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1 Beijando a Cruz Paulo Eduardo Arantes Começo pelo Antigo Testamento. Na fórmula famosa e ainda verdadeira, o Capital é a própria contradição em processo. Valor que se auto-valoriza sugando o mesmo trabalho vivo que se empenha em tornar cada vez mais redundante. Em busca de sobrevida, foge para a frente. A desmedida e a escalada se encontram no seu DNA. Não surpreende portanto a regularidade com que tende à auto-destruição. Em plano ciclópico, nas guerras pela hegemonia mundial. Em tais ocasiões, arrasta consigo todas as classes sociais, anestesiadas em seu antagonismo pelo contágio de tamanha compulsão para o desastre. A primeira grande revelação deu-se em agosto de 1914, quando as classes trabalhadoras, alinhadas com suas respectivas burguesias imperialistas, marcharam para o matadouro. A derradeira está começando a se desenrolar diante dos nossos olhos. É bom esfregá-los bem. Recentemente, embandeirados operários americanos da construção civil se reuniram em Nova York para manifestar apoio a uma guerra de ocupação que lhes renderá empregos no ramos promissor da reconstrução humanitária. Seja qual for a agenda oculta da presente guerra, uma coisa é certa: trata-se de uma guerra sem futuro, se é que se pode falar assim. A prova por absurdo deste fim de linha transparece já na obscena cegueira de manchetes do tipo: rápido fim da guerra no Iraque aumenta otimismo dos investidores globais com os mercados emergentes . Logo saberemos.

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1

Beijando a Cruz

Paulo Eduardo Arantes

Começo pelo Antigo Testamento. Na fórmula famosa e ainda

verdadeira, o Capital é a própria contradição em processo. Valor que se

auto-valoriza sugando o mesmo trabalho vivo que se empenha em tornar

cada vez mais redundante. Em busca de sobrevida, foge para a frente. A

desmedida e a escalada se encontram no seu DNA. Não surpreende portanto

a regularidade com que tende à auto-destruição. Em plano ciclópico, nas

guerras pela hegemonia mundial. Em tais ocasiões, arrasta consigo todas as

classes sociais, anestesiadas em seu antagonismo pelo contágio de tamanha

compulsão para o desastre. A primeira grande revelação deu-se em agosto de

1914, quando as classes trabalhadoras, alinhadas com suas respectivas

burguesias imperialistas, marcharam para o matadouro. A derradeira está

começando a se desenrolar diante dos nossos olhos. É bom esfregá-los bem.

Recentemente, embandeirados operários americanos da construção civil se

reuniram em Nova York para manifestar apoio a uma guerra de ocupação

que lhes renderá empregos no ramos promissor da reconstrução humanitária.

Seja qual for a agenda oculta da presente guerra, uma coisa é certa: trata-se

de uma guerra sem futuro, se é que se pode falar assim. A prova por absurdo

deste fim de linha transparece já na obscena cegueira de manchetes do tipo:

rápido fim da guerra no Iraque aumenta otimismo dos investidores globais

com os mercados emergentes . Logo saberemos.

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Caso o século que se inicia testemunhe o recomeço do Grande Jogo

para o controle da Eurásia

quer dizer, a disputa de morte pelo novo

dinheiro mundial e recursos energéticos cada vez mais escassos , não é

inverossímil antever no seu desfecho algo como um End Game beckettiano

para as sociedades industriais, no prognóstico bem argumentado de Richard

Heinberg. Digamos que o desenlace tende mais para uma ditadura militar

global do que par um novo Bretton Woods. Na verdade, sempre estivemos

às voltas com um sistema suicida. Só mesmo por efeito de uma miragem

retrospectiva deixamos nostalgicamente de enxergar na prosperidade dos

trinta anos de consenso keynesiano a vida à beira do abismo termo-nuclear,

como se uma não fosse possível sem a outra, uma economia de preparação

permanente para a guerra e a felicidade material das classes confortáveis.

Pois bem: estamos inaugurando uma nova Era, algo como um Estado de

Emergência planetário, em que o triunfo ideológico avassalador do

capitalismo e o seu novo ímpeto suicida correm um na direção do outro. O

espantoso paradoxo de nosso tempo vem a ser a reativação desta

esquizofrenia estrutural. Não há um agente do mercado que ignore o caráter

destrutivo da livre circulação dos capitais num universo essencialmente

assimétrico, e no entanto, não desgrudam os olhos dos monitores. Na boa

pergunta de Robert Kurz, por que tanta indignação com o fundamentalismo

dos homens-bomba ao lado de igual confiança cega no programa demente da

economia global de mercado?

Aqui entramos nós. O risco país diminui, o dólar recua, a inflação

desacelera e até já viramos a estrela dos emergentes no pós-guerra e

contudo é bem provável que um historiador do futuro intitule o capítulo

referente ao período inaugurado pelo triunfo eleitoral do maior partido de

esquerda do ocidente, Crônica de um Suicídio.

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No primeiro mês de governo não por acaso falou-se muito em

esquizofrenia a propósito do desencontro sabido: discurso enfático à

esquerda, e muita energia no encaminhamento de políticas ortodoxas. Quatro

meses depois, a mudança de rota assumiu proporções tais que já não é mais

possível recusar a hipótese da autodestruição, nos termos enunciados acima

menos um trivial tiro no pé (esquerdo) em matéria de política econômica,

do que uma fulminante conversão à lógica mortal da crise. Não vou, nem

poderia, discutir alternativas macro-econômicas, nem chorar o leite

derramado, toda a tradição crítica brasileira e latino-americana descartada

sem maiores considerandos. Creio todavia que também interessa e muito

identificar a natureza da mutação quase antropológica em curso, a

continuidade por assim dizer espiritual lograda por um sistema de

dominação social tão acachapante que pode se dar ao luxo de se perpetuar

entregando o comando primeiro a um sociólogo acometido de apoteose

mental, depois a um líder sindical generosamente empenhado em levar todas

as classes sócias à mesa da comunhão nacional. Tampouco explica muita

coisa observar que o próprio Partido dos Trabalhadores já vinha entregando

os pontos há um bom tempo. Pelo contrário, apesar de todos os pesares,

durante a campanha o show de vileza e terror econômico em que se esmerou

a direita prestou o inestimável favor de revelar o irreconciliável inimigo de

classe num adversário eleitoral que apenas vendia paz-e-amor e outras

amenidades. A memória recente deste antagonismo só fez aumentar a

estupefação provocada pela retomada da agenda falida do período anterior e

seu cortejo de racionalizações mambembes.

Não é falso afirmar que a lógica da situação finalmente se impôs e que

beijando a cruz

primeiro na Carta aos Brasileiros, em seguida endossando

o acordo com o FMI, Lula teria selado o seu destino. Também não é falso

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alegar a herança de um país arruinado para além da imaginação. Como deve

ter pesado igualmente a percepção de que a eleição foi ganha um pouco por

acaso e no centro do espectro político, onde reinam os temores de uma

classe média tão conservadora quanto sua congênere Argentina, que aliás se

prepara para cometer um segundo suicídio, tomada pela mesma certeza

paralisante de que qualquer mudança será sempre para pior. A essa visão se

somaria outra não menos verdadeira de que tal imaginário congelado

contagiara amplos setores das camadas populares.

O que pensar? Aqui uma chave possível para todo esse maldito

imbroglio

infelizmente um tanto remota ou filosófica , mas não vejo

outra para tamanha reviravolta. A boa pergunta neste caso talvez seja a mais

rasa de todas: afinal, o que fez a cabeça do núcleo duro do governo? Não se

trata de simples adesão a tal ou qual doutrina, isso é mera conseqüência.

Trata-se a rigor de um ritual. Isso mesmo, algo como uma prática material

muito próxima da gesticulação religiosa. E de fato tudo se passa como se nos

defrontássemos com uma verdadeira conversão à religião da vida

cotidiana , como Marx se referia à liturgia requerida pelo serviço do Capital.

Parece até behaviorismo, pois reforço é o que não falta.

Me explico. Segundo o filósofo Slavoj Zizek, deveríamos reler numa

outra chave a célebre frase de Marx a respeito do modo de funcionamento da

ideologia enquanto falsa consciência: disso eles não sabem, mas o fazem .

A seu ver, a ilusão ideológica não se situa no saber mas no fazer .

Reconsideremos por este ângulo o nosso drama. A primeira vista, o

desconcerto atual decorreria da discrepância entre o que a esquerda no

governo efetivamente faz e o que pensa estar fazendo. Seria então o caso de

ajustar discurso e realidade, ultrapassando esta divisão interna etc. Acontece

que não é bem assim, é muito mais grave. Lula e seus companheiros sabem

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muito bem como as coisas são, mas continuam a agir como se não

soubessem. Durante oito anos demonstramos a falência de uma receita para

o desastre, mas agora vai dar certo... O osso é bem mais duro de roer porque,

ao contrário do grupo dominante anterior, não são cínicos, não gozam da

impunidade de classe que permitia ornamentar o esbulho com asneiras

sociológicas. A boa fé de agora porém é de outra ordem. No esquema

proposto, nos deparamos com uma crença muito especial, pois não se trata

em absoluto de um estado mental interno, mas de uma crença radicalmente

externa, incorporada no procedimento efetivo das pessoas . O exemplo de

Kafka talvez ajude. Sabemos que a burocracia não é assim tão onipotente

como é representada no universo kafkiano, mas é esse exagero o

verdadeiro assunto. Ele não se encontra no que sabemos a respeito, mas no

âmago de nossa conduta efetiva na presença da máquina burocrática,

conduta justamente regulada por uma crença em sua onipotência. Ou por

outra, agimos como se acreditássemos na sua onipotência. Sobre este como

se ergue-se toda a construção da realidade. Tal como o rei do exemplo de

Marx: um homem só é rei porque outros homens colocam-se numa relação

de súditos com ele. E eles, ao contrário, imaginam ser súditos por ele ser

rei . Mas essa imaginação está por assim dizer lá fora, sustentando o

vínculo social.

A bizarra teologia materialista do Pascal, redescoberta por Zizek, nos

permitirá entrever ainda melhor o enigma da conversão que está derrubando

e desmoralizando a esquerda brasileira. Como somos tanto autômato

quanto mente , provas, segundo Pascal, convencem apenas a mente,

enquanto o hábito fornece as provas em que verdadeiramente acreditamos,

daí a sua força, que dobra o autômato que somos. Pois esse autômato

inconscientemente leva a mente consigo . Creio que foi este automatismo

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que operou o milagre e fez enfim o PT ver a luz. Numa palavra (do filósofo),

se os sujeitos não acreditam, as coisas acreditam por eles. Essa a base

mística da autoridade do Capital. Sabemos que é apenas uma relação social,

de exploração ainda por cima, e que não há nada de mágico nisso, mas

agimos como se não soubéssemos.

Beijar a cruz deve ser tomado nessa acepção pascaliana e materialista.

Voltemos à lógica da situação, ao ABC da política contemporânea, vender

confiança aos mercados e reduzir os custos da incerteza, que podem ser

fatais num sistema desenhado para operar sob a ameaça permanente da

morte súbita. Mas como vender credibilidade sem crer? Vinte anos de

ateísmo não recomendam. Tampouco declarações registradas em cartório.

Da esquerda exige-se uma profissão de fé que em princípio ela não poderia

oferecer. Só um milagre. Que afinal aconteceu. Nos termos de há pouco,

encarregaram as coisas, que povoam o mundo religioso da vida cotidiana

regulada pelos mercados, de acreditarem por nós. Você quer descobrir a fé

e não sabe o caminho? Quer curar-se da descrença e roga por remédio?

acudia Pascal à aflição de uma consciência de cuja constituição originária

inibia a aposta em Deus

minhas mãos estão atados e meus lábios

cerrados; sou forçado a apostar e não estou livre . Pois então, prosseguia,

aprenda com aqueles que um dia estiveram atados com o você e que agora

apostam tudo o que têm . Religião-cassino, numa palavra, sem falar no

comportamento de drogado do apostador. Conhecemos a receita, a do hábito

que dobra o autômato em nós. Como diria outro filósofo (mais um), confiem

no crescimento da composição orgânica do ser humano, cada vez mais

análoga à do próprio Capital. William Randolph Hearst, o Cidadão Kane,

acrescentaria que nunca se perde dinheiro quando se subestima a mente

em favor do autômato . Voltando ao caminho das pedras: eles se portaram

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exatamente como se acreditassem, recebendo água-benta, mandando rezar

missas e assim por diante. Isso o fará acreditar com muita naturalidade . Em

suma, beijar a cruz uma ou duas vezes por semana. Quer dizer: submeta-se

ao ritual ideológico, entorpeça-se repetindo os gestos sem sentido, aja como

se já acreditasse, e a crença virá por si só , esta a súmula do sistema lotérico

de Pascal.

Armou-se em conseqüência no governo algo como um serviço

Delivery [ver ao lado artigo de Leda Maria Paulani e Fernando Haddad]. De

tanto entregar o prometido, com a exata regularidade litúrgica recomendada

por nosso consultor ad hoc, a lógica da aposta na Agenda virou fé, que por

sua vez irradia na forma da credibilidade almejada. Aposta por necessidade

de sobrevivência, não há dúvida. Aliás o cerne mesmo da estratégia de

venda da vida eterna concebida por uma gênio do marketing como Pascal.

Há mais ainda, o inestimável conforto de não precisar renunciar às

convicções anteriores. Se a fé que gera credibilidade se materializa num

ritual externo, minha crença íntima pode continuar publicamente animada

por reminiscências de esquerda: o Capital não se queixa, até agradece, pois

objetivamente estarei rezando. Daí a sensação de esquizofrenia. Ou de

suicídio, apenas o observador se afaste um passo que seja. O diabo (não há

outra palavra) é que o automatismo de um tal sistema de dominação,

justamente por ser impessoal e cego, sempre joga a favor dos exploradores,

mesmo quando os ameaça de destruição. Em cima há sempre mais escolhas

do que risco, reservado com exclusividade aos de baixo.

Fantasia teórica? O raciocínio pode parecer extravagante, porém no

fundo nada mais fiz do que estender democraticamente ao aparelho

dirigente, e hoje governante, de um grande partido de esquerda, o

mesmíssimo argumento que o melhor de nossa reflexão crítica vem

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desenvolvendo acerca dos derradeiros e assustadores desdobramentos da

sociedade de consumo. Como neste aspecto os sistema não cuida muito de

distinguir elite e massa, é só inverter o raciocínio e verificar que, na sua

ânsia desmedida de gratificação, o consumidor anônimo de todos os dias

também se ajoelha diante das grandes marcas e beija a cruz. E também sabe

perfeitamente que a grife é apenas um nome, e no entanto, procede como se

não soubesse. Novamente dissociação entre sentimento pessoal e

agenciamento externo da crença através do rito sumário do consumo. No

final das contas, as conversões espetaculares de partidos de esquerda pesam

bem menos no triunfo atual da contra-revolução capitalista do que o

consentimento de massa gerado por tais práticas materiais. O keynesianismo

americano de guerra mal poderia sufocar o sistema soviético não fosse a

corrosão interna do consumo reprimido pela ditadura da escassez. Aqui o

viés auto-destrutivo da atual normalidade capitalista, a junção entre o

reflexo pavloviano dos agentes do mercado e seus operadores políticos e a

violenta ilimitação dessa demanda imperativa do consumo de massa. Uma

confluência a tal ponto mortífera que não seria injusto incluir esse

gigantesco exército de crentes numa espécie de extensão da atual máquina

de guerra imperial, que afinal existe para perpetuar essa insaciável fome

canina do consumo e seu custo energético demente. Não penso ser injusto

encaixar nessa gravitação de conjunto a conversão suicida do Governo Lula

à ortodoxia econômica. Um alto dignitário do novo regime afirmou

recentemente que uma tal linha justa veio para ficar, pois a crise

internacional seria permanente. Essa a lógica do estado perpétuo de

emergência.

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