemplo, ao aceitar sem discutir a prioridade da accountability do uso da arma de fogo. Assim, não há espaço para as instâncias reais de discricionariedade em sua proposta nem para o account nem na accountability. A “new accountability” é um pleito por uma “full accountability”, pura e simplesmente. Por isso pareceu tão relevante dar conta, de fato expor a falácia, da busca por uma full accountability, o que levou, a seu turno, ao que se explicou mais acima sobre selective accountability como capaz, de fato unicamente capaz, de levar à full responsibility.

O rumo desta solução parece corresponder a um dos rumos que Goldstein apontava como capazes de vir a dar conta da questão, o do arrimo teórico, da construção de ambição conceitual, capaz de clarificar o que é a accountability em geral, e daí dar conta do que é específico e particular na accountability policial. Sem dúvida que o que se expôs aqui é mais derivado, desenvolvido, a partir de Bittner (1970, especialmente 1974, 1990b) do que de Goldstein, porque é em Bittner que se tem o rumo de uma teoria.

Mas ainda assim é simples questão de justiça apontar como a explicitação e apreciação de Goldstein da árvore de responsabilidades, refletida à luz da construção teórica de Bittner, permitiram avançar neste texto rumo à

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compreensão do processo de identificação de responsabilidades (account) e da atribuição de cursos de responsabilização policial (accountability). É também uma questão de justiça indicar como a clareza de Goldstein na denúncia de uma apropriação de accountability repercute na escolha do rumo de apresentação. Sucintamente, como uma proposição de accountability policial não pode ser submetida, não pode ser reduzida, a uma maneira de procurar saber como ser popular ou a ser aprovado seja pela maioria, seja por uma minoria vocal. Só faz sentido considerar uma accountability policial como sendo a maneira pela qual a polícia responde, em sentido amplo, sobre o exercício do mandato recebido da, e aplicado na, polity. Em outras palavras, para Goldstein, o problema de se precisar a accountability policial é o de como impedir que a polícia possa ser uma vereda para a apropriação do exercício do mandato policial legítimo e legal por interesses privados, sejam os da maioria, sejam os de minorias vocais.

Que a accountability tenha utilidade para a própria polícia só soa surpreendente porque não é ao redor da execução do mandato policial que se costuma colocar a questão. O mais usual é que a accountability policial seja cobrada das polícias de diversas formas, em diversos momentos, mas muito freqüentemente quando a organização policial está fragilizada por algum resultado ou conseqüência indesejável ou indesejada. Mas se a questão da accountability é contextualizada, quando se percebe que ela não pertence exclusivamente a tais momentos, então ganha-se muito em densidade e clareza.

A institucionalização de formas de accountability policial é fértil, uma vez que estrutura e recria capacidades para produzir account capaz de sustentar novas accountabilities úteis para o aprimoramento e para a multiplicação do efeito da polícia. Isso admite diversos desdobramentos sobre as formas pelas quais legitimidade e legalidade, consentimento social e sua expressão legal, explicam a credibilidade policial e as formas como esta última conforma a capacidade de uma polícia cumprir o seu mandato que podem aguardar outra ocasião.

O mais importante é destacar que este texto relata como a accountability policial não é, e se é accountability policial não pode ser, algo “contra a polícia”. Ao contrário, como se espera ter demonstrado, a accountability policial é a contrapartida necessária aos poderes delegados do mandato policial. Seu uso e aperfeiçoamento pertencem, também, ao exercício mesmo deste mandato. Dito de outra forma: uma polícia que avalia a maneira pela qual exerce o seu mandato, como se pratica discricionariedade, em seu patrulhamento, ou sua investigação, ou sua análise forense com vistas à melhora de seu desempenho está fazendo accountability, mesmo que não a chame assim. Porque é desta forma que se podem apreciar as escolhas, resultados e conseqüências do exercício do mandato.

Daí abrem-se duas alternativas conclusivas conexas. A primeira é a de franquear o uso da accountability policial como ele se apresenta, isto é, como um instrumento de utilidade para quem delega e para quem recebe o mandato policial, isto é, tanto para a polity quanto para a polícia. A segunda é argüir pelo seus valor e oportunidade, o que pode corresponder, na prática contemporânea, a argüir pela compreensão de suas natureza e forma, e estimular a sua prática para todos os envolvidos: para toda a polity e, acima de tudo, para qualquer polícia.

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Sobre os Autores Jacqueline Muniz - Mestre em Antropologia Social e Doutora em Ciência Política. Professora Adjunta do Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes, Coordenadora do Grupo de Estudos em Justiça Criminal e Segurança Pública, Membro do Grupo de Estudos Estratégicos e Sócia fundadora da Rede de Policiais e Sociedade Civil da América Latina. Exerceu as funções de diretora do Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública – SENASP/Ministério da Justiça (2003); Coordenadora Setorial de Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos (2002) e Diretora da Secretaria de Segurança Pública (1999) Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Domício Proença Júnior – Doutor em Ciências (D.Sc.) em Estudos Estratégicos, recipiente da Ordem do Mérito da Defesa. Professor do Programa de Engenharia de Produção da Coppe/UFRJ. Membro do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, Londres) e da Associação Internacional de Chefes de Polícia (IACP, Leesburg, Va.). Listado no Marquis Who’s Who in the World desde 1996. Coordenador do Grupo de Estudos Estratégicos.

São diretores científicos do Instituto Brasileiro de Combate ao Crime (Recife, Pernambuco, Brasil).