alcione souza da conceiÇÃo · conflitos, memÓrias (1956-1979) feira de santana – bahia 2017 ....
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA – UEFS.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA
ALCIONE SOUZA DA CONCEIÇÃO
BOQUIRA E A MINERAÇÃO DO CHUMBO: MUDANÇAS,
CONFLITOS, MEMÓRIAS (1956-1979)
Feira de Santana – Bahia
2017
ALCIONE SOUZA DA CONCEIÇÃO
BOQUIRA E A MINERAÇÃO DO CHUMBO: MUDANÇAS,
CONFLITOS, MEMÓRIAS (1956-1979)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade Estadual
de Feira de Santana – UEFS, como parte dos
requisitos para obtenção do título de mestre.
Linha de Pesquisa: Cultura, sociedade e política.
Orientador: Professor Dr. Aldo José Morais Silva.
Feira de Santana- Bahia
2017
ALCIONE SOUZA DA CONCEIÇÃO
BOQUIRA E A MINERAÇÃO DO CHUMBO: MUDANÇAS,
CONFLITOS, MEMÓRIAS (1956-1979)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade Estadual
de Feira de Santana – UEFS, como parte dos
requisitos para obtenção do título de mestre.
Linha de Pesquisa: Cultura, sociedade e política.
Orientador: Professor Dr. Aldo José Morais Silva.
FEIRA DE SANTANA AGOSTO DE 2017
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Márcia Carolina de Oliveira Cury (UNEB)
________________________________________________________
Prof. Dr. Eurelino Teixeira Coelho Neto (UEFS)
________________________________________________________
Prof. Dr. Aldo José Morais Silva (UEFS/Orientador)
Feira de Santana- Bahia
2017
“Não aceiteis o que é de hábito como coisa
natural, pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade
consciente, de humanidade desumanizada, nada
deve parecer natural nada deve parecer
impossível de mudar.”
Bertold Brech
AGRADECIMENTOS
“Se a gente cresce com os golpes duros da vida,
também podemos crescer com os toques suaves na
alma.”
Cora Carolina
Devo agradecimentos a muitas pessoas. O processo de desenvolvimento de uma
pesquisa possuí seus momentos de contentamento, mas também é bem doloroso. São
inúmeras as dificuldades, porém, a existência de companheiros e companheiras durante a
caminhada nos ajuda a seguir em frente. E as contribuições se dão de formas variadas. Seja
uma conversa a respeito da pesquisa, a leitura do nosso texto, as críticas que recebemos, as
aulas com professores e colegas, uma palavra de conforto durante os momentos de angustias,
os momentos de afagos, distração e amizade.
Agradeço a mainha (Marineuza), painho (José) e meu irmão Lucas pelo apoio,
confiança, compreensão, zelo e carinho. Devo muito a vocês, gratidão eterna por tudo que
dedicaram a mim, amo-os profundamente. Também a toda a minha família, tios e tias, primos
e primas, cunhada (Gaby), meu avô e padrinho (Dim véi) e minha avó (Oziria), obrigada pela
consideração e afeto.
Agradeço também ao pessoal de Itaberaba onde vivi minha graduação. A minha tia
Irene e tio Zé Neto, Andréia, Poka, Henrique e meu amorzinho Dudu. Aos colegas de
graduação da Uneb Campus XIII e também a todos os professores e professoras, em especial
a professora Regiane Lopes, querida mestra que muito admiro e participou da banca do TCC,
Marinélia Silva que me orientou na graduação e Lígia Santana pelos cuidados quando eu era
bolsista do Núcleo de História Local (NHL), grata por todos os ensinamentos!. Aos queridos e
queridas que conheci durante a graduação e que tenho muito carinho: Grazy, Priscila,
Daniana, Arilma, Rafael Rosa, Rose, Jéssica, Izac, Jonh, Atílio, Caio, Marcão, Thaianne,
Izaura,Talita, Paulo, Lucas, Silvio, Mondragon, obrigada pelos momentos de leveza e
fraternidade.
Devo agradecer também aos colegas da turma de mestrado, aprendi bastante com
todos vocês. Em especial a Roberta, Leonardo, Hugo, Daiane, Andrei, Luan, Kalila, Zé Luiz,
cuja relação ultrapassou a sala de aula, foi bom tê-los conhecido e compartilhado essa
vivência. Aos professores com quem tive disciplina: Eurelino Coelho, Clóvis Ramaiana,
Carlos Augusto e Ana Maria, grata pelo rico aprendizado. A seu Julival, funcionário do
mestrado, sempre solícito a ajudar no que precisássemos. E aos coordenadores do programa.
Sou grata ao Laboratório de História e Memória da Esquerda e das Lutas Sociais
(LABELU), tive a oportunidade de participar de uma experiência de desenvolver pesquisa de
modo coletivo, espaço em que muito aprendemos com os debates e colaborações entre os
colegas pesquisadores. A Chintamani Santana, Tamires Assad, Roberta Rocha, Leonardo
Amaral, Larissa Penelu, Rui Marcos, Valter Zaqueu, Luan Lima, Andrei Valente, Hugo
Damasceno, Nayara Fernandes, Camila Souza, Tamires Cedraz, Lineker Norberto, Darliton
Paranhos, Elvia Santos, Ricardo Campos, Guillermo Fernandez, Lucas Martins, João Vitor,
Daiane Pereira, Carlos Roberto.
Conheci pessoas maravilhosas durante o mestrado e tive a satisfação de compartilhar
momentos divertidos e afáveis no Feira VI, grata a Rui, Nayane, Lisboa, Maria, Guillermo,
Eric, Mirian, Táfila, Vânia, Duda, Tailane. Agradeço mais uma vez a Roberta, colega de
mestrado, pelo laço de amizade durante esse tempo de vivência em Feira de Santana, foi
muito bom ter participado dessa caminhada junto com você.
A Larissa Godinho, querida amiga com quem dividi o mesmo espaço durante esses
dois anos e pouco em Feira de Santana. As angustias, dúvidas, crises em relação as nossas
pesquisas era tema recorrente nas conversas em casa. Sua presença durante esse processo foi
muito importante para mim, obrigada pela amizade, incentivos, atenção, sorrisos, abraços.
Também a doce Francine, amiga que nos ajudou no processo de mudança para Feira, e com
quem pudemos compartilhar agradáveis momentos, agradeço pela amizade, acolhimento e
carinho.
Ao orientador Aldo Silva por participar com compromisso, paciência e dedicação na
construção desse trabalho, sou grata. Aos professores que participaram da banca de
qualificação Márcia Cury e Eurelino Coelho, pelas valorosas colaborações.
Ao professor Darliton Paranhos (Tom) com quem fiz o tirocínio na Uefs, obrigada por
ter me aceito como tirocinista na disciplina “Seminário interface: ciência política e história”,
aprendi bastante com suas aulas, não somente sobre o conteúdo da disciplina, mas sobre o
exercício do ser professor.
A João Lazaro (Joãozinho) que gentilmente se dispôs a ler um dos capítulos do
trabalho. Também a Iracélli Alves pela leitura cuidadosa e comentários construtivos na
revisão do texto.
Aos funcionários da Câmara Municipal de Boquira que se dispuseram a me ajudar
com as atas da Câmara, em especial a Vando. Também aos funcionários do Arquivo
Municipal de Boquira. Ao Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Ao senhor Adailson
de Santo Amaro que se mostrou disposto em ajudar na pesquisa, mostrando-me a existência
de notícias sobre a mineradora em alguns jornais. Ao senhor Jason e Dona Ninice de Boquira
que me forneceram documentos. Também a todos os entrevistados que atenciosamente
partilharam comigo seu tempo e suas vivências.
Agradeço a FAPESB pela bolsa concedida durante 19 meses, foi muito importante
esse apoio para o desenvolvimento dessa pesquisa.
Gratidão a todos e todas que de algum modo tornaram possível esse trabalho!
Esse período que vivi o mestrado foi marcado por momentos de muita luta, os
trabalhadores e mais pobres do país sofrendo ataques duros, por isso mesmo esses dois anos
(2015-2017) foram assinalados por greves, paralisações, ocupações. Também sofremos um
golpe que colocou na presidência um governo ilegítimo, reformas foram e estão sendo
aprovadas nesse governo, golpeando direitos há muito conquistados pela classe trabalhadora,
o que intensificou as mobilizações. Tudo isso acabou afetando o funcionamento da
universidade, consequentemente o andamento do mestrado e a pesquisa.
Até mesmo a nossa área de conhecimento, a História, teve sua importância
questionada, quando da aprovação da reforma do ensino médio em fevereiro de 2017, em que
a disciplina ficaria como optativa. Contudo, historiadores e historiadoras repudiaram tal
imposição e vem lutando pela disciplina, reivindicando a obrigatoriedade da História no
ensino médio. Aliado a isso professores e professoras de história vem sofrendo
desvalorização, censura e criminalização no exercício de seu ofício, acusados de estarem
fazendo “doutrinação esquerdistas” aos seus alunos, tais ações fundamentadas principalmente
na “ideia” do “Escola sem partido”. Tudo isso é muito preocupante e acinzenta nosso futuro
enquanto professoras e professores de história, e do exercício do pensamento crítico nas salas
de aula. São tempos difíceis, o sentimento de incerteza nos perturba. Então, este trabalho é
filho desse momento, de lutas, preocupações, incertezas...
RESUMO
A pergunta que orientou este trabalho diz respeito ao modo como a localidade de Boquira,
localizada no centro sul baiano, foi afetada pela instalação de uma indústria mineira, entre os
períodos de 1956-1979. O início do processo das atividades de mineração ocorreu em 1956,
ano em que o então presidente da República Juscelino Kubitschek autorizou a exploração de
chumbo na região. Nesse momento o país passava por um processo de expansão do
capitalismo, e a industrialização era vista como um elemento do desenvolvimento econômico
e social. Boquira, naquele período, era um pequeno povoado rural e seus habitantes
sobreviviam do trabalho na lavoura e criação de animais. A exploração do minério provocou
muitas transformações no lugar, e acabou afetando a maneira como as pessoas viviam e
trabalhavam. O objetivo da pesquisa é compreender quais foram as mudanças que ocorreram
em Boquira com o estabelecimento da mineradora, como habitantes do povoado e região
foram afetados com o advento de uma indústria no lugar. Para além disso, é também analisar
as memórias que foram construídas sobre o processo de mineração em Boquira. Neste sentido,
investigamos como foi criada as condições para as atividades mineiras, qual seja, a
expropriação de lavradores de suas terras, para o exercício da mineração; analisamos a forma
como a empresa mineira agia na localidade; examinamos os conflitos ocorridos em razão da
existência e atuação da mineradora; investigamos as memórias construídas pelos antigos
trabalhadores mineiros sobre as vivências no labor das minas. Desse modo, procuramos
evidenciar alguns elementos que compuseram as relações sociais do processo de exploração
mineral em Boquira.
Palavras-chave: Boquira, indústria mineira, conflitos, memórias.
ABSTRACT
The question this work endeavors to answer is how was the locality of Boquira, located in
south central Bahia, affected by the installation of a mining industry, between the periods of
1956-1979. The mining process began in 1956 when President Juscelino Kubitschek
authorized the exploitation of lead in the region. During that period the country was
undergoing the process of expanding capitalism, and industrialization was seen as an element
of economic and social development. Boquira, at that time, was a small rural village, and its
inhabitants survived from farming and animal husbandry. The exploitation of the ore was the
cause of many changes and ended up affecting the way people lived and worked. The
objective of this research is to understand what were the changes that occurred in Boquira
with the establishment of the mining company, as inhabitants of the village and region were
affected by the advent of a new industry. In addition, it also analyzes the memories that were
created during the mining process in Boquira. In this sense, we investigate how the conditions
for mining activities were created, namely, the expropriation of farmers from their lands, for
the purpose of mining; We analyze how the mining company acted in the locality; We
examine the conflicts that occurred due to the existence and performance of the mining
industry; We investigate the old mining workers' experiences working in the mines. In this
way, we try to show some elements that engendered the social relations associated with the
process of mineral exploration in Boquira.
Key words: Boquira, mining industry, conflicts, memories.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
1. BOQUIRA E A EXPLORAÇÃO DO CHUMBO ............................................................... 17
1.1. Industrialização no Brasil e na Bahia na década de 1950 .............................................. 17
1.2. O processo de instalação da indústria mineira em Boquira ........................................... 25
1.2.1. A Peñarroya Francesa ............................................................................................. 36
1.3. Boquira e a mineração: as mudanças e as memórias. ................................................... 39
2. O CONTO DO VIGÁRIO: OS AGRICULTORES DE BOQUIRA E A INDÚSTRIA DE
MINERAÇÃO .......................................................................................................................... 55
2.1. Expropriação e resistência dos agricultores de Boquira ................................................ 55
2.2. Desapropriação dos terrenos e o convênio entre o Estado baiano e a indústria de
mineração ....................................................................................................................... 66
2.3. Denuncias do convênio ganham visibilidade ................................................................. 76
2.4. A mineradora e a política local ...................................................................................... 87
3. BOQUIRA E AS ATIVIDADES MINEIRAS: CONTRADIÇÕES, DISPUTAS,
MEMÓRIAS... .......................................................................................................................... 97
3.1. O jornalista Alexandria Pontes: oposição e disputas ..................................................... 97
3.2. Memórias do trabalho na indústria: os mineiros de Boquira ....................................... 118
3.3. Vida, substâncias da memória: as relações entre os companheiros de trabalho .......... 137
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 147
FONTES ................................................................................................................................. 150
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 154
11
INTRODUÇÃO
A pergunta que orientou este trabalho gira em torno de como a localidade de Boquira
foi afetada pelo processo de industrialização que se expandia no país durante a década de
1950. Boquira, naquele período, era um pequeno povoado rural. Seus habitantes sobreviviam
da agricultura e criação de animais. De repente, instalou-se uma indústria mineira no povoado
e estes indivíduos se viram submetidos a relação econômica industrial capitalista.
Na dissertação problematizaremos, justamente, qual foi o impacto da instalação de
uma indústria na cidade de Boquira. Para compreendermos o processo, é fundamental
analisarmos como a industrialização foi implementada no país de uma forma mais geral.
Nosso objetivo central é, a partir das experiências de Boquira, contribuir para a discussão
sobre como as regiões rurais foram afetadas pelo desenvolvimento do capitalismo. O que nos
interessa entender é como aquele processo foi vivenciado pelos habitantes do lugar,
examinando como a mineradora agia na região, e como seus moradores relembram o
processo. Portanto, além de tentar compreender as vivências, procuramos, por meios das
memórias, averiguar como o passado vivido é interpretado no presente, entendendo que as
memórias não estão desassociadas das vivências pretéritas.
No que diz respeito ao recorte temporal, a pesquisa situa-se no período compreendido
entre 1956, ano em que iniciou-se a exploração do minério de chumbo em Boquira, até 1979,
período em que se desenrola as principais questões que interessa ao problema da pesquisa.
Preocupou-nos saber como se iniciou a exploração do minério, quais foram as empresas que
participaram do empreendimento; como alguns habitantes do povoado foram afetados pela
mineração; a forma como a empresa agia na localidade, influenciando, inclusive, a política
local; os conflitos envolvendo a indústria mineira; as memórias que os trabalhadores mineiros
construíram sobre as atividades laborais.
Além das narrativas orais, utilizamos jornais, atas da Câmara Municipal de Boquira,
escrituras públicas, revista, livros de memória, e outros. No que diz respeito à fonte oral,
cabem algumas observações, entendemos a história oral como uma metodologia de
investigação1. Enquanto metodologia
2, como salienta Marieta Ferreira, ela pode apresentar
1 Há os que dizem ser a história oral uma técnica, outros uma disciplina. Para esse debate ver: FERREIRA,
Marieta de Moraes. História oral: velhas questões, novos desafios. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS,
Ronaldo (Org.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 169- 186.
12
questões, mas nunca obter respostas, pois esta só é possível no campo da historiografia e da
teoria da história, “em que se agrupam conceitos capazes de pensar os problemas
metodológicos gerados pela pesquisa histórica” 3. As dúvidas que surgem no momento da
entrevista, que estão implicadas nas relações entre história e memória, devem ser
compreendidas e resolvidas na teoria da história. Acreditamos, apoiadas em Portelli, que “o
trabalho histórico que exclui fontes orais (quando válidas) é incompleto por definição”.4
Tomando como base as fontes orais, adotamos a seguinte metodologia. Realizamos
doze entrevistas com ex trabalhadores da mineradora de Boquira, onze deles exerceram o
cargo de mineiros e outro chegou a ser gerente financeiro da indústria. Transcrevemos os
relatos da maneira como os sujeitos falam, sem fazer alterações nas palavras. Cremos que a
linguagem falada também diz muito sobre os indivíduos e ao grupo social ao qual pertencem.
Optamos também por colocar pontuação nas narrativas por entender que desse modo facilita a
compreensão do relato.
Em relação à experiência com o uso da fonte oral, destacamos que se tratou de um
exercício muito difícil, que demandou muito tempo. O primeiro desafio foi procurar as
pessoas que poderiam ser entrevistadas, saber sobre a disponibilidade para entrevista, adequar
as agendas, etc. Após as entrevistas, todas gravadas com o gravador do celular, partimos para
a transcrição, momento que exigiu maior esforço e tempo. Foram despendidas cerca de, no
mínimo, cinco horas para transcrever cada entrevista, que tinha em média duração de uma
hora cada uma. Aqui aparece outra peculiaridade da fonte oral. Diferente das outras, a fonte
oral é produzida pelos pesquisadores.
No entanto, o trabalho com entrevista não é atravessado apenas por dificuldades. O
exercício de conversar com os entrevistados é uma experiência gratificante, uma relação
marcada por subjetividades. Ouvir os relatos, dar atenção as histórias dos sujeitos desperta a
nossa sensibilidade humana. Por isso não é incomum o envolvimento com suas dores. O
entrevistador, junto ao entrevistado, se indigna, se emociona e sorri. No momento da
entrevista, o mergulho no passado é feito por ambos. A proximidade não nos deixa esquecer
que a história tem cheiro, tem risos, tem dor, tem lágrimas, tem sangue.
2 Como metodologia “[...] apenas estabelece e ordena procedimentos de trabalho – tais como os diversos tipos de
entrevista e as implicações de cada um deles para a pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de
depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes maneiras de o historiador relacionar-se com seus
entrevistados e as influências disso sobre seu trabalho –, funcionando como ponte entre teoria e prática.”
FERREIRA , 2012, p. 170. 3 Ibid., p.170.
4 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, n. 14, p. 25-39,
fev.1997. Disponível em:<http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/11233/8240>. Acesso em: 23
jan. 2016.p.37.
13
Neste estudo partimos de uma concepção de história que considera tanto as ações dos
sujeitos, quanto as determinações que recaem sobre eles, as circunstâncias que não escolhem.
Como lembra o historiador Eurelino Coelho, seguindo as pistas deixadas por Karl Marx, a
história deve ser pensada “como a dialética entre a ação dos sujeitos históricos (que fazem a
história) e as condições dadas em que tais sujeitos tem de agir (que eles não escolhem).” 5
Lembra Coelho que a dialética como método histórico pensa a relação da
singularidade/subjetividade do evento e a totalidade de relações, e que essas se determinam de
forma recíproca. A totalidade é ela mesma determinada, contraditória, dinâmica.6 Para o
autor, os eventos históricos só podem existir inseridos na totalidade de relações, que são
múltiplas, “e não apenas as „econômicas‟, são consideradas na determinação do concreto”.7
Partindo dessa perspectiva, investigamos as ações dos sujeitos e a peculiaridade do
evento, tentando perceber a dialética do processo, compreendendo que eles não se separam
das relações mais amplas e diversas dentro do qual estão colocados. A pesquisa é relevante na
medida em que a historiografia baiana pouco tem escrito sobre os impactos da
industrialização nas regiões do interior da Bahia, especialmente em se tratando das
localidades rurais. Prova disso foi a dificuldade em encontrar bibliografias que tratam
especificamente dessa questão. Sem muitas pretensões, esperamos que este trabalho traga
algumas contribuições nesse sentido.
Ademais, há poucos estudos historiográficos sobre as atividades de mineração. O tema
da mineração é pouco estudado pelos historiadores. Tanto é assim que quando iniciamos a
pesquisa bibliográfica acerca da temática tivemos dificuldades. A maioria das pesquisas
realizadas foram feitas por pesquisadores e pesquisadoras das áreas de geologia, geografia e
engenharia de minas. A relevância da pesquisa pode ser atestada pelo fato de, em 2015, uma
revista sobre história do trabalho8 ter publicado um dossiê sobre os mineiros e o trabalho em
minerações. O texto introdutório chama a atenção para a importância da realização de estudos
sobre a temática, tal qual está sendo proposto agora. A revista, em sua introdução, destaca o
desastre ocorrido em Mariana (MG), em novembro do mesmo ano. O acontecimento ganhou
visibilidade devido à extensão dos prejuízos sociais e ambientais para a região – mortes,
poluição, destruição de cidades, e muitos desabrigados.
5 COELHO, Eurelino. A dialética na oficina do historiador: Ideias arriscadas sobre algumas questões de método.
História e Luta de Classes, [S.l.], n. 9, p. 7-16, jun. 2010.p.8. 6 Ibid., p. 11-13.
7 Ibid., p. 14.
8MUNDOS DO TRABALHO, DOSSIÊ OS MINEIROS E O TRABALHO EM MINERAÇÕES. Publicação
eletrônica semestral GT “Mundos do trabalho” - ANPUH, v. 7, n. 14. Jul./dez. 2015. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/mundosdotrabalho/issue/view/2340/showToc > . Acesso em: fev. 2016.
14
Não poderíamos deixar de lembrar, também, o caso de Santo Amaro, na Bahia, onde
foi construída a metalúrgica para o beneficiamento do chumbo que saía de Boquira. A cidade
foi poluída pelo chumbo. A água, o solo, a zona urbana foi contaminada e os ex funcionários
e habitantes foram/são acometidas por diversos tipos de doenças. Santo Amaro é uma das
cidades mais poluídas por minério de chumbo no mundo.9A situação de Santo Amaro foi
denunciada na canção do músico Caetano Veloso, natural da cidade. Em um trecho da música
“Purificar o Subaé” diz: “os riscos que corre essa gente morena o horror de um progresso
vazio matando os mariscos e os peixes do rio enchendo o meu canto de raiva e de pena.
Purificar o Subaé mandar os malditos embora...”.10
As atividades mineiras são consideradas como extremamente necessárias ao
desenvolvimento humano, no entanto, elas trazem problemas, deixando prejuízos
socioambientais enormes. Os ônus são sentidos, especialmente pelas pessoas que moram onde
as empresas são instaladas. Em função disso, é relevante problematizar o tema da
industrialização, com a finalidade de entender as questões que a envolve, para além da
promessa do “progresso” e dos benefícios.
Desse modo, o que nos interessa aqui é perceber como o processo de industrialização é
atravessado por complexidades. Não traz apenas emprego e renda, e crescimento para as
cidades. Por traz do “desenvolvimento” há elementos que precisam ser evidenciados. Por isso,
precisamos saber como efetivamente o processo é experimentado pelos habitantes do lugar
em que as empresas são instaladas. No caso de Boquira, nosso foco é evidenciar como
agricultores locais foram expropriados de suas terras; como a empresa utilizava de sua
influência para exercer poder no lugar; como os sujeitos da zona rural da região foram
submetidos e vivenciaram o duro trabalho no interior nas minas. São questões importantes
que merecem ser colocadas quando se trata do tema da industrialização, pois esta não se
restringe às benesses que são amplamente difundidas. Ainda que saibamos que, de fato, a
instalação de uma indústria gera empregos, é preciso problematizar os seus limites e
interrogar sobre as condições de trabalho oferecidas.
A instalação da mineradora em Boquira também teve como consequência a poluição
ambiental, levando prejuízos sociais à região. O chumbo explorado em Boquira é um metal
pesado, tóxico ao organismo humano. Ainda hoje a cidade convive com o material que foi
extraído das atividades, são os chamados rejeitos. Esse material tóxico fica exposto a céu
9 ARAÚJO, Eliane. et.al., [2012?].
10 VELOSO, Caetano. Purificar o Subaé. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/568986/>.
Acesso em: 15 maio 2017.
15
aberto. Desse modo, a população local é obrigada a inalar os resíduos de mineração, já que
eles contaminam o ar, se espalhando na poeira. Portanto, a saúde das pessoas está sob perigo
constante. Além da contaminação por vias aéreas, o chumbo pode ser ingerido por meios dos
alimentos e água.11
A presente pesquisa pode contribuir para a história e a memória da cidade de Boquira.
A instalação da mineradora e suas consequências para a localidade foram acontecimentos
importantes, tanto é assim que a temática frequentemente compõe o repertório dos eventos
culturais da cidade, além de estar presente nas narrativas cotidianas das pessoas do lugar.
Nesse sentido, a pesquisa é um pontapé inicial na construção de uma historiografia sobre
Boquira. Esperamos contribuir de algum modo para a compreensão da história do lugar.
A dissertação é dividida em três capítulos. O primeiro analisa como se deu o início das
atividades de mineração em Boquira, como foi o processo da instalação das empresas
mineiras. Além de discutir sobre o cenário do Brasil no período da década de 1950, quando
procurava-se promover a industrialização, direcionando inclusive políticas para esse fim no
nordeste. Aquele contexto contribuiu para que em Boquira, sertão baiano, se instalasse uma
indústria mineira. Trata também sobre como era o pequeno povoado de Boquira antes da
instalação da indústria, as mudanças ocasionadas na localidade a partir das atividades
mineiras. Ademais, examina a memória oficial que se construiu a respeito da atuação da
mineradora no local.
No segundo capítulo tratamos do processo que tornou possível as atividades mineiras
em Boquira, do modo como ocorreu a expropriação dos terrenos para a execução da atividade
mineral. Destacamos, portanto, como alguns agricultores de Boquira vivenciaram aquele
acontecimento, visto que suas terras foram expropriadas para a mineração do chumbo. Nesse
sentido, enfatizamos os conflitos presentes naquele evento, tentando evidenciar alguns
elementos das vivências dos agricultores. Além disso, também examinamos a maneira como
se relacionava a indústria de mineração e a política local, com a finalidade de vislumbrar e
entender as ações da empresa na localidade, a influência e o poder que exercia.
No terceiro e último capítulo investigamos a atuação do jornalista Alexandria Pontes,
nascido em Boquira, personagem que se destacou na localidade devido as várias denuncias
que fez contra a mineradora e a autoridades da região. Seguindo essa figura, iremos desvelar
os conflitos e as contradições existentes no cenário social e político de Boquira daquele
11
ARAÚJO, Eliane. et.al. Passivos socioambientais da minerometalurgia do chumbo em Santo Amaro e
Boquira (BA), Vale do Ribeira (PR) e Mauá da Serra (PR). [2012?]. Disponível em:
<http://www.cetem.gov.br/santo_amaro/pdf/cap5.pdf>. Acesso em: 15 maio 2017.
16
período. Ademais, analisamos as relações estabelecidas entre as autoridades da região, os
políticos e a mineradora, e a forma como o poder local constituído também era questionado.
Refletimos, ainda, sobre as memórias do grupo de antigos trabalhadores mineiros de Boquira,
em especial sobre suas vivências no labor das minas, as memórias que construíram a respeito
das dificuldades no trabalho, das relações de solidariedade, da perda de companheiros e da
resistência ao serviço. Evidenciamos que existe uma memória coletiva que foi criada pelos
trabalhadores mineiros e que ainda hoje é partilhada pelo grupo.
1. BOQUIRA E A EXPLORAÇÃO DO CHUMBO
Este capítulo versa sobre o início das atividades de mineração em Boquira e o
processo de instalação da indústria mineira na região1. O estabelecimento da mineradora
naquele povoado, com participação do capital internacional, tem relação com o processo de
industrialização que ocorria no Brasil na década de 1950. Para compreendermos as mudanças
ocorridas após a instalação da mineradora em Boquira, torna-se fundamental analisarmos,
primeiro, o processo de industrialização no Brasil e na Bahia no período em tela. Em seguida,
analisaremos como o processo foi vivido na região de Boquira mais especificamente.
1.1. Industrialização no Brasil e na Bahia na década de 1950
As atividades de mineração são vistas como imprescindíveis para o desenvolvimento
econômico. Para alguns, “a atividade mineira [...] foi a grande força impulsionadora do
desenvolvimento da América Latina” 2. Percebemos, portanto, o significado que tal ramo
possui para um dado setor da economia de um país, o que não significa dizer que tal
empreendimento traz em seu bojo melhorias práticas na vida de todas as parcelas da
população.
No Brasil, as atividades mineiras tiveram início no período colonial, ganhando relevo
a partir do século XVIII, com a extração de ouro e diamante. Naquele contexto a coroa
portuguesa detinha os direitos sobre os minerais.3 Como Caio Prado Júnior indicou, a partir de
1824, estrangeiros começaram a se instalar no país com o propósito de estimular a indústria
de mineração que estava em decadência (tratava-se do ouro). O declínio pode ser explicado,
entre outros elementos, pela ausência de recursos técnicos para a execução da atividade. Os
minerais estavam cada vez mais profundos no solo, e a tecnologia disponível para a
1 Hoje uma pequena cidade do interior baiano, localiza-se na região centro sul da Bahia. Fica próxima as cidades
de Oliveira dos Brejinhos, Macaúbas e Ibipitanga. Segundo o IBGE possui uma população estimada em 2013 de
22.389 habitantes. Disponível em:
<http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=290410&search=||infogr%E1ficos:informa%E7%F
5es-completas>. Acesso em: 8 maio 2014. 2 LINS, Fernando Antonio de Freitas. Brasil 500 anos – a construção do Brasil e da América Latina pela
mineração: histórico, atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. Disponível em:
<www.cetem.gov.br/livros/item/download/51_d2248ca3c4823638e069af222f7b142f>. Acesso em: 20 mar.
2017.p.19. 3 PINTO, Manuel Serrano. Aspectos da história da mineração no Brasil colonial. In: LINS, Fernando Antonio de
Freitas. Brasil 500 anos – a construção do Brasil e da América Latina pela mineração: histórico, atualidade
e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000.p.19. Disponível em:
<www.cetem.gov.br/livros/item/download/51_d2248ca3c4823638e069af222f7b142f>. Acesso em: 20 mar.
2017.p.28-29.
18
exploração na região não respondia fundamentais para a realização da extração. Portanto, para
estimular a produção em 1824 foram abolidas as restrições impostas aos estrangeiros. A partir
de então, “começam a se multiplicar com capitais vindos de fora, em particular ingleses, mas
também franceses.” 4
Em linhas gerais, a bibliografia sobre mineração no Brasil informa que, a partir do
século XIX, grande parte das atividades de mineração, sobretudo com uso de novas
tecnologias, foram realizadas por estrangeiros. Segundo Germani:
[...] pode-se verificar que as novas tecnologias de mineração no Brasil quase
sempre foram trazidas por empresas que tinham suas bases no exterior [...].
A informação mais atualizada era também complementada pela
comunicação por eles mantida com suas bases.5
Aqui verificamos os investimentos de capital internacional que eram realizados, com a
exportação de tecnologia daqueles países para o Brasil, indicando como o país se relacionava
com as empresas bases localizadas em regiões de capitalismo avançado. Os lucros obtidos na
exploração dos minérios no Brasil eram transferidos para os investidores estrangeiros.
*
Aportando no século XX, contexto central da nossa pesquisa, é importante dizer que
na década de 1950 o Brasil passava por um processo de expansão do capitalismo. Neste
contexto, o país impulsionava sua industrialização, nutrindo um efervescente discurso
desenvolvimentista. Foi neste cenário que, em 1956, o então presidente Juscelino Kubitschek
(1956-1961) autorizou o início das atividades da mineração de chumbo em Boquira.
O processo de desenvolvimento industrial no país ganhou impulso durante os
governos de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1950-1954). Para Sposito e Santos o governo de
Kubitscheck já teria encontrado as bases para o processo de industrialização, criadas por
Vargas, “entre elas o aparato institucional e técnico, a reforma fiscal para os negócios de
energia e petróleo e os projetos siderúrgicos e hidroelétricos iniciados com Vargas e
inaugurados com JK.” 6
Durante o governo de Juscelino Kubitscheck, de acordo com Sônia Mendonça, o
Estado passou a exercer novas funções na sua atuação econômica que ia desde “banqueiro do
capital privado (por meio das agências públicas de financiamento do crédito industrial), até o
4 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense, 2008. p. 178.
5GERMANI, Darcy José. A mineração no Brasil - Relatório final. Rio de Janeiro: CTMineral, 2002. Disponível
em: <https://www.finep.gov.br/images/a-finep/fontes-de-orcamento/fundos-setoriais/ct-mineral/a-mineracao-no-
brasil.pdf>. Acesso em: 3 out. 2012.p.9. 6 SPOSITO, Eliseu Silvério; SANTOS, Leandro Bruno. O capitalismo industrial e as multinacionais
brasileiras. São Paulo: Outras Expressões, 2002.p.153.
19
seu papel de proprietário” 7. Foi elaborado o Plano de Metas, com o qual, segundo a autora,
introduzia pela primeira vez, controlado pelo governo, atividades tanto do capital privado
quanto público (nacional e estrangeiro). 8
O plano de metas estabelecia objetivos de dois tipos. A curto prazo, buscava
acelerar o desenvolvimento industrial do país, aumentando os investimentos
e a sua lucratividade. A médio prazo, visava elevar o nível de vida da
população brasileira, na crença de que a miséria seria superada pela criação
de muitos empregos e de um „moderno modo de vida‟. Para tanto, o plano
dividiu-se em 31 metas, voltadas para quatro setores chaves da economia:
energia, transportes, indústria de base e alimentação.9
A atividade de mineração e metalurgia (indústrias de base) dos metais não ferrosos,
como o chumbo, estava entre os mais importantes para a economia naquele momento, pois o
chumbo era um material estratégico para o setor industrial. O material era utilizado em
baterias, revestimentos de cabos, balas e munições, ligas, pigmentos etc. Ademais, era
fundamental para a produção de baterias automotivas.10
Na década de 1960 a utilização do
chumbo neste tipo de bateria assumiu a liderança do consumo mundial. “Na época a
fabricação de baterias representava 28% do consumo total do metal [...]” 11
. A importância do
mineral explica, portanto, o investimento de multinacionais na mineração brasileira, mais
especificamente na região de Boquira.
No governo JK houve muita participação do capital internacional na industrialização
brasileira. Sposito e Santos argumentam que diferente do governo Vargas em que a
industrialização se caracterizou pelo capitalismo nacional apoiado pelo empresariado local, no
governo Kubitschek “a opção será por um capitalismo associado, quer dizer, uma associação
ou tríplice aliança entre Estado, capital multinacional e capital local.” 12
Segundo Francisco de Oliveira, o governo de Kubitschek, com seu programa de
progredir „cinquenta anos em cinco‟, forçou “a aceleração da acumulação capitalística”, junto
7 MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento. Rio de Janeiro:
Graal, 1986. p. 59. 8 Idem.
9MENDONÇA, Sonia Regina de. A industrialização brasileira. São Paulo: Moderna, 2004 (Coleção polêmica).
p.71. 10
PANTAROTO, Hermano Luis. Uma análise da utilização do chumbo na produção de baterias e suas
implicações ambientais. 2008. Dissertação (mestrado em Engenharia de Produção)-Universidade Metodista de
Piracicaba, São Paulo, 2008. 11
SANTOS, Juarez Fontana dos. Relatório técnico 66: perfil do chumbo. [S.l.: s.n], 2009. Disponível em:
<http://www.mme.gov.br/documents/1138775/1256652/P40_RT66_Perfil_do_Chumbo.pdf/b656b126-e041-
47a3-bc66-7efbbc2086ef>. Acesso em: 10 fev. 2017. 12
SPOSITO E SANTOS, 2012, p. 154.
20
com a mudança do setor da indústria e suas empresas como elemento chave do sistema. Ainda
segundo o autor:
[...] a implantação dos ramos automobilísticos, da construção naval,
mecânica pesada, cimento, papel e celulose, ao lado da triplicação da
capacidade da siderurgia, orientam a estratégia; por seu lado, o Estado [...]
lançar-se-á num vasto programa de construção e melhoramento da
infraestrutura de rodovias, produção de energia elétrica, armazenagem e
silos, portos, ao lado de viabilizar o avanço da fronteira agrícola „externa‟,
com obras como Brasília e a Rodovia Belém-Brasília. 13
O impulso à industrialização no Brasil foi qualificado, pelo próprio governo
Kubitschek, como nacional-desenvolvimentista. A corrente nacionalista de JK “propunha a
necessidade do capital estrangeiro, porém submetido a controles e normas do Estado”.14
Para
Sônia Mendonça, a ideologia nacional-desenvolvimentista foi usada na tentativa de anular e
adiar as tensões sociais latentes na época. Por meio dela, procurou-se envolver todos os
brasileiros no desenvolvimento do “capitalismo-nacional”. Desse modo, procurava-se
encobrir as contradições que eram imanentes, “afinal, nada mais ideológico do que um
discurso nacionalista em meio à plena abertura da economia ao capital estrangeiro”.15
O discurso nacional-desenvolvimentista foi produzido, principalmente, pelo Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado em 1955 para cumprir a função de “pensar o
desenvolvimento do país, seus problemas e alternativas de superação”.16
O pensamento do
ISEB foi influenciado pelas ideias da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL),
que procurava investigar a razão do subdesenvolvimento da região e uma alternativa para
superá-lo.17
A CEPAL foi uma organização impulsionada pelos governos latino-americanos, cuja
função central era apresentar políticas e assessoria aos governos. Esse órgão se preocupou em
estudar meios possíveis de promoção da industrialização, e remover os obstáculos ao seu
desenvolvimento. Segundo a CEPAL, a exportação representava o principal empecilho para o
desenvolvimento industrial na América Latina. Por meio da substituição de importações, a
região ficava dependente das exportações. Portanto, considerava necessário aproveitar os
excedentes da exportação para o impulsionar o setor industrial. E defendia a necessidade de
13
OLIVEIRA, Francisco de. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Petrópolis: Editora Vozes,1981. p.
45-46. 14
MENDONÇA, 1986, p.70. 15
Ibid., p. 68. 16
Ibid., p. 71. 17
Ibid., p. 72.
21
intervenção do Estado para o desenvolvimento do setor. Para a organização, o capital
internacional seria a chave para o desenvolvimento industrial nos países latino-americanos.18
No entanto, as concepções da CEPAL foram criticadas por estudiosos do período, a
exemplo de Francisco de Oliveira. O autor critica o conceito cepalino de subdesenvolvimento,
que separava o setor econômico em duas categorias: “atrasado” e “moderno”.19
A
categorização da CEPAL classificava as economias pré-industriais compenetradas pelo
capitalismo como “subdesenvolvidas”, indicando que poderiam também avançar e se
desenvolver. Contudo, para Oliveira, não podemos esquecer que “o „subdesenvolvimento‟ é
precisamente uma „produção‟ da expansão do capitalismo”.20
Em outras palavras, grande
parte das economias pré-industriais latino americanas foram geradas pela expansão do
capitalismo mundial. O próprio “subdesenvolvimento” da América Latina foi criado para
atender uma demanda da expansão do capitalismo do centro. Nesse sentido, o
„subdesenvolvimento‟ é fruto da formação capitalista e não simplesmente um estágio histórico
inexorável 21
.
Ao refletir sobre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, Oliveira indicou que no
início do processo de expansão da indústria no país não houve, ao contrário do que sugere o
pensamento cepalino, um modelo de antagonismo entre a economia agrária e a industrial. No
caso brasileiro, não ocorreu uma ruptura completa entre os dois setores, apesar do segundo ter
se tornado hegemônico após os anos 1930. A própria maneira de acumulação da economia
agrária, mesmo que diferente da industrial foi importante para o desenvolvimento do
capitalismo.22
Para o autor, a oposição, na maior parte das vezes, acontece apenas de modo
formal, pois o “processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de
contrários, em que o chamado „moderno‟ cresce e se alimenta da existência do „atrasado‟, se
se quer manter a terminologia”.23
Para Francisco de Oliveira, a teoria do subdesenvolvimento fundamentou o
“desenvolvimentismo”, que afastou a dedicação teórica e a ação política do problema da luta
de classes, exatamente no momento em que essa situação se exacerbava, quando a economia
se convertia da base agrária para a industrial-urbana. A teoria do subdesenvolvimento, tal qual
18
SANTOS, Theotonio dos. Teoria da dependência: balanço e perspectiva. Florianópolis: Insular, 2015. p. 66-
84. 19
OLIVEIRA, 1981, p. 12. 20
Ibid., p.12. 21
Ibid., p.12. 22
Ibid., p. 40-41. 23
Ibid., p.12.
22
defende Oliveira, foi “a ideologia própria do chamado período populista” 24
, sendo muito
relevante para o crescimento do capitalismo industrial no Brasil.
A indústria mineira de Boquira foi instalada justamente nesse contexto de preocupação
com o desenvolvimento industrial. Cabe-nos refletir sobre o lugar da Bahia no cenário
nacional. Na década de 1950, segundo Gustavo Pessoti, a Bahia passava por uma estagnação
econômica, relacionada à diversos fatores 25
. Alguns deles são mais evidentes, tais quais:
a) a má infraestrutura viária – problema que persistia desde os tempos da
colônia; b) o fraco mercado interno; c) a escassez de crédito; d) baixos níveis
de escolaridade da população; e) atraso tecnológico e f) persistência na
ênfase ao modelo primário-exportador. Um cenário que apresentava essas
características oferecia poucas possibilidades para desenvolver um setor
industrial.26
A realidade da Bahia refletia as características comuns a outros estados da região
Nordeste. A região não tinha expandido o seu setor industrial. Para superar os problemas
algumas medidas foram empreendidas, a exemplo da criação do Grupo de Trabalho para o
Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), em 1956, com a finalidade de elaborar uma política
para o crescimento econômico da região.27
No entanto, como indica Pessoti, o sucesso de tal
projeto tinha poucas chances de acontecer, devido aos “óbices do próprio cenário nacional e
suas desigualdades internas.” 28
Apesar dos empecilhos, na Bahia os anseios de desenvolvimento industrial não
deixaram de se desenhar. No governo de Antônio Balbino (1954-1959) chegou a ser
construído um projeto de planejamento. O principal artífice do projeto foi Rômulo Almeida,
que acumulou o cargo de secretário da fazenda. A gestão criou um sistema estadual de
planejamento, composto basicamente pela Comissão de Planejamento Econômico (CPE) e
pelo fundo de Desenvolvimento Agroindustrial (Fundagro).“A CPE surgiu com o objetivo de
estudar e diagnosticar a economia baiana, elaborar projetos e criar programas,
institucionalizando o planejamento na esfera estadual”. 29
24
OLIVEIRA,1981, p. 13. 25
PESSOTI, Gustavo Casseb. As políticas de atração de investimentos industriais e o desenvolvimento industrial
da Bahia no período do regime militar brasileiro. In: ZACHARIACHES, Grimaldo Carneiro (Org.). Ditadura
militar na Bahia: histórias de autoritarismo, conciliação e resistência. Salvador: EDUFBA, 2014. p. 151-181. 26
Ibid., p. 152. 27
Ibid., p. 155. 28
Ibid., p. 157. 29
PESSOTI, 2014, p.157.
23
Mas, foi apenas nos idos de 1959, no governo de Juracy Magalhães (1959-1963), que
se criou o primeiro plano estadual de desenvolvimento, o “Plano de Desenvolvimento da
Bahia” (Planeb) 30
. Segundo Pessoti, o plano não foi implementado inteiramente por não ter
sido aprovado pela Assembleia Legislativa. Mesmo com alguns pontos não desenvolvidos,
foram executadas ações nos setores agrícola, industrial e comercial. O Estado da Bahia
participou ativamente em tais projetos, tanto como investidor direto, como na condição de
financiador. A proposta que foi implementada com destaque estava relacionada “à instalação
da grande indústria de bens intermediários, representada pela química/petroquímica e por
algumas unidades siderúrgicas e metalúrgicas.31
Na Bahia, no final da década de 1950, as indústrias chamadas tradicionais (têxtil,
fumo, bebidas, produtos alimentares, couros e peles) já estavam começando a perder espaço
para as ditas dinâmicas (química, metalurgia, produção de minérios não metálicos, mecânica,
material elétrico e de comunicação e outras).32
Em 1959, final do governo de JK, foi criada a
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) com o intuito de impulsionar
e organizar o desenvolvimento econômico capitalista da região. O governo, por meio de
incentivos fiscais, procurava descentralizar a indústria no país.33
Para Francisco de Oliveira, a SUDENE foi a “tentativa de superação do conflito de
classes inter-regional e de uma expansão, pelo poder de coerção do Estado, do capitalismo do
centro-sul.” 34
Para o autor, a economia do nordeste não se reproduzia nos termos do modo de
reprodução do capital do Centro-Sul sob direção do estado de São Paulo, que se tornou o
modelo hegemônico a partir de 1930. A preocupação para que a economia do nordeste se
enquadrasse ao modelo predominante se deveu muito aos conflitos de classe na “região” 35
,
envolvendo trabalhadores urbanos e rurais e a classe dominante local, a burguesia industrial e
30
“O GTDN apostava em uma tentativa de repetição no Nordeste do padrão de desenvolvimento capitalista do
Sudeste, enquanto o Plandeb vislumbrava um modelo integracionista ao processo de desenvolvimento do
Sudeste como forma de alcançá-lo de maneira autossustentável na Bahia. Assim como o Plandeb, que não
conseguiu prosperar, a estratégia do GTDN também fracassou, principalmente pelo fato de estar despegada do
cenário dinâmico da economia brasileira na época.” PESSOTI, 2014,, p.158. 31
Ibid., p.158. 32
Ibid., p.160. 33
Ibid., p.161. 34
OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste. Planejamento e conflito de
classes. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. (versão digitalizada: Argo).p.116. 35
O conceito de região usado pelo autor se articula com o econômico e o político, para ele, o que constitui as
regiões se relaciona com o modo de produção capitalista baseado “na especificidade da reprodução do capital,
nas formas que o processo de acumulação assume, na estrutura de classe peculiar a essas formas e, portanto,
também nas formas da luta de classes e do conflito social em escala mais geral.” Dessa forma, as “regiões”
tendem a deixar de existir em razão da homogeneização da reprodução do capital concentrado e centralizado.
Nesse sentido, para o autor, já não é possível falar sobre uma “região” nordeste nesses termos, já que ela passou
pelo processo de hegemonização burguesa do centro-sul, expansão do capitalismo monopolista no país.
OLIVEIRA, 1981, p.27.
24
oligarquia latifundiária. A força que ganhava o movimento popular, entre eles as Ligas
Camponesas, apresentava perigo ao próprio capitalismo enquanto sistema, por isso a
importância de se expandir o capitalismo do centro-sul para o nordeste e completar a
hegemonia burguesa internacional-associada no país.36
Segundo Pessoti, o processo de industrialização baiana iniciado na década de 1950 só
se firmou nos anos de 1970.37
De acordo com Guimarães, a partir de 1950 a industrialização,
na Bahia, foi pensada no sentido de estimular uma indústria que se dirigisse para o mercado
regional e nacional, que aproveitasse os recursos naturais da região e a grande quantidade de
mão de obra sem qualificação e, simultaneamente, incentivasse “a imigração dos fatores
escassos – capital, técnica e experiência empresarial.” 38
Todos esses fatores elencados por Guimarães podem ser observados quando
analisamos o processo de instalação e desenvolvimento da indústria mineradora em Boquira
que aproveitou os recursos naturais da região, bem como a abundância de mão de obra sem
qualificação, e a ida de capital nacional e internacional para a região.
Segundo Maria de Azevedo Brandão, foi a partir das décadas de 1960 e 1970 que
houve uma expansão industrial na região nordeste, quando a política governamental buscou
descentralizar o capital do Centro-Sul. Como consequência, na Bahia foram realizados muitos
investimentos, materializados na instalação de várias indústrias, principalmente nos setores
químicos.39
Para Guimarães, foi somente depois do golpe civil militar de 1964 que o
desenvolvimento capitalista se solidificou na Bahia. Esse processo, iniciado no pós-guerra,
não se consolidou antes, apesar de todas as tentativas realizadas por governadores baianos,
porque as diversas frações da classe dominante baiana não conseguiram se articular em torno
de um mesmo projeto e interesse. A fim de enfrentar o problema, o regime ditatorial
instaurado mediou as várias alianças entre diferentes frações burguesas, “sob a égide do
grande capital nacional e internacional que tinha realmente interesses especialmente mais
amplos, promovendo uma rápida expansão econômica nas várias regiões brasileiras.” 40
36
OLIVEIRA, 1981, p. 111-114. 37
PESSOTI, 2014, p.172. 38
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. A formação e a crise da hegemonia burguesa na Bahia (1930-
1964). Revisão em 2003. Dissertação (mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 1982. Disponível
em:<http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Formacao_e_crise_da_hegemonia_burguesa_na_Bahia.pdf>.
Acesso em: 1 mar. 2017. p. 69-70. 39
BRANDÃO, Maria de Azevedo. A regionalização da grande indústria do Brasil: Recife e Salvador na década
de 70. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 5, n. 4, p. 77-98, out./dez. 1985. Disponível em:
<http://www.rep.org.br/pdf/20-6.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2013. 40
GUIMARÃES, 2003, p. 144.
25
Em suma, pensando o contexto de forma ampla, percebemos que a Bahia, desde a
década de 1950, buscou desenvolver projetos para desenvolver suas indústrias. A preocupação
com o desenvolvimento industrial no estado baiano estava relacionada a um processo mais
amplo, marcado pelo investimento do governo federal que buscava promover a
industrialização do país. Portanto, o cenário estava propício para a instalação de uma
mineradora na cidade de Boquira, visto que a região possuía uma reserva de chumbo
relevante. Neste sentido Boquira transformou-se em palco da exploração econômica
industrial. Cabe-nos analisar quais foram as principais consequências para a região. Como os
sujeitos dos lugares onde estas indústrias se estabelecem vivenciavam as mudanças
ocasionadas pela instalação das empresas? Como os habitantes das regiões rurais se
submeteram ao trabalho na empresa e como o vivenciou? Como essas empresas atuaram no
lugar em que se instalavam? Considerando que Boquira era um povoado rural, a preocupação
é entender as mudanças ocorridas e a forma como a empresa influenciou as dinâmicas
econômica, política e social do lugar.
1.2. O processo de instalação da indústria mineira em Boquira
Como já foi observado, foi em 1956 que Juscelino Kubitschek, então presidente da
República, autorizou as atividades de mineração de chumbo no povoado de Boquira, pleno
sertão baiano 41
. Naquele momento, o discurso desenvolvimentista estava em alta no Brasil.
Entre os governantes, existia uma grande preocupação em garantir o crescimento industrial,
como parte de um processo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro.
Segundo Francisco de Oliveira, a grande participação do Estado no processo de
industrialização ocorreu após os anos 1930, e a emergência e extensão de suas funções
subsiste ao período Kubitschek.42
Também para Rui Mauro Marini é após 1930 quando
Getúlio Vargas toma o poder que a industrialização se consolida no país 43
. Neste sentido,
para Oliveira “o Estado opera continuamente transferindo recursos e ganhos para empresa
41
A categoria “sertão” historicamente possuiu diversos e diferentes significados, ainda hoje existem várias
formas de conceber o “sertão”. Não queremos adentrar nesse debate, aqui podemos entendê-lo enquanto uma
divisão espacial, como lembra Erivaldo Neves “como categoria analítica da divisão espacial, „sertão‟ exprime
condição de território interior de uma região ou unidade administrativa interna.” NEVES, Erivaldo Fagundes.
Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural. In: POLITEIA: His. e Soc., Vitória da Conquista, v.
3, n.1, p. 153-162, 2003.p.157. 42
OLIVEIRA, 1981, p.18-19. 43
MARINI, Rui Mauro. A dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil. 1971. Disponível em:
<https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:307AmQDYjjMJ:https://xa.yimg.com/kq/groups/150
33181/180792861/name/Dialetica%2Bdo%2Bdesenvolvimento%2Bcapitalista%2Bno%2BBrasil.pdf+&cd=1&h
l=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 20 nov. 2016.p.23.
26
industrial, fazendo dela o centro do sistema”.44
O autor coloca uma questão importante para
pensarmos as ações do Estado no setor industrial: “a quem serve tudo isso?” 45
E deixa claro
que essa participação serviu para a acumulação capitalista industrial e sua hegemonia nas
relações econômicas no país.
O governo via a industrialização como uma importante ferramenta para o “progresso”,
junto com a justificativa de que com ela a pobreza no Brasil iria diminuir. Neste sentido, a
ideia de uma mineradora que se instalava em um local no interior baiano, um povoado rural,
onde os sertanejos sobreviviam do trabalho na lavoura e criação de animais, sem muitos
recursos econômicos e sociais, corroborava com esse ideal de “progresso” e superação da
miséria e do atraso. A concepção de que a industrialização era a mola mestra do
desenvolvimento social fazia parte do pensamento das décadas de 1940 e 1950, defendida
pela CEPAL, por meio “da afirmação da industrialização como elemento aglutinador e
articulador do desenvolvimento, do progresso, da modernidade, da civilização e da
democracia política.” 46
A mineração, dentro deste projeto de “progresso”, era vista como um elemento do
desenvolvimento, e qualquer perspectiva de oposição a essa ideia se fragilizava diante do que
a industrialização poderia representar para o país. Desse modo, secundarizava-se questões
relacionadas aos impactos ambientais, às mudanças no modo de viver dos agricultores locais
devido à expropriação dos terrenos, aos grandes riscos que trabalhadores mineiros
enfrentariam no interior das minas, entre outras.
No que diz respeito a mineração na cidade de Boquira, não se sabe exatamente quando
foi descoberto o minério de chumbo, mas existem informações sobre a descoberta do mineral
já em 1908 47
. No entanto, a memória coletiva dos habitantes de Boquira sugere que um padre
encontrou o chumbo na década de 1950. A narrativa aparece, por exemplo, no relato do
senhor Abelino Manoel, ex mineiro, que trabalhou nas atividades de extração mineral em
Boquira, de 1959 a 1973. Ao recordar a história do padre, diz:
Quando [o padre] Macário descobriu a mina foi na hora da procissão da
missa, gente caminhando pra fazer a procissão, ai as pedrinhas lumiando e
ele panhou, levou pro Rio de Janeiro pra poder examinar, lá era metal...
Quando começou a mina foi carregando ne jegue, carregando as pedras ne
44
OLIVEIRA, 1981, p.19. 45
Idem. 46
SANTOS, 2015, p. 66. 47
FERRAN, Axel Paul Noël de. A mineração e a flotação no Brasil: uma perspectiva histórica. [S. l.]: DNPM,
2007.p. 66.
27
jegue, até chegou os estrangeiros que começou a tocar a mina, a gente
trabalhava num cativeiro disgramado [...].48
No relato Abelino Manoel conta a história que é corrente na cidade. O minério de
chumbo teria sido encontrado pelo padre (que depois largou a batina) Macário Maia de
Freitas, de Macaúbas. Naquela época Boquira era um pequeno povoado rural com poucos
habitantes. O vigário teria sido o primeiro a inquirir quais propriedades possuíam o material,
depois começou a explorar o chumbo.
Abelino Manoel se recorda que nas primeiras explorações o minério era extraído e
carregado em lombos de animais. Depois a indústria foi montada com a participação das
empresas estrangeiras. Ao se referir ao trabalho que exerceu como um “cativeiro
disgramado”, o ex mineiro expressa o significado que construiu em sua memória sobre a sua
vivência na função de mineiro, do quanto foi difícil e insalubre. Nesse sentido, como destaca
Alcázar I Garrido, além de nos aproximar dos fatos, as fontes orais demonstram as impressões
e sentimentos das pessoas e grupos que o vivenciaram.49
Para além do relato oral, as fontes jornalísticas também trazem narrativas que atestam
que o minério foi descoberto pelo padre. Em matéria do jornal Opinião, de 24 de novembro
de 1975, apareceu a versão de Joaquim Angêlo, um dos proprietários dos terrenos que foram
usados para a mineração. Diz na matéria que os terrenos dos agricultores foram usurpados, e
essa ação teve início com o padre Macário Maia de Freitas. Segundo Ângelo:
Foi em 1954. Tinha uma velha daqui que estava doente para morrer. Me
pediram para chamar o padre Macário. Era a primeira vez que o infeliz
apiava por aqui. Preveni o Januário que preparasse as montarias e fui esperar
por ele no beco. A comadre Nenzinha preparou um café, ele lavou o rosto e
fomos. No morro do Pelado (atualmente uma das minas exploradas pela
Boquira), o homem parou que não pinicava o olho. Na volta, no Pelado,
tornou a encarrar a serra de novo. Lá é minha terra. Chama pelado porque
não tem mato, até hoje. No outro dia o padre celebrou a missa e voltou pra
Macaúba. Veio depois com Ari Sampaio, Antenor Alves da Silva e Joaquim
Oficial. Atravessou com o jipinho e não deu ousadia a ninguém. Pegaram as
pedrinhas, mandaram fazer análise. Deu fraco. Voltaram de novo. O finado
Virgílio, tio da mulher de Rosalvo, viu que era galena viva. Depois ele já
veio com um engenheiro, o doutor Ailton.50
48
SANTOS, Abelino Manoel dos, Abelino Manoel dos Santos: depoimento [nov. 2012]. Entrevistadora: Alcione
S. Conceição. Bahia: Boquira, 2012. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica. 49
ALCÁZAR I GARRIDO, Joan del. As fontes orais na pesquisa histórica: uma contribuição ao debate. Rev.
Bras. De Hist., São Paulo, v. 13, n. 25/26, p. 33-54, set./ago. 1992/1993.p. 39. 50
RUDÁ, Francisco. O feudo do truste Penarroya. Opinão. Rio de Janeiro, 28 nov. 1975.p.11. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=123307&pagfis=3678&url=http://memoria.bn
.br/docreader#>. Acesso em: 16 fev. 2017.
28
As duas narrativas, apesar de diferirem em alguns aspectos, afirmam que tudo
começou pelo interesse de Macário Maia de Freitas. Por outro lado, na fala de Joaquim
Angêlo, podemos notar que outros sujeitos foram até o local com Macário. Provavelmente ele
conseguiu com que outras pessoas se unissem a ele na empreitada de explorar o minério de
chumbo em Boquira. No texto do jornal, ao apresentar um técnico da exploração mineral indo
até Boquira, podemos ter indícios da intenção sistemática do religioso em extrair o chumbo
encontrado no sertão baiano. A história do padre também está presente no trabalho de Ferran.
Segundo o autor, Macário foi um dos primeiros a se tornar milionário por meio da exploração
das minas de Boquira51
. O religioso abandonou a batina para se tornar um empresário.
Em 1954, ainda no governo de Getúlio Vargas, foi autorizado, pelo decreto n° 35.915,
de 28 de julho de 1954, o funcionamento da Mineração Boquira Ltda. como empresa de
mineração.52
No documento não aparecia o nome dos respectivos donos ou sócios. O mais
provável é que tenha sido a empresa criada por Macário.
O Diário oficial do Estado de São Paulo, em 1957, fez referência ao grupo Cia.
Acumuladores Prest-O-Lite, pela publicação da ata de uma Assembleia Extraordinária
realizada pela empresa. Naquele mesmo ano, discutiram a deliberação do aumento do capital
social da empresa para investir na Mineração Boquira Ltda.. Na ata, constam informações
sobre a empresa Mineração Boquira Ltda.:
b) a sociedade está devidamente inscrita no DNIC sob n. 64.623, foi
autorizada a pesquisar minérios pelo Decreto n. 36. 795, de 20-1-1955, a
funcionar como empresa de mineração pelo Decreto n. 35.915 de 28-7-1954
e a lavrar minérios de chumbo e associados pelo Decreto n. 39.114, de 30-4-
1956, estando tudo em perfeita ordem e sem possibilidade de contestação
séria a referidos direitos. 53
Apesar da Mineração Boquira Ltda. ter sido criada em 1954, foi apenas em 1956 que
ela começou a lavrar o minério de fato. A autorização para a exploração do chumbo foi dada
pelo presidente da república, Juscelino Kubitschek, por meio do decreto nº 39.113, de 30 de
abril de 1956. O decreto autorizou a Mineração Boquira Ltda. a atuar nos “imóveis
denominados Fazendas Boquira e Tiros, distrito de Boquira, município de Macaúbas, Estado
51
Alex Paul Noël de Ferran, Engenheiro de Minas e geólogo. Foi funcionário da empresa Plumbum e estagiou
na Mineração Boquira na década 1960.FERRAN, 2007, p. 66. 52
RIO DE JANEIRO (Estado). Decreto n° 35.915, de 28 de julho de 1954. Lex: Coleção de Leis do Brasil,
[S.l.], v. 6, p. 204, 1954. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-35915-
28-julho-1954-338557-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 21 fev. 2017. 53
CIA. ACUMULADORES PREST-O-LITE. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 25 dez.
1957.p.44. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4564173/pg-44-poder-executivo-diario-oficial-
do-estado-de-sao-paulo-dosp-de-25-12-1957/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017.
29
da Bahia”.54
Na ata, se equivocaram ao escrever o último número do decreto de lavra de 1956,
mas se tratava da mesma determinação.
Ainda na ata, aparecia os nomes de sócios da Mineração Boquira Ltda.. Entre os
nomes estavam: Macário Maia de Freitas (comerciante de Macaúbas-Ba); Antenor Alves da
Silva (farmacêutico de Macaúbas); Antonio de Assis Fernandes Távora (comerciante do Rio
de Janeiro); Carlos Antônio Vignoli (comerciante do Rio de Janeiro); Felisberto Piás de Assis
Távora (comerciante do Rio de Janeiro); Carlos Nagele Filho (industriário do Rio de Janeiro);
Eunice de Assis Távora, (comerciante do Rio de Janeiro). Dentre os sócios, Macário e
Antenor da Silva eram os que possuíam o valor mais alto de capital investido na empresa,
cada um aplicou na empresa o montante de Cr$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de
cruzeiros).55
Na Assembleia Extraordinária, foi aprovado o aumento do capital Cia. Acumuladores
Prest-O-Lite em maquinarias, para investimento na Mineração Boquira Ltda.. O investimento
da Acumuladores Prest-O-Lite foi de Cr$ 36.000.000,00 (trinta e seis milhões de cruzeiros).
O equipamento era destinado “à instalação de uma usina de concentração e outra de
beneficiamento de minério de chumbo em Santo Amaro e Boquira, Estado da Bahia”.56
De acordo com Ferran, no início das atividades de mineração, Macário estabeleceu
negociações com várias empresas para atuar na extração do mineral. Associou-se a uma
empresa norte americana que operava em São Paulo, a Prest-O-Lite 57
. Pela análise da fonte
acima citada, podemos perceber que realmente a Acumuladores Prest-O-Lite participou da
sociedade Mineração Boquira Ltda.. E pela relação de associados que apareceu na ata ficava
visível que várias pessoas se interessaram pela atividade de mineração em Boquira, se
articulando em torno da Mineração Boquira Ltda.. Macário Maia de Freitas, somado à outros
sujeitos, fundaram a empresa.
Contudo, segundo Ferran, com a associação do grupo Prest-O-Lite, não foi possível
desenvolver a atividade da forma apropriada, por não possuírem a tecnologia adequada para
lidar com aquela atividade mineral. Foi então que a Plumbum58
, que já trabalhava com
54
RIO DE JANEIRO (Estado). Decreto n. 39.113, de 30 de Abril de 1956. Lex: Coleção de Leis do Brasil,
[S.l.], v. 4, p. 159, 1956. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-
39113-30-abril-1956-330080-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 2 ago. 2011. 55
CIA. ACUMULADORES PREST-O-LITE. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 25 dez.
1957.p.44. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4564173/pg-44-poder-executivo-diario-oficial-
do-estado-de-sao-paulo-dosp-de-25-12-1957/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017. 56
Ibidem, loc. cit. 57
FERRAN, 2007, p. 66. 58
A Plumbum era uma empresa nacional, cujo dono era um industrial português radicado no Brasil, Adriano
Seabra Fonseca.
30
chumbo no Brasil, na região do vale do Ribeira (entre São Paulo e Paraná), sugeriu uma
associação com as minas de Boquira. À época, a empresa estava associada a uma
multinacional francesa, Peñarroya, que era especializada em atividades de extração de
chumbo e zinco.59
A sede da Plumbum se localizava em Bocaiuva do sul no Paraná.60
A Plumbum realizava serviços para a empresa Minérios Ferros e Metais Ltda., esta
última com sede em Salvador, capital da Bahia. O fato pode ser atestado pela escritura pública
de locação de serviço e de compromisso, datada de 18 de outubro de 1957, em que as
empresas firmaram uma associação comercial.
Senhora e legitima possuidora dos direitos de preferência, de que trata o
parágrafo 1°, do artigo 153, da Constituição Federal, para a pesquisa e
aproveitamento industrial das reservas minerais existentes nas áreas de terras
pertencentes a José Queiroz Matos, que também se assina José Queiroz de
Matos e sua mulher Virgilina de Jesus Matos, Sérvulo José Soares, que
também se assina Sérvulo Soares dos Santos, Salvador Alves de Oliveira e
José Florêncio de Magalhães e sua mulher Maria Alexandrina Vieira,
brasileiros, agricultores, o primeiro e o último casados e o segundo e o
terceiro viúvos, residentes no imóvel denominado fazenda “Tiros”, no
distrito de Boquira, município de Macaúbas, Estado da Bahia, áreas essas
situadas no mesmo imóvel denominado “Fazenda Tiros”, por força das
cessões que, de tal direito, foram feitos a ela Primeira Contratante, pelos
mencionados proprietários, conforme escritura de cessão de direitos de 26 de
janeiro de 1957, para o primeiro, e 23 de abril de 1957, para os três últimos
[...]. 61
A empresa Minérios Ferros e Metais Ltda. contratava os serviços da Plumbum S/A
para o trabalho de pesquisa mineral em Boquira. Após a realização e aprovação dos serviços
pelo Departamento Nacional da Produção Mineral, “a primeira Contratante se obriga, por
compromisso irretratável que assume desde já, a constituir com ela Segunda Contratante, uma
sociedade por ações para exploração industrial das reservas minerais”, isso se a Plumbum (a
segunda contratante) desejasse realizar o empreendimento.62
Caso a sociedade se venha a constituir o seu capital social será estabelecido
pela Segunda Contratante, a qual, para tanto, terá em vista proporcionar aos
trabalhos de exploração a melhor escala técnica e economicamente
aconselhável; o referido capital será distribuído na proporção de setenta por
cento (70%) para a Segunda Contratante e trinta por cento (30%) para a
59
FERRAN, 2007, p. 68. 60
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Arquivo do Judiciário, Escrituras, Cartório 320, Caixa 417, n°
3003, fls. 46 – 46v. 61
Idem. 62
Ibid., p. fl. 47.
31
Primeira Contratante, proporções essas que serão sempre respeitadas e
mantidas nas eventuais e futuras variações de capital. [...]. 63
Pelo que aponta a fonte, a Plumbum iniciou as atividades em Boquira não em
associação com a Mineração Boquira Ltda., mas com outra empresa cuja sede localizava-se
na capital baiana. Fica visível que a Plumbum possuía as técnicas necessárias para o
desenvolvimento da pesquisa e um capital superior a Minérios Ferros e Metais Ltda.. A
Plumbum se associou a esta empresa porque ela possuía os direitos de lavras dos referidos
terrenos. A Minérios Ferros e Metais Ltda. conseguiu, mediante negociação com os donos das
terras na localidade de Tiros, o direito para pesquisa e futura exploração. Como a Plumbum
permaneceu na atividade, tudo indica que a associação entre essas duas empresas foi bem
sucedida.
A Plumbum, após iniciar as atividades em Boquira, acabou associando-se a Mineração
Boquira Ltda. Segundo Ferran, após a associação a empresa foi repartida entre os norte-
americanos da Prest-o-lite, os portugueses (da Plumbum), e os franceses 64
. Em 1959 foi
concluída a instalação da indústria mineradora em Boquira.65
Tempos depois, segundo Ferran,
a Peñarroya comprou a parte dos sócios.Vendeu a indústria somente em 1986 ao grupo
gaúcho Luxma66
. Ferran não diz quando exatamente a Peñarroya comprou a parte dos
associados. Na ata de uma assembleia extraordinária da Mineração Boquira S/A de 1970,
ainda aparece os nomes de Macário Maia de Freitas e Cia. Acumuladoes Prest-O-Lite,
também da Minérios Ferros e Metais, além de outros nomes e empresas que não estavam na
relação de associados a mineradora na ata de 1956 que citamos acima67
.
A mineradora mudou a razão social. Em fontes de 1963 já não aparece Sociedade
Limitada (Ltda.), passando a se chamar Sociedade Anônima (S/A). Não sabemos precisar
quando a razão social foi modificada. Em relação aos acionistas, é provável que outras
empresas participassem com algumas ações, porém, o acionista principal passou a ser o grupo
Peñarroya. Portanto, a indústria mineira foi constituída tanto de capital internacional quanto
nacional, sendo o primeiro os detentores da maior parte. Este elemento está de acordo com o
que aponta Sposito e Santos, que a partir do governo de JK a empresa nacional não será mais
63
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Arquivo do Judiciário, Escrituras, Cartório 320, Caixa 417, n°
3003, fl. 47 v. 64
FERRAN, 2007, p.68. 65
SANTOS, Aroldo Rodrigues dos. Memórias: de Macacos a Boquira. Boquira: CostaGraf, 2007. 66
FERRAN, op. cit., p.70. 67
MINERAÇÃO BOQUIRA S/A. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 29 ago. 1970.p.20.
Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4927218/pg-20-ineditoriais-diario-oficial-do-estado-de-
sao-paulo-dosp-de-29-08-1970/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017.
32
a líder do crescimento industrial, a empresa multinacional passa a cumprir esse papel, e “se
torna a principal responsável pela dinâmica de acumulação industrial, enquanto aquela opta,
em alguns casos, por ser sócio menor, isto é, pela associação com o capital estrangeiro.” 68
Em Santo Amaro da Purificação-Ba, foi instalada uma metalúrgica, a Companhia
Brasileira de Chumbo (COBRAC). O chumbo saía de Boquira para ser beneficiado em Santo
Amaro. O jornal Correio da Manhã, em publicação de 12 de abril de 1959 nos informa sobre
a construção da metalúrgica. De acordo com o periódico:
Acha-se em fase de acabamento a construção de uma usina de redução e
refino de chumbo de Santo Amaro, no Estado da Bahia. O acontecimento se
reveste de grande importância, em virtude da pequena produção dêsse metal
entre nós. A usina é de propriedade da Companhia de Acumuladores Prest-
O-Lite e administrada pela Plumbum S/A. Deverá entrar em operação em
princípios do corrente mês, tratando os minérios de chumbo da mina de
Boquira, da Mineração Boquira Ltda., também administrada pela Plumbum e
localizada na vizinha cidade de Macaúbas.69
A notícia nos informa que em 1959 a Plumbum já estava associada a Mineração
Boquira Ltda., junto com a Ativadores Prest-O-Lite. A Plumbum administrava a indústria. O
jornal justifica a relevância da instalação da metalúrgica pela inexistência, até então, de uma
produção expressiva do mineral no país. Foi a partir de 1960, momento em que já se
encontrava terminadas as instalações em Santo Amaro, que a indústria se desenvolveu
efetivamente.
Destacamos que, naquele contexto, a cidade de Boquira chegou a ser considerada uma
das maiores reservas de chumbo do Brasil. Em 15 de dezembro de 1965 o jornal O Estado de
São Paulo enfatizou que Boquira se constituía na “maior reserva de minério de chumbo de
nosso país.” 70
Se Boquira era a cidade com a maior concentração do minério, cabe-nos
questionar porque a metalúrgica foi instalada em Santo Amaro, não em Boquira. Para dialogar
com o problema, a matéria supracitada nos oferece algumas pistas. Segundo o texto:
Apesar de nossa maior reserva do chumbo estar localizada no município de
Boquira, a 500km de Salvador – Bahia, distante 2.000 km dos principais
centros consumidores – Rio e São Paulo, a COBRAC – Companhia
68
SPOSITO e SANTOS, 2012, p.157. 69
USINA PARA REDUÇÃO E REFINO DE CHUMBO NO ESTADO DA BAHIA. Correio da Manhã. Rio de
Janeiro, 12 abr. 1959.p.3. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_06&pesq=Minera%C3%A7%C3%A3o%20Bo
quira%20S/A&pasta=ano%20195>. Acesso em: 19 fev. 2017. 70
EM BOQUIRA, BAHIA, A MAIOR RESERVA DE CHUMBO DE NOSSO PAÍS. O Estado de São Paulo.
São Paulo, 15 dez. 1965.p.19. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19651215-27810-nac-
0019-999-19-not/busca/Boquira>. Acesso em: 23abr. 2016.
33
Brasileira de Chumbo, produz chumbo a custo e qualidade que permite
competir com vantagens com o importado das origens as mais diversas.
Outrossim, as dificuldades de outra natureza enfrentadas pela Cobrac, são
ainda de maior monta. De fato, a Cobrac mantém no local da jazida do
minério, em pleno sertão baiano [...], apenas as instalações de concentração
do chumbo dada a falta total de recursos da região. Por sua vez, a
metalização do produto primário situa-se em Santo Amaro, já que esta
região, possui água e energia elétrica suficientes. Mesmo assim, a Cobrac
tem de adquirir o coque e o calcário necessários à metalurgia, em outros
centros, o que agrava ainda mais o custo do chumbo produzido pela
emprêsa.71
Seguindo as linhas acima, a indústria também aumentava os custos da produção com o
gasto em transportes para o deslocamento do minério. Por todas as dificuldades elencadas, e
ainda assim o chumbo extraído em Boquira ser bem competido no mercado, é possível supor
que o empreendimento de fato era bem vantajoso.
Na década de 1960, o jornal O Estado de São Paulo publicou matérias que versavam
sobre a extensão da produção do minério de chumbo no país. Em texto publicado em 26 de
janeiro de 1966 o periódico informou:
O RESULTADO do trabalho pioneiro da Plumbum S/A, fundada por
Adriano Seabra Fonseca, se traduz perfeitamente em sua capacidade nominal
de produção de chumbo da mais alta pureza. Assim, seu volume de
fabricação somado ao da Cobrac, sua associada, representa o consumo
interno do país bem como para suprir boa parte do mercado internacional.72
Observamos que a produção do minério supria o consumo interno, e ainda o
exportava. No ano anterior, em 24 de novembro de 1965, no mesmo jornal, lia-se “o Brasil já
é auto-suficiente em chumbo primário de 99, 98% de pureza”.73
Mais uma vez citava a
Plumbum e a Cobrac como principais produtoras.
Se na década de 1960 houve uma produção expressiva do minério, na década seguinte
observamos um decréscimo significativo. A partir de então, o chumbo não conseguia mais
prover a demanda interna, provavelmente em função do avanço do setor industrial que
71
EM BOQUIRA, BAHIA, A MAIOR RESERVA DE CHUMBO DE NOSSO PAÍS. O Estado de São Paulo.
São Paulo, 15 dez. 1965.p.19. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19651215-27810-nac-
0019-999-19-not/busca/Boquira>. Acesso em: 23abr. 2016. 72
DISTÂNCIA, UM DOS FATORES QUE ONERAM O CUSTO DO CHUMBO NACIONAL. O Estado de
São Paulo. São Paulo, 26 jan. 1966.p.17. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19660126-
27844-nac-0017-999-17-not/busca/Cobrac>. Acesso em: 28 abr. 2016. 73
O BRASIL JÁ É AUTO-SUFICIENTE EM CHUMBO PRIMÁRIO DE 99, 98% DE PUREZA. O Estado de
São Paulo. São Paulo, 24 nov. 1965.p.21. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19651124-
27792-nac-0021-999-21-not/busca/Cobrac>. Acesso em: 28 abr. 2016.
34
ocorreu no país. Em outras palavras, mais indústrias significava maior consumo do material,
aumentando-se, portanto, a demanda.
Em 18 de julho de 1970, ocorreu a Assembleia Geral Extraordinária dos acionistas da
Cia. Brasileira de Chumbo (COBRAC), realizada em Boquira. A ata do evento foi publicada
no Diário Oficial Estado de São Paulo. A assembleia teve por finalidade discutir a
autorização de um empréstimo que seria feito com o Banco de Desenvolvimento do Estado da
Bahia S/A. Na reunião já possuíam um parecer do respectivo banco concordando em conceder
o empréstimo, que seria usado para as “novas instalações da usina de Santo Amaro” no valor
de Cr$ 2.100.000,00 (dois milhões e cem mil cruzeiros). Os acionistas aprovaram o
empréstimo.74
Notamos que a indústria mineradora estava interessada em melhorar a
produção, ao ponto de tomar empréstimos para investir na metalúrgica. Neste sentido,
podemos sugerir que o cenário era muito favorável à comercialização do chumbo.
Em 1975 ocorreu, em Brasília, o I Simpósio Nacional de não Ferrosos. No evento,
Ueki Shigeaki, Ministro das Minas e Energias, refletiu sobre a situação desses metais no país
naquele momento, bem como sobre as perspectivas da mineração. O chumbo se encontrava
entre os minerais não ferrosos, ou seja, um mineral metálico que não possuí ferro em sua
composição. O ministro falou sobre o rápido desenvolvimento industrial do país que acarretou
na elevação da taxa anual de crescimento do consumo dos não ferrosos. Destacou que, entre
1967 e 1972, a taxa média de aumento do consumo „per capita‟ do metal colocou o Brasil em
posição de relevo em relação aos valores mais altos desta taxa, se comparado com outros
países desenvolvidos ou em desenvolvimento. A exposição do ministro evidencia que o setor
ocupava um lugar estratégico para o desenvolvimento industrial do país. Consequentemente
houve a preocupação em adotar medidas executivas por parte do governo, com o objetivo de
alterar o quadro da insuficiência de chumbo para o mercado interno, “tendo como meta
principal o pleno atendimento do mercado interno e a exportação dos excedentes de alguns
desses metais.” 75
A grande preocupação no contexto era conseguir dar conta da demanda interna. No
caso do chumbo, naquele momento, somente três jazidas estavam sendo aproveitadas
economicamente, quais sejam, Boquira na Bahia; Adrianópolis, no Vale do Ribeira (Panelas),
no Paraná; e no Município de Paracatu em Minas Gerais. Boquira e Adrianópolis eram os
74
CIA. BRASILEIRA DE CHUMBO „COBRAC‟. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 3 out.
1970.p.56. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/diarios/5018492/pg-56-ineditoriais-diario-oficial-do-
estado-de-sao-paulo-dosp-de-03-10-1970/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017. 75
UEKI CONDICIONA APOIO ÀS MULTINACIONAIS. O Estado de São Paulo. São Paulo, 13 ago.
1975.p.25.Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19750813-30792-nac-0025-999-25-
not/busca/Boquira>. Acesso em: 22 abr. 2016.
35
locais que mais produziam. Da primeira advinha cerca de 80% da produção nacional, tanto de
minério como de concentrado. De 1965 e 1974 a produção nacional foi de 187 mil toneladas
de chumbo metálico. E o consumo interno, nesse mesmo período, foi de 323 mil toneladas.
Neste sentido, a necessidade de importação tornou-se uma realidade, embora as importações
apresentassem um pequeno valor relativo para “cobrir o „déficit‟ de nossa produção de
chumbo. Desse modo, apesar da necessidade de importação, esse item não representou um
dos mais críticos da balança comercial.” 76
Das minas de Boquira não se extraía apenas chumbo, extraindo-se também o minério
de zinco. Nesse período, as jazidas de zinco de grande importância se situavam na Bahia e em
Minas Gerais. No entanto, a produção era insuficiente para a demanda do país. Em Boquira,
na época, se retirava “243 mil toneladas com teor médio de 2,6% ZN”.77
Diante da realidade exposta, os participantes do I Simpósio Nacional de não Ferrosos,
evento mencionado linhas acima, reforçaram a necessidade de pensar alternativas para
aumentar a exploração dos metais não ferrosos, com a cooperação e incentivo do governo,
considerando a relevância dos minerais para o desenvolvimento da indústria no Brasil.78
A importância dos minérios supracitados, especialmente o chumbo, para as indústrias,
nos leva a refletir sobre os impactos da instalação de uma mineradora em um determinado
local, principalmente em se tratando de cidades do interior, cuja dinâmica se afasta da lógica
industrializante das grandes capitais.
Ao estudar as relações entre trabalhadores e uma mineradora instalada em Jacobina-
Ba, Sara Farias observou como as atividades mineiras se apresentaram associadas ao discurso
de impulsão do crescimento socioeconômico do lugar. A autora argumentou que nas histórias
narradas pelos moradores, a implantação da mineradora trazia a esperança de crescimento
econômico por meio da geração de emprego, renda e desenvolvimento do comércio.79
Em Boquira, as expectativas não foram diferentes. O relato de Abelino Manoel80
é
significativo neste sentido. Ele saiu do município de Seabra na Bahia, de um lugar
denominado Anjical, e foi para Boquira em 1958 com o objetivo de conseguir um emprego na
indústria. Conta o que se ouvia na época sobre a mineradora em Boquira:
76
UEKI CONDICIONA APOIO ÀS MULTINACIONAIS. O Estado de São Paulo. São Paulo, 13 ago.
1975.p.25.Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19750813-30792-nac-0025-999-25-
not/busca/Boquira>. Acesso em: 22 abr. 2016. 77
Ibidem, loc. cit. 78
Ibidem, loc. cit. 79
FARIAS, Sara Oliveira. Enredos e tramas nas minas de ouro de Jacobina. 2008. Tese (doutorado em
História). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. p. 13-55. 80
SANTOS, 2012.
36
O que ouvia falar, é que o povo dizia que diz que aqui gente rastava dinheiro
com o rastelo. Diz que rastava dinheiro com o rastelo... que naquele tempo
esses empreguinho era uma famona danada, quando eu cheguei aqui o
camarada tinha era que suar, ariscando a vida pra poder ganhar o dinheiro...
Nesse relato podemos perceber a maneira como se noticiava a presença de uma
empresa em um espaço sertanejo, um local onde existia abundância. Um emprego na indústria
era visto como uma grande oportunidade de ganhar muito dinheiro. No entanto, a partir da
narrativa, percebemos que a realidade frustrou as expectativas de parte daqueles que vendiam
a sua força de trabalho.
Como acontece nos trabalhos em indústrias, os que possuíam maior escolaridade
conseguiam um emprego especializado e melhores cargos, enquanto os menos escolarizados
geralmente exerciam a função mais perigosa da empresa, o trabalho no interior das minas
(nesse caso homens). As melhores funções ficaram predominantemente para pessoas vindas
de fora e não para os sujeitos do lugar. Sobre isso trata a geógrafa Iracema Oliveira:
A população local, desta forma, começou a ser absorvida ou utilizada como
a força de trabalho nessa nova dinâmica provocada pela Mineração Boquira-
S/A. As vagas de empregos surgiram e os cargos mais inferiores foram
ocupados pelos boquirenses, por terem pouca ou nenhuma formação, não
fornecendo desta forma, mão-de-obra qualificada.
Os cargos intermediários foram destinados à população do Município de
Macaúbas [...].
Por fim, os melhores cargos foram preenchidos por pessoas que vieram de
Salvador e de outras capitais brasileiras; os cargos de gerência ficaram com
os respectivos donos [...].81
Os habitantes de Boquira e região exerceram os cargos que não exigia qualificação
profissional. Isso se deveu muito a falta de escolaridade dos trabalhadores e a origem rural da
maioria, que como argumenta Paulo Fontes eram características de parte da população do país
naquele período, principalmente das regiões nordestinas. Assevera Fontes, que na geração de
migrantes do pós-guerra, eram muito baixos os índices de educação formal e ainda bem raro
possuírem experiência industrial. A taxa de analfabetismo era bem grande, principalmente
entre os migrantes nordestinos, resultado da fragilidade do sistema educacional do Brasil.82
1.2.1. A Peñarroya Francesa
81
OLIVEIRA, 2011, p. 27. 82
FONTES, Paulo Roberto Ribeiro. Comunidade operária, migração nordestina e lutas sociais: São Miguel
Paulista (1945 – 1966). 2002. Tese (doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 2002.p.79.
37
Em Boquira, a multinacional francesa Peñarroya desempenhou um papel importante
no desenvolvimento da indústria mineradora. A empresa surgiu em 1881 na França, nomeada
Société Minière et Metallurgique Peñarroya, a SMMP. As primeiras instalações de fábricas e
minas ocorreu na Espanha, explorando especialmente o chumbo e o carvão. Mas, ao longo de
suas atividades, também explorou outros minerais como zinco, prata, cobre etc., em diversos
países do mundo. Também participou de outros ramos industriais como a metalurgia,
indústria química, produção de eletricidade e ferrovias. Inclusive o nome Peñarroya faz
referência ao nome de uma localidade espanhola onde a indústria exerceu atividades de
mineração. Participaram de sua fundação vários sócios, a principal acionista em sua criação
foi a família de banqueiros franceses, os Rothschild.83
O nascimento em 1881 do que se tornaria o empório de chumbo Peñarroya
foi o resultado da combinação de certas manobras estratégicas de vários
grupos comerciais, bancários e ferroviários que se reuniram no ambiente de
origem da empresa, no norte da província de Córdoba. [tradução nossa]. 84
Essa indústria se desenvolveu mediante fusões com outras empresas e pelo
estabelecimento de filiais. Tornou-se, assim, uma gigante mineira. Expandiu para os
continentes da África, Ásia e América. Na década de 1930, tinha participação em mais de 30
sociedades, possuindo um grande patrimônio industrial, dividido em quatro continentes. E,
“sem dúvidas, a Espanha já não era, nem voltaria a ser o baluarte desta empresa madura,
convertida em uma autêntica corporação multinacional [tradução nossa].” 85
De acordo com López-Morell, o êxito da indústria pode ser explicado tanto pelo
financiamento dos banqueiros, quanto pelo desenvolvimento técnico. No que se refere ao
primeiro aspecto, a junção entre banco e indústria foi o elemento chave para que ela
conseguisse crescer. Esse fator a distinguia de outras empresas espanholas e estrangeiras do
mesmo ramo. Para o autor isso ocorreu por conta da relação que a empresa conservou com
três casas bancárias que interviram em sua fundação, os Mirabaud-Puerari, Cahen d‟Anvers,
e, sobretudo os Rothschild.86
Estas entidades resolveram o financiamento de curto prazo da sociedade com
uma linha de crédito compartilhada, fundamental para custear os custos
prévios da comercialização de seus produtos. No entanto, sua autêntica
83
LÓPEZ-MORELL, Miguel A. Peñarroya: un modelo expansivo de corporación minero-industrial, 1881-1936.
In: Revista de História Industrial, n. 23, p. 95-135, 2003. Disponível em:<http://www.um.es/mlmorell/63522-
86977-1-PB.pdf>. Acesso em: 09 abr. 2016. 84
Ibid., p.96. 85
Ibid., p. 120. 86
LÓPEZ-MORELL, 2003, p. 121-128.
38
contribuição estaria em sua participação nas diferentes ampliações de
capital, com as que a companhia pode financiar confortavelmente seu
processo contínuo de crescimento. [tradução nossa].87
No que diz respeito ao desenvolvimento técnico, percebemos que a indústria se
preocupou em realizar todas as possibilidades técnicas e produtivas necessárias para seu
crescimento. “Esta obsessão tecnológica corria paralela a seu interesse por alcançar a máxima
integração no conjunto de seus processos produtivos e de distribuição”. 88
A Peñarroya
conseguiu “alcançar um nível de desenvolvimento que, por sua intensidade e magnitude, se
converte em um caso inédito na história empresarial espanhola anterior a Guerra Civil.” 89
Entre os países latino americanos em que a Peñarroya atuou estão: Chile, Brasil, Peru
e Argentina.90
No decreto de 29 de julho de 1954, n° 35. 930, Getúlio Vargas autorizou
atuação da Peñarroya no Brasil 91
. A Peñarroya iniciou suas atividades em associação com a
Plumbum que, como mencionado, atuava na região de Panelas no Paraná.92
A implantação da Peñarroya começa em 1950, com a criação de uma
empresa comercial para vender o chumbo francês. A empresa Plumbum,
com sua mina de Panelas, apela para a empresa Peñarroya, que constrói (às
suas expensas, em troca de 50 % das ações) uma lavanderia. A direção
técnica é dada a Peñarroya.93
Após a associação com a Plumbum as empresas começaram a explorar o minério de
chumbo em Boquira. Entendemos que o cenário nacional e internacional desse período
permitiu que se implementasse uma indústria mineira no interior da Bahia. Quando tratamos
da multinacional Peñarroya, percebemos que sua inserção no Brasil contribuiu para a
promoção do avanço do capitalismo brasileiro. Para Rui Mauro Marini, após a segunda guerra
mundial uma nova situação se apresentou à economia internacional capitalista. A partir da
década de 1950 o sistema capitalista superou a crise ao qual estava inserido desde 1910, sendo
“reorganizada sob a égide estadunidense”.94
A concentração de capital em escala mundial,
colocou em posse de grandes corporações imperialistas volumosos recursos, que precisavam
procurar aplicação no exterior. O “fluxo de capital para a periferia se oriento[u] de forma
87
LÓPEZ-MORELL, 2003, p. 121. 88
Ibid., p. 128. 89
Ibid., p. 128. 90
TROLY, Gilbert. La Société Minière et Métallurgique de Peñarroya. In: Réalités Industrielles, p. 27-34, ago.
2008. Disponível em:< http://www.annales.org/ri/2008/ri-aout-2008/Troly.pdf>. Acesso em: 5 jan. 2017. 91
RIO DE JANEIRO (Estado). Decreto n° 35.930, de 29 de julho de 1954. Lex: Coleção de Leis do Brasil,
[S.l.], v. 6, p. 213, 1954. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-
35930-29-julho-1954-338605-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 24 fev. 2017. 92
TROLY, op.cit., p.31. 93
Ibid., p. 31. 94
MARNINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. 1973. Disponível em:
<http://docslide.com.br/documents/dialetica-da-dependenciapdf.html>. Acesso em: 21 nov. 2016. p. 23.
39
preferencial para o setor industrial.” 95
Sposito e Santos também analisa esse fenômeno,
argumentam que desde 1950, após um extenso processo de concentração e centralização de
capital ocorrido nos Estados Unidos e em seguida na Europa “os grupos e as empresas
realizaram investimentos cruzados na tríade e estabeleceram alianças juntos aos Estados
periféricos que estavam promovendo a industrialização.” 96
A Peñarroya chegou ao Brasil trazendo os aparatos tecnológicos que possibilitavam
melhorar as atividades mineiras. Em 1975, Ueki, Ministro das Minas e Energia, falou da
forma como acorria as instalações de multinacionais mineiras no país. Para o ministro, as
empresas receberiam incentivos do governo, se cumprissem as leis brasileiras:
As multinacionais, disse o ministro Ueki, buscam financiamentos e insumos
onde eles sejam mais baratos. Transferem o lucro para onde o Imposto de
Renda for mais baixo. Procuram instalar-se onde a mão de obra custe menos.
Finalmente, vendem seus produtos onde consigam os preços mais elevados.
Com essa sistemática, “é evidente que podem lucrar muito”.97
Os capitais estrangeiros eram investidos no país no sentido de aqui procurarem vários
meios para que seus lucros fossem expressivos. No Brasil, que buscava se industrializar, o
capital internacional, mais especificamente das multinacionais extrativistas, encontrava o
cenário perfeito para investimentos, favorecendo os industriários. Não por acaso, foi instalada
uma mineradora na cidade de Boquira, promovendo mudanças substanciais na dinâmica local.
No próximo tópico analisaremos como a região passou por essas transformações.
1.3. Boquira e a mineração: as mudanças e as memórias.
Boquira, antes da instalação da indústria mineradora, era um pequeno povoado rural e
pertencia a cidade de Macaúbas, Bahia. De acordo com a Enciclopédia dos Municípios
Brasileiros, obra organizada pelo IBGE, Macaúbas tornou-se cidade em 1925. Nas divisões
territoriais de 1936 e 1937, Boquira, na época denominada Assunção, passou a ser distrito de
Macaúbas.98
O município estava incluído no Polígono das Secas99
, segundo recenseamento de
95
MARNINI, 1973, p. 23. 96
SPOSITO e SANTOS, 2002.p.29. 97
UEKI CONDICIONA APOIO ÀS MULTINACIONAIS. O Estado de São Paulo. São Paulo, 13 ago.
1975.p.25. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19750813-30792-nac-0025-999-25-
not/busca/Boquira>. Acesso em: 22 abr. 2016. 98
MACAÚBAS- BA. In: Ferreira, Jurandyr Pires. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, IBGE. Rio de
Janeiro: Lucas, DF, 1958. p.17.
40
1950 possuía uma população estimada em 37.481 habitantes, destes 89% viviam na zona
rural, na zona urbana de Macaúbas tinha 1.549 habitantes.100
Boquira segundo esse mesmo
recenseamento possuía 615 habitantes.101
Ainda segundo a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, as principais atividades
realizadas pelos moradores de Macaúbas eram a agricultura, pecuária e avicultura. No
entanto, no momento em que foi realizado o trabalho pelo IBGE publicado em 1958, a
extração mineral já era a principal atividade econômica da cidade, já que Boquira ainda
pertencia ao município. Entre os outros produtos se destacava a feitura da rapadura e farinha
de mandioca, a plantação do feijão, milho, cana de açúcar e mandioca. Na pecuária a criação
de caprinos estimados em 90.000 cabeças, bovinos 40.000, ovinos 37.000, e em menor
quantidade eram criados suínos, equinos, asininos, muares. Quanto ao comércio possuía 75
casas comerciais varejistas e não existia agencias bancárias, entre os produtos importados
tinham tecidos, ferragens, artigos de armarinhos, perfumarias, calçados, possuía também
gêneros secos e molhados do comércio de retalhos. Em 1956 havia onze estabelecimentos do
ensino primário fundamental comum e 903 alunos matriculados, sendo nove mantidos pelo
Estado e dois pelo município. Nesse período não havia hospital, apenas um médico exercia o
oficio na cidade.102
Pelas informações fornecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) sobre o município de Macaúbas durante a década de 1950, podemos ter alguns
indicativos sobre como se organizava a cidade em termos de atividades produtivas e
comerciais, e qual era o tamanho da população. Podemos argumentar que Macaúbas antes das
atividades mineiras em Boquira, era uma pequena cidade do interior, e se mantinha
predominantemente com a produção rural. Como no período da pesquisa feita pelo IBGE as
atividades mineiras em Boquira já existiam, é possível sugerir que houve um aumento das
casas comerciais em Macaúbas por conta da mineração, os estabelecimentos de comércio
podiam ser de menor número antes da exploração do minério. Boquira nessa época era uma
área rural da cidade de Macaúbas, possuindo no recenseamento de 1950, 615 habitantes, antes
das atividades mineiras as pessoas do lugar sobreviviam do trabalho na lavoura e da criação
de animais. De acordo com a geógrafa Iracema Oliveira:
99
“A Lei 175/36 (revisada em 1951 pela Lei 1.348) reconheceu o Polígono das Secas como a área do Nordeste
brasileiro composta de diferentes zonas geográficas com distintos índices de aridez e sujeita a repetidas crises de
prolongamento das estiagens.”O QUE SE ENTENDE POR POLÍGONO DAS SECAS?. 2009. Disponível em: <
https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1013964/o-que-se-entende-por-poligono-das-secas >. Acesso em 19 jul.
2017. 100
MACAÚBAS-BA, 1958, p.18 -19. 101
Ibid., p. 19. 102
Ibid., p. 19.
41
[...] as pessoas que residiam naquela vila, como também as pessoas da
redondeza sobreviviam da forma mais rudimentar possível, extraíam da
natureza o seu sustento, com a colheita de frutas silvestres e cultivando a
terra de forma embrionária exclusivamente para sanar as suas necessidades
básicas. Estas já possuíam algumas ferramentas para trabalhar o solo, casa de
farinha, engenhos para a moagem da cana para a fabricação de rapadura e
cachaça. Produtos esses que seriam comercializados ou trocados por outros
produtos na feira da vila ou consumidos pelos mesmos.103
Para a autora, os habitantes do povoado faziam uso das técnicas que dispunham
naquele período, para satisfazerem as suas necessidades, produzindo sua vida material.104
Entre os produtos que plantavam estavam a mandioca, para a fabricação da farinha, e a cana
de açúcar, para produção da rapadura e a cachaça. Além de plantarem outros alimentos, como
milho, feijão etc. Ainda segundo a autora:
As pessoas viviam humildemente, sobreviviam da forma mais simples
possível até mesmo os proprietários de uma maior extensão de terras não
tinham muito que fazer no meio da caatinga se não criar o gado e ovelhas
soltas, cultivar o solo de forma rudimentar, com as técnicas que possuíam
naquele momento.105
Boquira era então um típico povoado rural em que seus habitantes produziam sua
subsistência. Mas não sobreviviam apenas do que produziam no lugar, pois existia comércio
na região. As pessoas saiam de localidades vizinhas para venderem seus produtos, nos lombos
dos animais. Como lembra o senhor José Pedro, ex trabalhador mineiro, quando criança ele
costumava sair com seu pai, do mesmo município de Macaúbas para vender carga com
produtos em Boquira:
Oia aqui o seguinte, eu conheci aqui a Boquira antes de eu vim pra
mineração, eu era menino oito-dez anos, meu pai vinha vender carga aqui
sabe eu vinha com ele [...] eu já trazia aquela faquinha pra gente chupar
cana, aqui donde tem aquela ponte, aquilo ali pra cima era só canavial e
subia ali, e meu pai ficava lá vendendo carga e eu chegava ali e saltava no
meio do canavial e ia chupar cana, lembro da Boquira naquela época [...].106
103
OLIVEIRA, 2011, p. 18-19. 104
Para Marx, a produção da vida material são os indivíduos produzindo sua existência. Os seres humanos para
viverem diz Marx: necessitam comer, beber, de onde morar, o que vestir e outras coisas, e além dessas primeiras
necessidades eles criam outras. Nesse sentido argumenta que “[...] o primeiro pressuposto de toda a existência
humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em
condições de viver para poder „fazer história‟.”MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São
Paulo, Boitempo, 2007.p. 32-33. 105
OLIVEIRA, op.cit., p. 22. 106
MÁRIO, José Pedro. José Pedro Mário: depoimento [fev. 2013]. Entrevistadora: Alcione S. Conceição.
Bahia: Boquira, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
42
O senhor Aristóteles Mota, ex funcionário da mineradora, e natural da cidade de
Macaúbas, também relembrou suas vivências em Boquira antes da instalação da mineradora.
Em seu relato, informou que Boquira, quando era um pequeno povoado rural,“era uma
pracinha ali com um barracãozinho cheio de bode, e todo mundo aqui de Macaúbas chamando
os de lá, os bunda vermelha, porque aquela terra vermelha danada (risos) era só sentar (...)”.107
Denominar os habitantes de Boquira de os “bunda vermelha” era um termo pejorativo dos
moradores da cidade de Macaúbas para se referir as pessoas da zona rural de Boquira, fazendo
menção ao fato de os moradores do campo estarem sempre sujas com a cor da terra do lugar.
O memorialista Santos, ao tratar de uma personalidade de Boquira, o senhor Ulisses de
Souza Lima, fez referência a atividades comerciais que se realizavam na época, quando
Boquira era ainda um povoado rural. Santos informou que, depois que Ulisses ganhou um
jegue de seu padrinho, começou a trabalhar, ainda menor de idade, com tropas de animais
“levando mercadorias para vender por toda a região, chegando ir até a região de Seabra, de
volta trazia outras mercadorias que aqui não existia, para serem comercializadas”.108
E como
lembrou a geógrafa Oliveira que citamos acima também havia a feira no povoado onde as
pessoas vendiam e trocavam seus produtos109
, e eventualmente também poderiam ir até a
cidade de Macaúbas comprar alguns produtos que não possuíam no povoado.
Acionamos as narrativas acima com a finalidade de assinalar que antes da chegada da
mineradora, as pessoas da região de Boquira possuíam uma lógica de organização, elas não
estavam isoladas. O povoado nutria um comércio que permitia a população acessar produtos
de outros lugares. Havia uma maneira de trabalhar, de trocar os seus produtos, de acordo com
suas necessidades e condições. Uma vida na labuta no campo, com suas graças e dificuldades.
Ao analisar as mudanças que aconteceram em Boquira com o estabelecimento da
mineradora, Oliveira destacou que o pequeno povoado, antes do desenvolvimento da
mineração, não possuía assistência médica, nem possuía prédios escolares. A alfabetização de
algumas crianças era feita por professores de cidades vizinhas, que davam aulas particulares
em alguma casa ofertada por moradores. Atividades como serviços jurídicos, transportes para
viagem a outras cidades e correios, eram oferecidos na cidade de Macaúbas. Portanto, os
107
MOTA, Aristóteles Frota Vilas Boas da. Aristóteles Frota Vilas Boas da Mota: depoimento [maio.2012].
Entrevistadora: Alcione S. Conceição. Bahia: Boquira, 2012. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para
pesquisa histórica. 108
SANTOS, 2012, p. 88. 109
OLIVEIRA, 2011, p.19.
43
moradores precisavam se deslocar do povoado para terem acesso a estes serviços.110
De
acordo com as memórias de Abelino Manoel, ex-trabalhador mineiro:
Há, mudou muito, que isso aí tudo era roça. Você sabe onde é o jardim da
saudade... aí eu alcancei enterrando gente ai dento, era um cemitério aquilo
ali, [...] dali pra cá [...], onde era a loja de Evandro, que fica ali naquela rua
do banco, era roça. E aquela rua do lado de cá onde é Manel Dias pra cá era
rua, mais pra lá tudo era roça daí até na vila, o barreiro, o barreiro eu conheci
lá só [...] conheci a casa de seu Otacílio, conheci a casa de Joaquim (de
Biinha) a Casa de Joãozinho de Ninha e a casa do véi Artur, quato casa que
eu conheci ali, e hoje já ta aquela ruona, mas tudo era mato lá.111
A narrativa do senhor Abelino Manoel sobre a localidade de Boquira, apesar de ter
sido sobre o período em que a empresa estava sendo instalada, converge, em linhas gerais,
com os outros relatos em relação às características do lugar antes do estabelecimento da
indústria mineira. O memorialista Santos também tratou das transformações que ocorrerem no
povoado após a instalação da indústria:
A edificação da cidade foi de modo excessivamente rápida! As roças, em
volta do pequeno núcleo habitacional de origem, se transformaram,
instantaneamente, em ruas. As cercas de quiabento (arbusto espinhoso) eram
rapidamente desmanchadas para a construção de mais uma casa na Rua da
Mineração e adjacências.112
Talvez o elemento da rapidez na construção da cidade seja um exagero do
memorialista, mas de fato o povoado rural foi se modificando, as roças passaram a dar lugar
às ruas e casas. Boquira ganhava ares de ambiente urbano. As transformações atendiam
especialmente as demandas da mineradora. Como diz Oliveira: “as máquinas trabalhavam
sem cessar, abrindo estradas e ruas, ou seja, subsidiando toda uma infraestrutura onde iriam
transitar os carros, caçambas e caminhões que transportavam o minério [...]”. Quanto às
construções das casas próximas às novas ruas, abrigariam aos funcionários da indústria
“principalmente aqueles que ocupavam os melhores cargos, ficando as pessoas de cargos mais
inferiores alojados em uma Vila Operária, próxima ao local em que estava instalada a
empresa”.113
É evidente que Boquira se modificou em função das atividades mineiras no lugar; as
mudanças giravam em torno das necessidades da mineradora. A instalação da empresa pode
ter contribuído, inclusive, para a emancipação política da cidade que ocorreu em 1962. O
110
OLIVEIRA, 2011, p.18-21. 111
SANTOS, 2012. 112
SANTOS, 2007, p. 38 -39. 113
OLIVEIRA, 2011, p.26.
44
senhor José Lins da Costa, médico natural de Salvador, funcionário da indústria mineira, e
primeiro prefeito da cidade, no ato de transmissão do cargo ao novo prefeito eleito, em 07 de
abril de 1967, pronunciou:
Há quatro anos, o povo dêste município recém criado, honrava-me com a sua
desvanecedora confiança elegendo-me o seu 1° prefeito. Boquira era então,
um típico povoado sertanejo, com suas casas de estilo antigo, telhados
enegrecidos pelo transcurso do tempo geograficamente, era um ponto mal
assinalado pelos cartógrafos nos mapas da Bahia [...]. Naquele tempo, as
suas ruas e bêcos eram mal traçados e sem nenhuma iluminação. Hoje, as
suas lâmpadas elétricas, suas novas ruas e suas novas construções, já são
símbolo desta nova Boquira, a acomodar os próprios destinos políticos,
deixando para trás, na sua longa estrada da vida, muitos séculos de rotina,
para se lançar [...] na era trepidante de seu desenvolvimento econômico e seu
progresso industrial. 114
No discurso do ex-prefeito podemos perceber elementos da antiga Boquira, como ele
fez questão de enfatizar, já que o intuito era o de elogiar as modificações que aconteceram
após quatro anos de emancipação, com o seu respectivo governo, deixando para traz
elementos do passado rural. Na sua fala, fica evidente a maneira como ele percebe essas
mudanças. Para o médico, as mudanças eram fruto de uma nova era de “progresso” industrial
na localidade, seu discurso estava imbuído daquela ideia do crescimento industrial como
gerador do desenvolvimento econômico e social. Ainda nesse discurso, José Lins agradeceu a
mineradora pela ajuda concedida à prefeitura em seu governo:
Agradeço também a colaboração da Companhia, representada na pessoa dos
senhores: Valinne, Prieto e Granger, que muito tem feito por Boquira e
muito nos ajudou em nosso governo, alugando-nos a suas máquinas e
cedendo materiais de construção, a preço quase de custo, sempre com boa
vontade.115
O discurso do ex-prefeito evidencia que a prefeitura e indústria mineira de Boquira
cooperavam, tanto que os representantes da Companhia não deixaram de comparecer ao
evento. Não podemos deixar de assinalar, inclusive, que o primeiro prefeito da cidade era
funcionário da empresa. Ao que indica a fonte, a relação entre a indústria e a prefeitura nesse
momento era bem próxima.
O impacto da instalação de indústrias em áreas tipicamente rurais não é uma
exclusividade de Boquira. Notamos que as transformações ocorridas em Boquira se
assemelham a regiões que passaram por processos semelhantes. O antropólogo Fernando
114
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 10-08- de abril de 1963, a 31 de dezembro de 1968.
Fl. 73. 115
Idem.
45
Luciano pesquisou as transformações no trabalho e nos perfis dos operários da antiga usina
siderúrgica Aços Especiais Itabira (Acesita), atualmente a Aperam South America, na cidade
de Timóteo no Estado de Minas Gerais. A localidade de Timóteo era um distrito do município
de Antônio Dias e possuía uma economia “baseada na produção rural, seja de gênero
alimentícios, seja de carvão, o núcleo urbano possuía pouco mais que seis ruas organizadas
em torno da capela de pau-a-pique e seu pequeno cemitério”.116
Muitas mudanças
aconteceram por conta do estabelecimento da Acesita, a exemplo do aumento populacional,
do investimento em construções de várias moradias para os trabalhadores da usina e de uma
vila operária. Ademais, bairros surgiram, escolas, clubes, armazém, cinema, hospital,
farmácia etc.117
Em Timóteo, assim como em Boquira, grande parte dos trabalhadores eram naturais
das zonas rurais, muitos da própria região. A instalação da usina em Timóteo teve início em
1944. Lá, tal qual em Boquira, o fato contribuiu para a emancipação política do antigo
distrito, devido ao “poder estabelecido pela empresa sobre a cidade que ela construiu ao
controlar o mercado de trabalho, a moradia e a política local” 118
, evento presente na memória
coletiva dos trabalhadores.
O caso de Timóteo evidencia como uma empresa é capaz de influenciar e alterar a
dinâmica do local, especialmente quando falamos de locais com características rurais, em que
a instalação de uma indústria de grande porte é a primeira experiência industrial da região.
Não podemos esquecer, como lembra Rodrigo Jesus, que “a estratégia da sociedade capitalista
constituiu na dominação do operário dentro e fora da fábrica” 119
.
Em Boquira, o estabelecimento da mineradora provocou várias modificações. O
pequeno povoado foi se transformando em um núcleo urbano. A cidade se emancipou logo
depois. Então, é comum que essas empresas exerçam seu poder no lugar, até mesmo
interferindo na política e administração do município, fato que iremos analisar nos capítulos
seguintes.
Agora, importa ressaltar que após o estabelecimento da mineradora na cidade de
Boquira, a indústria mineira procurou auferir lucros através de diversos meios. De acordo com
os relatos dos ex trabalhadores, a empresa possuía uma cantina em que era vendido alimentos
116
LUCIANO, Fernando Firmo. Transformações do trabalho e dos trabalhadores do aço na Acesita. 2013.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de Brasília, Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.dan.unb.br/images/doc/Tese_116.pdf>. Acesso em: 10 maio 2017.p.69. 117
Ibid., p. 76. 118
Ibid., p. 38-39. 119
JESUS, Rodrigo Paulo de. A constituição da “vila” para os trabalhadores: debates. In: IV Congresso
Internacional de História, 2009, Maringá PR. Anais ISSN 2175-4446, Maringá: [s.n.], 2009. p. 805-814.
Disponível em: < http://www.pph.uem.br/cih/anais/trabalhos/262.pdf>. Acesso: 20 maio 2017. p.806.
46
e outros produtos. Os trabalhadores que compravam na cantina tinham o valor descontado de
seus salários. Como lembra os ex mineiro Sebastião “a gente comprava lá e descontava pelo
mês, no pagamento já vinha descontado”.120
Grande parte dos funcionários compravam na
referida venda, principalmente quando não existia mercados e armazéns em Boquira. A
empresa também construiu clubes em que os trabalhadores eram sócios e do mesmo modo
tinham de pagar a mensalidade.121
A mineradora possuía também um açougue e uma pensão
operária em que cobrava aluguéis.122
Fernando Silva, ao tratar sobre trabalhadores rurais em uma fazenda e usina no Estado
de São Paulo, observou que o empregador oferecia aos trabalhadores do canavial e da usina,
nas décadas de 1950 e 1960, alguns serviços e cobravam por eles, descontando do próprio
salário dos trabalhadores. Entre os serviços estavam habitação, assistência médica, armazém,
açougue, farmácia, clube, cinema etc.123
Clarice Speranza revelou que fenômeno semelhante ocorria nas atividades mineiras de
carvão em São Jerônimo no Rio Grande do sul entre 1940-1950. A mineradora retirava dos
salários dos operários gastos com armazéns, cooperativa, farmácia etc., “não raro o tamanho
do desconto (especialmente os do armazém e da cooperativa) deixava o salário líquido
reduzindo a zero”.124
Neste sentido, observamos que as práticas eram comuns no caso em que os operários
tinham que morar próximo ao local do serviço onde era afastado de áreas comerciais. Além
disso, também no caso de uma cidade, bairros ou vilas operárias serem construídas juntamente
às atividades industriais.
Clarice Speranza destaca que o sistema fábrica-vila construído na região de São
Jerônimo também servia para a indústria controlar seus operários, bem como suas famílias.
Desde o uso do hospital, da escola, do clube, do cinema e da igreja, todas construídas pela
empresa, que podia interferir na vida social dos operários. Claro que esse controle não ocorria
120
SANTOS, Sebastião Souza dos. Sebastião Souza dos Santos: depoimento [ago. 2013]. Entrevistadora:
Alcione S. Conceição. Bahia: Boquira, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica. 121
Idem. 122
MARIO, 2013. 123
SILVA, Fernando Teixeira da. “Justiça de Classe”: tribunais, trabalhadores rurais e memória. Mundos do
Trabalho, [S.l.],v.4, n.8, p. 124-160, jul./dez. 2012. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/mundosdotrabalho/article/viewFile/1984-9222.2012v4n8p124/24538>.
Acesso em: 2 maio 2013.p.156-157. 124
SPERANZA, Clarice Gontarski. Cavando direitos: as leis trabalhistas e os conflitos entre trabalhadores e
patrões nas minas do Rio Grande do Sul nos anos 40 e 50. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2012. Disponível em:
<http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/54071/000837468.pdf>. Acesso em: 20 maio 2017.p.61.
47
de forma total, sem resistências.125
A autora argumenta sobre figuras públicas que, embora não
fossem funcionários da empresa, se subordinavam aos interesses dos diretores. Existia até o
elemento da bajulação para conseguir favores e benesses. “Os mestres das crianças, o padre e
os funcionários que deveriam ser públicos: prefeito e delegado” estavam a serviço da
indústria.126
Não devemos perder de vista esse elemento da dominação que uma indústria podia
exercer na região que atuava, especialmente quando o empreendimento se situava em um
local mais afastado de grandes centros urbanos ou quando a região se desenvolvia junto com
as atividades da indústria. Havia várias estratégias que visavam manter o controle dos
trabalhadores. Atrair a simpatia dos operários era uma delas.
Em Boquira, por exemplo, a mineradora instituiu uma festa, em comemoração à Santa
Bárbara, padroeira dos mineiros. A festa ocorria todos os anos no dia quatorze de dezembro.
O dia era considerado feriado, celebrava-se uma missa, a empresa matava vários bois e
distribuía churrascos e bebidas para os mineiros e suas famílias, somente os trabalhadores
participavam dos comes e bebes. De acordo com o ex funcionário Aristóteles Mota, a festa foi
criada pela Plumbum, pois o evento já existia em Panelas no Paraná onde a indústria também
atuava 127
. Os ex mineiros relatam que gostavam da festa, pois era um dia de descontração.
Claro que o evento não deixava de ser uma estratégia da indústria, na intenção de ser vista
como uma boa empresa preocupada com a religiosidade e em oferecer um momento de
diversão aos mineiros.
Ao pesquisar a memória, a identidade e o trabalho de mineiros e engenheiros nas
minas de cobre de Camaquã, no Rio grande do Sul, entre 1970-1996, Jader Nogueira
observou que Santa Barbara também era a padroeira dos mineiros da região. Os trabalhadores
entendiam que a fé na santa os defenderiam dos perigos no interior das minas. Existia um
local apropriado nas galerias para colocar a imagem da santa.128
Diz o autor que a
religiosidade também serviu como forma de controle dos trabalhadores pelos patrões, no
sentido de impor regras morais aos operários, “uma vida desregrada e ociosa seria prejudicial
125
SPERANZA, 2012, p.64. 126
Ibid., p. 68. 127
MOTA, 2012. 128
NOGUEIRA, Jader Escobar. Mineiros e Engenheiros: memória, identidade e trabalho nas minas do
Camaquã entre 1970 e 1996. Dissertação (mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Maria, Rio
Grande do Sul, 2012. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/ppgh/images/MESTRADO/dissertacoes/turma2011/
Dissertacao-Jader-Nogueira%20-%202012.pdf>. Acesso em: mar. 2015.p.122-123.
48
aos interesses dos patrões” 129
. Não podemos esquecer também que os sujeitos de diversos
modos resistem as normas e imposições a que são submetidos.
A religiosidade permeava as relações de trabalho desses operários mineiros, e talvez
de fato existisse uma crença verdadeira por parte deles, e possivelmente dos próprios patrões a
padroeira. Mas não podemos perder de vista que a própria invenção da festa de Santa Barbara
pela empresa em Boquira, não deixou de ser também uma maneira dos patrões forjar uma
imagem da indústria para os trabalhadores. Não possuímos informação sobre quando e porque
a empresa iniciou a festa, visto que já acontecia em Panelas no Paraná, talvez o evento
também existisse nas empresas da Peñarroya em outras partes do mundo, visto que Santa
Barbara é considerada pela religião católica a padroeira dessa categoria de trabalhadores.
Então, consideramos que se tratava de elemento comum a devoção e festa a Santa Barbara
pelos mineiros e por empresas mineiras. Sobre o aspecto da festa e o feriado no dia da santa é
possível que tenha surgido até por demandas dos próprios trabalhadores mineiros.
Na época da mineração também havia em Boquira os chamados “bregas”, que na
prática funcionam como casa de prostituição. Não sabemos precisar quando surgiu o exercício
do meretrício no lugar, segundo relatos passou a existir após o advento da indústria mineira.
De acordo com Joaquim, ex funcionário da mineradora, foi “depois da mineração, quando
começou a mineração, já na fama mermo que vinha de fora, que a mineração corria muito
dinheiro [...] e já elas vinha modo isso mermo” 130
. Provavelmente com a atividade industrial
e eventual aumento da população a prática tenha se ampliado. Os “bregas”, de acordo com
alguns relatos, era muito frequentado por trabalhadores da empresa. Neles, trabalhavam
mulheres de diversas regiões, inclusive de outros estados. Segundo relatos, no espaço havia
muitas confusões. Localizava-se em um bairro denominado barreiro. O ex mineiro José
Mario, conta:
[...] lá agora eu sei que tinha muito que frequentava sabe, ia pra lá as vez
bebia bagunçava, muitas vez a polícia pegava pião lá até batia. Porque uma
vez eu tava na pensão operária, e saiu uma turma de sergipano, saiu uns
menino também daqui da Boquira que morava lá na pensão com nós, ai
foram pra lá, e lá começaram a bagunça e as polícia deu neles lá sabe, e
pegou uns lá, e correu atrás de outro pra pegar, esse outro correu de a pé,
naquela época aqui no Narb era só carrapicho e ele caiu dentro desse
carrapicho daqueles cachos assim [...] quando ele chegou na pensão operária
a roupa foi tirada e jogada fora, porque não tinha quem tirasse o tanto de
carrapicho que tinha, carrapicho tava maduro e ele passou correndo dentro
129
NOGUEIRA, 2012, p.125. 130
SANTOS, Joaquim Francisco dos. Joaquim Francisco dos Santos: depoimento [ago. 2013]. Entrevistadora:
Alcione S. Conceição. Bahia: Boquira, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
49
do carrapicho e a roça era grande, quando ele saiu fora já a roupa era só
carrapicho... (risos). As história que eu tenho é só essas assim, [...] lá mesmo
falar verdade eu nunca fui não, nunca fui, só sei que a turma contava muita
história fulano foi lá, sicrano foi, mas eu mesmo não, não sei de muita
história de lá não.131
Poucos ex trabalhadores entrevistados mencionaram os “bregas”, quando o fazia
afirmaram nunca ter estado lá. Alguns fatores podem explicar os silêncios. Primeiro, questões
que envolvem sexualidade e prostituição são temas tabus. Segundo, os entrevistados hoje são
pessoas mais velhas, com família constituída, portanto, falar de prostituição é tocar em
questões morais, ou “imorais”, já que é desta forma que a prostituição é vista por larga parcela
da sociedade. Somando-se a isso, a entrevistadora é mulher, o que pode ter contribuído para
ampliar ainda mais a resistência em falar do tema tabu.
Os poucos que falaram sobre a temática, fizerem referência à casos de violência.
Parece ter sido comum a existência de muitos conflitos no local, alguns chegando a soluções
extremas, a exemplo de assassinatos. Em vista disso, podemos sugerir que o “brega” se
caracterizou como um espaço de lazer e ociosidade, mas também de rixas e conflitos.
Ambiente que preocupava a polícia, mas também um lugar de socialização, quiçá de
discussões políticas, entre os trabalhadores da empresa e demais habitantes de Boquira.
Em outras cidades não era incomum a participação das prostitutas na promoção de
eventos culturais. Na cidade de Jacuípe, na Bahia, Lourdisnete Benevides analisou uma
manifestação cultural organizada pelas prostitutas da chamada rua do fogo. O evento se
constituiu numa homenagem ao santo católico São Roque. Durante a década de 1960, com a
chegada de uma indústria e a expansão da cultura do Sisal, houve o apogeu do meretrício,
com o estabelecimento do canteiro de obras “da empresa STAR, que possibilitou a imigração
de inúmeros operários, técnicos e engenheiros que muito contribuíram para que na Rua do
Fogo, o comércio do sexo de desenvolvesse vigorosamente”.132
De acordo com Benevides,
mulheres de várias regiões migraram para Riachão para exercer a atividade de prostituição
nos “bregas”, tanto mulheres de cidades mais próximas, quanto de outros estados.133
Daniela Nascimento e Iole Vanin, por sua vez, investigaram a marginalidade social de
mulheres que praticavam prostituição no conjunto de meretrícios denominado Brega do 24,
durante o período de 1940-1970, na região de Candeias, Bahia, na ocasião do início das
131
MARIO, 2013. 132
BENEVIDES, Lourdisnete Silva. A louvação das prostitutas do Jacuípe ao Glorioso São Roque.
Dissertação (mestrado em artes cênicas) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2003.p. 89. 133
Ibid., p. 89-90.
50
atividades petrolíferas. Em 1947 foi autorizada a construção da primeira refinaria de petróleo
do país na região, cujas atividades começaram em 1949. A força de trabalho empregada era
predominantemente masculina. Com as atividades muitos homens migraram para Candeias,
por ela ficar próxima da Refinaria e dos campos de extração. O exercício da prostituição,
sugerem as autoras, surgiu a partir da migração desses trabalhadores para o lugar.134
As autoras dizem que, entre as décadas de 1950-1970, muitas casas de meretrício se
estabeleceram nas imediações da Refinaria, bem como em municípios e povoados próximos a
Candeias. Os petroleiros, como eram chamados os trabalhadores da indústria, eram os
principais frequentadores dos “bregas” por possuírem uma renda maior do que a da população
local135
.“Estes espaços prostitucionais além de serem um local de comércio sexual também foi
ponto de encontro, diversão e lazer destes trabalhadores”.136
Muitas daquelas mulheres
provinham do interior procurando melhores condições de sobrevivência.137
Podemos argumentar que naquele período, na Bahia e talvez em outras regiões que
começavam a se industrializar, aumentou o contingente populacional e a circulação de
dinheiro. Consequentemente as novas urbes acabavam por atrair mulheres de diversos lugares
que se deslocavam para exercerem o trabalho de prostitutas. O fenômeno da industrialização
também suscitou uma grande mobilidade social.
Os fatos apresentados evidenciam que o processo de industrialização em regiões do
interior traz mudanças significativas para o lugar, especialmente para aqueles mais
ruralizados. Marta Cioccari, ao investigar as atividades mineiras, e os trabalhadores do carvão
na região do Baixo Jacuí, no Rio Grande do Sul, percebeu que na região muitas cidades se
desenvolveram junto à mineração. Uma grande onda de migrações aconteceu entre as décadas
de 1940 e 1970. Trabalhadores de diferentes partes do Estado foram atraídos pela mineração,
que acontecia em vários locais da região “promovendo uma urbanização acelerada e um
rápido crescimento da população”.138
Desse modo, percebemos que a instalação de
mineradoras no interior contribuiu para ampliar de forma significativa fenômenos como
migrações, urbanização e aumento da população local.
134
NASCIMENTO, Daniela Nunes do; VANIN, Iole Macedo. As “damas” do 24: industrialização, relações de
gênero, prostituição e oralidade em Candeias/BA (1940-1970). In: VI Encontro Estadual de História – ANPUH-
BA ,2013, Ilhéus BA. Anais ISBN 2175-4772, Ilhéus: [s.n.], 2013. p. 1-10. Disponível em: <
http://anpuhba.org/wp-content/uploads/2013/12/daniela-nunes.pdf >. Acesso: 18 maio 2017.p.4. 135
Idem. 136
Ibid., p.7. 137
Ibid., p. 6. 138
CIOCCARI, Marta. Entre o campo e a mina: valores e hibridações nas trajetórias de mineiros de carvão no
sul do Brasil. Mundos do trabalho, [S.l.],v.7, n.14, p. 75-98, jul./dez. 2015. Disponível em:
<file:///D:/Downloads/42291-150998-1-PB.pdf>. Acesso em: 20 maio 2017.p.79.
51
As mudanças trazem como consequência uma nova dinâmica social que, por sua vez,
contribui para forjar uma ideia de que a industrialização é sinônimo de “progresso”. Fernando
Luciano ao analisar o processo de industrialização da cidade de Timóteo percebeu que o
processo contribui para se formatar um imaginário. Segundo o autor, “Acesita e sua cidade
operária eram oficialmente apresentadas para o restante do país como um eldorado de
desenvolvimento, riqueza e emprego”.139
Como já dito anteriormente, em Boquira também
apareceu esse aspecto. Difundia-se a ideia de que no lugar existia fartura, facilidade para se
ganhar dinheiro. O que se propagandeava eram as vantagens do desenvolvimento, elemento
que ainda está presente na memória da cidade de Boquira.
O livro de memórias intitulado “Memórias de Macacos a Boquira”, de autoria do
professor Aroldo Santos, natural de Boquira, que já citamos ao longo do texto, é uma fonte
importante para pensarmos sobre a construção dessa ideia das benesses ocasionadas pela
indústria em Boquira. Ele é o único livro de memórias sobre a localidade, e pode ser
considerado responsável pela construção da memória oficial da cidade. Qualquer pesquisa e
trabalho que se quer fazer sobre o lugar logo recomendam a leitura da obra. No livro, o
memorialista se preocupou em descrever as mudanças promovidas pela mineradora que,
segundo ele, levou vários benefícios para a região:
[...] uma vez criada a infra-estrutura local, os problemas sociais do local e da
região tornaram-se menos agudos. Como resultado, Boquira, com seu
crescimento e suas instalações urbanas, passou a atrair cada vez mais gente e
acabou por tornar-se autônoma, econômica e socialmente, quando passou a
Município em 1962.140
A professora Brígida Pinheiros, em texto intitulado “Reflexão”, presente no livro
Memórias de Macacos a Boquira, acaba reforçando os mesmos elementos elaborados pelo
memorialista, quando destaca os benefícios gerados pela descoberta e exploração do chumbo.
A autora exalta a existência do minério, entendido como o responsável por tirar Boquira do
atraso rural, proporcionando o desenvolvimento da cidade:
Boquira! O que seria de você se não tivesse galena em seus morros? Teria,
na verdade, continuado estática, esquecida e seu nome nunca teria aparecido
no mapa do Brasil, pois você seria, por um bocado de tempo, ainda ,
Macacos ou Assunção. Sua sorte, ou azar, porém, foi aparecer um padre com
inteligência, raciocínio, cultura e conhecimentos de mineralogia, que se
139
LUCIANO, 2013, p. 92. 140
SANTOS, 2007, p. 123.
52
interessou por suas galenas, tirando-lhe da letargia. O milagre do
crescimento econômico aconteceu em você. Deus, através dos fenômenos
geológicos lhe presenteou uma coisa que infelizmente acabou: MINÉRIO.141
Na mesma linha argumentativa de exaltação de um certo “progresso” decorrente da
implantação da indústria mineradora em Boquira, encontramos um poema, da mesma autora.
O poema, não tem data identificada, nele a autora pretendeu relacionar o nascimento da
cidade à mineração, no sentido de demonstrar que o local só ganhou relevância devido as
atividades mineiras.
[...] Uma coisa interessante
Vale a pena relembrar
Nasci de uma simples pedra
Que alguém veio a encontrar
Imaginem vocês todos
Tornei-me mineração
E hoje sou no Brasil
Uma terra com ação
Represento no Brasil
Maior produtor de chumbo
Tenho lugar destacado
Na mineração do mundo.142
As fontes analisadas nos permite perceber que a ideia que relaciona o desenvolvimento
e o “progresso” da cidade ao início das atividades mineiras em Boquira está presente em
diversas memórias, forjando a memória oficial acerca da história da mineradora na região,
bem como a história da própria cidade.
Para José Pedro, ex mineiro, “a mineração naquela época foi muito bom né, deu muito
emprego, a turma ganharam muito dinheiro, só que tem o seguinte, a mineração foi embora e
ficou todo mundo na pobreza...” 143
. A fala do ex mineiro partilha da visão positiva da
mineradora enquanto oportunidade de emprego e salário, destacando que a saída da empresa
não foi boa para região, porque gerou desemprego. Mas os prejuízos não se resumem ao
desemprego.
Por Boquira ter sido um pequeno povoado rural antes da mineradora, muitos dão
ênfase às mudanças positivas que a empresa, com sua respectiva atividade econômica, levou
para a região. Frequentemente citam que a chegada da mineradora trouxe benefícios como:
141
PINHEIROS, Brígida. Reflexão. In: SANTOS, Aroldo Rodrigues dos. Memórias: de Macacos a Boquira.
Boquira: CostaGraf, 2007. p. 139. 142
PINHEIROS, 2007, p. 132. 143
MARIO, 2013.
53
criação de emprego e renda, transformação de povoado para cidade e sua emancipação, luz
elétrica, construção de escolas, hospital etc.
No livro de memórias, esses são os aspectos que se sobressai, a memória do
desenvolvimento como a predominante. Embora seja verdade que a indústria tenha gerado
empregos, ainda que precários, além de ter proporcionado elementos que aparecem nas
memórias, precisamos problematizar os silêncios, os não ditos. Há valorização dos elementos
supracitados, esconde outros que merecem ser analisados, a exemplo das difíceis condições de
trabalho enfrentadas pelos mineiros, a dominação da empresa no lugar, os conflitos e
resistências dos lavradores que perderam suas terras para a atividade mineradora.
Portanto, precisamos questionar e interrogar as versões que percebem que a atividade
mineradora levou apenas benefícios à região, descrevendo a mineração somente como o
elemento do “progresso”. Quando propomos problematizar essa memória oficial, não
queremos dizer que não houve nenhuma benfeitoria para o local com a nova atividade
econômica, ou ainda, idealizar um passado rural no qual vivia os habitantes do povoado. O
que queremos é tentar entender como aquele processo ocorreu, dando visibilidade, também, a
aspectos que foram silenciados pela memória oficial. Por exemplo, Santos não faz referência
ao conflito entre os pequenos agricultores e a mineradora, não trata das difíceis condições
enfrentadas pelos trabalhadores das minas. Ele até aborda a morte do primeiro mineiro no
trabalho, mas não faz nenhuma crítica a indústria de mineração:
Sem sombra de dúvida, a Mineração deu sua parcela de contribuição ao
Município. Não esquecendo que, para isso, vários operários, com a força
braçal, chegaram a perder suas vidas. Joaquim Firmino de Oliveira, filho de
Joaquim Zuada – 1° operário a perder a vida no interior da mina, em 04 de
novembro de 1957, dentre outros.144
O memorialista, ao focar nas melhorias urbanas, deixou à margem os conflitos, as
contradições, e outros elementos que estiveram presentes no processo. O problema desta
leitura é que torna o acontecimento homogêneo, harmônico e linear, deixando de lado as
contradições. Nesse sentido, o nosso intuito, é dar visibilidade a outras memórias. Para tanto,
é fundamental fazer uma leitura a contrapelo, na qual, vozes e sentidos diversos dos
hegemônicos devem ser analisadas. Beatriz Sarlo destacou, que o passado é uma zona de
conflitos. A memória e a história estão nesse lugar conflituoso. A história, sempre
desconfiada, não crê na memória que, por sua vez, não acredita em “uma reconstituição que
144
SANTOS, 2007, p. 125.
54
não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de
subjetividade)”.145
Cremos que é possível a historiografia fazer uso das memórias para escrever história,
realizar a problematização do relato, sem deixar de lado o direito da lembrança, das
subjetividades. Como diz a mesma autora, sobre o relato da experiência, “já não é possível
prescindir de seu registro, mas também não se pode deixar de problematizá-lo”.146
Então, são as memórias marginalizadas dos grupos não hegemônicos que, nos
próximos capítulos, procuraremos evidenciar. Dessa forma, iremos destacar os elementos que
não se manifestam na memória oficial, mas fizeram parte do processo de mineração em
Boquira. Para tal, recorreremos também as fontes orais. Como argumentou Portelli, as fontes
orais “sempre lançam nova luz sobre áreas inexploradas da vida diária das classes não
hegemônicas”.147
Pelos relatos de memórias é possível adentrar nos acontecimentos da
história, dando relevância a dimensão subjetiva dos sujeitos que a experimentam.
Desse modo, os próximos capítulos serão reservados à análise dos aspectos que não
ganharam visibilidade na memória oficial da cidade. Os relatos orais permearão todo o texto.
Trataremos, pois, da expropriação das terras de agricultores locais e do modo como a
mineradora agia na localidade, destacando o peso de sua influência em assuntos diversos.
Com isso, pretendemos demonstrar que os processos históricos não são homogêneos e
harmônicos, como faz crer a memória oficial da cidade de Boquira.
145
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das
Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. p. 27. 146
Ibid., p. 117. 147
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Proj. História, São Paulo, v.14, p. 25-39, fev.
1997.
2. O CONTO DO VIGÁRIO: OS AGRICULTORES DE BOQUIRA E A INDÚSTRIA
DE MINERAÇÃO
O objetivo deste capítulo é analisar a maneira como se tornou possível a exploração do
minério de chumbo no povoado rural de Boquira, ou seja, tratar de alguns aspectos que
viabilizaram a mineração no lugar; e por meio disso, entender como alguns agricultores da
localidade vivenciaram o processo, pois as atividades mineiras ocorreram mediante o uso de
suas terras, pelas expropriações. Desse modo, destacaremos os conflitos presentes nos
processos de expropriações sofridas pelos agricultores, dando atenção especial às suas ações,
tentando vislumbrar alguns aspectos das suas vivências no povoado. Discorreremos também
sobre a participação do Estado baiano para o desenvolvimento da indústria mineira. Além
disso, analisaremos as relações entre a mineradora e a política local, com a finalidade de
compreender as ações da empresa no lugar, sua influência e poder que exercia.
2.1. Expropriação e resistência dos agricultores de Boquira
Antes da instalação da mineradora Boquira era um povoado rural cuja população local
se organizava e produzia seus meios de vida a partir de uma lógica diferenciada, quando
comparamos com as transformações que a montagem da empresa produziu. Como já
assinalamos no primeiro capítulo, era do campo que as pessoas extraíam os produtos
essenciais para a sobrevivência. Em relação ao comércio, observamos que era realizado no
povoado, em feira livre. Com a instalação da mineradora, o trabalho no campo e as trocas
comerciais na feira continuaram a existir, no entanto, a indústria promoveu outra dinâmica de
trabalho e outras relações sociais na localidade. Porém, é importante dizer que o processo de
transformação daquele lugar não se deu de forma harmoniosa, sem ter havido conflitos e
resistências.
Como já tratamos no capítulo anterior, o início das atividades de mineração em
Boquira contou com a participação do Padre Macário Maia de Freitas, que construiu uma
empresa, associando-se a outros sujeitos, para iniciar a exploração do minério de chumbo.
Agora, cabe-nos analisar como ocorreu aquele processo, refletindo sobre como os terrenos
foram apropriados para o exercício da atividade, já que as terras eram de propriedade de
lavradores locais.
56
Em diversas fontes analisadas, constatamos que o padre agiu, em vários momentos,
lançou mão de atos ilícitos para conseguir as terras dos agricultores, e explorar o minério de
chumbo, abundante em Boquira. Seu José 1, natural de Boquira, ex-trabalhador da
mineradora, relembrando o episódio, narra que Macário:
[...] saiu derrubando cerca com trator... o homem trabaiou a cerca todinha,
cercando lá da água até cá onde tinha um ranchinho e lá não tinha
necessidade de Macário mexer, lá tava fora da mineração, mandou derrubar
a cerca todinha do homem, o homem doeçeu [...] esse tempo era duro, o
povo aproveitava [...].
As pessoas do lugar contam que o agricultor morreu de desgosto. Em sua fala, seu
José demonstra o quanto aquele ato desrespeitou o modo de viver, de trabalhar daquele
sujeito. A própria forma de contar do narrador, uma fala carregada de sentimento de
condolência, demonstra isso. Esse fato não foi um caso isolado. Como já mencionamos, as
atividades mineiras que se desenvolveram em Boquira afetaram a maneira de viver e de lidar
com a terra de grande parte da população local. Antes, a propriedade da terra, e a maneira
como lidar com ela, que vinha de uma relação mantida por muitas gerações, era vista como
um direito por aqueles agricultores. Uma espécie de direito adquirido. Mas o processo de
expulsão de seus terrenos, iniciado pelo padre Macário, os fez perceber que os seus direitos
não estavam garantidos, já que as terras herdadas dos antepassados estavam sendo usurpadas.
Ainda segundo seu José, para tomar as terras dos agricultores, Macário agiu de má fé,
quando os convencia a assinar documentos, prometendo pagamentos. Pela assinatura, os
agricultores transferiam a terra para o padre. Não podemos esquecer que na época o índice de
analfabetismo era alto. Nesse sentido, não é improvável que a maioria dos lavradores
soubesse apenas assinar o nome. Segundo o relato:
A confusão dos terrenos, ai, foi Macário começou pegar o nome das turmas,
que ia trabaiar aí, que ia comprar a nossa mermo, ele disse que ia dar 500
contos naquele tempo... mas ele não deu, e depois ele pegou e passou uns
documentos ai, que era padre e ai ele passou [...].
Seu José indica que houve “confusão”, ou seja, conflitos por conta da ação do
Macário. O relato revela também que sua família estaria interessada na venda das terras,
porém o padre não cumpriu com a promessa de pagamento. Não sabemos de fato porque
1NETO, José Domingues. José Domingues Neto: depoimento [mar.2013]. Entrevistadora: Alcione S. Conceição.
Bahia: Boquira, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
57
pretendiam vender 2, talvez precisassem do dinheiro no momento e a área de terra que poderia
ser vendida não fosse a única que possuíssem, ou usariam o dinheiro da venda para comprar
um pedaço de terra maior. Tratavam-se de agricultores pobres que extraia sua subsistência da
lida na roça, e que também passavam por dificuldades, visto que a região lida constantemente
com os períodos de seca. Aquelas pessoas possuíam suas ambições e necessidades e talvez
por isso mesmo tenha pensado na venda de suas terras. Essa é uma das versões sobre o roubo
dos terrenos pelo padre, seu José relembra sobre o caso de sua família.
Em 18 de novembro de 1959 foi publicado um protesto no Diário Oficial do Estado de
São Paulo. No texto aparece um trecho dirigido ao padre Macário com o seguinte teor:
“Pasmem os céus com o crime dêsse padre que para tranquilidade da Igreja, deixou a batina
para viver vida secular de pompa e pecado. Construindo sôbre a miséria dos seus paroquianos
com o chumbo de Boquira”. O protesto destinava-se à empresa de mineração Plumbum S.A.
Como resultado, o Juiz de Direito da quarta Vara Cível da capital de São Paulo, João Pinto
Cavalcante, publicou o edital com a petição que lhe foi dirigida por José Pereira dos Santos,
sua esposa, e outros agricultores. “Os requerentes pretend[iam] [...] positivar a
responsabilidade da Plumbum solidária com a Mineração Boquira Ltda. [...] Chamá-la a Juízo
para responder pelas perdas e danos que lhes [vinham] causando [...]”.3
No texto podemos mapear os motivos do protesto, bem como a história do padre
Macário e de como ele se apropriou dos terrenos dos agricultores. No documento protestaram
cento e vinte e três lavradores, entre homens e mulheres, maridos, esposas, filhos. Tendo em
vista que Boquira era um povoado com poucos moradores, lembremos que no recenseamento
de 1950 possuía 615 habitantes4, devemos considerar que o número de lavradores afetados foi
grande. Através das pessoas e filiação que aparecem no documento, percebemos que se
tratava de propriedade familiar. É possível sugerir que o trabalho na terra era feito pela
própria família, se tratando de uma produção voltada para a subsistência.
O documento se constituiu em uma transcrição da ação rescisória que os lavradores
moveram contra à Mineração Boquira Ltda., no Tribunal de Justiça da Bahia. Portanto,
representativo dos conflitos entre os agricultores e a mineradora, materializados em ações de
2 No momento da entrevista essa pergunta não foi colocada ao entrevistado, a importância da questão para o
trabalho surgiu depois, não conseguimos refazer a entrevista. 34ª VARA – 4° OFICIO. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 18 nov. 1959. p. 28. Disponível em:
<https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4736221/pg-28-poder-judiciario-diario-oficial-do-estado-de-sao-paulo-
dosp-de-18-11-1959/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017. 4 MACAÚBAS- BA. In: Ferreira, Jurandyr Pires. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, IBGE. Rio de
Janeiro: Lucas, DF, 1958. p.19.
58
luta que os lavradores travaram em defesa de suas terras. Por meio desse documento,
inicialmente, iremos analisar a maneira como aparece a história do padre e dos terrenos.
Os requerentes foram esbulhados de suas terras pelo padre Macário Maia de
Freitas e [o] farmacêutico Antenor Alves da Silva da cidade de Macaúbas
que se constituíram em empreza de mineração Mineração Boquira Ltda. para
explorar as ricas jazidas de chumbo existentes nas aludidas terras. Como
histórico dêsse caso já celebre na Bahia sob a rubrica de “Caxixe de
Boquira”.5
A ação rescisória transcrita no protesto informa que todos os autores eram possuidores
das terras na Fazenda Boquira, “ali lavrando desde seus antepassados, pobre lavoura de
subsistência, todos residiam na aludida fazenda.” 6 Macário, ao verificar que nas terras de
Boquira havia chumbo em grande quantidade, envolveu os agricultores em ações de
usucapião, leia-se, “o modo autônomo de aquisição da propriedade móvel e imóvel mediante
a posse qualificada da coisa pelo prazo legal” 7. De acordo com o documento:
O primeiro dos autores, José Pereira dos Santos, foi induzido pelo padre
Macário a outorgar procuração ao advogado provisionado Clovis Abreu da
Silva, dizendo-lhe o vigário ser para providenciar licença de garimpo no
interesse dele autor. Essa procuração dava poderes ao advogado para
requerer usucapião e ceder os direitos ao padre Macário e ao Dr. Antenor da
Silva, poderes de que não teve qualquer conhecimento quando assinou a
referida procuração.8
Pela análise do texto, observamos que a trama foi realizada por Macário junto com um
advogado. Os agricultores assinaram a procuração acreditando se tratar de uma licença para
garimpar, que seria feita em seus nomes. Essa ação do padre começou em 1953. Observamos
também que alguns lavradores possuíam seus interesses, ou seja, estariam dispostos a exercer
a atividade de mineração se os beneficiassem, e que para eles era um proveito legítimo já que
as terras lhes pertenciam. De acordo com o documento a ação de usucapião feita pelo
advogado em nome dos agricultores não obedecia aos procedimentos legais exigidos para o
5 4ª VARA – 4° OFICIO. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 18 nov. 1959. p. 28. Disponível em:
<https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4736221/pg-28-poder-judiciario-diario-oficial-do-estado-de-sao-paulo-
dosp-de-18-11-1959/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017. 6 Ibidem, loc.cit.
7 COSTA, Dilvanir José da. Usucapião: doutrina e jurisprudência. Revista de Informação Legislativa, Brasília,
n. 143, p. 331-334, jul./set. 1999. Disponível em:
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/524/r143-25.PDF?sequence=4>. Acesso em: 28 fev.
2017.p.321. 8 4ª VARA- 4° OFICIO. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 18 nov. 1959. p. 28. Disponível em:
<https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4736221/pg-28-poder-judiciario-diario-oficial-do-estado-de-sao-paulo-
dosp-de-18-11-1959/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017.
59
seu cumprimento. Tudo foi feito em segredo de justiça, “a sentença de usucapião foi proferida
com base em falsa prova e com violação do artigo 455 do Código de Processo
Civil”.9Ademais, quem o vigário escolheu para a usucapião tinha propriedade titulada, “outros
autores naquelas ações eram também proprietários. Porque haveria, pois, de ser
usucapientes10
? Nunca o foram intencionalmente”.11
Desse modo, segundo o documento, foi
tudo orquestrado, depois o advogado Clovis Abreu, com as prerrogativas adquiridas com a
procuração, transferiu “os direitos do usucapiente ao padre Macário Maia de Freitas e ao Dr.
Antenor Alves da Silva”.12
Apesar de ali residirem todos com suas famílias, lavrando a terra foram
envolvidos pelo padre Macário Maia de Freitas então vigário de Macaúbas,
em três ações do usucapião, como usucapientes uns e usucapidos13
os
demais, visando aquele vigário criar títulos de domínio das terras em nome
de alguns deles, autores e das terras se apoderar dolosamente [...]. 14
Macário adquiriu as terras onde seriam exercidas as atividades de mineração em
Boquira de forma ilícita. A vitória do padre no processo analisado acima, nos permite sugerir
que, mesmo não agindo totalmente de acordo com a lei, o padre e o advogado conseguiram
apoio de pessoas influentes da região. Os lavradores, contudo, não ficaram passivos diante da
situação, e o documento analisado é prova disso. Eles se articularam da maneira como foi
possível para denunciar a expropriação que sofreram e lutaram por seus direitos. Ainda de
acordo com a fonte:
Todos são donos das terras, uns com título outros com posse imemorial: terra
pobre até pouco tempo onde viviam e trabalhavam seus antepassados – Rica
terra de chumbo, já agora e por isso mesmo cobiçada pelos trustes
internacionais e deles lavradores roubada pelo vigário que se transformou
em grande industrial ligado ao truste americano da Pres-O-Lite à custa da
miséria dos lavradores. 15
9 4ª VARA- 4° OFICIO. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 18 nov. 1959. p. 29. Disponível em:
<https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4736221/pg-28-poder-judiciario-diario-oficial-do-estado-de-sao-paulo-
dosp-de-18-11-1959/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017. 10
Titular da ação de usucapião. 11
4ª VARA- 4° OFICIO. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 18 nov. 1959. p. 29. Disponível em:
<https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4736221/pg-28-poder-judiciario-diario-oficial-do-estado-de-sao-paulo-
dosp-de-18-11-1959/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017. 12
Ibidem, loc. cit. 13
Estado do bem que sofreu usucapião. 14
4ª VARA- 4° OFICIO. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 18 nov. 1959. p. 28. Disponível em:
<https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4736221/pg-28-poder-judiciario-diario-oficial-do-estado-de-sao-paulo-
dosp-de-18-11-1959/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017. 15
Ibidem, loc. cit.
60
A partir da fonte analisada é possível traçar parte dos elementos que envolviam a
relação que os agricultores tinham com a terra antes da chegada da mineradora. Residiam no
povoado de Boquira, e as terras eram transmitidas de uma geração para outra. Desse modo,
mesmo aqueles que não possuíam título de suas terras, sentiam-se seus donos. Aquelas
pessoas dependiam de seus terrenos para trabalharem e produzirem seus meios de vida.
Compartilhavam uma condição de existência, tanto no trabalho rural quanto nas demais
vivências cotidianas. Ademais, sugerimos que devido à baixa ou nula escolaridade foram
ludibriadas pela ganância do padre que se aproveitou do prestígio e confiança que seu cargo
transmitia para enganá-los. De repente, os agricultores se viram expulsos de suas terras sem
direitos algum, passando a partilhar também uma situação de injustiça.
Quando falamos de agricultura de subsistência e a importância das terras para aquelas
pessoas, não queremos criar a imagem de um passado rural idílico isento de dificuldades, não
se pode afirmar que era muito fácil os habitantes se manterem e que eles não ambicionavam
outra forma de viver senão aquela. Não sabemos precisar quais eram os tamanhos das terras,
se realmente eram suficientes para toda família se sustentar de forma adequada, o mais
provável é que se tratava de pequenas propriedades. Também não devemos esquecer-nos dos
períodos de seca que marcavam a região e que poderia dificultar o modo de subsistir daquelas
pessoas. Talvez por isso mesmo, alguns agricultores tiveram o desejo de se beneficiar com a
riqueza que existiam em seus terrenos e melhorar as condições sociais de vida. Porém, o que
ocorreu foi que eles não tiveram o poder de decidir o que fariam com suas próprias terras.
Em 28 de novembro de 1975, o jornal Opinião trouxe uma matéria sobre os conflitos
envolvendo a mineração em Boquira e a versão de um dos donos das terras, Joaquim Angelo,
sobre como Macário tomou os terrenos. De acordo com ele “os títulos de propriedade foram
passados para Macário de formas mais diversas, a maioria ilegal”.16
Segundo ele:
Depois, ele [Macário] pediu assinaturas em uma folha de papel em branco.
Disse que era para remodelar a igreja. O povo todo tolo. Assinamos. Ah,
meu amigo, ele passou procuração para o advogado e requereu usucapião e
tirou todo o direito dos verdadeiros proprietários até de ir na serra. Ai ele foi
vender ação para toda a nação de estrangeiros. E nós ficamos para trás. Se a
gente procura advogado, a companhia compra.17
Nessa narrativa aparece outro elemento em relação ao “roubo” das terras por parte de
Macário Freitas. O vigário pediu assinaturas aos habitantes sob a justificativa de que iria 16
RUDÁ, Francisco. O feudo do truste Penarroya. Opinião. Rio de Janeiro, 28 nov. 1975. p. 11. Disponível
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=123307&pagfis=3678&url=http://memori
a.bn.br/docreader#>. Acesso em: 16 fev. 2017. 17
Ibidem, loc.cit.
61
remodelar a igreja, entretanto as usou para realizar a trama. Essa mesma informação está
presente em outro documento, um texto escrito pelo jornalista Genival Rabelo18
em 1974. No
texto o autor narra sua ida a Boquira no início da década de 1970. Ele discorre sobre a
experiência da viagem. O texto tem um tom de denúncia. De acordo com o autor, chegando à
localidade logo ouviu as reclamações dos lavradores espoliados.
Falam todos do vigário que havia descoberto umas pedras diferentes na
montanha [...] Havia levado tais pedras para exame de laboratório no Rio de
Janeiro e, depois, havia pedido procuração aos lavradores para obter ajuda
das autoridades estaduais com o objetivo de construir a igreja. O vigário se
chamava Macário. As pedras diferentes eram chumbo de alto teor. As
procurações foram o hábil expediente para desapropriação de terras para
instalação de uma empresa de mineração. Boquira havia atraído, pela mão de
seu vigário, a cobiça do capital forâneo. De pacata localidade onde os
moradores viviam da agricultura, passou a ser centro de expoliação (sic.) e
luta. [...]. 19
Para Rabelo, portanto, o padre usou sua influência enquanto religioso para enganar os
agricultores. Podemos sugerir também que o padre utilizou diferentes facetas para conseguir
as assinaturas dos lavradores, como no caso da construção da igreja, isso demonstra que
talvez nem todos estivessem interessados na exploração dos minérios em suas terras, mesmo
com a existência da promessa de benefícios, seja pelo lucro com a mineração ou venda dos
terrenos. No pequeno livreto, editado pelo jornalista Alexandria Pontes, natural de Boquira,
reitera a versão que atesta que o padre expropriou os terrenos. Segundo o documento:
No começo foi o dr.Cloves Abreu da Silva. Contratado por padre Macário
Maia de Freitas, tinha como principal missão fazer os agricultores assinarem
„procurações‟ que, mais tarde, lhes dariam respaldo para requerimento de
usocapião (sic.) em benefício de padre Macário e do farmacêutico Antenor
da Silva, sócios na sinistra empreitada de transferir para seus próprios
nomes as terras dos indefesos agricultores de Boquira.
Cloves Abreu já faleceu, mas a missão que lhe fora confiada redundou em
grandes danos para centenas de famílias incautas, uma vez que as terras
riquíssimas que há mais de cem anos pertencem a muitas famílias de
18
Encontramos esse texto no Arquivo Municipal de Boquira, a pasta onde se encontrava o documento não
possuía espelho, nem qualquer outra informação. Trata-se de um texto com finalidade de denunciar a mineradora
em Boquira. De acordo com o texto, Genival Rabelo era amigo do jornalista Alexandria Pontes, natural de
Boquira, que há muito morava no Rio de Janeiro. Rabelo na década de 1970 saiu do Rio para acompanhar o
amigo Alexandria em uma viagem a Boquira, para visitar seus familiares. Foi o momento que conheceram a
atuação da mineradora na localidade, e a situação dos lavradores. 19
RABELO, Genival. A máfia de Boquira. Rio de Janeiro, jul. 1974. Localizado em: Arquivo Municipal de
Boquira.
62
agricultores, de uma hora para outra passaram a ser „propriedade‟ do notório
pastor, ele próprio a ovelha mais negra de todo o rebanho.20
Notamos que as fontes sempre trazem o nome de Antenor da Silva que, ao que indica,
também participou da trama junto a Macário. É provável que as expropriações foram
possíveis em função da ajuda de outras pessoas influentes na região. Após a associação das
empresas e o processo de instalação da indústria, o problema dos terrenos continuou.
Homens e mulheres do povoado de Boquira tiveram suas vivências modificadas por
conta da nova relação econômica que se estabeleceu no lugar. Ao se perceberam espoliados,
organizaram ações de resistência. Acionaram a justiça e chegaram a contratar advogado para
tentar recuperar o que tinham perdido. Podemos supor que essa resistência por parte de alguns
lavradores se deu principalmente pela forma como as terras lhes foram tiradas, sem nenhuma
consideração por seus direitos.
Devemos levar em conta que a expropriação não é uma peculiaridade de Boquira, mas
uma característica da maneira de como se desenvolve o capitalismo. Como lembra Virgínia
Fontes, “as expropriações constituem um processo permanente, condição da constituição e
expansão da base social capitalista e que, longe de se estabilizar, aprofunda-se e generaliza-se
com a expansão capitalista”.21
No caso específico de Boquira observamos a existência de uma
expropriação primária, leia-se, quando os trabalhadores rurais, por motivações variadas, são
expulsos de suas terras ou são atraídos para as cidades.22
A partir da perspectiva marxiana,
percebemos que expropriar significa separar os trabalhadores de suas condições sociais de
produção.
Expropriar foi situação necessária para a própria existência do capitalismo. Como
ensina Marx, “a relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a
propriedade das condições da realização do trabalho.” 23
Para o autor, o processo que criou o
modo de produção capitalista foi a separação entre o produtor e os meios de produção, sendo
este um dos elementos responsáveis por criar as condições para o próprio desenvolvimento do
capitalismo.24
A relação capitalista “ por um lado, transforma em capital os meios sociais de
20
PONTES, Francisco Alexandria (Ed.). Boquira: Advogada impetra no Tribunal de Justiça da Bahia “Habeas
Corpus” para jornalista. Rio de Janeiro: [s.n.], 1976. 24p. p. 19. 21
FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo. Rio Janeiro: UFRJ, 2010. Disponível em:
<http://resistir.info/livros/brasil_capital_imperialismo.pdf>. Acesso em: 5 abr. 2017. p. 45. 22
Ibid., p. 44. 23
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I o processo de produção do capital. [S.l]:
Boitempo, 2013. Disponível em: <http://docs15.minhateca.com.br/559887912,BR,0,0,Marx,-Karl---O-Capital---
Livro-1-(Boitempo).pdf>. Acesso em: 20 maio 2017. p. 961. 24
Idem.
63
subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores
assalariados”.25
Segundo Virgínia Fontes, para que o capitalismo possa se desenvolver é necessário
que haja expropriações. Para que existam trabalhadores “livres” é fundamental que eles
tenham sido expropriados de algum modo, seja de suas terras, ou do acesso aos meios pelo
qual pudessem produzir sua existência. A autora defende que a expropriação não ocorreu
apenas na Inglaterra no processo de desenvolvimento das relações capitalistas ou nos
momentos de “modernização” de outros países, a sua tese é a de que a expropriação é
condição para o desenvolvimento do capitalismo.26
Sobre a expropriação primária diz:
“seguem extirpando os recursos sociais de produção das mãos dos trabalhadores rurais,
incidindo diretamente sobre os recursos sociais de produção, em especial sobre a terra”.27
Reiterando, a expropriação é um dos elementos que criam as bases para o desenvolvimento
das relações capitalistas.
Em Boquira, para que a indústria mineira se consolidasse foi necessário que muitos
lavradores fossem expulsos de suas terras, criando então as condições para que a exploração
mineral pudesse se desenvolver aos moldes capitalistas. Como diz Martins “quando o capital
se apropria da terra, esta se transforma em terra de negócio, em terra de exploração do
trabalho alheio”.28
A propriedade capitalista da terra é portanto distinta da propriedade
familiar em que a terra é um instrumento de trabalho daqueles que o exercem. Neste caso, os
ganhos são gerados por quem trabalha, não provindo “da exploração de um capitalista sobre
um trabalhador expropriado dos instrumentos de trabalho.”29
Como foi analisado no primeiro capítulo, a década de 1950 no Brasil foi marcada por
uma forte industrialização, que se expandiu para o meio rural muito a partir de 1960. Durante
esse processo, por um lado, a industrialização se solidificou e se desenvolveu de forma rápida,
por outro a modernização do setor rural expulsou uma parte considerável da população.30
Neste sentido, o “Oeste” da Bahia – Barreiras e região – se constitui em um exemplo
relevante. A partir de 1960, o agronegócio e a especulação fundiária se iniciaram na região,
25
MARX, 2013, p. 961. 26
FONTES, 2010, p. 21-45. 27
Ibid., p.59. 28
MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão política no campo. 3. ed. São Paulo: Editora
Hucitec , 1991.p.55. 29
Ibid., p. 54. 30
BRUMER, Anita. Considerações sobre uma década de lutas sociais no campo no extremo sul do Brasil (1978-
88). In: FERNANDES, Bernardo Mançano; MEDEIROS, LeonildeServolo de; PAULILO, Maria Ignez (Org.).
Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas. A diversidade das formas das lutas no
campo . São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009.
v.2,p. 33-52.p.33.
64
momento que coincidiu com a fundação de Brasília, a nova capital nacional. A fundação da
nova capital e o desenvolvimento do Oeste da Bahia correspondem ao cumprimento dos
projetos de promoção da “„interiorização do desenvolvimento‟ no país”.31
A partir da década de 1960, passou-se a se construir rodovias para facilitar o acesso
aos centros, foram desenvolvidos projetos e financiamentos públicos para produção
agropecuária. Na esteira dos acontecimentos, em Barreiras e região foi instalado um “sistema
de posse calcado na corrupção dos cartórios e na atuação dos jagunços, „amaciando‟ a terra
para facilitar o processo de grilagem sistemática” que se estenderia durante as três décadas
seguintes.32
Segundo Soares, esse processo de transformação pelo qual a região passou,
visando o desenvolvimento da produção agrícola, resultou em conflitos pela posse da terra,
uso da água, contribuindo para o aumento das desigualdades socioeconômicas tanto entre os
sujeitos quanto entre os municípios:
Os conflitos relacionados a posse da terra tiveram início com o
estabelecimento da grilagem sistemática, iniciado na década de 1970 e
intensificado nos anos 1980, 1990 e 2000. Essa prática fraudulenta converteu
diversas terras públicas devolutas, porém de uso coletivo, extensivo e
sazonal, assim como terras claramente habitadas, de cultivo e moradia
camponesa, em mercadorias a serviço da acumulação e do grande capital.33
Percebemos que as mudanças ocasionadas pelo avanço do capitalismo em áreas rurais,
muitas vezes é acompanhada por diversos conflitos, por conta dos impactos que provocam no
modo de viver e de se organizar das pessoas. Os agricultores que vivem e trabalham nas
terras, por vezes, são vítimas de toda espécie de ações ilícitas para que deixem suas posses ou
propriedades, que agora devem servir ao capital.
No centro sul baiano, houve um caso que nos ajuda a pensar o problema. Na década de
1970, nas terras chamadas Matas do Pau Brasil, localizadas entre os municípios de Vitória da
Conquista e Barra do Choça, foram reivindicadas por um suposto proprietário, fazendeiro de
café. As terras eram ocupadas por posseiros há décadas34
. Os conflitos se iniciaram em um
31
SAMPAIO, Mateus. Oeste da Bahia: capitalismo, agricultura e expropriação de bens de interesse coletivo. In:
XXI Encontro Nacional de Geografia Agrária “territórios em disputa: os desafios da Geografia Agrária nas
contradições do desenvolvimento brasileiro”, 2012, Uberlândia MG. Anais ISSN 1983-487X, Uberlândia: [s.n.],
2012. p. 1-17. Disponível em: <http://www.lagea.ig.ufu.br/xx1enga/anais_enga_2012/eixos/1125_2.pdf>.
Acesso: 2 mar. 2017. p.8. 32
Ibid., p. 8. 33
Ibid., p. 12. 34
SANTOS, Jânio Roberto Dinis dos; SOUZA, Suzane Tosta. Conflitos no campo e grilagem de terras do
Centro Sul da Bahia. In: Simpósio baiano de Geografia Agrária e Semana de Geografia da UESB: o campo
65
momento em que as terras começaram a ser valorizadas pelo fato do Estado fomentar a
expansão cafeeira na região. Em Matas do Pau Brasil “se encontravam, no ano de 1973,
assentadas mais de uma centena de famílias, muitas, com mais de 80 anos de posse da
terra”.35
Os posseiros que se recusaram a sair sofreram todo tipo de coerção, foram presos,
tiveram casas queimadas, foram proibidos de trabalhar nas roças, etc. Após muito tempo de
conflitos, durando cerca de doze anos, o Estado interferiu na situação, e os posseiros não
ficaram com toda a área de terras, uma parte ficou com o fazendeiro. Os posseiros tiveram
grandes prejuízos, perderam roças, casas e outras benfeitorias.36
O fato narrado não se constitui em uma particularidade. As disputas de terra, cujos
fazendeiros na maioria das vezes saíam ganhando vem de longa data e ocorreram em diversas
regiões do país. Como nos lembra Guimarães, na Bahia mais especificamente, a partir da
década 1960 aconteceram diversos movimentos de camponeses e trabalhadores rurais,
principalmente nas regiões baianas mais ricas, como a cacaueira e a pecuarista de Conquista e
Itapetinga, respectivamente.37
Voltando para os conflitos de Boquira, que mais nos interessa, precisamos salientar
que embora haja especificidades, não devemos deixar de percebê-los inseridos nessa lógica de
expansão do capitalismo no Brasil. Santos e Souza argumentam que o projeto de
desenvolvimento pregado para a região era contra a lógica de produção dos camponeses,
pautada na diversidade na produção, e voltada para as necessidades locais, características que
não correspondia as expectativas capitalistas, representando, portanto o atraso38
. Essa é a ideia
que predomina nesses casos, se torna irrelevante a forma de viver e trabalhar dos habitantes
rurais, porque o “atraso” deve ser superado em nome da industrialização e do “progresso”. E
os benefícios desse dito “progresso” na maioria das vezes não são compartilhados com esses
habitantes.
baiano na relação Estado, Capital, Trabalho: espaços de contradições, espaços de lutas, n. 1, 2013, Vitória da
Conquista BA. Anais: ISSN 2318-7832Vitória da Conquista:[s.n.], 2013, p. 1-22. Disponível em:
<http://www.uesb.br/eventos/sbga/anais/arquivo/arquivo%206.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2017. p.2. 35
SANTOS E SOUZA, 2013, p. 3. 36
Ibid., p.17. 37
GUIMARÃES, 2003, p. 136. 38
SANTOS E SOUZA, op.cit., p.21.
66
2.2. Desapropriação dos terrenos e o convênio entre o Estado baiano e a indústria de
mineração
Em 21 de fevereiro de 1959, Antônio Balbino, então governador da Bahia (1955-
1959), pelo Decreto n° 17282, desapropriou terras em Boquira, em benefício da mineradora,
sob a alegação de que se tratava de um empreendimento, “capaz de, em pouco tempo, e por si
só, assegurar o abastecimento da quase totalidade do consumo, nacional de chumbo” 39
.
Balbino tentou desenvolver projetos que atendessem aos interesses industriais no estado
baiano, e com esse fim chegou a mandar uma carta para o presidente Juscelino Kubitschek. A
carta sintetizava seu plano de governo, “mostrando sua compatibilidade e
complementariedade com o programa de metas” 40
. Neste sentido, era interesse também do
Estado baiano que a indústria em Boquira se desenvolvesse.
Foi justamente com o propósito de desenvolver a industrialização no Estado da Bahia
que Balbino assinou o decreto, para cumprir a finalidade de fazer funcionar a mineração em
Boquira. O governador também impôs algumas obrigações à empresa. Além de desapropriar
terras, o referido Decreto obrigava a empresa a criar um Núcleo de Assistência Rural de
Boquira, além de oferecer água para a população. Entretanto, segundo Rudá, o núcleo nunca
foi aproveitado pelos agricultores, beneficiando somente “os altos funcionários da Mineração,
e que estabeleceu condições para o fornecimento de alimentos ao seu refeitório”. 41
Sobre a
água, o autor salienta:
A água agora é uma arma nas mãos da empresa e uma das maiores causas da
miséria, como afirmam todos. Os mananciais estão cercados e não há mais
os córregos originais que serviam de „regadio‟ para as culturas. Plantas e
gados são privilégio da Mineração, onde florescem hortas e canteiros,
contrastando com as diminutas roças antes férteis. 42
O exemplar do Diário Oficial onde o decreto de desapropriação foi publicado foi
anexado às 1.300 folhas do processo de Ação Rescisória43
(um tipo de ação destinada a anular
uma sentença já proferida). A ação foi movida por 138 proprietários de terras de Boquira,
contra Macário Maia de Freiras, e sua esposa ; Antenor Alves da Silva, e sua esposa; e contra
39
RUDÁ, 1975, p. 11. 40
GUIMARÃES, 2003, p.116-117. 41
RUDÁ, op.cit., p. 11. 42
Ibidem, loc. cit. 43
Ibidem, loc.cit.
67
o Estado.44
O advogado responsável foi Sinval Palmeiras, do Rio de Janeiro.45
Os agricultores
não estavam satisfeitos com a desapropriação.
No que diz respeito a questão da água, podemos argumentar que a apropriação feita
pela empresa significou uma grande perda para os agricultores, pois eles necessitavam de
água para cuidar dos animais, das plantas, e do trabalho doméstico. A medida modificou a
lida cotidiana daqueles sujeitos. Todos os prejuízos contribuiriam para que aquelas pessoas,
que compartilhavam um cotidiano e se viram enfrentando o mesmo problema, se unissem
para reivindicar interesses comuns. A Ação Rescisória significou uma tentativa dos
espoliados de reconquistarem suas terras.
[...] começam os lavradores espoliados sua marcha de volta ao domínio de
suas terras. Começam com a presente ação rescisória. Quando se apresentam
unidos para essa luta judiciária. O Estado lamentavelmente sob influência da
Mineração Boquira, Plumbum e Pres-O-Lite desapropria as terras de
chumbo em favor dos espoliadores. Essa desapropriação já foi contestada e
sua revogação se impõe ao Governo face à ilegalidade do decreto em causa.
Isso é matéria de outra ação. A desapropriação das terras litigiosas obriga, no
entanto, os autores ao chamamento do Estado na pessoa do seu insigne
Procurador Geral como réu na lide.46
No entanto, mesmo com essa ação, os agricultores não conseguiram ter de volta as
suas terras. Sabemos disso porque entraram com outra ação em 1975. Falaremos dela mais
adiante. Não conseguimos ter acesso a todo o processo da ação rescisória, apenas a parte que
foi transcrita no protesto publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo, que fizemos
referência. A ação de 1975 foi noticiada no jornal O Estado de São Paulo, em 17 de outubro
daquele ano, com o título: “Processo reabre caso das jazidas de Boquira”. Na matéria o
periódico destacou:
[...] Todas essas histórias e denúncias constam de um volumoso processo
número 001274, dado entrada no Fórum de Salvador em 22 de abril de 1959-
de „ação recisória (sic.) contra Macário Maia de Freitas e sua mulher, o
farmacêutico Antenor Alves da Silva; a Mineração Boquira e o Estado da
Bahia‟. Esse processo, que durante muitos anos ficou desaparecido, volta
44
4ª VARA- 4° OFICIO. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 18 nov. 1959. p. 29. Disponível em:
<https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4736221/pg-28-poder-judiciario-diario-oficial-do-estado-de-sao-paulo-
dosp-de-18-11-1959/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017. 45
RUDÁ, 1975, p. 11. 46
4ª VARA- 4° OFICIO. Diário Oficial - Estado de São Paulo. São Paulo, 18 nov. 1959. p. 29. Disponível em:
<https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4736221/pg-28-poder-judiciario-diario-oficial-do-estado-de-sao-paulo-
dosp-de-18-11-1959/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017.
68
agora a justiça baiana, por empenho da advogada Aldenoura de Sá Porto,
que dele pretende retirar subsídio para a sua ação de prestação de contas.47
A lei de desapropriação foi criada pelo Decreto-Lei nº 3. 365, de 21 de junho de 1941,
no governo de Getúlio Vargas. Em seu artigo 2° ficou estabelecido que “mediante declaração
de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados,
Municípios, Distrito Federal e Territórios”.48
O parágrafo 2° do mesmo artigo estabeleceu
ainda que: “os bens de domínio dos Estados, Município, Distrito Federal e Territórios poderão
ser desapropriados pela União,” assim como “os dos Municípios pelos Estados, mas, em
qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa”.49
O artigo 5° define quais são
os casos de utilidade pública, entre eles, preconiza o item “f) o aproveitamento industrial das
minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica”.50
A mesma lei estabelece que
os desapropriados deveriam receber uma indenização.
Seguindo as prerrogativas legais, através de uma escritura pública, em 26 de fevereiro
de 1959,o Estado da Bahia torna de utilidade pública uma área desapropriada de 1.277
hectares, na região do ainda Município de Macaúbas, para efeito de desapropriação incluído aí
todas as benfeitorias:
[...] situadas no município de Macaúbas, exceto as instalações industriais, as
construções, as benfeitorias e os imóveis residenciais de propriedade das
empresas de mineração e de beneficiamento de minérios que atualmente
operam dentro da área considerada de utilidade pública [...]. Pelo outorgante
[Estado baiano], por seu representante, me foi declarado que neste ato cede e
transfere,à outorgada [Mineração Boquira Ltda.], como realmente cedidos e
transferidos ficam, para todos os efeitos de direito, desde já, todos os seus
direitos de preferência à pesquisa e exploração do subsolo dessas mesmas
áreas,[...]que, às concessões ora feitas pelo outorgante, corresponde a
obrigação, para a outorgada, de pagar o preço fixado no processo judicial de
desapropriação das sobreditas áreas, constantes do aludido Decreto,
obrigação essa que se tornará efetiva a partir do momento em que, pelos
interessados, sejam apresentados , nos autos da respectiva ação de
desapropriação, os títulos legítimos que asseguram pela lei direito à
indenização, ou antes se o dito preço fôr estabelecido mediante acordo
47
PROCESSO REABRE CASO DAS JAZIDAS DE BOQUIRA. O Estado de São Paulo. São Paulo, 17
out.1975.p. 14. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19751017-30848-nac-0014-999-14-
not/busca/Boquira> Acesso em: 22 abr. 2016. 48
BRASIL. Decreto n. 3.365, de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre desapropriação por utilidade pública. Diário
Oficial da União, Rio de Janeiro, 21 jun. 1941. Seção 1, p. 14427. Disponível em: <
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3365-21-junho-1941-413383-norma-
pe.html>. Acesso em: 28 mar. 2017. 49
Idem. 50
Idem.
69
ajustado entre outor - desapropriante e Reus – desapropriados, tornado em
notas públicas; [...].51
Com a desapropriação a mineradora ficaria incumbida de pagar a indenização de uma
parte da área desapropriada em troca de benefícios, como a preferência de pesquisa e
exploração da referida área. A área que já estava ocupada pela mineradora também foi
desapropriada, no entanto, as benfeitorias iriam continuar sendo de seu uso, além das outras
terras que foram desapropriadas. Existe outra escritura pública com essa mesma data, em que
a Mineração Boquira Ltda. passa a ser a outorgante e o Estado da Bahia o outorgado:
[...] pela outorgante [Mineração Boquira Ltda.], por seus representantes, me
foi declarado que, reconhecendo os benefícios que a aludida desapropriação
trará para a região onde se acha radicada por interesses industriais, aceita a
desapropriação, mas, a título gratuito, em relação à parte que lhe diz
respeito, [...] desistindo de tôda e qualquer indenização em dinheiro que lhe
seria devida pelo Estado ora outorgado; que em conseqüência cede e
transfere ao outorgado [Estado da Bahia], como por esta e desde já cedido e
transferido fica, domínio e posse sôbre a superfície do imóvel [...] nas
seguintes condições: 1) Reserva o outorgante, para si, os direitos decorrentes
das autorizações de pesquisa e de lavra em seu favor outorgadas pelo
governo Federal bem como os decorrentes de autorização de pesquisas já
requeridas, mas ainda não concedidas, como se proprietária do solo
permanecesse. 2) Reserva-se ainda, o outorgante o direito à ocupação das
áreas necessárias ao exercício de suas atividades, à ocupação dos prédios
residenciais que se encontram dentro da área desapropriada e que sejam
julgados convenientes ao alojamento de seu pessoal, e do uso das servidões52
apontadas no art. 39 do Código de Minas. (Decreto-Lei n° 1. 985, de 29 de
janeiro de 1940). Esta ocupação e uso serão exercidas gratuitamente livres
das indenizações previstas no art. 40 do mesmo Decreto-Lei n° 1.985, e por
todo o tempo em que a outorgante exercer a suas atividades em qualquer
ponto do atual território do Município de Macaúbas; [...].53
A Mineração Boquira Ltda. enumera, ainda, outras condições visando não ter
prejuízos, como fazer uso das árvores da floresta, bem como fazer reflorestamento; fornecer
água para a população extraída do subsolo, caso essa exceda as necessidades da própria
empresa e nos limites das possibilidades técnicas; se caso o Estado baiano decidisse alienar
total ou parcialmente áreas de terras desapropriadas que não fosse ocupada pela empresa e
presente na escritura, deveria informar a mineradora “para que possa ela usar, dentro do prazo
de doze (12) mêses, da preferência para a sua aquisição, pagando o prêço das benfeitorias que
51
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Arquivo do Judiciário, Escrituras, Cartório 320, Caixa 435, n°
3079, fl. 20-21. 52
Quer dizer nesse caso, o uso de propriedades vizinhas para fins da atividade mineral. 53
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Arquivo do Judiciário, Escrituras, Cartório 320, Caixa 435, n°
3079, fl. 18-18v.
70
forem pela ora outorgado ali realizadas” 54
, se caso a mineradora não fizesse uso desse direito
de preferência “a venda que for realizada com terceiros deverá sempre ser feita com os
encargos constantes da presente escritura em tôda a sua plenitude.” 55
Como áreas pertencentes à indústria foram também desapropriadas, a empresa decidiu
abrir mão da indenização que o Estado deveria lhe pagar em troca de algumas condições que a
beneficiasse. Então, percebemos que o intuito da desapropriação foi o de assegurar o
funcionamento da empresa, visto que as condições dadas pela mineradora foram atendidas.
Quanto à indenização que seria feita aos proprietários dos terrenos, não há registro de que
todos os donos receberam, e cogitamos que não, já que por conta do “roubo” feito por
Macário, algumas terras legalmente pertenciam a mineradora, sendo ela própria
desapropriada. O que podemos afirmar é que alguns lavradores não aceitaram a
desapropriação.
Existe uma matéria, intitulada “O escândalo do „caxixe‟ de Boquira”, publicada em
março de 1960 n‟O Semanário que atesta a insatisfação. O periódico versa sobre o caso dos
lavradores desapropriados, dando ênfase à relação do governador Baiano Juraci Magalhães
com o episódio. A matéria sugere que o governador apoiava a indústria de mineração em
Boquira em detrimento dos lavradores. De acordo com o texto:
A parcialidade do governador é tamanha – acrescentam – que se recusou a
ouvir as ponderações do bispo de Caetité, dom José Pedro que o procura
para junto a êle interceder pelos pobres e infelizes posseiros, representando
120 famílias desalojadas de suas terras pelo poderoso e corruptor truste
estrangeiro, Juraci quase pôs para fora do seu gabinete o bondoso prelado!56
Juraci Magalhães (1959-1963), também estava preocupado com o desenvolvimento
capitalista na Bahia. Foi em seu governo que se criou o Plano de Desenvolvimento da Bahia
(PLANDEB), que objetivava a recuperação econômica do estado. Embora não tivesse tido
êxito com o plano, conseguiu realizar várias ações no sentido de avançar no setor industrial,
como a instalação de indústrias petroquímicas e melhoramento das condições de transporte no
estado.57
54
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Arquivo do Judiciário, Escrituras, Cartório 320, Caixa 435, n°
3079, fs. 18-19. 55
Ibid., fl. 19. 56
BAIANOS DENUNCIAM O FALSO NACIONALISMO DE JURACI, O ESCÂNDALO DO „CAXIXE‟ DE
BOQUIRA. O Semanário. Rio de Janeiro, 19-25 mar. 1960.p. 5. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=149322&pagfis=3007&url=http://memoria.bn
.br/docreader#>. Acesso em: 27 fev. 2017. 57
GUIMARÃES, 2003, p. 127-135.
71
A matéria denuncia o que seria um pretenso nacionalismo de Juraci Magalhães, que
em campanha se declarou como defensor dos interesses nacionais, e no caso dos lavradores de
Boquira teria se colocado a favor das empresas estrangeiras. O texto traz informações
importantes sobre o incidente:
E assim foi que menos de 5 meses decorridos desde que assumiu o govêrno
da Bahia, estoura em suas mãos o chamado „caso Boquira‟ vergonhoso
„caxixe‟, protagonizado, de um lado pelo poderoso grupo da „Plumbum‟, e
de outro, por uma legião de pobres lavradores espoliados, enganados e
desprotegidos. No govêrno passado as terras pertencentes aos lavradores
foram criminosamente desapropriadas e mais criminosamente ainda
entregues aos trustes representado pela „Plumbum‟. Tão logo investido no
poder o Dr. Juraci Magalhães declarou a imprensa sôbre o assunto, que o ato
desapropriatório fora obtido mercê de um inquestionável tráfico de
influência daí toda a Bahia ficar pensando que, finalmente, justiça seria feita
nesse caso, que se caracteriza como o mais escabroso dos últimos tempos,
ocorridos no Estado [...].58
Segundo o jornal, Juraci Magalhães logo mudou de atitude quando começou a
negociar a questão, e em reunião com os lavradores argumentou que aqueles „estavam mal
orientados sobre o seus direitos ao subsolo‟, e que o melhor a se fazer era os agricultores
aceitarem a proposta do governo, mantendo a desapropriação,“enquanto a „Plumbum‟ ficaria
obrigada a pagar aos lavradores, Cr$ 400.00 por tonelada de minério obtido”.59
Na ata da Câmara Municipal de Boquira, de nove de maio de 1966, foi transcrita uma
escritura pública de Retificação e Ratificação do contrato firmado em 1959 entre o Estado da
Bahia e a Mineração Boquira Ltda. Na escritura já aparece a assinatura do governador Juraci
Magalhães, citada abaixo. A citação longa justifica-se pela riqueza de dados:
[...] ficando a retificação e ratificação feitas:/ Obriga-se a Mineração Boquira
Ltda: a) – A respeitar que os atuais moradores da Fazenda Boquira,
prossigam em suas atividades agrícolas no perímetro do Núcleo de
Assistência Rural de Boquira – NARB, Salvo nas partes que necessite
ocupar para suas atividades industriais e outras delas consequentes, hipótese
em que porá a disposição dos ditos moradores áreas equivalentes para suas
atividades agrícolas no mesmo Município, Salvo se eles concordarem com
outra solução, encaminhada e firmada com a participação de representantes
do Estado. b) A pôr à disposição dos referidos agricultores, bombeados para
58
BAIANOS DENUNCIAM O FALSO NACIONALISMO DE JURACI, O ESCÂNDALO DO „CAXIXE‟ DE
BOQUIRA. O Semanário. Rio de Janeiro, 19-25 mar. 1960.p. 5. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=149322&pagfis=3007&url=http://memoria.bn
.br/docreader#>. Acesso em: 27 fev. 2017. 59
BAIANOS DENUNCIAM O FALSO NACIONALISMO DE JURACI, O ESCÂNDALO DO „CAXIXE‟ DE
BOQUIRA. O Semanário. Rio de Janeiro, 19-25 mar. 1960.p. 5. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=149322&pagfis=3007&url=http://memoria.bn
.br/docreader#>. Acesso em: 27 fev. 2017.
72
fora dos poços ou captadas em nascentes, 600m³ (seiscentos metros cúbicos)
de água por dia, no mínimo, para uso agrícola dos mesmos agricultores. c) A
contratar, dentro de 30 (trinta) dias, com empresa idônea, a perfuração de
três (3) ou mais poços, para execução dentro do mesmo prazo oferecido pela
empresa e cuja produção integral será, do mesmo modo e na forma acima,
posto à disposição dos mesmos agricultores, não podendo ser menos de
600m³ ( seiscentos metros cúbicos) de água por dia. d) A construir em
Boquira, no local indicado pelo Estado da Bahia, um prédio escolar, um
posto médico e um clube recreativo, e de contribuir com a quantia de Cr$
2.000.000,00 (dois milhões de cruzeiros) para auxiliar a construção do
ginásio de Macaúbas. e) A considerar [...] e, por conseguinte, disponíveis
para aplicação em exercícios posteriores, os saldos porventura não aplicados
no ano e relativos à verba anual de Cr$ 500.000,00 (quinhentos mil
cruzeiros) com que se obrigou a contribuir para o NARB e destinada à
melhoria das condições agrícolas da região. f) A garantir um mínimo de Cr$
800.000,00 (oitocentos mil cruzeiros) mensais, a partir de primeiro de
novembro de mil novecentos e cinquenta e nove por conta do „royalty‟ que
se obrigou a pagar aos referidos moradores de Boquira e que se tratam as
escrituras que com eles firmou. g) A pagar aos mesmos moradores, para o
minério exportado com teor acima de 50% (cinquenta por cento) de chumbo
metal, a diferença para mais, sobre a taxa base de Cr$ 400,00 (quatrocentos
cruzeiros) por toda tonelada, proporcional à diferença de teor. h) A aceitar a
fiscalização, pelos mesmos moradores e pelo Estado, sobre a quantidade e
teor do minério embarcado, para efeito de cálculo do royalty a pagar do
mesmo modo como à cumprir o critério que for por eles fixado para sua
distribuição entre os que a ele tenham direito. i) A fornecer mensalmente ao
Estado e os mesmos moradores uma conta corrente relativa ao movimento
do royalty referido. [...] 60
Como se vê, o governo tentou fazer uma conciliação entre a empresa e os agricultores
para garantir a exploração do minério. Desapropriou os terrenos e em troca disso a mineradora
teria que pagar os royalties, oferecer água aos lavradores, construir uma escola, posto médico,
clube, criar e manter um núcleo de assistência rural (NARB). Então ficaria a cargo da empresa
oferecer uma série de benefícios aos agricultores desapropriados e demais moradores de
Boquira.
O vereador que requisitou a apresentação da escritura na Câmara dos vereadores de
Boquira, Narciso Pereira dos Santos, solicitou também que fosse enviada uma cópia para o
prefeito da cidade e outra para o gerente da Mineração Boquira S/A. Narciso Santos e
Joaquim Almeida Rodriguês61
, integrantes da legislatura de 1963 a 1966, foram os dois
únicos vereadores que em algum momento apresentaram opinião contrária aos demais quanto
à atuação da empresa, e apenas esses dois fizeram referência a situação dos lavradores na
Câmara.
60
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 10-08- de abril de 1963, a 31 de dezembro de 1968.
Fl. 60 v. 61
Não conseguimos registros das siglas partidárias dos vereadores.
73
A solicitação do documento e sua leitura na sessão da Câmara, bem como o
encaminhamento para o prefeito e o gerente da indústria, nos sugere que o convênio não
estava sendo cumprido de acordo com o estabelecido. O vereador estava ali exercendo o papel
de lembrar as autoridades, sobre o que tinha sido firmado há sete anos. Em 29 de novembro
de 1963, em uma sessão da Câmara, pediram a palavra Narciso Santos e Joaquim Rodriguês.
Os dois pretendiam esclarecer porque deixaram de assinar um contrato entre a prefeitura e a
Mineração Boquira. Em ata ficou registrado que:
[...] tendo solicitado a palavra os senhores vereadores Narciso Pereira dos
Santos, e Joaquim Almeida Rodriguês, [...] para comunicarem a esta Câmara
de vereadores que deixaram de assinar o contrato firmado entre a Prefeitura
Municipal de Boquira e as Cias. Mineração Boquira S.A. e a Companhia
Brasileira de Chumbo Cobrac, sobre a concessão de energia elétrica a esta
prefeitura, por discordarem dos têrmos do contrato, que não assegura
nenhum direito a esta prefeitura.62
Percebemos uma clara oposição desses vereadores à Mineração Boquira S.A, aos
outros vereadores e ao prefeito. Curiosamente, eles só participaram da primeira legislatura de
1963-1966. A ata nos permite refletir, ainda, sobre a relação mantida entre a prefeitura e a
empresa. O contrato estabelecido entre elas sugere a participação da empresa no âmbito
administrativo do município. Em outra ocasião, em seis de novembro de 1964, no momento
de votação final da proposta orçamentária para o exercício de 1965 observamos que a
proposta foi aprovada, mas os vereadores da oposição se recusaram a votar, alegando
arbitrariedade do prefeito.
Submetida a votação, obteve quatro votos, favoráveis a aprovação, tendo
dois votos, contrários. Em continuação, o senhor presidente declarou
franqueada a palavra, que foi solicitada pelo vereador Narciso Pereira dos
Santos, para declarar que deixou de votar pela aprovação da proposta
orçamentária do exercício de 1965, porque o senhor prefeito não precisa dos
votos dos vereadores que lhe fazem oposição, como também porque o
senhor prefeito até hoje não executou nenhum dos projetos apresentados e
aprovados pelos os senhores vereadores. A palavra foi também usada pelo
senhor vereador Joaquim Almeida Rodrigues para dizer que confirmava seu
pedido de água e luz para esta cidade. Não em convênio com a Companhia e
sim pela a prefeitura. 63
Aqui verificamos que de fato esses dois vereadores faziam oposição ao prefeito José
Lins da Costa, natural de Salvador. O prefeito era médico e funcionário da mineradora.
62
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 10-08- de abril de 1963, a 31 de dezembro de 1968.
Fl. 26 v. 63
Ibid., fl. 38 v., 39.
74
Quando Narciso Pereira dos Santos diz que o prefeito não precisava dos votos da oposição,
quis enfatizar que a maioria dos vereadores o apoiava. Aparece outra vez a insistência de
Joaquim Rodrigues, em querer que a prefeitura fosse mais autônoma recusando os convênios
com a mineradora, isso demonstra também o quanto a empresa participava da administração
do município.
Descobrimos que Joaquim Rodrigues era também proprietário dos terrenos que foram
desapropriados para a mineração. No dia 14 de maio de 1965, o vereador Olavo Figueiredo
Costa, leu uma moção felicitando o dia em que a localidade denominada Assunção mudou seu
nome para Boquira, em quinze de maio de 1935. De acordo com o vereador:
Boquira quer dizer terra vermelha, justamente mostrando que o nosso lugar o
seu solo é da cor do sol, este astro que traz riqueza, sorte e tudo enfim para a
humanidade. E tantos outros lugares do Brasil que têem nome indígena
correspondente ao que eles são. E, parecendo que a mudança de nome trouxe
sorte para o lugar, é que hoje aquele que em 1935 era distrito, hoje é
município de valor, pois no seu solo estava escondido a maior mineração ou
maior minério de chumbo do mundo. Estamos de parabéns. Cantemos hino
ao Município que se desenvolve a passos largos trazendo progresso, riqueza,
paz e felicidade para a Bahia e para o Brasil. Portanto, viva 15 de maio de
1935. [...] Em seguida solicitou e obteve a palavra o sr. Vereador Joaquim de
Almeida Rodrigues, que a nossa Boquira é uma terra rica e dar viva para o
Brasil ser dono da nossa terra. Mas o Brasil deve punir os pobres dono
dessas terras que vem da paternidade. Eu vereador Joaquim de Almeida
Rodrigues dono de terras e outros donos de terras e águas sofrendo falta da
riqueza de Boquira, por isso apelo pelo Brasil procurar os documentos que
veio da paternidade se os legítimos donos não estão em sofrimento. Mesmo
assim dou vivas ao Brasil, porque sou brasileiro e peço deferimento.64
Enquanto o vereador Olavo Costa elogiava a riqueza e o desenvolvimento de Boquira,
Joaquim Rodrigues fez questão de lembrar a situação dos lavradores que eram os donos das
terras e, segundo seu julgamento, não estavam tendo acesso à riqueza do lugar. Mais uma vez
aparece a sugestão de que os agricultores não estavam sendo favorecidos com as cláusulas
firmadas no contrato entre o Estado e a mineradora. Na Câmara Municipal Joaquim
Rodrigues representava a minoria, portando, uma voz isolada dentro daquela lógica de poder
estabelecido. Em sete de junho do mesmo ano, Joaquim Rodrigues fala novamente sobre as
terras:
Levar ao conhecimento do Departamento das municipalidades da moção da
grande riqueza de Boquira, que não está no conhecimento de quem tem
64
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 10-08- de abril de 1963, a 31 de dezembro de 1968.
Fls. 43v, 44.
75
terrenos legalizados e nem suas águas em suas mãos. Procure nos cartórios
os contratos de quem são donos. Os donos que eu conheço estão todos em
miséria. Peço deferimento.65
Percebemos a contradição no cenário social de Boquira dentro da própria Câmara
Municipal, de sujeitos que representavam um dado grupo social. Joaquim Rodrigues
claramente estava ali tentando colocar a questão dos lavradores em pauta. Sugerimos que a
sua posição não significava muito dentro daquele quadro, já que entre oito vereadores, apenas
Narciso Santos parecia ter um posicionamento parecido. Nas reuniões, Joaquim Rodrigues
apelava para que fosse lembrada a condição precária em que estavam os lavradores e se
fizesse algo no sentido de minimizar a situação.
Em seis de maio de 1966, Narciso Santos se pronuncia na sessão da Câmara dizendo:
“nunca deixei de aprovar as contas do sr. Prefeito a fim de não cortar o bem estar do nosso
município. Mesmo que os projetos da bancada oposicionista se acha até essa data
engavetada”.66
Ao que indica a fonte, aqueles que faziam oposição ao prefeito não
conseguiam que projetos fossem desenvolvidos, então, de fato o posicionamento desses
vereadores não possuía força naquele cenário.
A geógrafa Iracema Oliveira discute em seu estudo a relação existente entre a
mineradora e os prefeitos. Constrói uma tabela com o nome de todos os prefeitos (de 1962,
quando Boquira se emancipou, até 1992, fim das atividades de mineração), o período que
cada um exerceu o mandato e o cargo que possuía na empresa. Conclui que, de todos os
prefeitos, em um total de seis, apenas um não desempenhou um cargo na mineradora, sendo
que dois exerceram dois mandatos. A geógrafa entende que os prefeitos e alguns vereadores
estavam ali para defenderem os interesses da indústria.67
Foi o que notamos na análise que fizemos das atas da Câmara Municipal. Até 1979,
período em que nossa pesquisa abrange, vimos que a maioria dos vereadores estavam de
acordo com a relação que se estabelecia entre a prefeitura e a indústria de mineração.
Voltaremos a esse assunto mais adiante.
65
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 10-08- de abril de 1963, a 31 de dezembro de 1968.
Fls.46 v., 47. 66
Ibid., fl.59. 67
OLIVEIRA, 2011, p. 30, 32.
76
2.3. Denuncias do convênio ganham visibilidade
No jornal O Estado de São Paulo se realizou uma série de matérias tratando de
conflitos envolvendo a Peñarroya, multinacional francesa. Sobre denúncias feitas contra a
empresa. Ademais, organizou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as
atividades das multinacionais no país. A Peñarroya foi acusada por dois deputados, J.G. de
Araujo Jorge (MDB-RJ) e Nóide Cerqueira (MDB-BA), por contrabando de prata, chumbo e
aço, sonegação de impostos, corrupção e assassinatos. Segundo o jornal, os parlamentares
falaram sobre a desapropriação dos terrenos:
Em defesa das propriedades, os agricultores contrataram o advogado
Arnaldo Rodrigues Silveira que, de acordo com os parlamentares perdeu
propositadamente a causa. O advogado passaria a ocupar, em seguida, o
cargo de diretor da Companhia Brasileira de Chumbo que se formara para
aproveitar o minério do Morro do Cruzeiro. Sem recursos para explorar o
minério, o padre Macário associou-se ao grupo Peñarroya, cujo controle de
capital pertence ao grupo Rotschild da França. Logo depois, o grupo
Peñarroya firmou um convênio com o Estado da Bahia, então governado por
Juracy Magalhães, pelo qual as áreas de mineração foram desapropriadas
pelo poder público e doadas a firmas de mineração do grupo Rotschild.68
A fonte sugere que o advogado contratado pelos agricultores teria desistido da causa,
por ter sido persuadido pela mineradora, e teve como recompensa um cargo na empresa. De
fato, Arnaldo Rodrigues Silveira aparece como diretor da COBRAC em ata da empresa,
publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo no ano de 1970.69
Publicações de vários
jornais do país (citamos algumas) evidenciam que o problema ganhou visibilidade e que
durante a década de 1970, muitos anos depois da desapropriação e da instituição do convênio,
a questão ainda estava sendo debatida.
O livreto compilado por Alexandria Pontes, ao qual já nos referimos, trata sobre as
ações dos advogados no caso dos agricultores de Boquira. Diz que os agricultores moveram
ações por meio do trabalho de dois advogados, o primeiro perdeu a ação e o segundo
desapareceu sem dar satisfação, mesmo os agricultores tendo pago os honorários. O primeiro
foi Arnaldo Rodrigues da Silveira, que depois passou “a ocupar o cargo de direção em uma
68
CPI DE MULTINACIONAIS CONVOCOU QUATRO MINISTROS. O Estado de São Paulo. São Paulo, 12
set. 1975.p. 31.Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19750912-30818-nac-0031-999-31-
not/busca/Boquira>. Acesso em: 22 abr. 2016. 69
MINERAÇÃO BOQUIRA S.A...Diário Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo, 29 ago. 1970.p.20.
Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/diarios/4927218/pg-20-ineditoriais-diario-oficial-do-estado-de-
sao-paulo-dosp-de-29-08-1970/pdfView>. Acesso em: 17 fev. 2017.
77
das empresas contra quem advogava, fato que até hoje tem provocado os mais diversos
comentários nos meios judiciários da Bahia”.70
Ainda de acordo com o documento, o segundo advogado, Cístenes de Oliveira, havia
comentários que teria sido instruído para que não mais advogasse na comarca de Macaúbas. O
advogado teria deixado uma carta a um amigo em que expressava sua revolta sobre „a
manifesta intromissão da mineração (Boquira) na política local e a suspeitabilidade do Juiz e
do Promotor, comprometidos com a Mineração, de quem recebem favores e benesses‟71
. Diz
ainda que os trabalhadores naquele momento não possuíam mais recursos para contratar
advogados e a opção que lhes restou foi a de se manifestarem, por meio da imprensa, “para as
autoridades maiores do Estado e da República no sentido de que sejam tomadas providências
saneadoras visando a resguardar os seus direitos”.72
Portanto, apresentamos mais um indício de que os advogados contratados pelos
agricultores foram de algum modo convencidos pelos dirigentes da indústria mineira a
abandonarem a causa. Diante da situação, notamos que os agricultores resolveram recorrer à
imprensa, por não possuírem mais dinheiro para contratar advogados. No Jornal O Estado de
São Paulo foram realizadas diversas matérias ao longo da década de 1970 que faziam
referência ao caso dos agricultores e da mineradora em Boquira. Cremos que o interesse desse
órgão de imprensa em divulgar essas informações esteve relacionado à repercussão que o
assunto ganhou no período, especialmente devido à atuação do jornalista Alexandria Pontes,
natural de Boquira. O jornalista escreveu diversos artigos denunciando a mineradora em
Boquira. Além disso, a empresa estava sendo investigada por uma CPI que inquiria as ações
das multinacionais no país, incluindo a mineradora de Boquira.
Em 8 de outubro de 1976, outra matéria, no mesmo jornal, tratou da denúncia que fez
o deputado emedebista, Aristeu Almeida, acerca dos abusos da mineradora em Boquira:
O deputado emedebista Aristeu Almeida protestou ontem, contra „os abusos
que a mineração Boquira S.A vem praticando em detrimento dos agricultores
locais‟, antigos proprietários de terra, aos quais, segundo ele, a empresa deve
7,9 milhões de dólares. Em discussão na Assembleia Legislativa, Aristeu de
Almeida pediu ao governo do Estado e à justiça baiana que intercedam em
favor dos lavradores de Boquira, investigando quanto a mineradora lhes
deve. Alertou para „a sonegação de impostos, contrabando de ouro e prata,
além de suborno de advogados e autoridades pela Boquira.‟
Utilizando um quadro estatístico elaborado com base em dados de anuários
do IBGE. Anuário Mineral do DNPM e publicações do tipo „Perfil Analítico
70
PONTES, 1976, p. 19. 71
Ibid., p. 20. 72
Idem.
78
do Chumbo‟; também do DNPM. O deputado tentou demonstrar que a
Boquira e sua associada a COBRAC situada em Santo Amaro da Purificação
produziram 263 945 quilos de ouro e 87 962 quilos de prata, entre 1960 e
1975, além de 450 mil toneladas de chumbo concentrado, entre 1955 e 1975.
„Isso tudo – disse Almeida- sem levar em conta a parte que a mineradora
deixou de declarar, já que não existe fiscalização de suas atividades‟. 73
O deputado não deixa claro porque ele falou da dívida da mineradora para com os
agricultores, fazendo um levantamento sobre o quanto a mineradora estava faturando. No
entanto, aparece na mesma matéria o assunto do convênio entre a mineradora e o governo da
Bahia, descumprido pela primeira. Então, é possível inferir que a indústria de mineração não
estava pagando aos agricultores o que foi estabelecido no convênio.
De acordo com a narrativa do jornalista Rabelo, mencionada anteriormente, depois de
ouvir as reclamações dos agricultores, ele decidiu então ouvir a versão da empresa, junto com
o amigo Alexandria Pontes. O trecho é um relato que o jornalista faz sobre o posicionamento
da empresa, incluindo tons de ironia. Mas, podemos supor que os dirigentes não iriam se
posicionar de outro modo, mas sim, colocar os benefícios que a empresa gerou para o lugar:
Como não podia deixar de acontecer, nada do que havíamos apurado entre os
lavradores foi sequer referido nas declarações dos dirigentes da empresa.
Pelo contrário, na sua versão, a mineração de chumbo era fonte de benéficos
para o município, que possuía um bonito clube, com piscina, onde se
reuniam os sócios do Lions‟Club, uma vez por semana, a atestar que tudo
corria muito bem, havendo perfeito entrosamento entre os objetivos da
mineração e das classes produtoras de Boquira. Queixas, se houvesse, não
passavam da manifestação de ingratidão dos eternos descontentes, que
sempre existem em toda coletividade. Eram resmungos de fracassados na
labuta sempre árida do campo. Mas a empresa de mineração havia
construído um hospital, uma escola, além de ser a maior contribuinte para os
cofres da prefeitura de Boquira.74
Da forma como escreve o jornalista, a fala dos dirigentes aparece como se a
construção do hospital e de uma escola fosse uma dádiva da empresa, sendo que só foi feito
por conta do convênio que fez com o governo da Bahia. É possível perceber a imagem que
tentavam criar da indústria, como se ela houvesse levado apenas benefícios para Boquira. Tal
posicionamento tentava encobrir e/ou minimizar os conflitos.
73
DEPUTADO DENUNCIA ABUSOS DA BOQUIRA.O Estado de São Paulo. São Paulo, 8 out.1976.p.28.
Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19761008-31150-nac-0028-999-28-not/busca/Boquira>.
Acesso em: 23 abr. 2016. 74
RABELO, 1974.p. 4.
79
Como já foi dito, o convênio entre o governo baiano e a mineradora foi tema de várias
matérias do Jornal O Estado de São Paulo. Em 17 de outubro de 1975 o jornal noticiou:
“Processo reabre caso das jazidas de Boquira”:
A advogada Aldenoura de Sá Porto dará entrada, nos próximos dias, na
justiça de São Paulo, a uma ação contra a Mineração Boquira S.A, visando a
prestação de contas do convênio assinado há 20 anos entre a empresa e o
governo da Bahia, pelo qual a mineradora é obrigada, entre outras coisas, a
pagar royalties aos posseiros das terras onde são exploradas minas de
chumbo e a manter um núcleo de assistência rural. Aldenoura de Sá Porto
denuncia diversas irregularidades, em nome de cerca de 20 posseiros de
Boquira. Segundo ela, a empresa desde o início não vem cumprindo o
convênio e, por outro lado, controla o município com mão de ferro,
instituindo ali um verdadeiro terror.75
Ao que indica a matéria, os agricultores abriram um processo com o objetivo de forçar
a prestação de contas do convênio firmado em 1959. No texto diz que vinte lavradores
entraram com a ação, mas não devemos perder de vista que os nomes das esposas e filhos
talvez não tivessem incluídos. Então, como indicado, o convênio não se cumpriu como se
firmou no contrato. Ainda nessa matéria existe uma justificativa dada por um dos posseiros
sobre o porquê de contratar uma advogada do Estado de São Paulo:
Mas, como na Bahia „todos os advogados e mais uma porção de gente foram
comprados pela Boquira‟, segundo Joaquim Angelo, um dos posseiros, o
processo acabou em São Paulo, nas mãos da advogada Aldenoura de Sá
Porto, que já conseguiu, pelo menos, fazer aparecer o processo da ação
rescisória, que somente nas mãos de um advogado baiano passou cinco anos
engavetado.76
O lavrador afirma que na Bahia não foi possível dar andamento ao processo porque os
próprios advogados acabavam sendo influenciados pela indústria de mineração. Essa mesma
afirmação pode ser atestada em outras fontes, como vimos acima. Não sabemos porque os
lavradores demoraram vinte anos para entrar com esse processo de prestação de contas, talvez
a questão de não encontrarem na Bahia um advogado disposto a levar até as últimas
consequências o processo contra a mineradora, somada aos parcos recursos dos agricultores,
justifiquem a demora. Vimos que denúncias sobre a situação dos antigos donos das terras não
75
PROCESSO REABRE CASO DAS JAZIDAS DE BOQUIRA.O Estado de São Paulo.São Paulo, 17
out.1975.p.14.Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19751017-30848-nac-0014-999-14-
not/busca/Boquira> Acesso em: 22 abr. 2016. 76
PROCESSO REABRE CASO DAS JAZIDAS DE BOQUIRA.O Estado de São Paulo.São Paulo, 17
out.1975.p.14.Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19751017-30848-nac-0014-999-14-
not/busca/Boquira> Acesso em: 22 abr. 2016.
80
deixaram de ser feitas, como demonstramos com as atas da Câmara de vereadores, mas
podemos supor que não era do interesse de quem estava no poder, tanto na prefeitura de
Boquira quanto no governo do Estado, de intervirem em favor dos agricultores.
Em 17 de setembro de 1976, o Estado de São Paulo pronunciou “relatório oficial é
recusado” se referindo ao relatório feito pela Secretaria da Agricultura da Bahia sobre a
fiscalização do convênio:
Isentando a Mineração Boquira das acusações de não cumprir cláusulas de
um convênio assinada pela empresa com o governo baiano, em prejuízo dos
agricultores antigos proprietários das terras onde se situa a mineradora, foi
considerado incompleto e devolvido, no início da semana pela Procuradoria
Geral do Estado. 77
Então, foi feito nesse momento um relatório que inocentava a mineradora das
acusações, sendo rejeitado. Notamos que foi forjado um relatório em favor da mineradora, o
que, mais uma vez, atesta a influência exercida por aquela empresa. Em sete de junho de
1979, o mesmo periódico informa sobre um reestudo que o governo faria em relação ao
convênio. Diz:
Ao anunciar ontem a disposição de reavaliar o convênio, o secretário da
Agricultura do Estado, Renan Baleeiro, admitiu a hipótese de punir a
Boquira, embora tivesse ressalvado que ao iniciar a reavaliação, “o governo
não tem qualquer posição preconcebida”.78
Decorridos três anos da recusa de um relatório que objetivava a fiscalização do
convênio, o Estado da Bahia se comprometeu a retomar o estudo do convênio. Em 19 de julho
de 1979, O Estado de São Paulo voltou a noticiar: “Será denunciado convênio da BA com a
Boquira”:
Por determinação do governo Antônio Carlos Magalhães, a Procuradoria
Geral do Estado deverá denunciar nos próximos dias o convênio firmado há
mais de 20 anos entre o Estado da Bahia e a Mineração Boquira, subsidiária
do grupo francês Penaroya. Pelo convênio, a Boquira obriga-se a promover
diversos benefícios para os agricultores da área onde se localiza a mina que
explora, a 650 quilômetros de Salvador, mas depois de uma inspeção feita
77
RELATÓRIO OFICIAL É RECUSADO. O Estado de São Paulo. São Paulo, 17 set. 1976.p.15. Disponível
em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19760917-31132-nac-0015-999-15-not/busca/Boquira>.Acesso em:
23 abr. 2016. 78
GOVERNO BAIANO REESTUDA CONVÊNIO. O Estado de São Paulo. São Paulo, 7 jun. 1979.p.22.
Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19790607-31971-nac-0022-999-22-
not/busca/Boquira>.Acesso em: 22 abr. 2016.
81
recentemente na área, o governo do Estado concluiu que a Mineração
Boquira não vem cumprindo sua parte no convênio.79
Quatro anos depois da matéria tratando sobre o processo aberto pela advogada
Aldenoura Porto, o mesmo jornal noticiou que seria feita uma denúncia pela Procuradoria
Geral do Estado contra o convênio, por este não ter sido cumprido pela mineradora. A
denúncia só ocorreu três meses depois, em 31 de outubro de 1979. O Estado de São Paulo
noticiou: “Bahia denuncia convênio com mineradora”:
O governo baiano decidiu ontem denunciar o convênio que mantém com a
mineração Boquira desde 1959, pelo qual a empresa subsidiária da
multinacional Peñarroya, obrigava-se a promover diversos benefícios aos
agricultores da área onde explora minério de chumbo, a 650 km de Salvador.
A empresa é acusada pelos agricultores de não cumprir o convênio e de três
crimes de morte.80
A fonte evidencia que o convênio realmente não estava sendo cumprindo pela
indústria de mineração. É possível supor que o governo tenha feito a inspeção relacionada ao
cumprimento do convênio, por ter sido pressionado a fazê-lo. Alguns indícios convergem para
tal interpretação, a exemplo das denúncias terem ganhado visibilidade nacional, devido à ação
da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigava as ações da multinacional, e das
matérias sobre o processo aberto pela advogada Aldenoura de Sá Porto, e outras envolvendo a
multinacional Peñarroya. Apesar da repercussão, é curiosa a demora do governo baiano em
rever o convênio, somente quatro anos depois que o processo de prestação de contas foi
aberto.
O Estado protelou a situação por muito tempo. O governador desse período, Antônio
Carlos Magalhães, conhecia muito bem a mineradora em Boquira. Inclusive chegou a receber
título de cidadão Boquirense em 1974. O então governador visitou Boquira na ocasião da
inauguração da Rodovia Estadual (BA – 156), que ligava Boquira a Rodovia Federal (BR-
242). A Revista dos Municípios Brasileiros (ALFA) faz a reportagem, intitula “Boquira,
maior produtor de chumbo do Brasil, recebe a visita do governador”.81
O prefeito da cidade
79
SERÁ DENUNCIADO CONVÊNIO DA BA COM A BOQUIRA.O Estado de São Paulo. São Paulo, 19 jul.
1979.p.39. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19790607-31971-nac-0022-999-22-
not/busca/Boquira>. Acesso em: 22 abr. 2016. 80
BAHIA DENUNCIA CONVÊNIO COM MINERADORA. O Estado de São Paulo. São Paulo, 31 out.
1979.p.27. Disponível em:<http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19791031-32096-nac-0027-999-27-
not/busca/ Penarroya>. Acesso em: 22 abr. 2016. 81
BOQUIRA, maior produtor de chumbo do Brasil, recebe a visita do governador. Alfa, Salvador: Clodomiro
Alves LTDA, n. 22, nov. 1974.
82
entregou a Antônio Carlos Magalhães o título de „Cidadão da Região‟. Em agradecimento o
governador fez o seguinte pronunciamento:
Esta região que é tão rica, viveu até bem pouco ilhada, sem nenhum meio
pelo qual pudesse escoar as suas riquezas, mas agora, com a inauguração da
BA – 156 ( ligação BR- 242/ Oliveira dos Brejinhos / BOQUIRA/
Macaúbas) ela se integra definitivamente a todo o Estado, passando assim a
contribuir para o seu desenvolvimento econômico e social.82
Ainda de acordo com a reportagem:
Após a solenidade, o chefe do executivo baiano percorreu as instalações da
fábrica inteirando-se do seu funcionamento e dos detalhes da sua linha de
produção, ouvindo técnicos e diretores da empresa que destacaram a „ajuda
inestimável do Governo Antônio Carlos Magalhães para o desenvolvimento
do empreendimento, que muito significa para a economia do país, do Estado
e, particularmente, para a região de BOQUIRA‟.83
A revista Alfa, visivelmente, procurava elogiar os feitos do governador baiano. Mas o
que nos interessa aqui é demonstrar que o governo vinha apoiando o desenvolvimento da
indústria, com a construção da BA 156 que facilitou o transporte para a empresa. Tal medida
era compatível com o que Carla Pereira, em seu estudo sobre o governo de Antônio Carlos
Magalhães, sugere acerca do seu “alinhamento as concepções desenvolvimentistas do regime
militar [o que] garantiu ao [seu] governo [...] uma estrutura federal que favoreceu o
desenvolvimento da economia baiana” no período de 1971 a 1975.84
De fato, impulsionar o
desenvolvimento da indústria na Bahia, era uma das questões chaves daquele governo:
Dentro da perspectiva de desenvolvimento econômico e industrial do Estado,
construiu o Porto de Aratu, através do qual a Bahia escoaria a maior parte da
sua produção agrícola e industrial, a estrada do feijão (Irecê) e, além disso,
criou cinco distritos industriais no interior do estado nos municípios de
Ilhéus, Conquista, Jequié, Juazeiro e Itaberaba [...].85
A participação do Estado, naquele momento, era uma condição importante para o
desenvolvimento do setor industrial. Na ocasião do “I Simpósio Nacional de não ferrosos”
que aconteceu em Brasília em 1975, o Ministro das Minas e Energias, Shigeaki Ueki,
sinalizava a relevância do auxílio do governo para a iniciativa privada no setor mineral:
82
ALFA, 1974. 83
Idem. 84
PEREIRA, Carla Galvão. Continuidade ou mudança? Análise comparativa entre os governos de Antônio
Carlos Magalhães em 1971-1975 e 1991-1995. 2007. Dissertação (mestrado em Ciências Sociais) –
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. Disponível em:
<http://www.ppgcs.ufba.br/site/db/trabalhos/142013093638.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2017.p. 13-14. 85
Ibid., p. 66.
83
Geralmente, os minérios estão nos locais onde inexistem infra-estruturas de
apoio. Como o seu aproveitamento e a sua industrialização representam um
polo de desenvolvimento, criando condições para expansão de outros
setores, o governo deverá criar a infra estrutura sob sua responsabilidade,
investindo, antecipadamente os recursos fiscais que serão arrecadados após o
início das atividades. Se o governo não tomar essa providência e transferir
toda essa responsabilidade para as empresas do setor, dificilmente haverá
condições para a industrialização. [...] Naturalmente, o assunto deve ser,
examinado casuisticamente e o governo está pronto para receber as
propostas das empresas.86
Logo, era importante para o crescimento dessas empresas o apoio governamental, e o
Ministro estava ali destacando que a condição para a própria industrialização no país dependia
dessa ajuda do governo. Para o Ministro, os incentivos ao setor de mineração, nesse caso, dos
minerais não ferrosos, eram de muita importância para o Brasil, pois o país naquele momento
não era autosuficiente na produção de alguns desses minerais, como o chumbo, o zinco e o
cobre.
Não sabemos até que ponto o governador tinha conhecimento sobre a situação do
convênio e dos agricultores, mas sugerimos que, devido ao caso ter ganhado expressão
nacional, aparecendo em vários jornais do país, o governo baiano decidiu interferir e no final
fazer a denúncia do convênio. O que nos faz pensar assim é que era obrigação do próprio
Estado baiano, como firmado no contrato em 1959, fiscalizar o referido convênio. No entanto,
o próprio Estado também não vinha cumprindo sua parte no acordo.
Pedro Campos, baseado em Gramsci, lembra que as ações do Estado não devem ser
vistas separadas das relações sociais, das organizações das classes sociais e suas frações
presentes na sociedade civil, diz que para compreender a ditadura civil-militar brasileira:
Não basta apenas enfocar os sujeitos que lideraram as agências dos aparelhos
de Estado entre 1964-1985 – especificamente os militares, como é mais
usual na bibliografia – mas também as classes sociais e frações de classe, os
organismos da sociedade civil e sua representação junto ao aparelho estatal,
de modo a explicar as medidas e políticas implantadas no período.87
86
UEKI CONDICIONA APOIO ÀS MULTINACIONAIS. O Estado de São Paulo. São Paulo, 13 ago.
1975.p.25. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19750813-30792-nac-0025-999-25-
not/busca/Boquira>. Acesso em: 22 abr. 2016. 87
CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. A Ditadura dos Empreiteiros: as empresas nacionais de construção
pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985. 2012. Tese (Doutorado em História
Social) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. Disponível em: <
http://www.historia.uff.br/stricto/td/1370.pdf >. Acesso em: 17 mar. 2017.p. 29.
84
Em outras palavras, o autor quis dizer que não se pode deixar de analisar a influência
que determinado grupo social ou frações de classe exerce no aparelho do Estado, e como suas
políticas podem explicar essas relações. Com isso querermos argumentar que o Estado baiano
estava ali também para defender os interesses do empresariado industrial. A política
desenvolvida pelo governador ACM demonstra isso. Ademais, o desenvolvimento industrial
compunha o projeto político do governo do país naquele momento, e como demonstramos ao
longo desse trabalho a partir de 1950 na Bahia e no país houve uma grande preocupação em
relação ao crescimento desse setor.
Sendo assim, nesse conflito entre os lavradores e os industriários de Boquira fica
evidente que os empresários representavam uma força política maior. Ainda que a situação
dos agricultores tenha ganhado a atenção do Estado, isso se deu por conta do longo período de
luta travado por eles em que denunciavam as negligencias da mineradora e do próprio Estado.
Segundo Mendonça, também fundamentada em Gramsci, o Estado não representa
apenas o interesse de uma dada classe, grupo ou fração de classe, mas é uma “expressão
universal de toda a sociedade, incorporando até mesmo as demandas e interesses dos grupos
subalternos, mesmo que deles extirpando sua lógica própria”.88
Claro que essa representação
feita pelo Estado em relação a determinado interesses e demandas de grupos, não pode ser
entendida separada das próprias disputas presentes nas relações sociais, as lutas entre as
classes ou grupos antagônicos e até mesmo as disputas no interior de uma mesma classe ou
grupo.
O jornalista Francisco Alexandria, durante a década de 1970, fez várias denúncias
contra a multinacional francesa, e o jornal O Estado de São Paulo faz referência a elas, ao
registrar que “[...] essas denúncias são formuladas também pelo jornalista Francisco
Alexandria, nascido em Boquira, e que há quatro anos mantém uma campanha denunciando
pela imprensa as irregularidades cometidas pela empresa.” 89
Mesmo passando muito tempo
após o estabelecimento do convênio, os agricultores de Boquira não desistiram de reclamar os
seus direitos, que vinham sendo negados pela indústria de mineração, e encontraram no
jornalista conterrâneo um aliado na divulgação da situação vivenciada por eles. Sobre as
ações de Francisco Alexandria trataremos mais detidamente no próximo capítulo.
88
MENDONÇA, Sônia Regina de. O Estado ampliado como ferramenta metodológica. Marx e o Marxismo,
v.2, n.2, p. 27-43, jan. jul./ 2014. Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:TjuREaQumcwJ:www.niepmarx.com.br/revistadoniep
/index.php/MM/article/download/35/32+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br >. Acesso em: 23 mar. 2017. p. 34. 89
NA BA, SECRETARIA MANDA INVESTIGAR O CASO DE BOQUIRA. O Estado de São Paulo. São
Paulo, 6 ago. 1976.p.27. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19760806-31096-nac-0027-
999-27-not/busca/ Boquira>.Acesso em: 23 abr. 2016.
85
Em outro documento, um livro autobiográfico de Eurípedes Bonfim,90
ex-funcionário
da mineradora e ex prefeito de Boquira, que, segundo o autor, teve sua vida marcada por
perseguições dos dirigentes da indústria, faz referência entre a relação da mineradora e os
donos das terras:
[...] Novato ainda na empresa, eu não conseguia entender porque a
Mineração tratava tão bem aos seus funcionários, pagava bem, com
gratificações de dois salários no final do ano, e ao povo do lugar, que eram
os legítimos proprietários das terras, não tinham direitos a reclamações,
mesmo havendo esses direitos passados em documentação em cartório.
Descobri também que as autoridades locais e da cidade de Macaúbas- BA da
qual Boquira era município, eram manobrados pela Mineração Boquira, que
na época tinha como Chefe, o português Carlos França e como chefes
imediatos, os franceses André Prieto et Henry Granger.91
Quando Bonfim se refere aos altos salários, ele fala dos salários daqueles que
ocupavam cargos especializados, como no caso dele, que era radiotelegrafista. Segundo ele
seu salário na mineradora era alto quando comparado ao que geralmente se pagava na época.
Na entrevista realizada com o ex- gerente financeiro da mineradora, Aristóteles Mota,
percebemos em sua fala que ele tece muitos elogios a multinacional francesa:
[...] Não, é uma empresa, seguinte, ela no (conceito) trabalhista... [...] eu
trabalhei lá esses anos todos, nunca um empregado foi embora, ou mandado
embora, por falta grave ou por justa causa ou espontaneamente, pagava tudo,
aviso prévio [...] uma empresa... não saiu ninguém lá, por justa causa... e o
ambiente também de trabalho era muito... nós era uma família,
principalmente o pessoal [...] agente tinha uma união danada... uma empresa
muito boa viu... (esses dias) eu vim de Salvador com um amigo meu, a gente
conversando sobre esse assunto “rapaz eu nunca vi uma empresa, como eu
acho que não tem mais aqui” lá no meu trabalho além do décimo terceiro...
[...] meses de gratificação por ano a cada três meses de trabalho eu tinha
direito de ir pra Salvador com ou no avião da empresa [...] passava cinco
dias lá, pago pela mineração [...] além do carro que eu usava da empresa, e o
meu particular (a mineração dava) quarenta litro de gasolina por mês, todo
final de semana tinha lá o NARB e antes tinha [...] que plantava horta tudo
quanto era verdura tinha [...] hospital, médico, telefone, luz,água, jardineiro,
eu tinha um jardineiro que tomava conta da casa [...].92
Nesse relato é possível perceber que os funcionários que ocupavam cargos com uma
remuneração melhor, como o de gerência, por exemplo, possuíam várias regalias. Talvez por
isso o entrevistado enaltece tanto a empresa. Outro trecho importante é quando ele fala do
Núcleo de Assistência Rural (NARB) que, ao que parece estava de fato beneficiando aos
90
BONFIM, Eurípedes. Nem tudo está perdido. [S.I.: s.n., 199-]. 57p. 91
BONFIM, 199-, p., 12. 92
MOTA, 2012.
86
funcionários da empresa, embora não saibamos até que ponto esteve dando assistência aos
agricultores.
Compreendemos que diferentes sujeitos experimentaram a instalação da indústria em
Boquira de maneiras diversas, como no caso de Aristóteles Mota, natural de Macaúbas. Mota
não concluiu os estudos, foi para São Paulo onde chegou a trabalhar de garçom, e decidiu ir
embora para se empregar em Boquira:
Há... naquele tempo aqui, lá em Boquira não tinha ninguém qualificado e
aqui na época era poucos, então eu desde criança meu pai minha mãe, eu
saia da escola me botava pra ir trabalhar na coletoria estadual na coletoria
federal então tá entendendo...então eu tinha uma leiturazinha a mais(risos),
ai fui pra lá como apontador (pra fazer o ponto do pessoal que ia trabalhar)...
e ai fui galgando degraus... galgando, galgando, até cheguei... é tanto que
parte de escritório tá entendendo, tudo, tudo... contabilidade, eu fecho
balanço na área trabalhista na área fiscal ... então naquele tempo era pouca
gente (...) é aquela velha história aprendi na escola da vida né.93
Aristóteles chegou a exercer a função de gerente financeiro na mineradora. Começou a
trabalhar em 1957, ficando na empresa até 1988. Passou a morar em Boquira após se
empregar na empresa. Em sua fala, pontua muito os benefícios da indústria para o lugar,
principalmente quando passou a ser administrada pela multinacional francesa:
Olha a administração francesa ela tinha... um pessoal mais evoluído, mais...
excelente, a diferença enorme [...] passaram por várias administrações, duas
ou três dirigidas por brasileiros, quando era dirigida por brasileiros as piores
gestões que nós tivemos lá, [...] porque o brasileiro ele é vaidoso ele não tem
humildade, então mandava você fazer um negócio errado você “ó mas isso
aqui não é assim não, é assim” “eu mandei fazer assim faz, faz, tem que
fazer assim”, os franceses não “ó seu Prieto olha isso aqui acho que não fica
muito bom, assim o senhor não acha que fica melhor” “há não, é mesmo,
faz assim” uma diferença. 94
Aristóteles Mota compartilha de uma memória e visão positiva em relação à
mineradora, em especial sobre a administração francesa. Devemos considerar também que
houve diferentes formas dos trabalhadores entenderem e julgarem seu trabalho. Talvez
também o entrevistado possua um sentimento de nostalgia em relação ao seu passado
enquanto trabalhador e por isso supervaloriza tanto a indústria em suas memórias. Existiram
93
MOTA, 2012. 94
MOTA, 2012.
87
diversas expectativas e experiências dos sujeitos em relação ao emprego na mineradora, que
representava também oportunidade de trabalho. A indústria conseguiu cultivar tal discurso
positivo, justamente por ter montado esse tipo de relação e estrutura que beneficiava alguns
trabalhadores. Ao que parece os que trabalhavam no setor administrativo possuíam muitas
vantagens. No entanto, como vimos, nem todos partilhavam das benesses, como no caso dos
lavradores que tiveram suas terras expropriadas sem nenhuma contrapartida.
Em relação ao resultado da denúncia que fez o governo baiano ao convênio, não é
possível aferir se a indústria de fato se comprometeu a cumprir o que foi estabelecido. Mas a
ausência da informação não traz grandes prejuízos ao nosso trabalho, já que o que nos
interessa é demonstrar como foi criada as condições para que uma indústria mineira se
instalasse no pequeno povoado de Boquira, no qual vários trabalhadores rurais tiveram de sair
de suas propriedades para dar lugar ao empreendimento industrial que se lograva.
Expropriados de suas terras, os lavradores não ficaram passivos diante dos abusos que
sofreram, ainda que fosse uma luta em que eles estavam em desvantagem. Conflitos e
resistências não deixaram de fazer parte daquele cenário.
Os lavradores foram vítimas de toda sorte de enganações e negligências, prejudicados
pela nova dinâmica econômica que se constituiu em Boquira. Além de perderem suas terras e
terem de aceitar a desapropriação feita pelo Estado baiano, tiveram os direitos negados,
mesmo estes sendo firmado entre o Estado e a empresa. Ainda assim, se uniram para
reivindicar seus direitos e denunciar a mineradora, portanto, tratava-se de conflitos pela
apropriação da riqueza social. Os agricultores expropriados de Boquira, assim como outros
casos na história do país, viram como alternativa o caminho da luta para se opor aos abusos
que sofriam.
2.4. A mineradora e a política local
Acreditamos ser importante discutir a relação entre a mineradora e o poder local,
entendido aqui como os representantes políticos, prefeitos e vereadores. Assim será possível
compreendermos melhor a atuação da mineradora em Boquira. Como já foi mencionado, a
maioria dos prefeitos de Boquira na época das atividades de mineração foram os funcionários
da empresa. Na primeira disputa eleitoral em 1962 se candidatou um filho de Boquira,
Manoel José Neto, que inclusive foi autor do projeto de emancipação de Boquira quando era
88
vereador em Macaúbas. No entanto, venceu José Lins da Costa, que segundo Santos95
,
recebeu o apoio da mineradora.
Na ocasião do empossamento dos vereadores, no dia sete de abril de 1963, para a
primeira legislatura, estava presente e foi orador o ex-padre e naquele momento empresário
industrial, Macário Maia de Freitas.96
Na solenidade de instalação do município em oito de
abril de 1963, participaram da composição da mesa, Carlos França, gerente da mineradora e
Macário Maia de Freitas, que novamente fez uso da palavra no evento.97
Os discursos não
foram transcritos nas atas da Câmara, por isso destacamos apenas a presença dos sujeitos e a
posição que ocupavam enquanto representantes da indústria de mineração.
Nas atas da Câmara de 1963 a 1979 sempre surgem, em vários momentos, elogios de
vereadores à empresa e a concessão de títulos de cidadão boquirense a nomes de gerentes e
pessoas importantes da mineradora. Registra-se também o posicionamento de repúdio contra
quem se posicionasse contra a empresa e as autoridades locais. Fizeram isso com o jornalista
Francisco Alexandria, que fez diversas denúncias contra a indústria mineira e as autoridades
da região.
Um dos que exerceu cargo de gerente da empresa, Carlos Martines França, foi
assassinado em Boquira em 1963 (não se sabe exatamente qual foi o motivo do crime) e em
sua homenagem foi lida uma moção de saudade na sessão da Câmara em oito de abril de
1964.98
Em 1967 foi aprovado na Câmara o erguimento de um busto de bronze do falecido
Carlos França.99
O busto foi colocado numa praça que passou a receber seu nome. Aos dois
de dezembro de 1967, na sessão na Câmara de vereadores lia-se uma resolução firmada pelo
prefeito e pelos vereadores:
Faço saber que o sr. Prefeito Municipal de Boquira, em reconhecimento e
gratidão pelos serviços prestados ao nosso município, resolve conceder aos
senhores Pierre Waline, André Emilien Prieto, Henry Paul Grangere e Dr.
José Lins da Costa o título de cidadão Honorário de Boquira.100
O médico José Lins foi o prefeito de quem falamos, e os outros nomes, pessoas que
desempenharam cargos importantes de chefia na mineradora. Com esses dados queremos
demonstrar que claramente existia uma relação próxima entre a prefeitura e a indústria. Não
95
SANTOS, 2007, p. 44. 96
Livro de ata e termo de posse da Câmara Municipal de Boquira. Livro de posse abril de 1963. Fl. 1 v. 97
Ibid., Fl. 2 v. 98
Livro de atada Câmara Municipal de Boquira. Livro de 10-08- de abril de 1963, a 31 de dezembro de 1968. Fl.
30 v. 99
Ibid., fl. 82 v. 100
Ibid., fl. 94 v.
89
podemos ignorar o fato de que a empresa exercia uma influência enorme dentro do poder
político administrativo local, inclusive não podemos esquecer que a sua existência foi o vetor
principal da emancipação da cidade.
O Jornal Opinião publicou uma matéria de título “o feudo do truste Peñarroya” de
1975. O texto traz elementos que nos ajudam a pensar a política eleitoral em Boquira. O título
já ilustra o conteúdo do texto, que sublinha uma suposta dominação que a indústria de
mineração praticava no lugar. A narrativa de Rosalvo Rufino dos Santos, que chegou a se
candidatar a prefeito de Boquira, revela que:
Rosalvo Rufino dos Santos foi candidato a prefeito de Boquira sem a
autorização da Mineração. Ele conta que no dia das eleições, 15 de
novembro de 1972, foi intimado „a prestar esclarecimentos‟ pelo delegado
especial Edivaldo Martins Correia, conforme o memorando nº 016/72, que
ainda hoje guarda em seu poder. “A política, nessa terra, quem financia é a
própria Companhia. Nenhum candidato deles gasta um centavo. Para outros
entrar numa campanha é um bocado duro. Eu mesmo não consigo mais
concorrer com eles, vivo da lavoura e vendo no mercado um porquinho que
mato. Quando fui candidato, cheguei em Macaúbas para assistir à apuração e
tinha policiamento na porta do fórum para não deixar ninguém entrar” -
declara Rufino.101
Essa informação referente ao apoio da mineradora aos candidatos, que já apareceu em
outras fontes, como mencionamos anteriormente. A declaração feita por Rosalvo Santos pode
representar também uma insatisfação por não ter vencido as eleições. Mas ao declarar que a
indústria financiava a candidatura, ele oferece pistas importantes para pensarmos a política
eleitoral da cidade. Percebemos que o candidato apoiado pela empresa concorria as eleições
com uma margem de vantagem significativa. Outro tema que aparece na matéria diz respeito à
corrupção eleitoral:
A corrupção eleitoral declarada motivou o fiscal de urna nº 2 251, Valdemar
Curcino de Souza, a enviar uma carta ao delegado da sublegenda da Arena 2,
Juarez Santana, “para apresentar protestos mais veementes contra o
presidente da citada urna, uma vez que o mesmo, usando de todos os
recursos, não me deixou acompanhar a referida urna até o posto eleitoral,
fato que achei estranho, principalmente porque os mesários designados para
dirigir os trabalhos eleitorais das ditas urnas o foram pelo sr. José Emídio da
101
RUDÁ, 1975, p. 11.
90
Silva, funcionário da mineração Boquira, que tem sua sede em nosso
município”.
Nove dias antes dessa comunicação, Juarez Santana escrevia ao Juiz Noel
(sic.) Neto Ferreira, da 65ª Zona Eleitoral, em Macaúbas, para “estranhar o
fato de estar um dos funcionários da Mineração Boquira e Cobrac, de nome
José Emídio da Silva, funcionando no fórum dessa comarca, durante esse
período eleitoral”. Sobre esta autoridade, comenta Rosalvo, “o Juiz daqui da
Comarca, Joel Neto Ferreira, convive com eles (funcionários da Mineração),
troca de roupa dentro da empresa e todo o problema antes de discutir tem
que ir lá dentro primeiro. Só despacha documento nosso se consultar a
companhia. Até as nossas credenciais de fiscais de eleição foi uma
dificuldade para se conseguir.” 102
O trecho denuncia o envolvimento da mineradora no processo eleitoral, enfatizando
que o que Juiz eleitoral da Comarca Joel Neto Ferreira era conivente com a corrupção, já que
ele, como informa o texto, possuía uma relação bem próxima com os funcionários da
mineradora, possivelmente seus dirigentes. Ainda na matéria, fala-se até mesmo em uso de
violência física contra os que faziam oposição ao candidato apoiado pela mineradora:
A violência do truste – O professor primário de Boquira, Edis Xavier dos
Santos, informa que, durante a campanha de Rosalvo e João Figueiredo, foi a
Buicutuba (sic.), lugarejo próximo a Boquira, “lá, um grupo de Zé Lino da
Costa, ex prefeito e atual diretor do hospital mantido pela Companhia, nos
atacou. Quando não esperava, recebi tapas pelas costas, chutes, e disseram
que iam me prender e linchar sob a garantia do Doutor José. Disseram que
eu estava me metendo onde não devia. Quem me agrediu foi Nicanor
Francisco Soares e Rufino Leão, conhecido por Dozinho de Maurício. Ainda
levei dois murros. O João Figueiredo arribou o pé para me arrumar no rosto.
Depois disso, em Boquira, recebia uma intimação da polícia duas vezes por
semana. Como era verbal, não compareci. Mas no fim o delegado Gilson
Menezes mandou por escrito. Alegaram que eu tinha escrito propaganda em
favor de Rosalvo Rufino. Fiquei sendo coagido e censurado. Diziam que
mexer com Zé Lins é perigoso e da vida só presta a liberdade. Quer dizer,
eles queriam me prender”.103
De acordo com a matéria, as denúncias foram feitas em jornais de Salvador em
outubro de 1974. O diretor da indústria de mineração, na época João Ribalta Nunes, enviou
cartas a vários jornais do país, argumentando que eram „inteiramente falsas, em sua totalidade
e em seus menores detalhes, as acusações‟, disse ainda que „prestados estes esclarecimentos,
não voltaremos ao assunto‟. Apesar das cartas, a matéria conclui que, “no entanto, nenhum
esclarecimento foi prestado no sentido de rebater os fatos comprovados.” 104
102
RUDÁ, 1975, p. 11-12. 103
Ibid., p. 12. 104
Ibid., p. 12.
91
No jornal Estado de São Paulo, em 31 de agosto de 1977, foi noticiado que Edis
Xavier, em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Minérios (não
conseguimos informações sobre essa CPI) tece acusações à mineradora em Boquira. “Posseiro
acusa” é o título da notícia que declara:
Ao depor ontem na CPI dos Minérios da Câmara, o posseiro Edys Xavier
acusou a multinacional Penaroya do Brasil S/A de “implantar o terror na
região de Boquira” e fez um apelo ao presidente Geisel, para que mande
investigar o que se passa naquela área. Revelou que a situação é grave, tendo
ele sido preso e torturado por ordem do chefe político local, José Lins da
Costa, que é empregado da empresa e dirigente da Arena. 105
Podemos dizer que se trata do mesmo Edis Xavier que aparece no jornal anterior. A
informação presente nessa matéria é que ele chegou a ser preso e torturado, na outra diz que
queriam prendê-lo, mas deu a entender que não chegou a ser feito. Também descobrimos que
ele era um dos donos das terras de Boquira. Talvez, a prisão tenha ocorrido depois das
informações que ele prestou para a primeira reportagem. Tratou-se de um fato muito grave, e
por ter ido depor em uma CPI, o mais provável é que a prisão tenha acontecido.
O antigo trabalhador mineiro Abelino Manoel, relata sobre como a mineradora se
envolvia diretamente na política, inclusive persuadindo seus trabalhadores a votarem no
candidato que apoiava. O curioso na narrativa do senhor Abelino é que mesmo sob ameaça de
demissão, ele se recusou a fazer o que lhe foi imposto. Isso evidencia que existiam
trabalhadores que também resistiam aos interesses e imposições da mineradora. Diz:
[...] quando era tempo de política assim mesmo, a gente só votava no que
eles queriam, [...] ai os que eles desconfiavam que tinha votado contra, eles
davam a conta [...] eu mesmo não votava a favor deles... só tinha uma coisa
eu não conversava [...] não tinha amigo pra falar pra quem eu votei... eu só
falava pra mulher aqui em casa, mas pros outros de fora eu não falava pra
ninguém.106
Não é apenas uma memória dele. Esse mesmo aspecto aparece no relato do ex-mineiro
Astrogildo Lima. Ele narra sobre a maneira como os operários eram coagidos a votarem nos
candidatos que a indústria de mineração dava apoio, e na fala ele diz que naquela época não
existia liberdade para escolher e divulgar para outros em qual candidato iria votar. Ele conta:
105
POSSEIRO ACUSA. O Estado de São Paulo. São Paulo, 31 ago. 1977.p.26. Disponível em:
<http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19770831-31427-nac-0026-999-26-not/busca/Penarroya>. Acesso em:
22 abr. 2016. 106
SANTOS, 2012.
92
E hoje tem a democracia, hoje nós tem o direito de falar: ó eu sou por essa
forma, eu quero viver por essa forma, eu quero seguir tal caminho. E naquele
tempo não podia não, cansemos de ver, por exemplo mermo, mexendo já
com a política também, tivesse conversando contra os políticos daquela
época eles lhe marcava. Na mineração mesmo, se a gente fosse contra eles,
chega lá a conta já tava feita... então o pessoal era obrigado a votar em quem
eles queria, ajuntava o político aqui da cidade junto com a chefia lá, e
dizia:“olha aqui os operários é fechado, tem que votar tudo, quem for contra
é rua”, dizia que era rua né. Se eles descobrisse que a pessoa votou contra,
chegava lá o cartão não tava na chapera não, ali já era a conta... e hoje não,
hoje você vota em quem você quer, você escolhe qual é o candidato que
você quer votar, não precisa ter medo de ninguém... naquele tempo existia
aqui o prefeito da cidade, o primeiro prefeito da cidade era o doutor José
Lins da Costa, ele ia lá da palestra, ai os encarregado reunia os operários
“epa ninguém entra pra mina, vem todo mundo pra aqui”, e reunia num
patiozinho que tinha lá, ai ele chegava lá e falava, tem que votar porque é
desse jeito e daquele outro.107
Na medida em que o narrador estabelece uma comparação do presente com o seu
passado, quando era um operário da mineradora, percebe que diferente de hoje, naquela época
os indivíduos não possuíam o direito de expressar sua vontade e opinião. Ao mesmo tempo,
está claro para ele que aquilo não era uma democracia. Em outra parte da narrativa Astrogildo
Lima chega a comparar a situação vivenciada pelos mineiros com a escravidão, dando
destaque a falta de liberdade que possuíam por trabalhar na empresa:
No seu estudo, você conhece muito o tempo dos escravo, não era judiado?
Então, aqui ai na mina tinha um tipo assim, quase imitando aquele, era
diferente um pouco, mais quase imitando os escravo como é que os
portugueses fazia com aquele povo, com os escravo. Então aqui na mina é
mais ou menos assim, já a coisa foi mudando, foi mudando, agora já não é
assim, cada um tem o direito de falar, de correr atrás, de dizer que eu
conheço eu tenho o meu direito, eu quero o meu direito, conheço meu
direito, naquele tempo não, ninguém podia dizer nada. Ó uma menor vou
falar essa ai, até pra votar você não podia dizer em quem votava, não podia
dizer e outra, eles ia lá perseguir o cara perseguir o operário, tem que votar
ali se não votar, se não votar ali você vai perder o serviço [...] é igual os
escravo, escravidão, escravidão mesmo, e tai então, é por isso que eu não
gosto de chefia que trabaiou na mina, não gosto, não gosto mermo, porque
judiou da gente, judiou de mais, judiou... e gente não sabia cobrar...
analfabeto, ai não entendia de nada, e outra, se procurasse alguma pessoa e
desse uma dica não pudia levar pra lá, se levasse mandava a gente embora ,
gente ficava com medo de sair não tinha outra firma pra trabaiar .108
107
LIMA, 2014. 108
LIMA, 2014.
93
Uma das qualidades da fonte oral, como diz Alcázar I Garrido consiste em “penetrar
na percepção do processo histórico feita por indivíduos ou grupos concretos”.109
Essa
percepção que o ex-trabalhador mineiro apresentou, tem a ver com a maneira como ele
experimentou, junto com outros trabalhadores de Boquira, o estabelecimento da indústria na
localidade. Os operários mineiros, além de estarem numa condição de trabalho de grande
risco, estavam também sujeitos a outros tipos de coerção que a mineradora exercia, controle e
dominação sobre os trabalhadores. Esses elementos ganharam muita importância na forma
como Astrogildo Lima construiu sua memória, chegando a assemelhar a condição do mineiro
com a dos escravizados, evidenciando o quanto o labor era degradante, exaustivo que
colocava em risco a vida e a saúde do operário, e ainda tinham suas liberdades negadas, por
isso mesmo o comparou com a escravidão.
Outra denúncia em relação à corrupção eleitoral e aos abusos de poder da mineradora
foi feita pelo então Deputado Aristeu Nogueira, do Movimento Democrático Brasileiro
(MDB). A denúncia foi feita na Assembléia Legislativa da Bahia, e aparece em matéria do dia
8 de outubro de 1976 do jornal O Estado de São Paulo. Segundo o periódico,
Aristeu Almeida referiu-se ainda às “pressões e abuso do poder econômico
praticados pela Boquira no município onde está situada e mesmo nas esferas
estadual e federal, além de corrupção eleitoral e controle das autoridades
municipais.” 110
Aristeu Almeida, professor e economista, foi eleito para o cargo de deputado estadual
pelo MDB de 1975-1979. Exerceu várias funções relacionadas ao setor econômico. Foi chefe
do setor da Agricultura da Comissão de Planejamento Econômico do Estado da Bahia - CPE
(1957- 1961), chefe do setor Econômico Financeiro do Conjunto Petroquímico da Bahia-
COPEB (1961-1964). 111
Notamos, portanto, que se tratava de uma pessoa que se envolveu
com a área econômica e industrial, participando de projetos para o crescimento do setor.
Nesse sentido, certamente compartilhava da ideia de que era importante a industrialização
para o desenvolvimento do estado baiano. Por isso mesmo é bastante significativo que
naquele momento estivesse denunciando a atuação de uma empresa de mineração na Bahia. O
109
ALCÁZAR I GARRIDO, Joan del. As fontes orais na pesquisa histórica: uma contribuição ao debate. Rev.
Bras. De Hist., São Paulo, v. 13, n. 25/26, p. 33-54, set./ago. 1992/1993.p. 43. 110
DEPUTADO DENUNCIA ABUSOS DA BOQUIRA. O Estado de São Paulo. São Paulo, 8 out.1976.p.28.
Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19761008-31150-nac-0028-999-28-not/busca/Boquira>.
Acesso em: 23 abr. 2016. 111
DEP. Aristeu Almeida. Assembléia Legislativa do Estado da Bahia. Disponível em:
<http://www.al.ba.gov.br/deputados/Deputados-Interna.php?id=299>. Acesso em: 25 mar. 2017.
94
MDB era uma oposição “tolerada” pela ditadura que “possuía dentro de seus quadros
„adesistas‟ ao próprio regime militar e um grupo denominado dos „autênticos‟, ou seja, que
constituía uma verdadeira oposição ao regime”.112
Segundo Espiñeira, no período em que Aristeu Almeida se elegeu, a estrutura
partidária do MDB baiano era controlada pelos adesistas, e a sua campanha foi feita
“inteiramente por fora da estrutura do MDB e denunciando o controle que exerciam sobre a
máquina partidária”.113
O fato demonstra que o deputado não estava de acordo com os
adesistas e, portanto, era contrário ao regime. Não é por acaso que na denúncia apresentada
acima, ele destaca que o abuso do poder econômico da mineradora se dava também em
âmbito estadual e federal. Em função da experiência que ele possuía no ramo da economia e
indústrias, cremos que tinha propriedade sobre a questão. Considerando que era opositor da
ditadura civil militar, percebemos que a sua fala, de algum modo, criticava as próprias
agencias do Estado que fechava os olhos ou até corroborava com tais práticas.
Diante dos fatos evidenciados, percebemos que as pessoas que trabalhavam na
mineradora sofriam maior coerção por estarem vinculadas à empresa, então os dirigentes da
indústria utilizavam do poder de contratar e demitir pessoas para pressionar, coagir,
manipular, perseguir, reprimir. Essas práticas se coadunavam com o cenário de ditadura civil
militar no país. O relato nos permite perceber, ainda, o grande poder político e econômico que
a mineradora exercia na região, fato perceptível em outras fontes, como já foi sinalizado
anteriormente.
Não podemos perder de vista que naquele período o Brasil atravessava uma ditadura
civil-militar. No livro do jornalista Márcio Amêndola de Oliveira, intitulado “Zequinha um
revolucionário brasileiro” 114
, é relatada a trajetória de José Campos Barreto, que foi
assassinado junto com o capitão Carlos Lamarca no sertão baiano. A narrativa evidencia que a
mineradora de Boquira prestou auxílio aos militares, oferecendo transportes para capturar
Zequinha Barreto e Carlos Lamarca, personagens que se destacaram na luta contra a ditadura
112
ESPIÑEIRA, Maria Victória. A resposta da Bahia à repressão militar: a ação partidária da Ala Jovem no
MDB e a militância civil do trabalho conjunto da cidade de Salvador. In: ZACHARIACHES, Grimaldo Carneiro
(Org.). Ditadura militar na Bahia: novos olhares, novos objetivos, novos horizontes. Salvador: EDUFBA,
2009. p. 215-240. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/bahia.pdf>.
Acesso em: 26 mar. 2017. p. 216. 113
Ibid., p. 224. 114
OLIVEIRA, Márcio Amêndola de. Zequinha Barreto, um revolucionário brasileiro: um jovem
revolucionário brasileiro que deu sua vida na guerra contra a ditadura, ao lado do lendário Capitão Lamarca.
2008. Disponível em: <http://contextohistorico.blog.terra.com.br/files/2009/12/zequinha-barreto-um-
revolucionario-brasileiro.pdf > . Acesso em: 07 jun. 2013.
95
militar, e se encontravam na época em uma região próxima a Boquira, em Brotas de
Macaúbas, no ano de 1971:
A “Operação Pajuçara” foi realizada entre os dias 21 de agosto e 17 de
setembro de 1971, com um efetivo de 215 homens do Exército, da Marinha,
da Aeronáutica, da Polícia Militar da Bahia e do Dops de São Paulo. Desse
efetivo, 40 eram oficiais, 128 praças, dois delegados, 18 inspetores e 27
agentes. A mobilização custou mais de meio milhão de cruzeiros, uma
pequena fortuna para a época. Um relatório reservado informava que,
além dos militares empregados na operação, as Forças Armadas
receberam ajuda material – carros e avião – da Companhia de Boquira,
uma empresa do grupo francês Penarroya, ligado à família Rotschild.115
(grifos nossos).
Não podemos negligenciar a relação da mineradora com os militares. A própria figura
de Antônio Carlos Magalhães, que representava a política desse governo, sua ida a Boquira e
incentivo à indústria, revelam a proximidade entre a mineradora e o governo ditatorial. Pedro
Campos, em seu estudo sobre as empresas do ramo da construção pesada no Brasil durante o
período da ditadura civil-militar analisa a relação existente entre essas indústrias e o regime,
demonstrando como o setor conseguiu crescer durante esse governo, e como alguns grupos
saíram fortalecidos daquele período, formando um oligopólio nacional na área. Para Campos:
[...] alguns empresário do setor não só aprovavam a ditadura e participavam
de seus projetos no setor de obras, mas partilhavam de seus valores e
contribuíam também com sua política de terrorismo de Estado, que cassava
guerrilheiros, torturava-os, prendia-os e matava-os.116
Ao que parece, essa prática de colaboração entre indústria e governo militar era
comum naquele momento. Pelo menos nos casos em que os empresários recebiam apoio do
Estado para o desenvolvimento de sua indústria. Diante disso, podemos presumir que a
mineradora mantinha uma boa relação política com o governo, e isso só aumentava seu poder
na região de Boquira. Entendemos, portanto, que a mineradora tentava controlar o município,
social, econômico e politicamente, garantido seus interesses por meio da influência que
exercia na administração, pela coerção aos seus funcionários, e as negligências em relação aos
direitos dos agricultores que tiveram suas terras expropriadas para a exploração do minério.
No entanto, mesmo diante dessa influência da indústria em Boquira, existiram pessoas
que se posicionaram contra a empresa, fazendo denuncias e resistindo como podiam à lógica
115
OLIVEIRA, 2008, p. 29. 116
CAMPOS, 2012, p. 513.
96
estabelecida. É claro que dentro daquele cenário houve pessoas da localidade e região, que
muito se beneficiavam, e por isso defendiam a empresa. Outros, por medo de perderem o
emprego, não contrariavam explicitamente aquele sistema. Mas as resistências cotidianas não
deixaram de acontecer, a exemplo, dos trabalhadores mineiros que no universo do trabalho
criaram estratégias de enfrentamento de tal realidade, das quais falaremos no próximo
capítulo.
No próximo capítulo trataremos, com mais riqueza de detalhes, da relação que a
indústria mineira estabelecia com a política local, destacando a atuação do jornalista
Alexandria Pontes, que foi autor de várias denuncias à mineradora. O jornalista tentou se
envolver na política do lugar e era visto pelas autoridades da região como um agitador social,
sendo por isso repudiado. Além disso, analisaremos as memórias dos trabalhadores mineiros.
Todos os entrevistados são oriundos de regiões rurais. Para a maioria, o emprego na
mineradora se constituiu em seu primeiro emprego no ramo industrial. Portanto, eram sujeitos
que saíram da lida na roça para se submeterem ao trabalho na indústria. Por isso elegemos
esses trabalhadores para a nossa investigação, com a finalidade de compreendermos como
aqueles sujeitos que vieram do trabalho no campo vivenciaram a instalação de uma indústria
em Boquira.
3. BOQUIRA E AS ATIVIDADES MINEIRAS: CONTRADIÇÕES, DISPUTAS,
MEMÓRIAS...
A proposta deste capítulo é analisar mais detidamente os conflitos que envolveram a
indústria de mineração em Boquira, a política local e as autoridades da região. Para tanto,
destacaremos a atuação do jornalista Alexandria Pontes, refletindo sobre o teor de suas
denuncias contra a mineradora. Partindo delas, pretendemos ampliar a compreensão acerca
dos conflitos e contradições que se apresentaram no cenário político e social de Boquira.
Buscando assim desvelar as redes de relações entre as autoridades da região, os políticos e a
indústria mineira. Também analisaremos as memórias dos trabalhadores mineiros, buscando
compreender a forma como vivenciaram coletivamente o trabalho nas minas. Analisaremos as
dificuldades que enfrentaram naquele serviço, as relações de solidariedade que construíram e
as formas de resistência à exploração. Entendemos que o grupo construiu uma memória
coletiva, ainda compartilhada.
3.1. O jornalista Alexandria Pontes: oposição e disputas
Alexandria Pontes nasceu em Boquira. Era jornalista, morou e atuou por muito tempo
no Rio de Janeiro. É importante fazer uma análise sobre suas ações, pois ele se envolveu nas
disputas políticas e sociais de Boquira. Alguns de seus atos causaram rebuliços na cidade e
região, porque iam de encontro ao poder ali constituído. Cremos, portanto, que investigar suas
ações desnuda alguns aspectos do cenário político e social de Boquira no período que
investigamos. O artigo do também jornalista Genival Rabelo narra que em 1970 ele e
Alexandria viajaram até Boquira para visitar os familiares deste último. Diz Rabelo:
Acompanhei-o num momento de ócio, pelo gosto da aventura, em parte, e
também pela oportunidade de conhecer os sertões baianos. Durante mais de
10 anos de íntimo convívio, Alexandria sempre me falara de Boquira com a
ternura de quem a viu com os olhos da meninice. “Nas águas (época das
chuvas) – costumava dizer-me , você precisa ver: dá de um tudo. Umbú é
lama. Girimum, macaxeira, batata-doce, feijão verde e carne seca sobram na
mesa do lavrador. É uma euforia geral. É verdade que vem depois o estio,
com o seu cortejo de miséria. Mas, dos meus tempos de menino, guardo
recordações muito gratas. Eram as passarinhadas de baladeira.Os banhos de
riacho.A vida livre,de pé no chão, subindo nas árvores do sítio. Uma
98
beleza!” Durante todo o trajeto de Kombi, nas trinta e seis horas de estrada
que nos levaram do Rio até Boquira.1
Rabelo conta sobre como Alexandria se lembrava da sua terra, talvez tenha o elemento
da idealização de seu lugar e a sua infância, mas provavelmente nos tempos de chuvas a
alimentação era mais farta para a família de lavradores, no entanto ele não se esquece de
relembrar os períodos de seca e dificuldades. Segundo o autor, os dois amigos foram até
Boquira fazer uma viagem a passeio. No entanto, nesse momento se inteiraram dos
acontecimentos do lugar, quando ouviram as reclamações que os agricultores faziam sobre a
mineradora. Conta Rabelo que após o reencontro de Alexandria com amigos e parentes na
cidadezinha as pessoas “começa[ram] a queixar-se da mineração de Boquira. Cada um tinha
sofrido na carne, tinha sido vítima da expoliação (sic.). E continuava a sofrer”.2 Continuando
sua narrativa o autor informa que “Alexandria fez anotações e prometeu defender o seu
povo.”3A partir desse momento, escreveu diversos artigos sobre a indústria mineira em
Boquira. O objetivo do texto escrito por Rabelo, datado de 1974, foi de denunciar os diversos
processos judiciais abertos contra Francisco Alexandria pelo fato dele ter denunciado a
mineradora diversas vezes, através de seus artigos.
Alexandria abriu a boca. Fez denúncias graves através de uma série de
artigos. Foi o suficiente para que a Máfia organizada em Boquira se
movimentasse e envolvesse o jornalista em vários processos judiciários
injustificáveis. É triste, mas é verdade.4
Analisando as atas da Câmara Municipal de Boquira, vimos que Francisco Alexandria
incomodou políticos e autoridades da região, por conta dos artigos que escreveu. Na sessão da
Câmara, em vinte e oito de maio de 1973, o vereador Osvaldo Monteiro levou para a reunião
um exemplar do jornal Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro, no qual havia “a publicação
de duas cartas de autoria dos Bacharéis Joel Neto Ferreira e Ruy Osório, Juiz de Direito e
Promotor de justiça, respectivamente, da Comarca de Macaúbas Bahia”.5 As cartas foram
escritas em resposta a um artigo publicado no mesmo jornal, de autoria de Alexandria Pontes
em treze de março de 1973. As referidas cartas foram transcritas na ata da sessão, com o
objetivo de expressar solidariedade:
1 RABELO, Genival. A máfia de Boquira. Rio de Janeiro, jul. 1974. p.1.
2 Ibid., p.1.
3 Ibid., p.2.
4 Ibid., p.2.
5 Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 08 de abril de 1968, a12 de junho de 1974. Fl. 153.
99
[...] às autoridades constituídas e com o fito especial de repelir o injurioso e
desprezível artigo do aludido Francisco Alexandria, figura indesejável em
nosso meio. Agitador social, que só vem trazer intranquilidade aos
trabalhadores desta região, já respondendo neste Município por crime de
Falsidade Ideológica.6
Aqui fica claro o quanto o jornalista aborreceu os vereadores de Boquira, pois estes
últimos se colocaram do lado dos magistrados e contra Alexandria Pontes. A presença da
personagem na cidade e as ideias que difundia não eram bem aceitas pelo legislativo. Tivemos
acesso ao artigo escrito por Alexandria Pontes no qual citou os magistrados. Nas cartas de
resposta feitas pelo juiz e promotor aparecem de fato elementos do texto que o jornalista
publicou. O título do referido artigo era “A triste história de um Senhor Juiz”, no qual
Alexandria Pontes tecia uma série de críticas e acusações ao Juiz de Direito de Macaúbas,
Joel Ferreira e ao Promotor de Justiça, Ruy Osório. Dentre as quais:
O povo da Comarca pergunta como pode S. Exa.ter condições para julgar
inúmeros processos que correm naquela casa de Justiça contra as empresas
de cuja sede o JULGADOR é frequentador assíduo num conluio que já
perdura por mais de seis anos.7
Diz o artigo que o Juiz, após ter ido atuar na Comarca de Macaúbas em 1966, foi
morar em Boquira em uma casa oferecida pela mineradora. Frequentava sempre a empresa e
abastecia sua despensa na cantina da Mineração Boquira, dispunha de uma Chevrolet veraneio
e um avião para viagens urgentes.8 Fez também referência a situação vivenciada pelos
lavradores, que enfrentavam invasões de terras, desvios de suas águas, não cumprimento do
convênio assinado entre o governo baiano e a indústria mineira. Na carta resposta de Joel
Neto Ferreira ele se defende dizendo ser um “homem de bem”, e de nunca ter aceitado favores
e vantagens ilícitas, mantendo-se equidistante da política nas atividades que exerceu. Ao
mesmo tempo em que se defendeu, Ferreira acusou Francisco Alexandria:
Pouco conheço da vida do Sr. Francisco Alexandria, cujo nome completo
parece ser, Francisco Alexandria Pontes, não obstante, fatos notórios e
6 Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 08 de abril de 1968, a12 de junho de 1974. Fl., 153v.
7 Alexandria, Francisco. A triste história de um senhor juiz. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 13 mar.
1973.p.4. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_03&PagFis=6735&Pesq=Boquira . Acesso em:
16 mar. 2017. 8 Ibidem, loc. cit.
100
devidamente comprovados, dimensiona a sua figura insignificante, como
farsante, a serviço da injúria e da difamação. Está ele indiciado em inquérito
policial nesta comarca de Macaúbas. A sua revolta contra este magistrado
emerge das medidas legais adotadas nas eleições de 15-11-1972, quando,
sem ser eleitor dessa circunscrição eleitoral ou, comprovadamente de outra,
sem possuir filiação partidária, sem domicilio eleitoral na Zona, interferiu
ilegal e indevidamente no processo eleitoral, com objetivo de promover
agitação e tumultuar as citadas eleições. Apresentou-se em Macaúbas
blasonando prestígio junto às altas autoridades, fazendo-se passar por
repórter desse jornal – Tribuna da Imprensa. Conseguiu ilaquear a boa fé de
muitos, entretanto, um telegrama do Sr. Hélio Fernandes, diretor desse
conceituado órgão de imprensa, deixou desmascarado o falso jornalista que,
por falsa identidade, foi detido e levado preso para a cadeia de Boquira.
Estranhamente, porém, poucas horas depois, posto em liberdade, sem que
fosse apurada a infração penal.9
A fim de demonstrar uma pretensa falta de idoneidade de Alexandria Pontes, o juiz
Joel Ferreira afirmou que o jornalista estava envolvido no comércio de restaurantes, e que
havia saído foragido da cidade de Curitiba-Paraná, acusado de caloteiro por não pagar a seus
credores.10
Para consubstanciar a acusação, o juiz divulgou supostas informações sobre a
conduta do jornalista, com o intuito de tornar nulos os fatos publicados por Francisco
Alexandria, já que no seu entender uma pessoa que em algum momento não agiu
“honestamente” não era digna de confiança. Percebemos também que Alexandria se envolveu
de fato na política de Boquira, no entanto, encontrou dificuldades para prosseguir com a
candidatura, e para o juiz esse foi o motivo que o fez se voltar contra sua figura, acusando-o
de coisas que não tinha a ver com a verdade. Diz ainda:
Para quem se detiver um pouco no exame do malsinado artigo, verificará que
pela linguagem usada, ataque indiscriminado a autoridade constituída,
inconformismo velado à ordem legal, facilidades jornalísticas para veicular
as suas infâmias, tudo isso se amolda dentro de um plano, cuja ideologia é
facilmente identificada. Divisa-se com clareza, que o plano do Sr. Francisco
Alexandria é indispor a numerosa classe obreira de Boquira, contra as
autoridades locais, embora para isso, tendenciosamente, ele crie fatos
inexistentes.11
Esse trecho é muito importante. Demonstra a defesa do Juiz à ordem estabelecida.
Como os escritos de Alexandria de algum modo contrariava a lógica constituída, para o juiz o
jornalista apresentava má conduta, perturbando a ordem. Outra coisa importante é quando ele
diz que Alexandria possuía uma ideologia, cujo objetivo era provocar o descontentamento da
9 Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 08 de abril de 1968, a12 de junho de 1974. Fl. 154.
10 Idem.
11 Ibid., fl., 154v.
101
classe trabalhadora de Boquira contra as autoridades do lugar. Quando usa a expressão “cuja
ideologia é facilmente identificada”, sugerimos que o Juiz pretendeu qualificar Alexandria de
“comunista” ou pelo menos simpatizante. Lembremos que era período de ditadura civil
militar12
, e que naquele momento “comunistas” ou mesmo qualquer um que contrariasse
aquele governo eram considerados inimigos do regime. Portanto, ao acusar Alexandria de
possuir ideias subversivas, o juiz tinha a intenção de chamar a atenção das autoridades para o
perigo das ideias defendidas pelo jornalista. No período, qualquer acusação deste gênero
poderia gerar sérios problemas ao acusado, incluindo prisões e torturas.
Naquele contexto havia a Doutrina de Segurança Nacional, que passou a ser lei a partir
de 1968, com o propósito de “identificar e eliminar os „inimigos internos‟, ou seja, todos
aqueles que questionavam e criticavam o regime estabelecido” 13
, e “é bom que se diga que o
„inimigo interno‟ era, antes de tudo, comunista”.14
Como o Juiz defendia a ordem
implementada, sugerir, ainda que implicitamente, que uma pessoa era contrária ao regime,
significava demarcar que aquele indivíduo era adversário da ordem e do governo ditatorial.
Tal acusação, inclusive, poderia justificar perseguição e prisão. Para levantar suspeitas contra
Alexandria, o juiz destaca:
Em seu infeliz artigo, diz ele existirem inúmeros processos tramitando na
comarca de Macaúbas, contra a mineração Boquira S.A., versando sobre
invasão de terras de humildes lavradores, desvio de água, envenenamento de
criações, nas quais centenas de interessados estão prejudicados, porque o
julgador conluiou-se com uma das partes e não tem condições de decidir. O
agitador social, usa aqui a audácia dos irresponsáveis e perfídia dos
inescrupulosos para arquitetar essas sórdidas mentiras, objetivando
tumultuar e confundir a opinião pública, em proveito de sua nefasta
ideologia política.15
12
Esse termo é aqui utilizado no entendimento de que houve participação de setores da sociedade civil no golpe
de 1964 e na ditadura que se seguiu. É bom salientar, como fez questão de lembrar o historiador Demian Melo,
que o uso que tem sido feito desse termo na historiografia brasileira tem incorrido a equívocos e interpretações
perigosas, a exemplo de “distribuir a „culpa‟ ao conjunto da sociedade”. As organizações da sociedade civil que
participaram do golpe têm nome e foram identificados por estudiosos do tema, como René Dreifuss, com o qual
Demian Melo está de acordo, no qual destacam o caráter de classe do golpe, dado por setores do empresariado
capitalista. Inclusive Demian Melo, baseado em Dreifuss, sugere a troca do termo impreciso de “civil-militar”
para ditadura empresarial-militar “implantada a partir de uma insurreição contra-revolucionárias das classes
dominantes.” MELO, Demian Bezerra de. Ditadura “civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o
processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. Espaço Plural, n° 27, p. 39-53, 2º
sem. 2012. Disponível em: <http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:XHyj6fXn8DoJ:e-
revista.unioeste.br/index.php/espacoplural/article/download/8574/6324+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>.
Acesso em: 9 abr. 2017. 13
AMÂNCIO, Silvia Maria., et. al. A ditadura Militar e a violência contra os movimentos sociais, políticas e
culturais. In: PRIORI, A., et.al. História do Paraná: séculos XIX e XX. Maringá: Eduem, 2012. p. 199-213.p.
200. 14
Idem. 15
AMÂNCIO et. al., 2012, p.200.
102
Mas por que o artigo do jornalista deixou o magistrado indignado? Alexandria acusou
o juiz de envolvimento com a indústria de mineração de Boquira. Em relação aos processos
que o Juiz disse não ter existido na comarca de Macaúbas contra a mineradora, indicamos no
capítulo anterior várias ações judiciais contra a indústria mineira por parte dos agricultores,
porém, não podemos afirmar se elas passaram pela dita comarca.
Voltando ao conflito entre Alexandria e o juiz, percebemos que o juiz buscou
relacionar as acusações feitas pelo jornalista a uma suposta ideologia política, muito
provavelmente “comunista”. Dando continuidade às acusações, Joel Ferreira salienta:
Na sua delituosa ação de mutilar a verdade, o insolente articulista afirma que
este juiz em 1966 fixou residência em Boquira, que frequenta a piscina e se
banqueteia, há mais se seis anos com o grupo Penarroya, que lhe abastece a
despensa. Acrescenta ainda que estão colocados a sua disposição um avião e
um Chevrolet veraneio. Todas estas torpes mentiras e insinuações são
totalmente desmascaradas, com os documentos que tenho em meu poder.
Jamais fixei residência em Boquira. Ao ser promovido por merecimento, em
26-04-1966, de imediato providenciei a minha mudança e arranjei casa em
Macaúbas. [...] Apesar de sócio do Clube Alvorada, poucas vezes frequento
a piscina, como membro do Lions Boquira-Macaúbas, clube de âmbito
internacional, tomo parte nas suas reuniões, onde são servidos jantares.
Nunca tive avião ou veraneio a minha disposição [...]. Quanto ao
abastecimento de minha despensa, compro e pago onde melhor me aprouver. 16
No trecho, o juiz apresentou detalhes das acusações que aparecem no artigo de
Alexandria, denuncias que o Juiz se esforçou em refutar. Mas ainda que procurasse se
defender, seus argumentos deixaram pistas relevantes. Ele afirma, por exemplo, ter sido sócio
dos clubes, fato que indica que ele se relacionava, de uma forma ou de outra, com altos
funcionários da mineradora de Boquira, indicando que participavam do mesmo ambiente
social. A carta do Promotor de Justiça possui conteúdo semelhante ao do Juiz, utilizando os
mesmos argumentos, até porque o artigo de Alexandria também acusou o promotor Ruy
Osório de comprometimento com a mineradora. Ainda que os argumentos sejam semelhantes,
a carta do promotor apresenta pistas novas. Nela, Ruy Osório argumenta:
O autor, figura muito pouco conhecida de minha pessoa por ciência, aparece
na região, no mês de setembro de 1970, acompanhado do repórter Genival
Rabelo, autor do livro sobre a vida na Rússia, “No outro lado do mundo”,
distribuindo-o gratuitamente. Coincidentemente, após sua passagem, no
inicio de 1971 estourou uma greve trabalhista na cidade de Boquira, meses
depois deu-se o fenômeno Lamarca. Já no ano de 1972, na fase eleitoral,
16
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 08 de abril de 1968, a12 de junho de 1974. Fls. 154v -
155.
103
retorna [Alexandria] como jornalista e assessor da sublegenda 2 da Arena do
Município de Boquira [...] passa a perturbar o processo eleitoral[...].17
Observamos que o promotor também sugeriu, de forma mais enfática inclusive, que
Alexandria era, no mínimo, simpatizante do comunismo, quando diz que o jornalista andava
em companhia de um “autor de livros sobre a Rússia”. Seguindo esta linha interpretativa, o
Ruy Osório relacionou a greve dos trabalhadores que ocorreu em Boquira à presença de
Alexandria e do repórter Genival Rabelo. Além disso, procurou identificar os jornalistas com
a figura do capitão Carlos Lamarca, guerrilheiro socialista que entrou na luta armada contra a
ditadura militar implantada em 1964, em 1971 foi assassinado pelo regime militar na região
de Brotas de Macaúbas, próxima à Boquira.
Os indícios acima demonstram que havia uma preocupação tanto dos vereadores
(como mencionado anteriormente, argumentaram que Alexandria Pontes era um agitador
social que causava intranquilidade aos trabalhadores), quanto do juiz e do promotor com a
ação dos grevistas da indústria de Boquira. Claramente essas autoridades estavam em defesa
da empresa e contra reivindicações dos trabalhadores, que logicamente buscavam melhores
condições de trabalho. Lembremos que os trabalhadores de Boquira decretaram uma greve em
plena ditadura militar, quando essas mobilizações sofriam forte repressão. O discurso
proferido por essas autoridades indicava a defesa da manutenção das coisas do modo como
estavam postas. Embora rejeitem as acusações de Alexandria sobre serem envolvidos com a
mineradora, o fato deles fazerem a defesa da “ordem” e terem sido contra a mobilização de
trabalhadores os contradizem, revelando de que lado efetivamente estavam.
Genival Rabelo, citado pelo promotor e amigo de Alexandria Pontes, era jornalista,
formado também em Direito. Natural de Natal-Rio Grande do Norte, morava no Rio de
Janeiro, onde trabalhou no jornal Tribuna da Imprensa. Rabelo realmente escreveu um livro
sobre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), intitulado “No outro lado do
mundo”. Ao falar sobre Rabelo, Paulo Augusto destaca:
Incomodado desde cedo com a situação do Brasil como país submisso aos
interesses dos países hegemônicos, não arredou o pé um milímetro acerca do
que se determinou fazer, nas páginas dos jornais, desde que decidiu
estabelecer como sua tarefa particular, a defesa do nacionalismo e da
soberania nacional.18
17
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 08 de abril de 1968, a12 de junho de 1974. Fl. 156. 18
AUGUSTO, Paulo. Genival Rabelo: referência no jornalismo brasileiro. 2012. Disponível em: <
http://radarpotiguar.blogspot.com.br/2012/05/genival-rabelo-referencia-no-jornalismo_3247.html >. Acesso em:
8 abr. 2017.
104
Para o autor, Rabelo era defensor das riquezas nacionais, e crítico da maneira como
essas riquezas eram apropriadas pelas indústrias estrangeiras. Não tivemos acesso ao seu livro
sobre a URSS. Também não encontramos nenhum documento que comprove a associação de
Genival Rabelo aos partidos socialistas ou comunistas. Não podemos afirmar, portanto, que
ele era um comunista. Ficou claro, entretanto, que era um defensor ferrenho dos interesses
nacionais em detrimento dos estrangeiros. Genival Rabelo sofreu com a censura após o golpe
civil militar, quando trabalhava na Revista Política e Negócio do Rio de Janeiro, e denunciava
“a infiltração do capital estrangeiro na imprensa brasileira” 19
. A revista deixou de existir.
Diante do exposto, observamos que as acusações à Rabelo e Alexandria Pontes
estiveram associadas ao fenômeno do anticomunismo. No Brasil, em vários momentos,
acusações anticomunistas se apresentaram, e de modo recorrentes no período da ditadura
civil-militar. As acusações não eram necessariamente direcionadas à comunistas de fato.
Qualquer indivíduo que questionasse a ordem estabelecida, era facilmente acusado de
comunista, fato que impulsionava prisões, torturas, injúrias. Em outras palavras, o
“comunismo” e os “comunistas” naquele contexto eram alvos de combates porque
representavam a subversão da ordem, a luta contra a ditadura, a “ameaça revolucionária”, a
luta contra o capitalismo. Segundo Carla Luciana, um dos elementos que demonstra a
importância do “comunismo” como um inimigo está nos distintos usos dos termos “que
levaram à prática de considerar qualquer oposição ao sistema como sendo „comunista‟” 20
.
A alcunha de comunista foi usada muitas vezes para denominar sujeitos que na prática
não tinham relação nenhuma com partidos socialistas ou com o pensamento marxista. Eram
acusados apenas por se posicionarem de forma crítica à ordem ou defender projetos
reformistas e que de algum modo tratasse de transformações sociais. Além disso, até em casos
de conflitos pessoais, acusar o oponente de comunista era uma maneira de prejudicá-lo. Como
diz Rodrigo Patto Sá Motta “houve muitos casos em que cidadãos se „tornaram‟ comunistas
devido a querelas de natureza pessoal.” 21
Ainda para este autor, em se tratando do
anticomunismo houve muitos anticomunistas convictos que efetivamente acreditavam na
19
RABELO, GENIVAL DE MOURA. In: ABREU, Alzira Alves de; PAULA, Christiane Jalles de (Coor.).
Dicionário histórico – biográfico da propaganda no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, ABP, 2007.
Disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=nF1URZB4nEkC&pg=PA207&dq=livro++do+outro+lado+do+mundo+
Genival+Rabelo&hl=ptBR&sa=X&ved=0ahUKEwj_rYKHspbTAhXLDZAKHd66CWsQ6AEIKjAD#v=onepag
e&q=livro%20%20do%20outro%20lado%20do%20mundo%20Genival%20Rabelo&f=false >. Acesso em: 9
abr. 2017.p.207. 20
SILVA, Carla Luciana. A onda vermelha: imaginários anticomunistas brasileiros (1931-1934). Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2001.p.27. 21
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em Guarda Contra o Perigo Vermelho. São Paulo: Perspectiva, 2002.p. 162.
105
existência do “perigo vermelho”. Todavia, em se tratando desse fenômeno “o oportunismo
político foi prática bastante recorrente”. 22
Voltando a querela entre os magistrados de Macaúbas e os jornalistas, consideramos
que a atmosfera anticomunista influenciou os rótulos atribuídos a Alexandria e a Rabelo. Na
prática, ao sugerir que ambos eram agitadores, os magistrados provavelmente pretendiam
levantar suspeitas de que os jornalistas eram “comunistas”, e que estavam contestando a
ordem social posta pelo regime ditatorial em voga.
Retornando aos jornalistas, as informações que indicam que Genival Rabelo era um
defensor dos interesses nacionais, nos ajuda a entender suas denuncias contra a mineradora de
Boquira. Ao que parece, Alexandria simpatizava das ideias do colega, criticando a atuação do
capital internacional no país. Alexandria respondeu ao promotor de Macaúbas, a réplica foi
publicada no jornal Tribuna da Imprensa, destacando:
Insinua o Promotor que eu sou contra o pensamento vigente e deixa claro
que entende por “pensamento vigente” a concessão da exploração do subsolo
pátrio a empresas estrangeiras. No particular, prefiro somar-me aos patriotas
que aplaudem o monopólio estatal do petróleo. Sou dos que se batem pela
valorização do trabalho do brasileiro. Em consequência, não posso aceitar
uma empresa que, no desenfreado apetite de lucro, prejudica toda uma
coletividade, como acontece sabidamente com a exploração pela Penarroya,
do chumbo de Boquira. Empresa que, nos últimos dez anos, sonegou alguns
milhões de cruzeiros de impostos, partes dos quais teria sido suficiente para
construir escolas, fazer postos artesianos, proporcionar assistência social,
enfim, à sofrida população de Boquira, inclusive proporcionando
distribuição de sementes aos pequenos lavradores, e um número não menor
de providências que não ocorrem sequer ao pensamento do dr. Ruy Osório
[...].23
O conteúdo do texto nos indica que o jornalista preocupava-se com a maneira como o
capital estrangeiro atuava no país, e de modo particular em Boquira, onde, segundo ele, agia
sonegando impostos enquanto a população vivia em situação de pobreza. Destaca, ainda, que
a indústria não realizou nenhum benefício que atendesse aos anseios dos habitantes
despossuídos. Francisco Alexandria defendeu o amigo Genival Rabelo que foi citado por Ruy
Osório em sua carta. Alexandria afirmou que o promotor teria feito “insinuações malévolas” a
Rabelo, que foi a Boquira somente acompanhá-lo em uma visita. Elogiou Genival Rabelo
22
MOTTA, 2002, p. 70. 23
Alexandria, Francisco. Corleone e Boquira. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 22 maio 1973.p.4.
Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_03&PagFis=11646&Pesq=Boquira>. Acesso
em: 16 abr. 2017.
106
enquanto jornalista e escritor, dizendo que “não cabem insinuações perversas, visando a
enxovalhar o nome de tão ilustre patrício”.24
Escreveu ainda:
Embora desnecessário, quero assinalar que, ao contrário do que insinua o
promotor, não sou subversivo, nem comprometido com correntes ideológicas
de qualquer natureza. Sou sim, contra a farsa, a mistificação, o engodo
praticado em Boquira pelo grupo Penarroya, com a aquiescência de homens
que se dizem de reputação ilibada.25
Alexandria fez questão de responder as acusações sobre ele e o colega, refutando a
pecha de “subversivo”. Claro que, se fossem de fato ligados a algum partido socialista ou
comungassem de ideias marxistas, ele não iria dizer, já que estavam sob um governo
ditatorial. Mas não deixa de ser uma possibilidade que os dois jornalistas realmente não
fossem comunistas. Mas é certo que ambos se apresentavam como defensores do “povo”
brasileiro e contra a forma como atuavam as empresas estrangeiras no país. Nesse sentido,
Rabelo destacou:
Não sendo xenófabo(sic.), sei que todas nações precisam de capitais
foraneos para acelerar seu desenvolvimento, desde que esses capitais sejam,
evidentemente, policiados (o termo aqui jamais teve melhor empregado).
Calcula-se que o capital das 15 empresas subsidiárias da Societé Mineral eet
Metalurgique Penarroya, no Brasil, sejam de 400 milhões de cruzeiros.
Como se sabe que trouxeram para o Brasil apenas 20 milhões de cruzeiros. É
fácil avaliar-se que descobriram aqui a galinha dos ovos de ouro.26
Quando Alexandria destaca que a expressão “policiado” nunca foi melhor empregada,
estava se referindo a falta de fiscalização por parte das autoridades competentes em relação ao
empreendimento da mineradora de Boquira que, segundo ele, sonegava impostos,
contrabandeava ouro e prata, omitia o verdadeiro teor do minério de chumbo para diminuir o
valor dos tributos, além de tantas outras arbitrariedades que a mineradora promovia na região.
Sobre a sonegação de impostos, uma matéria do Tribuna da Imprensa, publicada em quatro
de outubro de 1973, informou:
24
Alexandria, Francisco. Corleone e Boquira (I). Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 22 maio 1973.p.4.
Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_03&PagFis=11646&Pesq=Boquira>. Acesso
em: 16 abr. 2017. 25
Ibidem, loc. cit. 26
Alexandria, Francisco. Corleone e Boquira - VII (continuação). Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 10 set.
1974.p.4. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_03&PagFis=17289&Pesq=Boquira>. Acesso
em: 16 abr. 2017.
107
Penarroya pagou, na semana passada, em Salvador, 4 bilhões e meio por
sonegação do IPI. O processo, julgado pelo juiz federal Francisco Trindade,
nem sequer teve recurso da Penarroya, tão evidentes eram os números de
débitos para com o governo.27
Portanto, quando cruzamos as denúncias feitas pelo jornalista, com a matéria citada
acima, percebemos a veracidade das acusações, visto que, a empresa foi processada e
obrigada a pagar os impostos que havia sonegado ao Estado da Bahia.
Dando continuidade à sua defesa contra as acusações do juiz de direito, Alexandria
novamente usou as páginas do Tribuna da Imprensa para destacar que o inquérito policial
movido contra ele, ao qual o juiz se referia, realmente existiu, mas teria sido mais uma
arbitrariedade da política local, visto que o inquérito teria sido aberto pelo delegado de polícia
de Boquira, atendendo aos pedidos do gerente da mineradora, Emilien Prieto.
Desde novembro último, quando fui convidado a depor por ter distribuído
em Boquira um manifesto convidando o povo a votar nos seus candidatos e
não nos candidatos da mineração, que o tal “inquérito” está parado, sem
qualquer explicação. Não cabe dúvida de que a criação do inquérito não teve
outro objetivo que o de intimidar este jornalista e os candidatos da ARENA-
2, que tiveram a ousadia de concorrer com os candidatos lançados pela
Mineração. (É sabido que, desde a fundação da Mineração, todos os
prefeitos e vereadores de Boquira vêm sendo eleitos com a sua aprovação,
para o que a empresa dedica verbas apreciáveis. É óbvio que a Mineração
não mantem essa política a troco de nada. Diga-se, a propósito, que o próprio
Dr. Joel Neto Ferreira é um dos principais e mais dedicados cabos eleitorais
dos candidatos da Mineração).28
Aqui aparece informações sobre a participação da mineradora na política local,
elemento analisado no capítulo anterior. O jornalista participou ativamente do cenário político
na região de Boquira durante a década de 1970, mobilizando a população, apoiando os
candidatos que faziam oposição à mineradora. Ele próprio tentou se candidatar. Suas ações
geraram diversos conflitos na cidade, como as fontes vêm apontando. Lembremos que o
jornalista escreveu diversas matérias no Tribuna da Imprensa sobre a atuação da indústria
mineira na região de Boquira, contribuindo para ampliar ainda mais o descontentamento de
muitas pessoas na cidade. Alexandria Pontes foi, portanto, uma figura polêmica que agitou a
pequena cidade de Boquira.
27
NERY, Sebastião. Alberto Silva, o boi, Penarroya e o folclore. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 4 out.
1973.p.4. Disponível
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_03&PagFis=12370&Pesq=Boquira>.
Acesso em: 16 abr. 2017. 28
Alexandria, Francisco. Corleone e Boquira (II). Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 23 maio 1973.p.4.
Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_03&PagFis=12370&Pesq=Boquira>. Acesso
em: 16 abr. 2017.
108
Mas o jornalista não agiu sozinho, encontrando apoio de pessoas que também se
opunham à lógica que ali dominava. Mais que isso, a oposição prestou apoio e solidariedade
ao grupo social que sofria prejuízos com a empresa no local, a exemplo dos pequenos
agricultores e das pessoas que se opuseram ao poder ali estabelecido.
Para justificar seu posicionamento político, Alexandria demarca que os candidatos de
oposição eram da ARENA 2. Mas como um candidato da ARENA poderia ser da oposição, se
o partido representava justamente o regime militar? Após a implantação do bipartidarismo foi
criado, em 1966, o sistema da sublegenda, que se aglutinava nas associações políticas
ARENA e MDB uma diversidade de políticos que vieram tanto dos antigos partidos, quanto
dos novos nomes que ingressaram na política. As sublegendas tinham o propósito de diminuir
os riscos de desgaste da base da ARENA, devido à existência de uma heterogeneidade de
forças políticas em conflitos dentro do partido. Desse modo, “o modelo implantado permitiria
que alas divergentes indicassem seus representantes à disputa, e não necessariamente um
candidato, o mesmo valendo para o MDB”.29
No caso da política local de Boquira, a ata de vinte e dois de julho 1978 indica que em
sessão da Câmara foi dito que não havia bancada do MBD na Câmara Municipal da cidade.30
Tratava-se então da quinta legislatura, mas, podemos supor que depois que o governo
ditatorial implantou o bipartidarismo em 1965, a Arena passou a ser o partido dos edis de
Boquira.
A fim de compreendermos as disputas políticas locais, voltemos às contendas entre o
juiz de Direito e o jornalista. Na carta dirigida a Alexandria, o Juiz afirma que enviou
correspondência ao diretor do Jornal Tribuna da Imprensa, que o respondeu informando que
Alexandria não trabalhava naquele órgão. Mas, o que soa estranho, é que Alexandria
continuou publicando no Jornal; e o próprio dono do periódico, Hélio Fernandes, em vinte e
três de junho de 1971 publicou uma matéria no Tribuna da Imprensa de título “trustes
estrangeiros enriquecem com o minério do Brasil”, fazendo uma série de denúncias a
mineradora de Boquira. Na matéria, entre várias acusações, pode-se ler:
O famigerado grupo Penarroya está no município de Boquira há mais de dez
anos. O que trouxe de útil para o município a não ser a enorme cratera onde
29
BRAGA, Diego Garcia. A ditadura civil-militar em Alegrete: partidos e sublegendas durante a eleição
municipal de 1976. In: XXVIII Simpósio Nacional de História, lugares dos historiadores: velhos e novos
desafios, 2015, Florianópolis SC. Anais ISBN 978 – 85 – 98711-14-0, Florianópolis: [s.n.], 2015.p. 1-15.
Disponível em: <http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1427857028_ARQUIVO_
trabalhoamphu1976.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2017.p.5. 30
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro 16 de novembro de 1976, a 30 de novembro de 1978.
Fl.81v.
109
estão sendo feitas escavações, cratera de miséria, analfabetismo, fome etc.,
onde nada pertence ao município e sim à companhia [...].31
Então, ainda que Alexandria não tenha sido funcionário fixo do jornal, as questões que
escrevia sobre a mineração em Boquira era também comungada pelo próprio diretor do
periódico, que não escreveu apenas essa matéria sobre o tema, mas várias. Ao acessar o
Tribuna da Imprensa notamos que existe muitas matérias dedicadas ao tema da indústria
mineira em Boquira, muitas delas assinadas por Francisco Alexandria, Genival Rabelo, Hélio
Fernandes e outros.32
O jornal Tribuna da Imprensa foi fundado por Carlos Lacerda em 1949, e adquirido
pelo jornalista Hélio Fernandes em 1962. Em 1964 o jornal apoiou o golpe militar, mas com a
instituição do Ato Institucional número um, em nove de abril de 1964, que suspendeu direitos
políticos, estabeleceu eleições indiretas para presidência da República, etc., o jornal colocou-
se em oposição ao governo. Provavelmente por isso, Hélio Fernandes, quando candidatou-se a
deputado federal pelo MDB em 1966, teve sua candidatura impugnada. Foi também proibido
de assinar matérias no Tribuna da Imprensa, no qual teve de usar pseudônimo para escrever,
situação que durou até quatorze de março de 1967. Fernandes foi preso, seu jornal chegou a
ser fechado. Ademais, várias de suas matérias foram censuradas devido ao teor de oposição ao
regime ditatorial. Numa declaração em 1969 afirmou que “o jornal não arredou pé de sua
trajetória de nacionalismo, mesmo que as esquerdas a qualifiquem de reacionária e as direitas
de demagógicas e comunistas”.33
Ao que parece, esse jornalista também compartilhava da
ideia de defesa dos interesses do país em oposição a vantagens estrangeiras na “nação” e tudo
indica que o jornal não era vinculado a partidos socialistas.
Durante o regime militar o Tribuna da Imprensa atravessou diversas polêmicas,
especialmente quando demarcava oposição ao regime, denunciando-o. Mas por que o caso de
Boquira, cidade do interior da Bahia, ganhou tanta visibilidade nas páginas do periódico?
Seria em função de possuir um colaborar natural da cidade? Talvez em partes, mas o caso
envolvendo a mineradora de Boquira também foi tratada em outros jornais do país como O
Estado de São Paulo, cujas matérias foram analisadas no segundo capítulo. E o tema também
foi tratado em outros periódicos, como vimos, antes mesmo do assunto ganhar relevância no
31
FERNANDES, Hélio. Trustes estrangeiros enriquecem com o minério do Brasil. Tribuna da Imprensa. Rio de
Janeiro, 28 jul. 1971.p.1. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_03&PagFis=5785&Pesq=Boquira >. Acesso
em: 16 abr. 2017. 32
Para acessar as matérias, visitar o acervo do jornal Tribuna da Imprensa na Biblioteca Nacional Digital.
Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/docmulti.aspx?bib=154083&pesq=boquira >. 33
LEAL, Carlos Eduardo. Tribuna da Imprensa. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/tribuna-da-imprensa>. Acesso em: 18 abr. 2017.
110
Tribuna da Imprensa. Desse modo, é possível sugerir que houve um número extenso de
publicações pois o tema ganhou visibilidade nacional principalmente durante a década de
1970, e talvez nesse período o Tribuna da Imprensa tenha dado maior importância para o
assunto fazendo com que outros órgãos de imprensa investigassem a questão.
Na sessão da Câmara de Boquira em cinco de outubro de 1973, houve a leitura de um
ofício do Procurador Geral da Justiça de Salvador, Ivan Americano da Costa. O ofício foi
direcionado ao presidente da Câmara, no qual o Procurador acusava recebimento da ata em
que foi transcrita as cartas do Juiz de Direito e do Procurador de Justiça. No documento é
possível ler: “Tomando conhecimento dessa atitude do digno edil Sr. Osvaldo Monteiro,
apoiada pelo plenário, determinei a necessária anotação na ficha de assentamentos do
mencionado representante do Ministério Público”.34
O fato demonstra que os vereadores levaram ao conhecimento da Procuradoria Geral
de Justiça baiana, a situação, bem como seus posicionamentos à respeito. Indica também a
dimensão que ganhava a polêmica, e talvez até um apoio do Procurador Geral aos magistrados
de Macaúbas. Em trinta de novembro de 1973 o vereador Joaquim Oliveira Leite apresenta
uma moção de repúdio na sessão da Câmara ao Francisco Alexandria, que foi aprovada por
unanimidade. Na ocasião, os vereadores se solidarizavam com o prefeito João de Oliveira
Figueiredo e com o ex prefeito José Lins da Costa, alvos dos escritos do jornalista.35 Em
primeiro de outubro de 1974, outra moção de repúdio contra Alexandria, escrita pelo vereador
José Paulo de Menezes, e aprovada por unanimidade.
Senhor Presidente: passo a ler, para trazer ao conhecimento desta Câmara, a
publicação inserida no jornal “Tribuna da Imprensa”, da Guanabara, do dia 9
de julho de 1974, sob o título “Corleonoe e Boquira (v)”, cuja autoria é
atribuída a Francisco Alexandria, mais uma vez, esse indesejável indivíduo,
com a irresponsabilidade e falta de escrúpulos que sempre o caracterizou,
articula mais uma de suas diatribes e infâmias, investindo contra o Poder
Legislativo Municipal e a honra dos seus membros, bem assim do nosso
honrado Prefeito, Sr. João de Oliveira Figueiredo. Chegamos a esta Casa,
escolhido livremente, pelo voto popular. Como representantes do povo,
temos a consciência tranquila de estar honrando o mandato, procurando
cumprir com o dever, na certeza de que, como modestos sertanejos,
honestamente, temos trabalhado pela grandeza e prosperidade no nosso
querido Município. Por isso, repelimos e repudiamos as injuriosas
afirmações de que fomos eleitos pelo poder econômico e que estamos a
serviço de empresa estrangeira. É bom que se diga que Francisco Alexandria
é figura repudiada e indesejada em toda essa região. Em moções aprovadas
unanimente, as Câmaras municipais de Boquira, Macaúbas, Botuporã,
34
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 08 de abril de 1968, a12 de junho de 1974. Fl. 169. 35
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro de 08 de abril de 1968, a12 de junho de 1974. 184v-185.
111
Ibipitanga e Oliveira dos Brejinhos, repudiaram a sua ação insidiosa,
especialmente os seus ataques às autoridades constituídas. [...].36
Nessa mesma moção, o vereador fez referência a condenação de Francisco Alexandria
pela Comarca de Macaúbas a três anos e um mês de reclusão, com mandado de prisão feita
pelo Juiz de Direito de Oliveira dos Brejinhos “substituto da Comarca de Macaúbas,
ordenando a sua captura, estando [Alexandria] foragido” 37
. O vereador se referiu a sentença
do Juiz de Direito, na qual Alexandria é acusado de maus antecedentes. Dentre os citados
crimes estavam o de estelionato (emissão de cheque sem fundo) no Estado do Paraná em
Curitiba onde respondeu processo, e também “foi réu em diversas ações civis, tais como:
despejos, executivas, imissões de posse, arrestas, embargos etc.”, além de ter servido na
Aeronáutica e na sua ficha ter constado mau comportamento. Em Macaúbas respondia
também por crime eleitoral. Foi condenado, no entanto, por falsidade ideológica.38
Entendemos, a partir da análise das fontes citadas, que as acusações de Alexandria
contra as autoridades de Boquira e região giravam em torno do comprometimento dos sujeitos
com a indústria de mineração. No entanto, eles refutavam a tal vinculação.
Independentemente de as denúncias serem verdadeiras, ou não, fica visível a existência da
ligação entre aquelas autoridades, ou seja, entre os vereadores e os magistrados, o prefeito e a
indústria. O fenômeno transcende as fronteiras de Boquira. Outras Câmaras dos municípios
vizinhos apoiaram as autoridades alvos das acusações e repudiaram o jornalista. Ou seja,
existe um elemento aglutinador que é o da defesa da ordem constituída.
Na seção de vinte e um de novembro de 1975, da Câmara de Boquira, o vereador
Joaquim Oliveira Leite levou ao conhecimento da plenária o discurso do deputado federal
Horácio Matos (Arena BA), feito na Câmara dos deputados no dia dezenove de setembro de
1975.39
[...] há dias tivemos a oportunidade de ouvir pronunciamento de ilustre
deputado do MDB pela Bahia, no qual S. Ex.ª criticou injustamente os
dignos Srs. João de Oliveira Figueiredo, Prefeito do Município de Boquira,
Dr. Joel Neto Ferreira, Juiz de Direito da Cômarca, e o Dr. Ruy Osório,
Promotor Público, fazendo-lhes injustas acusações e estendendo as suas
críticas ao Poder Legislativo daquela Comuna. Estou certo, Sr. Presidente,
de que o digno parlamentar agiu de boa fé, confiante em informações
fornecidas pelo comprovado criminoso, estelionatário, Francisco Alexandria
Pontes, useiro e vezeiro em subverter os fatos e caluniar. Quero, nesta
36
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro 19 de julho de 1974, a 12 de novembro de 1976. Fls. 3-
3v. 37
Ibid., fl., 3v. 38
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro 19 de julho de 1974, a 12 de novembro de 1976., fl., 4. 39
Ibid., fl. 62.
112
oportunidade, fazendo justiça àquelas autoridades respeitáveis sob todos os
títulos, registrar o meu protesto em nome de toda a comunidade do
Município de Boquira, como também dos municípios de Macaúbas,
Botuporã, Oliveira dos Brejinhos, Ibipitanga, os quais se manifestaram por
intermédio dos seus mais lídimos representantes os edis componentes das
suas dignas Câmaras de Vereadores – em moções que dignificam e são
motivo de orgulho para qualquer pessoa de bons costumes.40
No discurso, o deputado apresenta as mesmas informações presentes na ata da sessão
da Câmara de Boquira do dia primeiro de outubro de 1974, no que diz respeito aos
antecedentes de Alexandria em relação aos processos que respondeu e à condenação por
falsidade ideológica na comarca de Macaúbas. Tudo isso, no intuito de desqualificar as
informações dadas pelo deputado do MDB, visto que ela teria sido fornecida por Alexandria.
Talvez se tratasse do deputado federal Nóide Cerqueira do MDB baiano, cuja denúncia feita
foi matéria do jornal O Estado de São Paulo, que nos referimos no capítulo anterior. Então, a
questão tomava o âmbito político a nível federal, podendo envolver também uma disputa
política entre a Arena e MDB.
Nas eleições de 1974 o MDB saiu na frente no pleito para o Congresso Nacional, e
efetivamente ganhou mais espaço no terreno da política. Na época, o governo ditatorial, que
tinha acabado de empossar o Ernesto Geisel (1974-1979), apresentava sinais de desgaste em
razão de problemas na economia, insatisfação social à repressão, e ainda por conta da
proposta de Geisel de realizar uma abertura política “lenta, gradual e segura”.41
Sabemos por meio das atas da Câmara Municipal de Boquira que Alexandria tinha
sido condenado por falsidade ideológica, no entanto não havia sido preso logo quando foi
acusado. Contudo, em agosto de 1976, encontrava-se recluso, sob a mesma acusação.
[...] Alexandria encontra-se preso em Salvador, no 5° Batalhão da Polícia
Militar, condenado por falsidade ideológica.
O crime do jornalista, de acordo com a sua advogada, Aldenoura de Sá
Porto, resumiu-se no fato de ter ele, há 20 anos, modificado no cartório da
Comarca de Macaúbas, à qual pertence o município de Boquira, sua certidão
de nascimento, fazendo nela constar o nome de seu pai... não incluindo no
documento original.
A Associação Brasileira de Imprensa telegrafou ao governador Roberto
Santo>>, pedindo garantias de vida ao jornalista, que agora aguarda o
julgamento de seu pedido de habees (sic.) corpus ao Supremo Tribunal
Federal.42
40
Livro de ata da Câmara Municipal de Boquira. Livro 19 de julho de 1974, a 12 de novembro de 1976. Fl. 62v. 41
BRAGA, 2015, p.1. 42
NA BA, SECRETARIA MANDA INVESTIGAR O CASO DE BOQUIRA. O Estado de São Paulo. São
Paulo, 6 ago. 1976.p.27. Disponível em:<http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19760806-31096-nac-0027-
999-27-not/busca/Boquira>.Acesso em: 23 abr. 2016.
113
Podemos perceber que a mesma advogada, Aldenoura de Sá Porto, que abriu o
processo em defesa dos lavradores, estava defendendo também o jornalista Alexandria.
Talvez, tenha sido o próprio Alexandria que entrou em contato com ela para abrir uma ação
na justiça à favor dos agricultores. Encontramos no livreto editado por Alexandria Pontes,
anexo o habeas corpus43
requerido pela advogada, em favor do jornalista em 1975.
Na ocasião a advogada argumentou que Alexandria não teria cometido o crime, pois
não teve intenção de prejudicar a terceiros. O que houve foi que não constava na certidão de
Alexandria o nome do pai e dos avós, então foi até a escrivã da cidade de Boquira em 1949
com intenção de consertar o erro. A escrivã teria dito ao jornalista que poderia solucionar o
problema, e que faria requerimento ao juiz da comarca, fazendo com que Alexandria cresse
que tudo estava de acordo com a lei. Foi-lhe dito ainda que o documento seria trocado. No
entanto, fizeram outro registro sem ratificar o antigo. O intrigante na documentação é que a
advogada acusa os dirigentes da Mineração Boquira de armarem para que o jornalista fosse
preso, pois ela não via sentido em acusar seu cliente de um crime depois de vinte e um anos
do ocorrido. Diz que “fora o paciente cidadão anônimo e não hoje esta expressão nacional de
coragem e destemor estamos certos, jamais viria a público fato tão banal e tão sem
relevância!”44
Segundo a advogada, a escrivã fez com que o caso se tornasse público “pois
não havendo segredo de justiça, sendo a escrivã do pequeno lugarejo, conhecedora de tudo
quanto ocorre no cartório, nada mais evidente que relatar esses fatos a todos [...]” 45
De
acordo com o documento, foi um motorista da Mineração Boquira em visita ao Cartório de
Registro Público, que descobriu as irregularidades na certidão de nascimento do jornalista.
Nicolau dos Santos Dantas, semi-analfabeto, descobriu „algumas
irregularidades no assentamento do nascimento do jornalista e, de pronto,
dirigiu petição ao Promotor Público da Comarca em que procurou enquadra-
lo nas penalidades previstas pelo artigo 299 para o crime de falsidade
ideológica...‟46
Então, o que a advogada indica é que não se tratou de uma coincidência, mas uma
manobra da mineradora para prejudicar o jornalista. Para Aldenoura Porto isso aconteceu
43
“Descrição do Verbete: (HC) Medida que visa proteger o direito de ir e vir. É concedido sempre que alguém
sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou
abuso de poder. Quando há apenas ameaça a direito, o Habeas corpus é preventivo. Partes: Qualquer pessoa
física que se achar ameaçada de sofrer lesão a seu direito de locomoção tem direito de fazer um pedido de
Habeas corpus. Essa pessoa é chamada de „paciente‟ no processo. O acusado de ferir seu direito é denominado
„coator„.” SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Glossário Jurídico. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=H&id=155>. Acesso em 21 jul. 2016. 44
PONTES, 1976, p. 6, 7. 45
Ibid., p. 09. 46
Ibid., p. 10
114
porque Alexandria Pontes estava incomodando a indústria, por conta das denuncias que ele
vinha fazendo da companhia. O motivo da perseguição ao jornalista, segundo o documento, se
deve ao fato de Alexandria:
Desde 1970 vem se ocupando dos problemas relacionados com as injustiças
sociais praticadas pela firma de mineração que atuam em Boquira, sua terra
natal. As suas denúncias têm obtido grande repercussão não somente na
imprensa do país todo como também no próprio Congresso Nacional, onde
não raramente assuntos da maior gravidade relacionados com as falcatruas
cometidas pelas firmas de mineração que agem em Boquira são levantadas e
debatidas.47
Nesse mesmo documento aparece a informação de que a mineradora abriu vários
processos contra Alexandria, que acabaram sendo arquivados. Sendo um deles “instaurado na
Justiça Militar. Pretendiam enquadrar como „subversivo‟. Achavam que o peso da
denunciação caluniosa seria suficiente para fazê-lo calar”.48
Como naquele momento o país
estava sob um governo ditatorial, as liberdades de expressão estavam comprometidas, e a
subversão era considerada um crime contra o governo, cremos que quem o acusou se
aproveitou do contexto de repressão49
para tentar enquadrar o jornalista nesse crime. Esse
processo também foi arquivado. As cartas dos magistrados de Macaúbas, que citamos acima,
também indicam que realmente existiu a iniciativa do juiz e do promotor de insinuarem que o
jornalista se relacionava com “ideias subversivas”. Nesse caso, para eles, Alexandria era um
subversivo que contrariava a ordem.
O livro de Eurípedes Bonfim revela que o juiz de Direito de Macaúbas – Joel Neto
Ferreira – se relacionava com a mineradora. O mesmo juiz que aparece no habeas corpus de
Alexandria Pontes como sendo responsável pelas acusações feitas. Bonfim informa que:
Este mesmo juiz condenou a três anos de prisão, um jornalista filho de
Boquira, o qual denunciava e lutava pelos desmandos da Mineração; e sem
nenhuma providência por parte das autoridades; por haver solicitado através
de petição ao Juiz da Comarca há vinte e quatro anos atrás, a inclusão do
nome de seu pai, na certidão de nascimento, vez que seus pais eram casados
religiosamente; e o meritíssimo condenou-o por falsidade ideológica.50
47
PONTES, 1976, p. 10. 48
Ibid., p. 13. 49
Como lembra Carlos Fico sobre esse aspecto do período da ditadura militar no Brasil, “[...] hoje podemos
afirmar, baseados em evidências empíricas, que a tortura e o extermínio foram oficializados como práticas
autorizadas de repressão pelos oficiais-generais e até mesmo pelos generais-presidentes.” FICO, Carlos. Versões
e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n.47, p.29-
60, 2004. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/rbh/v24n47/a03v2447.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2014. p.36. 50
BONFIM, Eurípedes. Nem tudo está perdido. [S.I.: s.n., 199-]. p. 21.
115
Observamos que as fontes tendem a convergir sobre os vínculos entre o juiz de Direito
de Macaúbas e a mineradora de Boquira. Por isso, é bastante provável que as relações tenham
de fato existido. Desse modo, notamos que até o aparato jurídico foi corrompido no sentido de
atender aos interesses da indústria. O jornalista Alexandria se mostrou profundamente crítico
a isso. Nos relatos dos ex-trabalhadores mineiros, ele é lembrado como um sujeito sempre em
atrito com a mineradora:“Ele lutou com essa companhia...”51
e “Alexandria era uma pessoa
...sei lá uma pessoa de vontade de miorar alguma coisa, conhecia de muita coisa errada... e ai
aqui a companhia parece que tinha cisma dele.”52
.
Apesar da maioria das memórias convergirem na descrição de que Alexandria era um
incansável lutador contra as arbitrariedades da mineradora, as lembranças de Aristóteles
Mota, destoam um pouco da versão que prevalece. Ao falar sobre o jornalista, o entrevistado
observou:
Alexandria é o seguinte, eu considero ele como um agitador e oportunista e
aventureiro, ele queria era assumir o poder ali e foi muito burro, ele não
assumiu [...] por burrice, naquela época que ele foi candidato lá a eleição
tava nas mãos dele, mas ele fez umas besteirinhas e perdeu a eleição de
bobeira, mas também vejo assim esses tipo de pessoa assim de qualquer
forma serve, porque é... despertou muita coisa... então... alertou tá
entendendo, freou o pessoal ... agora (se você disser) Alexandria chegasse
ali ia querer fazer o bem de todos, ai não, ia fazer o bem dele [...] na época
dele foi boa eu achei válido, pelo menos... não existe é... democracia sem
oposição né, tem que ter.53
Aristóteles Mota foi gerente financeiro da empresa. Talvez por ter ocupado um cargo
de prestígio, sua fala quase sempre defende a mineradora. Segundo ele, “na época o seguinte,
toda administração ali quando a mineração tava foi boa, porque a mineração tava em tudo,
tava em tudo, tudo que pedia a mineração a mineração fazia.” 54
. Apesar de defender que a
mineradora era benéfica para a cidade, ele não deixa de reconhecer que a empresa controlava
tudo, quando, por exemplo, diz que Alexandria “despertou muita coisa”, “freou o pessoal” e
que “a mineração tava em tudo”, dando a entender que de fato a mineração controlava toda a
administração do município, e que precisou de alguém como Alexandria para questionar, e ir
contra o poder exercido pela indústria.
51
SANTOS, Abelino Manoel dos, Abelino Manoel dos Santos: depoimento [nov. 2012]. Entrevistadora: Alcione
S. Conceição. Bahia: Boquira, 2012. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica. 52
SOUZA, Saturnino José de. Saturnino José de Souza: depoimento [abr. 2012]. Entrevistadora: Alcione S.
Conceição. Bahia: Boquira, 2012. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica. 53
MOTA, Aristóteles Frota Vilas Boas da. Aristóteles Frota Vilas Boas da Mota: depoimento [maio.2012].
Entrevistadora: Alcione S. Conceição. Bahia: Boquira, 2012. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para
pesquisa histórica. 54
MOTA, 2012.
116
Nos interessa menos saber se as denúncias que Alexandria Pontes fazia eram
verdadeiras, do que o que tais posicionamentos provocaram. Sendo assim, compreendemos
que, naquele contexto, existia na região de Boquira uma relação de poder envolvendo a
participação da indústria mineira, e a oposição aos seus desmandos na cidade. Na verdade,
qualquer ação que se opusesse aquela lógica era vista como agitação, desordem, e precisava
ser combatida.
Além da oposição expressa feita por Alexandria, alguns moradores da cidade também
apresentaram denuncias contra o Juiz de Direito Joel Neto Ferreira. Chegaram a organizar um
abaixo assinado, colhendo cinquenta assinaturas, exigindo a saída do Juiz. No jornal O Estado
de São Paulo, em sessão sobre notícias de Salvador, anunciava:
50 moradores do Município de Boquira encaminharam ontem ao Tribunal
Regional Eleitoral uma representação, em forma de abaixo assinado, pedindo
o afastamento do juiz eleitoral da comarca Joel Neto Ferreira bem como do
seu substituto Ruy Osório. No documento os signatários acusam Joel Neto
Ferreira e Ruy Osório de estarem comprometidos com a Mineração
Boquira.55
Esses moradores estavam descontentes com a forma como o processo eleitoral estava
acontecendo em Boquira, o mais provável é que se tratasse de pessoas a favor da candidatura
de Alexandria Pontes. E mais uma vez aparece o aspecto do comprometimento das
autoridades com a mineradora, deixando claro que a denúncia dos moradores se relacionava
com a interferência do juiz nas eleições. Isso evidencia que realmente havia pessoas do lugar
que concordavam com as ideias defendidas pelo jornalista Alexandria. Não podemos esquecer
que as pessoas que eram vinculadas a empresa, mediante contratos trabalhistas, não podiam se
posicionar conta a indústria, provavelmente por receio de perderem o emprego – Relatos de
trabalhadores sobre essa questão apareceram no capítulo anterior. Supomos que as cinquenta
pessoas que assinaram o documento não possuíam vínculo empregatício com a indústria. Em
entrevista, seu José relembra a presença de Alexandria nas disputas eleitorais de Boquira:
Alexandria foi o cara que mais lutou aqui pra Boquira, ele foi quem ...aquele
INSS ali nois dá graças a Deus ele, foi quem mandou fazer foi ele por
intermédio do governo, ele foi lá e pediu e o governo fez pra ele, era o
homem que nois podia ter aqui era ele mas [...] não quis...Ele lutou ai com a
mineração brigava com a mineração ai, fazia tudo ai, por causa que ele dizia
que era, ele dizia que a cidade era pobre e a mineração era rica... Ele
55
RELATÓRIO OFICIAL É RECUSADO. O Estado de São Paulo. São Paulo, 17 set. 1976.p.15. Disponível
em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19760917-31132-nac-0015-999-15-not/busca/Boquira>.Acesso em:
23 abr. 2016.
117
ganhava [as eleições] mas o povo [as autoridades] não dexava ele levar
não,ai foi indo, foi indo ele desgostou, largou pra lá, foi embora. 56
Na memória de seu José e de outras pessoas da região, Alexandria aparece como um
sujeito que lutou pelo bem de Boquira. Os conflitos são narrados como episódios em que o
jornalista demonstrava, de fato, a defesa que fazia da cidade e de seus habitantes menos
favorecidos, em detrimento da dominação que a mineradora exercia no local. Astrogildo
Lima, ex-trabalhador mineiro, conta que em determinada ocasião Francisco Alexandria
conversou com os trabalhadores mineiros e disse-lhes: “chefe, não acredita muito em chefe
não, chefe é que nem mandacaru, patrão, patrão, patrão é que nem mandacaru, não dá encosto
nem sobra.” 57
Este relato demonstra mais uma forma de como a personagem é lembrada, ou
seja, com um sujeito crítico, contrário aos patrões, companheiro dos trabalhadores. Na
expressão aparece a analogia entre o cacto mandacaru, planta típica do sertão nordestino, e os
patrões. Portanto, a metáfora quis indicar que, assim como o mandacaru, os patrões não são
capazes de proteger os trabalhadores.
Os relatos evidenciam que prevalece uma memória que revela Alexandria como um
sujeito bem visto na cidade, no sentido de que as causas pelas quais lutou eram válidas.
Contudo, também teve um relato em que ele foi denominado de oportunista e aventureiro,
pensamento que corrobora com as acusações dos vereadores e dos magistrados.
O ato de narrar é individual, mas a memória é construída socialmente, portanto,
apresenta características do grupo social na qual foi construída. O fato de Aristóteles Mota ter
sido gerente financeiro da mineradora, explica o seu posicionamento, já que ele compartilhava
a visão positiva da indústria mineira na cidade, provavelmente também partilhava da ideia que
o grupo político e os representantes da mineradora possuíam sobre o jornalista Alexandria
Pontes.
A partir do exposto, observamos que apesar de entre os ex-trabalhadores da indústria
mineira prevalecer a versão de que o jornalista era um incansável defensor dos interesses da
cidade de Boquira, apareceu uma versão divergente. Mas, apesar de Mota descrever o
Alexandria como oportunista, ele não nega a importância da ação política de Alexandria.
Como constata Pollak as memórias não são homogêneas, estão sempre em processo de
56
NETO, José Domingues. José Domingues Neto: depoimento [mar.2013]. Entrevistadora: Alcione S.
Conceição. Bahia: Boquira, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica. 57
LIMA, Astrogildo Alves de. Astrogildo Alves de Lima: depoimento [jan. 2014]. Entrevistadora: Alcione S.
Conceição. Bahia: Boquira, 2014. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
118
contradição, disputas e conflitos.58
No caso das memórias elaboradas sobre a indústria em
Boquira e a ação do jornalista, contrário aos desmandos da mineradora na região, notamos
que os eventos são lembrados de acordo com os lugares sociais dos narradores.
Ainda que o jornalista Alexandria possuísse algum interesse em se tornar uma figura
importante em Boquira, almejando, inclusive, tornar-se prefeito (e ele poderia realmente
possuir um projeto político para Boquira distinto do que estava posto). Suas posições não
estavam descoladas da situação concreta vivenciada na localidade, tanto que o jornalista foi
apoiado por parte dos habitantes da cidade, tanto é assim que não foi apenas Alexandria que
denunciou as ações da mineradora, mas os próprios lavradores expropriados que, desde a
década de 1950, já vivenciavam conflitos com a indústria. Nesse sentido, o jornalista tornou
mais visível os conflitos, as contradições e a dominação que já estavam postas na localidade.
Ao analisar os conflitos envolvendo o jornalista Alexandria, os grupos políticos locais,
os magistrados e a mineradora, evidenciamos o cenário de contradição e de disputa na região
de Boquira no período das atividades de mineração. Existia no lugar um poder que foi
constituído pela indústria mineira que não se restringia ao campo econômico, mas político e
social. Tudo girava em torno da empresa, ela que empregava as pessoas e as mantinha no
emprego, o que justificava a coerção aos trabalhadores que, inclusive, eram praticamente
obrigados a votar nos candidatos apoiados pela empresa. Os funcionários que eram muito
beneficiados pela empresa deveriam manter uma relação de cooperação e apoio à indústria, o
que não deixava de ser também uma dependência. Mas para além disso, o que nossa análise
tem revelado é que apesar do poder da indústria, suas imposições não deixaram de ser
contestadas, denunciadas, pois nem todos os habitantes de Boquira estavam satisfeitos com a
forma da mineradora agir naquele espaço. Por isso, é importante analisarmos as memórias dos
trabalhadores mineiros, refletindo sobre como os operários vivenciaram o trabalho na
mineradora, fato que será evidenciado no tópico seguinte.
3.2. Memórias do trabalho na indústria: os mineiros de Boquira
Antes de iniciarmos a análise, vale relembrar os ensinamentos de Eclea Bosi, para
quem o sujeito que lembra, tal qual o historiador, fica impossibilitado de tratar do passado
58
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, p. 200-
212, 1992. Disponível em: <http://reviravoltadesign.com/080929_raiaviva/info/wp-gz/wp-
content/uploads/2006/12/memoria_e_identidade_social.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2013.p.5.
119
exatamente como ocorreu,59
o que não significa defender a impossibilidade de aproximação
com o tempo pretérito. Nesse sentido, as narrativas orais é um meio de nos aproximarmos de
aspectos das vivências dos sujeitos. No caso de Boquira, a fonte oral nos permite acessar
memórias ausentes da memória oficial da cidade. Entendemos que só é possível saber sobre o
vivido quando ele é transmitido, e a oralidade é uma das maneiras de conhecê-lo. Portanto, a
lembrança do vivido abre janelas tanto para a compreensão dos acontecimentos do passado,
quanto para o entendimento dos sujeitos no presente, na medida em que revela como
interpretam o passado vivido.
Desse modo, iremos destacar as memórias que o grupo de trabalhadores mineiros
construiu sobre as vivências do trabalho no interior das minas de Boquira. Através delas,
compreendemos que existe uma memória coletiva daquele grupo social, criada no universo
cotidiano do trabalho, compartilhada ainda hoje pelo grupo. Nos capítulos anteriores já
vínhamos trabalhando com os relatos desses trabalhadores, mas nesta parte, nos dedicaremos
com mais vagar. Procuramos vislumbrar, a partir da memória dos antigos trabalhadores,
alguns aspectos de suas vivências no ambiente de labor, e como estas estão presentes na
constituição das suas memórias.
Entendemos a memória como um fenômeno social. Segundo Pollak, a memória não é
uma manifestação individual como parece ser a priori. “Maurice Halbwachs nos anos 1920-30
já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou, sobretudo, como um
fenômeno coletivo e social.” 60
Henry Rousso também ressalta a perspectiva coletiva da
memória, aceitando a assertiva do sociólogo Halbwachs cuja notoriedade no campo de estudo
das memórias foi a de percebê-la enquanto um fenômeno social. Segundo Rousso a memória
“é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do
passado”, mas esse passado não é vivido pelo sujeito isoladamente, mas por um “individuo
inserido num contexto familiar, social, nacional. Portanto toda memória é, por definição,
„coletiva‟, como sugeriu Maurice Halbwachs”.61
Partindo do entendimento de que toda memória é coletiva, ainda que as narrativas
sejam individuais, entrevistamos dez ex-trabalhadores mineiros que residem no município de
Boquira, na sede e zona rural. Todos aposentados. No momento da entrevista possuíam entre
59 e 74 anos. Todos eles tem em comum o fato de morarem no campo antes de começarem a
59
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança dos velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
p.59. 60
POLLAK, 1992, p.1. 61
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Morais
(Coord.). Usos e abusos da história oral. 8. ed.Riode Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 93-101.p. 94.
120
trabalhar na empresa de mineração. De todos eles, apenas dois não são naturais de Boquira. O
senhor Abelino Manoel, que nasceu em Seabra, e José Mario, nascido em Macaúbas.
A maioria dos entrevistados teve como primeiro emprego fixo a mineradora de
Boquira. Somente dois deles já tinham tido outra experiência de trabalho assalariado. Na
mineradora, a função de mineiro era exercida por sujeitos de diferentes lugares – municípios
vizinhos, comunidades diferentes na zona rural, até mesmo de outras áreas da Bahia e outros
Estados. Pelos relatos, é possível supor que grande parte dos trabalhadores mineiros era
oriunda de regiões rurais. Como já apontamos no primeiro capítulo, tratava-se de uma
conjuntura em que se expandia o capitalismo no país, e as zonas rurais foram afetadas por
essa industrialização, situação que moldou a forma de viver de muitos sujeitos.
Como já foi abordado, entre 1950 e 1970, período de crescimento da industrialização
no Brasil, instalou-se indústrias em regiões rurais, fato que contribuiu para o aumento do
êxodo rural, já que as pessoas passaram a migrar de forma intensa para os locais onde as
empresas se estabeleciam. Portando, o fenômeno não foi uma peculiaridade de Boquira.
Bernardes et.al., investigaram as memórias de trabalhadores da vila fabril em Anápolis no
estado de Goiás entre 1950- 1970, objetivando tratar sobre a indústria no interior do país,
entendendo o fenômeno dentro do processo de eclosão da industrialização no Brasil. A vila
foi construída devido ao estabelecimento de fábricas, olarias, frigoríficos, cerâmicas etc.
Segundo os autores, as pessoas que iam para a vila fabril em Anápolis saiam de várias
localidades “externas e internas ao estado de Goiás, trazendo algo em comum: origem rural,
precária alfabetização, e um sonho muito grande de mudar de vida expressada como melhoria
na qualidade de vida.” 62
Os dados apresentados nos levam a perceber que naquele contexto, em que o interior
do país se industrializava, as populações do campo, por razões diversas, partiam em busca de
empregos nas indústrias. O perfil destes trabalhadores era de pessoas que não tiveram acesso à
educação formal, e que procuravam melhorar suas condições de vida. É o caso dos
trabalhadores mineiros de Boquira. Como lembra Maria Ciavatta, somente focando o trabalho
na sua especificidade histórica, nas suas mediações particulares, ou seja, “nos processos
62
BERNARDES, Genilda D‟ Arcet al. “Um pedacinho de outrora...”: memória de trabalhadores da vila fabril em
Anápolis, Goiás (1950-1970). Soc. e Cul., Goiânia, v.18, n. 2, p. 149-162, jul./dez. 2015. Disponível em:
<https://www.revistas.ufg.br/fchf/article/viewFile/42428/21352>. Acesso em: 19 abr. 2017.p. 8.
121
sociais que lhe dão forma e sentido no tempo e no espaço, podemos apreendê-lo ou apreender
o mundo do trabalho na sua historicidade”.63
Todos os ex mineiros iniciaram o trabalho nas minas nas décadas de 1950, 1960 e
1970. Todos possuíam baixa ou nula escolaridade, alguns fizeram o que denominam antigo
primário, outros apenas aprenderam assinar o próprio nome. A maioria das narrativas dos ex
trabalhadores são convergentes no que diz respeito aos principais acontecimentos vivenciados
pelo grupo no trabalho. Apesar da maneira individual de lembrar e das seletividades das
memórias, os relatos se repetem no que tange à escolarização, assim como no que diz respeito
a outros aspectos. Ademais, alguns elementos são enfatizados por uns, e secundarizados por
outros.
Quando um ex mineiro rememora surge de suas lembranças variados sujeitos e
acontecimentos, alguns desses eles mesmos presenciaram outros foram vividos por colegas,
mas se constituiu de forma tão marcante que passou a fazer parte da memória do grupo. Do
modo como sinalizou Pollak, quando fala dos aspectos que constitui as memórias individuais
e coletivas, em primeiro lugar estão os acontecimentos vividos pessoalmente e em segundo
“chamaria de „vividos por tabela‟, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa se sente pertencer”.64
Pollak também destaca que, mesmo que exista na memória aspectos flutuantes e
mutáveis, ela também é composta por pontos relativamente invariantes e imutáveis. A
explicação para isso, diz o autor, é como se numa história de vida individual – podendo
ocorrer também em memórias construídas coletivamente – “houvesse elementos irredutíveis,
em que o trabalho de solidificação da memória foi tão importante que impossibilitou a
ocorrência de mudanças”.65
Portanto, é possível afirmar que em Boquira o grupo de
trabalhadores mineiros passou pelo processo de solidificação de suas memórias, pois as
principais memórias que emergem são comuns a todos os entrevistados. As principais
memórias dizem respeito as dificuldades encontradas no trabalho das minas, o choque
provocado pela morte de um companheiro de trabalho, a solidariedade e brincadeiras
construídas entre o grupo nas relações de trabalho.
Acreditamos que a construção e manutenção das memórias não estão separadas das
relações materiais e históricas. Quando os sujeitos produzem sua existência nas relações de
63
CIAVATTA, Maria. A memória dos trabalhadores de classe subalterna a construtores da democracia.
Trabalho e Educação, Belo Horizonte, n. 11, p. 33-48, jul./dez. 2002. Disponível em:
<http://www.portal.fae.ufmg.br/seer/index.php/trabedu/article/view/1247/1008>. Acesso em: 17 abr. 2017.p.37. 64
POLLAK, 1992, p.2. 65
Idem.
122
trabalho, também constroem identidade, resultado de suas vivências no cotidiano laboral onde
se experimenta uma diversidade de relações, exploração, resistências, solidariedade e
conflitos. Mediante esse compartilhar de relações, de interesses em comum, que um grupo de
trabalhadores pode criar sua identidade e consequentemente suas memórias. Portanto, a
memória é forjada numa condição social determinada, ou seja, a partir de um lugar histórico e
social dado. Ao falarmos de memórias de grupo estamos tratando de identidades, entendida
aqui como lugar de pertencimento. Como lembra Alistair Thomson, a identidade “é a
consciência do eu que, com o passar do tempo, construímos da interação com outras pessoas e
com nossa própria vivência”.66
Portanto, para falarmos das memórias dos trabalhadores precisamos entender o lugar
social no qual estão inseridos, já que suas identidades foram também determinadas pelas
relações sociais de produção. A determinação aqui entendida no sentido que expõe Raymond
Williams, que significa estabelecimento de limites e pressões “seja por alguma força externa
ou por leis internas de um desenvolvimento particular” 67
, existentes na prática social. Isso
não quer dizer que exista uma causa externa que controle completamente as atividades
humanas, mas que estas são limitadas e sofrem pressões, ou seja, as ações humanas não
ocorrem de forma “livre”, mas são condicionadas por forças e leis que atuam sobre elas.68
Em vista disso, notamos que no universo do trabalho, os mineiros de Boquira forjaram
suas identidades, e no presente partilham de uma memória que foi construída ao longo da
trajetória de labor, reminiscências de um passado experimentado com dificuldades, coragem,
necessidade, solidariedade, tristezas, risos. Vivências que os formaram e que fazem parte do
que são hoje. Sujeitos que se submeteram ao árduo trabalho dentro das minas, com o objetivo
de garantirem sua sobrevivência, na expectativa de melhoria de suas condições de vida. Para
nos ajudar a compreender os relatos apresentados pelos ex mineiros, trazemos as funções que
eram exercidas no interior das minas. Iracema Oliveira constrói uma tabela sobre os cargos
exercidos pelos mineiros, quais sejam:
Serviços realizados em sub-superfície:
- Carregador de subsolo: esse funcionário também conhecido como
paleiro, utilizando uma pá enchia as locomotivas com fragmentos de rochas
66
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias.
Projeto História, São Paulo, v. 15, p. 51-84, abr. 1997. Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:ioPAo6_38QUJ:revistas.pucsp.br/index.php/revph/arti
cle/download/11216/8224+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 24 mar. 2017. p. 57. 67
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.p.44. 68
Idem.
123
após a explosão delas mesmas, ou como os operários chamavam “após a
explosão do filão”.
-Operador de máquina nível 1 e 2: esse tipo de funcionário guiava os
tratores e as caçambas, tanto em sub-superfície (nível 1) como na superfície
(nível 2). Os tratores que trabalhavam dentro da mina tinha como principal
objetivo, juntar os fragmentos de rochas para facilitar o trabalho dos
paleiros. Ou, dependendo da profundidade, do diâmetro ou do grau de
inclinação, os próprios tratores eram incumbidos de carregar as caçambas
utilizando uma pá mecânica. O local de menor acesso e perigo ficava com os
paleiros. Já os caçambeiros trabalhavam mais na parte externa da mina da
seguinte forma: as locomotivas eram carregadas pelos paleiros de rochas
fragmentadas. Após serem carregadas, essas se dirigiam para a superfície
tendo como principal combustível a energia elétrica, transitando através dos
trinta quilômetros de trilhos distribuídos dentro dos túneis. Chegando a
superfície, todo o material que se encontrava nas locomotivas era depositado
nas caçambas e essas depois descarregavam num britador ou moinho, onde
iria fragmentar a rocha em pequenas dimensões. O material derivado desse
processo era encaminhado para a fase de flotação [...].
- Alinhador: esses funcionários tinha como objetivo alinhar os trilhos onde
transitavam as locomotivas, equivaleria dizer, como os trilhos eram
distribuídos dentro dos túneis e obedecia a topografia dos mesmos, havia a
necessidade de em alguns momentos, ter um operário para puxar uma
alavanca que iria dar uma nova direção, um novo rumo à aquelas
locomotivas, quer seja para acabar de preencher os espaços vazios em outro
túnel, quer seja com o intuito de que essas locomotivas atingissem a
superfície quando estivesses completamente cheias de detritos de rochas.
-Escorador: trabalhava basicamente com madeira para escorar a rocha
dentro dos túneis com o objetivo de impedir o desmoronamento dos
mesmos.
-Perfurador de rocha nível 1, 2 e 3: trabalhava com um martelo de furacão
para abrir um determinado buraco na rocha, local esse em que seriam
depositadas as dinamites para a posterior explosão.
- Encarregado ou feitor: sua função era organizar e zelar pelo bom
andamento do serviço. Seria uma espécie de vigia, mas possuía certo poder
perante os outros ordenando a distribuição dos serviços.69
Clarice Speranza informa que o trabalho dos mineiros é um dos mais árduos, perigosos
e insalubres que os humanos já inventaram. Essa categoria de trabalhadores é exposta
constantemente ao risco de acidentes letais ou incapacitantes, “condenados à escuridão, à
poeira, ao frio e calor excessivos, esses operários chegam a ser comparados a toupeiras pelo
escritor francês Émile Zola em seu célebre Germinal." 70
Ao tratar do trabalho dos mineiros de
carvão no município de São Jerônimo no Rio grande do Sul, em especial das lutas que
desenvolveram no campo jurídico entre as décadas de 1940-1950, a autora argumenta que nos
69
OLIVEIRA, Iracema Souza de. A mineração de chumbo e a produção do território de Boquira-Bahia:
Impactos socioeconômicos e exploração do trabalho. 2011. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação em
Geografia) - Universidade Federal da Bahia, Barreiras, 2011.p. 36-38. 70
SPERANZA, Clarice Gontarski. Cavando direitos: as leis trabalhistas e os conflitos entre trabalhadores e
patrões nas minas do Rio Grande do Sul nos anos 40 e 50. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2012. Disponível em:
<http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/54071/000837468.pdf>. Acesso em: 20 maio 2017.p.41.
124
anos quarenta “as evidências indicam um cotidiano humilhante, insalubre e degradante” 71
para aqueles operários.
Entendemos, portanto, o quanto o labor no interior das minas é desgastante e
arriscado. As narrativas dos ex-mineiros de Boquira nos permite sustentar a afirmação.
Comecemos, pois, pelo relato do senhor Astrogildo Lima, natural do município de Boquira.
Astrogildo iniciou o trabalho nas minas em 1967. Ao falar das dificuldades naquele serviço,
fez a seguinte exposição:
E a gente fica duído por dento, porque essas coisas é assim, um espinho
entra num pé de uma pessoa , ele tá gritando, mas não foi no pé da gente, foi
no dele né. Ele tá sentindo a dor mais a gente quá, não tá duendo não, mas é
nele...e esse trabaio ai as veiz a gente fala a pessoa fica assim quá, será que
era assim mesmo talvez não era, mais quem entrou lá que viu sabe como é
que foi o sofrimento [...].72
O ex trabalhador usou uma metáfora para entendermos o significado do labor nas
minas. A intenção foi tentar explicar de forma clara como é difícil sentirmos o que ele sentiu
naquele tipo de trabalho. Com a metáfora, Astrogildo quis evidenciar o quanto o trabalho das
minas foi extenuante, e que só quem o experimentou é capaz de saber sobre a agrura daquele
serviço. Astrogildo conta, ainda, que quando começou a trabalhar era solteiro, os pais tiveram
dezessete filhos, na época, o pai, ele e outro irmão trabalhavam para sustentar a família.
Conta:
[...] Falar da minha vida pessoal eu fui uma pessoa muito sofrido, meus pais
teve foi dezessete filho a criação deles foi dezessete. Eu e outro irmão que eu
tinha, ajudava pai dar de comer esses meninos [...]. Eu trabaiava, tinha um
cartão que comprava comida na cantina, comprava arroz, carne no açougue,
óleo essas coisas, “mãe você vai lá e tira pra dar de comer esses meninos”
[...] só tinha eu oto irmão e meu pai trabaiava pra dar de comer eles, então,
trabaiei um ano e não comprei nada pra mim, nada, nada. Eu vim pra pensão
o dinheirinho que sobrava minha mãe fazia a compra na cantina né, pra dar
de comer meus irmãos, não tô alegando não, que eu fiz uma coisa dessa
fiquei satisfeito de minha mãe ficou satisfeito né, o restinho que sobrava que
eu tirava eu pagava a pensão eu ficava sem nada [...].73
Na época, era o trabalho na lavoura que garantia parte da subsistência da família do
ex-mineiro. No entanto, provavelmente o que se obtinha com ela não era suficiente, talvez por
isso Astrogildo teve de trabalhar na mineradora, já que com o salário pôde ajudar seus pais e
71
SPERANZA, 2012, p.42. 72
LIMA, 2014. 73
LIMA, 2014.
125
irmãos, apesar de ganhar bem pouco no início. Com o salário também teve de pagar o aluguel
da pensão operária em Boquira, onde foi morar algum tempo. Ele morava em um povoado
próximo.
A falta de recursos fez com que Astrogildo Lima fosse trabalhar na empresa de
mineração, na função de mineiro. O que não foi uma condição apenas dele, mas de todos os
entrevistados que por necessidade decidiram se empregar no árduo trabalho de mineiro, a
exemplo de Saturnino José, ex-mineiro, que iniciou o serviço nas minas em 1956. Saturnino
era natural do povoado de Brejo Grande, comunidade próxima de Boquira. Indagado sobre o
porquê decidiu se empregar na mineradora informa: “precisão né... a gente trabalha não é nem
por gosto é que a precisão obriga...” 74
. Após informar o motivo que o levou ao emprego,
conta como era o trabalho:
O trabalho lá era pesado, serviço pesado,você só encontrava serviço pesado,
quem lutava tinha que trabalhar na produção de caçambinha de [...] carregar
o material encher as caçambas, fazer despejo no chaminé,tinha os perfurador
das rocha, com a marteleta né... tudo trem pesado né. Fazia despejo no
chaminé pros outros transporte pegar...fazia despejo no chaminé agora em
baixo outro pegava em outro sobrenivel... o trabalho lá minha fia pra gente
acostumar é sofrido, mas depois que a gente acostuma também da pra ir
tocando.75
O narrador destaca a dureza da função, aspecto enfatizado nos relatos de todos os
mineiros entrevistados. As queixas podem estar relacionadas, entre outros fatores, ao fato da
ruptura com o trabalho no campo, já que o trabalho industrial tem outra dinâmica. Em se
tratando da função de mineiro, precisamos considerar também que é um tipo de labor muito
desgastante. Saturnino diz que no interior da mina fazia muito calor e possuía muita fumaça
devido à explosão das dinamites. Em suas palavras:
Calor minha fia, calor de mais... a gente entrava quando a gente saia tava
chacoalhando água dentro da bota só de suor da gente... só suor, só de entrar
lá... e a fumaça agora... fumaça... a gente detonava e a gente entrava dentro
daquela fumaça terrível [...] quem trabalhava no primeiro horário até que era
bom, agora quem trabalhava no segundo comia muito era fumaça... primeiro
segundo e terceiro horário o melhor horário que tinha era o primeiro,agora o
segundo e o terceiro era sofrido... uma fumaça dentro da mina que não tava
escrito.76
As narrativas são importantes para desvelar um pouco do ambiente laboral das minas.
As dificuldades já começavam no deslocamento. Alguns trabalhadores saíam de suas
74
SOUZA, 2012. 75
Ibid. 76
Ibid.
126
comunidades rurais para irem trabalhar todos os dias, foi o caso do senhor Sebastião, que
exerceu muitas funções na mineradora. Foi limpador, alinhador, maquinista, chegando a ser
encarregado. Conta que residiu em Boquira apenas por alguns meses, então, todo dia saía de
sua comunidade para trabalhar, na maioria das vezes ia montado em um animal. Na volta para
casa, como tinha companheiros que moravam em comunidades vizinhas, as vezes voltavam
juntos. Lembra que uma vez dormiu no caminho ao sair do trabalho de madrugada:
Um dia eu evinha trabalhava no terceiro turno [...] entrava dez e saia quatro
da manhã, e ai cheguei na serra o sono apertou eu vinha sozinho entrei pra
dentro do mato, embruei com o capa e deitei, quando acordei era dez horas
[...] ai o pessoal já tinha ido lá ver o que tinha acontecido.77
Os trabalhadores que se deslocavam todos os dias da sua comunidade, às vezes
voltavam sem o dia ter raiado, situação que, por vezes, preocupava a família e amigos. Em
uma das entrevistas uma esposa relatou que ficava com “o coração na mão” toda vez que o
marido saía para o trabalho. Um serviço temido, que afetava o contexto familiar e de amizade.
De acordo com os relatos havia diferentes turnos de trabalho, geralmente acontecia em
dupla ou individualmente. As atividades de mineração ocorriam em diversos locais. Como
sublinha Oliveira, “a mineração explorou quatro morros em Boquira, sendo esses localizados
próximos uns dos outros e que eram denominados pelos funcionários de: morros maranhão,
cruzeiro, pelado e sobrado”.78
Geralmente, os mineiros se encontravam na entrada e saída do
trabalho. Durante o serviço, por exemplo, os que trabalhavam no Cruzeiro não se
encontravam com os do Sobrado. Encontravam-se também durante o banho na saída, os do
Pelado e Sobrado usavam o mesmo banheiro.
Abelino Manoel, saiu de Anjical, município de Seabra, para procurar um emprego em
Boquira. Começou o trabalho em 1959 e ficou até 1973. Ele relata sua vivência no trabalho:
Pra mim mesmo foi pesado do começo ao fim. Lá só miorou que teve
segurança, eu já tinha saído [...] o povo já trabalhava com a lâmpada no
capacete, ai eu não alcancei mais, eu já tinha saído. Mas no outro tempo a
gente trabaiava ai adoidado, arriscando a vida mermo, que nem eu mermo
arrisquei a vida lá com fogo faiado foi muitas veiz [...].79
77
SANTOS, Sebastião Souza dos. Sebastião Souza dos Santos: depoimento [ago. 2013]. Entrevistadora: Alcione
S. Conceição. Bahia: Boquira, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica. 78
OLIVEIRA, 2011, p. 39. 79
SANTOS, 2012.
127
Oliveira diz que os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) só foram utilizados
pelos mineiros em 1973.80
Se o trabalho nas minas já são penosos, ter sido feito sem uma
segurança mínima certamente o tornou ainda mais perigoso. Além disso, o chumbo é tóxico
ao organismo humano, e provoca muitas doenças, principalmente quando a exposição
acontece por muito tempo. A empresa fornecia leite aos mineiros, pois os médicos da
mineradora recomendavam como forma de prevenir a contaminação pelo chumbo. Oliveira
informa, baseada em referência específica, que na verdade o leite não possui essa função.81
Portanto, os mineiros estavam expostos a toda sorte de perigos, inclusive muitos trabalhadores
morreram dentro das minas em Boquira. De acordo com Abelino:
A gente trabalhava num cativeiro desgramado [...] não tinha segurança
nenhuma, a gente trabalhava com o gasômetro [...] trabalhava mais no escuro
do que claro, descendo desmonte, subindo escada. [...] com o tempo a mina
foi arruinando já começou morrendo gente, morreu um bocado.82
Nas entrevistas todos os ex-mineiros lembram com pesar as mortes que aconteceram
nas minas. Não é possível enumerar a quantidade de mortes e acidentes, mas pelos relatos
podemos afirmar que não foram poucos, já que a cada entrevista vários casos eram
relembrados. Talvez em virtude do caráter trágico e afetivo, na memória desse grupo de
trabalhadores ainda estão vivas essas lembranças.
Além das constantes lembranças, o trabalho vivenciado em outras mineradoras
evidenciam que não era incomum a ocorrência de óbitos neste tipo de atividade. Marta
Cioccari, ao entrevistar ex trabalhadores das minas de carvão em Minas do Leão – Rio
Grande do Sul, encontrou em relatos de ex operários a comoção ao relembrar dos acidentes
nas minas. Partindo de um relato específico, evidencia que um ex mineiro “contou que o
acidente que ocasionou a morte do amigo, em setembro de 1977, foi a tragédia que mais o
chocou, que mais alterou seu estado nervoso.” 83
O principal medo do ex mineiro era o de
morrer nas minas e deixar a família, os filhos pequenos. Por isso, só permanecia naquele
trabalho por necessidade.
80
OLIVEIRA, 2011, p. 52. 81
Ibid., p.56. 82
SANTOS, 2012. 83
CIOCCARI, Marta. Entre o campo e a mina: valores e hibridações nas trajetórias de mineiros de carvão no sul
do Brasil. Mundos do trabalho, [S.l.],v.7, n.14, p. 75-98, jul./dez. 2015. Disponível em:
<file:///D:/Downloads/42291-150998-1-PB.pdf>. Acesso em: 20 maio 2017.p. 89.
128
Observamos, portanto, que as memórias desses operários estão permeadas por
lembranças de um labor demasiadamente extenuante, marcados por acidentes de trabalho,
pela perda de companheiros, perdas estas que no presente ainda lhes causam tristeza.
O senhor José Reis, natural da região de Boquira, ex trabalhador mineiro, trabalhou
durante quinze anos na mineradora, tendo começado no ano de 1970. Em seu relato relembra
um dos acontecimentos que, segundo ele, teria sido um dos mais tristes da atividade mineiras,
qual seja, o acidente. Emocionado, relata:
[...] tem hora que eu falo assim e arrepio [...] já vi menino da Mamona
também futucando a bica... lá o material arriou e pegou ele também... eu sei
que eu fiquei assim de cedo inté tantas horas só tirando minério pra esvaziar,
pra tirar ele dentro da bica já machucado[...]. A gente fala assim... mas a
gente não gosta nem de recordar uns passado assim... é.... sofrer ( se
emociona). Moço, tem tanta coisa que a gente se alembra assim [...] tem tudo
filmado assim... pra ter uma recordação, pra contar direitinho como é que era
as coisas [...]. Mas, é mais difícil do que as veiz a gente fala né não [...] cê
chegar entrar numa boca de mina daquela... aquele fumaçero na frente que cê
nem vê lá a frente.84
No relato o senhor José Reis narra um acidente que ocorreu com um companheiro de
trabalho. Pela comoção do narrador, que chegou a ficar com olhar lacrimoso, percebemos
como essa memória ainda lhe emociona. Nesse sentido, percebemos que, como salienta
Portelli, a análise do testemunho oral permite não só acessar aos elementos materiais do
acontecimento, mas também “a atitude do narrador em relação à eventos, à subjetividade, à
imaginação e ao desejo que cada indivíduo investe em relação com a história.” 85
Quando seu
José se emociona ao recordar a morte de um companheiro e os obstáculos do trabalho das
minas, percebemos o quanto os acontecimentos afetaram sua vida, revelando como o trabalho
dos mineiros era árduo. Além disso, demonstra também a dor que causava a perda de um
camarada. José Paulo, ex mineiro, que começou a trabalhar em 1972, também rememora o
trauma de perder um companheiro vitimado em um acidente de trabalho. Ele nos conta como
os trabalhadores reagiam a morte de um colega.
Com medo, mas aquela hora ali, depois pegava com Deus e trabalhava, no
outro dia ia trabalhar, mas ficava com medo, cismado, e uns até pedia a
conta pra ir embora com medo de trabalhar. Mas a gente já tava acostumado,
a gente pegava com Deus e trabalhava, tem que ter cuidado, a mina é
84
REIS, José Francisco dos. José Francisco dos Reis: depoimento [abr.2012]. Entrevistadora: Alcione S.
Conceição. Bahia: Boquira, 2012. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica. 85
PORTELLI, Alessandro. Sonhos ucrônicos: memórias e possíveis mundos dos trabalhadores. Proj. História,
São Paulo, v. 10, p. 41-58, dez. 1993. p.41.
129
cuidado. Você trabalhava só em pedra moço, é perigoso meu Deus do céu,
era perigoso ali, mas graças a Deus nunca acidentei lá não.86
Além dos traumas, a fé religiosa também é comum na fala dos entrevistados. Este
elemento aparece como combustível para que eles conseguissem persistir na labuta. A crença
também ajudava os mineiros a se conformarem com a morte dos colegas, por acreditar ser
uma espécie de destino traçado. Como relembra seu Mariano: “faz parte do trabalho né, muito
cuidado que a pessoa tem, mas quando tem de acontecer acontece mermo, as veiz [...]
acontece por simplicidade da pessoa e otos não, é que tem de acontecer mermo né”.87
Então,
culturalmente, para esses indivíduos a morte também era vista como “o dia chegado”. Era
como se a vida e morte fosse predestinada. Apesar dessa crença, o falecimento de um colega
afetava bastante os mineiros. Como lembra Astrogildo Lima:
A gente doecia de mais, era muito doentio, depois de doentio a gente via os
companheiros da gente morrer, então a gente ficava assim meio assim com
aquele sentimento, ver o colega da gente morrer numa situação
precária,panhado em saco de estopa, enchia assim e carrega . Otros, a gente
também era muito afrisado pelo encarregados, pela chefia nera, a direção,
era, nessa época era um ditadura, era uma ditadura, ele chegava e falava
você tem que fazer e fazer mesmo, cê tinha que fazer [...]. 88
No momento da entrevista Astrogildo Lima chegou a ficar com as mãos trêmulas ao
recordar os acontecimentos narrados, pois a memória é capaz de aflorar os sentimentos. O
entrevistado explicou que se lembrar do trabalho na mineradora, de todas as injustiças que
sofreram naquele local, o deixava com sentimento de raiva e mágoa, especialmente quando
lembra dos companheiros mortos nas minas e dos seus cadáveres apanhados em sacos, muitas
vezes aos pedaços. Astrogildo falou sobre o autoritarismo dos chefes, que em várias situações
obrigavam os trabalhadores a realizarem serviços que poria em risco suas vidas. O ex mineiro
exprime a maneira como em sua consciência percebe a forma de exploração que sofriam
naquele trabalho. Um serviço em que eram obrigados a se submeterem ao perigo e que por
vezes ceifava a vida de companheiros. Segundo ele o trabalho melhorou um pouco quando
colocaram segurança em 1973. Dando continuidade, Astrogildo revela que:
86
BRITO, José Paulo de. José Paulo de Brito: depoimento [abr. 2012]. Entrevistadora: Alcione S. Conceição.
Bahia: Boquira, 2012. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica. 87
JESUS, Mariano Francisco de. Mariano Francisco de Jesus: depoimento [maio 2013]. Entrevistadora: Alcione
S. Conceição. Bahia: Boquira, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica. 88
LIMA, 2014.
130
[...] tinha que tirar trinta tonelada, trinta vagão daquele que se chama
caçambinha , lá tratava de caçambinha , então era mil quilos, uma tonelada.
Eles queria, tem que tirar trinta tonelada, se não desse cê chegava tava dando
bronca e bronqueava a gente não era com educação não, bronqueva a gente
era como... os pais hoje em dia não tem mais o direito de... é o que eu fico
impressionado, porque naquele tempo eles tratava a gente daquele jeito e
hoje os pais não pode, tem que ter jeito de falar com o filho né, então a
gente era muito maltratado, muito maltratado mesmo... a gente doecia e
vinha aqui no médico era Dr. José Lins ou doutor Jurandir eles... eles fazia a
gente trabaiar doente, „vai trabaiar preguiçoso cê tá embromando‟ era desse
jeito... o cara retava, o cara ficava brabo, eu mesmo, é sério, quando ele
falava assim ... eu ia trabaiar doente, cansei de ir trabaiar doente, mas por
isso ele viu, tô ai, eu tô ai, tô vivo graças a Deus, tô vivo, tô são. Mas eu
saia doente pra ir trabaiar, Jurandir não falava assim com a gente não, mas
doutor José era casca de pau, de madeira ruim. 89
O senhor Astrogildo lembra uma das funções que exerceu nas minas, a de caçambeiro,
que com uma pá de mão, um picareta e um marrão90
ele e alguns colegas tinham que realizar
uma determinada quantidade de produção por dia. Se não o fizesse sofriam reclamações. Na
sua concepção atual, o sentimento de indignação emerge porque se não se pode hoje tratar
mal a um filho, tem que saber conversar e explicar as coisas, então, é inaceitável que eles
tivessem passado por tanta humilhação naquela época, tido suas dignidades feridas por
sujeitos com quem não tinham nenhum vínculo afetivo e familiar. No entanto, a forma que
encontrou para superar o sentimento de indignação e o passado doloroso, foi o de dizer que
está vivo e bem de saúde, apesar de tudo aquilo. O posicionamento de Astrogildo pode ser
explicado de acordo com as colocações de Thomson, quando diz que na tentativa de relembrar
um passado que foi importante procuramos instituir “uma coerência pessoal satisfatória e
necessária entre as passagens não resolvidas, arriscadas e dolorosas de nosso passado e nossa
vida presente.” 91
Isso implica em dizer que Astrogildo e provavelmente outros mineiros
encontraram no presente outras atividades e vivências que contribuem para que vençam as
lembranças de um passado doloroso, já que apesar de tudo eles sobreviveram. No caso do
entrevistado, ele destaca, ainda, que conseguiu sobreviver com saúde. Hoje trabalha no
campo, em sua própria terra.
Astrogildo, antes de se empregar na mineradora era um lavrador. O trabalho na
mineradora foi seu primeiro emprego assalariado em uma indústria. Como pontuado em outro
momento, esta não era uma peculiaridade do ex mineiro. A maioria deles era egressa da zona
rural. Esses homens passaram a laborar em uma dinâmica de trabalho bem diferente do que
estavam acostumados. Passaram a trabalhar sob a fiscalização de terceiros, os chamados
89
LIMA, 2014. 90
Martelo de ferro grande. 91
THOMSON, 1997, p.58.
131
encarregados, que exigiam uma cota de produção e reclamavam quando os trabalhadores
frustravam as expectativas pré-estabelecidas. Esse aspecto é um elemento muito importante
para entendermos a própria percepção que esses trabalhadores criaram a respeito do trabalho
nas minas; na medida em que eram acostumados a um modo de produzir rural, cujo trabalho
era realizado em sua propriedade, ou produzindo para outras pessoas. Mas a produção se dava
em outro ritmo. As mudanças promovidas pela nova relação de produção afetaram
diretamente o tempo daqueles sujeitos, impactando suas vidas, de modo a transformar a forma
como eles se viam diante da lógica industrial.
Não por acaso seu Astrogildo fala com hostilidade dos médicos, na medida em que
eles não colaboravam com os trabalhadores. Ao se referir aos que trabalhavam na Companhia,
o trabalhador destaca que os médicos permitiam que fossem trabalhar doentes. Nesse sentido,
o relato nos leva a pelo menos duas interpretações. A primeira está relacionada ao fato de que
os médicos serviam às estratégias da indústria em não permitir que seus funcionários ficassem
ociosos, daí a liberação dos médicos para que os operários trabalhassem, ainda que estivessem
doentes. A outra, tem a ver com a iniciativa/resistência dos próprios trabalhadores. Talvez,
parte deles realmente inventasse doença para se livrar por uns dias de um trabalho extenuante.
Sobre isso, o ex-mineiro Abelino Manoel relembra:
De primeiro era um cativeiro, gente chegava naquele hospital [...] o primeiro
médico que veio pra aqui foi doutor José, não tinha médico aqui não [...]
doutor José se a gente levasse uma machucadurinha ou adoecesse a gente
chegava lá, ele atendia, quando é no outro dia a gente doente ainda, ele já
queria que a gente voltasse pro serviço, se gente não pudesse ele dizia que a
gente tava era embromando, era porque não queria trabalhar. 92
Seu Abelino, tal qual Astrogildo, trabalhava na roça de sua família antes de conseguir
se empregar na indústria, “lá nesse tempo não usava ninguém empregar em nada... eu vim pra
aqui na idade de 20 anos”. 93
Ele saiu de sua localidade para ir até Boquira procurar um
emprego: “saí de longe e ainda vim de a pé, e ainda vim de lá pra aqui na perna, é quatro dias
de viagem na perna.”.94
Abelino Manoel foi mais um trabalhador que saiu da lida na roça, para
se tornar um operário da indústria. A expressão “embromando” aparece nas duas narrativas,
na de seu Astrogildo e Abelino; ao usá-la os médicos queriam dizer que o operário poderia
fingir doença para evitar trabalhar, o que deixava os mineiros irritados com a situação.
92
SANTOS, 2012. 93
Ibid. 94
Ibid.
132
Os médicos que trabalhavam para a empresa não queriam que os operários perdessem
um dia de serviço. Estavam ali principalmente para atender aos interesses da indústria.
Afinal, o capitalismo exige tempo e disciplina de trabalho, como lembrou Thompson “na
sociedade capitalista madura, todo o tempo deve ser consumido, negociado, utilizado; é uma
ofensa que a força de trabalho meramente „passe o tempo.‟” 95
Outra resposta às condições ruins de trabalho estava no fato de sujeitos que
começavam a trabalhar nas minas, mas não ficavam muito tempo no serviço. Muitos homens
desistiam ao se darem conta do perigo que estavam correndo. O senhor José, que trabalhou
por algum tempo nas minas, mas ficou mais tempo trabalhando em outros serviços na
indústria, relembra sobre um sujeito que não permaneceu naquele trabalho:
[...] tinha cara que chorava, quando pegava um serviço ruim chorava hum...
ai um dia mermo um cara chegou lá [..] ele tava trabaiando assim e caiu uma
ribançeira lá, o homem endoidou, ai a turma “não moço ali é porque você
não soube mexer no desmonte, o desmonte ta [...]” se ele mexe ia arriar tudo
nele, ele não sabia, não explicaram ele direito... ai ele disse “ham é outro que
fica aqui eu vou é embora, aqui é onde o filho chora e a mãe não vê...” ai
eles disse “ não moço mais não é ruim assim também... é porque... cê tem
uns oito dias que você trabaia, de dois mês em diante é que você vai
acustumar... mas não acustuma pra dizer que tô trabaiando aqui e não tem
perigo não, porque de todo lado cai coisa” ai ele disse “ fico não, eu tenho
minha família mas eu vou caçar todo jeito... de ganhar dinheiro de outro
jeito, mas aqui não, não vou falar por soberba mas aqui eu não vou não” ai
não foi mermo não.96
Nesse relato é perceptível que o sujeito estava naquele trabalho para sustentar sua
família. Não somente ele, mas muitos trabalhadores se arriscavam no labor mineiro para ter
que garantir uma renda imprescindível para a sua subsistência e a da família. Na narrativa o
trabalhador decidiu sair e tentar outra maneira de sobrevivência. Isso demonstra também os
perigos presentes no serviço, o que fazia com que homens recusassem o emprego. José conta
outra situação causadora de desistência da função de mineiro:
Teve um cara da Lapa [Bom Jesus da Lapa] que mermo, que foi trabaiar
todo no palitó, ai teve uns que disse, o feitor disse “há ele vai trabaiar é no
escritório” ai ele disse “não moço você tem que ir de bermuda, né assim não,
uma calça veia” ela disse “eu sou homem de vestir roupa véia!”e os meninos
quando ia, ia quase pelado era com aquelas roupinha véia rasgada, ai quando
ele chegou lá dentro ele trabaiou, quando foi na hora de detonar os meninos
botou fogo lá, esse homem endoidou lá, foi preciso todo mundo segurar ele...
quando foi no outro dia... no mesmo dia que chegou ele disse que queria a
95
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 300. 96
NETO, 2013.
133
conta com os direitos dele, ai [...] só trabaiou um dia, pagou ele o dia e deu
uns trocado modo ele ir embora, ele veio embora, veio embora... e nós ria
dele, o homem endoidou.97
O caso relatado por seu José apresenta um sujeito que chegou para exercer a função de
mineiro e não sabia exatamente como iria ser o trabalho. Um indicativo disso eram as roupas
inapropriadas para entrar nas minas. Então, muitos iam para aquele serviço com a perspectiva
de conseguir um salário, sem saber de fato como era enfrentar o labor nas minas. Nem todos
conseguiam permanecer, e optavam por buscar outra alternativa a arriscar sua vida. Seu
Astrogildo, no entanto, preferiu conviver com o risco da profissão para ficar junto da família e
não ter que ir para outro lugar trabalhar:
[...] ai eu fui trabaiando e as veiz eu chegava em casa e meus filho tava lá e
eu oiava pra eles, e eu falava: é vou trabaiar, porque se eu morrer lá, a
mulher recebe o seguro e cria esses meninos, porque se eu sai de lá, vou ter
que ir pra fora, e ficar fora de minhas crianças não dava não né, era
complicado. Ai eu tinha aquela vontade de tá junto com eles né, e eu
trabaiando ai era muito ariscado, mais quando eu saia eu ia lá pra onde tá
eles a noite e ai eu fui trabaiando e os anos foi passando, e ai com pouco
vem outro ano, e é vai outro ano, quando eu pensei que não tinha dez anos,
ai eu falei falta cinco ai com pouco foi chegando, ai eu cheguei e me
aposentei, quando eu me aposentei tinha uma chefia lá que queria que eu
ficasse mais um ano , e eu não, nem um dia, peguei sai, requeri minha
aposentadoria, sai e tô ai né, trabalhando na roça, nunca deixei de trabalhar
não, também nunca trabaiei de empregado em canto nenhum quando eu saí,
mas não paro de trabaiar na roça. 98
A escolha de seu Astrogildo de não querer mais trabalhar de empregado, demonstra
seu estranhamento à lógica de trabalho que não fosse a do campo. Nos permite identificar,
ainda, que possuía uma noção de produção adversa àquela relacionada à industrialização.
Sobre continuar trabalhando no campo, Astrogildo não foi um caso isolado. Muitos
trabalhadores das regiões rurais próximas a Boquira, ou de Boquira mesmo, permaneceram
trabalhando em suas roças, mesmo com o emprego na indústria. O problema do trabalho na
lavoura de subsistência é que não era suficiente para assegurar uma condição de vida melhor,
no sentido de que dependia muito de chuvas para plantação e criação de animais, e a região
não possuía períodos chuvosos longos, e ainda se tratava de propriedades pequenas que talvez
não fossem suficientes para subsistirem, já que as terras pertenciam a toda família.
José Mario, ex mineiro, começou a trabalhar nas minas em 1967. Natural do povoado
de Posto Dantas em Macaúbas, antes de se empregar em Boquira tinha ido trabalhar em uma
97
NETO, 2013. 98
LIMA, 2014.
134
usina de açúcar em São Paulo. Ele também continuou trabalhando na roça, mesmo estando
empregado na mineradora, explicou:
Eu quando não tava trabalhando na mineração eu trabalhava na roça, naquela
época eu quase não descansava, porque tinha dia que eu chegava da
mineração e só sentava pra almoçar, terminava de almoçar já ia pra roça,
uma hora dessas assim já tava trabalhando, porque só o salário da mineração
não dava pra gente se manter com a família não, era muito pouco.99
A narrativa revela que permanecer no trabalho do campo era uma alternativa para
manter a família. Mais que isso, também evidencia que o salário que recebia na função de
mineiro não era suficiente para a sobrevivência. Portanto, esses homens possuíam uma dupla
jornada de trabalho, e encontrava na roça a possibilidade de plantar alimento, criar um animal
ou até mesmo trabalhar na roça de outra pessoa e ganhar pelo dia de serviço. Astrogildo Lima
explicou porque continuou no trabalho nas minas mesmo com as dificuldades que tinham de
enfrentar:
[...] o trabalho da mina foi complicado, foi, mais a gente atolerava porque
não tinha outro lugar que ganhava um dinheirinho igual, ai era pouco
também , pelo trabaio lá o ganho era pouco, mais era o maior aqui, e era um
sertão, aqui era um sertão que não tinha apelo, por onde apelar.100
Então, a situação da falta de recursos para suprir as necessidades do viver naqueles
sertões baiano, fez com que muitos homens permanecessem no trabalho de mineiro, mesmo
sabendo o quanto era perigoso. O senhor Ermiro, ex trabalhador mineiro, iniciou nas minas
em 1973. Também era um agricultor antes de se empregar na companhia. Indagado se o
serviço na mineração era melhor que na lida com a roça ele respondeu:
Não, é mais pesado, só que tinha mais uma segurança né, tinha mais um
conforto um pouco, pelo menos tava empregado, a pessoa trabalhar na zona
rural não tem conforto nenhum, não tem segurança nenhuma né, não tem
salário... e lá pelo menos tem mais segurança.101
Ermiro deixa claro que o trabalho nas minas não era melhor do que o da roça, pelo
contrário, era mais penoso. A questão era a de que com o emprego na indústria podia
conseguir um salário, essa é a segurança a que ele se refere, diferente do trabalho na roça.
99
MARIO, José Pedro. José Pedro Mario: depoimento [fev. 2013]. Entrevistadora: Alcione S. Conceição. Bahia:
Boquira, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica. 100
LIMA, 2014. 101
SANTOS, Ermiro Souza dos. Ermiro Souza dos Santos: depoimento [abril 2012]. Entrevistadora: Alcione S.
Conceição. Bahia: Boquira, 2012. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
135
Esse era o elemento que faziam os sujeitos vindos das localidades rurais se submeterem
aquele serviço. O senhor Mariano, natural do povoado de Palmeiras município de Boquira, ex
mineiro, iniciou o trabalho na indústria mineira em 1979. Diz:
Na roça era muito devagar pra gente né, (risos) e ai surgiu o emprego ai, ai
vim ai, com muita viagem ainda, foi que consegui fichei, que antes era todo
ano eu ia pra São Paulo trabalhar e tudo, depois que eu fichei ai pronto não
sai mais daí [...] dei muitas viagens ainda pra conseguir.102
O emprego na mineradora fez com que Mariano não retornasse para São Paulo. Por
que esses sujeitos precisavam migrar a procura de emprego? Não identificamos em Boquira e
em outras comunidades rurais próximas ao lugar existência de latifundiários naquele período,
que mantivesse uma relação de trabalho entre fazendeiros e pequenos proprietários, o que
poderia dificultar ainda mais o modo de vida e trabalho das pessoas. O que percebemos pelos
relatos é que se tratava de pequenas propriedades pertencentes às famílias, e como já
destacamos, naquela época era comum as famílias serem numerosas, o que poderia dificultar a
subsistência de todos. Com certeza existiam famílias que possuíam mais terras, e as que
possuíam menos poderiam manter algum vínculo de trabalho com outros, a exemplo do
trabalho na “meia” em que se poderia plantar em terras pertencentes a outrem e ao final ter
parte na colheita. Existia também o elemento das secas e consequente improdutividade da
terra, como já salientamos. Na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, quando tratou sobre
Macaúbas da década de 1950 ainda quando Boquira era distrito daquela cidade, diz que o
município estava entre “os que apresentam êxodo de população rural para os Estados do Sul
do País, principalmente para São Paulo, sendo a corrente migratória muito significativa nos
anos de estio prolongado.” 103
Ao que indica as fontes, o elemento das secas era um fator
importante para as migrações.
Então, existia vários aspectos que poderia dificultar bastante o viver e trabalhar de
alguns sujeitos nas relações de trabalho rural, que faziam com que muitos migrassem a
procura de outra forma de emprego, o assalariado nas indústrias por exemplo. Abelino
Manoel conta que na época em que foi procurar emprego em Boquira, estava pensando em ir
para São Paulo.
102
JESUS, 2013. 103
MACAÚBAS- BA. In: Ferreira, Jurandyr Pires. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, IBGE. Rio de
Janeiro: Lucas, DF, 1958. p.20.
136
Porque naquele tempo era muito dificultoso, a gente tinha que ganhar
dinheiro ou em São Paulo ou aqui na mina, eu ia pra São Paulo, depois um
companheiro vinha pra cá e me trouxe. 104
Para entendermos o posicionamento dos sujeitos, e a opção que alguns fizeram de
migrar para São Paulo em busca de emprego, precisamos compreender o contexto. Segundo
Fontes, após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil conheceu um grande crescimento no
processo de migração interna, sobretudo para o estado de São Paulo. Esse fator é muito
relevante para compreender a constituição da classe trabalhadora no país. O pesquisador
lembra que, nesse período, muitos nordestinos migraram para São Paulo, entre eles um grande
número de baianos:
Entre 1952 e 61, aproximadamente 330 mil trabalhadores provenientes da
Bahia foram registrados pelos órgãos paulistas de controle de migração, o
que significa cerca de 30% do total e colocava os baianos, isoladamente,
como o maior grupo de migrantes do período.105
Muitos dos ex trabalhadores mineiros entrevistados falaram que a opção que se tinha
na época era ir trabalhar em São Paulo. Sujeitos que deixavam seu lugar de origem em busca
de trabalho e melhores condições de vida. Francisco de Oliveira argumentou que após 1930,
período que se inicia uma expansão do capitalismo no Brasil, é na “região” centro-sul dirigida
por São Paulo, que o capital se concentra.106
É nesse momento que se aprofunda as
disparidades regionais, as fábricas do nordeste não têm condições de competir em preço e
qualidade com as do sul.107
A esse evento o autor denomina desenvolvimento regional
desigual da economia brasileira, gerado pelo modo de produzir que se pretendeu hegemônico.
Essa lógica impôs sua maneira de reproduzir o capital ao conjunto da economia, o que fez
com que alguns setores e “regiões”, que possuíam uma dinâmica própria de reprodução, não
conseguissem se desenvolver.108
Nesse processo existiu uma grande onda de migrações para os centros industrializados
do país, muitos desses migrantes advindos do Nordeste. Uma mudança começa a ocorrer
quando na década de 1950 essa hegemonia burguesa se volta para o nordeste, que se
caracterizou na criação da SUDENE em 1959. A partir de então implementou-se uma política
104
SANTOS, 2012. 105
FONTES, Paulo Roberto Ribeiro. Comunidade operária, migração nordestina e lutas sociais: São Miguel
Paulista (1945 – 1966). 2002. Tese (doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 2002.p. 86. 106
OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste. Planejamento e conflito de
classes. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. (versão digitalizada: Argo).p. 75. 107
Ibid., p. 76. 108
Ibid., p. 114-115.
137
para o desenvolvimento econômico capitalista da “região” que procurava expandir a
hegemonia burguesa do centro-sul.109
Na esteira dos acontecimentos implantou-se a indústria em Boquira na década de
1950, fato que contribuiu para que muitos homens conseguissem emprego na mineradora,
evitando que migrassem para outras regiões. O que houve, ao contrário, foi uma migração no
sentido inverso, na medida em que pessoas de outros estados passaram a migrar rumo às
minas de Boquira. Isso se desenvolveu por conta dessa industrialização que se voltou para o
interior nordestino, possibilitando outra alternativa para se empregar.
3.3. Vida, substâncias da memória: as relações entre os companheiros de trabalho
A análise elaborada até aqui nos permite evidenciar que a instalação da mineradora em
Boquira mudou completamente a dinâmica do lugar, que passou, inclusive, a receber novos
moradores, migrantes em busca de emprego. Cecilia Sardenberg ao analisar as memórias de
moradores de uma antiga vila operária, ex trabalhadores da Fábrica de tecido São Braz na
cidade de Salvador, situada em Plataforma, a autora destaca que existe uma lembrança
nostálgica sobre a vila fabril. A fábrica foi fundada em 1875, funcionando até 1959. Várias
gerações de trabalhadores viveram e nasceram na vila. A autora identificou nas narrativas de
antigos operários e operárias, um sentimento de nostalgia, uma idealização do passado fabril,
do quanto tinha sido bom ter a fábrica no lugar. Apesar de aparecer também memórias das
difíceis condições de trabalho, dos acidentes e das greves.110
No caso dos ex-mineiros de Boquira ocorre de forma diferente. Existem lembranças
alegres sobre o labor nas minas, que são motivos de risos e considerada a “melhor” parte do
trabalho, diz respeito a relação construída com os colegas de labuta. Mas apesar de ser uma
memória alegre, não se expressa entre eles a nostalgia idealizada da existência da mineradora
na cidade e vontade de retorno daquela realidade, mesmo que reconheçam sobre a
oportunidade de emprego que ela ofereceu. As memórias dos ex mineiros estão mais pautadas
na dificuldade do trabalho, nas relações de amizade e brincadeiras com os companheiros
operários e nas mortes de colegas no serviço.
109
OLIVEIRA, 1981, p. 114-115. 110
SARDENBERG, Cecilia M. B. O gênero da memória: lembranças de operários e lembranças de operárias. In:
ALVES, Ivia Iracema Duarte; MACÊDO, Marcia; PASSOS, Elizete (Org.). Coleção Bahianas. Salvador:
NEIM/UFBA, 1998.p.1-40. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/6862 >. Acesso em: 17 abr.
2017.
138
Um dos aspectos da memória, destacado pelos ex mineiros, diz respeito as relações de
solidariedade e amizade entre o grupo. Tratava-se das “brincadeiras” com os colegas e as
estratégias de resistência que os trabalhadores desenvolveram ao longo da trajetória laboral.
Zé Paulo, ex mineiro, começou a trabalhar em 1972. Ele relata que os mineiros que já eram
veteranos no trabalho realizavam as “treitas”, nada mais do que as estratégias de resistência à
exploração desenvolvida pelo grupo:
O que eu trabaiei nessa mina uma noite não dá, porque eu lembro é de coisa
naquela mina. E na mina o serviço era pesado, mas também nois fazia treita.
Treita? (risos) Era, tinha que fazer, se não fizesse ninguém aguentava
trabaiar quinze anos não, quinze anos aposentava ai, e a gente fazia treita e
tudo, os meninos dizia assim [...] “Eles lá fora na caneta e nós cá dentro na
treita” (risos).111
Na memória de Zé Paulo, o cotidiano de trabalho nas minas possui um lugar especial.
Diz que costuma sempre sonhar trabalhando na mineração, “eu sonho quase todo dia, uma
sonhação, eu sonho com essa mina trabaiano lá dentro, é mermo que eu tô vendo as bocas lá
que eu trabaiei...” 112
. Para explicarmos essas lembranças, cabe-nos recorrer a Ecléa Bosi.
Para a autora a diferença entre a memória dos adultos e a dos velhos, é que este último quando
lembra não está por um momento descansando “das lides cotidianas, não está se entregando
fugitivamente às delicias do sonho: ele está se ocupando consciente e atentamente do próprio
passado, da substância mesma da sua vida.” 113
Para Zé Paulo, relembrar aquele passado é
importante, porque foi parte integrante de sua existência e no presente se ocupar das
lembranças é dar sentido e significado a sua vida. Averiguamos no relato de Zé Paulo que ele
gosta de falar sobre seu passado enquanto trabalhador mineiro, e na sua fala se sobressai as
recordações da relação com os companheiros, as brincadeiras e as “treitas” praticadas pelo
grupo, apesar de também dizer sobre as dificuldades do trabalho. Talvez dar destaques as
memórias divertidas, em que os trabalhadores mineiros eram o centro dos acontecimentos e
da narrativa, tenha sido uma forma do ex mineiro tentar deixar de lado as lembranças mais
tristes e angustiantes. Ele narra sobre as tais “treitas”:
[...] fazia as treitas assim de serviço lá, enrolando... mas você tinha que dá
produção, se não desse produção também... mas tinha o lugar da produção,
que não podia ninguém dava. Sim, das treita [...] enchia a caçamba e jogava
numa bica né, ai né... precisava contar, contar as caçambas [...]. Ai moço, o
transporte era de dois, que era pesado um sozinho não aguentava não. E ai
Joaquim [...] era o encarregado, eu enchia a caçamba bem cheia...
111
BRITO, 2012. 112
BRITO, 2012. 113
BOSI, 1994, p.63.
139
[encarregado] “moço, pode aumentar moço, botar meia caçamba!”, [Zé
Paulo] “ó seu Joaquim eu não gosto disso não!”, botava uma, botava três
(risos) [encarregado] “ocê não gosta não?” [Zé Paulo] “não eu não gosto de
aumentar caçamba não!” (risos) não gosta? (risos) botava uma [e dizia que]
botava era três, eu botava cinco botava dez, e ele pensava que eu botava a
continha.114
Essa era a “treita” que se fazia na função de limpador, existia uma determinada
quantidade de caçambas que deveria ser apanhadas, só que no momento de dar o ponto, falar
a quantidade de produção para o chefes, eles aumentava bem mais do que tinham feito. É
relevante destacar que o próprio encarregado mandou aumentar meia caçamba, talvez fosse
conivente com a prática ou estava testando o mineiro, no entanto, Zé Paulo respondeu que não
costumava realizar tal prática, enganando o encarregado. Ele também relatou casos de
“treitas” desempenhadas pelos colegas em outras funções. Relembra outro caso:
Manelinho irmão de pezão, apelido dele era de barrão. Fichou Manelinho e
ai botou ele mais eu na cabiçera [...] ai nois limpemos a cabiçera [...] ai eu
sentei (risos) cara véi né, eu sentei e botei o gasômetro assim nas bota, aqui
assim virado, se o encarregado vim de lá ocê vê os reflexo da lâmpada dele
né, eu botei prá cá e ele também pegou e botou (risos) e eu não falei nada
com ele... Não podia botar não? Podia, mas eu tinha que ensinar ele né, ele
já sabia foi os irmão que ensinou.115
Nesse relato Zé Paulo revela a estratégia desenvolvida pelos mineiros para saber o
momento que o encarregado estivesse indo olhar o serviço, para quando chegasse não os visse
sentados quando deveriam estar trabalhando. Zé Paulo, que trabalhava há muito tempo,
deveria ensinar a estratégia ao novato, no entanto, ele já sabia como proceder porque os
irmãos que também trabalhavam nas minas já havia lhe instruído. Constatamos também que,
assim que chegava alguém novo para trabalhar, os antigos mineiros já cuidavam de ensinar as
estratégias. Como informa Maria ciavatta, “as práticas cotidianas de resistência são múltiplas
e variadas e os conflitos na relação patrão e empregado estão presentes tanto nas ações
individuais dos trabalhadores como na ações coletivas das categorias”.116
Outro elemento importante, bastante relembrado pelos ex mineiros, diz respeito ao que
eles chamavam de “brincadeiras”. Quando relembravam esse assunto era o momento
divertido da entrevista, momento em que riam. O que chamou nossa atenção foi a prática dos
mineiros de apelidarem os colegas, todos os mineiros possuíam um apelido. Tornou-se uma
característica do grupo, inclusive podia ser motivo de conflito caso um novato não aceitasse
114
BRITO, 2012. 115
BRITO, 2012. 116
CIAVATTA, 2002, p.45.
140
ser apelidado. O apelido podia estar ligado com a aparência da pessoa, uma fala ou
comportamento que soasse engraçado.
Consideramos que para aqueles sujeitos, o “deboche” a “piada”, ou outras formas de
conduta que proporcionasse motivos de riso, possuía significado que fazia parte de uma
cultura e se apresentava nas relações cotidianas das pessoas, podendo ser aceitos ou não pelos
indivíduos. Como enfatizou Thompson, a cultura não pode ser pensada unicamente como
valores, atitudes e significados homogêneos, mas é também “uma arena de elementos
conflitivos”.117
Sobre as tais brincadeiras lembra Abelino Manoel “há era muita amizade, ali
só trabalhava brincando, com brincadeira com o outro né, botando apelido no zonzoto, ali era
um divertimento” 118
. José Mario conta “você sabe como é que é, onde tem uma turma de pião
assim, só conversa coisa que não presta (risos), aquelas brincadeiras doida sabe, um bota
apelido ne um ne outro”119
. José Mario narra como foi dado seu apelido na mineração:
[...] lá cê não podia falar nada errado, cê falasse qualquer coisa, eu mesmo eu
furava duas cabeceira norte e sul detonava toda as duas, furava as duas no
dia e detonava depois. Um dia a rocha endureceu muito sabe e eu só detonei
uma e comecei perfurar a outra, ai eu cheguei e o chefe falou “uai Zé não
detonou as duas não?”, e a piãozada tava ali sabe, eu falei “dotor não deu por
que a pedra endureceu”, ai agora me botaram o apelido Zé pedra dura,
(risos). Era assim você não podia falar nada, que cê já tinha o apelido, era
qualquer coisinha o apelido.120
O apelido tinha também a ver com situações em que os mineiros se envolviam e por
algum motivo os colegas achavam engraçado e decidia a partir daquilo colocar o apelido.
Quando José Mario diz que não podia falar nada errado, é que se algum comentário pudesse
ser associado a outros elementos que fosse motivo de piada, o apelido era dado. Curioso que
ainda hoje os ex-mineiros são conhecidos por seus apelidos, isso demonstra que essa
característica compôs a identidade do grupo. Zé Paulo narra sobre um sujeito que desistiu do
serviço por conta dos apelidos:
Tinha uns que achava ruim no começo, tinha uns que achava ruim até que
saia, pedia a conta pra ir embora. Um tal que botou apelido, um apelido feio,
mão na bunda, mas não é muito feio não (risos). [...] Mané raiz e esse Zé
mão na bunda pegaram uma briga dentro do banheiro [...] e ai botou apelido
de Zé mão na bunda moço, e ai pegaram a chamar ele e ele achou ruim. E
Mané raiz “ei mão na bunda”, Mané raiz não importava não, até hoje chama
ele de mané raiz [...]. Ai não foi nada não, ele trabaiou uns dois mês, quando
117
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.p.17. 118
SANTOS, 2012. 119
MARIO, 2013. 120
MARIO, 2013.
141
é um dia “ei mão na bunda!”, “uai que foi, será que esse homem morreu ai
em cima?!”. Hum, pegou as ferramentinha jogou nas costas, chegou jogou lá
na porta do escritório, “me dá minha conta!” “Uai, porque?”, “essa tropa de
vagabundo tão me chamando de apelido!” “Ô moço ô seu Zé deixa de ser
besta seu Zé eles é assim...eles é assim mesmo, todos aqui deles ai tem
apelido, eles não briga” “é, mais eu não quero trabaiar mais não”. E quando
foi, a gente chegou no escritório lá fora, “cadê moço Zé mão na bunda?” “Ô
moço saiu, foi embora pediu a conta e foi embora!”. Bestão mas nunca ele
trabalhou ai modo isso, modo apelido, quem não aguentasse, ai saia mesmo,
era pirraça e a gente chamasse por apelido e não achasse ruim ai pronto não,
mas tudo que achasse ruim...121
Segundo o relato o sujeito que não aceitasse os apelidos e demais brincadeiras do
grupo, desistiam do trabalho, vários casos foram relatados. Talvez seja um exagero da
memória ao associar os apelidos e a saída do serviço, no entanto, o mais provável é que
conflitos em razão disso tivesse mesmo existido. Desse modo, para continuar no serviço
teriam de concordar com as práticas do grupo, que não ficavam restritas aos apelidos. Zé
Paulo rememora: “quando eu saí eu ficava com saudade das brincadeiras, não era do serviço,
das brincadeiras, ô brincadeiras mô...”.122
O que podemos constatar é, apesar da dureza do
serviço os mineiros conseguiam criar meios para escapar do fardo do trabalho, tanto que, o
narrador sentiu falta ao se aposentar não do labor mas da convivência com os companheiros.
Zé Paulo narra sobre outra “brincadeira”:
Era duro, era duro, era serviço, ali na mina era triste, quem guentou... ali na
mina a gente também guentou sabe porque? modo a treita, a gente fazia
treita eita... uma veiz nois tava eu, um menino que chama carbonato, e tonho
de... e tinha oto [...] nois tamo trabaiando lá cabou o... tinha umas tabas...e
deitou, lá nois deitava de cima, botava uma pá e um picarete era uma cama,
cama boa, nois durmia sono lá dento e o cabiçero era o capacete, ai
cabranato deitou numas tabas... De noite?De dia, mais era escura, lá pode
ser de dia pode ser de noite é a mesma coisa. Ai disse “vamo marrar
Cabranato?” “moço vamo marrar Cabranato não porque é perigoso”, vamo
marrar, ai tinha um barbante de marrar os estopim, ai pegou o barbante e
marrou Cabranato com tabua com tudo. Ai disse “ ó agora vai um e vem de
lá com a lanterna” o encarregado andava com a lanterna aqui assim, e o pião
cê conhecia que a lanterna era na cabeça enfiada aqui na cabeça, de longe cê
conhecia que era pião, mas quem era encarregado era aqui assim. Ai e evai
com a lanterna “ó o encarregado ai Cabranato!”ô moço Cabranato lavantou
com essa taba nas costas bá e bá e bá... ô sofrimento e bá, e bá, e bá, “ é
mentira Cabranato, é mentira!” “ô desgraçados, oces me marrou (risos) “ não
faz uma coisa dessas não moço” ai Cabranato ficou veaco não foi dormir
mais não.123
121
BRITO, 2012. 122
BRITO, 2012. 123
BRITO, 2012.
142
A brincadeira narrada era a de pregar peça em um companheiro. Ao que parece o
mineiro que foi amarrado não gostou da situação, mas os entrevistados relatam que a maioria
dessas peças se levavam numa boa, principalmente se já fossem colegas há muito tempo.
Porém, não é uma questão fácil de se compreender em termos culturais, todos os significados
daquelas práticas. O que pode ser notado é que as brincadeiras também eram uma maneira dos
trabalhadores se distraírem, darem risada, e não deixava de ser também um elemento de
resistência contra a ordem e trabalho pregado pela empresa. Tanto é, que a peça pregada
demonstra esse caráter, o trabalhador dormindo, e os colegas fingem que o encarregado estava
chegando para dar um susto no companheiro. Isso significa que era muito grave o encarregado
encontrar o mineiro dormindo. Zé Paulo recorda:
Quanto mais velho de mina, é que aprendia as treitas né... (risos)
Aprendia treita... se não fazesse desse jeito a gente não vencia os tempo não
,guentava não, era duro de mais gente, era sofrimento dento daquela mina.
Mas a gente tinha vontade de trabaiar [...] a brincadeira era de mais, até hoje
moço quando se encontra os menino ai, os menino da mina aqui, ninguém
nunca, nunca teve uma confusão, nois não, não brigava, só foi esses besta
que entrava lá e botava apelido, saia logo, não guentava, tinha que sair não
guentava as brincadeiras.124
Nessa parte, Zé Paulo confirma que os mineiros antigos não brigavam por conta das
brincadeiras, apenas os novatos que por não terem se acostumado ao grupo acabava por não
aceitar as práticas. Nesse outro relato de Zé Paulo, é demonstrado como os trabalhadores
desafiavam e burlavam as normas da indústria:
Uma vez o finado Pedro, Pedro de (gadino) trabaiou mais eu [...] parece que
era no segundo, no segundo pegava duas horas da tarde saia nove da noite e
ai lá dento da mina tinha uns aço ele disse “ ô Zé vamo robar uns aço
desse?”eu disse “moço é perigoso!” [Pedro] “moço não tem nada não!”
[...][Zé] “eu vou fazer isso não!”[Pedro] “vambora moço!”. Ai nois vai, de lá
dento da mina pra sair numa boca que tem aculá em cima, nois carreguemo
esses aço, ele já tinha trato com um cara pra vim do barro vermelho pra
modo no oto dia cedo vender os aço. Ai quando foi no oto dia cedinho... ai
nois foi levar os aço lá em cima quando nois chegou lá na boca tava
chovendo, quando nois chegou na boca da mina, lagartixa... ai ele botou, lá
tinha um portão ele botou a cabeça dos aço pro lado de fora. Quando foi no
oto dia cedinho foi um dia de sábado, ele foi madrugada panhou, quando eu
cheguei ne...ele já tava com o dinheiro. Eu tava lembrando disso, quem foi
moço,quem foi o menino que tava aqui dia domingo, foi dia de domingo eu
contando o caso, o menino já riu moço ... mas ave Maria mas se os home
desse fé, era perigo, mandava embora.125
124
BRITO, 2012. 125
BRITO, 2012.
143
Examinando as narrativas, podemos dizer que nas práticas cotidianas de trabalho os
mineiros também criavam meios para burlar as normas da indústria. Desde o momento que
paravam para pregar uma peça em um companheiro, sentar e dormir no trabalho, roubar
material da empresa, mentir sobre a quantidade de produção feita, e demais “treitas”
realizadas por eles. E na memória esses elementos aparecem como a parte “boa” de se
trabalhar na mina, a relação que construíram com os companheiros de trabalho. As “treitas”
como contou Zé Paulo eram feitas para amenizar o sofrimento do labor, sem as quais não
seria possível ficar tanto tempo naquele serviço.
Ao que parece, a questão das “brincadeiras” estavam presentes em vários ambientes de
trabalho, não sendo caso exclusivo de Boquira. Marta Cioccari também identificou em sua
pesquisa as tais brincadeiras feitas pelos mineiros de carvão. Ela argumenta que as
brincadeiras estavam relacionadas a temáticas sexuais, palavrões, xingamentos, pregar peça.
Também existiam os apelidos que eram considerados uma espécie de batismo quando um
novo mineiro iniciava no subsolo, “os mineiros diziam que a alcunha „pega‟ quando a pessoa
não gosta”.126
Diz que havia casos de mineiros que não participavam dos “brinquedos” e não
aceitavam os apelidos. Salienta a autora que “as brincadeiras ou relações jocosas eram uma
contrapartida à dureza das condições de trabalho enfrentadas no subsolo”.127
Encontramos os elementos apontados pela autora no universo do trabalho nas minas de
Boquira. Os mineiros também desenvolveram as “brincadeiras” para aliviar a rijeza do
serviço. Outro aspecto que chamou nossa atenção nas memórias dos mineiros de Boquira foi a
solidariedade dentro do grupo. Existia um momento no serviço para a pausa da merenda.
Todos os trabalhadores levavam algum alimento e misturavam tudo, para comerem juntos.
Saturnino relembra:
[...] dentro da mina nós merendava... quando era na hora da merenda,
quando tava perto um gritava os outros... outra hora chamava ia lá perto... “ê
tá na hora da merenda!” juntava tudo, cada um levava uma lata de farofa
pegava os pedaço de papelão, saco de plástico e fazia aquele cuscuizão dessa
altura e a turma encostava...era coisa... comia mesmo pra valer, a gente tudo
tinha que levar merenda quando não era bolo era farofa [...]quando a gente
tava muito distante dos outro... pra merendar só... a gente depois que
acostumasse assim merendar junto quando acertava o dia que a gente tava
tão distante tem hora que nem merendava... sozinho...128
126
CIOCCARI, 2015, p.92. 127
Idem. 128
SOUZA, 2012.
144
Conforme as narrativas, essa ocasião era muito apreciada pelos mineiros. Momento de
descanso, e não deixava de existir também as citadas “brincadeiras”. O intervalo servia para
distração, conversas e brincadeiras. O momento era tão importante que Saturnino diz que
quando não dava para comer junto com os companheiros as vezes nem merendava. Jader
Nogueira, cujo trabalho já citamos no primeiro capítulo, argumentou que entre os mineiros de
Camaquã, apesar dos conflitos, o aspecto da solidariedade era muito importante, já que “a
experiência de trabalhar na mina e o risco inerente ao qual estavam diariamente submetidos
favoreciam a valorização do companheirismo e da união entre os trabalhadores”.129
Também foi relembrado por alguns entrevistados que os mineiros chegaram a parar o
trabalho para fazerem reivindicações, antes mesmo da criação de um sindicato, fato que só
ocorreu em 1986. Sobre o movimento, relembrou seu Abelino:
Nós reunimos tudo, só os trabaiador né, só porque o pagamento era atrasado
o salarinho nunca aumentava, ai agora resolvemos tudo parar o serviço, e
fomos pra boca da mina, chegava lá a gente panhava as ferramentas mas
ficava esperando a decisão deles se dava o aumento, eles não dava, era
perdido formar greve porque... a gente vê... greve desses professores que tá
ai, e o servidor...que vão tirar é pontos deles do servidor por que não aceitou
a proposta do governo [...] vi passando ai no jornal mermo, não vão recebeu
os [...] e esses daí como diz, tem apoio, esses daí tem o sindicato [...] nesse
tempo a gente fazia as greve era adoidado ai, “vamo fazer greve, hoje nois
não vamo trabaiar” (risos) não trabaiava não, mas era perdido.130
No relato, Abelino Manoel fala do caso de uma greve que estava acontecendo naquele
momento da entrevista, e enfatiza que diferente dos servidores da greve citada, eles não
tinham um sindicato para apoiá-los, por isso a greve era malograda. A fala de seu Abelino
revela que para ele as greves só podem ser bem sucedidas se forem mediadas por sindicatos.
Mas na época, talvez não pensasse dessa maneira. Os trabalhadores negavam o trabalho ao
patrão como forma de reivindicar um aumento de salário. Houve outros relatos que falaram a
respeito de uma greve e que conseguiram o aumento de salário que reivindicavam. Por conta
das peculiaridades das fontes orais, não foi possível precisar se foi a mesma greve ou não,
sabemos, porém, que os casos de mobilizações mencionados foi anterior a criação do
sindicato. Em uma fonte que analisamos no primeiro tópico do capítulo, fez referência a uma
129
NOGUEIRA, Jader Escobar. Mineiros e Engenheiros: memória, identidade e trabalho nas minas do
Camaquã entre 1970 e 1996. Dissertação (mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Maria, Rio
Grande do Sul, 2012. Disponível em:
<http://coral.ufsm.br/ppgh/images/MESTRADO/dissertacoes/turma2011/Dissertacao-Jader-Nogueira%20-
%202012.pdf>. Acesso em: mar. 2015.p. 68. 130
SANTOS, 2012.
145
greve dos operários da mineradora ocorrida em 1973, mais uma evidência que atesta a
existência desse tipo de mobilização feita pelos trabalhadores de Boquira. O que mais
interessa no momento é que aqueles trabalhadores chegaram a se reunir para juntos
reivindicarem interesses comuns. E que essas questões se apresentam em suas memórias.
A nossa intenção, ao dar relevo as memórias dos ex trabalhadores, foi a de apresentar
a partir delas, alguns elementos vivenciados pelos mineiros de Boquira no duro trabalho das
minas e como em suas memórias aquele passado se apresenta. Claro que a memória é
construída para dar sentido ao passado vivido e ao próprio presente, porém, não está
desconectada das vivências pretéritas. Como salienta Thomson “há frequentemente uma
congruência entre as maneiras pelas quais as pessoas conceituam o passado e como, na época,
elas experimentaram e reagiram ao ambiente social”.131
Entre os trabalhadores de Boquira, a
memória que prevalece no grupo é a da dureza do trabalho e a resistência a ele, das mortes de
companheiros, e das relações de brincadeiras e amizade que mantinham entre eles.
A escolha em analisar a memória desse grupo em específico se deu em razão de
grande parte dos trabalhadores mineiros serem oriundos de regiões rurais, no intuito de
entender como vivenciaram o fenômeno da industrialização e as memórias que construíram a
respeito. É bom lembrar que o recurso a fonte oral foi imprescindível para que fosse possível
escrever sobre esses sujeitos, pessoas que não deixaram escritos sobre suas vivências. Esse
testemunho histórico vem contribuindo para escrever histórias sobre grupos dominados,
marginalizados, excluídos. Do modo como lembrou Alcázar I Garrido “as fontes orais não são
uma alternativa as fontes escritas; são outro tipo de fonte, não apenas necessária, mas
imprescindível para se fazer história”.132
O estabelecimento da mineradora em Boquira colocou várias pessoas da localidade e
de regiões próximas a se submeterem ao trabalho na indústria. Diversos sujeitos que viviam
na zona rural passaram a vender sua força de trabalho em outra lógica de produção. Foram
trabalhadores que tiveram suas vidas modificadas pelo desenvolvimento do capitalismo.
Devido à condição de pobreza e baixa escolaridade, muitos desses sujeitos foram se arriscar
no interior das minas.
Através das entrevistas procuramos identificar outra face da história que não é relatada
pela memória oficial da cidade. Memórias de trabalhadores que sentiram na pele a experiência
131
THOMSON, Alistair. Histórias (co) movedoras: história oral e estudos de migração. Revista brasileira de
História, São Paulo, v. 22, n. 44,p. 341-364, dez. 2002. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbh/v22n44/14003.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2017.p.357. 132
ALCÁZAR I GARRIDO, Joan del. As fontes orais na pesquisa histórica: uma contribuição ao debate. Rev.
Bras. De Hist., São Paulo, V. 13, n. 25/26, p. 33-54, set./ago. 1992/1993.p.48
146
da indústria no local, o trabalho duro nas minas de Boquira, exercendo uma atividade de alto
risco e condições de trabalho insalubres. Percebemos que aquele ideal do “progresso” e do
desenvolvimento, que justificava a expansão da indústria no país, significou para muitos
trabalhadores, vários provenientes de regiões rurais, uma possibilidade de adquirir uma renda
fixa, ficarem próximas de suas famílias e não precisarem ir para outro estado trabalhar. Por
outro lado, também, o preço a pagar era trabalhar em condições penosas, o convívio com
acidentes e mortes, além de uma outra lógica de trabalho no qual seu tempo estava imerso na
lógica da produção “eficiente” do capital.
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao investigar o processo das atividades de mineração na localidade de Boquira Bahia
conseguimos averiguar alguns elementos que compuseram aquele evento, desvelando
importantes aspectos sobre a forma como o advento da instalação de uma indústria mineira
afetou a região. Para além do que a memória oficial da cidade de Boquira costuma dar ênfase,
nosso trabalho demonstrou que aquele acontecimento também esteve permeado de conflitos,
contradições, disputas, dominação.
As transformações políticas, econômicas e sociais no contexto mais amplo e também
local atingiram a localidade de Boquira e consequentemente as vivências dos habitantes da
região. Entendemos que o estabelecimento de uma indústria de mineração em Boquira deve
ser pensada dentro do contexto de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, qual seja, a
década de 1950. Tratava-se de um momento de expansão do capitalismo no país durante o
governo de Juscelino Kubitschek, caracterizado por uma grande participação do capital
internacional na indústria brasileira.
A Bahia nesse período assim como as regiões do nordeste não tinha se desenvolvido
no setor industrial, foi muito a partir da década de 1950 que os governos baianos começaram a
se preocupar e desenvolver projetos nesse sentido. E inclusive o próprio governo federal criou
políticas para o desenvolvimento industrial no nordeste. Nesse cenário a industrialização era
vista como promotora do desenvolvimento social e econômico dos países periféricos e
contribuiria para a superação da miséria e do “atraso”.
Esse “desenvolvimento” não se restringiu aos grandes centros urbanos. Em um
povoado rural localizado no interior do sertão da Bahia em que seus habitantes sobreviviam
do trabalho de subsistência no campo, o empreendimento industrial também chegou. Na visão
que a industrialização pregava, aquele acontecimento representava o “progresso” para o lugar,
na medida em que impulsionaria a urbanização além de gerar emprego e renda.
A mineradora em Boquira se desenvolveu com participação de capital nacional e
internacional, uma multinacional francesa de mineração acabou se tornando a principal
acionista da empresa. O minério de chumbo era um material estratégico naquele momento
para o setor industrial, muito utilizado na produção de baterias automotivas.
O pequeno povoado de Boquira viu-se diante de uma lógica de produção capitalista,
promovendo transformações naquele espaço. Modificando o espaço rural, transformando em
um ambiente que foi se urbanizando e atraindo pessoas de diferentes lugares, a dinâmica
148
impulsionou novas relações sociais na localidade, que passou a se adequar as demandas da
indústria mineira. A instalação da mineradora naquele sertão baiano corroborava com o ideal
da industrialização enquanto sinônimo de desenvolvimento e superação da pobreza.
O exercício das atividades mineiras em Boquira ocorreu mediante a expulsão de
lavradores de suas terras, modificando a relação que mantinham com a forma de produzir a
subsistência, provocando a luta daquelas pessoas pelo direito a suas propriedades.
Evidenciando a expropriação, uma característica típica da constituição e expansão do
capitalismo. Os lavradores expropriados foram vitimas de toda sorte de enganações e
negligenciais, prejudicados pela nova dinâmica de trabalho industrial que se constituiu em
Boquira, ainda assim se uniram da maneira como foi possível já que não possuíam muitos
recursos, para reivindicar interesses comuns. Percebemos que o avanço do capitalismo em
áreas rurais, diversas vezes é acompanhado de conflitos devido aos impactos que causam no
modo como as pessoas vivem e se organizam.
Constatamos que, por vezes, a empresa foi negligente no que diz respeito aos direitos
dos agricultores expropriados, e ainda na forma como esta agia na localidade de Boquira
exercendo poder político, econômico e social, na medida em que garantia seus interesses por
meio da influência que exercia na administração do município, e na coerção a seus
trabalhadores.
Para algumas pessoas da região a empresa ofereceu uma oportunidade de emprego e
salário, possibilitando que estas se fixassem no seu lugar de origem e não precisassem sair do
Estado da Bahia para se empregar. Contudo, também representou para uma parte daqueles
sujeitos o trabalho no interior das minas em que tiveram de exercer um labor extenuante e
arriscado. A região caracterizada por áreas rurais em que as pessoas trabalhavam no campo
sem possuir escolaridade e qualificação profissional possibilitou o ingresso de inúmeros
homens no trabalho das minas, um serviço cuja qualificação se obteria com a experiência no
labor. Pessoas que tiveram suas vidas modificadas devido a instalação de uma indústria
mineira em Boquira, homens que vieram do trabalho rural para se submeter ao trabalho
industrial assalariado.
Pela análise das memórias dos antigos mineiros de Boquira pudemos verificar como
aqueles trabalhadores vivenciaram o trabalho nas atividades mineiras. Em suas memórias se
solidificaram as lembranças da dureza do serviço, a morte dos companheiros de trabalho e a
relação de amizade e solidariedade que construíram no interior das minas, bem como a
maneira como se articularam para burlar a exploração que sofriam. A investigação nos
permitiu perceber o quão importante é a memória coletiva desse grupo social, na medida em
149
que nos aproxima da história da região, pois revela a percepção dos sujeitos históricos acerca
dos lugares sociais que ocuparam e de como viveram e interpretaram suas vivências dentro do
processo de mineração em Boquira.
A instalação e permanência da indústria mineira em Boquira provocou conflitos, já
que algumas pessoas não concordaram e questionaram a lógica que foi ali estabelecida. Os
conflitos revelam as contradições e antagonismos presentes naquele espaço social. Como o
caso dos lavradores expropriados, que por meio de denuncias e ações judiciais brigaram com
a mineradora em defesa de seus direitos. Também as ações do jornalista Alexandria Pontes
que contraditou o modo como as coisas estavam postas em Boquira, fez denuncias a
mineradora e autoridades, até mesmo se envolveu em disputas políticas locais, encontrando
fortes represálias de políticos e autoridades da região. Verificamos também que alguns
habitantes de Boquira também denunciaram a dinâmica de poder ali constituído.
Evidenciando, que existia moradores do lugar que não estavam satisfeitos com a maneira
como a mineradora atuava. Então, diferentes aspectos permearam a história da mineração em
Boquira, marcada por mudanças, expropriação, dominação da indústria, conflitos, disputas,
acidentes e mortes no trabalho das minas.
Em suma, neste trabalho esperamos ter contribuído para uma escrita da história da
cidade de Boquira, analisando o fenômeno da instalação de uma indústria de mineração na
localidade e as mudanças promovidas por essa relação econômica industrial capitalista. Nosso
intuito também foi, a partir de Boquira, contribuir para o debate historiográfico a respeito da
história da Bahia, especialmente do interior, no que toca as transformações promovidas pelo
processo de industrialização que procurava se expandir no Brasil e se iniciou no estado baiano
muito a partir da década de 1950. Almejamos que de algum modo possa servir para pensar
sobre a maneira como as regiões rurais foram afetadas pelo desenvolvimento do capitalismo
no Brasil.
150
FONTES
Escritas
Jornais, acervos online:
Jornal O Estado de São Paulo, 1958-1979. Acervo Estadão. Disponível em:
<http://acervo.estadao.com.br/>.
Jornal Tribuna da Imprensa, 1971-1974. Acervo Biblioteca Nacional Digital.
Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/docmulti.aspx?bib=154083&pesq=boquira>.
Jornal Opinião, 1975. Acervo Biblioteca Nacional Digital. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=123307&pagfis=36
78&url=http://memoria.bn.br/docreader#>.
Jornal Diário Oficial do Estado de São Paulo, 1957, 1959 ,1970. Acervo Jusbrasil,
Diários oficiais da União, dos Estados e dos Municípios. Disponível em:
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