alice quintela lopes oliveira

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A EXPANSÃO PENAL E O DIREITO DE INTERVENÇÃO Alice Quintela Lopes Oliveira RESUMO A sociedade pós-moderna rege-se por uma ordem sócio-econômica globalizada. A revolução tecnológica revela que o processo globalizacional apresenta-se de forma inevitável e impostergável, propiciando mudanças de ordem ideológica, científica, tecnológica e, sobretudo, econômica, além de promover uma complexidade social dantes inimaginável. Esta nova realidade, designada por Ulrich Beck de “sociedade de risco” 1 , apresenta características bastante peculiares, vez que os riscos sociais são imprevisíveis, indesejados e de tal envergadura lesiva que coloca em perigo a própria humanidade. Conclamado a atuar diante destes novos riscos, o direito penal vem sofrendo um processo de expansão de suas bases e estruturas que acaba por gerar vigorosa tensão com a concepção programática do modelo penal forjado no Estado Liberal – chamando de direito penal clássico ou direito penal mínimo – que engloba proposta pautada pela vocação garantista e restritiva da intervenção penal, nos limites dos axiomas da subsidiariedade e da ultima ratio. O presente artigo analisará as características deste movimento expansionista, confrontando-o com a concepção clássica do direito penal, bem como abordará a proposta apresentada pela Escola de Frankfurt, referente à criação de um direito de intervenção. PALAVRAS CHAVES SOCIEDADE DE RISCO; EXPANSÃO PENAL X DIREITO PENAL CLÁSSICO; DIREITO DE INTERVENÇÃO Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas e mestranda em Direito Público pela mesma Universidade. 1 BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro; Daniel Jiménez; Maria Rosa Borras. Madri: Paidós, 1998. 5039

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  • A EXPANSO PENAL E O DIREITO DE INTERVENO

    Alice Quintela Lopes Oliveira

    RESUMO

    A sociedade ps-moderna rege-se por uma ordem scio-econmica globalizada. A

    revoluo tecnolgica revela que o processo globalizacional apresenta-se de forma

    inevitvel e impostergvel, propiciando mudanas de ordem ideolgica, cientfica,

    tecnolgica e, sobretudo, econmica, alm de promover uma complexidade social

    dantes inimaginvel.

    Esta nova realidade, designada por Ulrich Beck de sociedade de risco1, apresenta

    caractersticas bastante peculiares, vez que os riscos sociais so imprevisveis,

    indesejados e de tal envergadura lesiva que coloca em perigo a prpria humanidade.

    Conclamado a atuar diante destes novos riscos, o direito penal vem sofrendo um

    processo de expanso de suas bases e estruturas que acaba por gerar vigorosa tenso

    com a concepo programtica do modelo penal forjado no Estado Liberal chamando

    de direito penal clssico ou direito penal mnimo que engloba proposta pautada pela

    vocao garantista e restritiva da interveno penal, nos limites dos axiomas da

    subsidiariedade e da ultima ratio.

    O presente artigo analisar as caractersticas deste movimento expansionista,

    confrontando-o com a concepo clssica do direito penal, bem como abordar a

    proposta apresentada pela Escola de Frankfurt, referente criao de um direito de

    interveno.

    PALAVRAS CHAVES

    SOCIEDADE DE RISCO; EXPANSO PENAL X DIREITO PENAL CLSSICO;

    DIREITO DE INTERVENO

    Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas e mestranda em Direito Pblico pela mesma Universidade. 1 BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro; Daniel Jimnez; Maria Rosa Borras. Madri: Paids, 1998.

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  • RSUM

    La socit post-moderne est dirig par une ordre economique globalis. La revolution

    tecnologique montre que le process de la globalization nest pas vitable ou reportable

    et provoque changemant ideologique, cientifique et, surtout, economique.

    Cette nouvelle realit, appell la socit du risque par Ulrich Beck, prsente

    caractristiques trs particulieres, dj que les risques sociales ne sont pas prvisibles et

    peuvent poser en danger toute la humanit.

    cause de ces risques, le droit pnale souffre un process dextension de ses

    fondements causant une tension avec le modle pnale classique, dintervention

    minimaliste.

    Cette article analysera les caractristiques de cette mouvement expansioniste et le

    comparera avec le droit pnale classique et ses bases et fondements. Bien sure, cette

    article abordera la propos prsent par lcole du Frankfurt, concernant a la cration

    dune droit dintervention.

    MOTS CLS

    SOCIT DU RISQUE; LA EXPANSION PNALE X DROIT PNALE

    CLASSIQUE; DROIT DINTERVENTION

    INTRODUO

    O final do sculo XX e o incio do sculo XXI exibem, de maneira mais

    veemente, uma nova forma de poder hegemnico: a globalizao. Considerada uma

    modalidade de poder sedutora por suas caractersticas, porm devastadora em suas

    conseqncias, a globalizao, cognominada por Zaffaroni de poder planetrio2,

    destaca-se em trs momentos marcantes da histria da humanidade: a revoluo

    mercantil ou colonialismo, nos sculos XV e XVI, a revoluo industrial e o

    neocolonialismo, nos sculos XVIII, XIX e XX e, por fim, a revoluo tecnolgica ou

    globalizao em sentido estrito, no sculo XX.

    2 Manual de direito penal brasileiro: parte geral. So Paulo: RT, 1997.

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  • O fenmeno da globalizao marca o perodo ps-industrial, designado por

    Ulrich Beck de sociedade de risco,3 regida por um conceito de modernizao

    reflexiva que, longe de significar uma violenta ruptura do processo de desenvolvimento

    industrial, significa a evoluo da modernidade simples, irreflexiva e auto-destrutiva,

    em direo racionalidade que possibilite a compatibilizao dos riscos s garantias

    individuais e coletivas.4

    A sociedade industrial caracterizada pela ignorncia, pelo desconhecimento

    popular acerca da existncia de riscos scio-ambientais. Apesar de srios, graves e de

    dimenses globais, originados pelo processo de desenvolvimento tecnolgico

    impensado, irracional e imediatista, no constituam objeto de preocupao pela

    coletividade.

    Da porque fcil entender que apenas nesta fase de transio a constelao de

    problemas vem tona e passa a ser percebida, despontando como novel objeto de

    preocupao pblica, poltica e cientfica, ocasio em que a sociedade industrial,

    alarmada com os efeitos colaterais do processo produtivo, de carter predatrio e

    irracional, compelida a rever seus princpios de segurana e clculo da ponderao

    custo e benefcio.

    A teoria da sociedade de risco nasce, pois, com a percepo social dos riscos

    tecnolgicos globais, refletindo a mudana da estrutura da sociedade e, ao mesmo

    tempo, o conhecimento da modernidade e de suas conseqncias.

    A sociedade de risco identifica-se por uma comunidade na qual os riscos

    produzidos referem-se a danos de larga envergadura lesiva, no delimitveis, globais,

    sistemticos e, com freqncia, irreparveis. Promovidos por decises humanas, atinge

    a todos os cidados e podem ser capazes de exterminar a prpria humanidade.5

    Esses riscos possuem suas causas e origens em decises e comportamentos

    humanos produzidos durante a manipulao dos avanos tecnolgicos, ligados

    explorao e manejo de novas tecnologias (energia nuclear, engenharia gentica e de

    alimentos, produtos qumicos etc). Por serem efeitos secundrios, acidentais do

    3 La sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro; Daniel Jimnez; Maria Rosa Borras. Madri: Paids, 1998. 4 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal. So Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 29. 5 La sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro; Daniel Jimnez; Maria Rosa Borras. Madri: Paids, 1998, p. 28.

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  • processo de produo, os riscos da ps-modernidade so indesejados, imprevistos,

    sistemticos e irreversveis, permanecendo invisveis por muito tempo.6

    Atento s mudanas ocorridas, e ao incremento do medo na populao, o direito

    penal transmudou-se, mitigando certas garantias clssicas a fim de dar uma resposta

    sociedade. Instituiu-se, deste modo, o direito penal do risco, tema sobre o qual nos

    debruaremos no tpico seguinte.

    1. DO DIREITO PENAL DO RISCO

    O direito penal do risco reflete a mudana do modo de compreender o direito

    penal e de agir dentro dele, produto estrutural e irreversvel de uma poca, cujo ponto de

    partida j fato dado, encerrando tanto oportunidades como riscos.7

    O direito penal transforma-se em direito penal do risco quando coloca a criao

    ou o aumento dos riscos no centro das reflexes dogmticas promovendo a mitigao

    das regras de imputabilidade, bem como quando toma para si a funo de tornar segura

    a sociedade.8 Concentra-se na chamada criminalidade organizada9, materializada nas

    infraes penais perpetradas pelos poderosos e caracterizada pela magnitude de seus

    efeitos, normalmente econmicos, mas igualmente polticos e sociais.10

    Na tentativa de se moldar novel sociedade de risco, a dogmtica penal e a

    poltica criminal passam a admitir novos candidatos no crculo de bens jurdicos; a

    antecipar a fronteira entre o comportamento punvel e no-punvel; a reduzir as

    exigncias de censurabilidade; a flexibilizar os critrios de imputao etc.

    Rejeita-se, deste modo, o modelo de direito penal de resultado, que atua

    repressivamente, aps a conformao do dano, sendo mais conveniente a este modelo

    criminal, a antecipao da proteo penal a esferas anteriores ao dano e ao prprio

    perigo concreto, em certos casos.

    6 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econmico como direito penal do perigo. So Paulo: RT, 2006, p. 39. 7 PRITTWITZ, Cornelius. O Direito Penal entre o Direito Penal do Risco e o Direito Penal do Inimigo. Revista Brasileira de Cincias Criminais. So Paulo: RT, n 47, mar/abr. 2004, p. 32. 8 Idem, p. 38. 9 Identificada por Hassemer em oposio criminalidade de massa (cujas condutas ofendem bens jurdicos individuais, v.g. delitos patrimoniais). Segurana Pblica no Estado de Direito. Revista Brasileira de Cincias Criminais. So Paulo: RT, n 05, jan./mar. 1994, p. 57. 10 SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. A expanso do direito penal. Trad. Luiz Otvio de Oliveira Rocha. So Paulo: RT, 2002, p. 80.

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  • Neste diapaso, o direito penal assume mltiplas caractersticas e valores, que

    sero objeto de apreciao nos tpicos subseqentes.

    1.1. Da antecipao da tutela penal atravs da definio legal dos crimes de perigo

    abstrato e dos delitos de acumulao

    Considerando que a misso primordial do direito penal prevenir a prtica de

    infraes penais com a finalidade exclusiva de proteo subsidiria e fragmentria de

    bens jurdicos relevantes, a interveno penal, via de regra, empregada como meio de

    punio de condutas que efetivamente venham a lesionar o bem jurdico tutelado pela

    norma penal incriminadora.

    No entanto, por vezes, surgem determinadas circunstncias de extrema

    gravidade a bem jurdico de primeira grandeza que demandam proteo especial mais

    abrangente, exigindo a antecipao da tutela do bem jurdico, de modo a evitar qualquer

    possibilidade de desdobramento progressivo capaz de converter um perigo em um dano

    efetivo e irreversvel ao bem jurdico.

    Nestes casos, o legislador utiliza-se da criao de tipos legais de crime de perigo

    que consiste numa tcnica destinada a atribuir a qualidade de crime a determinadas

    condutas independentemente da efetiva produo de um resultado lesivo, bastando, para

    a consumao delitiva, a mera ocorrncia de risco ao bem jurdico tutelado,

    concentrando a reprovao social no desvalor da ao. Representa a antecipao da

    proteo penal a momentos anteriores efetiva leso ao bem, dividindo-se em tipos de

    perigo concreto e tipos de perigo abstrato.

    Os tipos penais de perigo concreto ostentam, na prpria descrio tpica, a

    meno ocorrncia do perigo, que dever ser averiguado e demonstrado em cada caso

    posto apreciao. Coadunam-se com a dogmtica penal clssica uma vez que

    demonstram com clarividncia o desvalor da conduta e o desvalor do resultado,

    materializado na concreta colocao em perigo do bem. Embora no se solidifique em

    alteraes fticas, reais, sensveis ao bem jurdico, deve efetivamente produzir o

    resultado objetivo de pr em perigo o bem tutelado.

    Trata-se de uma anlise sob uma perspectiva ex post, isto , consideram-se as

    circunstncias reais do fato, avaliadas aps a sua ocorrncia, impondo ao rgo

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  • acusatrio a obrigao de comprovar no processo penal a presena real do perigo a

    ameaar o bem jurdico.

    Problemas exsurgem, no entanto, quando se perquire acerca da legitimidade dos

    tipos de perigo abstrato.

    Os tipos de perigo abstrato tm por objeto condutas que no se definem em

    virtude de determinada conseqncia, castigando a simples realizao de uma conduta

    imaginadamente perigosa, prescindindo da configurao de um efetivo perigo ao bem

    jurdico.11

    A periculosidade da conduta tpica imaginada ex ante, por meio de um juzo

    hipottico do legislador, fundado na mera probabilidade de leso. No h que se

    perquirir, no caso concreto, acerca da ocorrncia ou no do perigo, vale dizer, da efetiva

    probabilidade de leso. Basta comprovar a execuo da conduta reputada perigosa.

    Ao contrrio do que ocorre com o delito de perigo concreto, o perigo posto ao

    bem jurdico no se encontra estampado de forma explcita no tipo legal de perigo

    abstrato, o qual se limita a definir uma conduta cuja periculosidade presumida de

    modo absoluto pelo legislador.

    Na sociedade de risco, a proliferao dos tipos de perigo abstrato, geralmente

    combinados com normas penais em branco, inclui-se na estratgia de utilizao de

    incriminaes de mera conduta a fim de coibir os ataques aos bens jurdicos supra-

    individuais, reduzindo-se os espaos de risco permitido.

    Os delitos de perigo abstrato, vezes muitas, desvelam-se como delitos por

    acumulao, expresso cunhada por Lothar Kuhlen.12 Por necessidades de poltica

    criminal, o legislador incrimina uma conduta que, individualmente considerada, no

    provoca um risco ao bem jurdico, mas, se vier a ser praticada por um conjunto de

    pessoas, culminar lesionando efetivamente esse bem.13

    Refora-se, portanto, a pretenso de maximizao da preveno aos mega-riscos

    produzidos na sociedade ps-industrial, otimizando, inclusive, a sensao de segurana

    da populao, que demanda, cada vez mais, por direito penal.

    11 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal. So Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 130. 12 Apud SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. A expanso do direito penal. Trad. Luiz Otvio de Oliveira Rocha. So Paulo: RT, 2002, p. 121. 13 Idem, Ibidem.

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  • Dentro de uma perspectiva funcionalista, os institutos de direito penal devem ser

    aptos a cumprir, manter e reproduzir as premissas, finalidades e princpios do Estado

    Democrtico de Direito, legitimando-se a interveno punitiva do Estado apenas

    queles atos que ameacem a integridade das estruturas sobre as quais as relaes sociais

    e as relaes de produo se sedimentam.14

    De fato, os delitos de perigo abstrato expressam uma violao manifesta ao

    princpio da ofensividade15, entendido este como uma novel forma de compreender ou

    conceber o delito como ofensa a um bem jurdico. A ofensa materializa-se na leso ou

    ameaa concreta de leso ao bem jurdico, afastando, de pronto, aquelas condutas que

    no se mostrem concretamente perigosas ao bem.

    Tendo em vista que o sistema penal brasileiro adota os princpios de poltica

    criminal da lesividade, subsidiariedade, fragmentariedade, amparados implicitamente

    pela Constituio da Repblica, os delitos de perigo abstrato devem ser interpretados

    luz destas balizas.

    sabido que no crime de perigo abstrato o legislador incrimina uma

    determinada conduta cuja periculosidade to manifesta que dispensa prova no caso

    concreto. Ao ser realizada concretamente a conduta selecionada pelo legislador como

    tipo de perigo abstrato, o perigo ocorre simultaneamente sua concretizao, no

    havendo que se perquirir acerca da sua existncia ou no.

    Trata-se, de fato, de uma presuno. Dada a magnitude do bem tutelado e a

    irreversibilidade do dano, o legislador presume que o perigo ocorre com a mera

    realizao ftica da ao ou omisso descrita no modelo penal. Contudo, questiona-se a

    natureza da presuno se absoluta ou relativa?

    Dentro de uma perspectiva garantista, hospedada em postulados poltico-

    criminais de um Estado Democrtico de Direito, imperioso concluir pelo

    reconhecimento da presuno relativa ou presuno juris tantum, possibilitando-se ao

    acusado a realizao da contra-prova, isto , faculta-se ao ru a demonstrao, de que

    aquele fato, naquele caso concreto, no gerou qualquer perigo ao bem jurdico.

    14 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princpio da precauo, direito penal e sociedade de risco. Revista Brasileira de Cincias Criminais. So Paulo: RT, n 61, jul./ago. 2006, p. 71. 15 Luiz Flvio Gomes prefere a expresso ofensividade expresso lesividade, justificando que esta se encontraria compreendida naquela. Princpio da ofensividade no direito penal. So Paulo: RT, 2002, p. 11.

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  • E no se argumente que se est a inverter o nus da prova, uma vez que, por se

    cuidar de presuno, o rgo acusatrio, ao fazer prova de que a ao descrita no tipo

    penal materializou-se no mundo fsico, est a provar que o perigo est nsito

    realizao desta conduta, interligado ela, inseparvel dela. Portanto, no se trata de

    inverso do nus da prova, pois o Ministrio Publico se desincumbiu de seu mister ao

    provar a ocorrncia da conduta.

    Neste sentido se posiciona Miguel Reale Jnior, arrimando-se em ngela Ilha da

    Silva: (...) o perigo deve estar nsito na conduta, segundo o revelado pela experincia, e no ser considerado presumido pelo legislador, mas adotando a sinonmia abstrato ou presumido, pois entendo que o perigo presumido no sentido de que pode haver prova em contrrio da inexistncia do perigo, dando-se uma presuno iuris tantum, sujeita a prova em contrrio, pois s dessa forma se adequa a figura do perigo abstrato exigncia da ofensividade, dentro de um direito penal garantista, quando se expande a criao de figuras de perigo abstrato na proteo de bens jurdicos universais, como o meio ambiente.16

    1.2. Da administrativizao do direito penal

    Em matria de meio ambiente e ordem econmica, onde o controle

    administrativo sobre as atividades dos particulares revela-se mais intensa, os crimes de

    perigo, dantes estudados, so utilizados de forma subsidiria, para suprir lacunas

    deixadas pelo tratamento ineficaz das normas administrativas ou, por vezes, como

    sano violao do controle administrativo primrio.

    A interveno do direito penal na esfera privada do cidado, mormente na sua

    liberdade, com estrado na infrao de normas administrativas pode ser observada s

    escncaras na legislao brasileira. A simples quebra de um regulamento administrativo

    adquire importncia mpar, desde que no se mostre suficiente a sano administrativa,

    justificando-se uma interveno penal.

    Ao se confundirem as instncias, o direito penal assume a funo de reforo na

    gesto ordinria da Administrao, formatando-se verdadeira acessoriedade

    administrativa junto ao mbito penal.17

    16 Instituies de Direito Penal. Parte Geral. Vol I. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 279-280. 17 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Econmico como Direito Penal do Perigo. So Paulo: RT, 2006, p. 143.

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  • Deste modo, o direito penal passa a ser instrumento de polticas pblicas, sob

    uma perspectiva puramente funcional, auxiliando o governante a realizar seu plano de

    administrao, independentemente da presena de uma conduta apta a causar

    ofensividade a bem jurdico relevante.

    Manifesta, destarte, a ilegitimidade do processo de administrativizao do

    direito penal, j que a sua misso restringe-se exclusivamente proteo de bens

    jurdicos relevantes diante de graves ofensas, o que, de pronto, fulmina de

    inconstitucionalidade a utilizao exacerbada da represso penal na seara

    administrativa.

    No se est a defender a ausncia do direito penal nesta rea. Apenas se cogita

    de uma remodelao desta aplicao, reservando a sano penal quelas condutas que

    ofendam bens jurdicos, ainda que estas aes se encontrem no mbito de aplicao do

    Direito Administrativo.

    Neste diapaso, pode-se aferir que novas caractersticas so agregadas ao direito

    penal a fim de atender aos anseios incessantes da sociedade por segurana. As vertentes

    poltico-criminais analisadas neste captulo dirigem-se, portanto, utilizao do aparato

    penal para combater novos riscos e garantir o sentimento de segurana dos cidados.

    Contudo, pelas caractersticas das novas situaes que se pretende incriminar, o

    direito penal liberal, concebido na primeira modernidade, resulta inidneo a executar tal

    tarefa, motivo pelo qual bastante questionado.

    Diante disso, emerge, hodiernamente, conforme se pode inferir, uma poltica de

    transformao institucional, que aponta para a expanso do campo de interveno penal

    a partir de algumas linhas tendenciais mestras, quais sejam a proteo penal de bens

    jurdicos supra-individuais, a significativa antecipao da tutela penal aos crimes

    abstratos e delitos cumulativos e a atribuio de responsabilizao criminal s entidades

    coletivas.

    Instaura-se, in casu, um conflito acerca de qual tendncia poltico-criminal seria

    mais adequada para o tratamento dos novos riscos, posto que de um lado, o arcabouo

    penal clssico no consegue resolver satisfatoriamente os novis contratempos

    apresentados pela sociedade do risco e, por outro, as adaptaes do direito penal s

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  • novas metas poltico-criminais implicam um confronto direto com os princpios

    garantistas tradicionais.18

    2. DO DIREITO DE INTERVENO

    Os membros da Escola penalista de Frankfurt, em particular Winfried Hassemer,

    propagam a idia de que, em face dos novos riscos advindos da primeira e segunda

    modernidades, avultou o sentimento de medo da populao e, conseqentemente, a

    demanda por maior atuao do aparato criminal.19

    Em vista disso, os legisladores, por razes ou propsitos mesquinhos e

    oportunistas, lanam mo de instrumentos jurdicos, por vezes, teratolgicos, simulando

    tutelar a sociedade. Da novos tipos penais so criados, recrudescendo o tratamento

    conferido aos acusados em geral, incrementando as penas, restringindo direitos e

    garantias individuais, alm de outras medidas denunciadas por Hassemer, sem que,

    substancialmente, signifiquem quaisquer perspectivas reais de mudanas no quadro

    social.20

    Hodiernamente, a tendncia internacional concentra-se na utilizao de uma

    reao penal considerada simblica, marcada por instrumentos inaptos a combater

    efetiva e eficazmente as novas formas de infraes. O que importa manter um nvel de

    tranqilidade na opinio pblica, estribado apenas na impresso de que o legislador se

    acha preocupado com o delito. Produz-se a iluso de que os problemas foram

    solucionados.

    Adverte Hassemer que o aproveitamento do direito penal como meio de

    transformao social e de asseguramento do futuro da sociedade ofende,

    manifestamente, os axiomas garantistas a que se encontra inexoravelmente vinculado,

    mxime o princpio da subsidiariedade, j que sua utilizao se d como prima ratio,

    sempre que rentvel politicamente.21

    18 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal. So Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 156. 19 Processo penal e direitos fundamentais. Revista Del Rey jurdica. Ano 8, n 16, 1 semestre de 2006, p .73. 20 Segurana pblica no Estado de Direito. P. 63. Revista Brasileira de Cincias Criminais. So Paulo: RT, n 05, p. 63, jan. 1994. 21 HASSEMER, Winfried. Crisis y caractersticas del moderno derecho penal. Actualidad Penal. Madrid, n 43/22 de 1993, p. 635-646.

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  • O direito penal deixa de exercer sua misso de tutela exclusiva de bens jurdicos

    concretos, para executar vagas e imprecisas funes promocionais ou simblicas.

    Retomando as lies de Franz Von Listz, segundo o qual o direito penal constitui

    barreira infranquevel da poltica criminal, Hassemer afirma que, hoje, no direito penal

    do risco, ocorre o inverso, o direito penal aparece como instrumento da poltica

    criminal.22

    Segundo o sobredito penalista, o direito penal deve restringir-se to-somente a

    proibio de condutas individuais que provoquem leso ou perigo concreto de leso a

    um bem jurdico individualista, no lhe cabendo promover a segurana das futuras

    geraes ou a diminuio social dos riscos e do sentimento de medo incrustado na

    populao. Sua misso, na realidade, bem mais modesta.23

    Desta rgida linha de argumentao decorre a forte posio do autor contrria

    extenso da tutela penal aos bens jurdicos supra-individuais e aos novos perigos

    decorrentes da sociedade de risco, para os quais cabe lanar mo de outro ramo jurdico,

    criado especialmente para tal desiderato, chamado direito de interveno.

    Neste ponto, cumpre transcrever excerto das lies do penalista alemo

    proferidas em uma conferncia do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais aos

    17/11/1993: Acho que o Direito Penal tem que abrir mo dessas partes modernas que examinei. O Direito Penal deve voltar ao aspecto central, ao Direito Penal formal, a um campo no qual pode funcionar, que so os bens e direitos individuais, vida, liberdade, propriedade, integridade fsica, enfim, direitos que podem ser descritos com preciso, cuja leso pode ser objeto de um processo penal normal. (...) Acredito que necessrio pensarmos em um novo campo do direito que no aplique as pesadas sanes do Direito Penal, sobretudo as sanes de privao de liberdade e que, ao mesmo tempo possa ter garantias menores. Eu vou cham-lo de Direito de Interveno.24

    Em consonncia com as idias da Escola de Frankfurt, o direito penal deve

    reduzir seus tentculos, submetendo-se a um amplo processo de descriminalizao de

    condutas. Compondo-se apenas por delitos de leso, ou de perigo concreto, assim

    considerado na medida em que o perigo de ofensa, de especial gravidade, apresentar-se

    evidente em relao a bens jurdicos individuais, admitindo, excepcionalmente, a tutela

    22 HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma poltica criminal. Trs temas de direito penal. Porto Alegre: FESMP, 1993. 23 Idem, Ibidem. 24 HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna poltica criminal. Revista Brasileira de Cincias Criminais. So Paulo: RT, n 08, p. 49, out. 1994.

    5049

  • de bens supra-individuais quando estritamente ligados ao indivduo, a exemplo dos

    crimes contra a incolumidade pblica. Tudo com observncia de rgidas regras de

    imputao de responsabilidade pessoal e dos princpios poltico-criminais garantistas,

    como lesividade, subsidiariedade, fragmentariedade etc.

    Por outro lado, a proteo aos bens jurdicos supra-individuais em face dos

    novos riscos tecnolgicos incumbiria ao direito de interveno novo ramo jurdico

    e, desta maneira, restaria definitivamente afastada a interveno penal clssica,

    estribada na pena privativa de liberdade e nas garantias fundamentais.25

    Ao lado da descriminalizao de condutas, imprescindvel reduo do direito

    penal a um ncleo mnimo de proteo, despontaria um sistema de direito novo,

    aplicvel pela Administrao Pblica tribunais administrativos e livre das rigorosas

    exigncias principiolgicas e das formalidades para atribuio de responsabilidade.

    Mais apto, portanto, a lidar com as situaes e as necessidades da sociedade de risco.26

    O direito de interveno seria uma alternativa no controle da criminalidade

    moderna. Situado entre o direito penal e o direito administrativo, com um rebaixado

    nvel de garantias individuais e novas formas procedimentais abreviadas, mas sem a

    cominao das pesadas sanes do direito penal, sobretudo as penas privativas de

    liberdade. Orientado por uma interveno precoce, ou seja, pelo perigo e no pelo dano,

    posto que, frente neocriminalidade, a espera da ocorrncia do dano, pode ser tarde

    demais para a tutela do bem jurdico, em razo de sua magnitude.27

    No esclio de Hassemer, Herzog, Prittwitz e outros, um modelo de direito de

    interveno assim configurado mostrar-se-ia, pragmaticamente, mais adequado para

    responder aos problemas especficos das sociedades ps-industriais. Desta forma,

    poder-se-ia liberar o direito penal das expectativas de preveno dessa modalidade

    especial de infrao, para cuja misso no se acha preparado e, segundo o autor, pode

    ser a causa primordial de sua runa.28

    No se trata, como bem se pode inferir, de abandono de bens jurdicos sociais ou

    supra-individuais por parte do ordenamento jurdico ou do direito penal, uma vez que 25 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal. So Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 197. 26 Idem, Ibidem. 27 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal. So Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 197. 28 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal. So Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 197.

    5050

  • estes bens permanecero com o status de bem jurdico penalmente relevante. Apenas os

    tipos penais que os protegem sero filtrados e melhor selecionados.

    Considerando, ademais, que os ilcitos de somenos importncia que no so

    dotados de dignidade penal migraro em direo a um outro ramo jurdico que no

    lanar mo da pena de priso no haver necessidade da manuteno de todas as

    garantias individuais, flexibilizando, inclusive, as regras de imputao de

    responsabilidade, resultando, inexoravelmente, num sancionamento de natureza no-

    penal, com perspectivas otimistas em relao sua agilidade e eficcia.

    Deve-se ter em mente que o direito penal apenas um dos meios de controle

    social, nem sempre necessrio (dignidade penal), nem sempre eficaz (idoneidade e

    carncia de tutela), mas, sem dvida, sempre o mais grave.29

    No Brasil, a teste frankfurniana encontra repercusso, principalmente no

    pensamento do Miguel Reale Jnior.

    Na relao entre o controle administrativo e o direito penal, segundo Reale, deve

    haver uma relativa independncia, atravs de um funcionamento alternativo. Donde,

    optar-se-ia pela seara administrativa no que concerne a assuntos afetos rea econmica

    de menor relevncia aquelas condutas que no disponham de dignidade penal, com a

    sua conseqente descriminalizao, ao passo que a atuao penal cingir-se-ia aos casos

    extremos em que a sano administrativa no se afigurar suficiente.

    Dispondo de uma finalidade repressora e, ao mesmo tempo, assecuratria de

    tutela dos novos bens jurdicos supra-individuais, o sistema misto de Reale prope o

    julgamento por tribunais administrativos.30

    A descriminalizao de determinadas condutas e sua conseqente

    administrativizao j vem sendo adotada, paulatinamente, por diversos pases, dentre

    eles Alemanha e Itlia.

    No Brasil, bem como se d na Frana, existe dupla tipificao de contenda

    infrao econmica, havendo leis administrativas e penais no mesmo sentido.

    A legislao administrativa de represso ao abuso do poder econmico e ao

    aumento arbitrrio de lucros existe desde a dcada de 60, quando a Lei 4.317 criou o

    29 SICA, Leonardo. Carter simblico da interveno penal na ordem econmica. Revista do Instituto dos Advogados de So Paulo. So Paulo: RT, n 02, jul./dez. de 1998, p. 16. 30 REALE, Miguel. Legislao penal antitruste: Direito Penal Econmico e sua acepo constitucional. In www.realeadvogados.com.br, acesso aos 24 de janeiro de 2006 s 14:30, p. 42.

    5051

  • CADE Conselho Administrativo de Defesa Econmica -, transformado em autarquia,

    ligado ao Ministrio da Justia, pela Lei 8.884/94, que lhe atribuiu as funes de

    instaurao de processos administrativos, cominao de multas aos infratores, apurao

    e represso administrativa s condutas atentatrias ordem econmica etc.31

    A grande vantagem no uso do mecanismo administrativo para a luta contra os

    ilcitos econmicos consiste na possibilidade de atuao preventiva, antecipando-se ao

    dano, atravs de tipos abertos, tipos de perigo abstrato e por acumulao, alm da

    possibilidade de imputao de responsabilidade sem a necessidade de se comprovar a

    existncia de dolo ou culpa, bastando a mera ocorrncia ftica da conduta descrita no

    tipo. No mbito administrativo, destarte, a responsabilidade objetiva mostra-se de todo

    admissvel, inclusive, com a inverso do nus da prova para o acusado.

    Nada obstante, o legislador insiste em utilizar o direito penal, hipertrofiando-o

    atravs de um processo de inflao legislativa, mesmo que s custas de serias distores

    processuais e materiais. O efeito simblico do lanamento da pena acaba por produzir

    efeito reverso do desejado. Causa inoperatividade e seletividade do sistema punitivo,

    desmoraliza os rgos de persecuo penal, gera sentimento de impunidade e acaba por

    prejudicar a atuao penal naquelas reas em que ele se faz efetivamente necessrio.

    Demonstrada a tese da Escola de Frankfurt e demarcadas as raias do direito de

    interveno, bem como sua ressonncia na doutrina brasileira, calha, neste ponto, tecer

    uma crtica adaptativa ao pensamento frankfurniano, fundado na premissa de que toda

    poltica criminal deve adaptar-se sociedade qual pretende ser implementada.

    2.1. Direito Judicial Sancionador

    A realidade da Administrao Pblica brasileira, s avessas do que

    provavelmente ocorre com a Alemanha a ponto de justificar a aplicao do direito de

    interveno pelo Poder Executivo compe-se de uma mirade de problemas, vale

    dizer, desorganizada, sucateada, fisiologista, permevel s influncias polticas e

    econmicas, onde interesse pblico e privado se confundem. Tudo sob a regncia de

    uma sistmica corrupo que resulta na pilhagem do patrimnio pblico em dimenses

    astronmicas. 31 SICA, Leonardo. Carter simblico da interveno penal na ordem econmica. Revista do Instituto dos Advogados de So Paulo. So Paulo: RT, n 02, jul./dez. de 1998, p. 21.

    5052

  • Neste diapaso, mostrar-se-ia temerrio incumbir exclusivamente

    Administrao Pblica brasileira o combate s infraes econmicas, o qual ficaria ao

    sabor dos dirigentes polticos, que poderiam atuar de forma tendenciosa.

    Uma possvel e plausvel soluo para este problema consiste na proposta de

    Palazzo, delineada por Luiz Flvio Gomes, referente formao de um sistema

    jurdico satelitrio, que em muitos pontos se assemelha com a proposta da Escola de

    Frankfurt.

    O ponto inaugural de sua teoria consiste na constatao de que a interveno

    penal, alm de exigir o respeito ao princpio da legalidade estrita, reclama e impe a

    presena da ofensividade social como forma de legitimao de atuao, fundado no

    desvalor da ao, do resultado e do grau de lesividade do bem jurdico tutelado,

    figurando imprescindvel o reconhecimento da dignidade penal e da necessidade de

    sano, reveladores de sua concepo fragmentria, proporcional e de interveno

    mnima.32

    O direito penal s deve intervir se comprovada a lesividade concreta do bem

    jurdico, em situao de afronta coletividade, impondo-se a produo de um dano ou

    de um perigo concreto de dano de forma significativa, capaz de afetar as condies

    comunitrias essenciais ao livre desenvolvimento e realizao da personalidade humana.

    Sob a gide da poltica criminal minimalista (de interveno mnima), o direito

    penal deve ser utilizado quando presentes condutas violadoras de um bem jurdico

    alado ao patamar de dignidade penal (constitucional), sempre que se revelar impossvel

    sua eficaz proteo por outros meios de controle social, formal ou informal. Atua,

    desarte, a dogmtica penal de forma subsidiria, como ultima ratio, apenas quando

    esgotados todos os instrumentos de menor lesividade que aqueles proporcionados pelo

    direito penal.

    Expostos os requisitos para a ostentao do epteto ilcito penal, impe-se,

    segundo Palazzo, a realizao de um processo de descriminalizao de condutas que

    no contem com suficiente mrito para ostentar a categoria de ilcito penal, vale dizer,

    32 REALE, Miguel. Legislao penal antitruste: Direito Penal Econmico e sua acepo constitucional. In www.realeadvogados.com.br, acesso aos 24 de janeiro de 2006 s 14:30, p. 14.

    5053

  • para aquelas condutas que no sejam merecedoras de tutela penal ou no apresentem

    necessidade de pena impe-se a descriminalizao.33

    Observando que a administrativizao de ilcitos penais acarreta a mitigao de

    garantias individuais, prope-se que, aps o procedimento descriminalizatrio, proceda-

    se jurisdicionalizao do setor mais relevante dos ilcitos penais descriminalizados,

    criando-se uma nova espcie de direito, denominado direito judicial sancionador.

    Este novo ramo jurdico em muito se assemelha ao direito de interveno

    proposto por Hassemer, porquanto se incumbiria da conteno dos riscos oriundos do

    processo de modernizao da sociedade, atuando nos novos focos de insegurana de

    modo prioritariamente preventivo. Por ser sobremaneira mais flexvel que o direito

    penal em relao s garantias materiais e processuais, o direito judicial sancionador

    disporia de sanes menos severas que as penais, renunciando imposio da pena de

    priso.

    A grande vantagem detectada na utilizao do direito judicial sancionador, que o

    diferencia do direito de interveno, consiste no rgo competente para aplicar as

    sanes tpicas desse mbito jurdico. Enquanto o direito de interveno aplicado pelo

    Poder Executivo, atravs dos rgos integrantes da Administrao Pblica, o direito

    judicial sancionador aplicado pelo Poder Judicirio, atravs de um processo judicial

    tradicional, cuja deciso seria proferida por um magistrado especializado, imparcial e

    independente, comprometido com a verdade material, o que conduziria a uma maior

    segurana jurdica.

    Neste ponto, convm colacionar as lies do prprio Luiz Flvio Gomes: Impor-se-ia ento jurisdiconalizar o setor mais relevante dos ilcitos penais descriminalizados, criando-se uma nova espcie de Direito: Direito sancionador. Em outras palavras, seria um juiz o responsvel pela aplicao das sanes tpicas desse mbito jurdico (interdies, penas alternativas etc.; nunca pena de priso).34

    Em suma, o sistema jurdico satelitrio seria integrado, primeiramente, pelo

    direito penal tradicional, composto de todas as garantias tpicas do processo penal,

    mxime as rgidas regras de imputao de responsabilidade e do nexo causal. Fundado,

    33 GOMES, Luiz Flvio; BIANCHI, Alice. O direito penal na era da globalizao. So Paulo: RT, 2002, p. 66. 34 GOMES, Luiz Flvio; BIANCHI, Alice. O direito penal na era da globalizao. So Paulo: RT, 2002. p. 67.

    5054

  • prioritariamente, na pena privativa de liberdade e incumbido da tutela de bens jurdicos

    individuais ou supra-individuais quando ligados diretamente ao indivduo.

    Em seguida, o direito judicial sancionador, por renunciar a aplicao da pena de

    priso, flexibilizaria as garantias penais e processuais e, deste modo, combateria os

    novos riscos oriundos da primeira e segunda modernidades, tutelando bens jurdicos

    supra-individuais e voltando a persecuo em direo aos grandes infratores. Por

    ltimo, o direito administrativo permaneceria aplicado pela Administrao Pblica,

    restrito s infraes administrativas comuns.

    Deste modo, poder-se-ia conferir razovel eficcia ao combate dos ilcitos

    econmicos e ambientais, na linha de pensamento esposada pelos frankfurnianos.

    CONSIDERAES FINAIS

    Quando se pretende combater a criminalidade, deve-se ter em mente que o crime

    no um tumor, nem uma epidemia, seno um doloroso problema interpessoal e

    comunitrio. Uma realidade prxima, cotidiana, quase domstica. Trata-se de um

    problema da comunidade, que nasce na comunidade e que deve ser resolvido na

    comunidade, de forma racional e democrtica.

    Nada obstante, o tratamento ministrado ao delito vem se mostrado altamente

    populista e ineficaz. Contempla-se o delito com um enfrentamento formal, simblico e

    direto entre dois rivais o Estado e o infrator -, que lutam entre si solitariamente, como

    lutam o bem e o mal, a luz e as trevas35. Neste duelo, o grande perdedor o Estado

    Democrtico de Direito que se v obrigado a se curvar frente a interesses oportunistas e

    eleitoreiros de legisladores inabilitados a discutir juridicamente e com parcimnia a

    questo criminal.

    Imperioso, ao final deste artigo, repisar a assertiva de Thomas Jeffery, segundo a

    qual mais direito penal, mais policiais, mais juzes e mais prises significam mais

    infratores na cadeia, porm, no necessariamente, menos delitos.36

    35 MOLINA, Antonio Garca-Pablos de. Criminologia. 2. ed. So Paulo: RT, 1997, p. 303. 36 Idem, p. 316.

    5055

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