agricultura familiar no brasil: caracterÍsticas e estratÉgias da comunidade cruzeiro dos...
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Este texto busca apresentar as principais discussões sobre a agriculturafamiliar no Brasil, dando ênfase às características econômicas e socioculturais, bemcomo às dificuldades enfrentadas pelos produtores da comunidade Cruzeiro dosMartírios no município de Catalão, Estado de Goiás.TRANSCRIPT
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XIX ENCONTRO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRRIA, So Paulo, 2009, pp. 1-28.
AGRICULTURA FAMILIAR NO BRASIL: CARACTERSTICAS E ESTRATGIAS DA COMUNIDADE CRUZEIRO DOS MARTRIOS MUNICPIO DE CATALO (GO)
FAMILIAR AGRICULTURE IN BRAZIL: CHARACTERISTICS AND STRATEGIES OF THE CRUZEIRO DOS MARTRIOS COMMUNITY CITY OF CATALO (GO)
Juniele MARTINS SILVA
Graduanda do Curso de Geografia, Universidade Federal de Gois, Campus CataloNcleo de Estudos e Pesquisas Scio-Ambientais (NEPSA/CNPq)
Bolsista PIBIC/CNPq/[email protected]
Estevane de Paula Pontes MENDES
Profa. Dra. do Curso de Geografia, Universidade Federal de Gois, Campus CataloNcleo de Estudos e Pesquisas Scio-Ambientais (NEPSA/CNPq)
Resumo: Este texto busca apresentar as principais discusses sobre a agricultura familiar no Brasil, dando nfase s caractersticas econmicas e socioculturais, bem
como s dificuldades enfrentadas pelos produtores da comunidade Cruzeiro dos
Martrios no municpio de Catalo, Estado de Gois. Para a execuo deste trabalho foi
realizada uma reviso terico-conceitual da literatura pertinente temtica e, ainda,
levantamento, sistematizao, anlise de informaes de fontes primria e secundria.
A pesquisa de campo foi realizada nos anos de 2007 e 2008, sendo aplicados um total
de 38 roteiros de entrevista. Acredita-se no importante papel desempenhado por esses
produtores tanto para agricultura quanto para sociedade no sentido de amenizar os
problemas sociais e econmicos.
Palavras-chave: Agricultura familiar. Caractersticas socioeconmicas. Modernizao conservadora. Catalo (GO).
Abstract: This text search shows the main discussions about the familiar agriculture in Brazil, giving emphasis to the economics and socio-cultural, as well as the difficulties
faced for the producers of the Cruzeiros dos Martrios community in the city of Catalo,
state of Gois. For the execution of this work we accomplished a theoretical conception
revision of the literature and, also, survey, systematization and informations analyse in
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primary and secondary fonts. The research field was accomplished in the years of 2007
and 2008, been applied a total of 38 itinerary of interview. Believing in the important
paper performed for these producers both for the agriculture and the society in the
meaning of soften the socials and economics problems.
Key-words: Familiar Agriculture. Socioeconomics characteristics. Preserved modernization. Catalo (GO).
1 Introduo
Com a expanso do sistema capitalista na agricultura brasileira a partir,
principalmente, de 1960 e, conseqentemente, com o processo de modernizao, a
situao dos pequenos produtores se agravou, pois esse processo foi seletivo e
excludente. O estado de Gois tambm sofreu modificaes em seu espao agrrio
devido aos vrios incentivos, do Estado, na agricultura.
O aumento das discusses acerca da agricultura familiar, no decorrer da dcada
de 1990, atribuda a uma srie de fatores, entre eles destacam-se os problemas
relacionados grande concentrao fundiria e diversidade de situaes
apresentadas pelas regies brasileiras, ao modelo de organizao sociopoltico e
econmico, reforados por segmentos governamentais comprometidos com os
interesses dos grandes proprietrios, com os interesses internacionais e com o
fortalecimento do movimento dos trabalhadores que lutam pelo direito de reconquistar
a terra.
Assim, as discusses sobre a importncia social, econmica e cultural da
agricultura familiar na sociedade contempornea ganharam novo flego, propiciando
um ambiente favorvel para o debate da importncia dessas unidades produtivas para
a agricultura e para a sociedade. Nesse sentido retomada a necessidade de
redistribuio da propriedade fundiria e da renda, promovendo, tambm, a
necessidade de compreender suas estratgias de reproduo, suas resistncias e suas
potencialidades.
Essas unidades produtivas tm sua origem histrica ligada grande propriedade
rural e desenvolveram-se aliadas a uma estrutura de concentrao de terras e
principalmente de mercados. Diante desse contexto, os pequenos produtores sempre
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Agricultura familiar no Brasil: caractersticas e estratgias da comunidade Cruzeiro dos Martrios municpio de Catalo (GO), pp. 1-18.
estiveram margem das polticas agrrias e agrcolas adotadas, contribuindo
gradativamente para a sua expulso do campo e favorecendo criao de uma
estrutura fundiria concentrada e dependente das polticas globais.
Nesse sentido, prope-se analisar as estratgias de reproduo e
potencialidades da agricultura familiar no Brasil, dando nfase s caractersticas
econmicas e socioculturais, bem como s dificuldades enfrentadas pelos produtores
da comunidade Cruzeiro dos Martrios no municpio de Catalo (GO), decorrentes do
processo de modernizao a partir, principalmente, do perodo de 1980. Assim, o
trabalho emprico procurou compreender as condies histricas, socioeconmicas e
culturais da agricultura familiar da comunidade Cruzeiro dos Martrios, localizada na
parte noroeste do municpio de Catalo (GO), distando aproximadamente 90km da
sede municipal e 20km do Distrito de Santo Antnio do Rio Verde. O acesso rea se
d pela BR-050, no sentido Catalo (GO) Braslia (DF).
A escolha da comunidade rural se deu, principalmente, pelo uso da mo-de-obra
predominantemente familiar na unidade produtiva, o tamanho das propriedades, os
rendimentos e uma multiplicidade de mecanismos e diversidade de competncias,
resultando em estratgias de reproduo. O interesse de compreender as estratgias
econmicas e socioculturais da comunidade Cruzeiro dos Martrios deve-se ao fato de
ter feito parte da mesma, como sujeito atuante e participante da realidade local (morei
de 1985 a 2002 na comunidade, cerca de 17 anos). Constitui minha identidade na
comunidade e ainda possuo um sentimento de pertencimento com o lugar, alm dos
laos de amizade e de parentesco.
2 Material e mtodos
Para a realizao da pesquisa foi feita uma reviso da literatura sobre a
agricultura familiar nacional, regional e local. Os dados de fontes secundrias foram
obtidos no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE - Posto Catalo), na
Secretaria do Planejamento e Desenvolvimento do Estado de Gois (SEPLAN), na
Secretria Municipal de Sade de Catalo e na Agncia Rural Goiana (AGR).
A leitura e interpretao dos textos foram realizadas a partir de uma atitude
filosfica radical, crtica e totalizante. Radical no sentido de buscar a origem do
problema, crtica colocar o objeto do conhecimento em um ponto de crise, e total inserir
o objeto da nossa reflexo no contexto do qual contedo (SPOSITO, 2004).
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A partir da reviso literria foi realizado o trabalho de campo, dando nfase
histria das famlias da regio, s tradies e, principalmente, organizao e s
estratgias de reproduo, destacando elementos como tamanho da propriedade e da
famlia, produo, comercializao, fora de trabalho, tecnologia, assistncia tcnica,
financiamento e organizao dos produtores.
A pesquisa emprica foi realizada no perodo de 2007 e 2008, na comunidade
Cruzeiro dos Martrios municpio de Catalo (GO), que possui 77 sedes/residncias.
Foram aplicados roteiros de entrevistas: a) com um dos moradores mais antigos da
comunidade (Sebastio Martins Pereira, 83 anos), b) com a agente de sade e 37 com
os produtores rurais da comunidade, o que representou 48% do total das
sedes/residncias.
O trabalho de campo tem papel fundamental, pois somente atravs dele que
conhecemos a realidade pesquisada. Para Santos (1999), o trabalho de campo no
deve limitar-se em apenas ouvir as pessoas, quanto ao sentido que elas do as coisas,
ao terminado, nem tampouco ao real como fato realizado e acabado. Portanto o
emprico deve promover contato, ou seja, a anlise voltada para as tendncias de
interpretaes que os pesquisadores promovem do mundo em movimento dinmico
orientado pelas determinaes sociais do seu lugar. De acordo com o autor, o
procedimento implica na compreenso do vivido, o qual deriva dos atos prticos que as
pessoas, a partir de suas organizaes sociais, vo construindo no tempo e no espao.
As informaes obtidas podem ser classificadas em factuais (sexo, idade,
estado civil, srie que cursa, empresa que trabalha, renda, religio, entre outras) e
opinativas (crenas, suposies, valores, entre outras) (LUNA, 2000). Aps ter
realizado a coleta de dados, esses foram elaborados, analisados, interpretados e
representados de forma grfica.
Para realizao de estudos de natureza socioeconmica foram utilizados os
seguintes procedimentos (SEABRA, 1997; LUNA, 2004): a) compilao: levantamento
de referncias (livros, artigos de peridicos, revistas especializadas, documentos,
monografias, leis, sites). Elaborao de fichamentos para criao de um banco de
informaes sobre a temtica da pesquisa; b) correlativo: refere-se correlao entre
dados de mesma natureza (procedimento tcnico-metodolgico) que permite conhecer
a evoluo de um dado conceito, destacando as principais divergncias; c) semntico:
refere-se ao ato de conhecer. Elaborao do referencial terico bsico da pesquisa que
permite a interpretao e a elaborao dos resultados conclusivos. A discusso
terico-metodolgica sobre a realidade permite aprender representar para poder,
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num segundo momento, analisar: momento de descobrir leis; comprovar ou refutar
hipteses; conhecer os mecanismos de funcionamento de um determinado fenmeno;
avaliar o grau de generalidade possvel dos resultados obtidos e d) normativo:
transformao do produto da pesquisa em modelos representados atravs de grficos
e tabelas que possam traduzir de forma simples e visual os produtos obtidos com a
pesquisa.
3 Caracterizao e localizao do municpio de Catalo (GO)
A rea escolhida para a realizao da pesquisa foi o municpio de Catalo,
Estado de Gois. A Microrregio de Catalo integra-se Mesorregio do Sul Goiano
(IBGE, 1990). Est compreendido entre os meridianos de 4717 e 48 12 Long. W Grt
e os paralelos 1728 e 18 Lat. S, abrangendo uma rea de 3.778,6km (IBGE
Censo, 2007), correspondendo a 1,11% do territrio goiano. Em seu contexto
socioespacial, o municpio de Catalo possui trs povoados: Olhos Dgua, Pedra
Branca e Cisterna, e dois distritos: Santo Antnio do Rio Verde e Pires Belo. O
municpio conta com um total de 75.623 habitantes, sendo que 70.212 dos habitantes
residem na zona urbana, o que corresponde a 92,84% da populao total, enquanto
apenas 5.411 habitantes residem na zona rural, corresponde a 7,16%.
A sede do municpio est localizada em um eixo dinmico, devido ampla
estrutura de transportes, com destaque para a rodovia BR-050 (acesso a Braslia e So
Paulo), as rodovias estaduais e a ferrovia Centro-Atlntica (FCA), utilizadas para fazer
escoamento de minrios e fertilizantes para a fronteira agrcola (Bahia, Mato Grosso e
Gois).
A sede do municpio conta com um aeroporto para avies de pequeno e mdio
porte. Possui um Distrito Mnero-Industrial de Catalo (DIMIC), com empresas
mineradoras de beneficiamento e processamento de nibio (Fosfertil e Copebrs S.A)
e fosfato (Minerao Catalo - grupo Anglo American). Com duas montadoras, John
Deere (Cameco do Brasil), montadora de colheitadeiras de algodo e cana, e a
Mitsubishi Motores Corporation, montadora de veculos automotores. Para Venncio
(2008, p. 32), essas empresas contriburam para a dinamizao das atividades scio-
econmicas e aumento do arrecadamento municipal.
H duas instituies de ensino superior, o Campus Catalo da Universidade
Federal de Gois, que oferece 15 cursos: Geografia, Letras, Educao Fsica, Histria,
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Qumica, Fsica, Matemtica, Cincias da computao, Pedagogia, Administrao,
Psicologia, Cincias Biolgicas, Engenharia Civil, Engenharia de Minas e Engenharia
de Produo e o Centro de Ensino Superior de Catalo (CESUC), que oferece os
cursos de Direito, Administrao, Fisioterapia, Pedagogia e Cincias Contbeis. O
municpio conta tambm com duas escolas profissionalizantes: o Servio Nacional de
Aprendizagem Industrial (SENAI) e o Servio Nacional de Aprendizagem Comercial
(SENAC).
A partir da dcada de 1980 foram modificadas as formas organizacionais e
produtivas na agropecuria catalana, resultantes da expanso da soja nas reas de
chapada (relevo plano) deste municpio. Essa transformao no espao agrrio de
Catalo (GO) foi um dos fatores que contribuiu para a diminuio da populao rural do
municpio e, em contrapartida, para a expanso da populao urbana. As famlias vm
sendo expulsas gradativamente do meio rural em virtude da baixa renda do trabalhador
rural. A maioria dos jovens migram para a cidade em busca de trabalho e estudo. A
tabela 1 procura mostrar a mobilidade socioespacial nos perodos entre 1970 e 2007,
decorrentes desse processo.
Tabela 1 - Municpio de Catalo: Evoluo da populao urbana e rural 1960, 1970, 1980, 1991, 1996, 2000 e 2007.
Anos PopulaoEvoluo da populao urbana,
em % PopulaoEvoluo da populao rural,
em % urbana Perodo Evoluo rural Perodo Evoluo
1960 11.634 - - 14.464 - -1970 13.355 1960 a 1970 14,8 13.983 1960 a 1970 -9,51980 30.695 1970 a 1980 129,8 8.473 1970 a 1980 -65,01991 47.123 1980 a 1991 53,5 7.363 1980 a 1991 -15,01996 51.925 1991 a 1996 10,2 6.582 1991 a 1996 -11,12000 57.606 1996 a 2000 10,9 6.741 1996 a 2000 1,0
2007 70.212 2000 a 2007 21,9 5.411 2000 a 2007 -24,6Fonte: Secretria do Planejamento e Desenvolvimento (SEPLAN-GO) - FIBGE - 1960, 1970, 1980, 1991, 1996, 2000 e 2007. Org. Martins Silva (2008).
Quanto estrutura fundiria, o municpio de Catalo (GO) apresentou
considerveis modificaes em um curto espao de tempo. Segundo dados dos
Censos Agropecurios (1980, 1990 e 1996), houve uma diminuio do nmero de
pequenas propriedades rurais at 100ha (21%) e entre 100ha e 1000ha (13%) e um
aumento de cerca de 12% no nmero de estabelecimentos com rea superior a
1000ha, que j correspondiam pela maior parte das reas rurais at o final da dcada
de 1970 (MENDES, 2005).
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4 A agricultura familiar e a modernizao tecnolgica: as transformaes no espao agrrio goiano
A agricultura familiar caracteriza-se pela relao entre terra, trabalho e famlia, e
apresenta uma srie de especificidades e diferenciao regional/local que assegura
sua insero e reproduo na sociedade contempornea. A partir da dcada de 1970,
com a modernizao da agricultura, esse segmento passou a enfrentar problemas
econmicos, sociais e territoriais.
A agricultura familiar apresenta uma relao ntima entre terra, trabalho e
famlia, onde a gerncia, o trabalho so realizados pela famlia e os meios de produo
lhes pertencem. Essas unidades produtivas apresentam diversidades e diferenciaes
econmicas e socioculturais que favorecem suas adaptaes na sociedade moderna.
A agricultura familiar caracteriza-se pelo controle da famlia sobre os meios de
produo e ao mesmo tempo a principal responsvel pela efetivao do trabalho.
Nessas unidades produtivas o trabalho e a propriedade esto ligados famlia. A esse
respeito Lamarche (1993), descreve que a explorao familiar corresponde
[...] a uma unidade de produo agrcola onde propriedade e trabalho esto intimamente ligados famlia. A interdependncia desses trs fatores no funcionamento da explorao engendra necessariamente noes mais abstratas e complexas, tais como a transmisso do patrimnio e a reproduo da explorao. (LAMARCHE, 1993, p. 15, grifos do autor).
Nesse contexto, a propriedade familiar considerada como um imvel rural, que
diretamente e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua famlia, em que absorve
toda a sua fora de trabalho, garantindo a subsistncia e o progresso social e
econmico, com rea mxima fixada para cada regio, e que, quando necessrio
conta com ajuda de terceiros (BLUM, 2001).
De acordo, com a Organizao das Naes Unidas para a Agricultura (FAO) e o
Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA) a agricultura familiar se
define com base em trs caractersticas: a gerncia da propriedade rural feita pela
famlia; os fatores de produo pertencem famlia (exceo, s vezes, terra) e so
passveis de sucesso em caso de falecimento ou aposentadoria dos gerentes.
Para Wanderley (2001), a agricultura familiar um conceito genrico que
incorpora uma diversidade de situaes especficas e particulares. Para a autora, a
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agricultura familiar que se reproduz nas sociedades modernas deve adaptar-se a um
contexto socioeconmico prprio dessas sociedades. Essas adaptaes fazem que o
agricultor passe a ser chamado de agricultor familiar moderno, porm no produzem
uma ruptura total e definitiva com as formas anteriores, pois a tradio que ele possui
que permite sua adaptao s novas exigncias da sociedade.
Corroborando com a autora Lamarche (1993), em estudo sobre a agricultura
familiar que estabelece uma comparao internacional, entre cinco pases: Frana,
Canad, Brasil, Tunsia e Polnia, ressalta que a explorao familiar est presente em
toda parte do mundo, apesar das numerosas tormentas econmicas e polticas que ela
teve de enfrentar, sem dvida graas sua excepcional capacidade de adaptao.
Para Lamarche (1993):
[...] As exploraes que se mantiveram em seus lugares so as que souberam ou puderam adaptar-se s exigncias impostas por situaes novas e diversas s instabilidades climticas, coletivizao das terras ou mutao sociocultural determinada pela economia de mercado [...]. (LAMARCHE, 1993, p. 21).
Quanto aos produtores que se encontram em dificuldades atualmente, deve-se
ao fato destes no serem capazes de pensar de outra maneira seu modo de produzir e
de viver, geralmente se encontram desprovidos de praticamente todo seu patrimnio
sociocultural, seja porque regeneraram a maior parte do que os constituam, seja
porque os pais, por diversos motivos, no julgaram importante transmitir-lhes tais
valores. Para Lamarche (1993, p. 21) [...] Ao perder esse patrimnio, eles perderam
tambm um capital de conhecimentos atravs dos quais poderiam encontrar solues
alternativas [...].
No entanto, essas unidades produtivas rurais, baseadas no trabalho familiar,
enfrentam graves problemas por estarem subordinadas a uma estrutura concentrada
da propriedade da terra e aos mercados no Brasil. Mendes (2005), em seu estudo
sobre algumas comunidades rurais do municpio de Catalo (GO), com o intuito de
conhecer as possibilidades de reproduo dos pequenos produtores rurais frente
nova conjuntura imposta pelo sistema econmico capitalista, enfatiza o agravamento
das condies de vida das famlias rurais frente s transformaes dos processos
produtivos, a partir dos anos de 1960, como resultado da expanso do capitalismo no
campo.
Com a implantao do sistema econmico capitalista, estabelecem-se novas
formas de apropriao dos meios de produo e do trabalho. A expanso do
capitalismo impe condies de desigualdade, uma vez que a tendncia da agricultura
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capitalista o estabelecimento de uma aliana entre a cincia e os negcios, em que a
agricultura passa a necessitar constantemente de capital.
Desse modo, a modernizao da agricultura brasileira, propiciada pela
implantao do sistema econmico capitalista, modificou as relaes dos pequenos
produtores baseadas essencialmente na famlia, na terra e no trabalho, agravando
suas condies de insero no mercado, pois com a expanso do setor mercantil de
alimentos no seria vivel investir em pequenas propriedades. Assim os incentivos em
crditos e pesquisas foram direcionados, em grande parte, para a agricultura
empresarial moderna.
Nessa perspectiva, as grandes exploraes, capazes de absorver os recursos tecnolgicos e demais insumos agrcolas e, fundamentadas no trabalho assalariado, seriam o modelo de propriedade adequada para atender ao crescimento da atividade industrial e da populao urbana, conjugando uma oferta regular e em larga escala de matrias-primas e alimentos. (MENDES, 2005, p. 36).
Com isso, a modernizao favoreceu s grandes propriedades, que so capazes
de produzir matria-prima e produtos para o mercado interno e externo. Sobre esse
assunto, Moreira (1999) afirma que, na agricultura contempornea, essa modernizao
parcial, estimula o uso de tcnicas mais intensivas em capital nos produtos de
exportao e na matria-prima industrial.
Com a expanso da modernizao em todo territrio nacional, o Cerrado goiano
passa a ser alvo de investimentos, a partir da dcada de 1980, sendo incorporado pelo
processo de modernizao nacional em curso. As polticas e os programas
governamentais de ao direta sobre a regio foram os Programas de
Desenvolvimento dos Cerrados (POLOCENTRO) e os Programas de Cooperao
Nipo-brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER). Nesse sentido, o
financiamento rural foi um poderoso instrumento de modernizao da agricultura, ao
possibilitar a incorporao de maquinaria e insumos ao processo produtivo. Para
Estevam (2004):
o crdito rural foi um dos instrumentos bsicos da modernizao agrcola e fortaleceu, de maneira acelerada, o processo de capitalizao no campo. Para concesso de financiamento exigia-se certo padro tecnolgico, elevada densidade de capital, monetarizao, alm de farta aquisio de fertilizantes e outros insumos. A diversidade de linhas de crditos, bem como as taxas de juros subsidiadas, estimularam grande nmero de interessados a se instalar nos Cerrados. (ESTEVAM, 2004, p. 738).
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Esse sistema de crdito contribuiu para impulsionar a modernizao da
agricultura e, conseqentemente, o aumento das desigualdades no campo, dificultando
a vida dos pequenos produtores. Esse processo exigiu aparatos tecnolgicos,
densidade de capital e aquisio de insumos. Diante dessa realidade os pequenos
produtores ficaram impossibilitados de usufrurem de financiamentos que pudessem
contribuir para a melhoria de suas condies de sobrevivncia e permanncia nas
reas rurais. Mendes (2005) diz que se soma a essas questes os aspectos culturais, a
formao educacional, as questes climticas, e manifestaes de descontrole
biolgicos, tais como infestaes de pragas e doenas que tornam a agricultura, para
os produtores pouco capitalizados, um negcio de alto risco.
Diante desse contexto, os agricultores familiares encontram-se sujeitos
modernizao da agricultura, passaram a ter necessidade da garantia de um territrio
familiar. Como afirma Wanderley (2001), a agricultura familiar frente a essas
transformaes passa a ter necessidade da garantia da construo de um territrio
familiar, que seja seu lugar de vida e de trabalho, assegurando para as geraes
futuras a memria da famlia.
Fernandes (2006), a partir de suas reflexes sobre os territrios camponeses,
afirma que o campo pode ser pensado como um territrio ou como um setor da
economia. Mas para esse autor, o significado territorial mais amplo que o significado
setorial que entende o campo simplesmente como espao de produo de
mercadorias.
[...] Pensar o campo como territrio significa compreend-lo como espao de vida, ou como um tipo de espao geogrfico onde se realizam todas as dimenses da existncia humana. O conceito de campo como espao de vida multidimensional e nos possibilita leituras de polticas mais amplas do que o conceito de campo ou de rural somente como espao de produo de mercadorias. A economia no uma totalidade, ela uma dimenso do territrio. (FERNANDES, 2006, p. 28-29).
nas dimenses territoriais que acontecem todas as relaes sociais como
educao, cultura, produo, infra-estrutura, organizao poltica, mercado etc., que
ocorrem sempre de forma interativa e completiva. Neste contexto, o territrio dos
produtores rurais no deve ser percebido apenas como um local onde a sociedade
habita, e sim compreendido como territrio cultural, com uma parcela de identidade,
fonte de uma relao afetiva com o espao. Haesbaert (2006), ao trabalhar as
concepes de territrio para compreender o processo de desterritorializao e
reterritorializao, ressalta que alm do territrio ser um espao poltico e econmico,
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deve ser valorizado em sua dimenso cultural, identitria, vinculado diferenciao e
diversidade cultural.
Almeida (2008), em estudo que discute as paisagens culturais e as identidades
territoriais, ou seja, a etnoterritorialidade do sertanejo brasileiro, tendo como
referncias os biomas Caatinga e Cerrado, afirma que o territrio responde em primeira
instncia pelas necessidades econmicas, sociais e politicas da sociedade. Mas para a
autora o territrio , tambm, um objeto de operaes simblicas, sendo nele que os
sujeitos projetam suas concepes de mundo. Assim.
O territrio , antes de tudo, uma convivialidade, uma espcie de relao social, poltica e simblica que liga o homem a sua terra e, simultaneamente, estabelece sua identidade cultural. Nestas condies, compreende-se de que maneira o significado poltico do territrio traduz um modo de recorte e de controle do espao, garantindo sua especificidade e se serve como instrumento ou argumento para a permanncia e a reproduo dos grupos humanos que a ocupam [...]. (ALMEIDA, 2008, p. 58-59).
O territrio deve ser considerado, como um espao constitudo por cultura,
smbolos/signos, histria, religio, e com fortes laos de identidade e de pertencimento
que se manifestam na convivncia. Sobre o assunto Almeida (2008) ressalta que o
territrio para os indivduos que tm uma identidade territorial, o resultado de
apropriao simblico do espao, sendo carregado de significados e relaes
simblicas.
Para Castells (2006, p. 22) identidade entendida como [...] a fonte de
significados e experincia de um povo [...]. A identidade o processo de construo
de significado com base num atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos inter-
relacionados, que prevalece sobre outras fontes de significado. As identidades
constituem fontes de significado para os prprios atores, por eles originadas, e
construdas por meio de um processo de individuao.
A cultura por ser uma dimenso territorial, possui grande importncia para os
produtores rurais. A cultura pode ser considerada como sendo o conjunto de saberes,
tcnicas, crenas e valores, fazendo parte do cotidiano dos produtores rurais no
territrio. Sobre o assunto Wagner e Mikesell (2003, p. 28) em estudo sobre os
principais temas da geografia cultural, afirma que a noo de cultura no considera
indivduos isolados, ou caractersticas pessoais que possuem, mas [...] comunidades
de pessoas ocupando um espao determinado, amplo e geralmente contnuo, alm das
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numerosas caractersticas de crena e comportamento comuns aos membros de tais
comunidades.
Pode-se afirmar que cultura para os agricultores familiares a capacidade de
comunicarem entre si por meio de smbolos. Para Wagner e Mikesell (2003) quando as
pessoas conseguem agir e pensar de modo semelhante, porque vivem, trabalham e
conversam juntas, aprendem com os mesmos companheiros e mestres, tagarelam
sobre os mesmos acontecimentos, ainda, observam ao seu redor, atribuem o mesmo
significado aos objetos feitos pelo homem, participam dos mesmos rituais e recordam o
mesmo passado. Nesse sentido, constituem uma identidade cultural, baseados em
saberes, crenas, comportamentos e valores.
Diante do exposto, verifica-se que a agricultura familiar, frente s
transformaes promovidas no espao agrrio, pela modernizao da agricultura, teve
suas condies de insero no mercado e de reproduo agravadas. O modelo de
modernizao implantado no Brasil foi um modelo conservador e excludente,
favorecendo a agricultura empresarial moderna. Nesse contexto, emerge um
sentimento de reao para a preservao de um territrio, em que os agricultores
familiares se reproduzam e consigam assegurar e manter sua cultura e seu modo de
vida.
5 Caractersticas socioculturais e socioeconmicas da comunidade Cruzeiro dos Martrios
A agricultura familiar no Brasil apresenta diversidades e diferenciaes
regionais, o que torna importante os estudos e as anlises de reas especficas, para a
compreenso da organizao, reproduo e dificuldade desse segmento. Nesse
sentido, foi escolhida a comunidade Cruzeiro dos Martrios, municpio de Catalo (GO),
com o intuito de especificar essas diferenciaes e especificidades locais dentro de
quadro terico mais amplo. Essa comunidade possui um patrimnio cultural
caracterizado pela religiosidade, fortes laos de parentesco, amizade e vizinhana.
O Sr. S. M. Pereira (informao verbal, Catalo (GO), mar., 2007) no soube
dizer com exatido quando surgiu a comunidade, o que faz acreditar que surgiu antes
de 1900. Mesmo perodo em que ocorreu o aparecimento de outras comunidades no
municpio de Catalo (GO), coincidindo-se com a chegada das primeiras famlias
pioneiras no fim do sculo XIX, cuja migrao foi favorecida pela construo da rede
ferroviria.
12
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Agricultura familiar no Brasil: caractersticas e estratgias da comunidade Cruzeiro dos Martrios municpio de Catalo (GO), pp. 1-18.
A origem do nome do lugar, inicialmente Martrios, foi devido ao Ribeiro e o
acrscimo Cruzeiro, deve-se aos Cruzeiros que foram erguidos prximos ao centro
comunitrio e ao cemitrio da comunidade, expressando a f e devoo das famlias
com predomnio da religio catlica. Para Andrade (2008, p. 168) a manifestao
desses aspectos cria sentimentos de pertencimento, fundamentados pelos valores
morais ligados religiosidade catlica, construdos ao longo do processo de ocupao
do espao. O autor, em seu estudo sobre as prticas socioculturais e religiosas, na
comunidade Tenda do Moreno, municpio de Uberlndia (MG), afirma que os cruzeiros
podem ser entendidos como smbolos criados a partir das prticas religiosas.
Naquela poca o trabalho na propriedade era dividido da seguinte forma: os pais
cuidavam do gado, do plantio e do cultivo, as mes eram responsveis pelas atividades
domsticas e outros servios, como fabricao da farinha e do polvilho, moagem da
cana e manuteno da hortalia. Os filhos comeavam cedo no trabalho, desde os oito
anos acompanhavam os pais, j as filhas auxiliavam as mes, ajudando na busca de
gua nos regos e crregos e de lenha. Sobre o trabalho infantil, Andrade (2008) e
Mendes (2008) afirmam que a dedicao das crianas servia como ferramenta na
construo de costumes ligados aos significados do trabalho no modo de vida rural, ou
seja, como pressuposto da formao cultural de pessoas honestas, dignas e de boa
ndole.
Havia tambm os agregados que moravam nas propriedades, trabalhavam por
conta prpria, cuidavam do gado e cultivavam gneros alimentcios. A renda da terra
era paga com aproximadamente 20% a 30% da produo para o proprietrio. Sua
jornada de trabalho era elevada, iniciavam as 6h e encerravam as 17h. Para Andrade
(2008) os agregados, alm das relaes que mantinham com os proprietrios das
terras em que moravam, podiam conseguir rendimentos monetrios em outras
propriedades, quando suas cotas de trabalho, institudas pelos fazendeiros com os
quais mantinham vnculos sociais de dependncia e subordinao fossem alcanadas.
Existia tambm o costume da realizao dos mutires que eram geralmente aos
sbados. Reuniam cerca de 20 a 30 pessoas da regio para a realizao de alguns
servios, como bater palha, capinar roas e plantios. Havia tambm o mutiro de
mulheres que cuidavam, principalmente, do algodo. Candido (1998, p. 69) afirma que
o mutiro no propriamente um socorro, um ato de salvao ou um movimento
piedoso; antes um gesto de amizade, um motivo para folgana, uma forma sedutora
de cooperao para executar rapidamente um trabalho agrcola. Candido (1998)
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XIX ENGA, So Paulo, 2009 SILVA, J. M. e MENDES, E. E.
realizou um estudo sobre os meios de vida de um agrupamento de caipiras no
municpio de Bofete (SP) entre os anos de 1948 e 1954, procurando compreender os
aspectos da cultura, a partir da realidade econmica dessa populao.
A traio era outra prtica de trabalho solidrio muito utilizada na comunidade.
Quando percebiam que algum morador precisava de ajuda, os parentes, amigos e
vizinhos faziam a surpresa do mutiro e no final realizavam a tradicional festa. Para
Candido (1998, p. 69) traio uma terminologia regional utilizada para significar o
carter de surpresa da demo/mutiro.
Na comunidade Cruzeiro dos Martrios, dentre os aspectos culturais mais
significativos, destaca-se a religiosidade. A maioria dos moradores eram catlicos, o
que explica a organizao das tradicionais festas religiosas no decorrer do ano. As
famlias organizavam as festas em homenagem aos Santos Reis, So Sebastio,
Santo Antnio, So Joo e Nossa Senhora da Abadia. Essas festividades permitiam
aos moradores a oportunidade de reunir e rezar o tero para os santos e se divertirem
juntamente com parentes e amigos da regio. As festas ocorriam, geralmente, de
janeiro a setembro. Na regio, o santo mais festejado era So Sebastio, por ser o
santo padroeiro da comunidade.
Nota-se que hoje as festas vm acontecendo com menos expresso, tendo
como um dos fatores responsveis a expanso de igrejas evanglicas de vrias
denominaes na comunidade. A partir da dcada de 1990, verifica-se que cerca de
37% dos moradores da regio j so evanglicos (Grfico 1).
63%
37%
Evanglicos Catlicos
Grfico 1 - Comunidade Cruzeiro dos Martrios, Catalo (GO): produtores evanglicos.
Fonte: Pesquisa de campo, 2007 e 2008. Martins Silva (2008).
Atualmente na comunidade acontece a festa de Santos Reis (Figura 1) e, desde
2007, a festa dos produtores rurais, que acontece no ms de junho aps a colheita,
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Agricultura familiar no Brasil: caractersticas e estratgias da comunidade Cruzeiro dos Martrios municpio de Catalo (GO), pp. 1-18.
essa festa tem por objetivo arrecadar dinheiro, sua caracterstica marcante so as
cavalgadas. Venncio (2008) em seu estudo sobre a importncia poltica, econmica e
cultural da agricultura familiar na comunidade rural So Domingos, municpio de
Catalo (GO), a partir da leitura do territrio, ressalta que apesar das transformaes
ocorridas nas festas, estas ainda representam um elemento cultural de grande
importncia nos laos comunitrios, pois na sua realizao, as manifestaes como a
religiosidade, o lazer e a unio dos moradores so mantidas vivas.
Figura 1 - Comunidade Cruzeiro dos Martrios, Catalo (GO): Festa em louvor a Santos Reis.Autora: Martins Silva (2008).
Nota-se que nas comunidades rurais do municpio de Catalo (GO) muito
comum a devoo aos santos, explicando o fato das festas e os teros em suas
homenagens. Para Tedesco (1999), os santos fazem parte do cotidiano no s
religioso, esto ligado tambm morte, s plantaes, s curas, aos castigos, s
benesses, vida afetiva e social, soluo de dificuldades. Assim, marcam presena
na vida dos produtores, bem como na coeso social e na normatividade familiar.
Prticas como o mutiro e a traio j foram extintas da comunidade, o que
ocasionou mudanas no modo de vida, na cultura e nas relaes de trabalho do lugar.
Neste contexto, acredita que uma das causas mais significativas para que esse fato
tenha ocorrido seja a expanso da agricultura moderna na regio. Observa-se que o
processo de construo das identidades temporal, espacial e mutvel na
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XIX ENGA, So Paulo, 2009 SILVA, J. M. e MENDES, E. E.
comunidade, pois como afirma Andrade (2008) as identidades e pertencimentos vm
sendo (re) construdos ao longo do tempo histrico, pois os modos de vida presentes
no lugar se inserem num contexto dinmico de transformaes que interferem nas
prticas socioculturais, religiosas e econmicas.
Na comunidade Cruzeiro dos Martrios, municpio de Catalo (GO) so visveis
as relaes de parentesco, vizinhana, amizade e compadrio. Para Tedesco (1999), a
relao parentesco possui mais um carter simblico de sangue, essa idia ganha
significados simblicos e prticos, pois o critrio de bom ou ruim algo identificado
com o sangue, tendo uma transmisso de identidade, e assim as identidades morais e
sociais tendem a ser ligadas ao sangue. No entanto, quanto mais forte e viva essa
relao, mais intensos sero os sentimentos de proximidade na atividade comunitria.
Os vizinhos tm um carter de vida em comum, e se distinguem dos parentes,
pelo fato de possurem solidariedade em contrapartida da obrigao. Os principais
gestos de solidariedade so: a auto-ajuda, a prestao de servios, a troca de dias, a
troca de bens/mercadorias, o emprstimo de produtos, entre outros. Mas para Tedesco
(1999) essa solidariedade no algo gratuito e natural, a solidariedade deve ser
recproca. Sobre o assunto Mendes (2005) ressalta que as famlias quando
estabelecem uma organizao de vizinhana, cria um sentimento de localidade e
identificao.
O compadrio muito comum na comunidade rural Cruzeiro dos Martrios,
municpio de Catalo (GO), sendo que os padrinhos de batismo so os parentes e os
vizinhos. Para Tedesco (1999), a relao de compadrio entre vizinhos uma forma de
aperfeioar a solidariedade e a obrigao. J a amizade dos produtores rurais da
comunidade caracteriza-se pelas semelhanas, a partir das condies de trabalho ou
modo de pensar, ou seja, aqueles que compartilham uma mesma condio, que
participam da mesma f, reconhecem-se entre si e tendem a ficar amigos, pois esto
ligados pelos mesmos laos e trabalhando em uma mesma obra.
A comunidade Cruzeiro dos Martrios possui uma diversidade quanto a culinria.
Essa diversidade da culinria da comunidade Cruzeiro dos Martrios um reflexo do
estado de Gois. Para Barbosa (2008) em estudo que faz uma anlise sobre a
gastronomia regional do Estado de Gois, com o intuito de mostra a diversidade da
mesma, afirma que [...] a cultura gastronmica goiana se manifesta por meio da
diversidade de cardpios que compem seus pratos tpicos, dos festivais tendo como
foco a degustao de comida local, demostrando a importncia cultural que o Estado
adquiriu com o ato de comer [...]. (BARBOSA, 2008, p. 217).
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Agricultura familiar no Brasil: caractersticas e estratgias da comunidade Cruzeiro dos Martrios municpio de Catalo (GO), pp. 1-18.
A mesa bsica dos produtores da comunidade so: o arroz, o feijo, as verduras
produzidas nas hortas das propriedades, muita carne e geralmente farinha de
mandioca. No perodo de outubro a janeiro o pequi, fruto tpico do Cerrado faz parte
das refeies dos produtores. Em algumas pocas do ano so preparados vrios
pratos a base de milho verde, o angu que degustado com frango e quiabo, o mingau
(curau), e as pamonhas, para a preparao das pamonhas so convocadas outras
pessoas (vizinhos, parentes e amigos), sendo uma oportunidade de encontros e
diverso. Na comunidade muito comum os doces de leite, mamo, figo, laranja,
limo, cidra, manga entre outros. Os bolos na grande maioria so base de queijos e
polvilho como o po de queijo e o biscoito de queijo.
Nota-se que na comunidade existe um exagero em relao a diversidade e
quantidade de alimentos nas refeies. Para Tedesco (1999) isso se explica, porque a
presena de comida farta na mesa significa uma afirmao social, uma apresentao
de trabalho. O comer bem no sinnimo de no estar com fome; se abastecer o
suficiente; mostrar que h alimento. Se h alimento, porque h trabalho [...].
(TEDESCO, 1999, p. 254, grifo do autor).
Uma das mudanas mais significativas na comunidade Cruzeiro dos Martrios
deu-se sobre a renda da terra atravs da expressiva prtica do arrendamento.
Aproximadamente 29,7% dos produtores arrendam parte de suas terras para os
produtores que vieram, principalmente, do Sudeste (So Paulo), no perodo de 1980.
Os produtos mais cultivados por esses produtores so a soja (cerca de 81,8%), o milho
e o arroz.
A mdia de idade dos produtores rurais do municpio de Catalo (GO)
considerada alta, sendo de 50 anos para homens e 48 anos mulheres. Nas
comunidades Morro Agudo/Cisterna e Custdia a faixa etria dos homens de 51 e
das mulheres de 49 anos, na comunidade Ribeiro os homens possuem a mdia de
46 anos e as mulheres 43 anos, a comunidade Mata Preta a faixa etria dos homens
de 56 anos e 53 para as mulheres, j a comunidade Cruzeiro dos Martrios a faixa
etria de 49 anos para homens e 45 anos para as mulheres (Tabela 2). A
composio mdia das famlias nessas comunidades de 3,3 pessoas por
famlia/propriedade, o que demonstra um fator limitante no que diz respeito
disponibilidade de mo-de-obra na unidade produtiva, sendo um dos motivos pelos
quais os produtores recorrem ao trabalho temporrio em perodos, principalmente, de
plantio e colheita.
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XIX ENGA, So Paulo, 2009 SILVA, J. M. e MENDES, E. E.
Tabela 2 - Comunidades rurais Morro Agudo/Cisterna, Custdia, Ribeiro, Mata Preta e Cruzeiro dos Martrios em Catalo (GO): idade dos produtores rurais e composio mdia das famlias na comunidade pesquisadas 2007.
Comunidades Idade pai Idade me N.filhos Filhos < 12 anos Filhos anosM. A./CisternaCustdiaRibeiroMata PretaCruzeiro dos Martrios
5151465646
4949435345
1,41,61,41,11,8
0,50,40,40,20,6
0,91,20,80,91,2
Mdia 50 48 1,5 0,5 1,0
Fonte: Secretaria Municipal de Sade de Catalo. Org. Lambert (2007).
Na comunidade Cruzeiro dos Martrios nota-se o envelhecimento dos produtores
rurais, a faixa etria dos chefes de famlia encontra-se entre 31 a 60 anos e para as
mulheres a faixa etria entre 21 e 60 anos. Esse fato observado pela mdia de
idade, sendo a mdia para os homens de 49 e as mulheres com uma mdia de 45
anos. O grfico 2 mostra a distribuio da idade dos homens e mulheres da
comunidade.
22,85 22,85
28,12
6,25
21,87
25
6,25
12,5
25,71
17,14
5,71 5,71
0
5
10
15
20
25
30
21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 a 60 61 a 64 Acima de 65
Hom ens Mulheres
Grfico 2 - Comunidade Cruzeiro dos Martrios, Catalo (GO): idade mdia dos produtores em %.Fonte: Pesquisa de campo, 2007 e 2008. Org.: Martins Silva. (2008)
O grau de escolaridade na comunidade Cruzeiro dos Martrios considerado
baixo. Na comunidade no havia escolas da rede pblica de ensino no campo, os
proprietrios com melhores condies financeiras contratavam professores particulares
da cidade que passavam a morar na propriedade temporariamente at que os filhos
fossem alfabetizados. Segundo o Sr. S. M. Pereira (informao verbal, Catalo (GO),
mar., 2007) somente a partir da dcada de 1930 que foi criada a escola primria
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Agricultura familiar no Brasil: caractersticas e estratgias da comunidade Cruzeiro dos Martrios municpio de Catalo (GO), pp. 1-18.
multisseriada (da alfabetizao 4 srie do Ensino Fundamental antigo primrio),
explicando o elevado percentual de produtores com apenas o Ensino Primrio. Na
dcada de 1990 foi estendido tanto para a comunidade Cruzeiro dos Martrios para a
Escola Municipal Santa Ins o ensino correspondente Segunda Fase do Ensino
Fundamental (5 a 8 srie). O Ensino Mdio feito no Colgio Estadual Gilberto
Arruda Falco, no distrito de Santo Antnio do Rio Verde, localizado a 20km da
comunidade, mas apenas 6% das mulheres fizeram o ensino mdio.
12,5
0 0
1114
63
62,5
25
66
0
10
20
30
40
50
60
70
Analfabetos Pr - 4 srie 5 - 8 srie Ens ino Mdio Ens ino Superior
Hom ens Mulheres
Grfico 3 - Comunidade Cruzeiro dos Martrios, Catalo (GO): escolaridade dos produtores em %.Fonte: Pesquisa de campo, 2007 e 2008. Org.: Martins Silva (2008)
Quanto as condies de transporte, de energia eltrica e de
saneamento da comunidade, 30% dos produtores possuem automvel, 94% das
propriedades j possuem energia eltrica, 91% tem gua encanada, os banheiros nas
residncias representam 89%. Entre os eletrodomsticos com maior destaque aparece
a geladeira com 94%, a televiso com um percentual de 89%, em seguida esto a
mquina de lavar com 45%, o forno eltrico 35%, a batedeira e o freezer com 27%. O
telefone outro fator importante para as pessoas, tendo grande contribuio na
comunicao com outras localidades. Atualmente h um telefone pblico na
comunidade e cerca de 13% dos moradores j possuem em suas residncias (Grfico
4).
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XIX ENGA, So Paulo, 2009 SILVA, J. M. e MENDES, E. E.
13
272735
45
89948991
30
94
0102030405060708090
100
Autm
ovel
Energ
ia el
trica
gua
enca
nada
Banh
eiros
Gelad
eira
Telev
iso
Mqu
ina de
lava
r
Forno
eltr
ico
Bated
eira
Refrig
erado
r
Telef
one
Grfico 4 - Comunidade rural Cruzeiro dos Martrios, Catalo (GO): condies de transporte, de energia eltrica e de saneamento dos produtores em %.
Fonte: Pesquisa de campo, 2007 e 2008. Org.: Martins Silva (2008).
O trabalho predominante nas propriedades da comunidade Cruzeiro dos
Martrios o trabalho familiar, no qual cada membro da famlia cumpre com seus
deveres. Blum (2001), em seu estudo sobre as diferentes classificaes de propriedade
rural, enfatiza os principais problemas enfrentados por essa agricultura. Para esse
autor, o agricultor familiar
[...] aquele que tem na agricultura sua principal fonte de renda (+80%) e cuja fora de trabalho utilizada no estabelecimento venha fundamentalmente de membros da famlia. permitido o emprego de terceiros temporariamente, quando a atividade agrcola assim necessitar. Em caso de contratao de fora de trabalho permanente externo a famlia, a mo-de-obra familiar deve ser igual ou superior a 75% do total utilizado no estabelecimento. (BLUM, 2001, p. 62).
A diversidade da produo de gneros alimentcios outra caracterstica
marcante na comunidade Cruzeiro dos Martrios, para Mendes (2005) essa prtica
uma forma de assegurar a reproduo familiar. Os produtos mais comuns para a
comercializao so o leite e o queijo.
Dentre os produtores pesquisados na comunidade Cruzeiro dos Martrios, 75,6%
dedicam-se pecuria extensiva e o leite ordenhado manualmente. Apenas um dos
produtores possui ordenha mecnica. Para Caume (1997), a predominncia da
produo leiteira entre os produtores familiares uma estratgia produtiva, devido a
um conjunto de fatores tanto estruturais quanto conjunturais, como dificuldade de
ingresso competitivo no mercado de lavoura tecnificada de milho e soja; disponibilidade
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Agricultura familiar no Brasil: caractersticas e estratgias da comunidade Cruzeiro dos Martrios municpio de Catalo (GO), pp. 1-18.
de terras de m qualidade e expanso de agroindstrias processadoras de leite na
regio.
A pesquisa emprica considerou que 78% dos produtores so proprietrios das
terras em que produzem, o acesso propriedade d-se por meio de herana conciliada
com a compra de outra parcela (31%), um percentual maior, de 38%, possui
propriedade adquirida por compra. J as propriedades adquiridas por concesso de
uso verbal dos pais representam 31% (Grfico 5).
31%
38%
31%
Herana e compra Compra Concesso de uso
Grfico 5 - Comunidade rural Cruzeiro dos Martrios, Catalo (GO): formas de acesso terra.
Fonte: Pesquisa de campo, 2007 e 2008. Org. Martins Silva (2008).
A mdia de terras na comunidade Cruzeiro dos Martrios, Catalo (GO)
de 81,81 hectares. Em Catalo o mdulo fiscal do INCRA de 40 h, equivalente a
120 hectares. A estrutura fundiria da comunidade est organizada da seguinte forma:
oito (22%) dos proprietrios possuem menos de 10 hectares, dois (6%) possuem entre
11 e 20 hectares, um (3%) possui propriedade entre 21 e 30 hectares, quatro
produtores, que representa 10% da amostra, possuem de 31 a 40 hectares, cinco (13%
dos produtores) tm de 41 a 50 hectares, um (3%) possui propriedade entre 51 e 60
hectares, um (3%) possui tambm propriedade entre 61 e 70, 5% (dois produtores)
possuem propriedades entre 71 e 80, nenhum proprietrio tem de 81 a 90 hectares,
dois (5%) dos produtores tm propriedade entre 91 e 100, nove (24%) produtores
possuem propriedades acima de 100 hectares e dois (6%) dos entrevistados no
souberam responder (Grfico 6).
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XIX ENGA, So Paulo, 2009 SILVA, J. M. e MENDES, E. E.
22%
6%3%
10%13%3%3%
5%0%5%
24%
6%
at 10 hectares 11-20 hectares21-30 hectares 31-40 hectares41-50 hectares 51-60 hectares61-70 hectares 71-80 hectares81-90 hectares 91-100 hectaresacima de 100 hectares no souberam responder
Grfico 6 - Comunidade Cruzeiro dos Martrios, Catalo (GO): distribuio das propriedades por rea (ha).
Fonte: Pesquisa de campo, 2006 e 2007. Org.: Martins Silva (2008).
Dos produtores pesquisados na comunidade Cruzeiro dos Martrios
70%, afirmam que sobrevivem exclusivamente dos rendimentos gerados na
propriedade (possui apenas renda agrcola), e 30% contam com outro tipo de
rendimento (possui renda no agrcola), conforme grfico 7.
70%
30%
Possui apenas renda agrcola Possui renda no agrcola
Grfico 7 - Comunidade rural Cruzeiro dos Martrios, Catalo (GO): renda agrcola e no agrcola.
Fonte: Pesquisa de campo, 2007 e 2008. Org. Martins Silva (2008).
Quanto renda no agrcola destaca-se a aposentadoria (46%) e
servios temporrios remunerados (36%), j os trabalhadores assalariados
representam (18%) (Grfico 8). A aposentadoria representa para os produtores rurais a
oportunidade de uma renda extra que complementa os recursos gerados pela
propriedade. Para Tedesco (1999), a aposentadoria esperada e comemorada, ela
remunera fatores de produo na agricultura, melhora a infra-estrutura do lar e
possibilita o atendimento dos desejos de consumo. Mas a aposentadoria para os
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Agricultura familiar no Brasil: caractersticas e estratgias da comunidade Cruzeiro dos Martrios municpio de Catalo (GO), pp. 1-18.
produtores rurais no representam o abandono da terra e do trabalho, pois mesmo
aps se aposentarem continuam na propriedade. Muitos sobrevivem exclusivamente
da aposentadoria, assim, sem ela muitos estariam completamente descapitalizados.
46%
36%
18%
Aposentadoria Servios temprarios Assalariados
Grfico 8 - Comunidade Cruzeiro dos Martrios, Catalo (GO): renda no agrcola.
Fonte: Pesquisa de campo, 2007 e 2008. Org.: Martins Silva (2008)
Na comunidade Cruzeiro dos Martrios, a renda mensal de 12 produtores fica em
torno de 1 a 2 salrios mnimos, e de 2 a 3 salrios representou nove dos produtores
rurais, sete dos produtores afirmaram ter uma renda mensal acima de 5 salrios
mnimos, so os produtores de soja, alguns criadores de gado e que possuem
propriedade acima de 100ha, j quatro dos produtores afirmaram sobreviver com
menos de 1 salrio mnimo e sete produtores no quiseram ou no souberam
responder. Vale ressaltar que os dados no so confiveis, pois os produtores
pareciam ter dvidas dos ganhos ou no queriam responder com exatido. Deve-se
ainda considerar a grande variao de renda, pois no possuem uma renda fixa, como
mostra a tabela 3.
Tabela 3 - Comunidade rural Cruzeiro dos Martrios, Catalo (GO): renda aproximada dos agricultores.
Renda aproximada mensal QuantidadeMenos de 1 salrio 41-2 salrios 122-3 salrios 93-4 salrios 04-5 salrios 0Acima de 5 salrios 5No souberam responder 7Total de produtores 37
Fonte: Pesquisa de campo, 2007 e 2008.Org.: Martins Silva (2008).
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XIX ENGA, So Paulo, 2009 SILVA, J. M. e MENDES, E. E.
Quanto moradia, verifica-se certa diferenciao, muitos produtores da
comunidade Cruzeiros dos Martrios no tm condies ou no preocupam com o
conforto de uma construo habitacional mais moderna. Vrias residncias encontram-
se em estado precrio de conservao considerando os seguintes quesitos: paredes de
adobe com reboco solto e sem pintura, telhados danificados, pisos rsticos (piso batido
ou cimentado grosso) (Figura 2). Outras representam construes mais modernas
(casas forradas, piso de cermica, banheiro no interior das residncias), representando
o menor percentual de habitaes no meio rural, essas so geralmente dos produtores
de soja ou dos criadores de gado que possuem acima de 100 hectares.
Figura 2 - Comunidade rural Cruzeiro dos Martrios: habitao rural.Autor: Martins Silva (2008).
A maioria desses produtores (cerca de 89%) no conta com uma assistncia
tcnica adequada e 81% dos produtores afirmaram no recorrer a nenhum
financiamento e nem crdito rural, cuidam de suas terras com as potencialidades e
instrumentos dentro de suas condies econmicas e tcnicas. Geralmente, as
orientaes restringem-se aos profissionais das casas agropecurias onde adquirem
os produtos necessrios s suas atividades, apenas uma minoria dos produtores
(10%), com uma maior extenso de terras, que produzem soja ou que produzem mais
gado, possuem financiamentos.
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Agricultura familiar no Brasil: caractersticas e estratgias da comunidade Cruzeiro dos Martrios municpio de Catalo (GO), pp. 1-18.
Tedesco (2001), em sua anlise da Encosta Superior do Rio Grande do Sul, que
caracterizada pela presena de agroindstrias, afirma que o agricultor familiar frente
aos impactos das transformaes globalizantes do mercado, adota estratgias e aciona
formas de racionalidades possveis e, assim, enfrenta os desafios com as condies
objetivas e os instrumentos que lhe so acessveis. Wanderley (2001, p. 35, grifos da
autora) respalda os argumentos desse autor ao afirmar que [...] os agricultores
familiares modernos enfrentam os novos desafios com as armas que possuem e que
aprenderam a usar a partir de sua experincia.
A luta desses produtores no assenta apenas na busca de melhores
rendimentos, mas na reproduo do patrimnio sociocultural em seu territrio. Nota-se
que, com a implantao do processo de modernizao da agricultura na comunidade, a
partir de 1980, houve transformaes na organizao social, econmica e cultural da
comunidade. Prticas como o mutiro, traio j foram extintas, em contrapartida
houve um expressivo aumento da prtica do arrendamento. Outro fato a ser
considerado a imposio de novos valores e costumes como o exemplo da festa
dos produtores rurais.
6 Consideraes finais
A agricultura familiar no Brasil apresenta diversidades e diferenciaes
regionais, o que tornam importantes os estudos e anlises de reas especficas, para a
compreenso da organizao e reproduo desse segmento. A modernizao da
agricultura brasileira deu-se de forma conservadora e excludente, uma vez que
legitimou a agricultura empresarial moderna, favorecendo o aumento dos problemas
sociais, econmicos e territoriais dos agricultores familiares.
Na comunidade Cruzeiro dos Martrios no municpio de Catalo, Estado de
Gois, percebe-se que os agricultores que permaneceram na comunidade, em maior
ou menor grau, esto assentados sob tcnicas tradicionais de produo,
principalmente da pecuria leiteira. Sua integrao cada vez mais intensa ao mercado
promove alteraes em seu modo de vida e insero de novas relaes de trabalho,
como o arrendamento de parte de sua propriedade para os produtores de soja que
vieram Sudeste. Essa prtica tem sido utilizada como meio de complementar os
rendimentos do produtor rural na regio. Em contrapartida, prticas tradicionais como o
mutiro e traio foram sendo gradativamente extintas da comunidade.
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XIX ENGA, So Paulo, 2009 SILVA, J. M. e MENDES, E. E.
Nesse contexto, percebe-se que a mudana tecnolgica ocorrida na comunidade
Cruzeiro dos Martrios assumiu tanto uma faceta econmica quanto uma faceta
cultural. Essa dinmica favoreceu a valorizao de novas tcnicas e de determinados
conhecimentos e ao mesmo tempo contribui para a desvalorizao de outras tcnicas e
tradies e dos saberes a elas associadas.
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