adriana belmonte moreira clínica e resistência: a medicina

227
1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA ADRIANA BELMONTE MOREIRA Clínica e Resistência: a medicina filosófica de Georges Canguilhem (versão corrigida) São Paulo 2013

Upload: buinhan

Post on 14-Feb-2017

221 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

  • 1

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    ADRIANA BELMONTE MOREIRA

    Clnica e Resistncia:

    a medicina filosfica de Georges Canguilhem

    (verso corrigida)

    So Paulo

    2013

  • 2

    ADRIANA BELMONTE MOREIRA

    Clnica e Resistncia:

    a medicina filosfica de Georges Canguilhem

    (verso corrigida)

    Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia sob a orientao do Prof. Dr. Pablo Ruben Mariconda.

    So Paulo

    2013

  • 3

    Para Eduardo e Marinalva,

    exemplos de luta e resistncia.

  • 4

    AGRADECIMENTOS:

    Ao Prof. Pablo Mariconda, pelo apoio constante, confiana e, sobretudo, por

    compreender que somente possvel pensar em liberdade;

    Aos professores Vladimir Safatle, Rodolfo Franco Puttini, Maurcio de Carvalho

    Ramos, Ivan Domingues e Jos Luis Garcia pelas contribuies dadas a meu

    trabalho por ocasio do Exame de Qualificao e Defesa;

    Aos membros do Grupo de Estudos de Filosofia, Histria e Sociologia da Cincia e

    da Tecnologia (USP), em especial, a Max Vicentini;

    Aos colegas do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal

    do Paran (UFPR), pelo incentivo;

    Aos funcionrios da Secretaria do Departamento de Filosofia, em particular

    Geni, pelo suporte operacional de ltima hora;

    Mnica Gama e Christiane Siegmann, pela fora da amizade.

  • 5

    Ainda estou espera de que um mdico filosfico,

    no sentido excepcional da palavra - um mdico que tenha o problema da sade geral do

    povo, tempo, raa, humanidade, para cuidar -,

    ter uma vez o nimo de levar minha suspeita ao pice e aventurar a proposio: em todo

    filosofar at agora nunca se tratou de verdade, mas de algo outro, digamos sade,

    futuro, crescimento, potncia, vida....

    (Nietzsche)

  • 6

    RESUMO:

    MOREIRA, A. B. Clinica e resistncia: a medicina filosfica de Georges

    Canguilhem. 2013. 227 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

    Este trabalho procura apresentar atravs de uma anlise do conjunto das obras de

    Canguilhem uma crtica da razo mdica prtica, tal como sugere num de seus

    escritos. Vale dizer que embora ele tenha afirmado no pretender renovar a

    medicina, procurando apenas ajud-la a pensar sobre seus pressupostos e

    conceitos fundamentais, em nosso entender, ao realizar uma crtica hegemonia

    do modelo mdico cientfico-moderno e ao operar o desvelamento de sua

    ideologia de controle da vida, acabou por delinear os contornos de uma nova

    racionalidade mdica que, por se ancorar numa definio de medicina como arte

    que se coloca a servio da capacidade de resistncia vital, pode vir a fazer frente

    mecanizao da vida, normalizao dos indivduos e gesto sociopoltica

    mdica da vida cotidiana. Assim, adotando o ponto de vista canguilhemiano de

    que a ideia de normalidade como normalizao mais se identifica medicina

    cientfica moderna que opera com a ideia de norma como mdia estatstica e tipo

    ideal, do que a uma medicina que considera que na natureza h apenas

    normalidade como normatividade, que procuramos ao fim de nosso trabalho

    vislumbrar outro horizonte para as prticas e a tica do cuidado em sade na

    atualidade.

    Palavras-chave: medicina clnica normalidade patologia - vitalismo

  • 7

    ABSTRACT:

    MOREIRA, A. B.. Clinic and Resistance: Georges Canguilhems philosophical

    medicine. 2013. 227 f. Thesis (Doctoral) - Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

    This work seeks to present, through the analysis of Canguilhems complete work, a

    critique of the practical reasoning in medicine, as suggested by the author

    himself. Although he has not intended to renovate medicine, his intention was to

    help thinking about its assumptions and fundamental concepts. It is believed that,

    by criticizing the hegemony of the modern scientific-medical model and operating

    the unveiling of its ideology of control over life, he ended up outlining the contours

    of a new medical rationale. This approach is based on the definition of medicine as

    a type of art which is at the service of a vital resistance capacity. This way, it can

    cope with the mechanization of life, the normalization of individuals and

    sociopolitical medical management of everyday life. Thus, by adopting

    Canguilhems perspective, the idea of normality as normalization is more related to

    the modern scientific medicine that works with the idea of statistical average and

    the ideal type than the medicine which considers that, in nature, there is only

    normality as normativity. At the end of this work, the aim is to glimpse another

    horizon for the practices and the ethics of current health care.

    Keywords: medicine clinic normality pathology ethics vitalism.

  • 8

    LISTA DE ABREVIAES:

    NP Le normal et le pathologique

    FCR- La Formation du concept de rflexe aux XVIIe et XVIIIe sicles

    CV - La connaissance de la vie

    D - Du dveloppement l'volution au XIXe sicle.

    E - tudes dHistoire et de Philosophie des Sciences

    I - Idologie et rationalit dans lhistoire des sciences de la vie

    EM crits sur la mdecine

    CP - Le cerveau et la pense

    MNHT - Milieu et normes de I'homme au travail

    QE- La question de lcologie: la technique ou la vie

  • 9

    SUMRIO:

    INTRODUO....................................................................................................... 10

    CAPTULO I: Medicina: uma arte enraizada na vida............................................ 34

    CAPTULO II: Arte da cura ou cincia das doenas?........................................... 82

    CAPTULO III: Medicina, psicologia e normalizao........................................... 119

    CAPTULO IV: A revitalizao da clnica............................................................ 154

    CONCLUSO...................................................................................................... 214

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: ...................................................................... 220

  • 10

    INTRODUO:

    Bem-estar a simples conscincia de viver

    e s seu impedimento suscita a fora de resistncia (Kant)

    Nosso trabalho objetiva mostrar que Canguilhem, no conjunto de seus

    escritos sobre medicina, histria e filosofia das cincias da vida, ao refletir sobre

    os principais conceitos que do inteligibilidade prtica mdica - vida, normal e

    patolgico e sobre a produo do saber e exerccio do poder mdicos, acaba por

    apresentar outra dmarche para a clnica que a transforma em dispositivo de

    resistncia s prticas de normalizao em sade. Com efeito, como filsofo e

    mdico, ele defende que a filosofia pode ajudar a medicina a pensar sobre seus

    pressupostos, no somente pela problematizao de seus conceitos

    fundamentais, mas tambm atravs do esclarecimento de que o cuidado em

    sade um fato de natureza poltica tanto quanto cientfica, concernindo no

    apenas a intervenes de ordem tcnico-cientfica, mas tambm a uma tomada de

    posio de carter tico-poltico. Assim, considerando a ideologia de controle que

    subjaz cincia moderna e dada a aliana da teraputica ao imperativo da

    normalidade, ele acredita que chegado o tempo de uma crtica da razo mdica

    prtica, como estratgia para inveno de uma nova racionalidade em sade, que

    consiga fazer frente ao modelo biomdico moderno.

    Em nossa trajetria de investigao utilizamos como textos de referncia

    sua tese de doutorado em medicina, intitulada Essai sur quelques problmes

    concernant le normal et le pathologique (1943) que somada a suas Nouvelles

    Rflexions concernant le normal et le pathologique (1963-1966) compem a obra

    Le normal et le pathologique, sua tese em filosofia La Formation du concept de

    rflexe aux XVIIe et XVIIIe sicles (1955), as coletneas La connaissance de la vie

    (1952), tudes dHistoire et de Philosophie des Sciences (1968), Idologie et

    rationalit dans lhistoire des sciences de la vie (1977). Alm destas obras,

    recorremos ao artigo Milieu et normes de I'homme au travail (1947), conferncia

  • 11

    Le cerveau et la pense (1980) e publicao pstuma, intitulada crits sur la

    mdecine (2002), que agrega artigos e conferncias publicados entre os anos de

    1972 a 19901. A opo pela anlise deste conjunto de obras, apesar dele ter sido

    elaborado ao longo de mais de quatro dcadas, se fez necessria para que

    pudssemos recolher um maior nmero de elementos a fim de apresentarmos os

    contornos desta outra racionalidade em sade que acreditamos ter sido

    gradativamente desenhada por Canguilhem.

    A partir de uma anlise destes escritos, notamos que Canguilhem,

    acompanhando os debates mdicos e cientficos de seu tempo, mantm uma

    coerncia terico-epistemolgica de defesa do vitalismo, em oposio ao

    mecanicismo clssico e a seus desdobramentos posteriores2. Percebemos

    tambm, e isso de modo mais fundamental, que se ele adere a esta tradio

    mdico-filosfica no somente por compartilhar com ela o reconhecimento da

    originalidade do fenmeno vital. tambm porque ela, ao contrrio da tradio

    mecanicista, se ope ideologia3 de controle da natureza, sustentada pela cincia

    moderna. Assim, em nosso entender, se ele no v problemas em ser chamado

    de vitalista, , sobretudo, porque ele encontra no vitalismo uma tica de respeito e

    1 Segundo Zaloszyc, os Escritos sobre Medicina, somados aos trs outros textos que figuram sobre

    a rubrica Medicina nos tudes dHistoire et de Philosophie des Sciences, compem a totalidade dos escritos de Canguilhem sobre o tema. Seguindo de perto o trabalho bibliogrfico crtico de Limoges, ele acredita que neste conjunto de textos que Canguilhem trata da histria e da filosofia da medicina, reservando-se a fronteira sempre incerta com os estudos de fisiologia e a reflexo sobre o sujeito doente. Cf. ZALOSZYC, A. Prefcio. In: CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina (trad: Vera Avellar Ribeiro; rev. tcnica: Manoel Barros da Motta). Rio de Janeiro, Forense Universitria, 2005.

    2 Com efeito, Canguilhem critica tanto a concepo mecanicista de vida do sculo XVII, derivada

    da fisiologia de Descartes, que procura explicar o ser vivo a partir do modelo de uma mquina, quanto quela que, a partir dos sculos seguintes, procuram explic-lo em termos fsico-qumicos, como a de Lavoisier e Laplace, ambas identificadas ao determinismo, ou seja, ideia de que os fenmenos vitais se produzem segundo uma ordem determinada e que as condies de sua apario seguem a lei da causalidade. Sobre as diferentes formulaes histricas do mecanicismo, do sculo XVII ao XIX, confira FREZZATTI JR, W. A. Haeckel e Nietzsche: aspectos da crtica ao mecanicismo no sculo XIX. Scientia Studia, vol 1, n

    o 4, 2003, p.435-61.

    3 Vale esclarecer que utilizamos a noo de ideologia no sentido marxista que na leitura de

    Canguilhem, acompanhando a de Althusser, um conceito que se aplica aos sistemas de representaes que se exprimem na linguagem da poltica, da moral, da religio e da metafsica e que se apresentam como se fossem a expresso do que so as prprias coisas, enquanto so de fato meios de proteo e defesa de um determinado sistema de relaes dos homens entre si e dos homens com as coisas (cf.I, 1981, p.35).

  • 12

    defesa da vida, que ir embasar sua postura tico-poltica de contraposio a uma

    ideologia de domnio da vida, que encontrou no nazi-fascismo sua verso mais

    acabada.

    Com efeito, para Canguilhem, considerando a indissociabilidade entre

    logos, ethos e prxis, a medicina, ao tomar contato com a formao e a prtica

    mdicas de seu tempo, percebe que a partir de uma orientao materialista

    mecanicista e reducionista, a prtica clnica ficou aprisionada num esquema de

    causa e efeito entre o gesto teraputico e seu resultado, entre a medicao

    utilizada e a cura obtida atravs dela, reduzindo a relao mdico-doente a um

    automatismo de ordem meramente instrumental. Alm disso, nota que o

    esquecimento das recomendaes hipocrticas, que ele lamenta imperar nas

    escolas mdicas, no significou apenas que os mdicos deixaram de considerar o

    doente como uma totalidade orgnica consciente e de invocar a natureza como

    providncia curativa, mas tambm acarretou a perda do sentido da ideia de defesa

    tica da vida, inerente medicina:

    Quer o lamentemos quer no, o fato que, hoje, ningum obrigado, para exercer a medicina, a ter o menor conhecimento de sua histria. fcil imaginar uma doutrina mdica, tal como o hipocratismo, pode produzir no esprito de quem s conhece Hipcrates pelo famoso juramento, rito final doravante esvaziado de sentido (EM, 2005, p.13-14).

    Sendo assim, no percurso de nossa investigao, para alcanarmos o teor

    terico-epistemolgico e tico-poltico da crtica de Canguilhem medicina de seu

    tempo, o primeiro passo foi elucidar em qual momento se deu seu interesse por

    ela4. Ora, sabemos atravs dele mesmo, como consta no prefcio de seu Ensaio

    sobre alguns problemas relativos ao normal e ao patolgico, que cursou medicina

    4 Roudinesco (2007) esclarece que entre os anos 30 e 40, perodo em que Canguilhem decidiu

    cursar medicina, em geral os filsofos que optavam por estudar medicina faziam por interesse pela psicopatologia e o tratamento das doenas mentais, almejando retirar o saber psiquitrico do campo mdico e devolv-lo ao domnio da psicologia clnica. Canguilhem, distanciando-se desta tradio, optou por um caminho pouco comum em relao ao trilhado por seus colegas de formao filosfica. Ele escolheu partir do estudo da fisiopatologia ou nosologia somtica para tratar do problema do normal e do patolgico, mas sem deixar de, por extenso, discutir problemas de psicopatologia ou nosologia psquica. Cf. ROUDINESCO, E. Filsofos na tormenta (Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser, Deleuze, Derrida). Rio de Janeiro, Zahar, 2007.

  • 13

    alguns anos aps haver concludo o curso de filosofia, esperando com isso

    acercar-se dos problemas humanos concretos:

    No necessariamente para conhecer melhor as doenas mentais que um professor de filosofia pode se interessar pela medicina. No , tambm, necessariamente para praticar uma disciplina cientfica. Espervamos da medicina justamente uma introduo a problemas humanos concretos (NP, 1990, p.16).

    Ciente dos limites da pura especulao filosfica, ele acreditava que somente uma

    cultura mdica direta possibilitaria o esclarecimento dos dois problemas que

    mais o interessavam: o da relao entre as cincias e as tcnicas e o das normas

    e do normal. Isso porque, a medicina, por ser uma arte ou tcnica de instaurao

    e restaurao do normal, ao mesmo tempo em que possibilitaria a

    problematizao da ideia de que a tcnica deve ser a mera aplicao de uma

    cincia, tambm ela, por operar a partir da noo de normalidade, permitiria uma

    reflexo sobre o que seria este estado normal que a teraputica procura instaurar

    ou restabelecer.

    No mbito de seu primeiro problema, para defender a anterioridade lgica e

    cronolgica da tcnica em relao cincia, ele procurou mostrar a precedncia

    da tcnica mdica em relao cincia da vida, a apresentando enraizada nas

    normas e valores vitais. Acreditando que na vida no h inrcia ou indiferena

    biolgica, para ele, assim como a cincia, entendida como procura do

    conhecimento verdadeiro, surge das resistncias encontradas na ao prtica, a

    medicina, como arte da vida, existe porque o vivente humano considera como

    patolgicos certos estados ou comportamentos que, em relao polaridade

    dinmica da vida, so apreendidos sob a forma de valores negativos. A doena,

    de valor vital negativo para a totalidade orgnica, no homem, como totalidade

    orgnica consciente, sentida como um mal, sendo que este pathos o que o

    leva a praticar intencionalmente tcnicas de autocura e autorregenerao, j

    exercidas espontaneamente pelo primeiro mdico que a vida. Assim, se o

    pathos que condiciona o logos, a medicina existe porque os homens se sentem

  • 14

    doentes e no porque h mdicos, dotados de conhecimento cientfico, que os

    informam do fato de estarem com tal ou qual enfermidade.

    Para abordar o segundo problema, a estratgia canguilhemiana foi mostrar

    o alcance propriamente filosfico do conceito de normal, questionando se o

    patolgico idntico ao anormal, se o normal idntico ao so, e se a anomalia

    a mesma coisa que anormalidade. Isso porque a teraputica, retirando sua

    autoridade de seu conhecimento de fisiologia, como cincia das leis ou das

    constantes da vida normal, passou a se orientar por uma determinada noo de

    normalidade - como estado habitual dos rgos e seu estado ideal - sem ver nela

    um problema a ser elucidado. Criticando uma concepo de normalidade como

    mdia estatstica e tipo ideal, Canguilhem acredita que a fisiologia tem mais a

    fazer do que tentar definir objetivamente o estado normal. Ela deve reconhecer a

    normatividade original da vida, admitir que nela h uma plasticidade funcional

    ligada a sua capacidade de criar e infringir suas prprias normas.

    Destarte, como forma de reabrir os debates sobre um problema dado por

    resolvido, Canguilhem optou por fazer o exame crtico de uma ideia amplamente

    aceita no sculo XIX de que o estado patolgico seria apenas exagerao ou

    atenuao dos fenmenos normais, isto , uma variao quantitativa, para mais

    ou para menos, do estado normal, estado este determinado por mtodos

    cientfico-experimentais. A seu ver, tal tese, presente nos trabalhos de Comte

    (1798-1857) e de Claude Bernard (1813-1878), se encontra vinculada ambio

    de tornar a teraputica cientfica, o que s seria possvel se houvesse uma

    definio puramente objetiva do estado normal, a partir da qual o patolgico

    pudesse ser inferido (cf. NP, 1990, p.23).

    Na contramo do posicionamento do filsofo e do mdico e fisiologista

    franceses, influenciado, sobretudo, pelos trabalhos do mdico Kurt Goldstein5,

    5 Kurt Goldstein (1878-1965), psiquiatra e neurologista de origem alem. o autor de Der Aufbau

    des Organismus, obra publicada na Alemanha em 1934 e popularizada na Frana pelos crculos filosficos influenciados pelos trabalhos de Maurice Merleau-Ponty. Em seus trabalhos, ele apresenta os resultados de sua prtica clinica com pacientes com leso neurolgica adquiridas em combate militar, no perodo da primeira grande guerra. Sua teoria das relaes do vivente com seu meio influenciou obras como La structure du comportement (1942) de Merleau-Ponty e o Ensaio sobre alguns problemas relativos ao normal e ao patolgico (1943) de Canguilhem. Cf.

  • 15

    Canguilhem procurou mostrar que o estado patolgico no uma variao

    quantitativa da dimenso da sade, isto , simples prolongamento,

    quantitativamente variado do estado normal, mas uma nova dimenso da vida, um

    novo comportamento orgnico qualitativamente diferente do estado normal, ainda

    que repelido pela vida mesma.

    Ademais, atento dimenso existencial do processo de adoecimento, ele

    toma de Goldstein a ideia de que para a compreenso do patolgico preciso

    considerar a noo de ser doente (Kranksein), visto que a doena mais do que um

    acometimento biolgico uma ameaa a uma existncia individual: a doena

    abalo e ameaa existncia. Por conseguinte, a definio de doena exige, como

    ponto de partida, a noo de ser individual (NP, 1990, p.148). Assim, contestando

    a tese do tambm mdico Ren Leriche6 de que para compreender a doena

    preciso desumaniz-la, de que no estudo do patolgico o que interessa a

    alterao anatmica ou o distrbio fisiolgico, ele traz para a definio do

    patolgico o ponto de vista do doente, do homem concreto consciente de sua dor

    e de sua incapacidade funcional e social, que vivenciando a doena como um

    drama de sua historia7 percebe mudadas suas relaes de conjunto com seu meio

    (entourage).

    Desta forma, para Canguilhem, malgrado todos os esforos de

    racionalizao cientfica, a medicina tem a prtica clnica como elemento

    essencial, que no pode ser reduzida mera aplicao de um conhecimento,

    GOLDSTEIN, K. La structure de lorganisme. Introduction la biologie partir de la pathologie humaine (1951). Paris, Gallimard, 1983.

    6 Ren Leriche (1879-1955), mdico-cirurgio francs que realizou um conjunto de pesquisas e

    reflexes crticas sobre o fenmeno da dor. Confira tambm CANGUILHEM, G. La pense de Ren Leriche. In: Revue Philosophique, juillet-septembre, 1956, p. 313-317.

    7 Enxergamos aqui um dilogo com uma tradio de pensamento que recorre ao concreto em

    oposio ao abstracionismo filosfico, particularmente, com o trabalho de Georges Politzer (1903-1942), pensador de origem hngara que participou da Resistncia ocupao nazista na Frana e que foi preso, torturado e executado pela Gestapo em 1942. Em sua obra Crtica dos Fundamentos da Psicologia (1928), ele faz uma crtica psicologia anmica ou subjetiva, vinculada ao mito da vida interior, e objetiva, baseada no clculo e na experimentao. Adotando o teatro como metfora de sua psicologia concreta, defende que a vida propriamente humana dramtica e o eu emprico s pode ser o indivduo particular e concreto. Cf. POLITZER, G. Crtica dos fundamentos da psicologia: a psicologia e a psicanlise (Trad: Marcos Marcionilo e Yvone Maria de campos Teixeira da Silva). Piracicaba, UNIMEP, 1998.

  • 16

    sendo vista como simples subsidiria dos resultados de pesquisas nos campos da

    anatomia, embriologia, fisiologia e psicologia. Dotada de certa independncia, ela

    tem por objeto a experincia da doena, que menos um fato objetivvel nas

    mos do cientista e mais um valor para aquele que adoece. Portanto, mais do que

    uma cincia propriamente dita, a medicina uma arte que encontra no somente

    no laboratrio, mas na relao mdico-doente, os elementos para a compreenso

    do comportamento patolgico, pois somente a clnica que coloca o mdico em

    contato com o indivduo concreto ciente de sua dor e que vivencia a angstia

    suscitada pela doena.

    Vinte anos depois de ter escrito seu Ensaio, em suas Novas reflexes

    referentes ao normal e ao patolgico, considerando o normal um conceito

    dinmico e polmico e no esttico e pacfico, Canguilhem retoma seu estudo

    sobre as normas orgnicas, agora querendo esclarecer sua significao atravs

    da confrontao com as normas sociais. Voltando seu interesse para o problema

    da identidade entre normalidade e adaptao, agora, ele faz uma anlise crtica

    deste conceito que, em sua acepo original, vem da atividade tcnica, mas que a

    partir do sculo XIX foi introduzido no s na biologia, mas tambm na psicologia

    e na sociologia de forma bastante questionvel, pela ideia de subordinao

    psicossocial a ela vinculada.

    Assim, atravs de uma incurso no estudo da sociedade, da contestao

    da sinonmia entre adaptao social e normalidade, que ele complementa sua

    reflexo sobre as normas e o normal, dando a sua discusso um carter

    explicitamente sociopoltico, com forte acento foucaultiano.

    Com efeito, compartilhando interesses no estudo sobre as normas,

    Canguilhem e Foucault sofrem influncias recprocas. Se no novidade a

    importncia das reflexes canguilhemianas para Foucault, tambm sabemos por

    Canguilhem mesmo que foi atravs dos escritos foucaultianos que ele se viu

    diante da problemtica do saber-poder mdico e das prticas de normalizao

    operadas pelas instituies sanitrias. Ele admite que foi a partir da leitura de

    obras como Histria da Loucura e O nascimento da clnica que aprendeu a

  • 17

    conhecer uma forma de anormalidade diferente da patolgico-orgnica e a

    reconhecer a existncia histrica de um poder mdico duvidoso, exercido pelas

    vias e meios do biopoder8.

    Desta forma, assim como Foucault se empenhou em mostrar, atravs de

    suas pesquisas arqueogenealgicas, que historicamente a medicina se constituiu

    como uma estratgia biopoltica de normalizao, Canguilhem no desconsiderou

    a relao existente entre a produo do saber e o exerccio do poder mdicos, o

    liame existente entre medicina e poltica, fortalecido pelo componente de natureza

    social na construo do conhecimento sobre as doenas, bem como na

    organizao e nas prticas de hospitalizao (cf. EM, 2005, p.28; E, 1989, p.398).

    Por extenso, Canguilhem e Foucault entram em concordncia quanto

    crtica aos fundamentos da psicologia cientfica9. Tambm em Canguilhem, o alvo

    de ataque privilegiado a uma psicologia entendida como o estudo objetivo do

    comportamento que utiliza as tcnicas de condicionamento com vistas

    orientao ou direcionamento dos indivduos no meio social (cf. CP, 1993, p.25).

    Isto , se ele critica a psicologia por ela ter aceitado converter-se em uma

    cincia objetiva das atitudes, reaes e comportamentos, separando-se de toda

    referncia sabedoria, isto , da especulao filosfica sobre a ideia de homem,

    tornando-se uma filosofia sem rigor, uma tica sem exigncia e uma medicina

    sem controle (cf. E, 1989, p. 366).

    Assim, ao se perguntar sobre quais interesses esto por trs da

    investigao de nosso poder de pensar que Canguilhem traa a histria da

    psicologia, buscando o sentido de cada um de seus projetos, e identifica na

    8 por ocasio do evento em comemorao publicao de Histria da Loucura, tese defendida

    por Foucault em 1961 a uma banca da qual foi relator, que Canguilhem admite o impacto que esta obra e O nascimento da clnica tiveram em suas prprias reflexes. Cf. CANGUILHEM, G. Abertura. In: CANGUILHEM, G; DERRIDA, J; MAJOR, R; ROUDINESCO, E. Foucault: Leituras da Histria da Loucura (trad: Maria Ignes Duque Estrada). Relume-Dumar, 1994.

    9 Canguilhem, por ocasio da defesa de tese de Foucault, comenta: , portanto, a significao dos

    comeos da psiquiatria positivista - antes da revoluo freudiana - o que est em questo no trabalho do Sr. Foucault. E, atravs da psiquiatria, a significao do evento da psicologia positiva que passa por uma reviso. No ser motivo de surpresa que esse estudo provoque a reconsiderao do estatuto de cincia da psicologia (CANGUILHEM, 1994, p.16). In: CANGUILHEM, G; DERRIDA, J; MAJOR, R; ROUDINESCO, E. Ibid.

  • 18

    psicologia do comportamento a ambio de tratar o homem como instrumento

    por razes cientficas, tcnicas, mas tambm econmicas e polticas. Em vista

    disso, estabelecendo uma relao entre psicologia do comportamento,

    normalizao do pensamento e controle das condutas sociais desviantes,

    inspirado na atitude de Espinosa, ele adota uma postura tico-poltica de

    resistncia a tudo que impede o exerccio de nossa liberdade de pensar, que limita

    o aumento da potncia do pensamento e cerceia nossos gestos de engajamento.

    Alm disso, apresentando o desenvolvimento do problema da relao entre

    crebro e pensamento na histria da cultura, de Hipcrates e Galeno at o

    nascimento da psicocirurgia, passando pela teoria das localizaes cerebrais, a

    cincia do crebro e a frenologia de Gall, ele conclui que a filosofia no pode

    deixar de se erguer contra uma psicologia que, aliada neurologia cerebral, se

    quer objetiva e que pretende instruir outras cincias sobre as funes intelectuais

    para que sejam exploradas pela pedagogia, pela economia e pela poltica. Isso

    porque um modelo de pesquisa cientfica que procura deduzir a conscincia de

    uma cincia do crebro e ainda reduzi-lo a um computador nada tem a contribuir

    para a reflexo sobre nosso poder de pensar, pois apenas serve de justificativa

    para as tcnicas de normalizao das condutas e de mquina de propaganda

    ideolgica para toda sorte de sistemas autoritrios (cf. CP, 1993, p.21).

    Mas, importante notar que a crtica canguilhemiana a racionalidade

    mdica cientfico-moderna no resvala na antimedicina ou numa desvalorizao

    da cincia em sua contribuio para a prtica clnica. Canguilhem critica o

    naturismo e a autogesto radical da sade, como se fosse possvel prescindir das

    verdades cientficas. Ele acredita que uma coisa aventar outra racionalidade

    para a medicina, recusando a difuso de uma ideologia mdica de especialistas,

    engenheiros de um corpo decomposto como uma maquinaria, a outra acreditar-

    se obrigado a liberar-se de sua tutela, considerada repressiva e, alm disso, das

    cincias das quais ela costuma se beneficiar: nada mais difundido e mais

    rentvel, nos dias de hoje, do que uma proclamao anti-x (EM, 2005, p. 66). Por

    isso, ele alerta para que no resvalemos em uma banalizao da crtica, como se

    a medicina fosse a fonte de todos os males modernos, como se as morbidades

  • 19

    fossem resultado de processos iatrognicos e que por isso devssemos retornar a

    medicinas pr-racionais e autogesto em sade.

    Ainda, ao colocar em questo se ante a crise da medicina contempornea a

    sada seria o retorno medicina dos antigos ou a superao da racionalidade

    mdica atual, vemos que a crtica de Canguilhem tambm no significa uma

    adeso medicina dos vitalistas10. Como eles, critica a tradio mdica

    mecanicista por definir o corpo como matria inerte, a doena como uma avaria e

    a cura como o retorno a um estado anterior, dada a possibilidade de

    reversibilidade dos fenmenos orgnicos, concepo atrelada aos princpios de

    conservao ou de invarincia sobre os quais se fundamentam a mecnica e

    cosmologia da poca clssica (cf. EM, 2005, p. 53). No entanto, apesar de se

    inscrever na tradio vitalista, atravs de seu vitalismo materialista

    antimecanicista11, Canguilhem elabora uma racionalidade mdica singular que,

    apesar de tambm apostar numa concepo de corpo dinmico e na fora curativa

    da natureza (vis medicatrix naturae) por ele traduzida pelas noes de polaridade

    dinmica e normatividade vital, assume feies prprias.

    10

    Embora Canguilhem tea elogios aos fundamentos da tradio mdica vitalista, Puttini e Pereira Jr acreditam que ele no foi um advogado da medicina vitalista, mas procurou antes de tudo realizar uma reflexo epistemolgica sobre a vida quer no se prendesse s categorias mecanicistas. Para os autores, atravs do conceito de normatividade vital, Canguilhem procurou, em verdade, realizar uma superao da oposio entre o mecanicismo e o vitalismo. Cf. PUTTINI, R. F; PEREIRA JR, A. Alm do mecanicismo e do vitalismo: a normatividade da vida em Georges Canguilhem. Rio de Janeiro, Physis, vol. 17, n

    o. 03, 2007.

    11 Vale destacar que o fato de Canguilhem ter apontado apenas a insuficincia da biologia

    mecanicista para a explicao dos fenmenos vitais, isto , por ele no t-la falseado de todo, levou alguns comentadores a enxergar uma posio hbrida de vitalismo e mecanicismo em sua concepo de vida. Nesta direo, Barbara (2008) acredita que Canguilhem adota uma racionalidade sincrtica entre vitalismo e mecanicismo, optando por preservar uma tenso entre os estudos dos mecanismos e a exigncia vitalista de um sentido de organismo em seu meio. Mas, se entendermos que as principais caractersticas da matria viva, a polaridade dinmica e a normatividade vital, ambas orientadas para a autoconservao do vivente como sua finalidade imanente, no encontram lugar no modelo explicativo mecanicista, parece possvel dizer que a posio de Canguilhem antimecanicista por excelncia, embora materialista. Assim, tendemos a acompanhar Dagognet (2007) em sua afirmao de que o mrito de Canguilhem ter subtrado a vida de um vitalismo animista, sem precisar com isso professar um mecanicismo. Cf BARBARA, J-G. Ltude du vivant chez Georges Canguilhem: des concepts aux objets biologiques. In: FAGOT-LARGEAULT; DEBRU, D, MORANGE, M (dir); HAN, H-J. (d). Philosophie et mdecine: en hommage Georges Canguilhem. (LHistoire des sicences Textes et tudes). Paris, Vrin, 2008; DAGOGNET, F. Pourquoi la maladie et le rflexe dans la philosophie biomdicale de Canguilhem? In: BAUNSTEIN, J-F (org). Histoire des sciences et politique du vivant. Paris, Presses Universitaires de France PUF, 2007. p.17-25.

  • 20

    Em resumo, em nosso entender, o ncleo da crtica canguilhemiana

    medicina de seu tempo o fato dela ter deixado de ser uma arte da cura para se

    tornar uma cincia das doenas, orientada pelo valor de controle da natureza,

    prprio da cincia moderna. Segundo Canguilhem, a hegemonia desta

    racionalidade fez com que a medicina se constitusse como um campo de conflito,

    de discordncia entre valores orgnicos, lentos e contnuos, e os valores tcnicos,

    mecnicos, acelerados e descontnuos. Com a primazia da ordem tecnolgica em

    relao ordem biolgica, a teraputica moderna perdeu de vista toda norma

    natural da vida orgnica e o doente passou a ser tratado segundo normas

    annimas impostas, julgada superiores as suas normas individuais e espontneas.

    O ensino mdico passou a privilegiar os aspectos tcnico-cientficos da prtica

    mdica, em detrimento da deontologia, da considerao dos aspectos bioafetivos

    e psicossociolgicos da doena e da reflexo sobre as condies sociais e legais

    de seu exerccio no interior das coletividades (cf. E, 1989, p.383-385).

    Com efeito, em seu artigo Puissance et limites de la rationalit em

    mdecine, Canguilhem mostra que, historicamente, a ambio por uma cincia do

    curar remonta ao sculo XVII, com os trabalhos dos iatromecanicistas, que creem

    poder fundar racionalmente a medicina a partir dos princpios da mecnica

    galileana e cartesiana. Ao analisar a histria da medicina a partir da segunda

    metade do sculo XIX, apresenta o impacto da anatomia patolgica, da histologia,

    da histo-patologia, da qumica orgnica e principalmente da fisiologia para o

    estudo das doenas, e esclarece que neste perodo que surge o termo

    racionalismo para caracterizar a medicina do futuro. Objetivando o tratamento

    racional da doena, a medicao absolutamente eficaz e a profilaxia correta, por

    oposio aos conceitos de ordem probabilstica e estatstica e multiplicidade de

    medicamentos empiricamente ministrados, a medicina deixou de ser a arte, o

    empirismo do curar, para ser a cincia, o racionalismo do curar, o que causou uma

    mudana profunda na forma de compreenso do fenmeno patolgico e na

    relao mdico-doente (cf. E, 1989, p.393-395).

    Ademais, na Ideologia e racionalidade nas cincias da vida, ao traar um

    esboo histrico-epistemolgico e ideolgico das teorias mdicas ele tambm nota

  • 21

    que a medicina moderna, ativa e operativa, suscitada por Veslio e Harvey e

    celebrada por Bacon e Descartes, nasceu por oposio a uma medicina

    contemplativa que, se baseando numa correspondncia isomrfica entre o

    equilbrio do cosmos e o equilbrio orgnico, apostava no poder da natureza de

    corrigir desordens e respeitava uma teraputica expectante e defensiva. Nesta

    mesma via, a medicina cientfico-experimental, norteada por conhecimentos

    fisiolgicos baseados em fatos e leis confirmados pela experimentao laboratorial

    e orientada pelo valor de controle da natureza sustentado pela cincia moderna,

    passou a ditar normas vida, ignorando a vis medicatrix naturae, atividade

    curativa inerente a ela.

    Por isso, ao realizar sua genealogia ideolgica do princpio de identidade

    dos fenmenos normais e patolgicos, Canguilhem diz ter procurado colocar em

    questo uma ideologia mdica liberta de toda fidelidade ao hipocratismo, ideologia

    esta vinculada ao progressismo da sociedade industrial e fundadora do poder

    ilimitado da medicina (cf. I, 1981, p.49). Segundo ele, tal princpio, que tem sua

    origem na obra do mdico escocs Jonh Brown e foi admitida por Broussais,

    Comte e Claude Bernard, abolindo a distino entre fisiologia e patologia, ps a

    medicina inteiramente sob os auspcios da atividade cientfica experimental,

    afastando-a da observao e da confiana na natureza, prprias da medicina

    expectante, e institui uma medicina racional, pautada na ideia de eficcia total,

    que aposta numa supervalorizao do saber que supera e domina a natureza ou,

    mais precisamente, a vida.

    Sendo assim, para Canguilhem, tal ideologia no sendo apenas o efeito da

    colonizao da medicina pelas cincias fundamentais e aplicadas, tambm

    decorre do interesse da sociedade industrial no controle da sade das populaes

    operrias, necessrio para manter produtiva a fora de trabalho; fato que

    evidencia que a ambio da medicina em curar os indivduos, prevenir e eliminar

    doenas contagiosas, prolongar a esperana de vida um fato de natureza

    poltica, tanto quanto cientfica:

  • 22

    A medicina experimental, atuante e militante, cujo modelo Claude Bernard pensou construir, a medicina de uma sociedade industrial. Quando Claude Bernard ope a sua medicina medicina contemplativa, expectante, isto , medicina das sociedades agrcolas, ele, que filho de um vinhateiro, no consegue conceber que a cincia da poca no s exigia do sbio o abandono das idias invalidadas pelos fatos, mas que sobretudo exigia a renncia ativa a um estilo pessoal de investigao das idias, exatamente como, na mesma poca, os progressos da economia exigiam o desenraizamento dos homens nascidos no campo (I, 1981, p. 60).

    Com efeito, sob a influncia do industrialismo que a medicina se viu diante

    da necessidade de reforma, a ser operada atravs de uma racionalizao de seus

    tratamentos preventivos e curativos e da planificao de suas estratgias, visando

    abarcar o conjunto da sociedade. Neste contexto de reforma das instituies

    sanitrias, a sade da populao passou a ser considerada estatisticamente e o

    termo normal, de origem matemtica, a ser usado para designar o prottipo de

    sade orgnica. , portanto, neste perodo que a vigilncia e as condies de vida

    passaram a ser objeto de medidas e de regulamentos decididos pelo poder

    poltico e esclarecido pelos higienistas: Medicina e poltica, ento, se encontraram

    em uma nova abordagem das doenas, da qual temos uma ilustrao convincente

    na organizao e nas prticas de hospitalizao (EM, 2005, p.28).

    O problema identificado por Canguilhem, ao analisar a relao existente

    entre o nascimento do hospital e a ambio sociopoltica-mdica higienista de

    regulamentar a vida dos indivduos, que essa forma de abordagem mdica em

    muito contribuiu para a desindividualizar a doena, pois se por um lado o discurso

    higienista desindividualiza porque incide sobre uma coletividade, tambm o

    hospital, atravs da ultraespecializao de seus procedimentos que localizam a

    doena no rgo, no tecido, na clula, no gene, na enzima, perde de vista o

    sujeito da doena. A seu ver, como uma mquina de curar, o hospital se constituiu

    como um lugar de tratamento generalizado no anonimato, pois nele o doente no

    tratado como sujeito de sua doena, mas como objeto (cf. EM, 2005, p.55).

    Como mero corpo objetivado, seu sofrimento e a reduo de suas atividades

    cotidianas habituais no so considerados como constitutivos e agravantes de seu

    estado de mal.

  • 23

    tambm diante da percepo de que os espaos destinados ao cuidado

    em sade se encontram cada vez mais ocupados por equipamentos e

    regulamentos sanitrios e de que o mdico assumiu o papel de executor das

    instrues de um aparelho de Estado, se esquecendo de que a sade mais do que

    uma exigncia de ordem econmica a ser valorizada no enquadramento de uma

    legislao a unidade espontnea das condies de exerccio da vida, que

    Canguilhem apresenta alguns questionamentos: Como se livrar da tecnocracia

    dos mdicos? Seria preciso introduzir na formao hospitalar-universitria um

    ensino da participao convival para garantia do melhor contato humano entre

    mdicos e doentes? Devemos resolver esta dificuldade criando equipes de sade,

    com profissionais fortemente motivados, que se empenhariam em recriar as

    relaes com o corpo, o trabalho e a coletividade? Mas, essas solues que se

    dizem de esquerda esto isentas de toda ideologia de direita? Ser chegado o

    tempo de uma crtica da razo mdica prtica? (cf. EM, 2005, p. 69).

    Destarte, por oposio aos pressupostos terico-epistemolgicos e

    poltico-ideolgicos da racionalidade mdica cientfico-moderna que Canguilhem

    define a medicina como uma tcnica ou arte situada na confluncia de vrias

    cincias que deve se colocar a servio das normas vitais (cf. NP, 1990, p.16).

    Mas, para tanto, o mdico precisa estar ciente de que a vida humana tem um

    sentido biolgico, existencial e social e que todos esses sentidos devem ser

    considerados para a compreenso do fenmeno patolgico (cf. CV, 1985, p. 155).

    Caso contrrio, a medicina ir se transformar em um dispositivo social de

    normalizao e o mdico ter seu papel limitado ao de reparador de um suposto

    estado normal, ideal e adequado a um determinado modelo de sociedade, este

    mesmo incontestvel.

    Desta forma, ampliando a concepo de vida para alm de sua dimenso

    biolgica, e conjugando a ela as dimenses existencial e social, Canguilhem

    recusa um biologismo, um psicologismo ou mesmo um sociologismo limitados na

    compreenso do fenmeno patolgico. Advogando em defesa de uma clnica

    centrada no indivduo concreto, norteada pelas noes de sentido e valor vitais,

    ele procura fazer com que o mdico deixe de ser um agente de normalizao de

  • 24

    corpos e mentes e passe a ser um incentivador da capacidade reativa e normativa

    da vida (cf. EM, 2005, p.45). Em nosso entender, a partir destas consideraes

    que o pensamento canguilhemiano pode contribuir para delinearmos outras

    prticas e tica para o cuidado em sade na atualidade, pautadas num diferente

    modelo de racionalidade, que tenha a normatividade da vida por esteio, abrindo

    terreno para que a clnica - seja ela mdica, psicolgica ou outra - ao invs de se

    aliar ao imperativo da normalidade, possa atuar como um dispositivo de

    resistncia mecanizao da vida, normalizao dos indivduos e gesto

    scio-poltica mdica da vida cotidiana.

    * * *

    No Brasil, no so muitos os autores que se propem a estudar o

    pensamento mdico-filosfico de Canguilhem atravs do conjunto de seus

    escritos. Via de regra, as anlises realizadas versam mais sobre a obra O Normal

    e o patolgico, considerada a mais importante do autor. Contudo, o nmero de

    comentadores de sua filosofia da vida crescente, assim como a anlise de seus

    textos sobre medicina, sendo unnime a afirmao da atualidade de suas

    proposies. No cenrio internacional, na Frana em particular, a fortuna crtica

    mais abundante. Mdicos, historiadores, psicanalistas e filsofos tm destacado a

    relevncia das reflexes de Canguilhem para as prticas de sade na

    contemporaneidade. Prova disso que, recentemente, por ocasio do centenrio

    de seu nascimento, foi realizada uma publicao em sua homenagem, na qual um

    conjunto de pesquisadores avaliam a pertinncia de sua filosofia da vida e sua

    contribuio para a medicina hoje12.

    12

    Nesta obra, na parte dedicada Medicina, por exemplo, Giroux coloca o problema da conciliao da sade como normatividade individual e o ponto de vista epidemiolgico da sade da populao. Lechopier & Leplge trazem a questo do uso de instrumentos de medida de sade (mesure de la sant perue), que pretendem quantificar o impacto das doenas ou das diferentes intervenes de sade na vida cotidiana sob o ponto de vista dos pacientes. Montiel, considerando que o pensamento de Canguilhem uma vacina contra o dogmatismo mdico, reflete sobre as repercusses prticas de seu pensamento na formao mdica, considerando, entre outros aspectos, que o triunfo do laboratrio sobre a clnica instaurou uma iatrocracia ou um poder mdico ditatorial de especialistas. Yeo trata da recepo do pensamento mdico canguilhemiano na Coria do Sul, apontando seus limites em relao a uma tradio filosfica e mdica neo-confucionista, que admite o carter transcendente das normas. Cf. FAGOT-LARGEAULT; DEBRU, D,

  • 25

    Dentre os estudiosos brasileiros, Serpa Jnior, analisando a tendncia de

    expanso das categorias diagnsticas na atualidade e questionando as foras e

    interesses que esto em jogo nesse processo de patologizao do normal,

    defende a relevncia das argumentaes de Canguilhem que se colocam em favor

    de uma atividade normativa, inerente prpria vida, em tempos de retomada de

    um objetivismo mdico de alta performance, que pretende definir a verdadeira

    configurao de corpos e mentes considerados normais e patolgicos13. Bezerra

    Jnior tambm acredita ser a discusso feita por Canguilhem atual, pois ela pode

    ajudar os profissionais de sade a pensar de forma crtica a fronteira entre o

    normal e o patolgico, evitando que se transformam em agentes de um processo

    crescente de medicalizao da existncia e de patologizao do normal. Para ele,

    as duas principais consequncias da adoo da perspectiva canguilhemiana na

    clnica so o ato de colocar a experincia do sofrimento no centro da teraputica

    e, contra o objetivismo reinante na medicina e na cultura, apontar os impasses do

    fisicalismo hegemnico na psiquiatria atual14.

    Tambm no Brasil, Safatle acredita que ao estudar os fenmenos normais e

    patolgicos Canguilhem coloca questes no s para a biologia, mas tambm

    para a clnica mdica e psicolgica. Percebendo a relao de suplementaridade

    entre normatividade vital e normatividade social, o comentador pergunta se no

    poderamos utilizar os conceitos de normal e de patolgico tal como apresentados

    por Canguilhem para refletirmos sobre o sofrimento que as nossas formas sociais

    de vida produzem15. J Caponi analisa o atual conceito de sade preconizado pela

    Organizao Mundial de Sade (OMS), definido como equilbrio e adaptao ao

    MORANGE, M (dir); HAN, H-J. (d). Philosophie et mdecine: en hommage Georges Canguilhem. (LHistoire des sicences Textes et tudes). Paris, Vrin, 2008.

    13 Cf. SERPA JUNIOR, O. D. Indivduo, organismo e doena: a atualidade de O normal e o

    patolgico de Georges Canguilhem. Psicologia Clnica, Rio de Janeiro, v. 15, no. 01, 2006.

    14 Cf. BEZERRA JUNIOR, B. O normal e o patolgico: uma discusso atual. In: SOUZA, A. N;

    PITANGUY, J (orgs.). Sade, corpo e sociedade (Srie Didticos). Rio de janeiro, Editora UFRJ, 2006.

    15 possvel que noes como estas desenvolvidas por Canguilhem possam nos auxiliar, o que

    nos deixa com a questo de saber at que ponto reflexes epistemolgicas como estas guardam forte potencial poltico e emancipatrio (SAFATLE, 2011, p.26). Cf. SAFATLE, V. O que uma normatividade vital? Sade e doena a partir de Georges Canguilhem. Scienti Studia: Revista Latino-Americana de Filosofia e Histria da Cincia, So Paulo, v. 9, n. 1, p. 11-27, 2011.

  • 26

    meio, a partir da perspectiva terica apontada por Canguilhem, para mostrar em

    que medida ele impraticvel, no apenas por ser utpico e subjetivo, mas

    tambm por ser politicamente conveniente para legitimar estratgias de controle e

    de excluso de todos aqueles que consideramos indesejveis ou perigosos.

    Lembrando que a normalizao das condutas e dos estilos de vida nasceu com a

    medicina social, e que numa sociedade marcada pelas desigualdades parece mais

    simples normalizar condutas do que transformar condies perversas de

    existncia, a autora faz uso das reflexes canguilhemianas tambm para

    problematizar o que chamamos hoje de sade coletiva16.

    No cenrio internacional, Delaporte procura mostrar que a crtica de

    Canguilhem medicina cientfica acaba por desvel-la em suas aspiraes ao

    estabelecimento de um controle sobre a vida, j que a concepo positivista de

    doena, como expresso de uma supervalorizao do saber, foi o que tornou

    acolhedora ao esprito dos mdicos, qumicos e bilogos a ideia tecnicista de

    violar a natureza com fins teraputicos17. Lecourt v nas reflexes

    canguilhemianas uma crtica medicina moderna em sua inclinao a se tornar

    um instrumento eficaz para soldar uma ordem social sufocante, na medida em

    que, operando com o conceito de norma, acaba por colocar o indivduo sob o

    imprio de uma concepo desptica de sade18.

    16

    Cf. CAPONI, S. Georges Canguilhem y el estatuto epistemolgico del concepto de salud. Historia, Ciencias, Sade: Manguinhos 4/2: 287-307, 1997.

    17 Se o vivo humano conhece as relaes do mal com o estado normal, ento a medicina

    comporta um poder de dominao. que a eficcia da ao est fundada na cincia. Eis o programa de um positivismo desptico e to seguro do seu poder que assimila a funo de conhecimento a uma funo de comando. Reconhecemos, de passagem, uma das figuras de um sonho demirgico: o tema de uma potncia ilimitada do homem que se exerceria sobre a natureza e a vida (DELAPORTE, 1994, p.37) Cf. DELAPORTE, F. A Histria das Cincias segundo G. Canguilhem. In: PORTOCARRERO, V. Filosofia, Histria e Sociologia das Cincias I: abordagens contemporneas. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1994.

    18 A sade assume, para aqueles a quem domina, seja a triste face do regime, verso moderna da

    servido voluntria, seja a face, mais dinmica e sorridente, da forma, ou mais ainda ou ainda, mais estetizante, da linha, com destinao preferencialmente feminina ou conjugal. E se, esgotado por estas exigncias, o indivduo deixa abater-se, sempre lhe restar a possibilidade de tomar dois anti-depressivos depois da refeio (LECOURT, 2006, p.298-299) Cf. LECOURT, D. Normas In: RUSSO, M; CAPONI, S (Org). Estudos de filosofia e histria das cincias biomdicas. So Paulo, Discurso Editorial, 2006.

  • 27

    Ainda, Moullin acredita na importncia do pensamento de Canguilhem em

    tempos de morte da clnica, e pergunta se a referncia ao indivduo como forma

    possvel de vida e fonte de normatividade ainda so aceitveis pelo mdico

    contemporneo. Refletindo tambm sobre a medicina das populaes, ela destaca

    a inquietao de Canguilhem relativa desconsiderao da sade individual por

    parte de uma medicina coletiva de corpos e autmatos19. J Gros faz uso do

    pensamento canguilhemiano para refletir sobre os avanos da biologia molecular e

    da engenharia gentica, em considerao ao tnue limite existente entre

    eliminao de erros genticos com fins teraputicos e a eugenia20.

    Mas, vale dizer que apesar da existncia de um consenso entre os

    comentadores sobre a relevncia do pensamento mdico-filosfico de

    Canguilhem, o fato de ele ter optado por uma dupla formao tem gerado

    controvrsias. A exemplo disso, Pquinot, seu colega no perodo de formao

    mdica, se atendo s motivaes pessoais que levaram Canguilhem dupla

    formao, recorda que ele nem mesmo gostava de ser chamado de doutor, no se

    vendo como um verdadeiro mdico, e que apenas procurou tomar contato com a

    medicina para poder melhor teoriz-la filosoficamente21. Moulin partindo da

    afirmao de Pquinot de que Canguilhem era um doutor em medicina e no um

    mdico, diz acreditar que ele, ao situar seu lugar de fala (lieu de parole) e seu

    projeto filosfico na medicina, oferece ao hospital uma legitimidade epistemolgica

    nova, como local de pesquisas filosficas, e d assim um excelente exemplo do

    que se chamaria exerccio terico da medicina. Mas, ao mesmo tempo, foi

    somente sendo mdico at o fim e correndo o risco de no ser mais filsofo que

    19

    Cf. MOULIN, A. M. La mdicine moderne selon Georges Canguilhem. In: BADIOU, A. (et al). Georges Canguilhem: Philosophe, historien des sciences: Actes du colloque (6, 7, 8 dcembre 1990), Paris: Albin Michel, 1993.

    20 Cf. GROS, F. Hommage Canguilhem. In: BADIOU, A. (et al). Georges Canguilhem: Philosophe,

    historien des sciences: Actes du colloque (6, 7, 8 dcembre 1990), Paris: Albin Michel, 1993.

    21 Cf. PEQUIGNOT, H. Georges Canguilhem et la medicine. Revue de Metaphysique et de Morale,

    jan-mar 1985 [nmero especial: Georges Canguilhem].

  • 28

    ele pode provar a insuficincia radical dos conhecimentos fornecidos pelo ensino

    filosfico e tambm mdico22.

    Para Lecourt, se comum apresentar Canguilhem como mdico e filsofo

    ou como filsofo e mdico, a segunda frmula mais prxima da realidade, pois

    seu interesse pela medicina no foi o de um mdico ou de um historiador, mas o

    de um filsofo, que viu nesta matria condies para prolongar seus estudos

    tericos. Ele lembra que o prprio Canguilhem diz ter exercido a medicina apenas

    durante algumas semanas no maquis de Auvergne, alm de ter vivido um breve

    episdio de prtica psiquitrica no Hospital Saint-Alban23. Recorda ainda que ele

    julga que a positividade destas prticas residiu no fato de ter podido unir a seus

    conhecimentos tericos alguns conhecimentos de experincia24. Assim, se por um

    lado seus estudos mdicos ganharam sentido no interior de seu projeto

    epistemolgico, sendo a melhor explicitao de seus temas de interesse, por

    outro, serviram para aproxim-lo da concretude dos problemas humanos.

    Portanto, para ele, mais como filsofo que Canguilhem defende no s uma

    postura epistemolgica antipositivista, que inverte a ordem de precedncia entre

    cincia e tcnica, mas tambm, a partir de uma preocupao tica concreta,

    destaca a obrigao do profissional mdico em tomar partido, o que significa ter

    22

    Cf. MOULIN, A. M. La mdicine moderne selon Georges Canguilhem. Op. cit.

    23 Sobre sua breve experincia prtica mdica, Canguilhem resume: No vero de 44, como

    mdico do maquis de Auvergne, escondi e cuidei dos feridos, durante algumas semanas, no hospital psiquitrico de Saint-Alban, em Lozre, e nas suas vizinhanas (CANGUILHEM, 1994, p. 34) Cf. CANGUILHEM, G. Abertura. In: CANGUILHEM, G; DERRIDA, J; MAJOR, R; ROUDINESCO, E. Foucault: Leituras da Histria da Loucura (trad: Maria Ignes Duque Estrada). Relume-Dumar, 1994.

    24 Aqui, Lecourt se refere entrevista dada por Canguilhem a Franois Bing e Jean-Franois

    Braunstein, em 21 de junho de 1995. Nela, quando questionado sobre as razes que o levaram a estudar medicina, ele explica: Por mais pequeno e estreito que possa parecer, comecei meus estudos em medicina porque estava decepcionado, nos primeiros anos de ensino como professor de filosofia, com as condies as quais meu ensino era julgado (...). Quando cheguei a Toulouse, eu disse a mim mesmo que eu faria bem em unir ao que jamais pude at ento adquirir dos conhecimentos de ordem livresca em filosofia alguns conhecimentos de experincia, tais quais aqueles que se pode obter do ensino de medicina e, talvez, um dia, de sua prtica. A est a razo fundamental (CANGUILHEM, 1998, p. 121) Cf. CANGUILHEM, G. Entretien avec Georges Canguilhem. In: BING, F; BRAUNSTEIN, J-F; ROUDINESCO, E. (org). Actualit de Georges Canguilhem: Le normal et le pathologique. Paris: Synthlabo, 1998.

  • 29

    conscincia da medida de suas responsabilidades e operar, atravs disso, uma

    reforma em sua conduta25.

    J Roudinesco, a partir de dados biogrficos, d maior destaque faceta

    canguilhemiana de resistente, de mdico de urgncia que atuou na guerra e pela

    guerra, e enfatiza o quanto as duas modalidades de sua filosofia da ao, o ato

    de resistir (soutenir) e o ato de cuidar (soigner), permitiram que Canguilhem

    fizesse com que a Resistncia e a medicina dessem os braos. Aos olhos da

    historiadora e tambm psicanalista, foi o exerccio da medicina no maquis que

    possibilitou a ele se confrontar com uma experincia humana concreta, dando

    corpo e vida sua reflexo conceitual sobre a natureza mesma da normalidade.

    A seu ver, ao concluir que a medicina, sem ser ela prpria uma cincia, utiliza o

    resultado de todas as cincias a servio das normas vitais, Canguilhem a coloca

    no centro de uma nova forma de racionalidade26. Mostrando que a atividade

    cientfica-laboratorial no suplanta a observao clnica, ele prope uma

    revalorizao da arte mdica, e nos faz ver que somente uma medicina fundada

    na escuta e na observao do doente capaz de assegurar um verdadeiro status

    ao profissional mdico, evitando que ele se torne lacaio do laboratrio e da

    farmacologia.

    Em nosso trabalho, no nos atemos s motivaes que levaram

    Canguilhem dupla formao, nem mesmo nos propomos a apresentar dados

    biogrficos sobre seu perodo de formao mdica ou sobre sua participao na

    Resistncia, de modo a responder se ele tinha ou no interesse em dedicar-se

    integralmente prtica clnica, tornando-se com isso um verdadeiro mdico ou

    em que medida a experincia no maquis foi determinante para sua reflexo sobre

    a normalidade. Ou seja, no procuramos investigar a relao existente entre vida

    e obra, nem mesmo apontar todas as influncias tericas que foram importantes

    25

    Cf. LECOURT, D. Une philosophie de la medicine. In: Georges Canguilhem. Que sais-je?: Les envies du savoir. 1

    a edio. Paris, Presses Universitaires de France - PUF, 2008.

    26 Abandonada h um sculo pela filosofia, fosse porque no fazia parte das cincias nobres,

    como a matemtica ou a fsica, fosse porque se aproximava da biologia, ela prpria ignorada pela filosofia, a medicina podia tornar-se, para o jovem filsofo, o centro de uma nova forma de racionalidade (ROUDINESCO, 2007, p. 23). Cf. ROUDINESCO, E. Filsofos na tormenta (Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser, Deleuze, Derrida). Rio de Janeiro, Zahar, 2007.

  • 30

    para a constituio de seu pensamento mdico-filosfico desde o perodo de

    juventude27.

    Quando estudamos o pensamento canguilhemiano procuramos, sobretudo,

    identificar o ponto de vista de um filsofo e tambm mdico que optou por buscar

    sua matria de reflexo junto ao leito do doente, resgatando com isso o sentido

    primeiro da prtica clnica, o de ser uma tcnica ou arte da cura que se coloca a

    servio da vida. Se, atravs disso, ele operou uma ao de resistncia, assim o

    fez principalmente porque revelou a ideologia de controle ou domnio subjacente

    medicina cientfica moderna, que acabou por transform-la num dispositivo social

    de normalizao.

    Sendo assim, diante da necessidade identificada por Canguilhem de

    realizao de uma crtica da razo mdica prtica, a tarefa que a ns se colocou

    foi a de recolher em seus escritos fundamentos para a construo de outra

    racionalidade em sade que consiga operar resistncia s prticas de

    normalizao, que acreditamos ainda serem correntes. Destarte, concordamos

    com Roudinesco quanto possibilidade de enxergarmos no pensamento de

    Canguilhem outra forma de racionalidade mdica, com razes na vida.

    Acompanhamos tambm Debru, por ele fazer uma defesa da racionalidade

    mdica de tipo holista proposta por Canguilhem, mas discordamos de Morange

    por questionar a pertinncia das teses canguilhemianas presentes em sua crtica

    radical ao projeto de fundar a medicina sobre bases cientficas.

    Com efeito, segundo Morange, o sucesso de O normal e o patolgico se

    deu porque esta obra antecipou as dificuldades enfrentadas pela tecnicizao

    crescente da medicina, e se inscreveu nos debates, comuns desde os anos 60,

    sobre a desumanizao dos servios de sade e a necessidade de reforma da

    medicina moderna. Mas, embora acredite que esta crtica seja pertinente, ele julga

    ser sua base conceitual e filosfica inaceitvel. Por exemplo, Canguilhem no faz

    um retrato fiel da medicina de seu tempo. Ele pouco considera os sucessos da

    27

    Empreitada j realizada por Lecourt, diretor honorrio do Centre Georges Canguilhem - Universit Paris Diderot 7. Cf. LECOURT, D. Que sais-je?: Les envies du savoir. 1

    a edio. Paris,

    Presses Universitaires de France - PUF, 2008.

  • 31

    microbiologia. Alm disso, Morange aponta os riscos de desconsiderao dos

    critrios objetivos para o diagnstico da doena e questiona a pertinncia da

    afirmao de que o paciente que define a fronteira entre o normal e o patolgico.

    Ele acredita ser uma iluso achar mais humana esta medicina holista que

    considera a doena como um novo estado e no como uma alterao localizada

    nos rgos. Na era ps-genmica a determinao de caractersticas genticas

    individuais que permite conhecer os riscos do desenvolvimento de certas

    patologias ou a resposta particular a certos tratamentos farmacolgicos. Assim, a

    re-personalizao do ato mdico ser biolgica28.

    J Debru, considerando o engajamento de Canguilhem - filosfico no

    campo da medicina e poltico de combate aos nazistas - acredita que sua filosofia

    rica em consequncias para o plano da tica mdica, prtica do cuidado e

    para a concepo mesma de valor da vida. Para ele, o progresso das tecnologias

    que permite realizar o sonho dos mdicos de tratamentos individualizados na

    perspectiva de teraputicas novas e eficazes no invalida a crtica ao ciclo

    tecnocientfico realizada por Canguilhem, pois a biologia, a imunologia e a

    gentica permitem reencontrar a individualidade do doente, mas no apreendem o

    indivduo concreto. A medicina contempornea, embora baseada em evidncias,

    se apoiando em aparelhos e estatsticas, ensaios clnicos standartizados,

    deficitria para se aproximar da individualidade do paciente em sua biografia, isto

    , em sua existncia, sua maneira de ser no mundo e suas relaes sociais e

    afetivas. Mais e mais reduzida ao suporte biolgico da doena ela ignora as

    dimenses socioafetivas de numerosas doenas e a pluralidade de fatores que

    concorrem para o processo patolgico, sejam eles genticos, ecolgicos, sociais

    ou psicolgicos. a que o holismo vitalista de Canguilhem pode sustentar uma

    reflexo sobre a prtica mdica, nos servindo como um inspirador ou guia29.

    28

    MORANGE, M. Retour sur le normal et le pathologique. In: FAGOT-LARGEAULT; DEBRU, D, MORANGE, M (dir); HAN, H-J. (d). Op. cit.

    29 DEBRU, C. Lengagement philosophique dans le champ de la mdecine: Georges Canguilhem

    aujordhui. In: BRAUNSTEIN, J-F (org). Histoire des sciences et politique du vivant. Paris, Presses Universitaires de France PUF, 2007. p.45-62.

  • 32

    Assim, foi apostando na pertinncia de suas teses, ou seja, adotando o

    ponto de vista de Canguilhem de que a ideia de normalidade como normalizao

    mais se identifica medicina cientfica moderna que opera com a ideia de norma -

    como mdia estatstica e tipo ideal - do que a uma medicina que considera que na

    natureza h apenas normalidade como normatividade, que procuramos ao fim de

    nosso trabalho vislumbrar outra racionalidade para as prticas de cuidado em

    sade na atualidade e obter algumas respostas a estas e a outras questes que, a

    nosso ver, se impem: O que sade afinal? possvel compreendermos de

    outra forma o fenmeno patolgico? O aprimoramento dos mtodos de anlise

    diagnstica tem contribudo efetivamente para o tratamento e cura das doenas?

    Quais os limites do uso da tecnologia mdica? O tratamento farmacolgico basta

    para promover um efetivo bem-estar? At que ponto no patologizamos e

    medicalizamos alguns comportamentos humanos apenas por no se enquadrarem

    na mdia ou no responderem s normas sociais? O que os profissionais de

    sade fazem fazendo o que fazem? Produo de sade ou normalizao dos

    corpos e das mentes? H como realizar uma politizao da clnica, sem

    resvalarmos em um discurso meramente ideolgico?

    Seguindo a trilha aberta por Canguilhem, do estudo sobre a vida, o normal

    e o patolgico at a apresentao de problematizaes relativas aos aspectos

    tcnico-cientfico e tico-poltico da clnica mdica e psicolgica, estruturamos

    nossa trajetria em quatro captulos. O primeiro deles trata da concepo

    canguilhemiana de vida, procurando mostrar qual o sentido de considerarmos a

    medicina uma tcnica ou arte que nela se enraza. O segundo captulo se atm

    crtica de Canguilhem ideia de medicina como cincia das doenas, realizada a

    partir da contestao que faz tese presente nos trabalhos de Comte e Claude

    Bernard de que o patolgico seria apenas uma variao quantitativa do estado

    normal. O terceiro objetiva mostrar como e porque, aos olhos de Canguilhem, as

    prticas de sade podem se transformar em dispositivos de normalizao dos

    indivduos e em estratgias de gesto sociopoltica mdica da vida cotidiana. O

    quarto captulo, por fim, apresenta os contornos desta outra racionalidade que

    escolhemos chamar de medicina filosfica de Georges Canguilhem, dando

  • 33

    abertura a um debate sobre o ensino, a pesquisa, a prtica e a tica em sade na

    atualidade.

  • 34

    CAPTULO I:

    Medicina: uma arte enraizada na vida

    Se viver lutar contra a morte, nosso ltimo suspiro ainda um derradeiro ato de resistncia.

    Para esclarecermos porque Canguilhem define a medicina como uma arte

    de enraizamento vital preciso primeiramente identificar qual concepo de vida

    ele apresenta no conjunto de seus escritos, considerando que ela no se encontra

    em um escrito em particular, mas aparece de modo disperso e nem sempre direto

    no decorrer dos estudos que faz sobre medicina, histria e filosofia das cincias

    da vida. Apesar disso, no curso de nossa investigao, notamos que o fio condutor

    que une todas as reflexes canguilhemianas sobre a vida a capacidade que ela

    tem de ao espontnea, de reao e de resistncia a tudo o que lhe ameaa,

    quando de seu embate com o meio:

    A vida no , portanto, para o ser vivo, uma deduo montona, um movimento retilneo, ela ignora a rigidez geomtrica, ela debate ou explicao (o que Goldstein chama de Auseinandersetzung) com um meio em que h fugas, vazios, esquivamentos e resistncias inesperadas (NP, 1990, p.160).

    Da decorre que, sendo este precisamente nosso tema de interesse, apenas por

    no ser a vida indiferente e aptica, pois ela reage e resiste degradao e

    morte, que a medicina aparece como o prolongamento dela30.

    30

    Canguilhem no verbete Vie da Encyclopdia Universalis parte da questo sobre o que mais precisamente a vida do vivente, para alm da coleo de atributos prprios que poderiam resumir a histria deste ser nascido para morrer. Para respond-la ele traa uma breve histria da apario do conceito nos diversos verbetes de dicionrios e enciclopdias cientficas, e encontra desde o esboo de uma definio geral de vida em Aristteles at a perspectiva da ciberntica. Ou seja, como resultado deste percurso, ele encontra diferentes entendimentos de vida: como animao, mecanismo, organizao e informao. Sem encontrar uma resposta rematada para a sua questo em nenhuma destas concepes, por fim, conclui que a morte o nico sinal irrefutvel da vida. Apoiado nos trabalhos de Freud e de Atlan, especificamente no conceito de pulso de morte, instabilidade, desequilbrio e inacabamento do vivo, nota que o nico projeto verdadeiramente reconhecido da vida a morte, ainda que recusado por ela. Cf. CANGUILHEM, G. Article Vie (Paris: Encyclopdia Universalis), t.23, p.546-553, 1989.

  • 35

    De modo mais preciso, em contraposio aos fundamentos tericos

    ideolgicos da biologia mecanicista, em suas diferentes formulaes histricas,

    que a vida definida por Canguilhem como uma atividade de oposio inrcia e

    indiferena, atividade a partir da qual todas as tcnicas humanas se originam.

    Por isso, quando de sua reflexo sobre o surgimento da medicina, ele diz ser a vis

    medicatrix naturae, entendida por ele como uma tcnica curativa no intencional

    da vida, a origem da tcnica teraputica intencional humana. Ou seja, para ele,

    somente pelo fato da vida ser reatividade polarizada de conflito com o meio, sendo

    capaz de uma atividade normativa de carter hednico, que a tcnica mdica se

    faz possvel.

    Mas, dizer que h nos escritos canguilhemianos uma concepo de vida,

    derivada de suas anlises filosficas, no significa afirmar a existncia neles de

    uma teoria biolgica rematada. Isso porque, como Canguilhem mesmo esclarece

    no prefcio de La Formation du concept de rflexe aux XVIIe et XVIIIe sicles, ele

    nunca procurou fazer uma teoria biolgica, tarefa prpria de um bilogo, nem uma

    biologia de filsofo, projeto a seu ver monstruoso, mas apenas uma filosofia da

    vida, tarefa esta sim, prpria a um filsofo (cf. FCR, 1955, p.01)31. No entanto, ao

    fazer sua anlise filosfica da vida, trazendo as ideias de polaridade dinmica e

    normatividade vital para ressignificar as noes correntes de normal e de

    patolgico, ele acaba por apresentar um ponto de vista original sobre seus

    fenmenos.

    Com efeito, em seus estudos sobre a normalidade, tomando por critrio de

    sade e de doena a normatividade vital, ele coloca em questo a ideia corrente

    de que o patolgico anormal, no sentido estrito da palavra, j que pela sua

    perspectiva at mesmo o doente pode ser considerado normal, embora padea de

    uma restrio em sua capacidade normativa. Alm disso, tambm em

    31

    Com efeito, como esclarece Machado (1981), Canguilhem no teve a pretenso de fazer uma filosofia da vida, no sentido de uma biologia de filsofo. Sua problemtica de investigao a filosofia das cincias da vida. Assim, se ela encerra uma reflexo sobre a vida, o que no se pode negar, tal reflexo indireta e mediatizada. Cf. MACHADO, R. A Histria Epistemolgica de Georges Canguilhem. In: Cincia e Saber. A Trajetria da Arqueologia de Foucault. 2 ed., Rio de Janeiro, Graal, 1981.

  • 36

    considerao polaridade e normatividade vitais que, no contexto de suas

    reflexes sobre a relao do vivente com seu meio, consegue contestar a ideia de

    que a vida est integralmente submetida a influncias externas, restando a ela

    apenas adaptar-se passivamente ao entorno. A seu ver, o vivente, ao contrrio de

    uma mquina, no matria passiva regrada de fora, mas pode transformar o

    meio em que se encontra, adaptando-se ativamente a ele:

    Insistimos que as funes biolgicas so ininteligveis do modo como so reveladas pela observao, quando s traduzem os estados de uma matria passiva diante das transformaes do meio (NP, 1990, p.143).

    Com isso, ele atribui vida propriedades que s a ela podem ser referenciadas: a

    capacidade de valorar seus comportamentos, a liberdade de infringir e criar suas

    prprias normas e a de alterar o meio no qual se desenrola.

    Assim, se ele recusa a concepo de meio em sua formulao mecanicista32

    e, por conseguinte, as teorias para as quais ele domina e comanda a evoluo das

    espcies, porque acredita que sua primeira consequncia conceber o

    organismo como passivamente deformvel sobre a presso do ambiente e, com

    isso, sua espontaneidade prpria refutada e ele passa a se identificar ao inerte

    (cf. E, 1989, p. 66).

    Contrariamente a essa ideia, em seus estudos sobre o ser vivo e seu meio,

    ele recorre Uexkll e Goldstein para mostrar que o vivente no uma mquina

    32

    Como veremos, entendendo que o conceito de meio, transposto da mecnica e da fsica para a biologia, favorece as concepes deterministas de vida, Canguilhem procura dar a este termo uma conotao estritamente biolgica, que no o reduz a um sistema de constantes mecnicas, fsicas e qumicas. Na coletnea La connaissance de la vie, no artigo Le vivant et son milieu, ele esclarece que a noo e o termo meio foram importados da mecnica para a biologia, na segunda metade do sculo XVIII. A noo, mas no o termo, aparece em Newton, e o termo, com sua significao mecnica aparece na Encyclopdie de dAlembert e Diderot. Com efeito, em Newton, no estudo sobre o fenmeno fisiolgico da viso, que encontramos um primeiro exemplo de explicao de uma reao orgnica por ao do meio, ou seja, de um fluido estritamente definido por suas propriedades fsicas. Na biologia, Lamarck quem introduz o termo, defendendo que o meio domina e comanda a evoluo dos viventes. Mas de Taine, mais do que Lamarck, que os neo-lamarckistas franceses retiram o termo, agora identificado como um dos princpios de explicao analtica da histria, ao lado da raa e do momento. Assim, a seu ver: O benefcio de uma histria mesmo que sumria da importao em biologia do termo meio nos primeiros anos do sculo XIX prestar conta da acepo originalmente e estritamente mecanicista deste termo (cf. CV, 1985, p.134).

  • 37

    que apenas responde a exitaes do meio, pois cada organismo tem um meio

    prprio (Umwelt) com tempo e espao ordenado pelo seu ritmo de vida, no qual se

    move e se orienta segundo seu interesse. O meio ambiente humano (Umwelt

    humaine) passa a ser entendido ento como o mundo usual da experincia

    perspectiva e pragmtica deste sujeito de valores vitais que essencialmente o

    ser vivo (cf. CV, 1985, p. 145). Ainda, defendendo uma concepo de vivente

    como um centro criador de valores e normas e adotando uma relao do ser vivo

    com seu meio de carter no determinista que ele procura mostrar, nos termos de

    Goldstein, quo catastrfica e doentia pode ser uma vida aptica, estagnada e

    condicionada pelo exterior, considerando que viver para o animal e com mais

    razo para o homem no somente se estagnar e se conservar, afrontar riscos

    e triunfar (CV, 1985, p. 146).

    Tambm, como Nietzsche, tomando a vida como potncia valorativa que

    tende expanso e superao, como movimento incessante de ensaio,

    experimentao e criao de novas formas, atravs da afirmao da reatividade,

    criatividade e liberdade vitais - j que ela pode transgredir seus prprios hbitos,

    ensaiar, experimentar, improvisar novos modos de ser e insurgir-se contra as

    imposies do meio - que Canguilhem consegue se opor a uma perspectiva

    ideolgica de mecanizao da vida e sua consequente desvalorizao;

    perspectiva a seu ver inaugurada pela teoria cartesiana do animal-mquina que,

    inseparvel da proposio penso logo existo, apresentou o corpo como incapaz

    de linguagem e de inveno (cf. CV, 1985, p.111), servindo posteriormente de

    base para a constituio de uma cincia biolgica materialista e mecanicista que

    procurou eliminar da vida qualquer referncia a valores (cf. I, 1981, p.117).

    Desse modo, apontando as insuficincias das teorias biolgicas que

    assimilam o organismo a uma mquina, bem como o equvoco das teorias

    deterministas de meio, que ele adota uma concepo de vivente como uma

    totalidade orgnica autorregulada produtora de normas e valores e uma teoria das

    relaes do ser vivo com seu meio de teor integrista33, segundo a qual mesmo as

    33

    Segundo Jacob (1983), o integrismo em biologia, por oposio ao reducionismo, defende no s que o organismo no dissocivel em seus elementos constituintes, mas tambm o v como

  • 38

    chamadas anomalias morfolgicas e genticas - no sendo necessariamente

    letais ou patolgicas, pois sua normalidade depender de suas relaes com o

    meio em que se encontram - sero consideradas necessrias diversificao,

    adaptao e evoluo das espcies.

    Vale dizer que, ao refletir sobre as relaes do vivente com seu meio, se ele

    se filia ao darwinismo, no para tomar para si o mecanismo de evoluo

    proposto pelo autor de A origem das espcies, mas precisamente por ter sido

    Darwin quem, alm de colocar em xeque as ideias de criao especial e

    imutabilidade das espcies, associou a ideia de normalidade do vivente ao

    ambiente em que se encontra. Tambm para ele, as formas vivas esto em

    movimento contnuo de transformao e este processo evolutivo no segue um

    plano ou tlos pr-determinado pela mente de um Criador, mas se d de modo

    aleatrio, marcado pela aventura e pelo risco (cf. E, 1989, p.364).

    De igual modo, a importncia que d s mutaes no o faz um seguidor do

    mutacionismo. Ou seja, se ele atribui a elas outro estatuto no por considerar

    que sejam as nicas causas dos processos evolutivos, mas porque as toma como

    prova da criatividade e da liberdade vitais34, j que no ocorrem necessariamente

    por influncia do meio, mas de espontneo, inovador e fortuito.

    integrado a um sistema de ordem superior, isto , a um grupo, a uma espcie, a uma populao ou famlia ecolgica. Isto , o bilogo integrista no apenas se recusa a compreender o funcionamento do organismo apenas por suas estruturas fsicas e seu desempenho pelas reaes qumicas que nele ocorrem, mas tambm se interessa pelas coletividades, pelos comportamentos e relaes que os organismos mantm entre si e com o seu meio. Desta vista, a atitude integrista pode tambm ser qualificada de evolucionista, na medida em que um rgo e uma funo s tm interesse quando considerados no interior de um todo, constitudo no somente pelo organismo, mas pela espcie em seu cotejo com a sexualidade, vtimas, inimigos, comunicao e ritos. Sobre o integrismo em biologia, confira: JACOB, F. A lgica do vivente: uma histria da hereditariedade (Trad: ngela Loreiro de Souza). Rio de Janeiro, Edies Graaal, 1983.

    34 Dagognet (2007) destaca a vizinhana existente entre a ideia de liberdade e criatividade na

    filosofia da vida de Canguilhem. A seu ver, o destaque dado por ele existncia de genes mutantes serve para mostrar que vida sempre possvel atribuir uma parte de novidade e de rearranjo. Tambm se verifica uma criatividade de base na relao do vivente com seu meio, j que ele, longe de se submeter, institui o meio em que vive e no pra de se transformar. Desta forma, atravs de um vitalismo racional ou surracional, caracterizado pelo afrouxamento em relao ao convencional e s regras, que Canguilhem elabora uma filosofia heurstica da criatividade, que percebe a presena sempre inventiva da vida l onde ela parece estar abolida, se abaixar e se perder, nos seus domnios aparentemente menos, como na patologia e na atividade reflexa. Sobre a importncia do conceito de criatividade na filosofia da vida de Canguilhem Cf. DAGOGNET, F. Pourquoi la maladie et le rflexe dans la philosophie biomdicale

  • 39

    Ademais, se em suas reflexes sobre a vida ele valoriza as

    monstruosidades morfolgicas e funcionais e as micromonstruosidades genticas

    no s porque elas atestam que, ao contrrio de um sistema de leis que no

    comporta excees, a vida, como uma ordem de propriedades, admite erros,

    desvios e infraes como uma via para sua superao. tambm porque,

    ideologicamente, uma teoria do carter espontneo das mutaes pode moderar a

    ambio humana de dominao integral da natureza, assim como o

    reconhecimento de uma ao no determinista do entorno em relao aos

    viventes desautoriza uma ao ilimitada do vivente humano sobre os outros

    viventes e sobre ele mesmo, por intermdio do meio (cf. CV, 1985, p.149). Alm

    disso, ao recusar a ideia de origem das espcies apenas por seleo natural, ele

    tambm procura se afastar do que considera ser uma degradao ideolgica da

    teoria da concorrncia vital, desastrosamente transposta para as relaes dos

    indivduos em sociedade (cf. I, 1981, p.93)35.

    Em vista disso, na trilha dos vitalistas, Canguilhem questiona todo projeto

    terico que procura explicar a vida a partir de um modelo mecnico ou fsico-

    qumico, o que faria da biologia um mero satlite de outras cincias. Assim como

    Barthez e Bichat, ele critica a invaso na biologia de cincias estrangeiras a toda

    concepo vital, resistindo pretenso da fsico-qumica de fornecer biologia

    de Canguilhem? In: BAUNSTEIN, J-F (org). Histoire des sciences et politique du vivant. Paris, Presses Universitaires de France PUF, 2007. p.17-25.

    35 A crtica de Canguilhem se direciona aqui teoria evolucionista de Herbert Spencer, considerado

    por alguns o pai do darwinismo social. Na Ideologia e racionalidade nas cincias da vida, ao examinar a gnese do evolucionismo, ele diz considerar a obra de Spencer um interessante caso de ideologia cientfica do sculo XIX. Isso porque, para ele, ideologia cientfica certo tipo de discurso que paralelo a uma cincia em constituio por exigncias de ordem prtica se v pressionado a antecipar a consumao da investigao, ou ainda, uma construo discursiva presunosa e deslocada, por que julga seu fim concretizado desde o incio e quando se realiza de um modo diferente e em outro domnio que no o prometido (cf. I, 1981, p.57). A teoria de Spencer, ao encontrar na biologia de Von Baer e depois na de Darwin um padro de garantia cientfica para um projeto de sociedade baseada no livre empreendimento, no individualismo poltico e na concorrncia pode exemplarmente ser tomada por uma ideologia cientfica, pois h nela uma extenso de concluses tericas regionais desligadas de suas premissas originais e libertas de seus contextos, realizada em nome de uma finalidade prtica: A ideologia evolucionista funciona como autojustificao dos interesses de um tipo de sociedade. A sociedade industrial em conflito, por um lado com a sociedade tradicional e, por outro, com a reivindicao social. Ideologia antiteleolgica, por um lado, e anti-socialista, por outro. Reencontramos assim o conceito marxista de ideologia, que a considera como a representao da realidade natural ou social, cuja verdade no reside no que esta representao diz, mas no que ela cala (I, 1981, p.40).

  • 40

    seus princpios de explicao (cf. E, 1989, p.79). Tambm a seu ver, a anexao

    da biologia s cincias da matria representaria a perda da especificidade de seu

    objeto: o fenmeno orgnico. Assim, afastado tanto da crena animista na

    existncia de uma alma provida de todos os atributos de inteligncia, da qual

    dependeria a vida do corpo animal, como de um substancialismo dualista, que

    admite a existncia de uma substancia agindo sobre a outra da qual seria

    ontologicamente distinta, seu vitalismo, o simples reconhecimento da

    originalidade do fato vital (CV, 1985, p.156).

    Mas, tambm ciente das apropriaes ideolgicas do vitalismo que ele

    procura destacar a fecundidade e a vitalidade desta tradio de pensamento, de

    modo a poder nela se inscrever sem ser acusado de reacionrio. Isso porque

    admite que, historicamente, o conceito de totalidade orgnica foi transposto para o

    terreno poltico, como forma de justificar o regime totalitrio, a entelquia de

    Driesch foi tomada como o Fhrer do organismo, assim como a gentica, as

    tcnicas de esterilizao e de inseminao artificial foram colocadas a servio da

    eugenia racista, e o darwinismo foi usado para justificar o imperialismo e a poltica

    do espao vital (Lebensraum) alem. No obstante, negando haver uma relao

    direta entre vitalismo e nacional-socialismo, ele acredita que a converso de

    certos bilogos vitalistas ao nazismo no deve fazer com que desabonemos o

    vitalismo, assim como no criticamos a aritmtica e o clculo por sua utilizao

    pelos banqueiros e atuais capitalistas (cf. CV, 1985, p.98).

    De todo modo, considerando que foi a biologia vitalista impregnada de

    animismo a que foi utilizada pela ideologia nazista para justificar seu projeto social,

    se ele no se importa de ser chamado de vitalista no por aceitar a existncia de

    uma fora vital, situada para alm da matria viva, que a animaria de fora, como

    fizeram os animistas e os vitalistas clssicos, mas por admitir uma capacidade

    inerente, prpria a ela, de reao e de autoconservao, que no se encontra na

    matria inerte, e que atesta a especificidade da ordem vital em relao

    maquinal.

  • 41

    Alm disso, se para Canguilhem a perspectiva vitalista a que melhor o

    auxilia a operar a diferenciao entre o vivo e o inerte, tambm ela a nica que

    consegue explicar o surgimento da atividade tcnica a partir da vida mesma:

    o vitalismo talvez o sentimento de uma antecipao ontolgica, portanto, cronologicamente irrecupervel da vida sobre a teoria e a tcnica, sobre a inteligncia e a simulao da vida (FCR, 1995, p.128).

    Transpondo esta ideia para sua reflexo sobre o surgimento da medicina, ele nota

    que enquanto a mquina precisa de algum que a construa, que a regule e a

    repare, o vivente se reproduz, se autorrepara, se autocura e se autorregenera,

    sendo precisamente esta capacidade de reao e de resistncia morte inerente

    a tudo que vive a origem da tcnica mdica.

    Neste captulo, ento, a forma como ele define a vida e o que faz com que

    ela seja a raiz da atividade mdica o que nos propomos apresentar.

    ***

    Quando estudamos o pensamento de Canguilhem em seu conjunto,

    notamos que se ele tece crticas biologia mecanicista no s porque considera

    insuficientes os estudos biolgicos que no levam em conta a distino existente

    entre o movimento vital e o movimento fsico, este ltimo com tendncia inrcia

    (cf. CV, 1985, p.12). tambm porque percebe que historicamente ela se

    constituiu a partir de um projeto poltico-ideolgico de supresso de toda e

    qualquer referncia a valores no campo da cincia, associado disputa de

    autoridade entre os poderes religioso e laico:

    Mas vem-nos imediatamente ao esprito que, desde o princpio do sculo XIX, a definio do objeto especfico da biologia foi purgado de qualquer referncia a conceitos de ordem axiolgica, tais como perfeio ou imperfeio, normal ou anormal, etc... (...) Consequentemente, o problema da normalidade na histria do pensamento biolgico devia colocar-se entre as consideraes no atuais. Queremos fazer uma tentat