almeida-os direitos fundamentais entre liberais-2005-1
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UNIVERSIDADE DE BRASLIAFACULDADE DE DIREITO
MESTRADO EM DIREITO E ESTADO
Os direitos fundamentais entre liberais e comunitaristas um debateconstitucional.
Monografia apresentada na disciplina Dimenses histricase sociolgicas da teoria da constituio, lecionada pelo
prof. Dr. Cristiano Paixo ao longo do segundo semestre de2005, em cumprimento de 004 crditos no programa demestrado em Direito da Faculdade de Direito da UnB .
Mestrando: Fbio Portela Lopes de AlmeidaMatrcula 05/56971
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Sumrio
Introduo ...................................................................................................................................... 3
I. Desafios ao liberalismo. ........................................................................................................... 11
I.1. A crtica comunitarista ao liberalismo. ........................................................................... 11
I.2. A resposta do liberalismo contemporneo s crticas. ................................................... 17
II. Epistemologia e teoria poltica se encontram: o relativismo cultural em foco. ................ 25
II.1. Os desafios da ps-modernidade razo pblica......................................................... 25
II.1.1. Cincia e razo desafiados: a questo epistemolgica. ......................................... 25II.1.2. A razo pblica vitoriosa: o relativismo como questo poltica. .......................... 31
III. Direitos fundamentais e diversidade um debate terico-constitucional. ...................... 39
III.1. Grupos e indivduos - quem so os sujeitos dos direitos fundamentais? .................. 39
III.2. Qualquer diversidade desejvel? As restries constitucionais ao pluralismosimples....................................................................................................................................... 44
IV. Consideraes finais.............................................................................................................. 47
V. Bibliografia.............................................................................................................................. 49
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Introduo
A definio de um espao individual para a conscincia moral e religiosa, separado de
um ethos compartilhado com toda a comunidade poltica, se encontra no cerne da diferenciao
entre direito e religio/tica1. A definio desse espao individual ocorreu num contexto histrico
definvel, no qual se torna evidente que o aumento da complexidade da vida social redefiniu os
princpios ordenadores da sociedade ocidental moderna, cuja juridicidade no podia mais ser
fundada em princpios ticos supostamente compartilhados por todos.
Nos sculos XVI-XVII, as rupturas ocorridas no seio da cristandade que levaram
reforma protestante inauguraram um novo contexto poltico. Antes da reforma protestante, era
perfeitamente plausvel afirmar que a Europa se encontrava unificada pelo mesmo princpio
religioso. importante, contudo, frisar que essa afirmao precisa ser um pouco atenuada, na
medida em que o prprio catolicismo enfrentou algumas rupturas importantes antes da Reforma.
Ainda no sculo V, por exemplo, os Conclios de feso (431 d.C.) e da Calcednia (451 d.C.)
dividiram os catlicos entre os monofisistas, que defendiam a tese segundo a qual Jesus Cristo
tinha apenas a natureza divina, e os nestorianistas, para os quais Jesus reunia duas naturezas
uma divina e uma humana. As duas cismas enfrentadas pela Igreja Catlica Apostlica Romana
tiveram natureza poltica - em 1.054, na chamada Cisma do Oriente, a questo poltica se referia
pretenso das igrejas do Oriente de se tornarem autnomas, negando explicitamente o primado do
poder Papal, que originou as chamadas Igrejas Ortodoxas (da qual so exemplos a Igreja
Ortodoxa russa e a Igreja Ortodoxa grega). Entre 1.378 e 1.417, o Cisma do Ocidente, resultado
do fim do papado de Avignon (uma srie de seis papas cujo pontificado foi sediado nessa cidade
francesa), gerou novas discusses acerca da legitimidade papal, tendo em vista as manifestaes
dos romanos para que a sede do papado retornasse a Roma, e de pleitos contrrios que defendiam
a manuteno da sede da Igreja em Avignon2.
importante lembrar que essas crises no foram capazes de romper definitivamente
com o pressuposto bsico de compartilhamento da f catlica por toda a Europa. Mesmo na
1 Adoto, aqui, a distino feita por Jrgen Habermas entre tica e moral. Essa distino, implcita em Uma teoria dajustia de Rawls, pode ser descrita nos seguintes termos. Consideraes ticas so orientadas pelo conceito de vidaboa, normalmente derivados de normas de ao compartilhadas com uma dada comunidade. Os discursos morais,de outro lado, se referem a uma perspectiva distanciada de todo etnocentrismo, o que exige o igual respeito a todos.Cf. HABERMAS, Jrgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Vol. I. trad. Flvio BenoSiebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 131.2 MULLETT, Michael A. Catholic reformation. London: Routledge, 1999, p. 2.
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Inglaterra, as discordncias dos normandos, ainda nos sculos XI-XIII, com relao ao alto clero
catlico, no eram divergncias acerca da f catlica, mas com relao legitimidade do papado
de exercer o controle das instituies religiosas inglesas. Os normandos se percebiam os como
portadores da verdadeira f crist, o que levou a uma relao tensa com o papado, com perodos
intercalados de apoio mtuo (como a aliana entre ambos para liberar o clero de qualquer
controle secular, que culminou na Reforma Cluniacense) e de belicosidade (as reaes da Igreja
ao descumprimento, por parte de Guilherme II, de vrias das leis eclesisticas em seu reinado,
entre 1087 e 1100, constituem um bom exemplo histrico)3. importante notar, ainda, que as
tenses entre a igreja e as instituies polticas seculares mais antiga do que a nfase na reforma
protestante como marco histrico faz supor. Com efeito, essa tenso vinha dos dois lados: as
instituies polticas seculares buscavam maior independncia com relao ao papado, e as
instituies eclesisticas tambm pretendiam alcanar mais liberdade frente aos poderesseculares4.
Feitas essas ressalvas de forma a assegurar mais preciso histrica, torna-se possvel
retomar o contexto da definio, na modernidade, de um espao individual de conscincia,
intrinsecamente ligado questo dos direitos fundamentais. De acordo com Reinhart Koselleck,
devemos nos voltar para as guerras religiosas a fim de compreender a soluo moderna para os
conflitos religiosos5. Durante a Reforma Protestante, um fenmeno diferenciado se anunciava:
embora os protestantes compartilhassem com os catlicos a maior parte de sua doutrina, asdiscordncias no eram apenas polticas, mas relativas ao prprio modo de vivenciar a religio. A
vivncia religiosa catlica dependia de uma vivncia cujas diretrizes doutrinrias e morais
decorriam da autoridade institucional do Papa e do alto clero, os nicos autorizados a interpretar
oficialmente os textos sagrados. O protestantismo, por outro lado, e em linhas gerais, passou a
acolher a possibilidade de todos interpretarempessoalmente a Bblia. Essa nova atitude perante o
modo de vivenciar a religiosidade se difundiu amplamente na regio das atuais Holanda,
3 BERMAN, Harold J.La formacin de la tradicin jurdica de occidente. Trad. Mnica Utrilla de Neira. Mxico:Fondo de Cultura Econmica, 1996, p. 456-7.4 BERMAN, op. cit.,p. 20.5 KOSELLECK, Reinhart. Crtica e crise - uma contribuio patognese do mundo burgus. Trad. Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: Contraponto e EDUERJ, 1999, p. 21-2.
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Alemanha e Inglaterra, tornando-se uma rival da autoridade papal na Europa, poltica e
espiritualmente6.
Essa situao levantou um novo problema terico, j que defensores de religies
distintas passaram a disputar, pelo poder poltico, o domnio religioso que deveria prevalecer em
cada cidade e em cada Estado. A perspectiva de uma sociedade antes unificada por uma nica
religio compartilhada por todos, luz do princpio segundo o qual a religio do rei a religio
de todos (cujus rgio, ejus religio), se tornou insuficiente, no sculo XVIII, para lidar
politicamente com uma nova situao de composio multi-religiosa que comportava, ao menos,
dois grupos de credos distintos o catlico e o protestante7. A perspectiva platnica de moldar o
indivduo a partir de sua funo na sociedade passou a ser insuficiente num contexto de
diversidade religiosa.
O pensamento de Thomas Hobbes um exemplo paradigmtico de como a teoria do
Estado lidou com a nova situao histrica, ao lado do liberalismo clssico de Locke e Kant8. Os
trs encontraram uma soluo filosfica inovadora para resolver esse problema poltico.
importante ressaltar que a apresentao da soluo do liberalismo clssico para esse problema
no se reveste apenas de importncia teortico-filosfica, mas de importncia histrica: a soluo
poltica, como se ver, foi essencialmente a mesma proposta por esses tericos. Tanto a poltica
quanto a filosofia poltica encontraram a mesma soluo para resolver ofato do desacordo moral,
isto , o fato de que a sociedade moderna composta por pessoas que defendem as mais diversas
concepes morais e religiosas. Para garantir a estabilidade poltica, o liberalismo clssico props
a diviso do mundo social em duas esferas independentes a sociedade civil e a sociedade
poltica, que corresponde distino entre esfera pblica e esfera privada9.
6 importante notar que a Reforma Protestante teve conseqncias e causas distintas em cada um desses lugares,mas no cabe aqui um maior aprofundamento. Sobre esse ponto, ver THACKERAY, Frank W.(Editor). The
protestant reformation, c. 1517-1648. in:Events That Changed the World Through the Sixteenth Century. Westport:Greenwood Publishing Group, Incorporated, 2001, p 161-165.7 Thackeray, op. cit., p. 163.8 importante notar que, apesar de Thomas Hobbes no se enquadrar na categoria do liberalismo, sua proposta desoluo poltica para os problemas religiosos essencialmente a mesma que a de Kant e a de Locke. Mas precisofrisar que a soluo hobbesiana partiu de uma concepo de Estado Absolutista, ao passo que os liberaishistoricamente criticaram o absolutismo.9 importante lembrar que essa distino, em si, no originria da modernidade, j que encontra razes no
pensamento clssico. Aristteles, por exemplo, j apontava a distino entre o mundo privado em que os cidados daplis deviam satisfazer suas necessidades fsicas e materiais, e o mundo poltico (a gora) onde realizavam plenamente as suas potencialidades morais e intelectuais. Essa perspectiva fica mais evidente no pensamentoaristotlico que, para o propsito de observar como a distino pblico/privado era concebida no mundo grego,
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O liberalismo clssico precisou redefinir a distino entre o pblico e o privado, e a
soluo para o problema foi isolar a conscincia individual, transportada para o mundo da moral
privada, e a atribuio de direitos fundamentais. O mundo poltico passa a ser fundado na
autoridade poltica secular, que em Hobbes se formaliza pelo direito absoluto exercido pelo
soberano. Assim, o homem foi partido em dois: os atos e as aes so submetidos lei soberana,
mas a convico individual livre10.
possvel dizer que a soluo liberal, fundada na perspectiva lockeana que busca na
tolerncia e na atribuio de direitos fundamentais os princpios capazes de solucionar o
problema do desacordo moral11, prevaleceu na teoria constitucional na forma das liberdades
religiosas. Todavia, essa soluo sempre foi questionada na filosofia poltica. O filsofo mais
comumente lembrado por sua crtica ao liberalismo Georg Hegel. De acordo com o filsofo
alemo, as concepes morais surgem dos relacionamentos do indivduo estabelecidos em
diferentes contextos morais e sociais (de acordo com a diviso tripartite proposta por Hegel, esses
contextos seriam a famlia, a sociedade civil e o Estado). Nos domnios pblicos do direito e da
poltica, o carter tico dos cidados prevalece sobre a perspectiva liberal, segundo a qual os
cidados so meros portadores de direitos que reduzem o Estado a um mero contrato privado
entre distintas partes, revogvel a qualquer momento12.
A constituio estatal, na perspectiva hegeliana, mais que uma norma que garante
direitos individuais, modelo tpico da concepo liberal: constitutiva da prpria ordem
fundamental da vivncia social, personificada no Estado de modo a produzir a supremacia do
exemplar, especialmente no tratamento filosfico dado economia na perspectiva aristotlica, que relegada aoespao privado da vida dos cidados, onde se luta pela sobrevivncia na luta contra a escassez de recursos materiais.A propsito, ver o Livro I de ARISTTELES. A poltica. Trad. Roberto Leal Ferreira. So Paulo: Martins Fontes,1998. Para uma reconstruo histrica do desenvolvimento da distino pblico/privado, ver ARAUJO PINTO,Cristiano Paixo. Arqueologia de uma distino o pblico e o privado na experincia histrica do direito. In:OLIVEIRA PEREIRA, Claudia Fernanda (org.). O novo direito administrativo brasileiro. Belo Horizonte: Forum,2003.10 KOSELLECK, op. cit., p. 37.11 A tolerncia com relao a aqueles que diferem dos outros em questes religiosas to aceitvel para oEvangelho de Jesus Cristo e para a razo genuna da humanidade, que parece monstruoso que os homens sejam tocegos que no percebam a sua necessidade e as suas vantagens, claras como a luz. (...) Estimo acima de todas ascoisas a necessidade de distinguir exatamente os deveres exigveis pelo governo civil daqueles derivados da religio,
bem como os limites que definem um e outro. Se isso no for feito, no h como encerrar as controvrsias quesempre surgiro entre os que tm, ou fingem ter, de um lado, uma preocupao pelo interesse das almas humanas e,de outro, o cuidado com a sociedade civil. (negrito do autor, traduo livre). LOCKE, John. A letter concerningtoleration (1689). Disponvel em . Acesso em: 27 nov. 2005.12 KENNY, Michael. The politics of identity. Cambridge: Polity Press, 2004, p. 61.
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interesse geral e da soberania estatal13. Nesse sentido, o indivduo hegeliano deve ser incorporado
na prpria ordem social, assumindo como seus princpios ticos e morais os princpios definidos
pela comunidade poltica. O pensamento hegeliano suprime o espao privado, que cede por
completo aos valores compartilhados no mundo poltico, numa ntida reao ao Estado liberal,
que subordinava o mundo poltico aos valores privados. Nas palavras de Fioravanti:
A constituio estatal , assim, a norma de direito pblico que est chamada a impor-se sobre atradicional estrutura privada da constituio estamental e feudal. Mas no s isso. Est pensada com afinalidade de combater todo tipo de privatismo, e em particular aquele que deriva de uma concepogeral da constituio que v nela uma pura norma de garantia das propriedades e dos direitosindividuais. Nessa concepo, que se conecta com a matriz individualista da Revoluo, Hegel v quaseanulado o valor poltico do Estado, reduzido a um conjunto de poderes encaminhados, do ponto de vistainstrumental, garantia dos direitos. Como afirmara em seus Fundamentos de filosofia do direito, de1821, um Estado cujo fim ltimo seja cuidar dos interesses dos particulares terminar sendoconsiderado por estes como um mero instrumento para usar e ordenar segundo as circunstncias14.
No Estado hegeliano, suprime-se qualquer possibilidade de diversidade ao nvel da
conscincia, na medida em que todos os valores individuais devem ser suprimidos em face dos
valores pblicos assumidos no mundo poltico. De qualquer modo, Hegel prope uma sria
crtica ao projeto liberal, ao questionar a prpria possibilidade de conceber uma estrutura
constitucional fundada na oposio entre o mundo pblico e o mundo privado, locus reservado
conscincia individual. Em termos semelhantes, Carl Schmitt questiona o constitucionalismo
liberal, que teria tirado das constituies seu contedo poltico, firmando a desconexo entre a
carta constitucional e o princpio democrtico (a soberania popular). Para ele, a conexo entre
constituio e democracia somente poderia se realizar a partir da unidade do povo no Estado,
atravs da vontade do presidente eleito15.
O problema posto pelas guerras religiosas do sculo XVI est longe de ter sido
consensualmente resolvido pela teoria constitucional. Os acontecimentos do sculo XX, longe de
eliminar a tenso entre diversidade religiosa e unidade poltica, a potencializou enormemente.
Ao longo desses quase cinco sculos, basicamente duas linhas de resposta foram propostas. A
primeira linha, que passa pelo liberalismo (contemporaneamente representado por autores como
13 importante perceber na concepo hegeliana uma importante reao aos movimentos revolucionrios na Europado sculo XIX.14 FIORAVANTI, Maurizio. Constitucin de la antigedade a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira.Coleccin Estructuras y processos. Serie Derecho. Madrid: Editorial Trotta, 2001, p. 136.15 FIORAVANTI, op. cit., p. 154.
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John Rawls, Ronald Dworkin, Gerald Gaus e Stephen Macedo16.), aposta numa distino precisa
entre o mundo pblico e o privado, o que asseguraria um consenso poltico mnimo na esfera
pblica capaz de garantir a estabilidade de um mundo social composto por pessoas que no
concordam entre si em boa parte das questes ticas substantivas. A segunda linha, que passa por
Hegel, representada contemporaneamente pelos autores comunitaristas (principalmente
MacIntyre, Sandel e Taylor), e aposta na impossibilidade factual do projeto liberal, j que o
prprio mundo poltico depende, tambm, das crenas compartilhadas pelos indivduos numa
determinada comunidade, e impossvel sustentar a privatizao da conscincia, j que ela
mesma depende de valores introduzidos pela comunidade poltica.
Se no sculo XVI o problema da diversidade religiosa era o nico tematizado pela
teoria poltica, o sculo XX ampliou consideravelmente o leque de conflitos culturais. No
apenas a religio que gera o desacordo moral: os cidados das contemporneas sociedades
pluralistas divergem entre si acerca de praticamente tudo, desde questes de gnero a questes
morais e religiosas, passando pela compreenso tica vinculada a determinadas comunidades
histricas e de imigrantes. Esse fenmeno de radicalizao da diversidade cultural tem sido
chamado, pela teoria poltica, de multiculturalismo, e abrange temas bastante abrangentes,
como o nacionalismo, questes relativas identidade cultural, sexual religiosa, racial e tnica.
Apesar de muitos se referirem ao multiculturalismo como uma postura terica frente questo da
diversidade cultural presente nas sociedades contemporneas, penso que esta uma posturaequivocada. O multiculturalismo no uma postura terica, mas o reconhecimento de um fato
sociolgico abordado por diferentes perspectivas terico-constitucionais, como o liberalismo, o
republicanismo e o comunitarismo. um tema central no apenas da teoria poltica
contempornea, mas de nossa vida poltica real, onde j se tornaram comuns referncias
poltica do reconhecimento17, poltica da identidade18 ou ao reconhecimento das
16 Habermas, como se ver mais adiante, poderia ser enquadrado como um autor liberal, nesse debate. No penso queele seja uma alternativa ao debate entre liberais e comunitaristas, e minhas razes sero apontadas mais adiante.Para uma posio diferente, que entende a posio habermasiana como uma terceira alternativa ao debate, verCITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justia distributiva elementos da filosofia constitucionalcontempornea. Rio de Janeiro: Lmen Iuris, 2004.17 TAYLOR, Charles. The politics of recognition. In: GUTMANN, Amy (org.). Multiculturalism: examining the
politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994.18 KENNY, Michael. Op. cit.
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diferenas19. No momento em que escrevo, por exemplo, os jornais noticiam o caos causado na
Frana (j espalhado para outros pases europeus) por violentos protestos de imigrantes oriundos
do norte da frica como reao sua excluso poltica, religiosa e econmica20, o que denota a
urgncia de se discutir e implementar politicamente solues capazes de lidar com contextos
multiculturais.
A questo multicultural no apenas poltica ou terica, mas tambm pode ser
discutida a partir de uma perspectiva constitucional. De acordo com Michel Rosenfeld, as
questes multiculturais esto presentes na teoria constitucional moderna h alguns sculos, como
mostrou a breve incurso na histria poltica europia. Todavia, o que mudou drasticamente foi a
compreenso relativa a essas questes, em parte por uma nova onda de movimentos
constitucionalistas ocorridos em todo o planeta, especialmente como reao aos trgicos
acontecimentos do Holocausto e, mais recentemente, ao colapso da Unio Sovitica, que levou a
novos movimentos nacionalistas na Europa oriental21.
Identidade e diferena, universalismo e relativismo, democracia majoritria e direitos
das minorias essas constituem algumas das tenses tematizadas pelo multiculturalismo que
proporcionam uma abertura para a discusso constitucional. Embora essas questes tenham suas
especificidades, importante perceber que todas partem de uma tenso eminentemente moderna:
as dificuldades relativas constituio de um mundo poltico comum que saiba reconhecer e lidar
de forma no-discriminatria com as vrias identidades parciais afirmadas num contexto de
pluralismo22.
importante compreender como essas questes tm sido tematizadas pela filosofia
poltica contempornea, no apenas para saciar uma curiosidade filosfica, mas para ter
conscincia de que a perspectiva filosfica assumida pode levar a concepes constitucionais
completamente distintas. Nesse sentido, esse artigo se prope a revisar alguns dos debates
contemporneos relativos ao modo pelo qual podemos compreender o fenmeno multicultural.
Nesse contexto, sero apresentadas a compreenso liberal do multiculturalismo e as crticas
19 FRASER, Nancy. Da redistribuio ao reconhecimento. In: SOUZA, Jess.Democracia hoje: novos desafios paraa teoria democrtica contempornea. Braslia: Editora UnB, 2001, p. 245.20 Paris se acalma, mas violncia se alastra por pases da Europa. Folha online, So Paulo, 16 nov. 2005. Mundo.Disponvel em . Acesso em: 16 nov. 2005.21 ROSENFELD, Michel. Comment: Human rights, nationalism, and multiculturalism in rhetoric, ethics and politics:a pluralistic critique. In: Cardozo Law Review, vol. 21, p. 1225.22 SEMPRINI, Andrea.Multiculturalismo. Trad. Laureano Pelegrin. Bauru: EDUSC, 1999, pp. 43-44.
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http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u89520.shtmlhttp://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u89520.shtml -
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feminista, habermasiana e comunitarista perspectiva liberal, com base em trs eixos temticos:
(i) as crticas comunitaristas ao liberalismo e a resposta liberal; (ii) a tenso epistemolgica
suposta no debate; e (iii) a distino entre direitos individuais e direitos comunitrios e a
relevncia desse debate para a teoria constitucional. Ao final dessa seo, pretendo defender a
tese de que as discordncias entre liberais e comunitaristas so menos relevantes do que se
costuma acreditar e que uma determinada construo do princpio da tolerncia liberal pode ser
parte de uma resposta da teoria constitucional para a questo multicultural.
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I. Desafios ao liberalismo.
I.1. A crtica comunitarista ao liberalismo.
Talvez um dos principais pontos de discordncia entre liberais e comunitaristas esteja
no modo pelo qual a esfera pblica compreendida. O movimento comunitarista pode serentendido como uma reao ao renascimento do liberalismo poltico a partir de 1971, com a
publicao de Uma teoria da justia, de John Rawls. O marco terico do qual os comunitaristas
partem encontra suas razes no pensamento de Georg Hegel, de Marx e de Aristteles. A idia
aristotlica de que a justia est enraizada numa comunidade cujo vnculo primrio um
entendimento compartilhado tanto acerca do bem individual quanto do bem da comunidade1
pode ser enfatizada como a tese central do comunitarismo.
Nesse sentido, so lanadas dvidas quanto distino entre o mundo pblico e omundo privado suposta na raiz do pensamento liberal, na medida em que o liberalismo supe a
possibilidade de se encontrar um fundamento independente de nossas pressuposies morais
privadas para discutirmos questes pblicas. Ou seja: a esfera pblica liberal precisa encontrar
um fundamento diferente de nossas crenas individuais morais e religiosas, e esse
empreendimento tido por impossvel pelos autores comunitaristas. As implicaes polticas da
crtica comunitarista so eminentemente conservadoras. A comunidade defendida por essa
corrente filosfica assentada em tradies, costumes e identidades estabelecidos historicamente.
Para Sandel, por exemplo, a famlia serve de modelo de comunidade e de evidncia de um bem
maior que a prpria justia, e a preservao dos valores comunitrios pode ser um pressuposto
suficiente para banir atividades moralmente ofensivas praticadas pelos indivduos2.
Em resumo, possvel apontar que as crticas comunitaristas ao liberalismo se renem
em trs grupos principais. Os grupos de crticas so os seguintes: o liberalismo tem uma
concepo equivocada da pessoa; assume uma teoria universalista da justia, bem como uma
concepo ingnua da neutralidade perante as diversas culturas3. A seguir, essas crticas sero
apresentadas, de modo a resumir o cerne do debate entre essas duas vertentes tericas da filosofia
1 Traduo livre de MACINTYRE, Alasdair.After virtue.Notre Dame: Notre Dame University Press, 1981, pp. 232-3.2 Ver, por exemplo, SANDEL, Michael.Morality and the liberal ideal. In: The New Republic, 07 de maio, 1984, p.17.3 Acerca dessas crticas, especialmente na filosofia de John Rawls, ver MULHALL, Stephen; SWIFT, Adam. Rawlsand communitarianism. In: FREEMAN, Samuel (org.). The Cambridge companion to Rawls. Cambridge:Cambridge university press, 2003.
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poltica contempornea. Em seguida, sero apresentadas as respostas liberais a essas crticas, de
modo a estabelecer os parmetros da discusso a ser realizada pela teoria constitucional.
A primeira crtica comunitarista postula que o indivduo liberal constitudo apenas
por sua vontade, liberado de todas as conexes comunitrias, sem valores comuns, costumes ou
tradies. um indivduo cuja vida no compartilha valor algum com os cidados de sua
comunidade poltica. Homens e mulheres numa sociedade liberal no compartilham uma nica
cultura moral na qual podem aprender como devem viver: no h um consenso acerca de uma
determinada concepo da boa vida. O nico vnculo com os outros indivduos, diz a crtica
comunitarista ao liberalismo, se d pelos direitos atribudos a cada indivduo. Essa talvez a
principal tese defendida pelos comunitaristas, o que denota o vnculo com o pensamento
hegeliano. A esfera pblica liberal, na perspectiva comunitarista, essencialmente um lugar
colonizado por consideraes privadas de indivduos portadores de direitos. A razo fundamental
para a crtica concepo liberal de pessoa se deve formulao rawlsiana da posio original,
em Uma teoria da justia. De acordo com Rawls, representante contemporneo do
contratualismo, um acordo justo acerca dos bens sociais primrios pode ser alcanado apenas se
as partes que firmarem esse acordo estiverem em uma condio denominada de vu da
ignorncia, na qual no sabem nada a respeito de sua posio particular real4. Os comunitaristas
apontam que esse desacoplamento radical do indivduo de sua natureza e de suas concepes
ticas impossvel psicologicamente5
.
De acordo com a segunda crtica comunitarista, veiculada especialmente por
MacIntyre e Michael Walzer, a teoria liberal foi desenvolvida para aplicar princpios universais e,
assim, incapaz de atender aos modos diferentes pelos quais as vrias culturas incorporam os
mais diversos valores6. Essa crtica importante, por revelar um importante aspecto do
comunitarismo a justificao apriorstica dos valores de qualquer comunidade. Os valores
aceitos comunitariamente so justificados apenas pelo prprio consenso material em torno deles.
Como no h nenhuma base independente de avaliao dos valores comunitrios, devemosaceitar que os valores de qualquer comunidade esto justificados pelo mero consenso intra-
4 A respeito do vu da ignorncia, ver RAWLS, John. Uma teoria da justia.Trad. Almiro Pisetta e Lenita MariaRimoli Esteves. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 146-153.5 Essa crtica especialmente veiculada no primeiro captulo de SANDEL, Michael. Liberalism and the limits ofjustice. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, pp. 15-64.6 A esse respeito, ver MACINTYRE, Alasdair, op. cit., e WALZER, Michael. Esferas da justia: uma defesa dopluralismo e da igualdade. Trad. Jussara Simes. So Paulo: Martins Fontes, 2003.
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comunitrio em torno deles. Como se ver na seo II, essa tese poltica se sustenta sobre a
radicalizao do relativismo epistemolgico aplicado s vrias diferentes culturas. Essa tese
tambm mina qualquer tentativa comunitarista de lidar com a distino pblico/privado, j que,
associada primeira crtica, segundo a qual todos os valores do indivduo so, necessariamente,
derivados dos valores aceitos por sua comunidade, supe que os valores privados devem ser os
mesmos valores publicamente aceitos. O comunitarismo, assim, mina qualquer espao para a
diferena no interior de uma nica comunidade poltica. Esse tema ser melhor explorado na
seo III.
Um tema comum literatura comunitarista a crtica filosofia anti-perfeccionista
dos autores liberais, que defendem um ideal de neutralidade7. O perfeccionismo tico o
princpio segundo a qual a ao moral aquela que maximiza a perfeio das realizaes
humanas na arte, na cincia e na cultura8. O liberalismo contemporneo, de modo geral, prope
que a razo pblica deve se fundar em princpios razoveis e aceitos (ou aceitveis) por todos os
cidados, independentemente da concepo de bem aceita e vivenciada por cada um. Assim, as
questes pblicas devem ser resolvidas a partir de uma concepo neutra perante as diversas
culturas, religies e concepes morais. Nessa medida, os liberais anti-perfeccionistas defendem
a prioridade do direito sobre o bem (e, conseqentemente, sobre a moral). Sandel, MacIntyre e
Taylor suspeitam dessa tese: para eles, o anti-perfeccionismo gera conseqncias indesejadas, j
que algumas prticas e formas de vida culturais simplesmente no poderiam sobreviver a no serque fossem promovidas pelo prprio Estado. Alm disso, a distino entre o direito e a moral
sobre a qual o ideal de neutralidade se sustentaria depende de um pressuposto pouco tematizado,
o de que o direito assume, ele prprio, um ideal moral particular assume, assim, uma concepo
particular de bem. Isso, de acordo com o comunitarismo, mina inevitavelmente a pretenso
liberal de neutralidade do direito. importante notar, ainda, o vnculo entre o comunitarismo e o
perfeccionismo, no sentido de que o perfeccionista defende que a comunidade poltica deve fazer
julgamentos a respeito daquilo que tornaria a vida de seus membros boa. O anti-perfeccionista,
por sua vez, defenderia que esses julgamentos deveriam ser feitos por cada cidado, e ao Estado
caberia apenas assegurar as condies objetivas para que esses julgamentos fossem realizados.
7 importante lembrar a exceo de Joseph Raz, um liberal perfeccionista. A propsito, ver seu The morality offreedom. Oxford: Oxford University Press, 1996.De acordo com Raz, o princpio da autonomia perfeccionista, umavez que, em sua concepo, os indivduos no so autnomos por acreditarem no valor de suas crenas, mas sim
porque devem viver em busca de objetivos vlidos independentemente de suas crenas.8 Essa a definio de John Rawls, em Uma Teoria da Justia, op. cit., p. 359.
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Isso leva diretamente concluso de que o comunitarismo no pode supor a existncia
de um espao independente em que as razes sejam articuladas publicamente, com base em
razes que todos poderiam aceitar. impossvel para o comunitarismo aceitar, por exemplo, a
concepo habermasiana de esfera pblica, fundada na tica do discurso, que exige a aceitao de
um princpio de universalizao, pelo qual se estabelecem as condies para o julgamento
imparcial, onde so vlidas as normas de ao s quais todos os possveis atingidos poderiam
dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais9. Assim, o
comunitarismo e qualquer teoria do direito fundada na concepo do compartilhamento de
valores no pode oferecer as bases do dilogo entre comunidades que no compartilham seus
valores ticos. Pode oferecer apenas duas alternativas, a serem discutidas na seo III o
separatismo, com o subseqente fracionamento da sociedade plural em vrias comunidades
isoladas, e a assimilao, forando as diversas comunidades a compartilhareticamente os valorescomunitrios.
As crticas comunitaristas colocam o pensamento liberal em srias dificuldades, mas
os liberais no se furtaram difcil tarefa de refut-las. Na verdade, o dilogo entre autores
liberais e comunitaristas foi to produtivo e gerou tantas concesses de ambos os lados da
controvrsia que, hoje, h vrios tericos cuja posio ambgua. Decerto h liberais radicais,
como Robert Nozick e Friedrich Hayek, que defenderiam pontos de vista bastante prximos aos
criticados pelos comunitaristas, assim como h comunitaristas radicais, grupo em que se destacaa posio de MacIntyre, cuja proposta de resoluo do desacordo moral nostlgica e pressupe
a rejeio da prpria modernidade, sugerindo que as pessoas voltem a viver em pequenas
comunidades em que possam compartilhar suas concepes ticas e religiosas com todos os seus
concidados.
Mas h uma grande zona cinzenta entre as duas posies, onde a discusso pode se
tornar mais proveitosa. Penso que entrariam nessa zona cinzenta autores como Will Kymlicka,
e mesmo Charles Taylor, tipicamente lembrado como um comunitarista radical, classifica suaprpria posio como liberal e busca justificar seus pontos de vista a partir de pressuposies
liberais10. Talvez um caso exemplar dessa seja o de Michael Walzer, por vezes categorizado entre
os autores comunitaristas, principalmente por sua crtica teoria da justia de John Rawls.
9 HABERMAS, Jrgen. op. cit., p. 142.10 TAYLOR, Charles, op. cit., p. 52.
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Todavia, na maior parte das vezes, ele mesmo se intitula um liberal e, de fato, defende posies
que, como se ver, bastante prxima do que autores exemplares do liberalismo contemporneo,
como o prprio Rawls e Dworkin, defenderiam. Vejamos o caso de Walzer.
Michael Walzer aponta que as crticas comunitaristas ao liberalismo podem ser
reunidas em duas perspectivas contraditrias: a descritiva e a terica11. A perspectiva descritiva
assume que a teoria poltica liberal representa acuradamente a prtica social liberal. Assim, as
sociedades contemporneas ocidentais so realmente tal como descritas pela teoria liberal so
compostas por indivduos radicalmente isolados, egostas racionais, protegidos e divididos por
seus direitos inalienveis, que no compartilham nenhuma tradio religiosa ou moral. Cada
cidado de uma democracia liberal se imagina realmente livre, desencarnado12 de qualquer
concepo moral derivada de uma comunidade. A sociedade liberal, vista luz dessa perspectiva
comunitarista, realmentefragmentada, contraposta a um ideal de comunidade que o lugar da
coerncia e da conexo com valores e prticas compartilhadas. A perspectiva terica, por sua
vez, argumenta que a teoria liberal representa equivocadamente a realidade. Ningum
independente de laos sociais, autnomos e independentes para escolher qualquer concepo
moral que desejar. Todos nascemos numa famlia e vivemos em vrias comunidades nossa
vizinhana, colegas de escola e de trabalho. No escolhemos essas comunidades, mas nascemos
nelas ou as herdamos13.
importante notar que as duas perspectivas so mutuamente incompatveis: a
perspectiva descritiva assume que o liberalismo realmente est certo quanto descrio das
modernas sociedades liberais, fragmentadas entre cidados que no concordam em quase nada. O
que a perspectiva descritiva questiona como deveriam ser essas sociedades, e no como elas
so. nesse sentido que se torna possvel a compreenso da nostalgia da filosofia de MacIntyre.
O autor parte do que considera o fracasso do Iluminismo, cuja defesa dos valores universais
considerada a causa da crise moral instaurada no ocidente. O Iluminismo, na perspectiva de
MacIntyre, desenraizou os valores particulares de cada comunidade, forando-as a assumirvalores universais, o que levou a um vazio tico no preenchido pelos princpios universais
11 A descrio das duas perspectives seguir a exposio de Michael Walzer em The communitarian critique ofliberalism.12 Em ingls, unencumbered self - expresso cunhada por Sandel para descrever os agentes da posio originalrawlsiana, desencarnados em virtude do vu da ignorncia e no conhecerem nenhum fato concreto de sua posiona vida social.13 Walzer, Idem, p. 10.
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propostos pelo Iluminismo. Partindo de uma defesa da tica aristotlica das virtudes, MacIntyre
defende que a moral e deve ser formada pela insero do indivduo em sua comunidade, a partir
de valores compartilhados com todos. No existem valores universais, mas vrias concepes de
bem, mas cada sociedade deve admitir que seus membros defendam uma nica dessas
concepes, seja ela catlica, muulmana, kantiana, aristotlica ou qualquer outra. A diversidade
intra-social um problema que deve ser extirpado, sob pena de se instaurar uma crise moral
geral. Como garantir as condies do compartilhamento de toda a vida social, no mundo
contemporneo? A soluo de MacIntyre simples o nico lugar que pode satisfazer o requisito
tico do compartilhamento de valores uma pequena comunidade: o Estado-nao um lugar
imprprio para isso14.
Todavia, se a perspectiva descritiva estiver correta, ento a perspectiva terica no
est, pois se fundamenta no entendimento de que a descrio liberal da sociedade est errada, j
que as mesmas sociedades ocidentais descritas pela perspectiva comunitarista descritiva como
fragmentadas, na verdade, so compostas por pessoas que compartilham laos ticos e
concepes de bem definidas. Michael Walzer argumenta que as duas perspectivas, para serem
mantidas coerentemente, dependem de um ajustamento nas duas teses, de modo a torn-las
corretas e mutuamente sustentveis. De acordo com ele, a vertente terica do comunitarismo est
correta quando aponta que as sociedades liberais realmente so compostas por indivduos
relativamente dissociados, mas est equivocada quando diz que no h nada compartilhado entreos cidados de uma sociedade assim. A segunda perspectiva ajuda a compreender esse fato,
quando aponta que o liberalismo no descreve adequadamente nossa realidade social, tendo em
vista que nascemos e vivemos numa famlia e compartilhamos laos e valores ticos com vrias
pessoas. O problema que, se tomamos uma verso radical da segunda perspectiva, somos
14 A esse respeito, ver a seguinte passagem, que contrape o modo de vida das pequenas comunidades com relaoao modo imperial que assimila todas as concepes ticas: H algumas tendncias importantes no pensamento deMacIntyre que parecem restringir o raciocnio aristotlico-tomstico ao modo de vida de pequenas comunidades,como: esse tipo de raciocnio tende a surgir sempre que uma pequena comunidade atinge o consenso mnimo a
respeito do desenvolvimento humano; o domnio do imprio tem sido e continuar a ser inimigo de tal tomismocomunal; e o raciocnio aristotlico-tomstico uma realizao de nossas capacidades naturais que nos levam parao reconhecimento de nossa dependncia de um poder maior que o nosso e que, quando reconhecido, nos leva areconhecer nossa falta de auto-suficincia. Apesar disso, essa perspectiva (se , realmente, parte da proposta deMacIntyre) repousa em uma tese muito menos historicista que a maior parte do pensamento de MacIntyre, uma vezque alega que o raciocnio aristotlico-tomista surge naturalmente a partir de uma realidade humana bsica ao invsde surgir de uma prtica social e histrica. Assim, a questo real se o tomismo est ligado a prticas que lhe dosustentao ou se pode formular uma alegao mais universalista de ser o modo apropriado de raciocnio de todas as
pequenas comunidades que escaparam corrupo do imprio. Traduo livre de MURPHY, Mark C. AlasdairMacIntyre. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 200.
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levados ao raciocnio equivocado segundo o qual compartilhamos e devemos compartilhar
todos os valores ticos com as pessoas prximas a ns. Esse um equvoco que a primeira
perspectiva no permite cometer, ao nos lembrar que as democracias liberais so, de fato,
fragmentadas, embora menos do que um liberalismo mais radical pressuponha.
Cabe ainda esclarecer uma tese que mina o aspecto comunitarista da tese de Walzer.
Ele se esquece do fato de que muitas das comunidades da qual os cidados de uma sociedade
liberal fazem parte tambm so escolhidas, e no apenas herdadas ou porque tais cidados
nasceram nelas. um fato, nas sociedades liberais, que muitas pessoas nasceram em famlias
catlicas, mas isso no implica dizer que devero seguir, necessariamente, a f catlica. Podem
simplesmente se converter ao budismo poropo, ao cientismo ou ao agnosticismo por razes
refletidas e crticas, de forma to fervorosa e sincera quanto qualquer pessoa nascida na Arglia
defenderia a religio muulmana. A escolha tambm um fator importante a ser considerado
numa sociedade pluralista, e costuma ser desprezado pela crtica comunitarista, segundo a qual a
nfase liberal na escolha traduz a questo da identidade em termos simplrios, como a escolha da
cor de uma camisa ou de uma cala jeans.
importante ainda lembrar, embora j tenha apresentado essa questo brevemente,
que, do ponto de vista de uma teoria constitucional, o comunitarismo rejeita a tese de que o
indivduo necessariamente portador de direitos fundamentais. Essa tese principalmente
apresentada por Michael Sandel. De acordo com ele, aceitar que a vida poltica deve ser baseada
em direitos pressupe a crena de que a justia deve ter absoluta prioridade sobre todas as nossas
concepes morais, mas a aceitao da prioridade da justia implica a tese de que a identidade de
cada indivduo pode ser estabelecida independentemente de sua concepo moral. O problema
que, para Sandel, a identidade constituda pela prpria concepo moral de cada cidado e,
assim, a justia no pode ter prioridade alguma na vida poltica em relao s vrias concepes
morais presentes na sociedade15.
Vejamos como o liberalismo responde a essas crticas.
I.2. A resposta do liberalismo contemporneo s crticas.
Ao mesmo tempo em que as crticas comunitaristas colocam o liberalismo em srias
dificuldades, parecem incapazes de oferecer uma alternativa terica (que tem implicaes
15 Ver, especialmente, o captulo I de SANDEL, Michael.Liberalism and the limits of justice, op. cit.,pp. 15-64.
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jurdico-polticas srias, como se ver na seo III) razovel ao fato do pluralismo, ou seja,
situao concreta das sociedades ocidentais modernas, constitudas por cidados que podem
discordar acerca de seus valores ticos, embora convivam num mesmo espao geopoltico.
importante lembrar, novamente, da grande zona cinzenta situada entre as alternativas
puramente liberais e comunitaristas, que s vezes tornam o debate mais grave e menos
produtivo do que poderia ser.
O filsofo liberal contemporneo que mais debateu com os comunitaristas , sem
sombra de dvidas, John Rawls. Uma afirmao categrica como esta poderia parecer perigosa
primeira vista, j que Ronald Dworkin escreveu recentemente sobre a possibilidade de uma
comunidade liberal. Mas, quando olhamos para a trajetria filosfica da obra de Rawls, fcil
notar que o caminho percorrido entre a publicao de Uma teoria da justia (doravante
denominado TJ, publicada em 1971) e O liberalismo poltico (LP, 1993) marcado pela
pretenso de responder s crticas comunitaristas dirigidas a sua obra.
Na verdade, talvez as crticas comunitaristas dirigidas a TJ fossem injustas, tendo em
vista que a preocupao central da obra era responder aos utilitaristas, na poca os tericos
dominantes da filosofia tica e poltica dos Estados Unidos16. Nesse sentido, justifica-se o apoio
de TJ na teoria da escolha racional para justificar que a idia de utilidade era insuficiente para
tornar uma sociedade justa, j que era o tipo de apoio terico buscado na poca pelos economistas
para lidar com os problemas de distribuio de renda numa sociedade capitalista17. Assim, Rawls
travou um importante debate com os economistas, demonstrando cabalmente que o homo
economicus tinha boas razes para sustentar sua vida social em razes de direito fundadas em
pressupostos constitucionais de justia, e no em razes de utilidade ou de maximizao de
riqueza.
Assim, embora Rawls fizesse uma importante defesa das liberdades fundamentais e da
democracia18 como princpios de justia que podem ser consensualmente aceitos na posio
16 RAWLS, Prefcio edio brasileira, TJ, p. XIV.17 Ver, por exemplo, MIRRLEES, J. A. The economic uses of utilitarianism. In: SEN, Amartya; WILLIAMS,Bernard. Utilitarianism and beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.18 Tanto os direitos fundamentais quanto a democracia esto insculpidos no primeiro princpio de justia da teoriarawlsiana. Esse um importante ponto do debate de Rawls com Habermas, j que, para o terico alemo, a estruturaargumentativa de Rawls pressupe que a democracia deve ser restrita por razes de direito fundamental. Contudo,essa uma leitura enviesada de TJ, como o prprio Rawls responde, j que seu primeiro princpio de justia asseguraque as liberdades polticas esto includas dentre as liberdades bsicas, que renem os direitos fundamentais. A
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original, o que seria uma permanente fonte de incluso de culturas minoritrias se tornou o n
grdio da disputa com os comunitaristas, que o acusaram de todas as trs deficincias dirigidas ao
pensamento liberal apontadas na seo anterior. Os artigos escritos aps a publicao de TJ, que
culminaram em LP, podem ser compreendidos como a tentativa de defender TJ das crticas
comunitaristas. Nesse sentido, o problema principal a ser solucionado a questo da estabilidade
das instituies liberais e democrticas diante das grandes divergncias existentes na sociedade.
Nas palavras de Rawls:
O liberalismo poltico procura uma concepo poltica de justia que, assim esperamos, possaconquistar o apoio de um consenso sobreposto que abarque as doutrinas religiosas, filosficas e moraisrazoveis de uma sociedade regulada por ela. A conquista desse apoio permitir responder nossasegunda questo fundamental: como os cidados, que continuam profundamente divididos em relaos doutrinas religiosas, filosficas e morais, mantm, apesar disso, uma sociedade justa e estvel19?
Como apontado, as principais crticas comunitaristas se referem concepo de
pessoa abstrata aceita pelo liberalismo, s pretenses de universalidade e idia de
neutralidade. Vejamos como Rawls responde a tais crticas.
Com relao crtica comunitarista segundo a qual o liberalismo supe uma viso
desencarnada de pessoa, Rawls postula que ela partiu de uma leitura equivocada da posio
original. O papel da posio original em TJ uma situao puramente hipottica, que serve
apenas para ajudar a identificao de princpios de justia a partir de uma posio moral
imparcial que no parta de uma posio especfica da sociedade. O projeto rawlsiano pretende
desenvolver uma teoriaprocedimental capaz de evitar que as pessoas recorressem a suas
posies especficas no mundo social para discutirem a respeito dos princpios de justia que
regulamentariam a vida de todos os cidados20.
respeito do debate entre os dois, ver HABERMAS, Jrgen.Reconciliation through the public use of reason: remarkson John Rawlss political liberalism. The journal of philosophy. Vol. 92, n. 03 (Mar., 1995), 109-131, e RAWLS,John. Political Liberalism: Reply to Habermas. The Journal of Philosophy. Vol. 92, Issue 3 (Mar., 1995), 132-180.Para uma posio similar e mais aprofundada acerca da relao entre democracia e direitos fundamentais no
pensamento de Rawls, ver GUTMANN, Amy. Rawls on the relationship between liberalism and democracy. In:
FREEMAN, Samuel. op. cit., pp. 168-199.19 RAWLS, John. O Liberalismo Poltico. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. Braslia: tica, 2000, p. 52. Rawls serefere ao problema da estabilidade como o segundo problema que o liberalismo poltico se prope a resolver. O
primeiro problema investigado em TJ, e se refere aos princpios de justia que serviriam de diretrizes para explicare servir de base para a crtica das instituies liberais e democrticas existentes. LP busca demonstrar que esses
princpios poderiam ser consensualmente aceitos por uma sociedade pluralista. Destaquei o poderiam paraenfatizar que, para Rawls, seria perfeitamente plausvel que outros princpios de justia fossem melhores que os
propostos em TJ, mas o nus da prova do crtico.20 Rawls quer evitar, no design de sua posio original, o seguinte. Se as pessoas, ao decidirem os princpios de
justia que deveriam reger a sua sociedade concreta, soubessem sua posio social concreta, poderiam simplesmente
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A posio original apenas um critrio contra-ftico para assegurar a imparcialidade
do discurso, que tem papel idntico s condies ideais de fala, de Habermas21. A diferena
fundamental est no fato de que, para responder ao problema da estabilidade da concepo de
justia, Rawls no pode recorrer a uma teoria da linguagem22, como faz Habermas, pois precisa
de uma concepo poltica independente de qualquer teoria filosfica mais controversa. Ao
aceitar a teoria pragmtica dos atos de fala desenvolvida por Austin e por Searle, que no
consensualmente aceita nem entre os filsofos, a estabilidade da teoria habermasiana fica
comprometida por depender de um consenso no-discursivo acerca da teoria do agir
comunicativo. Quem no aceita a teoria do agir comunicativo como uma teoria verdadeira ou
pelo menos razovel tem boas razes para rejeitar toda a teoria habermasiana acerca do direito e
da democracia23. precisamente essa instabilidade que Rawls precisa evitar em TJ, e por isso
precisa de uma perspectiva no-fundacionalista para discutir sua teoria da justia24.
decidir de forma a privilegiar a si mesma. O homo hominis lupus hobbesiano est implcito aqui, pois no h razoalguma para supor que as outras pessoas agiriam de forma altrusta. Pressupor o altrusmo seria, alm de contra-intuitivo, uma ingenuidade, mormente quando consideramos que as sociedades contemporneas so diversas e nocompartilham nenhum critrio tico. Uma pessoa rica provavelmente privilegiaria os mais ricos em detrimento detodos os outros, e seu poder econmico poderia minar qualquer possibilidade de justia. Ao assegurar condieseqitativas de poder e de discurso na posio original, Rawls estipula condies razoveis para que se possa discutira respeito dos princpios sem deixar de levar em considerao que todos so livres e iguais.21 Esse ponto foi enfatizado por OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Critique of public reason revisited: Kant as anarbiter between Rawls and Habermas. Disponvel em . Acessoem: 24 nov. 2005.22 Isso no significa dizer que Rawls ignore o giro lingstico. Alm disso, em vrios momentos cita Davidson,Quine, Searle, Strawson e Wittgenstein, avaliando suas consideraes acerca da linguagem, sem, contudo, secomprometer com uma posio com uma filosofia da linguagem. Alm disso, de certo modo, TJ antecipa vrias dasconsideraes habermasianas e de Dworkin, ao buscar em Kohlberg um respaldo psicolgico de sua teoria da justia.Cf. TJ, p. 692 e seguintes. Mas preciso observar o fato que a validade da teoria rawlsiana no depende da teoriade Kohlberg, j que essa teoria psicolgica apenas um exemplo capaz de se tornar um ndico da validade de suateoria.23 Essa uma questo que mostra como o dilogo entre filosofia e cincia pode ser frutfero. A relao entre filosofiada mente e filosofia da linguagem destacada por John Searle, que mostra como a sua teoria dos atos de faladepende de uma teoria da mente compatvel com nossos conhecimentos biolgicos. Diz o autor: H cerca de duasdcadas, comecei a trabalhar com questes de filosofia da mente. Precisava de uma explicao da intencionalidade,tanto para estabelecer uma base para minha teoria dos atos de fala quanto para completar essa teoria. A meu ver, afilosofia da linguagem um ramo da filosofia da mente; portanto, nenhuma teoria da linguagem completa sem uma
descrio das relaes entre mente e linguagem e de como o sentido a intencionalidade derivada de elementoslingsticos fundamentado na intencionalidade intrnseca da mente/crebro, mais bsica em termos biolgicos.SEARLE, John.A redescoberta da mente. Trad. Eduardo Pereire e Ferreira. So Paulo: Martins Fontes, 1997. po. 01-02. O problema que, admitido esse caminho que me parece razovel, j que, antes de sermos seres sociais, somosseres biolgicos se a teoria da mente proposta por Searle se revelar falsa, sua teoria dos atos de fala precisa serrevista. E parece que esse o caso, j que sua teoria da mente, que postula uma intencionalidade originria que sestaria presente na mente humana, viola a premissa metodolgica bsica da cincia moderna o naturalismometodolgico, segundo o qual o cientista deve se restringir a buscar fenmenos e causas naturais, sem apelar a
premissas sobrenaturais, como Deus ou algum outro pressuposto no-explicvel sequer em princpio por razesnaturais. Sem a premissa naturalista, o conhecimento emprico fica sujeito s falcias da ignorncia e do terceiro
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http://www.geocities.com/nythamar/debate.htmlhttp://www.geocities.com/nythamar/debate.html -
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Desse modo, a crtica comunitarista de Sandel, segundo a qual a posio original
pressupe que as pessoas so desencarnadas do mundo e das condies da vida social, no se
sustenta. O ponto de vista que Rawls pretende destacar, lanando mo da posio original, que
as pessoas tm um senso de justia a partir do qual podem refletir e revisar suas atitudes a partir
de um ponto de vista no qual assumem o respeito pelas outras pessoas como livres e iguais a si.
Essa resposta j estava presente em TJ25, mas, em LP, outro tipo de resposta se torna possvel.
Nessa obra, a concepo de pessoa defendida a depessoa como cidado, que Rawls considera
implcita na cultura poltica das sociedades liberais democrticas. O conceito de cidado dissocia
a idia de pessoa de qualquer concepo tica particular, que o equvoco do comunitarismo de
Sandel, Taylor e MacIntyre, na medida em que consideram o vnculo essencial entre a concepo
pblica de pessoa e as determinadas concepes culturais, religiosas e ticas que elas defendem.
Assim, a concepo rawlsiana de justia consegue responder crtica comunitarista: suaconcepo de pessoa no desencarnada, uma vez que depende de uma cultura poltica pblica
particular, presente nas sociedades liberais democrticas.
A segunda crtica e a terceira crticas comunitaristas sustentam (i) que o liberalismo
defende a aplicao de normas universais incapazes de tornar possvel o atendimento das
diferentes concepes defendidas pelas mais diferentes culturas e (ii) que o liberalismo no
neutro perante as vrias concepes ticas e, portanto, ao assumir aprioridade do direito sobre o
bem, exclui injustificadamente determinadas culturas que seriam anti-liberais. No fundo, as duascrticas partem do mesmo pressuposto terico e sero avaliadas conjuntamente. De acordo com
essa crtica, o liberalismo no seria capaz de acomodar na mesma sociedade comunidades
culturais diferentes que no aceitam os princpios universais e supostamente neutros defendidos
pela cultura liberal. Essa crtica depende de uma concepo epistemolgica falsa, que ser
excludo, cujas estruturas lgicas so as seguintes: dado que sou ignorante da causa de A, logo s pode ter sido B.A primeira parte do argumento comete a falcia da ignorncia porque, partindo da ignorncia com relao ao que sequer explicar, no possvel concluir absolutamente nada. A segunda parte do argumento comete a falcia doterceiro excludo: se eu no sei a causa de A, e no posso concluir nada com relao a isso, tambm no posso
concluir que s B pode explicar A, pois estou aprioristicamente excluindo outras respostas, ao menos em princpio,plausveis. Para uma explicao sobre como a teoria da mente de Searle supe violar o pressuposto metodolgiconaturalista, ver DENNETT, Daniel C.A perigosa idia de Darwin: a evoluo e os significados da vida. Trad. TalitaM. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 415.24 importante notar uma importante diferena entre Rawls e Habermas nesse aspecto. Habermas tambm buscaevitar uma perspectiva fundacionalista, embora necessite da teoria dos atos de fala para articular funcionalmente suateoria da ao comunicativa, ao passo que Rawls no depende da veracidade de sua posio original, assumida comohipottica desde o incio e articulada como um artifcio metodolgico para permitir a discusso procedimental acercados princpios de justia.25 TJ, p. 13.
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avaliada na seo II a idia de que culturas diferentes no compartilham (e no podem
compartilhar!) absolutamente nada em comum. Como visto, entretanto, a concepo do
liberalismo poltico apia-se na tese de que as sociedades pluralistas precisam assegurar um
consenso sobreposto entre as vrias culturas diferentes, apoiado na cultura poltica pblica que
compartilhada por todos. Mas essa cultura poltica pblica no depende de nenhuma concepo
de mundo particular, ao mesmo tempo em que sustentada por todas (embora possa ser
justificada independentemente de cada uma delas) na medida em que supe o consenso
sobreposto entre as vrias concepes particulares de bem com relao aos princpios jurdico-
constitucionais que regulamentam sua vida comum, fundado na idia de pluralismo razovel, ou
seja, que cada concepo de bem deve respeitar todas as outras.
Rawls no defende o pluralismo simples, ou seja, a tese segundo a qual as sociedades
democrticas devem acomodar qualquer forma de pluralismo. Assim como toda a tradio liberal
defende desde Locke, a estabilidade poltica depende de um acordo pblico cuja violao leva
desagregao da vida social. Esse o problema que os comunitaristas apontam que as sociedades
liberais no conseguem resolver, mas a soluo rawlsiana, mais tarde tambm defendida por
Ronald Dworkin e por Jrgen Habermas, resolve sem apelar para concepes ticas capazes de
unir a todos26. A concepo de Rawls, Habermas e Dworkin puramente procedimental e
depende de um consenso dialogado (e no cristalizado) defendido por todas as concepes de
bem presentes na sociedade acerca de um princpio de tolerncia generalizado politicamente naforma de princpios constitucionais que exclui apenas os que precisam recorrer a concepes
ticas pr-polticas para lidar com as situaes de desacordo moral e que, portanto, excluem as
condies da vivncia comum.
26 Nesse sentido, o caminho da filosofia habermasiana se aproxima cada vez mais da proposta rawlsiana em LP. EmIntolerance and discrimination, Habermas afirma o seguinte: Nessa base de reconhecimento recproco das regras
de comportamento tolerante podemos encontrar uma soluo para o paradoxo que levou Goethe a rejeitar atolerncia como benevolncia insultante e assistencialista. Cada ato de tolerncia precisa traar uma caractersticaque devemos aceitar e, simultaneamente, traa os limites acerca do que pode ser tolerado. No pode haver inclusosem excluso. E to logo essa fronteira seja traada de forma autoritria, isto , unilateralmente, o estigma daexcluso arbitrria permanece inscrito em qualquer tolerncia. Somente a delineao universalmente convincente dafronteira que requer que todos os envolvidos reciprocamente levem em considerao as perspectivas dos outros
pode a tolerncia enfraquecer a ameaa da intolerncia. Todos os que poderiam ser afetados por prticas futuras precisam concordar acerca das condies nas quais devem exercer livremente a tolerncia. Traduo livre deHABERMAS, Jrgen. Intolerance and discrimination. In: International journal of constitutional law. Vol. 01, Num.01. Oxford: New York University School of Law e Oxford University Press, 2003, p. 05.
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Assim, torna-se necessrio um critrio fundamentado em consideraes de justia para
excluir vises de mundo intolerantes. nesse sentido que Rawls fala em prioridade da justia
sobre o bem: consideraes de justia fundadas no direito so necessrias para excluir
concepes de bem intolerantes. Esse ponto compartilhado por Rawls, Habermas e Dworkin.
Em Habermas, parte desse critrio se refere violao das condies ideais de fala, que
estabelecem um critrio contra-ftico para possibilitar as condies capazes de viabilizar o agir
comunicativo. Os grupos sociais que violam essas condies podem sofrer a intruso por parte do
poder poltico. Alm disso, em Habermas, encontra-se a idia rawlsiana de consenso sobreposto,
que estabelece as condies do discurso constitucional, encontra seu equivalente funcional na
tese habermasiana acerca do patriotismo constitucional27. A violao do consenso sobreposto (ou
do patriotismo constitucional) pode levar reao poltica contra os infratores, na medida em que
as condies procedimentais do discurso foram violadas. Em Dworkin, o critrio de reaocontra os intolerantes encontrado na reao contra os grupos que pretendem impor os seus
padres de bem-estar volitivo a toda a sua comunidade poltica, que pode compartilhar apenas um
padro de bem-estar crtico, cujo respeito exigvel de todos28.
Assim, a segunda e a terceira crticas comunitaristas tambm se tornam infundadas. O
liberalismo e a vida democrtica no podem se sustentar perante toda e qualquer comunidade,
numa situao de pluralismo simples no qual se deve aceitar qualquer tipo de comunidade
cultural. No aceita, assim, o rtulo de relativista cultural, mas o nus da prova de quedevemos aceitarqualquer coisa como razovel do comunitarista o liberalismo poltico requer
apenas o consenso e o respeito a princpios constitucionais que tornam possvel a vida e a
convivncia comuns. As crticas comunitaristas ao modelo constitucionalista liberal
fundamentam-se numa tese equivocada: a de que o relativismo cultural absoluto e, portanto,
27 A cultura poltica de um pas cristaliza-se em torno da constituio em vigor. Toda cultura nacional, sob a luz daprpria histria, amolda em cada caso um tipo de leitura diferente para os mesmos princpios tais como soberaniado povo e direitos humanos -, os quais tambm se corporificam em outras constituies republicanas. Sobre a base
dessa interpretao, um patriotismo constitucional pode ocupar o lugar do nacionalismo original. (...) Presumo queas sociedades multiculturais s podero manter-se coesas por meio de uma cultura poltica como essa (...).HABERMAS, Jrgen. O Estado nacional europeu sobre o passado e o futuro da soberania e da nacionalidade. In:A incluso do outro. Trad. George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. So Paulo: Edies Loyola,2002, pp. 141-2.28 A propsito do papel regulador das condies ideais de fala na filosofia habermasiana , ver MORRIS, Martin.Rethinking the communicative turn: Adorno, Habermas, and the problem of communicative freedom. New York:State University of New York Press, 2001, pp. 104-5. A respeito da posio de Dworkin com relao aos interessescrticos e volitivos, ver DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. Trad. Jussara Simes. Martins Fontes: So Paulo,2005, pp. 338-9.
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qualquer forma de vida aceitvel. A prxima seo se presta a avaliar essa tese e a mostrar que
sua aceitao mina qualquer possibilidade de dilogo pblico entre culturas diferentes, e que isso
contra-intuitivo do ponto de vista constitucional.
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II. Epistemologia e teoria poltica se encontram: o relativismo cultural em foco.
II.1. Os desafios da ps-modernidade razo pblica.
II.1.1. Cincia e razo desafiados: a questo epistemolgica.
No faz muito tempo que os epistemlogos defendiam concepes de cincia como as
seguintes: a cincia progride de forma indutiva, acumulando teorias verdadeiras confirmadas
pela evidncia emprica; ou opera de modo dedutivo, testando as teorias contra os fatos e contra
outras formulaes tericas capazes de refut-las; ou, ainda, concebendo as teorias cientficas
como instrumentos eficientes de predio1. Essa perspectiva, dominante na vida acadmica at
pelo menos a dcada de 1960, confiava cegamente na autoridade da cincia, cujo sucesso terico
exercia fascnio e parecia ter uma superioridade epistmica inigualvel por outros modos de
raciocinar, como a religio ou a metafsica. Os inmeros obstculos tericos enfrentados2,
contudo, pareciam superveis.
Com a publicao de duas obras filosficas, esse estado de coisas comeou a mudar.
Em 1962, Thomas Kuhn publicou A estrutura das revolues cientficas, onde
defendia que a compreenso do desenvolvimento cientfico pressupunha uma perspectiva
historicizada que levasse em considerao fatores sociolgicos, como o compartilhamento de
valores por uma dada comunidade cientfica, e no apenas a lgica das teorias cientficas. Esses
fatores formam o ncleo do paradigma a partir do qual uma determinada comunidade cientfica
opera, e inclui fatores sociolgicos, metafsicos e lgicos
3
. Os fatores sociolgicos incluem os
1 Ver, a propsito, como exemplos do programa indutivo, o chamado empirismo lgico, as seguintes obras:SCHLICK, Moritz. O fundamento do conhecimento. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1975;
NEURATH, Otto. Proposiciones protocolares. In: AYER, A. J. El positivismo logico. Buenos Aires: Fondo deCultura Econmico, 1965; CARNAP, Rudolf. Philosophy and logical syntax. Londres, 1935. Talvez os principais(ou, ao menos, os mais conhecidos) opositores a essa perspectiva, defensores de uma perspectiva terica mais
prxima do dedutivismo, foram Karl Popper e Imre Lakatos. preciso, entretanto, notar que no so projetosdedutivistas no sentido ingnuo segundo o qual os fatos e, portanto toda a realidade, dependem apenas da teoria. A
propsito de suas contribuies, ver POPPER, Karl.A Lgica da Pesquisa Cientfica. 14. ed. So Paulo: EditoraCultrix Ltda, 2002; POPPER, Karl. Conjecturas e Refutaes. Braslia: Ed. da UnB, 1982; e LAKATOS, Imre. Ofalseamento e a metodologia dos programas de pesquisa cientfica. In: LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan
(orgs.). A crtica e o desenvolvimento do conhecimento: quarto volume das atas do Colquio Internacional sobreFilosofia da Cincia, realizado em Londres em 1965. Trad: Octavio Mendes Cajado. So Paulo: Cultrix: Ed.Universidade de So Paulo, 1979. Teorias instrumentalistas tm entre seus principais marcos tericos as filosofias deJohn Dewey, Willian James e Charles Sanders Pearce.2 Esses obstculos incluem o ceticismo de Hume contra o indutivismo, os paradoxos de Russel, o teorema de Gdel eas teses de Quine da subdeterminao das teorias pela evidncia observacional. HAACK, Susan.Defending science within reason: between scientism and cynicism. New York: Prometheus books, 2003, p. 20.3 Ver MASTERMAN, Margaret.A Natureza de um Paradigma. In: LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan, op. cit.,
p. 75. Para evitar confuses conceituais tpicas dos debates, preferi usar a expresso lgicos no lugar dosparadigmas de artefato, como sugerido pela autora.
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valores compartilhados pelos cientistas que lhe do um certo sentido de identidade4;os fatores
metafsicos constituem o conjunto de crenas dos cientistas, como uma lente que permite aos
cientistas ver o mundo de uma determinada forma; eos fatores lgicos, que dependem em certo
sentido dos fatores sociolgicos, mas no por completo, j que alguns deles so universalizveis,
como a exatido nas predies e o nmero de problemas resolvidos pelo paradigma 5. Alm
disso, de acordo com Kuhn, diferentes paradigmas so incomensurveis, ou seja, os defensores de
um determinado paradigma podem no ter sequer a possibilidade de compararo seu paradigma
com o outro, pois compartilham diferentes pressupostos metafsicos. No h um critrio nico
pelo qual o cientista deva julgar o mrito de um paradigma, j que os proponentes de programas
competitivos aderiro a conjuntos diferentes de padres e vero o mundo de formas diferentes 6.
Em 1975, com a publicao de Contra o mtodo: esboo de uma teoria anrquica do
conhecimento, Paul Feyerabend proclamou que no h um mtodo cientfico nico, que apelos a
racionalidade e a evidncia so mera retrica e que a histria da cincia mostra que a idia de
que a cincia pode ser governada por regras fixas e universais no-realista, e que a nica regra
metodolgica capaz de explicitar o modus operandi da cincia o vale-tudo7. Alm disso,
Feyerabend se vale da incomensurabilidade proposta por Thomas Kuhn para afirmar que a
racionalidade cientfica no melhor que a racionalidade da astrologia, a religiosa ou a do
vodu, mas que apenas melhor entrincheirada pelo Estado8.
Assim, as perspectivas das antigas posturas cientificistas, que pressupunham a
superioridade da racionalidade cientfica, comearam a minar as prprias consideraes acerca da
prpria possibilidade da racionalidade. Socilogos da cincia (Bloor e o programa forte da
sociologia do conhecimento9), filsofos sociais (ligados principalmente aos movimentos
feminista e multiculturalista, como ris Marion Young, Nancy Frazer, Luce Irigaray, Taylor e
Sandel), alm dos normalmente classificados entre os autores ps-modernos, dentre os quais se
4 KUHN, Thomas. Posfcio. In:A estrutura das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 2000, p. 230-1.5 KUHN, op. cit., p. 252.6 CHALMERS, Alan, O que a cincia, afinal?. Trad. Raul Fiker. 1. ed. So Paulo: Brasiliense, 1993, p. 133.7 FEYERABEND, Paul. Contra o mtodo: esboo de uma teoria anrquica do conhecimento. Trad. Octanny S. daMota e Lenidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1975, p. 27.8 FEYERABEND, op. cit., p. 464.9 Tambm chamada de Escola de Edimburgo. A propsito, ver PALCIOS, Manuel. O programa forte da sociologiado conhecimento e o princpio da causalidade. In: PORTOCARRERO, Vera (org.). Filosofia, histria e sociologiadas cincias abordagens contemporneas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994.
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destacam Baudrillard, Latour, Lacan, Deleuze e Guattari, passaram a questionar a validade das
descobertas cientficas e a prpria idia de objetividade e de racionalidade.
Susan Haack e Christopher Norris postulam que esses movimentos partiram de
consideraes equivocadas dos trabalhos de Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend, alm de
incorporarem acriticamente (ou deturparem, em alguns casos) concepes extradas do
pensamento de Heidegger e Foucault10. Essas crticas consideram que o ideal de honestidade
cientfica, respeito pela evidncia ou a preocupao com a verdade so ilusrias e se reduzem a
questes retricas e de poder poltico. Alm disso, recuperam as filosofias de Quine, Kuhn e de
Feyerabend para proclamar que as dificuldades decorrentes da subdeterminao e da
incomensurabilidade entre paradigmas so insuperveis e que, portanto, as pretenses
epistemolgicas acerca da objetividade da cincia so indefensveis, a no ser que palavras como
objetividade e verdade sejam reduzidas a consensos lingsticos socialmente determinados11.
importante notar que um aspecto desses movimentos supem que o resultado da
atividade cientfica determinado socialmente e apenas isso12: a cincia, portanto, incorpora
todos os preconceitos presentes na vida social. o caso, por exemplo, de Boaventura de Sousa
Santos e de Luce Irigaray. Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, denuncia que a teoria da
evoluo de Darwin absorveu a ideologia do liberalismo econmico de Malthus13. verdade que
o prprio Darwin reconhece que sua tese acerca da seleo natural, desenvolvida em A origem
10 O restante da considerao das crticas racionalidade seguir a exposio de Susan Haack, importanteepistemloga contempornea, cujos interesses acadmicos incluem epistemologia, filosofia da cincia, feminismo e
pragmatismo. A exposio seguir, em grande parte, HAACK, Susan. Manifesto of a passionate moderate unfashionable essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. Christopher Norris analisa e desconstri,
passo a passo, vrios dos crticos da racionalidade cientfica mencionados, como Deleuze, Heidegger e o programaforte da sociologia da cincia. Ver NORRIS, Christopher.Against relativism philosophy of science, deconstructionand critical theory. Oxford: Blackwell Publishers Ltd, 1997.11 HAACK, op. cit., pp. 20-1.12 Essa tese normalmente conhecida como construtivismo social. importante notar que a relao do movimento
ps-moderno com a cincia ambgua. s vezes, seus defensores pretendem envernizar o discurso ps-moderno comconceitos cientficos utilizados indevidamente, de modo a alcanar um efeito retrico de aceitao social. Veja-se a
seguinte passagem de Lacan: Assim que o rgo ertil vem simbolizar o lugar da jouissance, no em si mesma,nem sequer em forma de imagem, mas como a parte faltante na imagem desejada: isso porque igualvel ao -1 dasignificao produzida acima, da jouissance, que ele restitui pelo coeficiente de seu enunciado funo da falta designificante (-1). A passagem citada est em SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean. Imposturas intelectuais o abusoda cincia pelos filsofos ps-modernos. Trad. Max Altman. Rio de Janeiro e So Paulo: Record, 1999, pp. 38-9. Aassociao entre o rgo ertil e -1 no faz o menor sentido, nem matemtico, nem psicolgico, nem comoanalogia ou metfora. simplesmente um uso equivocado e falacioso da matemtica para sustentar uma posio emteoria psicolgica.13 SANTOS, Boaventura de Sousa.A crtica da razo indolente: contra o desperdcio da experincia, vol. 1. 2. ed..So Paulo: Cortez, 2000, p. 86.
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das espcies foi desenvolvida a partir de sua leitura do Ensaio sobre os princpios da populao,
de Malthus. Mas, e esse o ponto importante, isso no significou em absoluto uma incorporao
ideolgica da teoria malthusiana. O ponto essencial era uma questo emprica: Darwin j havia
colhido as evidncias empricas que mostravam o fato da evoluo, ou seja, que os organismos
evoluam gradualmente de uma espcie para outra, mas no havia formulado ainda uma teoria
capaz de explicar isso. O modo pelo qual Malthus apresentou a luta entre homem e ambiente, que
gera uma situao de escassez de recursos a partir da qual se torna necessrio lidar a partir de
uma luta pela sobrevivncia, era a chave terica da soluo do problema. Darwin viu na luta pela
sobrevivncia um princpio universal, que era parte da soluo terica que ele buscava. E essa
apropriao da teoria de Malthus, embutida na teoria da seleo natural, s se sustentou porque a
teoria, at hoje, to consolidada como a nica explicao compatvel no apenas com todos os
fatos conhecidos da diversidade biolgica e da relao entre os organismos vivos e os fsseis jencontrados, como tambm com a geologia, a fsica e a qumica conhecidas, que se torna
simplesmente implausvel que se trata apenas de uma apropriao ideolgica do capitalismo14.
Se a questo fosse ideolgica, o darwinismo teria sido abandonado h muito tempo, e questes
ticas como a clonagem ou os transgnicos nem teriam surgido, por impossibilidade ftica,
j que o suporte terico que deu origem tecnologia capaz de tornar essas questespossveis a
sntese neodarwinista, que combinou teoricamente a gentica mendeliana com a teoria da seleo
natural. Desenvolver a engenharia gentica ou mesmo vacinas contra a varola sem o
conhecimento da teoria darwinista seria to provvel quanto dar uma caneta para um macaco e
ele escreverHamlet.
Mas o socilogo portugus no se restringe afirmao dessa tese: para ele, alm de
ocidental e capitalista, a cincia moderna sexista15. Para fundamentar essa afirmativa, o autor
cita como exemplo a sociobiologia que, de acordo com ele, transfere a ordem social para a ordem
natural, afirmando que o reino animal est cheio de machos avidamente promscuo em
perseguio de fmeas que se mantm passivas, lnguidas e expectantes at escolherem um
parceiro, o mais forte ou o mais bonito e, citando Ruth Bleier, que Dessa forma, os
14 Esse ponto ressaltado pelo historiador e filsofo da biologia Michael Ruse. Ver RUSE, Michael. Charles Darwinand the Origins of Species. In: RUSE, Michael (org). But is it science? The philosophical question in thecreation/evolution controversy.New York: Prometheus Books, 1996, p. 79-80.15Op. cit., p. 87.
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sociobilogos tentam atribuir causas naturais a fenmenos de origem social16. importante
notar que a sociobiologia no atribui papis mais ativos para os machos em relao ao papel
das fmeas, que se colocariam como passivas apriorsticamente: na verdade, a sociobiologia
mostrou que tanto machos quanto fmeas esto ativamente (do ponto de vista da teoria evolutiva)
e progressivamente desenvolvendo estratgias diferentes para assegurar maior eficincia na
transmisso gentica (o uso da expresso para assegurar apenas funcional, no teleolgica)17.
Nesse sentido, a prpria diviso dos sexos produto da seleo natural. Boaventura cita Luce
Irigaray como exemplo de crtica feminista epistemologia moderna18. Ser que as crticas da
autora ao sexismo da cincia so capazes de sobreviver a um exame acurado? Vejamos um
trecho de sua autoria:
E = mc2uma equao sexuada? Talvez seja. Consideremos a hiptese afirmativa, na medida em
que privilegia a velocidade da luz, em comparao com outras velocidades que nos so vitalmentenecessrias. O que parece indicar a possvel natureza sexuada da equao no precisamente o seu usoem armas nucleares, mas sim o fato de ter privilegiado o mais rpido19.
A teoria da relatividade uma das teorias cientficas mais bem sedimentadas, tendo
sobrevivido a todas as tentativas de refutao. No sexista por privilegiar a velocidade da luz,
que a velocidade mais rpida conhecida. Alis, o nus da prova o de Irigaray de mostrar que
velocidade e masculino so duas variveis necessariamente acopladas. Se esse acoplamento
no for necessrio, ento tanto Irigaray quanto Boaventura ontologizaram esse acoplamento a
partir de uma percepopreconceituosa da prpria necessidade de o papel da mulher implicar
lentido. Ou seja, os dois tericos cristalizaram uma percepo parcial da sociedade em sua
prpria teoria, e a a tese defendida por eles se torna incoerente, pois acusam a fsica de sexismo,
embora a prpria crtica incorpora preconceitos acerca da prpria mulher, que passa a ser
ontologicamente concebida como cooperativa, lenta e amvel.
16Idem, p. 88.17 O processo de seleo sexual complexo e intrincado. A posio da fmea, ao escolher o macho, no passiva:ela precisa ao mesmo tempo desenvolver estratgias seletivas que permitam, v. g., no caso dos mamferos, em que a
prole necessita de maior tempo para se tornar independente dos pais, a seleo de machos que sejam fiis, fortes ecapazes de proteger a prole. Esse papel, visto dessa perspectiva, ativo. Ao mesmo tempo, permite descrever omacho como passivo, na medida em que ele escolhido pela fmea. Palavras como ativo e passivo so vazias do
ponto de vista da teoria da seleo natural, e na verdade nem so utilizadas pelos bilogos. Cf., a propsito,HAMILTON, William. The Evolution of Altruistic Behavior. In: The American Naturalist, 1963.18Idem,p. 88, n. 21.19 IRIGARAY, Luce. Sujet de la science, sujet sexu? In: Sens et place des connaissances dans la societ. Paris:Centre Nacional de Recherche Scientifique, 1987, p. 100. Apud SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean. Op. cit., p. 112.
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correto que a hiptese do sexismo pode ser assumida num sentido correto. Como o
prprio Boaventura de Sousa Santos aponta, a teoria aristotlica da supremacia do homem sobre a
mulher um caso certo em que isso aconteceu20. Mas em ambos os casos h uma clara falcia
naturalista, em que se apontou que porque assim na natureza, ento necessrio reproduzir
socialmente esse modelo. Nessa tese fraca, perfeitamente plausvel concordar com a crtica do
sexismo da cincia, mas nesse caso a cincia to sexista quanto qualquer outra teoria social,
como a prpria sociologia, que ontologiza o preconceito. Mas a prpria considerao crtica
tpica da atividade cientfica que permite o desacoplamento do preconceito como conceito
ontologicamente vinculado a um determinado gnero. Todavia, a tese forte, segundo a qual h um
vnculo estrutural entre conceitos do conhecimento cientfico e dominao por gnero
simplesmente uma tese insustentvel.
Assim, a primeira relao entre ps-modernos e cincia tenta mostrar que a cincia
socialmente determinada. Dessa crtica, perfeitamente plausvel aceitar que a cincia uma
atividade social, mas equivocado assumir que todos os seus conceitos so apenas determinados
em virtude dos valores sociais. O papel da evidncia e da coerncia das teorias cientficas, bem
como de seu poder de previso e de explicao precisa ser considerado, que tm um papel
importante na atividade cientfica. Se uma teoria simplesmente no consegue explicar um fato ou
responder s crticas e problemas que surgem, simplesmente uma teoria inadequada. Isso
levanta uma questo objetiva importante coerncia e evidncias empricas tm um papelimportante na atividade cientfica, o que no significa dizer que so os nicos critrios a serem
utilizados, nem que os valores sociais tambm no sejam aspectos importantes. A cincia
social, mas seus outputs precisam responder a questes objetivamente e publicamente
concebveis: o conhecimento cientfico no apenas resultado de processos de negociao
sociais21.
Com isso, as crticas de Thomas Kuhn e de Feyerabend levaram a um movimento
crtico de contestao atividade cientfica que, contudo, contm uma srie de abusos. Todavia, a
20 SANTOS, op. cit., p. 87.21 Um caso importante que mostra o perigo de entender a cincia apenas como o fruto de uma ideologia ocorreu naUnio Sovitica. Na poca, rejeitou-se a teoria darwinista porque continha valores capitalistas em prol de umateoria biolgica socialista, proposta por Lysenko. O resultado dessa teoria biolgica aplicvel agricultura foidrstico: a produtividade agrcola despencou e a crise de abastecimento simplesmente geraram um colapsoeconmico que foi um fator consideravelmente importante para gerar movimentos de contestao ao regimesovitico. Cf. KREMENTOSOV, Nikolai. Stalinist Science. Ewing: Princeton University Press, 1996, p 57.
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prpria caracterizao desses movimentos como abuso poderia ser criticada como uma falta de
compreenso da teoria de Feyerabend e Kuhn: se aceitarmos a tese da incomensurabilidade, a
caracterizao do abuso se torna insustentvel, pois o crtico e o criticado esto apenas em
mundos diferentes, onde no podem compreender um ao outro. a onde a epistemologia e a
teoria poltica se encontram.
II.1.2. A razo pblica vitoriosa: o relativismo como questo poltica.
A tese da incomensurabilidade da forma como apresentada rejeita a possibilidade de
entendimento entre mundos que operam sob a gide de paradigmas diferentes. De uma
perspectiva epistemolgica, isso implica a aceitao implcita da tese do construtivismo social: a
cincia uma atividade socialmente determinada e, portanto, impossvel comparar paradigmas
diferentes.
Essa tese aceita implicitamente nos movimentos multiculturalistas, feministas e ps-
modernos22. Como as diferentes formas de vida no tm nada em comum e concebem o mundo
de modo totalmente diferente, a razo perde seu espao por ser um modo culturalmente
determinado de raciocinar que no pode ser imposto a outras pessoas. o que se pode
perceber, por exemplo, na seguinte passagem escrita por ris Marion Young:
Em muitas situaes formais os brancos de classe mdia que tiveram acesso educao agemcomo se tivessem um direito de falar e como se suas palavras fossem carregadas de autoridade,
enquanto os locutores de