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aLeR+ em Português

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Page 1: aLeR+ em Português

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Drama

Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Afonso da Maiaestava no seu escritório lendo, quando a porta se abriu violentamente, e,alçando os olhos do livro, viu Pedro diante de si. Vinha todo enlameado,desalinhado, e na sua face lívida, sob os cabelos revoltos, luzia um olhar deloucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aosbraços do pai, rompeu a chorar perdidamente.- Pedro! que sucedeu, filho?Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, à ideia do filho livrepara sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo à sua solidão os doisnetos, toda uma descendência para amar! E repetia, trémulo também,desprendendo-o de si com grande amor:- Sossega, filho, que foi?Pedro então caiu para o canapé, como cai um corpo morto; e levantandopara o pai um rosto devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra, numavoz surda:- Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei esta manhã... A Maria tinhafugido de casa com a pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou.

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A madrugada clareava, Afonso ia adormecendo - quando de repente umtiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um criadoacudia também com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreabertovinha um cheiro de pólvora; e aos pés da cama, caído de bruços, numa poça de sangue que se ensopava no tapete, Afonso encontrou seu filho morto, apertando uma pistola na mão.

Drama

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Para quebrar o silêncio, Carlos gabou-lhe as suas lindas flores.

- Ah, vou-lhe dar uma rosa! exclamou ela logo, deixando as músicas.

Mas, a flor que ela lhe queria dar estava no boudoir, ao lado. Carlos seguiu a sua

grande cauda, onde corria um reflexo dourado de folhagem de outono batida do

sol. (…) A condessa escolheu um botão com duas folhas, e ela mesmo lhe veio florir

a sobrecasaca. Carlos sentia o seu aroma de verbena, o calor que subia do seu seio

arfando com força. E ela não acabava de prender a flor, com os dedos trémulos,

lentos, que pareciam colar-se, deixar-se adormecer sobre o pano...

- Voilá! murmurou enfim, muito baixo. Aí está o meu belo cavaleiro da Rosa

Vermelha... E agora, não me agradeça!

Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os lábios nos lábios dela.

Romance

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Suspense

Baptista, com a casaca na mão, esperava que Carlos acabasse a chávena de chá preto que

ele estava bebendo aos golos, de pé, em mangas de camisa, e de gravata branca.

De repente, o timbre eléctrico da porta particular retiniu, apressado e violento.

- Talvez outra surpresa, murmurou Carlos, hoje é o dia das surpresas...

Baptista sorriu, ia pousar a casaca para abrir - quando em baixo vibrou outro repique brutal,

duma impaciência frenética. Então Carlos, curioso, saiu à ante-câmara: e aí, à meia luz das

lâmpadas Carcel, ainda quebrantada pelo tom dos veludos cor de cereja, viu, ao abrir-se

a porta por onde entrou um sopro áspero da noite, aparecer vivamente uma forma esguia e

vermelha, com um confuso tinir de ferro. Depois, pela escada acima, duas penas negras de

galo ondearam, um manto escarlate esvoaçou - e o Ega estava diante dele, caracterizado,

vestido de Mefistófeles!

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Carlos apenas pôde dizer bravo - o aspecto do Ega emudeceu-o. Apesar dos toques de

caracterização que quasi o mascaravam, sobrancelhas de diabo, guias de bigode

ferozmente exageradas - sentia-se bem a aflição em que vinha, com os olhos

injectados, perdido, numa terrível palidez. Fez um gesto a Carlos, arremessou-se pelo

gabinete dentro. Baptista, logo, discretamente, retirou-se cerrando o reposteiro.

Estavam sós. Então Ega, apertando desesperadamente as mãos, numa voz rouca e de

agonia:

- Tu sabes o que me sucedeu, Carlos?

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- Quero matá-lo! Quero matá-lo! Quero matá-lo!

Depois, alucinado, sem ver Carlos, rompeu a passear desabridamente pelo quarto, às

patadas, com o manto deitado para trás, a espada mal afivelada batendo-lhe as canelas

escarlates.

- Então descobriu tudo, murmurou Carlos.

- Está claro que descobriu tudo! exclamou o Ega, no seu passear arrebatado, atirando os

braços ao ar. Como descobriu, não sei. Sei isto, já não é pouco. Pôs-me fora!... Hei-de-lhe

meter uma bala no corpo! Pela alma de meu pai, hei-de-lhe varar o coração!... Quero que

vás lá logo pela manhã com o Craft... E as condições são estas: à pistola, a quinze passos!

Carlos, agora outra vez sereno, acabava a sua chávena de chá. Depois disse muito

simplesmente:

- Meu querido Ega, tu não podes mandar desafiar o Cohen.

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O outro estacou de repelão, atirando pelos olhos dois relâmpagos de ira - a que as medonhas

sobrancelhas de crepe, as duas penas de galo ondeando na gorra, davam uma ferocidade

teatral e cómica.

- Não o posso mandar desafiar?

- Não.

- Então põe-me fora de casa...

- Estava no seu direito.

- No seu direito!... Diante de toda a gente?...

- E tu, não eras amante da mulher diante de toda a gente?...

O Ega ficou a olhar um momento para Carlos, como atordoado. Depois fez um grande gesto:

- Não se trata da mulher!... não se falou da mulher!... É uma questão de honra para mim, quero

mandá-lo desafiar, quero matá-lo...

Carlos encolheu os ombros.

- Tu não estás em ti. Tens só uma coisa a fazer; é ficar amanhã em casa, a ver se ele te manda

desafiar a ti...

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Suspense

O escudeiro fora preparar o café: e, no entanto, ia-se discutindo, em todas as

hipóteses, a atitude provável do Cohen com a mulher. Que faria ele?

Talvez lhe perdoasse. Ega afirmava que não: era vaidoso, e de rancores longos! Num

convento também não a fechava, sendo judia...

- Talvez a mate, (…).

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Ação

Carlos ainda se demorou um instante a reler, com um sorriso, a aparatosa carta do

Gouvarinho; e ia enfim chamar o Baptista para se vestir, quando em baixo, à entrada

particular, o timbre eléctrico começou a vibrar violentamente. Um passo ansioso ressoou

na ante-câmara, o Dâmaso apareceu esbaforido, de olho esgazeado, com a face em brasa.

E, sem dar tempo a que Carlos exprimisse a surpresa de o ver enfim no Ramalhete,

exclamou, lançando os braços ao ar:

- Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que venhas daí, que me venhas ver um

doente... Eu te explicarei... É aquela gente brasileira. Mas pelo amor de Deus, vem

depressa, menino!

Carlos erguera-se, pálido:

- É ela?

- Não, é a pequena, esteve a morrer... Mas veste-te, Carlinhos, veste-te, que a

responsabilidade é minha!

- É um bebé, não é?

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Ação

Qual bebé!... É uma pequena crescida, de seis anos... Anda daí! Carlos, já em mangas de camisa, estendia o pé ao Baptista, que, com um joelho em terra, apressado também, quasi fez saltar os botões da bota. E Dâmaso, de chapéu na cabeça, agitava-se, exagerando a sua impaciência, a estalar de importância.- Sempre a gente se vê em coisas!... Olha que responsabilidade a minha!Vou visitá-los, como costumo às vezes, de manhã... E vai, tinham partido para Queluz.Carlos voltou-se, com a sobrecasaca meia vestida:- Mas então?...- Escuta, homem! Foram para Queluz, mas a pequena ficou com a governanta... Depois do almoço deu-lhe uma dor. A governanta queria um médico inglês, porque não fala senão inglês... Do hotel foram procurar o Smith, que não apareceu... E a pequena a morrer!... Felizmente, cheguei eu, e lembrei-me logo de ti... Foi sorte encontrar-te, caramba!E acrescentou, dando um olhar ao jardim:- Também, irem a Queluz com um dia destes! Hão-de-se divertir... Estás pronto, hein? Eu tenho lá em baixo o coupé... Deixa as luvas, vais muito bem sem luvas!- O avô que não me espere para almoçar, gritou Carlos ao Baptista, já do fundo da escada.

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Política

Carlos queixava-se ao Sr. Vicente, o mestre de obras, que lhe asseverava

invariavelmente «como daí a dois dias havia de s. Ex.ª ver a diferença.» Era

um homem de meia idade, risonho, de falar doce, muito barbeado, muito

lavado, que morava ao pé do Ramalhete, e tinha no bairro fama de

republicano. Carlos, por simpatia, como vizinho, apertava-lhe sempre a mão:

e o Sr. Vicente, considerando-o por isso um «avançado», um democrata,

confiava-lhe as suas esperanças. O que ele desejava primeiro que tudo era um

93, como em França...

- O quê, sangue? dizia Carlos, olhando a fresca, honrada e roliça face do

demagogo.

- Não, senhor, um navio, um simples navio...

- Um navio?

- Sim, senhor, um navio fretado à custa da nação, em que se mandasse

pela barra fora o rei, a família real, a cambada dos ministros, dos políticos,

dos deputados, dos intrigantes, etc. e etc.

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Carlos sorria, às vezes argumentava com ele.

- Mas está o Sr. Vicente bem certo, que apenas a cambada, como tão

exactamente diz, desaparecesse pela barra fora, ficavam resolvidas todas as

coisas e tudo atolado em felicidade?

Não, o Sr. Vicente não era tão «burro» que assim pensasse. Mas, suprimida a

cambada, não via s. Ex.ª? Ficava o país desatravancado; e podiam então

começar a governar os homens de saber e de progresso...

- Sabe V. Ex.ª qual é o nosso mal? Não é má vontade dessa gente; é muita soma

de ignorância. Não sabem. Não sabem nada. Eles não são maus, mas são umas

cavalgaduras!

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Economia

- E aqui tens tu Lisboa.

- Enfim, exclamou o Ega, se não aparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal

para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos,

estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes

pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em

segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos

civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos,

por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe. Onde pus

eu a charuteira?

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Economia

- Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O empréstimo faz-se ou não se faz?

E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquela questão do empréstimo era

grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episódio histórico!...

O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade, que o

empréstimo tinha de se realizar absolutamente. Os empréstimos em Portugal constituíam

hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o

imposto. A única ocupação mesmo dos ministérios era esta - cobrar o imposto e fazer o

empréstimo. E assim se havia de continuar...

Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, desse modo, o país ia alegremente

e lindamente para a banca-rota.

- Num golpezinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso,

ninguém tem ilusões, meu caro senhor. Nem os próprios ministros da fazenda!... A banca-

rota é inevitável: é como quem faz uma soma...

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Educação

Afonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume, recomeçara a falar

do Silveirinha. Tinha três ou quatro meses mais que Carlos, mas estava enfezado,

estiolado, por uma educação à portuguesa: daquela idade ainda dormia no choco com

as criadas, nunca o lavavam para o não constiparem, andava couraçado de rolos de

flanelas! Passava os dias nas saias da titi a decorar versos, páginas inteiras do Catecismo

de Perseverança. Ele por curiosidade um dia abrira este livreco e vira lá, «que o sol é

que anda em volta da terra (como antes de Galileu), e que Nosso Senhor todas as

manhãs dá as ordens ao sol, para onde há-de ir e onde há-de parar etc., etc.» E assim

lhe estavam arranjando uma almazinha de bacharel...

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Humor

- Quem? O Eusebiozinho? disse Afonso, que se acomodava junto ao fogão, enchendo

alegremente o cachimbo. Eu tremo de o ver cá, Vilaça! O Carlos não gosta dele, e

tivemos aí um desgosto horroroso... Foi já há meses.

Havia uma procissão e o Eusebiozinho ia de anjo... As Silveiras, excelentes mulheres,

coitadas, mandaram-no cá para o mostrar à viscondessa, já vestido de anjo. Pois

senhores, distraímo-nos, e o Carlos que o andava a rondar apodera-se dele, leva-o para

o sótão, e, meu caro Vilaça... Em primeiro lugar ia-o matando porque embirra com

anjos... Mas o pior não foi isso. Imagine você o nosso terror, quando nos aparece o

Eusebiozinho aos berros pela titi, todo desfrisado, sem uma asa, com a outra a bater-lhe

os calcanhares dependurada de um barbante, a coroa de rosas enterrada até ao

pescoço, e os galões de ouro, os tules, as lentejoulas, toda a vestimenta celeste em

frangalhos!... Enfim, um anjo depenado e sovado...

Page 18: aLeR+ em Português

Humor

E, voltando-se para Eusebiozinho, que se conservava ao lado dela, quieto como se fosse de gesso:- Oh filho, dize tu aqui ao Sr. Vilaça aqueles lindos versos que sabes... Não sejas atado, anda!... Vá, Eusébio, filho, sê bonito...Mas o menino, molengão e tristonho, não se descolava das saias da titi: teve ela de o pôr de pé, ampará-lo, para que o tenro prodígio não aluísse sobre as perninhas flácidas; e a mamã prometeu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ela...Isto decidiu-o: abriu a boca, e como duma torneira lassa veio de lá escorrendo, num fio de voz, um recitativo lento e babujado: É noite, o astro saudoso Rompe a custo um plúmbeo céu, Tolda-lhe o rosto formoso Alvacento, húmido véu... Disse-a toda - sem se mexer, com as mãozinhas pendentes, os olhos mortiços pregados na titi. A mamã fazia o compasso com a agulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto, banhada no langor da melopeia, ia cerrando as pálpebras.- Muito bem, muito bem! exclamou o Vilaça, impressionado, quando o Eusebiozinho findou coberto de suor. Que memória! Que memória! É um prodígio!...

Page 19: aLeR+ em Português

Humor E imediatamente, sem transição, começou a fazer elogios a Carlos. 0 Sr. Maia não imaginava há quanto tempo ele desejava conhecê-lo!- Oh senhor... Creia V. Ex.ª... Eu não sou de sabujices... Mas pode V. Ex.ª perguntar ao

Ega, quantas vezes o tenho dito: V. Ex.ª é a coisa melhor que há em Lisboa!Carlos, baixava a cabeça, mordendo o riso. Dâmaso, repetia, do fundo do peito.- Olhe que isto é sincero, Sr. Maia! Acredite v Ex.ª que isto é do coração!Era realmente sincero. Desde que Carlos habitava Lisboa, tivera ali, naquele moço gordo e bochechudo, sem o saber, uma adoração muda e profunda; o próprio verniz dos seus sapatos, a cor das suas luvas eram para o Dâmaso motivo de veneração, e tão importantes como princípios.Considerava Carlos um tipo supremo de chic, do seu querido chic, um Brumel, um d’Orsay, um Morny, - uma «destas coisas que só se vêem lá fora», como ele dizia arregalando os olhos. Nessa tarde sabendo que vinha jantar com o Maia, conhecer o Maia, estivera duas horas ao espelho experimentando gravatas, perfumara-se como para os braços duma mulher; -e por causa de Carlos mandara estacionar ali o coupé, às dez horas, com o cocheiro de ramo ao peito.

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- Então essa senhora brasileira vive aqui? perguntou Carlos, que dera dois passos, olhava

uma janela alumiada no segundo andar.

Dâmaso seguiu-lhe o olhar.

- Vive lá do outro lado. Estão aqui há quinze dias... Gente chic... E ela é de apetecer, V.

Ex.ª reparou? Eu a bordo atirei-me... E ela dava cavaco! Mas tenho andado muito preso

desde que cheguei, jantar aqui, soirée acolá, umas aventurazitas... Não tenho podido cá

vir, deixei-lhes só bilhetes; mas trago-a de olho, que ela demora-se... Talvez venha cá

amanhã, estou cá agora a sentir umas cócegas... E se me pilho só com ela, zás, ferro-lhe

logo um beijo! Que eu cá, não sei se V. Ex.ª é a mesma coisa, mas eu cá, com mulheres, a

minha teoria é esta: atracão! Eu cá, é logo: atracão!

Humor

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Humor

Carlos ia formar-se em Medicina. E como dizia o Dr. Trigueiros houvera sempre naquele menino realmente uma «vocação para Esculápio».A «vocação» revelara-se bruscamente um dia que ele descobriu no sótão, entre rimas de velhos alfarrábios, um rolo manchado e antiquado de estampas anatómicas; tinha passado dias a recorta-las, pregando pelas paredes do quarto fígados, liaças de intestinos, cabeças de perfil «com o recheio à mostra». Uma noite mesmo rompera pela sala em triunfo, a mostrar às Silveiras, ao Eusébio, a pavorosa litografia de um feto de seis meses no útero materno. D. Ana recuou, com um grito, colando o leque à face: e o Dr. delegado, escarlate também, arrebatou prudentemente Eusebiozinho para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a mão. Mas o que escandalizou mais as senhoras foi a indulgência de Afonso.- Então que tem, então que tem? dizia ele sorrindo.- Que tem, Sr. Afonso da Maia!? exclamou D. Ana. São indecências!- Não há nada indecente na natureza, minha rica senhora. Indecente é a ignorância... Deixar lá o rapaz. Tem curiosidade de saber como é esta pobre máquina por dentro, não há nada mais louvável... D. Ana abanava-se, sufocada. Consentir tais horrores nas mãos da criança!... Carlos começou a aparecer-lhe como um libertino «que já sabia coisas»; e não consentiu mais que a Terezinha brincasse só com ele pelos corredores de Santa Olávia

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Humor

- Quer você então meia hora de florete, Craft? perguntou Carlos.- Seja: e é necessário dar a lição ao Dâmaso...- É verdade, a lição... - murmurou Dâmaso sem entusiasmo, com um sorriso murcho.(…) Dâmaso seguiu, atrás dos dois, com uma lentidão de rês desconfiada.Aquelas lições, que ele solicitara por amor do chic, iam-se-lhe tornando odiosas. E nessa tarde como sempre, apenas se enchumaçou com o plastrão de anta, se cobriu com a caraça de arame, começou a transpirar, a fazer-se branco. Diante dele Craft de florete na mão, parecia-lhe cruel e bestial, com aqueles seus ombros de Hércules sereno, o olhar claro e frio. Os dois ferros rasparam. Dâmaso estremeceu todo.- Firme, gritou-lhe Carlos.O desgraçado equilibrava-se sobre a perna roliça; o florete de Craft vibrou, rebrilhou, voou sobre ele; Dâmaso recuou, sufocado, cambaleando e com o braço frouxo...- Firme! berrava-lhe Carlos.Dâmaso, exausto, abaixou a arma.- Então que querem vocês, é nervoso! É por ser a brincar... Se fosse a valer, vocês veriam.Assim acabava sempre a lição; e ficava depois abatido sobre uma banqueta de marroquim, arejando-se com o lenço, pálido como a cal dos muros.

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Os Maias