alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a...

15
26 BRACAGIOLI, Alberto 2 , GERHARDT, Cleyton 3 , ANJOS, José Carlos 4 . Resumo Este artigo tem o objetivo de estabelecer um di- álogo com diferentes olhares sobre as possibili- dades de pontos de vista, uma questão que tem sido central em descrições e análises etnográfi- cas. No momento da realização destas últimas, existe um inesgotável espaço de tomadas de po- sições entre um estranhamento total e o engaja- mento participante que, por vezes, pode beirar à militância incondicional. Dentro deste campo de possibilidades, instala-se uma tensão permanen- te (recíproca e partilhada tanto por nativos como pelo não-nativo) gerada pelo duplo movimento de aproximação-distanciamento da realidade vivi- da-estudada. Com o intuito de colaborar com este debate – ainda em aberto e por onde transitam diferentes perspectivas que não só concorrem en- tre si, mas que, por vezes, se sobrepõem e se com- plementam tornando este espaço inconcluso – este trabalho pretende discutir tal problemática a partir da contribuição seminal de Malinovisky, da discussão sobre o ponto de vista nativo de Ge- ertz, da crítica às pretensões de discurso racional tecidas por Rita Segato, do multinaturalismo de Eduardo Viveiro de Castro, do devir-experiência de Goldman e do ser afetado de Favret Saada. Palavras-chaves: Ponto de vista. Etnografia. Nativo. 1 Uma primeira versão inicial deste artigo resulta de trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José Carlos dos Anjos. 2 Doutorando em Desenvolvimento Rural no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural – UFRGS e Assessor Especial da Emater/RS-Ascar. 3 Cientista social, pesquisador-professor no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Cientista social, pesquisador-professor no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Some Anthropological Viewpoints about the Viewpoint Relations Abstract This article has the objective of establishing a dia- logue with different sights on the possibilities of points of view, a question that has been central in ethnographic descriptions and analysis. At the moment of assuming one of these points of view, there will be an inexhaustible space of positions taking between a total strangeness and the par- ticipating engagement, which sometimes might border unconditional militancy. Within this field of possibilities, a permanent (reciprocal and sha- red by both natives and non-natives) tension is settled, generated by the double movement of approximation-distancing of the lived-studied Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ponto de vista 1 Para Geertz, a interpretação etnográfica está sintetizada na ideia de “círculo hermenêutico”. Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Upload: hadung

Post on 21-Jan-2019

215 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

26

BRACAGIOLI, Alberto 2, GERHARDT, Cleyton 3, ANJOS, José Carlos 4.

ResumoEste artigo tem o objetivo de estabelecer um di-álogo com diferentes olhares sobre as possibili-dades de pontos de vista, uma questão que tem sido central em descrições e análises etnográfi-cas. No momento da realização destas últimas, existe um inesgotável espaço de tomadas de po-sições entre um estranhamento total e o engaja-mento participante que, por vezes, pode beirar à militância incondicional. Dentro deste campo de possibilidades, instala-se uma tensão permanen-te (recíproca e partilhada tanto por nativos como pelo não-nativo) gerada pelo duplo movimento de aproximação-distanciamento da realidade vivi-da-estudada. Com o intuito de colaborar com este debate – ainda em aberto e por onde transitam diferentes perspectivas que não só concorrem en-tre si, mas que, por vezes, se sobrepõem e se com-plementam tornando este espaço inconcluso – este trabalho pretende discutir tal problemática a partir da contribuição seminal de Malinovisky, da discussão sobre o ponto de vista nativo de Ge-ertz, da crítica às pretensões de discurso racional tecidas por Rita Segato, do multinaturalismo de Eduardo Viveiro de Castro, do devir-experiência de Goldman e do ser afetado de Favret Saada.

Palavras-chaves: Ponto de vista. Etnografia. Nativo.

1 Uma primeira versão inicial deste artigo resulta de trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

Carlos dos Anjos.2 Doutorando em Desenvolvimento Rural no Programa

de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural –UFRGS e Assessor Especial da Emater/RS-Ascar.

3 Cientista social, pesquisador-professor no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul.4 Cientista social, pesquisador-professor no Programa

de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Some Anthropological Viewpoints about the Viewpoint Relations

Abstract This article has the objective of establishing a dia-logue with different sights on the possibilities of points of view, a question that has been central in ethnographic descriptions and analysis. At the moment of assuming one of these points of view, there will be an inexhaustible space of positions taking between a total strangeness and the par-ticipating engagement, which sometimes might border unconditional militancy. Within this field of possibilities, a permanent (reciprocal and sha-red by both natives and non-natives) tension is settled, generated by the double movement of approximation-distancing of the lived-studied

Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ponto de vista1

Para Geertz, a interpretação etnográfica está sintetizada na ideia de “círculo hermenêutico”.

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 2: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

27

reality. In order to collaborate with this debate – still open and where different perspectives move through, not only competing but sometimes over-lapping and complementing each other, which makes this space inconclusive – this work intends to discuss such set of problems from the seminal contribution of Malinovisky, from Geertz´s discus-sion on the native point of view, from the criticism to the claim of rational speech made by Rita Sega-to, from Eduardo Viveiro de Castro´s multinatu-ralism, from Goldman´s becoming-experience, and from Favret Saada´s concept of being affected.

Keywords: Point of view. Ethnography. Native.

1 PONTO INICIAL

“Todo ponto de vista é a vista de um ponto.” (BOFF, 1998, p. 9).

Procurar descrever, interpretar e entender o ponto de vista do outro é prática corrente nos estu-dos antropológicos. Desde seus precursores até os recém iniciados nos estudos etnográficos, é comum encontrarmos em seus trabalhos uma discussão tanto sobre o ponto de vista do observador sobre os sujeitos, pessoas ou grupos sociais estudados como, ao contrário, sobre suas impressões acerca do ponto de vista dos observados que observam este mesmo observador. O interesse por estes aspectos não se restringe aos estudos antropológicos, tendo em vis-ta que perfazem todo processo de mediação social, onde são conectados diferentes universos de signi-ficado. Assim o trabalho da extensão rural, entre outras atividades de mediação social, é perpassa-do por pontos de vista com relação aos agriculto-res e suas formas de construção do conhecimento (LEEUWIS, C.; VAN DEN BAN, A., 2013).

Em diversos textos etnográficos encontramos um capítulo introdutório onde o antropólogo des-creve como se deu o processo de elaboração da pes-quisa, seus primeiros contatos junto à comunidade ou grupo social estudado, os instrumentos de cole-ta de informações, como foi o período de “trabalho de/no campo”5, além de dados pitorescos sobre seu convívio durante este período. Em muitos casos isto se dá pelo fato de que, ao explicitar seu ponto de vista e, também, aspectos subjetivos, afetivos e mesmo existenciais que marcaram a relação do

antropólogo com os nativos durante a realização da pesquisa, tem-se como resultado certa neutra-lidade axiológica proveniente justamente deste esforço de racionalização-sistematização de expe-riências passadas realizado ad hoc e a posteriori.

Por outro lado, tal procedimento permite ao pes-quisador, mais ou menos como no caso do perso-nagem Brás Cubas de Machado de Assis (2010), “ventilar sua consciência” e, assim, exorcizar tan-to aquela prerrogativa epistemológica que o pes-quisador possui normalmente diante do discur-so nativo – conforme Castro (2002, p. 117), “[...] sua sorrateira vantagem de direito [...]”6 – como também o mal estar gerado pelo distanciamento que o texto escrito e seu vocabulário hermético e acadêmico interpõem entre o autor e as pessoas de quem ele irá falar neste mesmo texto. Afinal, como comenta Amorim (2004, p. 45): “[...] coloni-zar é também traduzir [...]”, sendo que, mesmo ao escrever um texto criativo, podemos estar nos afastando perigosamente das pessoas com quem mantivemos contato, as quais, sendo silenciadas, perdem o poder de intervir no que o pesquisador fará com suas falas (sejam elas extraídas de en-trevistas gravadas, anotações no diário de campo ou de lembranças de situações corriqueiras vividas pelo pesquisador junto a sua “base empírica”).

Porém, a despeito deste tipo de procedimento, seguem atualíssimas perguntas do tipo: entre o estranhamento da realidade vivida-estudada e o

5 Fazemos aqui uma distinção entre trabalho de e no campo. No primeiro caso, a preposição “de” confere uma conotação genérica ao substantivo “campo” como parte de um tipo específico de “trabalho” a ser executado. Mar-cio Goldman (2006, p. 29) comenta que este poderia ser visto: (a) como técnica para obter dados; (b) como método em que tais “informações só poderiam ser obtidas dessa forma”; ou (c) como experiência exigida pelas “próprias características epistemológicas” da antropologia. Já no que se refere ao uso da expressão “trabalho no campo”, o artigo “o”, acompanhando a preposição “em”, indica ou-tra especificidade. Trata-se agora não mais de um cam-po genérico, muito menos de um método ou técnica, mas daquele universo social que desejamos observar. Se vá-rios cientistas fazem “trabalhos de campo” (que podem ser bem distintos), apenas um fará “trabalho no campo”, visto que se trata do “campo” de alguém que precisou construí-lo como tal para poder depois descrevê-lo.

6 “Sorrateira” porque, conforme este último (2002, p.117), o pesquisador “sabe demais sobre o nativo desde antes do início da partida; ele predefine e circunscreve os mundos possíveis expressos por esse outrem”.

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 3: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

28

engajamento participante – por vezes militan-te – estabelecido junto com os nativos, quais as fronteiras que separam o trabalho resultante de uma descrição etnocêntrica ou de uma inter-pretação preconceituosa? Qual o limiar entre revelação do outro e projeção de nossos valores? Existe algum procedimento, prática, percepção ou forma especial de sensibilidade que permiti-ria entender ou (mais modestamente) expor o ponto de vista do outro sem aviltar sua comple-xidade, seu aspecto dialógico, seu caráter con-textual, provisório e não absoluto, bem como, mas não menos importante, a dimensão emo-tiva nele incorporada? Entre as experiências vividas junto aos nativos e o ato de traduzi-las (etnografá-las) – trazendo com isso aos “de fora” pontos de vista a eles nada familiares –, quais os limites e implicações provenientes da tradu-ção daí resultante? Enfim, até que ponto vai a honestidade da conduta do pesquisador frente aos seus interlocutores, ou melhor, até que pon-to este está disposto a assumir as consequências de pretender (pois sempre será uma pretensão) adotar uma postura honesta, franca e sincera?

Desde meados do século passado, perguntas como estas têm inquietado boa parta da comu-nidade antropológica, sendo objeto de análises de ordem moral, metodológica e epistemológica. Por outro lado, o fato do ofício do antropólogo implicar a produção e publicização de narrati-vas cujo processo de redação, como comentamos acima, se realiza sem a intervenção direta dos sujeitos narrados (estes, no máximo, terão re-torno depois de concluído o estudo), interpõe ao primeiro, como salienta Oliveira (2003), uma “[...] preocupação com os direitos dos sujeitos da pesquisa e com a dimensão ética das relações estabelecidas pelo pesquisador no campo [...]”.

A origem tanto do interesse metodológico e epistemológico como destas preocupações éticas encontra-se presente desde Malinowiski, quan-do a qualidade dos vínculos estabelecidos entre pesquisador e pesquisado – mas, também, como e de que forma eles são gerados – passaram a ser colocados em questão: o ideal seria o antro-pólogo buscar um estranhamento relativo, uma total cumplicidade, uma aproximação afetiva ou um ponto médio entre observador e observado?

Obviamente, estamos cientes acerca da im-possibilidade de se propor uma abordagem con-

clusiva sobre este tipo de questionamento. De fato, este é hoje um debate aberto e com diversas posições, enfoques, perspectivas e proposições que não só concorrem entre si, mas que, por ve-zes, se sobrepõem, se complementam ou mesmo correm em paralelo dentro do campo antropo-lógico. Porém, é justamente este caráter incon-cluso o que confere atualidade e relevância aos dilemas acima referidos, visto aglutinarem em torno de si questões provocativas que alimen-tam o fazer antropológico. Assim pensados, os possíveis (des)encontros entre pontos de vista nativo e antropológico serão aqui abordados não com o objetivo de “dar uma direção” a ser segui-da, mas, sim, como desafio reflexivo que permi-te problematizar certos aspectos desta relação peculiar entre um “observado” que observa seu “observador” e um “observador” que observa seu “observado”.

1.1 Ponto de vista nativo como ponto de partida

“El mito del investigador de campo camaleônico, mimetizado a la perfección em sus ambientes exóticos, como um milagro andante de empatía, tacto, paciência y cosmopolitismo, fue demolida por el hombre que tal vez más hizo por crearlo”. (GEERTZ, 1994, p. 73).

Em “Desde el punto de vista nativo”, Geertz (1994) faz diversas considerações de natureza metodológica e epistemológica sobre a base e a natureza do conhecimento antropológico. No início da sua exposição o autor comenta a pu-blicação, em 1967, do diário íntimo de Malino-wsky (1997). Escrito por este entre 1914 e 1918 durante trabalho de campo nas ilhas Trobriand (Pacífico Sul), sua divulgação teve então grande repercussão na comunidade antropológica. Pela primeira vez abertamente e sem subterfúgios retóricos, seu conteúdo expõe os bastidores não tão idílicos e simpáticos do trabalho do antropó-logo, evidenciando explicitamente desentendi-mentos, rusgas, conflitos, juízos de valor, incô-modos, tormentos e preconceitos de Malinowski em relação aos “niggers” com quem conviveu e de quem, a certa altura, se disse “farto”.

Não é o caso aqui de esmiuçar as implica-ções deste diário tão peculiar e polêmico, o qual desmistificou a imagem do investigador mi-

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 4: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

29

metizado a um ambiente exótico, vivendo em harmonia com os nativos e seu modo de vida. Desviando o foco acerca da relevância de aná-lises de cunho moral sobre o fato em si, Geertz parte deste para então recolocar a questão e questionar: teria o antropólogo, a partir de sua prática (teórica e metodologicamente direcio-nada), condições de desenvolver uma sensibi-lidade extraordinária ou uma capacidade espe-cial de pensar o mundo e perceber os outros como se fosse um nativo?

Em síntese, a perspectiva inaugurada por Geertz critica não só a pretensão do antropólo-go “tomar o lugar do nativo”, mas, igualmente, a possibilidade (por mais “densa” que seja sua relação) de “pensar como um nativo”. Ao se con-trapor a possibilidade de que tal trasmutação mágica venha a ocorrer, as proposições de ordem metodológica então feita por Geertz passaram a ser um dos temas mais discutidos nas últimas décadas dentro da antropologia. Como resulta-do, muitas formulações têm sido apresentadas visando equacionar tal debate. Abaixo, apresen-tamos um quadro síntese sobre possíveis modos de se apropriar do ponto de vista nativo:

Importante destacar que tais abordagens não representam oposições polares, porém di-ferentes gradações de como se envolver – ou, aos mais modestos, de como se aproximar – dos pontos de vista nativos. Assim, a opção por en-foques êmicos tende a levar a descrições feitas a partir das próprias categorias cognitivas e lin-guísticas utilizadas pelos sujeitos com os quais o antropólogo ou outro observador externo irá interagir7; já abordagens éticas geralmente pos-suem um caráter mais interpretativo, analítico e de tradução do discurso do outro realizada a partir de referências já previamente conhecidas ou adotadas pelo pesquisador8.

7 Há hoje certa banalização no meio acadêmico do termo “êmico”, tendo este passado a fazer parte do universo discursivo de outras disciplinas, como bio-logia, ecologia, geografia, agronomia, entre outras. Visando evitar eventuais dubiedades e ambigüida-des compreensivas, esclarecemos que o termo êmico é aqui adotado para designar fatos, expressões, pers-pectivas, sentimentos, razões, práticas etc. (sejam eles de caráter étnico, grupal ou individual) vistos de forma circunstancial e culturalmente situados. Assim pensados, busca-se percebê-los e descrevê-los o mais próximo possível de como eles seriam percebidos, des-critos e entendidos pelos próprios sujeitos que viven-ciam estes mesmos fatos, expressões, perspectivas, sentimentos, razões, práticas.

8 “Sorrateira” porque, conforme este último (2002, p. 117), o pesquisador “sabe demais sobre o nativo des-de antes do início da partida; ele predefine e circuns-creve os mundos possíveis expressos por esse outrem”.

9 Obviamente, isso se a categoria “medo” fizer algum sentido para o grupo social em questão.

Relatos de Malinowski sobre seu trabalho de campo nas ilhas Trobriand desmistificaram a imagem do investigador.

Os conceitos de experiência próxima estão mais relacionados à descrição percebida sem ou com pouco esforço de tradução (por exem-plo: quando, num contexto coloquial, usamos a categoria “medo”, esta representaria uma ex-periência relativamente próxima – mais espon-tânea – se comparada ao termo “fobia”, o qual indicaria uma experiência distante9). Assim, enquanto basear-se na experiência próxima tem como efeito deixar o pesquisador ligado ao imediato e aos eventos vividos circunscritos ao seu contexto local (a experiência em si), por ou-tro lado, a experiência distante pode levar suas interpretações (escravas que são de seus refe-renciais e a prioris) a um nível de abstração e racionalização tal que a realidade concreta vi-

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 5: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

30

vida por este junto às pessoas com quem convi-veu simplesmente desaparece10.

Se no primeiro caso é fácil nos vermos dian-te de uma descrição cuja “miudeza exótica faz com que a leitura da melhor das etnografias seja uma tortura” (GEERTZ, 2007, p. 91), na segunda opção tendem a sumir ou ser oblitera-dos, como se nunca tivessem existido e como se não pudessem ser considerados também como “dados empíricos”, aspectos afetivos e existen-ciais (em alguma medida, intraduzíveis) vividos pelo pesquisador na relação in locu, ou seja, no momento em que interagia com seus interlocu-tores. Em suma, como alerta Geertz em outro momento (2008, p. 8), seguir um destes cami-nhos até suas últimas consequências levaria o pesquisador ou a um “subjetivismo extremo” ou, ao contrário, a um “formalismo extremo”.

Desta encruzilhada metodológica resulta uma questão que, de modo recorrente, tem se apre-sentado para muitos pesquisadores que adotam uma perspectiva etnográfica: como construir e utilizar uma abordagem que permita se aproxi-mar ao máximo das motivações que levam nati-vos a agir (ou não) em determinada situação e, ao mesmo tempo, a atribuir sentidos simbólicos, afetivos e práticos às suas ações. Se tal propo-sição for vista como pertinente, pontos de vista antropológicos (sejam eles quais forem) trariam como desafio a questão de como relacionar a ex-periência próxima do mundo nativo com a expe-riência distante povoada por conceitos bárbaros e categorias alienígenas (do ponto de vista nati-vo) pertencentes ao mundo do próprio pesquisa-dor11. Neste caso, Geertz sugere:

produzir una interpretación de la forma en que vive um pueblo que no sea prisioneira de sus ho-rizontes mentales – como una etnografia de la brujeria escrita por una bruja –, ni se mantenga sistematicamente ajena a las tonalidades distin-tivas de sus existências, como una etnografia de la brujeria escrita por un geômetra. (GEERTZ, 1994, p. 75).

Para exemplificar e descrever o uso destas duas dimensões conceituais (experiência próxi-ma e distante), Geertz (1994) elege o conceito de pessoa nas sociedades por ele estudadas em Bali, Java e Marrocos. Segundo o autor, proble-matizar e confrontar os diferentes conceitos de

pessoa (do nativo e do antropólogo) seria uma forma privilegiada de se analisar o que se pas-sa com ambos, tendo em vista que algum tipo de conceito desta categoria existiria, em forma reconhecível, entre todos os grupos sociais (GE-ERTZ, 2007, p. 90).

Assim, partindo deste lugar comum, o autor comenta que, na aldeia javanesa estudada, ha-via uma mistura de modernidade e tradição, sendo que, apesar de um quadro aparentemente desolador12, haveria grande vitalidade intelec-tual. Os nativos buscavam refletir intensamen-te a respeito do “eu”, contando com conceitos oriundos da tradição sufi do misticismo islâmi-co, tais como dentro/fora e refinado/vulgar. O conceito de dentro (batin) englobava o universo dos sentimentos e como seu comportamento é observado. O conceito de fora (lair) tinha como referência o comportamento externo tal como a língua falada. O objetivo maior (algo semelhan-te a uma “utopia javanesa”) seria ser puro e refi-nado (alus), devendo ser evitado o contrário, ou seja, grosso e indelicado (kasar). O esforço por desenvolver este comportamento ideal deveria

10 Sobre este aspecto, importante destacar um dos in-convenientes de se propor uma discussão partindo “do ponto de vista nativo” no singular, visto que, como sa-bem bem antropólogos desde muito tempo, nativos, entre eles, são muito diferentes, ou seja, são vários os pontos de vista nativos, cada um possuindo seu próprio ponto de vista. Ao contrário, ao nos referirmos “aos pontos de vista nativos”, abre-se a possibilidade para pensar não só suas semelhanças e distinções, mas seus aspectos contraditó-rios, idiossincráticos, complementares e contrastantes. Uma discussão relevante sobre o tema pode ser encon-trada em Seagato (1989).

11 Na verdade, como estamos diante das vivências de uma mesma pessoa (aquele que sai de seu continente para navegar por outras terras e mares), nos dois casos se trata de “experiências próximas”: a primeira, próxima do universo social nativo e, a segunda, próxima do pró-prio universo social de onde vem o pesquisador.

12 Nas próprias palavras de Geertz (2007, p. 91): “a terra era pouca, os empregos raros, o sistema político instável, a saúde de má qualidade, os preços subiam, em suma, a vida de um modo geral não era lá muito promis-sora”. Sobre tal descrição, embora tenha sido feita com o intuito de estabelecer um efeito contrastivo, se lida desde um ponto de vista escobariano (ESCOBAR, 1994), ela por si só já refletiria um cacoete neocolonialista de se carac-terizar e descrever grupos sociais subalternos a partir de categorias (por exemplo, “emprego” e “preço”) e parâme-tros euroreferenciados (SOUZA, 1998).

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 6: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

31

ser buscado nas duas esferas do eu: interiormen-te, através da religião (meditação); e exterior-mente, através da etiqueta e de uma expressão de serenidade13.

O sistema dual descrito acima demonstra que, para o caso estudado por Geertz, as atitudes das pessoas se relacionavam com concepções sociais, religiosas e cosmológicas; estas, no entanto, não existiam por si só, desvinculadas do cotidiano e do dia a dia dos javaneses. Para se compreender o significado de uma dada prática ou postura, seria preciso entender a quais percepções, sen-timentos, ambientes, pontos de vista e experiên-cias anteriores elas remeteriam. Assim, em de-terminados momentos, seria necessário buscar em que sentido se estaria proferindo um dado provérbio, qual seria a chave performática de uma certa piada, como interpretar o contexto de um determinado poema ou então como captar a referência de uma dada alusão.

Neste processo, aponta Geertz, emerge um con-tinuo equilíbrio dialético entre o mais local (o de-talhe, o contingente, o adaptável, o particular, o desvio, o anormal, o idiossincrático) e o mais global (a estrutura, a moral, as regras gerais, a hierar-quia, a média). Conformando uma circularidade cognitiva, este propõe, como método, saltar de um lado ao outro em busca do todo a partir das partes descritas. Ao mesmo tempo, porém, estas últimas são concebidas a partir do todo que as motiva, situ-ando ambas as partes num contexto de explicação mútua. Esta estratégia seria, para Geertz, funda-mental para a interpretação etnográfica, sendo sintetizada através da idéia de “círculo hermenêu-tico”, o qual privilegiaria tanto a análise da tota-lidade do fenômeno e sua categorização genérica (nível conceitual), como a descrição de fragmentos e detalhes particulares (nível factual).

Se transpormos este conceito de círculo herme-nêutico para o âmbito de um texto, uma “palavra” isolada surge com uma estrutura simbólica única, mas que só terá significado em relação ao todo manifesto na mensagem e na organização interna das demais palavras. Em certo sentido, estamos aqui diante de um fenômeno que se aproxima de outras estruturas conceituais dicotômicas como as clássicas divisões “indivíduo / sociedade”, “nature-za / cultura”, “objetivo / subjetivo” e tantas outras mais, sendo aí possível estabelecer várias conexões e analogias. Porém, o que desejamos marcar, neste

momento, é que, tanto no caso particular Javanês descrito por Geertz, como no uso da linguagem no seu sentido mais geral, há uma relação inter-subjetiva entre manifestações simbólicas isoladas dentro de um contexto significante o qual, neste jogo de subjetividades, aparece como objetivo. Em síntese, não sendo possível apreender as experiên-cias, mas, sim, suas expressões (que emergem na forma de signos e significantes), as experiências estruturam as expressões e as expressões estru-turam as experiências de modo a conformar uma dinâmica circular.

Seguindo esta perspectiva, em outro artigo tam-bém já clássico – “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa” –, Geertz (2008) apresenta o que seria “o objeto da etnografia: uma hierarquia estratificada de estruturas significantes”, sendo que, para ele, fazer etnografia seria “como tentar ler (...) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comen-tários tendenciosos” (Ibid., p. 5 e 7). Eis a dimensão “interpretativa” proposta pelo autor, para o qual a cultura de um povo, comunidade ou grupo social comporia “um contexto” orientado por “sistemas en-trelaçados de signos intercambiáveis” (Ibid., p.11).

Neste caso, o trabalho antropológico resultaria sempre de uma interpretação do discurso nativo (espécie de fabricação do seu ponto de vista), sendo ela própria um modo (uma prática, uma técnica) de “fixá-lo numa forma inspecionável” (Ibid., p.13). Em síntese, tratar-se-ia de achar (fabricar) coerên-cia e inteligibilidade em meio a um emaranhado confuso e caótico de signos e significantes que ex-pressariam – e, se tomarmos o sentido Austiniano de significante (AUSTIN, 1962 ), materializariam – a subjetividade alheia. Nesta espécie de dialé-tica circular de análise (das partes) que conduz a síntese (do todo) e vice-versa, como não seria pos-sível transportar os significados originais, o lugar onde se deram as ações, as sensações das pessoas envolvidas, seus sentimentos, enfim, a experiên-cia vivida em sua completude e integridade para o texto etnográfico, este último se resumiria a um exercício orientado de imaginação criativa cujo re-sultado seria uma atualização inventada de even-tos e fatos presentificados.

13 Um dos exemplos apresentados é o de um viúvo que se dizia “plano por dentro e por fora”, representando uma atitude de serenidade e resignação muito conside-rada em Java.

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 7: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

32

Eis, portanto, nosso ponto de partida. Vejamos agora alguns pontos alternativos que foram sur-gindo com o tempo a partir deste último.

1.2 Pontos de vista e sua interpretação como túmulo

“Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo para enchê-lo de significados intelectualizados”.

(SONTAG, 1987, p. 16).

Sinalizamos anteriormente que, dentro da an-tropologia, não existe somente um ponto de vista sobre (des)encontros entre pontos de vista nativo e antropológico, mas sim inúmeros modos de perce-ber tal relação. Neste sentido, uma crítica forte ao enfoque interpretativista baseado na idéia de “cír-culo hermenêutico” foi formulada ao final dos anos 1980 por Rita Segato. Em seu artigo “Um paradoxo do relativismo: o discurso racional da antropologia frente ao sagrado” (1989), a autora alerta para o fato de que, ao antropologizarmos eventos vividos “no campo”, estaríamos, em maior ou menor medi-da, eliminando a dimensão misteriosa, incompre-ensível e irredutível destes momentos únicos.

Conforme Segato (1989), como efeito colateral, junto com o ato de interpretar (o qual para Ge-ertz aparece como sinônimo de compreender) viria o ato de se distanciar das (ou mesmo eliminar e antropofagizar) circunstâncias irracionalizáveis que envolvem aquilo que se busca compreender. Assim, atribuir sentido ao comportamento nativo tratando este como um texto mal escrito, ambíguo e, por vezes, desconexo excluiria o significante, ou melhor, o devoraria transformando este último em significado. Neste caso, o inconveniente estaria no fato de que tal procedimento (espécie de desencan-tamento experiencial seguido por um reencanta-mento cognitivista), ao conferir enorme peso a ra-cionalização da vivência nativa, termina por criar um outro mundo para, ato contínuo, pô-lo então no lugar da própria experiência no campo. Deste modo, como “tentar compreender passa pela des-truição do que quer ser compreendido” (SEGATO, 1989, p. 65), tem-se como resultado uma desvalo-rização dos efeitos sensoriais e existenciais do ato ou do evento vividos em si mesmos, ambos irredu-tíveis a um texto escrito.

Este afastamento do antropólogo compromete-ria, justamente, a empatia e a aproximação impli-cada exercida num universo cultural particular.

Afinal, se compreender (interpretar) uma crença, um ato, um ritual, um discurso ou um ponto de vista consistiria em achar um sentido verossí-mil, coerente, como ficaria aquilo que não pode ser traduzido desta forma, ou melhor, aquilo que não cabe na interpretação, sob pena desta perder justamente sua coerência interna? O incompreen-sível, o imponderável, o misterioso, o irracional, o mágico deveriam simplesmente ser deixados de lado? O que fazer com o transbordamento não--significante inerente às práticas nativas? Deveria o antropólogo, de modo estratégico, simplesmen-te negar ou desconsiderar o que se lhe apresenta como inexplicável enquanto objeto de reflexão? E se, ao contrário, não caíssemos na tentação de transformar o “exótico em familiar”, passando a aceitar a existência do primeiro conferindo-lhe status de fundamento ontológico?

Como se pode notar, na perspectiva interpre-tativista, a valorização do conteúdo (cujo estado bruto precisaria ser lapidado e amalgamado pelo antropólogo) faz-se, ao final, em detrimento do vi-venciar propriamente dito: após o ato de experi-mentar a experiência, não mais necessitamos do primeiro, este podendo ser simplesmente descar-tado. Em síntese, substitui-se o verbo (a ação no tempo) pelo substantivo (cujo conteúdo passa a ter status de coisa, estado, significante), procedimento este que, não poucas vezes, pode levar a reificação idealizada da relação então estabelecida.

Contudo, se, para um músico experiente, este não necessita ouvir uma canção para poder com-preendê-la, bastando a ele ter acesso a sua partitu-ra (outra notação gráfica semelhante à prosa tex-tual escrita), a leitura desta não substitui a ação de executá-la ou ouvi-la de fato, de experimentá-la a partir da sensibilização que o contato com os ins-trumentos e seu aparelho auditivo lhe proporcio-naria. Da mesma forma, se, para um antropólogo, não é difícil compreender um ritual qualquer a partir de uma boa descrição etnográfica, isto não significa que o próprio ritual seja destituído de importância ou, então, que possa ser (após vivido) simplesmente esquecido ou deixado de lado. Deste modo, ao fabricarmos um sentido para determina-do fenômeno (seja este um ritual, um mito, uma relação, um conflito, um diálogo etc.), transforma-mos este em algo acessório, redundante, cosméti-co, banal, sem importância (ao menos, em termos antropológicos). Porém, como alerta Segato (1989,

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 8: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

33

p. 68): “o ritual não é apenas algo (‘objeto de pes-quisa’) que precisa ser decifrado, destilado em sig-nificado, é também uma vontade”.

Aqui se passa algo parecido ao que a elite bra-sileira fez (e faz, em grande medida) com os povos indígenas que aqui viveram ou vivem: primeiro, matamos os índios, civilizamos seus ritos, mitos, trejeitos e comportamentos para, ato contínuo, passarmos a exaltar alguns destes mesmos ritos, mitos, trejeitos e comportamentos (devidamente selecioandos e purificados) como constituidores de nossa identidade. Ora, tanto o interregno que marcou o tempo da matança (material ou simbó-lica) de uma etnia (indígena) por outra (branca) como os momentos que marcaram a relação entre interlocutores (antropólogo e nativos) vindos de mundos distintos são apagados para renascerem reinterpretados e presentificados na forma de um texto verossímil, obviamente, apenas do ponto de vista de uma das pontas (branca e antropológica) da relação original. Disto, fica a questão: seria pos-sível escapar a tal ato de depuração sem renunciar ao status e a legitimidade disciplinar requeridos dentro do campo da antropologia?

2 NATIVO RELATIVO E RELATIVO ANTROPÓLOGO: PONTOS DE VISTA COMO RELAÇÃO

“É sujeito quem tem alma, e tem alma quem é capaz de um ponto de vista”.

(CASTRO, 1996, p. 126).

Uma outra abordagem contemporânea sobre o discurso nativo e sua relação com o discurso an-tropológico foi elaborada pelo antropólogo Eduar-do Viveiros de Castro. Sua análise tem origem nos estudos por ele realizados junto aos Araweté, povo amazônico cuja compreensão metafísica permite constantes comutações de pontos de vista – por exemplo, entre o eu e o inimigo, entre o humano e o não humano (STTUTMAN et al., 2008). Será a partir da sua longa vivência com os Araweté – a qual, segundo confessou o próprio autor, “foi toda marcada por eles investigando a minha natureza” – que Viveiros de Castro irá construir um “com-plexo conceitual” ao qual chamou inicialmente de “perspectivismo” (Ibid., p.13).

No caso, este último indicaria um modelo cos-mológico ameríndio que contrasta radicalmente com a mitologia clássica ocidental baseada na

separação cultura / natureza. Em linhas gerais, em oposição às teorias evolutivas darwinianas segundo as quais, no princípio, bichos e gentes comungariam uma mesma natureza – sendo que, com o tempo, os segundos teriam se “desa-nimalizado” até virarem humanos –, a concepção cosmogônica de certos povos ameríndios partiria do fato de que, no início dos tempos, todos os se-res teriam sido humanos. Ocorre que, se alguns destes humanos teriam deixado de lado parte da sua humanidade, esta última, no entanto, per-maneceria presente como potencial. Assim, mais ou menos como quando afirmamos que em deter-minada situação fulano “despertou seu lado pri-mitivo”, agindo “como um animal”, tais seres, em determinados momentos, teriam a capacidade de agirem “como um humano”.

Em suma, tal qualidade também faria parte da sua constituição enquanto ser, seja ele natural, sobrenatural ou uma entidade intermediária. Ao invés de uma animalidade comum, partilharí-amos, na origem, de uma humanidade comum, a qual, estando em estado latente, poderia ser, dependendo da ocasião, “despertada” (CASTRO, 2002b). Tal perspectiva perspectivista – com per-dão da aliteração – implica, como se pode notar, uma ruptura ontológica na medida em que, nes-te caso, “a natureza deixaria de ser uma espécie de máximo denominador comum das culturas” (CASTRO, 2002a, p.120). Da mesma forma, ao invés de falarmos em “natureza humana”, tería-

Segato reflete que “tentar compreender passa pela destruição do que quer ser compreendido”.

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 9: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

34

mos, segundo este ponto de vista, uma outra hu-manidade, uma “humanidade natural”14.

Vimos anteriormente, a partir da ideia de cír-culo hermenêutico tal como descrito por Geertz, que a construção etnográfica dependeria da ca-pacidade do observador se aproximar, a uma dis-tância média, por um lado, de noções operacionais muito concretas e próximas dos eventos vividos no cotidiano local e, por outro, de conceitos abs-tratos separados da experiência prática nativa propriamente dita. O ajustamento destes dois lugares-olhares permitiria ao observador descre-ver, mapear e interpretar componentes cosmo-lógicos nativos, destrinchando assim concepções fundamentais e fundacionais que membros de um grupo sociocultural têm a respeito do mundo. Par-tindo desta abordagem, Geertz sustenta não só a impossibilidade, mas a desnecessidade metodoló-gica e epistemológica do antropólogo pretender se tornar um nativo. O esforço deste último deveria ir noutra direção, a qual seria precisamente a ten-tativa de encontrar um ponto de equilíbrio onde os pontos de vista nativos poderiam ser captados, capturados e seu universo de significados apreen-dido e interpretado.

Embora Eduardo Viveiros de Castro reconheça, tal como Geertz, que conceitos antropológicos “re-fletem uma certa relação de inteligibilidade entre as duas culturas [nativa e antropológica], e o que eles projetam são as duas culturas como seus pres-supostos imaginados” (CASTRO, 2002a, p.124), as proposições do primeiro recolocam, ou melhor, re-constroem a questão a partir de um outro nível de questionamento. Contrapondo-se à pretensão in-terpretativista de que o procedimento hermenêuti-co permitiria – ainda que não um acesso aos pontos de vista nativos em estado puro – ao menos um “resultado convincente”, um discurso plausível so-

bre o discurso e as práticas do outro, Castro (2002a, p.115) indaga: “o que acontece se recusarmos ao discurso do antropólogo sua vantagem estratégica sobre o discurso do nativo? [...] o que acontece se o tradutor decidir trair sua própria língua?”.

Em sintonia com a afirmação de Segato repro-duzida parágrafos atrás de que “compreender passa pela destruição do que quer ser compreendi-do”, Castro (Ibid., p.116) critica a suposição tácita subjacente (e recorrente) à prática antropológica de que “o conhecimento por parte do sujeito [o an-tropólogo observador] exige o desconhecimento por parte do objeto [o nativo observado]”.

Ao questionar a suposição de que este “observa-dor sorrateiro” deveria abrir mão da “posse emi-nente das razões que a razão do nativo desconhe-ce” (Ibid., p.116), a questão básica manifestada nas proposições geertzianas (a saber: se o ponto de vis-ta do observador alienígena poderia se ajustar ao ponto de vista êmico) passa a ser aqui deslocada. Isso ocorre não “porque o conceito nativo de ponto de vista não coincide com o conceito de ponto de vis-ta do nativo; e porque meu ponto de vista não pode ser o do nativo”, mas, sim, porque a relação do an-tropólogo com o ponto de vista nativo “envolve uma dimensão essencial de ficção, pois se trata de pôr em ressonância interna dois pontos de vista com-pletamente heterogêneos” (CASTRO, 2002, p.123).

A partir deste deslocamento reflexivo sobrevém o fato de que, antes de almejar se apropriar do pon-to de vista nativo, seria preciso direcionar o esforço etnográfico no sentido de buscar perceber, já de saí-da, qual seria o conceito de pontos de vista do outro, isto é, quais as referências conceituais que irão não só norteá-lo e informá-lo, mas também significá-lo. No encontro do nativo com o não-nativo, esquece-mos que, além de existirem dois diferentes pontos de vista sobre o mundo (o que inclui o sentido dado ao próprio evento “encontro”), este ato em si (ter pontos de vista sobre algo) supõe a existência sub-jacente de distintos sistemas de significados táci-tos, em alguma medida abstratos e que são defini-dos a partir de experiências passadas de ambos em seus respectivos universos sociais.

Eis aí justamente um dos elementos centrais que impede qualquer ambição de dominar por com-pleto o ponto de vista nativo. Visto que o passado não é repetível (como uma experiência de labora-tório, por exemplo), ou seja, como aquilo que foi vi-vido não pode ser replicado ou revivido tal e qual

14 Especificamente sobre a questão da relação esta-belecida entre os pontos de vista nativo e exótico (fami-liar e não familiar, dentro e fora, próximo e distante), as propostas elaboradas por Viveiros de Castro podem ser encontradas basicamente em três textos principais: “O Nativo Relativo” (2002); “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio” (1996) e uma coletânea sobre o autor organizada por Renato Sztutman junto com outros pesquisadores que inclui entrevistas e textos escritos pelo e sobre o autor (SZTUTMAN et al., 2008). Além destes, importante citar também o trabalho de Tânia Stolze Lima (1996), a qual tem agregado e compartilhado com Eduar-do Viveiros de Castro contribuições relevantes ao debate.

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 10: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

35

uma experiência passada (o que não quer dizer que esta não possa ser presentificada na forma de uma narrativa), todo um conjunto de pré-disposições, sensibilidades, expectativas e auto-interdições ja-mais poderá estar acessível ao olhar daquele que “chegou depois”.

Neste ponto, uma interpretação antropológica mais “convencional” tenderia a imaginar a nature-za como sendo percebida e apreendida a partir de diferentes pontos de vista. Em, suma, o que variaria seriam as pessoas, suas idiossincrasias e suas pers-pectivas sobre um mundo dado, sobre uma mesma natureza. O mesmo ocorre quando seguimos um ponto de vista “relativista”, visto que, como notou Gordon (2009, p.3) em seu prefácio à Invenção da cultura, de Roy Wagner (2010), também neste caso será “preciso estabelecer um ponto fixo em relação ao qual as coisas são relativas. No caso do relati-vismo cultural, o ponto fixo é a natureza. Só pode haver diferença no interior da cultura”.

Contudo, ao contrário do sistema compreensivo ocidental, para o qual só haveria uma realidade material, um único espaço físico, sobre o qual inci-dem diferentes pontos de vista (orientados segun-do diferentes “culturas”), um dos elementos chave para Viveiros de Castro é que, no pensamento de diversas etnias ameríndias, só há uma cultura. As-sim, só existiria uma forma de ver o mundo (um ponto de vista) e o que variaria seria o próprio mundo e não a forma de vê-lo. A partir desta in-versão do problema, a questão dos pontos de vista é reformulada pelo autor:

Qual é o ponto de vista dos índios sobre o ponto de vista? Não se trata de perguntar qual é o ponto de vista dos índios sobre o mundo, porque essa per-gunta já contém sua própria resposta. Ela supõe que o ponto de vista é uma coisa, o mundo uma outra, que o mundo é exterior ao ponto de vista e que é necessário que se deixe o mundo quieto (isto é, nas mãos dos cientistas duros) para fazer variar o ponto de vista (questão para os cientis-tas macios). É necessário ancorar o ponto de vista na realidade objetiva como um balão preso à ter-ra por um fio, isto é, para poder fazê-lo divagar, flutuar sem perigo de se perder no ar; o “mundo” é mais importante que todos os nossos pontos de vista “sobre” ele (SZTUTMAN et al., 2008, p. 109).

Ao se debruçar sobre esta espécie de divisão so-cial do trabalho científico (“cientistas duros” ficando encarregados de explicar o mundo material; “cien-

tistas macios” ficando com a tarefa de descrever as distintas perspectivas sobre este mesmo mundo), Viveiros de Castro utiliza como metáfora um com-passo, instrumento este que necessita de uma haste fixa (o mundo) para que o restante do compasso (as perspectivas) mova-se sobre si mesmo. Ocorre que, no pensamento ameríndio, a cultura é que cumpri-ria o papel de ponto fixo, existindo apenas uma cul-tura sobre a qual variam os corpos que incorporam esta cultura. No ponto onde as hastes se encontram é o momento “imediativo” da natureza e da cultura e, neste nível, ambos se encontram e não pode se di-zer o que é fixo (humano) e o que é móvel (natureza).

Segundo esta concepção, a realidade é real sem-pre para alguém. Como argumenta Lima (1996, p. 31), “seja um ser ou um acontecimento – e as evidências que minha análise permitirá destacar apontam para a não pertinência dessa distinção entre substância e acontecimento na cosmologia Jurun –, o que existe, existe para alguém”15. Deste modo, algumas frases utilizadas pelos Juruna em seu contato com Tania S. Lima (tais como: “o bi-cho virou onça para ele”, “choveu para mim” e “não choveu onde eu estava”) constituem, de fato, parte do procedimento de relacionar a haste variante do compasso (o mundo, a “onça”, a “chuva” etc.) à haste fixa (o ser, “ele”, “mim”, “eu”), o que faz com que até mesmo acontecimentos aparentemente (ao menos para os não nativos) independentes, contingentes e alheios à presença humana, segundo a cosmologia Juruna, sejam vinculados (segundo o ponto de vista do centro) para alguém.

De certo modo, se aceitarmos a proposição acima, nos aproximamos do caráter mágico e misterioso a que se refere Segato (1989) subjacente a este concei-to de ponto de vista. Porém, neste caso, o misterio-so (que, para cientistas mais “duros”, pode ser lido como falso, erro, ilusão, engano ou, então, ilógico, incoerente, absurdo e, para os mais “moles”, como irredutível, circunscrito, conjuntural e referente a uma dada cultura, seja ela Juruna, Araweté ou ou-tra qualquer) nos conduz a fazer outro tipo de per-gunta: então, a final, quem é este “alguém”, isto é, quem é a haste fixa em torno da qual giram coisas, acontecimentos, seres e entidades?

Na cosmologia de não poucas etnias ameríndias, por outro lado, o que é posto em dúvida é justamente a existência do eu, pois este será sempre relativo: afi-

15 Grifos da autora.

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 11: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

36

nal, quem seria o humano (a haste fixa) no momento em que, na floresta, uma onça encontra um Arawe-té? Quem seria “natureza” neste momento: a onça ou este último? Sobre tal possibilidade, comentam Sztutman et. al. (2008, p. 98): “nunca se tem certeza de quem se é, porque os outros podem ter uma idéia muito diferente sobre isso e conseguir impô-la a nós: a onça que encontrei na floresta tinha razão, era ela o humano, eu não era senão sua presa animal. Eu era uma anta ou um veado, talvez um porco”.

A nova síntese inaugurada por Viveiros de Cas-tro reside no fato de que os pontos de vista criam su-jeitos, distinguindo-se assim da concepção ociden-tal, para a qual o ponto de vista cria objetos. Como esta perspectiva só pode aparecer aos olhos dos outros, o ponto de vista é pura diferença, devendo assim ser pensado. Ao ser desejado pelo outro como uma perspectiva, o sujeito não seria aquele que se pensa como sujeito, mas aquele que é pensado como sujeito (SZTUTMAN et al., 2008 p.119). Em suma, de acordo com tal referencial, a ambiguidade natu-ral seria a regra, a certeza humana, a exceção, e a relação estabelecida entre ambas, algo sempre pre-viamente aberto e indefinido.

3 EXPERIÊNCIA DO PONTO DE VISTA E PONTO DE VISTA COMO EXPERIÊNCIA

Um afeto não pode ser controlado ou removido a não ser por um afeto mais forte. Nenhum afeto pode ser controlado pelo verdadeiro conhecimen-to do bem e do mal só porque esse conhecimento seja verdadeiro, porém somente na medida em que ele seja considerado um afeto. Espinosa (ano apud HIRSCHMAN, 1979, p. 28).

Como se pode ver, temos à frente diferentes modos de abordar a questão do (des)encontro en-tre pontos de vista distintos (ou mundos distin-tos, cosmologias distintas, realidades distintas, naturezas distintas e assim por diante). Tanto Goldman (2006a) como Castro (2002b) apontam para a impossibilidade de que o ponto de vista do pesquisador se transforme nos pontos de vista nativos. No máximo, estabelecemos uma ligação com estes últimos que envolve “uma dimensão de ficção, pois se trata de pôr em ressonância in-terna dois pontos de vista completamente hete-rogêneos” (op. cit., p.123). Ao que complementa-ríamos lembrando que tal ressonância se daria não entre dois, mas entre vários pontos de vista

heterogêneos, visto que, qualquer que seja o uni-verso social delimitado, há diversidade e alteri-dade internas.

De todo modo, a ideia central dentro do mains-tream antropológico é a de que a etnografia depen-deria, em alguma medida (seja ela qual for), de uma identificação – positiva na maioria das vezes, mas nem sempre, vide o famoso caso Capranza-no (1985)16 – do antropólogo com aquelas pessoas com quem escolheu interagir durante um período de tempo, possibilitando assim captar seu ponto de vista. Dentro deste pressuposto, o observador seria alguém com capacidade de apreender a re-alidade que os nativos não percebem claramente, visto que, ao contrário de interpretá-la, apenas a vivenciariam como experiência cotidiana.

Com Geertz (2007), este ponto de vista sobre o ponto de vista nativo levaria a necessidade do antropólogo procurar se colocar em um pon-to mediano, entre o fragmento concreto local (a experiência vivida) e o abstrato conceitual in-formado pelo fazer antropológico (a experiência traduzida), fechando assim o exercício do círculo hermenêutico. Contudo, vimos que Segato criti-ca tal intuito ao enfatizar que este procedimento de purificação (desencantamento da experiência e seu consequente reencantamento racionaliza-dor) elimina, como questão antropológica, o ca-ráter imponderável e intraduzível contido no ato mesmo de experienciar uma relação.

Neste ponto Segato (1989), ao ressaltar a neces-sidade de se “recuperar a dimensão da experiência em si”, se aproxima de Goldman (2006b) quando este incita o etnógrafo a partir para um “mergulho sem reservas” no imaginário nativo, levando este a sério ao ponto de enfrentar a magia e o misté-rio que o cerca sem buscar substituí-los por uma explicação razoável (ainda que provisória ou rela-tiva). Quando a primeira comenta que, no caso de um ritual ou experiência mística, quem está dele participando precisaria deixar ser por ele captura-do, não está longe da argumentação de Goldman (2006b; 2004) quando este desafia o antropólogo a adotar uma intenção declarada de, vivendo junto com seus interlocutores, se deixar ser afetado pelo ponto de vista daqueles com quem convive.

16 O referido autor decidiu conviver, em uma pequena localidade da África do Sul, com africaners em relação os quais, segundo ele próprio, não sentia inicialmente qualquer tipo de simpatia ou afinidade.

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 12: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

37

Já o perspectivismo de Viveiros de Castro coloca a questão de outro modo: não se trata de pretendermos nos colocar “no lugar” do nativo com os quais convive-mos ou mesmo de traduzi-lo, mas, sim, de perceber o que este último entende por “lugar”: quem é e o que é colocado onde e por quem? Tendo em vista que, em certo momento, o sujeito (o humano) com quem nos relacionamos poderá ser uma pessoa, uma onça, uma árvore, um ancestral, levar às últimas consequências tal possibilidade tende a esvaziar de sentido, em larga medida, separações ontológicas ocidentais tais como sujeito/objeto, natureza/cultura, local/global, natural/sobrenatural. Como neste caso o ponto de vista cria o próprio sujeito (e não o contrário), deslocando o ponto fixo tradicionalmente presente na análise antropoló-gica, a própria ideia de “nativo” perde centralidade.

Sobre este aspecto específico, é já conhecida a in-versão à provocação de Gertz acerca do fato de que seríamos “todos nativos” feita por Roy Wagner (2010) quando este afirma sermos “todos antropólogos”. Na mesma direção, comenta Castro (2004), “fazer antro-pologia é comparar antropologias, nada mais nada menos”. Mas tal procedimento não significa de modo algum um artifício retórico, fato este muito bem per-cebido por Gordon (2009) em seus comentários acer-ca da inversão proposta por Roy Wagner:

a suposição de que “somos todos nativos” signifi-ca isto : “nós”, antropólogos , também somos na-tivos. É uma afirmação que recai sobre o Mesmo. A ideia de Wagner, “somos todos antropólogos”, ao contrário, recai sobre o Outro. Ela quer dizer: “eles”, os nativos, também são antropólogos. Os pós-modernos proclamavam a condição nativa do antropólogo, embora pareçam claramente estar pensando: somos nativos, tudo bem, mas somos mais alguma coisa. Wagner, ao proclamar a condição antropológica do nativo, sugere uma implicação mais interessante: eles são antropólo-gos, mas não são apenas isso. (GORDON, 2009).

Tal mudança de perspectiva permite deslocar o foco da prática antropológica baseado na tra-dicional distinção entre “nós e eles” (ou “eu e o outro”) para pensar o que haveria “entre” ambos, o que, por sua vez, traz à tona a dimensão “re-lacional” também trabalhada por Castro (2002). Como novamente argumenta Gordon (2009, p. 2) “não há entendimento antropológico que não seja imediatamente uma relação entre duas ‘entida-des’ equivalentes: a ‘cultura’ do nativo e a ‘cultu-ra’ do antropólogo”.

É neste sentido que ganha relevância a noção de “experiência” tal como trabalhada por Goldman (2006b), o qual propõe pensá-la não como um even-to ou fato passado que termina por ser traduzido, etnografado ou analisado, mas, sim, como a pró-pria relação, isto é, o “entre” vivido por “nós e eles” ou por “eu e os outros”. Ao pensarmos dificuldades relacionadas ao trabalho antropológico a partir deste tipo de divisão, estaremos aceitando um tipo de paradoxo tal como foi descrito por Gregory Ba-teson e comentado por Goldman (2006b, p. 166): um double blind, “espécie de armadilha em que so-mos apanhados quando nos defrontamos com in-junções conflitantes que não nos deixam margem de manobra porque ‘não importa o que se faça, não se pode vencer”.

Sobre tal encruzilhada, este último comenta que a única saída para dela escapar seria “recusar os próprios termos em que a falsa alternativa nos é colocada, ou seja, recusar as regras daquele jogo, substituí-las por outras” (GOLDMAN, 2006b, p. 166). Tal procedimento inicia justamente pelo questionamento dos termos em que se daria a des-crição de uma experiência. Ao partir da distinção “nós” e “eles” ou, então, da separação de um “an-tes” e um “depois” de uma experiência marcante (por exemplo, o caso vivido por Goldman duran-te um ritual fúnebre em Ilhéus17), somos levados

17 Em 1998 este antropólogo, depois de transportar em seu carro objetos rituais de uma filha-de-santo que havia falecido até o lugar onde seriam “despachados”, no momento do “despacho” escutou tambores tocando ao longe. Sobre o evento, Goldman (2006b, p. 165) comenta ter primeiro imaginado “serem atabaques, depois algum ensaio de algum bloco afro ou coisa parecida”. Porém, depois de retornar ao terreiro, ao conversar com um dos filhos da mãe-de-santo, este lhe contou que “em 1994, por ocasião de um ritual relativo aos 21 anos de morte de sua avó (antiga e famosa mãe-de-santo daquele mesmo terreiro), ele levara um despacho exatamente no mesmo lugar de onde eu acabava de voltar. De repente, ele dis-se, começou ‘a ouvir os atabaques tocarem’, perguntando então aos demais se havia algum terreiro de candomblé por lá, ao que todos responderam que não. De volta ao terreiro, narrou o ocorrido a sua mãe e a outras pessoas mais velhas, que ficaram muito contentes já que o fato dos atabaques tocarem é um bom sinal, pois significa que os mortos estão aceitando receber em paz o espíri-to ou a oferenda em jogo. Senti então um leve arrepio e disse a meu amigo que eu também ouvira atabaques tocarem; ele não fez nenhum comentário e mudou de as-sunto. Percebi, então, que os tambores que ouvira não eram deste mundo”.

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 13: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

38

a, tal como alertou Segato, fazer desaparecer (ou então, fazer aparecer na forma de uma ex-plicação lógica) aqueles momentos em que nos esquecemos que somos antropólogos e simples-mente vivemos com determinadas pessoas.

Se no mundo da razão somos poderosos (pois o controle está em nossas mãos), no mundo mágico geralmente nos sentimos confortáveis, pois justamente neste caso não precisamos ou mesmo desejamos tal controle. Já o ato de ex-perienciar implica em alguma medida abrir a guarda e sair de si, sair do próprio pensamen-to para entrar na pragmática da prática. Daí a necessidade de se dar a chance (se colocar na posição) de nos desarmar e enfrentar o perigo transformador do mistério, da contingência, do desconhecido e do estar com os outros sem buscar defini-los ou substituí-los por uma ex-plicação lógica.

Assim, se tomarmos, por exemplo, um efei-to sonoro como o que se conhece por “ruído”, temos toda a liberdade de escutá-lo como ba-rulho, como música ou mesmo como sendo as duas coisas (ruído e música) ao mesmo tempo. O mesmo ocorre no caso clássico trazido por Goldman acerca dos “tambores” por ele ouvidos em Ilhéus: seriam tambores do “além”, tocados “pelos vivos” ou ambos os casos. A questão que se interpõe aqui ao etnógrafo é, dirá este últi-mo: diante deste tipo de doble blind, e se não aceitarmos a imposição da dúvida? E se imagi-narmos uma outra alternativa, ou melhor, um outro modo de pensar a questão que escape do “ou/e isto ou/e aquilo”?

Em última instância, se trata de privilegiar o tempo da travessia dando status heurístico ao próprio mistério que a envolve. Contudo, ao contrário de ser encaixado em algum tipo de explicação racionalizante – seja ela mais “rea-lista-objetivista” ou mais “idealista-teológica” (GOLDMAN, 2006b) –, pensar o “entre” signi-fica dar espaço para o ainda não imaginado ou, segundo Goldman, para o “devir”. Neste caso, o mágico, o misterioso, o inexplicável funciona-riam como uma espécie de combustível a ten-sionar a imaginação antropológica. Ao contrá-rio de pretender se colocar no lugar do outro, seria preciso deixar-se ser afetado pela relação entre “eu e os outros” em seu duplo sentido, isto é, sendo impactado pela experiência mú-

tua e, igualmente, tocado e sensibilizado por ela ao ponto disto levar a algum tipo de “trans-formação” criativa. Como comenta Gordon:

[...] trata-se de entender o ‘outro’ não apenas como diferente, mas, sobretudo, como possi-bilidade de alteração. A diferença existe sim, mas ela não está onde usualmente a coloca-mos. Ou, melhor ainda, a diferença não pode ser localizável. Não há diferença em lugar nenhum porque a diferença é um devir – um diferir. Ela não está na cultura A ou na cul-tura B, mas sempre entre A e B. (GORDON, 2009, p. 3).

Como percebeu Goldman (2006b) sobre o modus operandi de muitos antropólogos, há entre estes “uma tendência a subordinar as práticas e ideias muito concretas com que se defrontam no campo a princípios gerais que su-postamente serviriam para dar conta do que é observado”. Daí a prática comum de “localizar” a diferença, comentada por Gordon ou, como sugere Goldman (2006b), de “literalizar” dinâ-micas e “experiências sociais sempre múltiplas e polifônicas”.

Sobre tal procedimento, este último (2006b) argumenta que fixar pontos absolutos desvin-culando-os de seus contextos pragmáticos (por exemplo, como alerta Gordon, tratar “cultura a” e “cultura b” como substâncias e não como diferenças que só existem na relação, ou seja, “entre”) leva ou à simples eliminação das inú-meras ambiguidades e idiossincrasias aí ope-rantes ou a sua purificação racionalizadora. Como consequência, “cultura a” e “cultura b” funcionariam como meras “unidades de medi-da” - para citar novamente Deleuze e Guattari (2000) - adotadas para reduzir um fluxo in-quantificável de afetos, eventos, desejos e su-jeitos à dinâmica estática de um reservatório fechado de “categorias analíticas”.

Voltando à noção de experiência, tal como trabalhada por Goldman (2006b), esta implica pensar e mesmo reagir a “alteridade” estando sempre “se interrogando [...] até onde somos capazes de suportar a palavra nativa [...], de promover nossa própria transformação a par-tir dessas experiências”. Tal opção interpõe a questão do devir como fluxo onde o sujeito sai

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 14: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

39

da sua própria condição por meio de uma rela-ção de afetos (espécie de afeição sempre tensa e turbulenta) que, por sua vez, o leva a esta-belecer uma condição outra. Como na epígrafe de Espinosa que abre este tópico, se trata de substituir um tipo de afeto (racionalizador) por outro (transformador) mais forte. Para tanto, é imprescindível que deixemos de pensar o co-nhecimento e o fazer etnográfico como método, passando a tratá-lo também como um tipo es-pecífico de afeto ou, nos termos de Hirschman (1979), de paixão.

Sob tal perspectiva, um indivíduo antropo-logicamente etiquetado como masculino pode-rá se ver atravessado por devires múltiplos e aparentemente contraditórios como um devir feminino coexistindo com um devir criança ou um devir animal. Sobre tal possibilidade, como comentam Deleuze e Guattari:

[...] devires-animais não são sonhos nem fan-tasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Pois se o devir animal não consiste em se fazer de animal ou imitá--lo, é evidente também que o homem não se torna “realmente” animal, como tampouco o animal se torna “realmente” outra coisa. O de-vir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supos-tamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. O devir pode e deve ser qualificado como devir-animal sem ter um termo que se-ria o animal que se tornou. O devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir ou-tro do animal é real sem que esse outro seja real. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.18).

A questão que emerge na análise acima é que não basta pretender tornar-se nativo, pensar como nativo ou interpretar o nativo, ao contrário, a afeição turbulenta, tensa e trans-formadora vivida como travessia (o “entre”) permitiria levar aquele que a vivencia a situa-ções em que o intelecto se encontra despreve-nido, fazendo disto não objeto de interpretação transcendente (ou não só ao menos), mas res-peitando-a como relevante por si mesma (daí seu caráter imanente). Ao invés de “traduzir o que foi dito pelo ato (texto) para esquecer o

próprio ato” (Segato, 1989, p.56), a ideia é dei-xar ser afetado até as últimas consequências pelas mesmas forças que afetam nossos inter-locutores sem necessariamente se colocar no seu lugar ou estabelecer uma relação de em-patia (FAVRET-SAADA, 2005). Nas palavras de Goldman (2006a), devir seria o movimento “segundo o qual um sujeito sai de sua própria condição por meio de uma relação de afetos que consegue estabelecer com uma condição outra. [...] um devir-cavalo, por exemplo, não significa que eu me torne um cavalo ou que me identifique psicologicamente com o animal: significa que “o que acontece com o cavalo pode acontecer a mim”.

Neste sentido, também perde relevância a necessidade de uma completa identifica-ção com o ponto de vista do outro, pois o que mais interessa, neste caso, é correr o risco de “tomar parte nos jogos nativos” (GOLDMAN, 2006b, p.170). De fato, como ironiza Goldman (2006a), “a ideia de uma identificação total do etnógrafo com seus nativos parece ser uma dessas figuras muito evocadas e jamais vis-tas na história” da antropologia. Sem contar, como salienta Wolfe (1997 apud CARVALHO, 2002, p. 5), que nosso conhecimento sobre aqueles com quem nos relacionamos “nunca pode ser inocente. Está por demais enfro-nhado numa relação histórica da qual nosso poder é o despoderamento do outro”. Aliás, mesmo a pretensão de traduzir uma “experi-ência” como uma “experiência pessoal” pode ser colocada em questão, afinal, se seguirmos o perspectivismo ameríndio, estar no meio da floresta com uma onça que lhe vê como um javali, por exemplo, seria uma experiência “pessoal” para quem?

Tal modo de pensar a relação antropólogo / nativos amplifica o campo não só dos significa-dos envolvidos, mas, sobretudo, contribui para prolongar seus efeitos. Como o conceito de res-sonância na teoria musical, a possibilidade de experimentar repercute para além do momen-to vivido, intensificando e enriquecendo vibra-ções suplementares cujas conexões jamais po-derão ser medidas, traduzidas ou descritas em sua completude. Ficar atento a estes devires, eis uma prática que nos parece interessante de ser seguida em termos antropológicos.

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.

Page 15: Alguns pontos de vista antropológicos sobre a relação ... · trabalho realizado para a disciplina “Antropologia do Mundo Rural”, sob responsabilidade do professor José

40

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Dom Quixote. 2010.

AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press, 1962.

BATESON, G. Todo escolar sabe... In: Espíritu y natu-raleza. Buenos Aires: Amorrortu, 2002, cap. 2, 35-79.

BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. 206 p.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, 2002. v. 8, n.1, p. 113-147.

______. Os pronomes cosmológicos e o perspecti-vismo ameríndio. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, Out. 1996. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93131996000200005&script=sci_arttex>. Acesso em: 21 dez. 2011.

OLIVEIRA, Luís Roberto Cardoso de. “Pesquisas em versus pesquisas com seres humanos” In: Antropo-logia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: ABA/EDUFF, 2004. p. 33-44.

SOUZA, José Otávio Catafesto de. Aos “fantas-mas das brenhas”: etnografia, invisibilidade e etni-cidade de alteridades originárias no sul do Brasil (Rio Grande do Sul). Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999.

CRAPANZANO, Vincent. Waiting: the whites of South Africa. New York: Random House, 1985.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: ca-pitalismo e esquizofrenia. São Paulo: 34, 1997. (Co-leção Trans).

FRAVET-SAADA, de Jeanne. Ser afetado. Cadernos de Campo, Rio de Janeiro, n.13, p.155-161, 2005.

GEERTZ, Clifford. “A Ideologia como sistema cultural”. In: GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

______. Desde el punto de vista del nativo: so-bre la naturaleza del conocimiento antropo-lógico. In: GEERTZ, Clifford. Conocimiento local ensayos sobre la interpretacion de las culturas. Bar-celona: Ediciones Paidos, 1994.

______. O saber local: novos ensaios em antropo-logia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2007.

GOLDMAN, Marcio. Antropologia da política e teo-ria etnográfica da democracia. In: Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006a, p. 23-51.

GOLDMAN, Marcio. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e po-lítica em Ilhéus, Bahia. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 46, n.2, 2003.

GOLDMAN, Marcio. Como funciona a democra-cia: uma teoria etnográfica da política. Rio de Janei-ro: 7 Letras, 2006a.

GORDON, Flávio. Roy Wagner: antropologia ima-nentista e diferença selvagem. Campinas: Unicamp, 2009. In: WAGNER, Roy. Antropologia imanista e diferença selvagem. Disponível em:<http://pp-gas2004.br.tripod.com/roy.html>. Acesso em: 20 dez. 2011.

HIRSCHMAN, Albert. As paixões e os interesses: argumentos políticos para o capitalismo antes de seu triunfo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

LEEUWIS, C.; VAN DEN BAN, A (Ed.). Communica-tion for rural innovation: rethinking agricultural ex-tension. Wiley, 2013. Disponível em: < http://books.google.com.br/books?id=Eppom7NVmvMC>. Acesso em: 20 dez. 2011.

LIMA, Tânia Stolze. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, Out. 1996. p. 21-47. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/mana/v2n2/v2n2a02.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2011.

MALINOWSKI, Bronislaw. Um diário no sentido es-trito do termo. Rio de janeiro: Record 1997.

SEGATO, Rita Laura. Um paradoxo do relativis-mo: o discurso racional da antropologia frente ao sagrado. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1989. 48 p. (Série Antropologia, n. 86).

SZTUTMAN, Renato et al. (Org.). Eduardo Vivei-ros de Castro. Rio de Janeiro: Azougue, 2008. (En-contros).

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

REFERÊNCIAS

Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 6, n. 1/2, p. 26-40, jan./nov., 2013.