adc e contribuiÇÕes para as reflexÕes sobre a formaÇÃo do leitor

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Curitiba 2011 Anais do VII Congresso Internacional da Abralin Análise Crítica do Discurso e sua contribuição para as reflexões sobre a formação do leitor Marco Antonio Batista Carvalho Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) [email protected] Resumo: Este trabalho objetiva refletir sobre as possíveis contribuições da Análise Crítica do Discurso para as reflexões sobre a formação do leitor crítico. Para tanto as reflexões buscam fundamentar, com base principalmente nos estudos de como as relações de poder são fortemente marcadas no processo educativo, a necessidade de estudo aprofundado sobre a formação, nos cursos de graduação, do futuro professor de Língua Portuguesa. Portanto, pesquisar sob quais condições ocorre a formação destes profissionais para que possam posteriormente formar leitores críticos perpassa pela investigação de como estes futuros professores, no período de sua graduação, trabalharam as relações discursivas de poder. Palavras chave: Formação de Professores; Formação do leitor crítico; Análise Crítica do Discurso; Relações de poder. INTRODUÇÃO Refletir a formação do leitor implica reconhecer a importância do processo de escolarização que pode potencializar a postura crítica de alunos em formação diante dos diferentes gêneros textuais a que estará exposto, seja nos mais variados trabalhos realizados na escola ou mesmo, no cotidiano de suas experiências sociais. Assim, como a escola se apresenta como um espaço social privilegiado para a exploração sistêmica de experiências com a aprendizagem de conteúdos que são mediados pelo professor por meio da linguagem, é oportuno objetivar como o espaço escolar pode contribuir para a formação de leitores críticos. Isso é respaldado pela seguinte afirmação de Michel Fayol, na introdução da obra de Foulin & Mouchon (2000, p. 10): “a educação busca modelar o comportamento, as atitudes, os saberes e os valores dos membros de uma determinada sociedade”. A afirmação acima deixa transparecer a não neutralidade da educação e, logo, a não neutralidade do professor a quem é incumbido a mediação. Ela também permite visualizar-se a importância de se discutir com os alunos não apenas que espécie de comportamento social a escola busca moldar, mas também com quais 2802

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Análise Crítica do Discurso e sua contribuição para as reflexões sobre a formação do leitor

Marco Antonio Batista CarvalhoUniversidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)

[email protected]

Resumo: Este trabalho objetiva refletir sobre as possíveis contribuições da Análise Crítica do Discurso para as reflexões sobre a formação do leitor crítico. Para tanto as reflexões buscam fundamentar, com base principalmente nos estudos de como as relações de poder são fortemente marcadas no processo educativo, a necessidade de estudo aprofundado sobre a formação, nos cursos de graduação, do futuro professor de Língua Portuguesa. Portanto, pesquisar sob quais condições ocorre a formação destes profissionais para que possam posteriormente formar leitores críticos perpassa pela investigação de como estes futuros professores, no período de sua graduação, trabalharam as relações discursivas de poder.

Palavras chave: Formação de Professores; Formação do leitor crítico; Análise Crítica do Discurso; Relações de poder.

INTRODUÇÃO

Refletir a formação do leitor implica reconhecer a importância do processo de

escolarização que pode potencializar a postura crítica de alunos em formação diante

dos diferentes gêneros textuais a que estará exposto, seja nos mais variados

trabalhos realizados na escola ou mesmo, no cotidiano de suas experiências sociais.

Assim, como a escola se apresenta como um espaço social privilegiado para a

exploração sistêmica de experiências com a aprendizagem de conteúdos que são

mediados pelo professor por meio da linguagem, é oportuno objetivar como o

espaço escolar pode contribuir para a formação de leitores críticos. Isso é

respaldado pela seguinte afirmação de Michel Fayol, na introdução da obra de

Foulin & Mouchon (2000, p. 10): “a educação busca modelar o comportamento, as

atitudes, os saberes e os valores dos membros de uma determinada sociedade”.

A afirmação acima deixa transparecer a não neutralidade da educação e, logo,

a não neutralidade do professor a quem é incumbido a mediação. Ela também

permite visualizar-se a importância de se discutir com os alunos não apenas que

espécie de comportamento social a escola busca moldar, mas também com quais

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mecanismos os valores são transmitidos no ambiente escolar.

Para referendar esse espaço envolto em interesses que vão para além do

aprendizado de saberes acumulados pela humanidade ao longo da história, Paulo

Freire (1992) já indicava que a escola, com seus diferentes atores, e com as

múltiplas relações que se estabelecem a partir dos discursos que se materializam

em práticas pedagógicas, estão carregadas de intencionalidade:

[...] como se houvesse a possibilidade de uma prática educativa em que professoras, professores, alunos e alunas pudessem estar isentos do risco da manipulação e de suas consequências. Como se fosse ou tivesse sido possível, em algum tempo-espaço, a existência de uma prática educativa distante, fria, indiferente, com relação a “propósitos sociais e políticos”. (FREIRE, 1992, p. 80)

Seguramente, nessa buscar de moldar os comportamentos e os valores

sociais, a manipulação é um poderoso aliado do processo de dominação e do

exercício de controle pela via do poder que se manifesta principalmente de forma

velada nesses espaços educativos. Assim, pensar que a escola possa formar o aluno

com o hábito da leitura e oferecer uma formação crítica a esse leitor

inevitavelmente nos leva a refletir sobre a necessária preparação do profissional da

educação responsável pela mediação dos diferentes discursos a que os alunos terão

contato.

Portanto, já no início do processo educativo escolar, no trabalho com

diferentes conteúdos, os professores devem desenvolver práticas que possam

oportunizar aos seus alunos posturas críticas que lhes possibilitem uma melhor

leitura de mundo. Embora tal responsabilidade seja de todos os professores, é

evidente que determinadas áreas se apresentam como essenciais para fornecer

essa formação. Logo, a área de Letras se destaca na preparação do futuro professor

de língua portuguesa que, pela especificidade de seu trabalho, é quem deverá

mediar a relação dos alunos com textos em suas diferentes modalidades, assim

como os diferentes discursos que os constituem como produto da dinâmica das

relações sociais.

Diante dessas considerações, a questão posta é como a escola pode formar

leitores críticos. Por isso, a Análise Crítica do Discurso – ACD se apresenta como

uma fonte potencial de reflexões sobre a formação crítica, pois ela nos ensina que

as mais diferentes formas de relações sociais são permeadas por relações de poder

e de dominação. Da mesma forma, ela nos ensina também que a linguagem,

enquanto prática social, é carregada de valores ideológicos que, velada ou

explicitamente, se incorporam na interação entre os usuários da língua. Por essas

duas razões, é significativo refletir sobre a importância que a ACD adquire como

uma ferramenta de luta possível contra a dominação por fornecer uma dimensão

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crítica à análise de diferentes modalidades textuais no ambiente escolar,

problematizando o papel do discurso na reprodução de ideologias e propondo

leituras alternativas.

HISTORIOGRAFANDO A ANÁLISE CRÍTICA DO

DISCURSO

Toda a tentativa que se propõe a historiografar determinado movimento,

episódio, ação ou qualquer que seja o objeto terá, no limite de seu esforço, a

certeza de que será impossível uma abordagem que dê conta da totalidade do

objeto estudado. Assim, a descrição historiográfica da ACD a que este texto se

propõe se limitará a apontamentos de alguns referenciais que inscreveram esta

abordagem teórica no rol dos desdobramentos que vêm ocorrendo na área da

linguagem. Mesmo assim, cabe referendar que o objeto central deste texto não é a

historiografia da ACD, mas, sim, a possível aplicação de seu aporte teórico como

ferramenta para as reflexões sobre a formação de leitores críticos.

Temos no cenário teórico da linguística, duas corrente que tratam da Análise

do Discurso. Uma de origem francesa e outra de origem anglo-saxônica. Para

autores como Helena H. Nagamine Brandão (2004) e Viviane de Melo Resende &

Viviane Ramalho (2009), que, respectivamente, escrevem sobre a Análise do

Discurso e sobre a ACD, podemos encontrar a argumentação de que o nascedouro

dessas abordagens se encontra no embate entre o formalismo e o funcionalismo.

Maingueneau (1976) faz referência aos estudos russos de abordagem formalista

que possibilitaram, no campo da linguística, o surgimento do conceito de discurso.

Referendando essa posição, vemos Eagleton (1997, p. 172) apresentar o teórico

russo Mikhail Bakhtin como o pai da análise do discurso, “ciência que acompanha o

jogo social do poder no âmbito da própria linguagem”.

Para identificar a complexidade que uma proposta investigativa que busca na

Análise do Discurso o seu referencial teórico, vale notar como Mussalim (2009)

identifica essa corrente da linguística: “Falar em Análise do Discurso pode significar,

em um primeiro momento, algo vago e amplo, praticamente pode significar

qualquer coisa, já que toda produção de linguagem pode ser considerada ‘discurso’”

(MUSSALIM, 2009, p. 101). Nessa mesma obra, a autora identifica que a Análise do

Discurso, de origem francesa, tem seu início na década de 1960, com a

apresentação de dois pesquisadores que a cunharam, a saber, Jean Dubois e Michel

Pêcheux, afirmando que o que une esses dois expoentes é o fato de que “ambos

são tomados pelo espaço do marxismo e da política, partilhando convicções sobre a

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luta de classe, a história e o movimento social” (Ibid., 2009, p. 102).

Quanto à Análise do Discurso de origem anglo-saxônica, Resende e Ramalho

(2009), afirmam que:

O termo “Análise do Discurso Crítica” foi cunhado pelo linguista britânico Norman Fairclough, da Universidade de Lancaster, em um artigo publicado em 1985 no periódico journal of pragmatics. Em termos de filiação disciplinar, pode-se afirmar que a ADC confere continuidade aos estudos convencionalmente referidos como Linguística Crítica, desenvolvidos na década de 1970, [...] A ADC se consolidou como disciplina no início da década de 1990, quando se reuniram, em um simpósio realizado em janeiro de 1991, em Amsterdã, Teun van Dijk, Norman Fairclough, Gunter Kress, Theo van Leeuwen e Ruth Wodak. (RESENDE & RAMALHO, 2009, p. 20-21)

Teun A. Van Dijk (2008) é de opinião de que a ACD deveria ser chamada de

Estudos Críticos do Discurso por uma série de razões. Contudo, neste texto adota-

se, para todos os fins referenciais, o termo Análise Crítica do Discurso (ACD),

mesmo ao se fazer referência a esse autor, que se constitui como um dos

importantes teóricos que analisa as diferentes formas de abuso de poder, que, em

sua obra, são identificados pelas categorias de doutrinação e manipulação, entre

outras que serão trabalhas no sentido de objetivar sua utilização no contexto

escolar.

Embora tenham marcos referenciais semelhantes quanto ao seu nascedouro e

suas bases teóricas também possuam os mesmos conceitos centrais, como, por

exemplo, os conceitos de ideologia e de discurso, essas abordagens são distintas,

como argumenta Pedro (1997):

[...] em meu entender, por se tratar de uma publicação não sobre análise do discurso mas sobre Análise Crítica do Discurso, perspectiva que recusa a neutralidade da investigação e do investigador, que define os seus objetivos em termos políticos, sociais e culturais e que olha para a linguagem como prática social e ideológica e para a relação entre interlocutores como contextualizada por relações de poder, dominação e resistência institucionalmente constituídas. (PEDRO, 1997, p. 15)

Em Mussalim (2009), encontramos um comentário semelhante sobre a

diferença entre as duas abordagens:

O que diferencia a Análise do Discurso de origem francesa da Análise do Discurso anglo-saxã, ou comumente chamada de americana, é que esta última considera a intenção dos sujeitos numa interação verbal como um dos pilares que a sustenta, enquanto a Análise do Discurso francesa não considera como determinantes essa intenção do sujeito; [...] Essa é, entre outras, uma das diferenças teóricas entre as duas linhas. (MUSSALIM, 2009, p. 113)

Nossa opção pela ACD como base reflexiva para se projetar uma educação

escolar que oportunize a formação do leitor crítico será apresentada na sequência,

na medida em que serão destacados alguns de seus pressupostos teóricos que

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possibilitem a tomada de consciência quanto aos diferentes mecanismos de

dominação presentes nas relações sociais.

A ACD COMO FERRAMENTA DE LUTA NO ESPAÇO

ESCOLAR

Para se teorizar a possível utilização da ACD como ferramenta de luta contra a

dominação, é importante identificar seu objeto de investigação. Nesse sentido, vale

destacar como um dos seus mentores define a abordagem investigativa da ACD:

“um é um tipo de investigação analítica discursiva que estuda principalmente o

modo como o abuso de poder, a dominação e a desigualdade são representados,

reproduzidos e combatidos por textos orais e escritos no contexto social e político”.

(VAN DIJK, 2008, p. 113)

É também relevante a afirmação que Pedro (1997) faz da aplicação da ACD na

luta contra a manipulação de discursos que legitimam práticas discriminatórias,

principalmente quando o fazem pelo recurso da naturalização de práticas

homofóbicas, sexistas e racistas, materializada pela via dos diferentes recursos

textuais. Assim, a autora afirma que “um dos objetivos da Análise Crítica do

Discurso é o de analisar e revelar o papel do discurso na (re)produção da

dominação” (PEDRO, 1997, p. 25)

Comentando também que o texto, em suas diferentes modalidades, é

amplamente utilizado como recurso manipulativo, Van Dijk (2008) ratifica a posição

de Pedro ao afirmar que:

Uma das tarefas mais cruciais da Análise Crítica do Discurso (ACD) é explicar as relações entre discurso e poder social. Mais especificamente, tal análise deveria descrever e explicar como o abuso do poder é praticado, reproduzido e legitimado pelo texto e pela fala de grupos ou instituições dominantes. (VAN DIJK, 2008, p. 87)

Entre essas instituições, destaca-se a escola, que, como já apontado, trabalha

com conceitos ideológicos para além do trabalho puramente voltado para a

transmissão de saberes acumulados chamados de conteúdos. Os conceitos

ideológicos são transmitidos a partir de estratégias discursivas que referendam a

não neutralidade na educação. Norman Fairclough (2008) comenta acerca da

seleção de textos:

A seleção de textos prévios e de tipos de texto que são articulados em uma dada instância (um “evento discursivo” particular) e a maneira como são articulados dependem de como o evento discursivo se situa em relação às hegemonias e às lutas hegemônicas. (FAIRCLOUGH, 2008, p. 29)

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Por isso, pensar no contexto escolar e na relação forma-conteúdo, ou seja, na

maneira como se trabalha o conteúdo em diferentes abordagens metodológicas,

será determinante para as diferentes manifestações de manipulação presentes no

trabalho educativo, seja pela seleção dos textos a serem mediados pelo professor

ao preparar suas aulas para este ou aquele conteúdo, seja pela forma como esta

mediação ocorrerá. Assim, tem-se a identificação de uma das possíveis relações de

poder que ocorrem de forma explícita no trabalho educativo. Porém, há também

uma questão importante: é possível que o professor sequer se dê conta de que o

texto escolhido por ele ou escolhido para ele – ou a sua própria forma de trabalho –

possui fortes marcações ideológicas.

Comentando sobre essa incapacidade e os riscos derivados de o professor não

se perceber participante de um processo de manipulação, Carlos Brandão (1995)

diz:

[...] pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome de todos, o educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na verdade, ele pode estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu trabalho, para os usos escusos que ocultam também na educação – nas suas agências, suas práticas e nas idéias que ela professa – interesses políticos impostos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade que habita. (BRANDÃO, 1995, p. 11)

Evidencia-se, assim, a importância de uma formação teórica para os

profissionais da educação que possibilite identificar como e em que dimensões se

materializam os diferentes discursos de poder que permeiam o trabalho educativo,

uma vez que a atuação do professor na interação com os alunos é identificada

como mecanismo potencializador de formação de opinião.

Ao referir-se às diferentes maneiras de controle pela via do discurso, Van Dijk

afirma que:

Em muitas situações, as pessoas comuns são alvos passivos, em maior ou menor grau, de textos orais e escritos, por exemplo, de seus chefes, professores ou autoridades [...] os quais podem simplesmente dizer-lhes em que devem (ou não) acreditar ou o que podem (ou não) fazer. (VAN DIJK, 2008, p. 119) (grifos meus)

De fato, a responsabilidade de um professor ao trabalhar a materialidade de

um texto em sala de aula é muito grande, pois podemos ter professores que,

mesmo apregoando uma ação pedagógica progressista, crítica e com potencialidade

transformadora, ao prepararem suas aulas e mesmo ao trabalharem didaticamente

com o texto em suas diferentes expressões, podem estar contribuindo, de forma

negativa, para a instrumentalização crítica do aluno. Quanto a essa necessária

instrumentalização, Freire enfatiza que:

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Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico do conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras dimensões afins do conhecimento. Estudar é uma forma de reivindicar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de objeto. [...] A compreensão de texto não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado. (FREIRE, 1982, p. 10)

Ou, ao contrário disso, professores, e em especial os professores de língua

portuguesa, poderiam desenvolver um trabalho caracterizado por uma prática que

estimule tão somente a memorização do texto. Assim, no campo do trabalho com a

língua materna, o que pode ocorrer com tal postura é o desenvolvimento de

práticas reducionistas no que diz respeito à cobrança pela assimilação de regras

normativas da ortografia e por um maior acervo vocabular, desconsiderando, por

exemplo, que um dado texto, qualquer que seja, pode e deve ser ricamente

explorado para além de sua estrutura linguística.

Para fins de conceito, o termo texto, utilizado nesta proposta investigativa,

semelhante ao conceito Freireano já apresentado, é também identificado no

conceito explicitado pela pesquisadora Ingedore Villaça Koch (2009), para quem:

[...] o texto deixa de ser entendido como uma estrutura acabada (produto), passando a ser abordado no seu próprio processo de planejamento, verbalização e construção. Combinando esses últimos pontos de vista, o texto pode ser concebido como resultado parcial de nossa atividade comunicativa, que compreende processos, operações e estratégias que têm lugar na mente humana, e que são postos em ação em situações concretas de interação social. (KOCH, 2009, p. 26)

A pesquisadora, nessa mesma obra, ao tratar da construção de sentidos em

um texto, apresenta dois conceitos: intertextualidade e polifonia. Esses conceitos

também se apresentam como fundamentais para as discussões a que se presta

esta pesquisa. Assim, cabe destacar que, ao comentar sobre a intertextualidade,

Koch (2009) diz que:

Isto significa que todo texto é um objeto heterogêneo, que revela uma relação radical de seu interior com seu interior; e, desse interior, evidentemente, fazem parte outros textos que lhe dão origem, que o predeterminam, com os quais dialoga, que retoma, a que alude, ou a quem se opõe. (Ibid., 2009, p. 59)

Neste contexto, cabe citar a referência que Koch (2009) faz de Barthes (1974)

ao definir o verbete texto:

O texto redistribui a língua. Uma das vias dessa reconstrução é a de permutar textos, fragmentos de textos, que existiram ou existem ao redor do texto considerado, e, por fim, dentro dele mesmo; todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis. (BARTHES, 1974, Apud, KOCH, 2009, p. 59)

Para polifonia, Koch (2009) apresenta o mentor desse conceito e já o

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O conceito de polifonia, como se sabe, foi introduzido nas ciências da linguagem por Bahktin (1929), para caracterizar o romance de Dostoievski. Para Bahktin, o dialogismo é constitutivo da linguagem: “A palavra é o produto da relação recíproca entre falante e ouvinte, emissor e receptor. Cada palavra expressa o “um” em relação com o outro. Eu me dou forma verbal a partir do ponto de vista da comunidade a que pertenço. O Eu se constrói constituindo o Eu do Outro e por ele é construído”. (Ibid., 2009, p. 64)

Assim, entende-se que, no discurso, o dialogismo identifica a composição de

outros discursos. Estabelece-se uma perspectiva multifacetada de sentidos, pois a

própria palavra, que é construída historicamente, assume diferentes sentidos,

carrega diferentes interesses. Bakhtin (2009) afirma que a palavra é produzida no

contexto sócio-cultural e por meio dele; logo, se produz em interação verbal

quando do processo comunicativo.

A questão da carga de conteúdo ideológico que as palavras carregam pode ser

observada quando Bakhtin (2009) afirma que elas “são tecidas a partir de uma

multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos

os domínios” (BAKHTIN, 2009, p. 42).

Entre esses fios ideológicos que tecerão as tramas no tecido social,

encontram-se os diferentes interesses políticos, culturais e econômicos presentes

no processo de comunicação entre os homens. Afirmando a interação presente na

linguagem, Bakhtin (2009) diz:

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (BAKHTIN, 2009, p. 127)

A necessidade de explorar o texto, de desvelar as diferentes interações sociais

que no texto se engendram, é compreendida a partir da referência feita por

Fairclough (2008), que, ao conceituar discurso, diz:

Minha tentativa de reunir a análise linguística e a teoria social está centrada numa combinação desse sentido mais socioteórico de “discurso” com o sentido de “texto e interação” na análise de discurso orientada linguisticamente. Esse conceito de discurso e análise de discurso é tridimensional. Qualquer ‘evento’ discursivo (isto é, qualquer exemplo de discurso) é considerado como simultaneamente um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social. (FAIRCLOUGH, 2008, p. 22)

Corrobora também com essa definição Van Dijk (2008, p. 12), quando diz que

“O discurso não é analisado apenas como um objeto “verbal” autônomo, mas

também como uma interação situada, como uma prática social ou como um tipo de

comunicação numa situação social, cultural, histórica ou política”.

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Logo, se o discurso é componente da prática social e é permeado por um tipo

de comunicação, a comunicação deve ser pensada em termos de uma relação

dialógica, onde são partícipes desta interação os sujeitos cognitivos e o objeto

cognoscível que serão mediados pela linguagem. Sobre esta fundamental interação

social, Freire nos diz que “o sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode

pensar sem co-participação de outros sujeitos no ato de pensar sobre o objeto [...]

Esta co-participação dos sujeitos no ato de pensar se dá na comunicação” (FREIRE,

1980, p. 66). Ele acrescenta ainda que a comunicação “implica numa reciprocidade

que não pode ser rompida. Comunicar-se é comunicar-se em torno do significado

significante. Desta forma, na comunicação, não há sujeitos passivos”. (Ibid., 1980,

p. 67)

São diversas as críticas em que se identifica a não reciprocidade que acaba

colaborando para a passividade e a não criticidade necessária aos alunos.

Comentando sobre as práticas de letramento que ocorrem na escola americana, a

pesquisadora Ângela B. Kleiman (1995) revela o modelo que reforça a passividade,

quando comenta os estudos de Heath:

[...] o modelo que determina as práticas escolares é o modelo autônomo de letramento, que considera a aquisição da escrita como um processo neutro que, independentemente de considerações contextuais e sociais, deve promover aquelas atividades necessárias para desenvolver no aluno, em última instância, como objetivo final do processo, a capacidade de interpretar e escrever textos abstratos, dos gêneros expositivo e argumentativo, dos quais o protótipo seria o texto ensaio. (KLEIMAN, 1995, p. 44)

Argumentando ainda sobre o que ocorre nas práticas de letramento no Brasil,

a pesquisadora afirma que:

Os estudos realizados no contexto brasileiro mostram uma situação semelhante quanto à reprodução do status quo pela escola, situação esta, entretanto, muito agravada pela pobreza e pelo analfabetismo generalizado, que torna as conseqüências desse processo cíclico de reprodução da desigualdade muito desumanas. (Ibid., 1995, p. 45)

Assim, a prática de ensino escolar que não promove as relações sociais

presentes não compreendem igualmente este processo como uma ação dialógica,

que é um conceito fundamental na perspectiva de educação de Freire e presente

em Bakhtin ao tratar da linguagem. Portanto, ao tomar-se esse pano de fundo

referencial e ao adotar-se a linguagem em uma perspectiva mais abrangente, pode-

se defini-la como um processo que oportuniza a interlocução entre os indivíduos,

qualquer que seja a sua natureza, pois a linguagem não se apresenta no contexto

social somente de forma verbalizada, ou seja, de forma escrita e falada. Antes, a

linguagem também se expressa socialmente de outras formas, nas artes plásticas,

nas artes gráficas, nas artes cênicas, na fotografia, na musicalidade. Enfim, nas

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mais diferentes formas de manifestação que se originam a partir de um

determinado sistema de signos, a linguagem permeia o tecido social.

Como afirmou Bakhtin (2009), todo o signo é o resultado de um consenso

entre os indivíduos que estão socialmente organizados e em processo de interação.

Logo, é fundamentalmente necessário compreender a linguagem como um produto

das interações sociais que se dão na realidade imediata e, ao mesmo tempo, como

parte constitutiva desta realidade. Na interação da linguagem com a própria

existência dos homens, ela assume papel decisivo no tocante à transmissão de

normas e valores sociais que, em dado período da história e com o registro em

determinadas sociedades, instituem a educação escolar como principal agente

desta transmissão, embora outras formas de educação sejam possíveis.

No contexto escolar, essa transmissão frequentemente privilegia a forma oral

e a forma escrita. A primeira, a partir do histórico de ser utilizada para adaptar o

homem aos saberes necessários de sua organização social; e a segunda, para que

ocorra a fixação da oralidade expressa pelo professor, assim como para servir de

argumento de avaliação dos conteúdos fixados.

Portanto, pensar como se processa essa transmissão é, antes de tudo,

também refletir como se convive, como se criam e se recriam nossos signos sociais

ao longo da história. Assim, desenvolver a linguagem é condição imprescindível

para se apreender a realidade que nos envolve. Compreendê-la é, acima de tudo,

uma das formas de nos percebermos no mundo.

Tomar-se a linguagem como um discurso construído socialmente implica,

como afirma Fairclough (2008), assimilar o discurso como uma forma em que as

pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros. Pode-se dizer

que, explicitamente ou veladamente, a linguagem e o discurso atuam como

mecanismo de controle pela via do poder.

Ao propor uma possível distinção entre as diferentes manifestações de poder

que compõem o tecido social, Van Dijk (2008) afirma que essas distinções ocorrem

pela forma com o qual o poder é exercido. No caso dos professores, este poder se

manifesta pela via dos saberes acumulados, ou seja, pelo seu conhecimento, assim

como pela outorga socialmente atribuída à sua função. Logo, é extremamente

importante a proposta de se discutir a formação do professor de língua portuguesa,

uma vez que é ele quem mais trabalhará com a capacidade discursiva e

interpretativa de seus futuros alunos.

Freire nos leva a refletir sobre a importância de, no trabalho educativo,

professores e alunos desenvolverem mecanismos de reconhecimento das relações

de poder que se estabelecem na sociedade e, principalmente, fazer frente a elas,

numa perspectiva de transformação possível. Ora, a importância dada por Freire à

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palavra, entendida como palavra escrita ou falada, enquanto mecanismo que

engendra os aspectos ideológicos de sua aplicação no contexto escolar e,

obviamente, em contextos sociais mais amplos, pode ser observada quando afirma

que “a palavra é o direito de tornar-se partícipe da decisão de transformar o

mundo” (FREIRE, 1990, p. 36).

Acenando para essa preocupação específica do trabalho com o ensino de

português, ou seja, que o ensino esteja pautado em uma abordagem crítica e

social, encontram-se, nos anos de 1980, na obra de João Wanderley Geraldi

(1984), reflexões sobre o trabalho com o texto em sala de aula que se somam às

preocupações mais recentes apontadas por Ângela B. Kleiman (1995) e Roxane

Helena R. Rojo (2009) quando discutem sobre alfabetização e letramento.

Instrumentar-se para uma postura crítica é condição imperiosa para se

promoverem práticas educativas transformadoras. Logo, reconhecendo-se que o

texto é um veículo que carrega ideologias e estabelece mecanismos de dominação,

também pode constituir-se em mecanismo de luta contra estas mesmas formas de

poder.

Por essa razão, quando se pensa no professor de língua portuguesa e na sua

necessária preparação para formar leitores críticos, vale ressaltar como o

pesquisador da área da linguística, Geraldi (1997) argumenta o agir criticamente no

ensino da língua materna:

Do ponto de vista pedagógico, não se trata de ter no horizonte a leitura do professor ou a leitura historicamente privilegiada como parâmetro de ação: importa, diante de uma leitura do aluno, recuperar sua caminhada interpretativa, ou seja, que pistas do texto o fizeram acionar outros conhecimentos para que ele produzisse o sentido que produziu; é na recuperação desta caminhada que cabe ao professor mostrar que alguns dos mecanismos acionados pelo aluno podem ser irrelevantes para o texto que se lê, e, portanto, sua “inadequada leitura” é conseqüência deste processo e não porque se coaduna com a leitura desejada pelo professor. (GERALDI, 1997, p. 188)

Portanto, reconhecendo que há potencialidade no processo educativo para

fazer frente aos mecanismos de dominação presentes nas diferentes relações

sociais, fazem-se necessários estudos que proponham, nos cursos de formação de

professores, reflexões teóricas sobre o discurso e as relações de poder e, para

tanto, a ACD se constitui em uma abordagem teórico-metodológica capaz de

suscitar mudanças possíveis.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais

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