alves, rubem. o que é religião
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O Que é Religião(Rubens Alves)
ÍNDICE
P e r s p e c t i v a s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
O s s í m b o l o s d a a u s ê n c i a . . . . . . . . . . . . 1 4
O e x í l i o d o s a g r a d o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 6
A c o i s a q u e n u n c a m e n t e . . . . . . . . . . . . . . 5 2
A s f l o r e s s o b r e a s c o r r e n t e s . . . . . . . . . 6 8
A v o z d o d e s e j o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 5
O D e u s d o s o p r i m i d o s . . . . . . . . . . . . . . . 1 0 2
A a p o s t a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1 5
I n d i c a ç õ e s p a r a l e i t u r a . . . . . . . . . . . . . . . 1 3 0
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PERSPECTIVAS
A q u i e s t ã o o s s a c e r d o t e s ; e m u i t o e m b o r a s e j a m m e u s i n i m i g o s . . . m e u
s a n g u e e s t á l i g a d o a o d e l e s . "
( F . N i e t z s c h e , A s s i m f a l a v a Z a r a t u s t r a ) .
H o u v e t e m p o e m q u e o s d e s c r e n t e s , s e m a m o r a D e u s e s e m r e l i g i ã o , e r a m r a r o s . T ã o r a r o s q u e o s m e s m o s s e
e s p a n t a v a m c o m a s u a d e s c r e n ç a e a e s c o n d i a m , c o m o s e e l a f o s s e u m a p e s t e c o n t a g i o s a . E d e f a t o o e r a . t a n t o
a s s i m q u e n ã o f o r a m p o u c o s o s q u e f o r a m q u e i m a d o s n a f o g u e i r a , p a r a q u e s u a d e s g r a ç a n ã o c o n t a m i n a s s e o s
i n o c e n t e s . T o d o s e r a m e d u c a d o s p a r a v e r e o u v i r a s d o m u n d o r e l i g i o s o , e a c o n v e r s a c o t i d i a n a m e n t e , e s t e t é n u e
f i o q u e s u s t e n t a v i s õ e s d e m u n d o , c o n f i r m a v a , p o r m e i o d e r e l a t o s d e m i l a g r e s , a p a r i ç õ e s , v i s õ e s , e x p e r i ê n c i a s
m í s t i c a s , d i v i n a s e
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demon�acas, que este � um universo encantado e maravilhoso no qual, por detr�s e atrav�s de cada coisa e cada
evento, se esconde e se revela um poder espiritual. O canto gregoriano, a m�sica de Bach, as telas de Hieronymus
Bosch e Pieter Bruegel, a catedral g�tica, a Divina Com�dia, todas estas obras s�o express�es de um mundo que vivia
a vida temporal sob a luz e as trevas da eternidade. O universo f�sico se estruturava em torno do drama da alma
humana. E talvez seja esta a marca de todas as religi�es, por mais long�n quas que estejam umas das outras: o esfor�o
para pensar a realidade toda a partir da exig�ncia de que a vida fa�a sentido.
Mas alguma coisa ocorreu. Quebrou -se o encanto. O c�u, morada de Deus e seus santos, ficou de repente vazio.
Virgens n�o mais apare ceram em grutas. Milagres se tornaram cada vez mais raros, e passaram a ocorrer sempre em
luga res distantes com pessoas desconhecidas. A ci�ncia e a tecnologia avan�aram triunfalmente, construindo um
mundo em que Deus n�o era necess�rio como hip�tese de trabalho. Na verdade, uma das marcas do saber cient�fico
� o seu rigoroso ate�smo metodol�gico: um bi�logo n�o invoca maus esp�ritos para explicar epidemias, nem um
economista os poderes do inferno p�ra dar Contas da infla��o, da mesma forma como a astronom ia moderna,
distante de Kepler, n�o busca ouvir harmonias musicais divinas nas regularidades
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matem�ticas dos astros.
Desapareceu a religi�o? De forma alguma. Ela permanece e frequen temente exibe uma vitalidade que se julgava
extinta. Mas n�o se pode negar que ela j� n�o pode frequentar aqueles lugares que um dia lhe pertenceram: foi
expulsa dos centros do saber cient�fico e das c�maras onde se tomam as decis�es que concretamente dete rminam
nossas vidas. Na verdade, n�o sei de nenhuma inst�ncia em que os te�logos tenham sido convidados a colaborar na
elabora��o de planos militares. N�o me consta, igualmente, que a sensibilidade moral dos profetas tenha sido
aproveitada para o desenvolvimento de problemas econ�micos. E � altamente duvidoso que qualquer
industrial, convencido de que a natureza � cria��o de Deus, e portanto sagrada, tenha perdido o sono por
causa da polui��o. Permanece a experi�ncia religios a — fora do “nulo da ci�ncia, das f�bricas, das usinas,
das armas, do dinheiro, dos bancos, da propaganda, da venda, da compra, do lucro. � compreens�vel
diferentemente do que ocorria em passado muito distante, poucos pais sonhem com carreira sacerdo tal para os
seus filhos. . .
A situaua��o mudou. No mundo sagrado, a experi�ncia religiosa era parte integrante de cada um, da
m e s m a f o r m a c o m o o s e x o , a c o r d a p e l e , o s m e m b r o s , a l i n g u a g e m . U m a p e s s o a s e m r e l i g i ã o e r a u m a a n o m a l i a
. N o m u n d o d e s s a c r a l i z a d o
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a s c o i s a s s e i n v e r t e r a m . M e n o s e n t r e o s h o m e n s c o m u n s , e x t e r n o s a o s c í r c u l o s a c a d é m i c o s , m a s d e f o r m a
i n t e n s a e n t r e a q u e l e s q u e p r e t e n d e m j á h a v e r p a s s a d o p e l a i l u m i n a ç ã o c i e n t í f i c a , o e m b a r a ç o f r e n t e à
e x p e r i ê n c i a r e l i g i o s a p e s s o a l é i n e g á v e l . P o r r a z õ e s ó b v i a s . C o n f e s s a r - s e r e l i g i o s o e q u i v a l e a c o n f e s s a r - s e
c o m o h a b i t a n t e d o m u n d o e n c a n t a d o e m á g i c o d o p a s s a d o , a i n d a q u e a p e n a s p a r c i a l m e n t e . E o e m b a r a ç o v a i
c r e s c e n d o n a m e d i d a e m q u e n o s a p r o x i m a m o s d a s c i ê n c i a s h u m a n a s , j u s t a m e n t e a q u e l a s q u e e s t u d a m a
r e l i g i ã o .
C o m o é i s t o p o s s í v e l ?
C o m o e x p l i c a r e s t a d i s t â n c i a e n t r e c o n h e c i m e n t o e e x p e r i ê n c i a ?
N ã o é d i f í c i l . N ã o é n e c e s s á r i o q u e o c i e n t i s t a t e n h a e n v o l v i m e n t o s p e s s o a i s c o m a m e b a s , c o m e t a s e v e n e n o s
p a r a c o m p r e e n d ê - l o s e c o n h e c ê - l o s . S e n d o v á l i d a a a n a l o g i a , p o d e r - s e - i a c o n c l u i r q u e n ã o s e r i a n e c e s s á r i o a o
c i e n t i s t a h a v e r t i d o e x p e r i ê n c i a s r e l i g i o s a s p e s s o a i s c o m o p r e s s u p o s t o p a r a s u a s i n v e s t i g a ç õ e s d o s f e n ó m e n o s
r e l i g i o s o s .
O p r o b l e m a é s e a a n a l o g i a p o d e s e r i n v o c a d a p a r a t o d a s a s s i t u a ç õ e s . U m s u r d o d e n a s c e n ç a , p o d e r i a e l e
c o m p r e e n d e r a e x p e r i ê n c i a e s t é t i c a q u e s e t e m a o s e o u v i r a N o n a S i n f o n i a d e B e e t h o v e n ? P a r e c e q u e n ã o . N o
e n t a n t o , l h e s e r i a p e r f e i t a m e n t e p o s s í v e l f a z e r a c i ê n c i a d o c o m p o r t a m e n t o d a s p e s s o a s , d e r i v a d o d a
e x p e r i ê n c i a e s t é t i c a . O s u r d o p o d e r i a i r a c o n c e r t o s e , s e m
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o u v i r u m a s ó n o t a m u s i c a l , o b s e r v a r e m e d i r c o m r i g o r a q u i l o q u e a s p e s s o a s f a z e m e a q u i l o q u e n e l a s o c o r r e ,
d e s d e s u a s r e a ç õ e s f i s i o l ó g i c a s a t é p a d r õ e s d e r e l a c i o n a m e n t o s o c i a l , c o n s e q u ê n c i a s d e e x p e r i ê n c i a s p e s s o a i s
e s t é t i c a s a q u e e l e m e s m o n ã o t e m a c e s s o .
M a s , q u e t e r i a e l e a d i z e r s o b r e a m ú s i c a ? N a d a . C r e i o q u e a m e s m a c o i s a o c o r r e c o m a r e l i g i ã o . E e s t a é a r a z ã o
p o r q u e , c o m o i n t r o d u ç ã o à s u a l o b r a c l á s s i c a s o b r e o a s s u n t o , R u d o l f O t t o a c o n s e l h a a q u e l e s q u e n u n c a
tiveram qualquer exper�ncia religiosa a n�o prosseguirem com a leitura. E aqui ter�amos de nos perguntar se
existem, realmente, estas pessoas das quais as perguntas reliqiosas foram radicalmente extirpadas. A religi�o
n�o se liquida com a abstin�ncia dos atos lamentais e a aus�ncia dos lugares sagrados, mesma forma como o
desejo sexual n�o se nina com os votos de castidade. E � quando a dor bate � porta e se esgotam os recursos da
t�cnica que nas pesssoas acordam os videntes, exorcistas, os m�gicos, os curadores, os benzedores os
sacerdotes, os profetas e poetas, aquele que reza e suplica, sem saber direito a quem. . . ent�o as perguntas
sobre o sentido e o sentido da morte, perguntas das horas e diante do espelho. . . O que ocorre freq��ncia �
que as mesmas perguntas religiosas do passado se articulam agora, travestidas, por meio de s�mbolos
secularizados. Metamor
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foseiam -se os nomes. Persiste a mesma fun��o religiosa. Promessas terap�uticas de paz individual, de harmonia
�ntima, de libera��o da ang�stia, esperan�as de ordens sociais fraternas e justas, de resolu��o das lutas entre os
homens e de harmo nia com a natureza, por mais disfar�adas que estejam nas m�scaras do jarg�o
psicanal�tico/psico l�gico, ou da linguagem da sociologia, da pol�tica e da economia, ser�o sempre express�es dos
problemas individuais e sociais em torno dos quais foram tecidas as teias religiosas. Se isto for verdade, seremos
for�ados a concluir n�o que o nosso mundo se secularizou, mas antes que os deuses e esperan�as religiosas ganharam
novos nomes e novos r�tulos, e os seus sacerdotes e profetas novas roupas, novos lugares e novos empregos. - � f�cil
identificar, isolar e estudar a religi�o como o comportamento ex�tico de grupos sociais restritos e distantes. Mas �
necess�rio reconhe c�-la como presen�a invis�vel, sutil, disfar�ada, que se constitui num dos fios com que se tece o
acontecer do nosso cotidiano. A religi�o est� mais pr�xima de nossa experi�ncia pessoal do que desejamos admitir.
O estudo da religi�o, portanto, longe de ser uma janela que se abre apenas para panoramas externos, � como um
espelho em que nos vemos. Aqui a ci�ncia da religi�o � tamb�m ci�ncia de n�s mesmos: sapi�ncia, conhecimento
saboroso. Como o disse poeticamente Ludwig Feuerbach:
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“A consci�ncia de Deus � autoconsci�ncia, conhecimento de Deus � autoconhecimento. A religi�o � o solene
desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revela��o dos seus pensa mentos �ntimos, a confiss�o aberta dos seus
segredos de amor.”
E poder�amos acrescentar: e que tesouro oculto n�o � religioso? E que confiss �o �ntima de amor n�o est� gr�vida de
deuses? E quem seria esta pessoa vazia de tesouros ocultos e de segredos de amor?
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OS S�MBOLOS DA AUS�NCIA
“O homem � a �nica criatura
que se recusa a ser o que ela �.”
(Albert Camus)
Atrav�s de centenas de milhares de anos os animais conseguiram sobreviver por meio da adapta��o f�sica. Os
seus dentes e as suas garras afiadas, os cascos duros e as carapa �as rijas, seus venenos e odores, os sentidos
hipersens�veis, a capacidade de correr, saltar, cavar, a estranha habilidade de confundir-se com o
terreno, as cascas das �rvores, as folhagens, todas estas s�o manifesta��es de corpos maravilhosamente adap tados �
natureza ao seu redor. Mas a coisa n�o se esgota na adapta��o f�sica do organismo ao ambiente. O animal faz
com que a natureza se adapte ao seu corpo. E vemos as represas cons tru�das p�los castores, os buracos -
esconderijo
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dos tatus, os formigueiros, as colmeias de abelhas, as casas de jo�o-de-barro. . . E o extraord�n�rio � que toda
esta sabedoria para sobreviver e arte para fazer seja transmitida de gera��o a gera��o, silenciosamente, sem
palavras e sem mestres. “Lembro -me daquela vespa ca�adora QUE sai em busca de uma aranha, luta com ela,
pica -a, paralisa -a, arrastando -a ent�o para o seu ninho. Ali deposita os seus ovos e morre. Tempos depois as
larvas nascer�o e se alimentar�o da carne fresca da aranha im�vel. Crescer�o. E sem haver tomado li��es ou
frequentado escolas, um dia ouvir�o a voz silenciosa da sabedoria que habita os seus corpos, h� milhares de
anos: ; “Chegou a hora. � necess�rio buscar uma aranha...”
E o que � extraordin�rio � o tempo em que se d� a experi�ncia dos animais. Moluscos parecem luas conchas hoje
da mesma forma como o faziam h� milhares de anos atr�s. Quanto aos Jo�os de barro, n�o sei de altera��o alguma,
para melhor ou para pior, que tenham introduzido no plano de suas casas. Os pintassilgos cantam i K) cantava m
no passado, e as represas r�s, as colmeias das abelhas e os formigueiros t�m permanecido inalterados por s�culos.
Cada corpo produz sempre a mesma coisa. O O seu corpo. Sua programa��o biol�gica � completa, fechada,
perfeita. N�o h� problemas n�o correspondidos. E, por isto mesmo, ele n�o
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possui qualquer brecha para que alguma coisa nova seja inventada. Os animais praticamente n�o possuem uma
hist�ria, tal como a entendemos. Sua vida se processa num mundo estruturalmente fechado. A aventura da
liberdade n�o lhes � ofere cida, mas n�o recebem, em contrapartida, a maldi ��o da neurose e o terror da ang�stia.
Como s�o diferentes as coisas com o homem! Se o corpo do animal me permite prever que coisas ele
produzir� — a forma de sua concha, de sua toca, do seu ninho, o estilo de sua corte sexual, a m�sica de seus sons — e
as coisas por ele produzidas me permitem saber de que corpo partiram, n�o existe nada semelhante que se
possa dizer dos homens . Aqui est� uma crian�a rec�m -nascida. Do ponto de vista gen�tico ela j� se encontra
totalmente determinada: cor da pele, dos olhos, tipo de sangue, sexo, suscetibi lidade a enfermidades. Mas, como
ser� ela? Gostar� de m�sica? De que m�sica? Que l�ngua falar�? E qual ser� o seu estilo? Por que ideais e valores
lutar�? E que coisas sair�o de suas m�os? E aqui os geneticistas, por maiores que sejam os seus conhecimentos, ter�o
de se calar. Porque o homem, diferentemente do animal que � o seu corpo, tem o seu corpo. N�o � o corpo
que o faz. � ele que faz o seu corpo. � verdade que a progra ma��o biol�gica n�o nos abandonou de todo. As
c r i a n c i n h a s c o n t i n u a m a s e r g e r a d a s e a n a s c e r , n a m a i o r i a d a s v e z e s p e r f e i t a s , s e m q u e o s p a i s
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e a s m ã e s s a i b a m o q u e e s t á o c o r r e n d o l á d e n t r o d o v e n t r e d a m u l h e r . E é i g u a l m e n t e a p r o g r a m a ç ã o b i o l ó g i c a q u e
c o n t r o l a o s h o r m ô n i o s , a p r e s s ã o a r t e r i a l , o b a t e r d o c o r a ç ã o . . . D e f a t o , a p r o g r a m a ç ã o b i o l ó g i c a c o n t i n u a a
o p e r a r . M a s e l a d i z m u i t o p o u c o , s e é q u e d i z a l g u m a c o i s a , a c e r c a d a q u i l o q u e i r e m o s f a z e r p o r e s t e m u n d o a f o r a .
O m u n d o h u m a n o , q u e é f e i t o c o m t r a b a l h o e a m o r , é u m a p á g i n a e m b r a n c o n a s a b e d o r i a q u e n o s s o s c o r p o s
h e r d a r a m d e n o s s o s a n t e p a s s a d o s .
O f a t o é q u e o s h o m e n s s e r e c u s a r a m a s e r a q u i l o q u e , à s e m e l h a n ç a d o s a n i m a i s , o p a s s a d o l h e s p r o p u n h a .
T o r n a r a m - s e i n v e n t o r e s d e m u n d o s , p l a n t a r a m j a r d i n s , f i z e r a m c h o u p a n a s , c a s a s e p a l a c i o s , c o n s t r u í r a m
t a m b o r e s , f l a u t a s e h a r p a s , f i z e r a m p o e m a s , t r a n s f o r m a r a m o s s e u s c o r p o s , c b r i n d o - o s d e t i n t a s , m e t a i s , m a r c a s
e t e c i d o s , i n v e n t a r a m b a n d e i r a s , c o n s t r u í r a m a l t a r e s , e n t e r r a r a m o s s e u s m o r t o s e o s p r e p a r a r a m p a r a v i a j a r e , n a
a u s ê n c i a , e n t o a r a m l a m e n t o s p ê l o s d i a s e p e l a s n o i t e s . . .
E Q U A N d o n o s p e r g u n t a m o s s o b r e a i n s p i r a ç ã o p a r a e s t e s m u n d o s q u e o s h o m e n s i m a g i n a r a m e c o n s t r u i r a m ,
v e m - n o s o e s p a n t o . E i s t o p o r q u e c o n s t a t a m o s q u e a q u i , e m o p o s i ç ã o a o m u n d o o i m p e r a t i v o d a s o b r e v i v ê n c i a
r e i n a s u p r e m o , o c o r p o j á n ã o t e m a ú l t i m a p a l a v r a .
O h o m e m é c a p a z d e c o m e t e r s u i c í d i o . O u e n t r e g a r o s e u c o r p o à m o r t e , d e s d e q u e d e l a u m o u t r o
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m u n d o v e n h a a n a s c e r , c o m o o f i z e r a m m u i t o s r e v o l u c i o n á r i o s . O u d e a b a n d o n a r - s e à v i d a m o n á s t i c a , n u m a t o t a l
r e n ú n c i a d a v o n t a d e , d o s e x o , d o p r a z e r d a c o m i d a . É c e r t o q u e p o d e r ã o d i z e r - m e q u e e s t e s s ã o e x e m p l o s
e x t r e m o s , e q u e a m a i o r i a d a s p e s s o a s n e m c o m e t e s u i c í d i o , n e m m o r r e p o r u m m u n d o m e l h o r e . n e m s e
e n t e r r a n u m m o s t e i r o . T e n h o d e c o n c o r d a r . M a s , p o r o u t r o l a d o , é n e c e s s á r i o r e c o n h e c e r q u e t o d a a n o s s a v i d a
c o t i d i a n a s e b a s e i a n u m a p e r m a n e n t e n e g a ç ã o d o s i m p e r a t i v o s i m e d i a t o s d o c o r p o . O s i m p u l s o s s e x u a i s , o s g o s t o s
a l i m e n t a r e s , a s e n s i b i l i d a d e o l f a t i v a , o r i t m o b i o l ó g i c o d e a c o r d a r / a d o r m e c e r d e i x a r a m h á m u i t o d e s e r
express�es naturais do corpo porque o corpo, ele mesmo, foi transformado de entidade da natureza em cria��o
da cultura. A cul tura, nome que se d� a estes mundos que os homens imaginam e constr�em, s� se inicia no
momento em que o corpo deixa de dar ordens. Esta � a raz�o por que, diferentemente das larvas, abandonadas
pela vespa -m�e, as crian�as t�m de ser educadas . � necess�rio que os mais velhos lhes ensinem como � o mundo. N�o
existe cultura sem educa��o. Cada pessoa que se aproxima de uma crian�a e com ela fala, conta est�rias, canta
can��es, faz gestos, estimula, aplaude, ri, repreende, amea�a, � um professo r que lhe descreve este mundo
inventado, substituindo, assim, a voz da sabedoria do corpo, pois que nos umbrais do mundo humano ela cessa
de falar.
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Se o corpo, como fato biol�gico bruto, n�o � a fonte e nem o modelo para a cria��o dos mundos da cultura,
permanece a pergunta: porque raz�o os homens fazem a cultura? Por que motivos abandonam o mundo s�lido e
pronto da natureza para, � semelhan�a das aranhas, construir teias para sobre elas viver?
Para que plantar jardins?
E as esculturas, os quadros, as sinfonias, os poemas?
E grandes e pequenos se d�o as m�os, e brincam roda, e empinam papagaios, e dan�am.. .
...e choram os seus mortos, e choram a si mes m�s nos seus mortos, e constr�em altares, falam sobre a
suprema conquista do corpo, o triunfo final sobre a natureza, a imortalidade , a ressurrei��o da carne. . .
E eu tenho de confessar que n�o sei dar resposta a estas perguntas. Constato, simplesmente, que � assim. E tudo
isto que o homem faz me revela um mist�rio antropol�gico. Os animais sobrevivem pela adapta��o f�sica ao
mundo. Os homens, ao cont r �ri o parece ser constitucionalmente de sa da pt a dos ao mundo, tal como
ele lhes � dado. Nossa tradi��o filos�fica fez seus s�rios esfor�os no sentido de demonstrar que o homem
� um ser racional, ser de pensamento. Mas as produ��es culturais que saem de suas m�os sugerem, ao contr�rio,
que o homem � um ser de desejo. Desejo � sintoma de priva��o de
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aus�ncia. N�o se tem saudade da bem-amada presente. A saudade s� aparecer� na dist�ncia, quando
estiver longe do carinho. Tamb�m n�o se tem fome — desejo supremo de sobreviv�ncia f�sica — com o
e s t ô m a g o c h e i o . A f o m e s ó s u r g e q u a n d o o c o r p o é p r i v a d o d o p ã o . E l a é t e s t e m u n h o d a a u s ê n c i a d o a l i m e n t o . E
a s s i m é , s e m p r e , c o m o d e s e j o . D e s e j o p e r t e n c e a o s s e r e s q u e s e s e n t e m p r i v a d o s , q u e n ã o e n c o n t r a m p r a z e r n a q u i l o
q u e o e s p a ç o e o t e m p o p r e s e n t e l h e s o f e r e c e . É c o m p r e e n s í v e l , p o r t a n t o , q u e a c u l t u r a n ã o s e j a n u n c a a
r e d u p l i c a ç ã o d a n a t u r e z a . P o r q u e o q u e a c u l t u r a d e s e j a c r i a r é e x a t a m e n t e o o b j e t o d e s e j a d o . A a t i v i d a d e h u m a n a ,
a s s i m , n ã o p o d e s e r c o m p r e e n d i d a c o m o u m a s i m p l e s l u t a p e l a s o b r e v i v ê n c i a q u e , u m a v e z r e s o l v i d a , s e d á a o l u x o
d e p r o d u z i r o s u p é r f l u o . A c u l t u r a n ã o s u r g e n o l u g a r o n d e o h o m e m d o m i n a a n a t u r e z a . T a m b é m o s m o r i b u n d o s
b a l b u c i a m c a n ç õ e s , e e x i l a d o s e p r i s i o n e i r o s f a b r i c a m p o e m a s . C a n ç õ e s f ú n e b r e s e x o r c i z a r ã o a m o r t e ? P a r e c e q u e
n ã o . M a s e l a s e x o r c i z a m o t e r r o r e l a n ç a m p ê l o s e s p a ç o s a f o r a o g e m i d o d e p r o t e s t o e a r e t i c ê n c i a d e e s p e r a n ç a . E o s
p o e m a s d o c a t i v e i r o n ã o q u e b r a m a s c o r r e n t e s e n e m a b r e m a s p o r t a s , m a s , p o r r a z õ e s q u e n ã o e n t e n d e m o s b e m ,
p a r e c e q u e o s h o m e n s s e a l i m e n t a m d e l e s e , n o f i o t é n u e d a f a l a q u e o s e n u n c i a , s u r g e d e n o v o a v o z d o p r o t e s t o e o
b r i l h o d a e s p e r a n ç a .
A s u g e s t ã o q u e n o s v e m d a p s i c a n á l i s e é d e q u e o h o m e m f a z c u l t u r a a f i m d e c r i a r o s o b j e t o s
2 1
d o s e u d e s e j o . O p r o j e t o i n c o n s c i e n t e d o e g o , n ã o i m p o r t a o s e u t e m p o e n e m o s e u l u g a r , é e n c o n t r a r u m m u n d o
q u e p o s s a s e r a m a d o . H á s i t u a ç õ e s e m q u e e l e p o d e p l a n t a r j a r d i n s e c o l h e r f l o r e s . H á o u t r a s s i t u a ç õ e s , e n t r e t a n t o ,
d e i m p o t ê n c i a e m q u e o s o b j e t o s d o s e u a m o r s ó e x i s t e m a t r a v é s d a m a g i a d a i m a g i n a ç ã o e d o p o d e r m i l a g r o s o d a
p a l a v r a . J u n t a m - s e a s s i m o a m o r , o d e s e j o , a i m a g i n a ç ã o a s m ã o s e o s s i m b o l o s p a r a c r i a r u m m u n d o q u e f a ç a
s e n t i d o , e e s t e j a e m h a r m o n i a c o m o s v a l o r e s d h o m e m q u e o c o n s t r ó i , q u e s e j a e s p e l h o , e s p a ç o a m i g o , R e a l i z a ç ã o
c o n c r e t a d o s o b j e t o s d o d e s e j o o u p a r a f a z e r u s o d e u m a t e r m i n o l o g i a q u e n o s v e m d e H e g e l , o b j e t i v a ç ã o d o
E s p í r i t o . T e r i m o s e n t ã o d e n o s p e r g u n t a r q u e c u l t u r a é e s t a q u e i d e a l s e r e a l i z o u ? N e n h u m a . É p o s s i v e l d i s c e r n i r
a i n t e n ç ã o d o a t o c u l t u r a l , m a s p a r e c e q u e a r e a l i z a ç ã o e f e t i v a p a r a s e m p r e
e s c a p a à q u i l o q u e n o s é c o n c r e t a m e n t e p o s s í v e l . A v o l t a d o j a r d i m e s t á s e m p r e o d e s e r t o q u e
e v e n t u a l m e n t e o d e v o r a ; a o r d o a m o r i s ( S c h e l l e r ) e s t a c e r c a d a p e l o c a o s ; e o c o r p o q u e b u s c a a m o r e p r a z e r s e
d e f r o n t a c o m a r e j e i ç ã o , a c r u e l d a d e , a s o l i d ã o , a i n j u s t i ç a , a p r i s ã o , a t o r t u r a , a d o r , a m o t e . A c u l t u r a p a r e c e
s o f r e r d a m e s m a f r a q u e z a q u e s o f r e m o s r i t u a i s m á g i c o s : r e c o n h e c e m o s a s u a i n t e n ç ã o , c o n s t a t a m o s o s e u f r a c a s s o
e s o b r a a p e n a s a e s p e r a n ç a d e q u e , d e a l g u m a f o r m a , a l g u m d i a , a r e a l i d a d e s e h a r m o n i z e c o m
2 2
o d e s e j o . E e n q u a n t o o d e s e j o n ã o s e r e a l i z a , r e s t a c a n t á - l o , d i z ê - l o , c e l e b r á - l o , e s c r e v e r - l h e p o e m a s , c o m p o r - l h e
s i n f o n i a s , a n u n c i a r - l h e c e l e b r a ç õ e s e f e s t i v a i s . E a r e a l i z a ç ã o d a i n t e n ç ã o d a c u l t u r a s e t r a n s f e r e e n t ã o p a r a a e s f e r a
d o s s í m b o l o s .
S í m b o l o s a s s e m e l h a m - s e a h o r i z o n t e s . H o r i z o n t e s : o n d e s e e n c o n t r a m e l e s ? Q u a n t o m a i s d e l e s n o s
a p r o x i m a m o s , m a i s f o g e m d e n ó s . E , n o e n t a n t o , c e r c a m - n o s a t r á s , p ê l o s l a d o s , à f r e n t e . S ã o o r e f e r e n c i a l d o
n o s s o c a m i n h a r . H á s e m p r e o s h o r i z o n t e s d a n o i t e e o s h o r i z o n t e s d a m a d r u g a d a . . . A s e s p e r a n ç a s d o a t o p e l o q u a l
o s h o m e n s c r i a r a m a c u l t u r a , p r e s e n t e s n o s e u p r ó p r i o f r a c a s s o , s ã o h o r i z o n t e s q u e n o s i n d i c a m d i r e ç õ e s . E
e s t a é a r a z ã o p o r q u e n ã o p o d e m o s e n t e n d e r u m a c u l t u r a q u a n d o n o s d e t e m o s n a c o n t e m p l a ç ã o d o s s e u s
t r i u n f o s t é c n i c o s / p r á t i c o s . P o r q u e é j u s t a m e n t e n o p o n t o o n d e e l e f r a c a s s o u q u e b r o t a o s í m b o l o ,
t e s t e m u n h a d a s c o i s a s a i n d a a u s e n t e s , s a u d a d e d e c o i s a s q u e n ã o n a s c e r a m . . .
E é a q u i q u e s u r g e a r e l i g i ã o , t e i a d e s í m b o l o s , r e d e d e d e s e j o s , c o n f i s s ã o d a e s p e r a , h o r i z o n t e d o s h o r i z o n t e s , a
m a i s f a n t á s t i c a e p r e t e n c i o s a t e n t a t i v a d e t r a n s u b s t a n c i a r a n a t u r e z a . N ã o é c o m p o s t a d e i t e n s e x t r a o r d i n á r i o s .
H á c o i s a s a s e r e m c o n s i d e r a d a s : a l t a r e s , s a n t u á r i o s , c o m i d a s , p e r f u m e s , l u g a r e s , c a p e l a s , t e m p l o s , a m u l e t o s ,
c o l a r e s , l i v r o s . . .
2 3
e t a m b é m g e s t o s , c o m o o s s i l ê n c i o s , o s o l h a r e s , r e z a a s , e n c a n t a ç õ e s , r e n ú n c i a s , c a n ç õ e s , p o e m a s r o m a r i a s ,
p r o c i s s õ e s , p e r e g r i n a ç õ e s , e x o r c i s m o s , m i l a g r e s , c e l e b r a ç õ e s , f e s t a s , a d o r a ç õ e s .
E t e r í a m o s d e n o s p e r g u n t a r a g o r a a c e r c a d a s p r o p r i e d a d e s e s p e c i a i s d e s t a s c o i s a s e g e s t o s , q u e f a z e m
d e l e s h a b i t a n t e s d o m u n d o s a g r a d o , e n q u a n t o o u t r a s c o i s a s e o u t r o s g e s t o s , s e m a u r a o u p o d e r , c o n t i n u a m a
m o r a r n o m u n d o p r o f a n o .
H á p r o p r i e d a d e s q u e , p a r a s e f a z e r e m s e n t i r e v a l e r d e p e n d e m e x c l u s i v a m e n t e d e s i m e s m a s , P o r - e x e m p l o ,
a n t e s q u e o s h o m e n s e x i s t i s s e m j á b r i l h a v a m a s e s t r e l a s , o s o l a q u e c i a , a c h u v a c a i a e a s p l a n t a s e b i c h o s
e n c h i a m o m u n d o . T u d o i s t o e x i s t i r i a e s e r i a e f i c a z s e m q u e o h o m e m j a m a i s e x i s t i d o , j a m a i s p r o n u n c i a d o u m a
p a l a v r a , j a m a i s f e i t o u m g e s t o . E é p r o v á v e l q u e q u e c o n t i n u a r a m , m e s m o d e p o i s d o n o s s o d e s a p a r e c i m e n t o .
T r a t a - s e d e r e a l i d a d e s n a t u r a i s , i n d e p e n t e d o d e s e j o , d a v o n t a d e , d a a t i v i d a d e p r á t i c a d o s h o m e n s . H á
t a m b é m g e s t o s q u e u m a e f i c á c i a e m s i m e s m o s . O d e d o q u e p u x a o g a t i l h o , a m ã o q u e f a z c a i r a b o m b a , o s
p é s q u e f a z e m a b i c i c l e t a a n d a r : a i n d a q u e o a s s a s s i n a d o n a d a s a i b a e n ã o o u ç a p a l a v r a a l g u m a , a i n d a q u e a q u e l e s
sobre quem a bomba explode n�o recebam antes explica��es, e ainda que n�o haja conversa��o entre os p�s e as
rodas — n�o importa, os gestos t�m efic�cia pr�pria e s�o, praticamente habitantes do mundo da natureza.
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Nenhum fato, coisa ou gesto, entretanto, � encontrado j� com as marcas do sagrado. O sagrado n�o � uma
efic�cia inerente �s coisas. Ao contr�rio, coisas e gestos se tornam religiosos quando os homens os balizam como
tais. A religi�o nasce com o poder que os homens t�m de dar nomes �s coisas, fazendo uma discrimina��o entre
coisas de import�ncia secund�ria e coisas nas quais seu destino, sua vida e sua morte se dependuram. E esta � a raz�o
por que, fazendo uma abstra��o dos sentimentos e experi�ncias pessoais que acompanham o encontro com o sagrado,
a religi�o se nos apresenta como um certo tipo de fala, um discurso, uma rede de s�mbolos. Com estes s�mbolos os
homens discriminam objetos, tempos e espa�os, construindo, com o seu aux�lio, uma ab�bada sagrada com que
recobrem o seu mundo. Por qu�? Talvez porque, sem ela, o mundo seja por demais frio e escuro. Com seus s�mbolos
sagrados o homem exorciza o medo e constr�i diques contra o caos.
E, assim, coisas inertes — pedras, plantas, fontes — e gestos, em si vulgares, passam a ser os sinais vis�veis desta
teia invis�vel de significa��es, que vem a existir pelo poder humano de dar nomes �s coisas, atribuindo -lhes um
valor. N�o foi sem raz�o que nos referimos � religi�o como "a mais fant�stica e pretenciosa tentativa de
transubstanciar a natureza". De fato, objetos e gestos, em si insens�veis e indiferentes ao destino
25
humano, s�o magicamente a ele integrados. Camus observou que � curioso que ningu�m esteja
disposto a morrer por verdades cientificas. Que diferen�a faz se o sol gira em torno da Terra , se a Terra gira em
torno do sol? � que as verdades cient�ficas se referem aos objetos na a mais radical e deliberada indiferen�a a
vida, morte � felicidade e infelicidade das pessoas. H� verdades que s�o frias e inertes. Nelas n�o se depe ndura o
nosso destino. Quando, ao contrario , tocamos nos s�mbolos em que nos dependuram OS, o corpo inteiro estremece. E
este estremecer � a marca emocional/existencial da experiencia do sagrado.
Sobre que fala a linguagem , religiosa?
Dentro dos limites do mundo profano tratamos de coisas concretas e vis�veis. Assim, discutimos pessoas,
contas, custo de vida, atos dos pol�ticos, golpes de Estado e nossa �ltima crise de reumatismo .Quando entramos no
mundo sagrado, entretanto descobrimos que uma transfo rma��o se processou. Porque agora a linguagem se refere
as coisas invis�veis, coisas para al�m dos nossos sentidos comuns que, segundo a explica��o, somente os olhos da f�
podem contemplar .O zen-budismo chega mesmo a dizer que a experi�ncia da ilumina��o religiosa, satori, � um
terceiro olho que se abre para ver coisas que os outros dois n�o podiam ver. .
O sagrado se instaura gra�as ao poder do uinvisivel.
26
E � ao invis�ve l que a linguagem religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma, as alturas dos c�us,
o desespero do inferno, os fluidos e influ�ncias que curam, o para�so, as bem -aventuran�as eternas e o pr�prio
Deus. Quem, jamais, viu qualquer uma destas entid ades?
Uma pedra n�o � imagin�ria. Vis�vel, concreta. Como tal, nada tem de religioso. Mas no momento em que
algu�m lhe d� o nome de altar, ela passa a ser circundada de uma aura misteriosa, e os olhos da f� podem
vislumbrar conex�es invis�veis que a ligam ao mundo da gra�a divina. E ali se fazem ora��es e se oferecem
sacrif�cios.
P�o, como qualquer p�o, vinho, como qualquer vinho. Poderiam ser usados numa refei��o ou orgia:
materiais profanos, inteiramente. Deles n�o sobe nenhum odor sagrado. E as palavras s�o pronunciadas:
"Este � o meu corpo, este � o meu sangue. . ." — e os objetos vis�veis adquirem uma dimens�o nova, e passam
a ser sinais de reali dades invis�veis.
Temo que minha explica��o possa ser convin cente para os relig iosos, mas muito fraca para os que nunca
se defrontaram com o sagrado. � dif�cil compreender o que significa este poder do invis�vel, a que me
refiro. Pe�o, ent�o, licen�a para me valer de uma paY�bola, tirada da obra de Antojne de Saint-Exup�ry, O
Pequeno Pr�ncipe. O pr�ncipe encontrou-se com um bichinho que nunca havia visto antes, uma raposa. E a
raposa
27
Quem jamais viu qualqur uma destas entidades?
2 8
l h e d i s s e :
" V o c ê q u e r m e c a t i v a r ? "
" Q u e é i s t o ? " , p e r g u n t o u o m e n i n o .
" C a t i v a r é a s s i m : e u m e a s s e n t o a q u i , v o c ê s e
a s s e n t a l á , b e m l o n g e . A m a n h ã a g e n t e s e a s s e n t a
m a i s p e r t o . E a s s i m , a o s p o u c o s , c a d a v e z m a i s
p e r t o . . . "
E o t e m p o p a s s o u , o p r i n c i p e z i n h o c a t i v o u a r a p o s a e c h e g o u a h o r a d a p a r t i d a .
" E u v o u c h o r a r " , d i s s e a r a p o s a .
" N ã o é m i n h a c u l p a " , d e s c u l p o u - s e a c r i a n ç a . " E u l h e d i s s e , e u n ã o q u e r i a c a t i v á - l a . . . N ã o v a l e u a p e n a . V o c ê
p e r c e b e ? A g o r a , v o c ê v a i c h o r a r ! "
" V a l e u a p e n a s i m " , r e s p o n d e u a r a p o s a . " Q u e r s a b e r p o r q u ê ? S o u u m a r a p o s a . N ã o c o m o t r i g o . S ó c o m o
g a l i n h a s . O t r i g o n ã o s i g n i f i c a a b s o l u t a m e n t e n a d a , p a r a m i m . M a s v o c ê m e c a t i v o u . S e u c a b e l o é l o u r o . E a g o r a ,
n a s u a a u s ê n c i a , q u a n d o o v e n t o f i z e r b a l a n ç a r o c a m p o d e t r i g o , e u f i c a r e i f e l i z , p e n s a n d o e m v o c ê . . . "
E o t r i g o , d a n t e s s e m s e n t i d o , p a s s o u a c a r r e g a r e m s i u m a a u s ê n c i a , q u e f a z i a a r a p o s a s o r r i r . P a r e c e - m e q u e
e s t a p a r á b o l a a p r e s e n t a , d e f o r m a p a r a d i g m á t i c a , a q u i l o q u e o d i s c u r s o r e l i g i o s o p r e t e n d e f a z e r c o m a s c o i s a s :
t r a n s f o r m á - l a s , d e e n t i d a d e s b r u t a s e v a z i a s , e m p o r t a d o r a s d e s e n t i d o , , d e t a l m a n e i r a q u e e l a s p a s s e m a f a z e r p a r t e
d o m u n d o h u m a n o , c o m o s e f o s s e m e x t e n s õ e s d e n ó s m e s m o s .
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E p o d e r í a m o s i r m u l t i p l i c a n d o o s e x e m p l o s , s e m f i m , r e l a t a n d o a t r a n s f o r m a ç ã o d a s c o i s a p r o f a n a s e m c o i s a s
s a g r a d a s n a m e d i d a e m q u e s ã o e n v o l v i d a s p ê l o s n o m e s d o i n v i s í v e l .
M a s n e c e s s á r i o p r e s t a r a t e n ç ã o à s d i f e r e n ç a s . A c o n t e c e q u e o d i s c u r s o r e l i g i o s o n ã o v i v e e m s i m e s m o . F a l t a - l h e
a a u t o n o m i a d a s c o i s a s d a n a t u r e z a , q u e c o n t i n u a m a s m e s m a s , e m q u a l q u e r q u a l q u e r l u g a r . A r e l i g i ã o é
constru�da pelos s�mbolos que os homens usam. Mas os homens s�o diferentes. E seus mundos sagrados . “O
mundo dos felizes � diferente do mundo dos infelizes" (Wittgenstein). Assim. . . h� aquele que fazem
amizade com a natureza, e reconhecem de que dela recebem a vida.E eles envolvem ent�o, com o di�fano v�u
do invisivel, os ventos e as nuvens, os rios e as estrelas, os animais e as plantas,lugares sacramentais. E po isso
mesmo pedem perd�o aos animais que v�o ser mortos, e aos galhos que ser�o quebrados, e a m�e terra que �
escavada, e protegem as fontes de seus excrementos.
...h� tamb�m os companheiros da for�a e da vit�ria, que abem�oa as espadas, as correntes, os ex�rcitos e o seu
pr�prio riso. H� os sofredores que transformam os gemidos dos oprimidos em salmos, as espadas
em arados as lancas em podadeiras e constr�em, simbolicamente, as utopias da paz e d� justi�a eterna, em que o
lobo vive com o cordeiro e a
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crian�a brinca com a serpente.
Que estranho discurso! Bem que ter�amos de nos perguntar acerca do poder m�gico que permite que os
homens falem acerca daquilo que nunca viram. . . E a resposta � que, para a religi�o, n�o importam os fatos e as
presen�as que os sentidos podem agarrar. Importam os objetos que a fantasia e a imagina��o podem
construir. Fatos n�o s�o valores: presen�as que n�o valem o amor. O amor se dirige para coisas que ainda ri�o
nasceram, ausentes. Vive do desejo e da espera. E � justamente a� que surgem a imagi na��o e a fantasia,
"encanta��es destinadas a produzir. . . a coisa que se deseja. . ." (Sartre). Conclu�mos, assim, com
honestidade, que as entidades religiosas s�o entidades imagin�rias.
Sei que tal afirma��o parece sacr�lega. Especial mente para as pessoas que j� se encontraram com o sagrado. De
fato, aprendemos desde muito cedo a identificar a imagina��o com aquilo que � falso. Afirmar que o
testemunho de algu�m � produto da imagina��o e da fantasia , � acus� -la de pertur ba��o mental ou suspeitar
de sua integridade moral. Parece que a imagina��o � um engano que tem de ser erradicado. De maneira
especial �queles que devem sobreviver nos labirintos insti tucionais, sutilezas lingu�sti cas e ocasi�es rituais do
mundo acad�mico, � de import�ncia b�sica que o seu discurso seja assepticamente desinfe -tado de quaisquer
res�duos da imagina��o e do
31
observa��o! Que os fatos sejam valores! Que o objeto triunfe sobre o desejo! Todos sabem, neste mundo da ci�ncia,
que a imagina��o conspira contra a objetividade e a verdade. Como poderia algu�m, comprometido com o saber,
entregar -se � embriaguez do desejo e suas produ��es?
N�o, n�o estou dizendo que a religi�o � apenas ima gina��o, apenas fantasia. Ao contr�rio, estou sugerindo que ela
tem o poder, o amor e a digni dade do imagin�rio. Mas, para elucidar decla -i.i��o t�o estapaf�rdia, ter�amos de dar
um passo .iir�s, at� l� onde a cultura nasceu e continua a nascer. Por que raz�es os homens fizeram flautas,
inventaram dan�as, escreveram poemas, puseram dores nos seus cabelos e colares nos seus pesco�os, i 'instru�ram casas,
pintaram -nas de cores alegres puseram quadros nas paredes? Imaginemos que estes homens tivessem sido totalmente
objeti vos, totalmente dominados p�los fatos, totalmente verdadeiros — sim, verdadeiros! — poder iam eles ter
inventado coisas? Onde estava a flauta antes de ser inventada? E o jardim? E as dan�as? E os quadros? Ausentes.
Inexistentes. Nenhum conh ecimento poderia jamais arranc� -los da natureza. Foi necess�rio que a imagina��o
gr�vida para que o mundo da cultura nascesse. Portanto, ao afirmar que as entidades da religi�o pertencem ao
imagin�rio, n�o as estou colocando ao lado do engodo e da pertu rba��o
32
mental. Estou apenas estabelecendo sua filia��o e reconhecendo a fraternidade que nos une.
Come�amos falando dos animais, de como eles sobrevivem, a adapta��o dos seus corpos ao ambiente, a
adapta��o do ambiente aos seus corpos. Passamos ent�o ao homem, que n�o sobrevive por meio de artif�cios de
adapta��o f�sica, pois ele cria a cultura e, com ela, as redes simb�licas da religi�o.
E o leitor teria agora todo o direito de nos perguntar:
"Mas, e estas redes simb�licas? Sabemos que s�o belas e possuem uma fun��o est�tica. Sabemos que delas se
derivam festivais e celebra��es, o que estabelece o seu parentesco com as atividades l�dicas. Mas, al�m disto,
para que servem? Que uso lhes d�o os homens? Ser�o apenas ornamentos sup�rfluos ? A sobreviv�ncia depende de
coisas e atividades pr�ticas, materiais, como ferramentas, armas, comida, trabalho. Poder�o os s�mbolos,
entidades t�o d�beis e di�fanas, nascidas da imagi na��o, competir com a efic�cia daquilo que � material e
concreto?"
Sobreviv�ncia tem a ver com a ordem. Observe os animais. Nada fazem a esmo. N�o h� impro visa��es. Por
s�culos e mil�nios seu comporta mento tem desenhado os mesmos padr�es. Quando, por uma raz�o qualquer, esta
ordem inscrita nos seus organismo s entra em colapso, o comportamento perde a unidade e dire��o.
33
E a vida se vai.
Cada animal tem uma ordem que lhe � espec�fica. Beija -flores n�o sobrevivem da mesma forma que besouros. E
foi pensando nisto que o bi�logo Johannes von Uexk�ll teve uma ideia fascinante. O que nos parece �bvio � que o
ambiente em que vivem os animais � uma reali dade uniforme, a mesma para todos e quaisquer organismos, uma
esp�cie de mar em que cada um se arranja como pode. Uexk�ll teve a coragem de se perguntar: "Ser� assim para os
animais? Moscas, borboletas, lesmas, cavalos marinhos viver�o num mesmo mundo?" E poder�amos imaginar o
ambiente como se fosse um grande �rg�o, adormecido, e cada organismo um orga nista que faz brotar do
instrumento a sua melodia espec�fica. Assim, n�o existiria um ambiente, em si mesmo. O que existe, para o
animal, � aquele mundo, criado � sua imagem e semelhan�a, que resulta da atividade do corpo sobre aquilo que est�
ao seu redor. Cada animal � uma melodia que, ao se fazer soar, faz com que tudo ao seu redor reverbere, com as
mesmas notas harm�nicas e a mesma linha sonora.
A analogia n�o serve de todo, porque sabemos que os homens n�o s�o governados por seus organismos. Suas m�sicas
n�o s�o biol�gicas, mas culturais. Mas, da mesma forma como o animal lan�a sobre o mundo, como se fosse uma
rede, a ordem que lhe sai do organismo, em busca
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de um mundo � sua imagem e semelhan�a; da mesma forma como ele faz soar sua melodia e, ao faz� -lo,
desperta, no mundo ao seu redor, os sons que lhe s�o harm�nicos, tamb�m o homem lan�a, projeta, externaliza
suas redes simb�lico -religiosas — suas melodias — sobre o universo inteiro, os confins do tempo e os
confins do espa�o, na esperan�a de que c�us e terra sejam portadores de seus valores. O que esta' em jogo � a ordem.
Mas n�o � qualquer ordem que atende �s exig�ncias humanas. O que se busca, como esperan�a e utopia,
como projeto inconsciente do ego, � um mundo que traga as marcas do desejo e que corre sponda �s aspira��es
do amor. Mas o fato � que tal realidade n�o existe, como algo presente. E a religi�o aparece como a grande hip�tese e
aposta de que o universo inteiro possui uma face humana. Que ci�ncia poderia construir tal horizonte? S�o
necess�ri as as asas da imagi na��o para articular os s�mbolos da aus�ncia. E o homem diz a religi�o, este
universo simb�lico "que proclama que toda a realidade � portadora de um sentido humano e invoca o cosmos
inteiro para significar a validade da exist�n cia humana" (Berger& Luckmann).
C o m i s t o o s h o m e n s n ã o p o d e r ã o a r a r o s o l o , g e r a r f i l h o s o u m o v e r m á q u i n a s . O s s í m b o l o s n ã o p o s s u e m t a l
t i p o d e e f i c á c i a . M a s e l e s r e s p o n d e m a ' u m o u t r o t i p o d e n e c e s s i d a d e , t ã o p o d e r o s a q u a n t o o s e x o e a f o m e : a
n e c e s s i d a d e d e v i v e r
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n u m m u n d o q u e f a ç a s e n t i d o . Q u a n d o o s e s q u e m a s d e s e n t i d o e n t r a m e m c o l a p s o , i n g r e s s a m o s n o m u n d o d a
l o u c u r a . B e m d i z i a C a m u s q u e o ú n i c o p r o b l e m a f i l o s ó f i c o r e a l m e n t e s é r i o é o p r o b l e m a d o s u i c í d i o , p o i s
q u e e l e t e m a v e r c o m a q u e s t ã o d e s e a v i d a é d i g n a o u n ã o d e s e r v i v i d a . E o p r o b l e m a n ã o é m a t e r i a l , m a s s i m b ó -
l i c o . N ã o é a d o r q u e d e s i n t e g r a a p e r s o n a l i d a d e , m a s a d i s s o l u ç ã o d o s e s q u e m a s d e s e n t i d o . E s t a t e m s i d o u m a t r á g i c a
c o n c l u s ã o d a s s a l a s d e t o r t u r a . É v e r d a d e q u e o s h o m e n s n ã o v i v e m s ó d e p ã o . V i v e m t a m b é m d e
s í m b o l o s , p o r q u e s e m e l e s n ã o h a v e r i a o r d e m , n e m s e n t i d o p a r a a v i d a , e n e m v o n t a d e d e v i v e r . S e
p u d e r m o s c o n c o r d a r c o m a a f i r m a ç ã o d e q u e a q u e l e s q u e h a b i t a m u m m u n d o o r d e n a d o e c a r r e g a d o d e
s e n t i d o g o z a m d e u m s e n s o d e o r d e m i n t e r n a , i n t e g r a ç ã o , u n i d a d e , d i r e ç ã o e s e s e n t e m e f e t i v a - m e n t e m a i s f o r t e s
p a r a v i v e r ( D u r k h e i m ) , t e r e m o s e n t ã o d e s c o b e r t o a e f e t i v i d a d e e o p o d e r d o s s í m b o l o s e v i s l u m b r a d o a
m a n e i r a p e l a q u a l a i m a g i n a ç ã o t e m c o n t r i b u í d o p a r a a s o b r e v i v ê n c i a d o s h o m e n s .
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O E X Í L I O D O S A G R A D O
" Q u a n d o p e r c o r r e m o s n o s s a s b i b l i o t e c a s , c o n v e n c i d o s d e s t e s p r i n c í p i o s , q u e
d e s t r u i ç ã o t e m o s d e f a z e r l S e t o m a r m o s e m n o s s a s m ã o s q u a l q u e r v o l u m e , s e j a
d e t e o l o g i a , s e j a d e m e t a f í s i c a e s c o l á s t i c a , p o r e x e m p l o , p e r g u n - t e m o - n o s : s e r á
q u e e l e c o n t é m q u a l q u e r r a c i o c í n i o a b s t r a t o r e l a t i v o à q u a n t i d a d e e a o
n ú m e r o ? N ã o . S e r á q u e e l e c o n t é m r a c i o c í n i o s e x p e r i m e n t a i s q u e d i g a m
r e s p e i t o a m a t é r i a s d e f a t o e à e x i s t ê n c i a ? N ã o E n t ã o , l a n ç a i - o à s c h a m a s , p o i s
e l e n ã o p o d e c o n t e r c o i s a a l g u m a a n ã o s e r s o f i s m a s e i l u s õ e s . "
( D a v i d H u m e )
A s c o i s a s d o m u n d o h u m a n o a p r e s e n t a m u m a c u r i o s a p r o p r i e d a d e . J á s a b e m o s q u e e l a s s ã o
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diferentes daquelas que constituem a natureza. A exist�ncia da �gua e do ar, a altern�ncia entre o dia e a noite,
a composi��o do �cido sulf�rico e o ponto de congelamento da �gua em nada dependem da vontade do
homem. Ainda que ele nunc a tivesse existido, a natureza estaria a�, passando muito bem, talvez melhor. . .
Com a �ujtura as coisas s�o diferentes. A transmiss�o da heran�a, os direitos sexuais dos homens e das
mulheres, atos que constituem crimes e os castigo s que s�o aplicados, os adornos, o dinheiro, a propriedade, a
linguagem, a arte culin�ria — tudo isto surgiu da atividade dos homens. Quando os homens desaparecerem,
estas coisas desapa recer�o tamb�m.
Aqui est� a curiosa propriedade a que nos referimos: n�s nos esquecemos de que as coisas, culturais foram
inventadas e, por esta raz�o, elas aparecem aos nossos olhos como se fossem naturais. Na g�ria filos�fico -sociol�gica
este processo recebe o nome de reifica��o, Seria mais f�cil se fal�ssemos em coisifica��o, pois � isto mesmo que a
palavra quer dizer, j� que ela se deriva do latim res, rei, que quer dizer "coisa". Isto acontece, em parte, porque
as crian�as, ao nascerem, j� encontram um mundo social pronto, t�o pronto t�o s�lido quanto a natureza. Elas
n�o viram este mundo saindo das m�os dos seus criadores, como se fosse cer�mica rec�m -moldada nas m�os do oleiro.
Al�m disto, as gera��es mais velhas,
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interessadas em preservar o mundo fr�gil por elas contru�do com tanto cuidado, tratam de esconder dos mais
novos, inconscientemente, a qualidade artificial (e prec�ria) das coisas que est�o a�. Porque, caso contr�rio, os
jovens pode riam come�ar a ter ideias perigosas. . . De fato, se tudo o que constitui o mundo humano � artificial e
convencional, ent�o este mundo pode ser abolido e refeito de outra forma. Mas quem se atreveria a pensar
pensamentos como este em rela��o a um mundo que tivesse a solidez das coisas naturais?
Isto se aplica de maneira peculiar aos s�mbolos. De tanto serem repetidos e compartilhados, de tanto serem
usados, com sucesso, � guisa de receitas, n�s os reificamos, passamos a trat� -los como se fossem coisas. Todos os
s�mbolos que s�o usados com sucesso experimentam esta meta morf ose. Deixam de ser hip�teses da imagina��o e
passam a ser tratados como manifesta��es da realidade. Certos s�mbolos derivam o seu sucesso do seu poder para
congregar os homens, que os usam para definir a sua situa��o e articular um projeto comum de vida. Tal � o caso
das religi�es, das ideologias, das utopias. Outros se imp�em como vitoriosos pelo seu poder para resolver
p r o b l e m a s p r á t i c o s , c o m o é o c a s o d a m a g i a e d a . c i ê n c i a . O s s í m b o l o s v i t o r i o s o s , e e x a t a - m e n t e p o r s e r e m
v i t o r i o s o s , r e c e b e m o n o m e d e v e r d a d e , e n q u a n t o q u e o s s í m b o l o s d e r r o -
3 9
l a d o s s ã o r i d i c u l a r i z a d o s c o m o s u p e r s t i ç õ e s o u p e r s e g u i d o s c o m o h e r e s i a s .
E n ó s , q u e d e s e j a m o s s a b e r o q u e é a r e l i g i ã o , q u e j á s a b e m o s q u e e l a s e a p r e s e n t a c o m o u m a r e d e d e s í m b o l o s ,
t e m o s d e p a r a r p o r u m m o m e n t o p a r a n o s p e r g u n t a r s o b r e o q u e o c o r r e u c o m a q u e l e s q u e h e r d a m o s . Q u e f i z e r a m
c o n o s c o ? Q u e f i z e m o s c o m e l e s ? E p a r a c o m p r e e n d e r o p r o c e s s o p e l o q u a l n o s s o s s í m b o l o s v i r a r a m c o i s a s e
c o n s t r u í r a m u m m u n d o , p a r a d e p o i s e n v e l h e c e r e d e s m o r o n a r e m m e i o a l u t a s , t e m o s d e r e c o n s t r u i r u m a h i s t ó r i a .
P o r q u e f o i e m m e i o a u m a h i s t ó r i a c h e i a d e e v e n t o s d r a m á t i c o s , a l g u n s g r a n d i o s o s , o u t r o s m e s q u i n h o s , q u e s e
f o r j a r a m a s p r i m e i r a s e m a i s a p a i x o n a d a s r e s p o s t a s à p e r g u n t a " o q u e é a r e l i g i ã o ? "
N o p r o c e s s o h i s t ó r i c o a t r a v é s d o q u a l n o s s a c i v i l i z a ç ã o s e f o r m o u , r e c e b e m o s u m a h e r a n ç a s i m b ó l i c o - r e l i g i o s a , a
p a r t i r d e d u a s v e r t e n t e s . D e u m l a d o , o s h e b r e u s e o s c r i s t ã o s . D o o u t r o , a s t r a d i ç õ e s c u l t u r a i s d o s g r e g o s e d o s
r o m a n o s . C o m e s t e s s í m b o l o s v i e r a m v i s õ e s d e m u n d o t o t a l m e n t e d i s t i n t a s , m a s e l e s s e a m a l g a m a r a m ,
t r a n s f o r m a n d o - s e m u t u a m e n t e , e v i e r a m a f l o r e s c e r e m m e i o à s c o n d i ç õ e s m a t e r i a i s d e v i d a d o s p o v o s q u e o s
r e c e b e r a m . E f o i d a í q u e s u r g i u a q u e l e p e r í o d o d e n o s s a h i s t ó r i a b a t i z a d o c o m o I d a d e M é d i a .
N ã o c o n h e c e m o s n e n h u m a é p o c a q u e l h e p o s s a s e r c o m p a r a d a . P o r q u e a l i o s s í m b o l o s
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d o s a g r a d o a d q u i r i r a m u m a d e n s i d a d e , u m a c o n - c r e t u d e e u m a o n i p r e s e n ç a q u e f a z i a m c o m q u e o m u n d o
i n v i s í v e l e s t i v e s s e m a i s p r ó x i m o e f o s s e m a i s s e n t i d o q u e a s p r ó p r i a s r e a l i d a d e s m a t e r i a i s . N a d a
a c o n t e c i a q u e n ã o o f o s s e p e l o p o d e r d o s a g r a d o , e t o d o s s a b i a m q u e a s c o i s a s d o t e m p o e s t ã o i l u m i n a d a s
p e l o e s p l e n d o r e p e l o t e r r o r d a e t e r n i d a d e . N ã o é p o r a c i d e n t e q u e t o d a a s u a a r t e s e j a d e d i c a d a à s c o i s a s
s a g r a d a s e q u e n e l a a n a t u r e z a n ã o a p a r e ç a n u n c a t a l c o m o n o s s o s o l h o s a v ê e m . O s a n j o s d e s c e m à t e r r a , o s
c é u s a p a r e c e m l i g a d o s a o m u n d o , e n q u a n t o D e u s p r e s i d e a t o d a s a s c o i s a s d o t o p o d e s u a a l t u r a s u b l i m e .
E h a v i a p o s s e s s õ e s d e m o n í a c a s , b r u x a s e b r u x a r i a s , m i l a g r e s , e n c o n t r o s c o m o d i a b o , e a s c o i s a s b o a s
a c o n t e c i a m p o r q u e D e u s p r o t e g i a a q u e l e s q u e o t e m i a m , e a s d e s g r a ç a s e p e s t e s e r a m p o r E l e e n v i a d a s c o m o
c a s t i g o s p a r a o p e c a d o e a d e s c r e n ç a . T o d a s a s c o i s a s t i n h a m s e u s l u g a r e s a p r o p r i a d o s , n u m a o r d e m h i e r á r q u i c a
d e v a l o r e s , p o r q u e D e u s a s s i m h a v i a a r r u m a d o o u n i v e r s o , s u a c a s a , e s t a b e l e c e n d o g u i a s e s p i r i t u a i s e
imperadores, no alto, para exercer o poder e usar a espada, colocando l� em baixo a pobreza e o trabalho
no corpo de outros.
Tudo girava em torno de um n�cleo central, tem�tica que unificava todas as coisas: o drama da
salva��o, o perigo do inferno, a caridade de Deus levando aos c�us as almas puras. E � perfei tamente
compreens�vel que tal drama tenha
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exigido e estabelecido uma geografia que localizava com precis�o o lugar das moradas do dem�nio e as
coordenadas das mans�es dos bem-aven turados.
Se o universo havia sa�do, por um ato de cria��o pessoal, das m�os de Deus — e era inclusive poss�vel
determinar com precis�o a data de evento t�o grandioso — e se Ele continuava, pela sua gra�a, a
sustentar todas as coisas, conclu�a-se que tudo, absolutamente tudo, tinha um prop�sito definido. E era
esta vis�o teleol�gica da realidade (de tetos, que, em grego, significa fim, prop�sito) que determinava a
pergunta fundamental que a ci�ncia medieval se propunha: "para qu�T'. Conhecer alguma coisa era saber a
que fim ela se destinava. E os fil�sofos se entregavam a investiga��o dos sinais que, de alguma forma,
pudessem indicar o sentido de cada uma e de todas as coisas. E � assim que um homem como Kepler dedica
toda sua vida ao estudo da astronomia na firme convic��o de que Deus n�o havia colocado os planetas no
c�u por acaso. Deus, era um grande m�sico-ge�metra, e as regularidades matem�ticas dos movimentos dos
astros podiam ser decifradas de sorte a revelar a melodia que Ele fazia os planetas cantarem em coro, no
firmamento, para o �xtase dos homens. No final de suas investiga��es ele chegou a representar cada um dos
planetas por meio de uma nota musical. O que Kepler fazia em rela��o aos planetas os outros faziam
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com as plantas, as pedr as, os animais, os fen� menos f�sicos e qu�micos, perguntando -se acerca de suas finalidades
est�ticas, �ticas, humanas. . . De fato, era isto mesmo: o universo inteiro era compreendido como algo dotado de
um sentido humano. � justamente aqui que se encontra o seu car�ter essencialmente religioso.
Aqui eu me detenho para um par�ntesis. Imagino que o leitor sorria, espantado perante tanta imagina��o.
Curioso, mas � sempre assim: de dentro do mundo encantado das fantasias, elas sempre se apresentam com a
soli dez das monta nhas. Para os medievais n�o havia fantasia alguma. Seu mundo era s�lido, constitu�do por fatos,
comprovados por in�meras evid�ncias e al�m de quaisquer d�vidas. Sua atitude para com o seu mundo era
i d ê n t i c a à n o s s a a t i t u d e p a r a c o m o n o s s o . C o m o e l e s , s o m o s i n c a p a z e s d e r e c o n h e c e r o q u e d e f a n t a s i o s o e x i s t e
n a q u i l o q u e j u l g a m o s s e r t e r r e n o s ó l i d o , t e r r a f i r m e . E o q u e é f a s c i n a n t e é q u e u m a c i v i l i z a ç ã o c o n s t r u í d a c o m
a s f a n t a s i a s t e n h a s o b r e v i v i d o p o r t a n t o s s é c u l o s . E n e l a o s h o m e n s v i v e r a m , t r a b a l h a r a m , l u t a r a m , c o n s t r u í r a m
c i d a d e s , f i z e r a m m ú s i c a , p i n t a r a m q u a d r o s , e r g u e r a m c a t e d r a i s . . . C u r i o s o e s t e p o d e r d a s f a n t a s i a s p a r a c o n s t r u i r
t e i a s f o r t e s b a s t a n t e p a r a q u e n e l a s o s h o m e n s s e a b r i g u e m .
P o u c o s f o r a m o s q u e d u v i d a r a m . R e c e i t a s q u e p r o d u z e m b o l o s g o s t o s o s n ã o s ã o q u e s t i o n a d a s ; q u a n d o u m
d e t e r m i n a d o s i s t e m a d e s í m b o l o s
4 3
f u n c i o n a d e m a n e i r a a d e q u a d a , a s d ú v i d a s n ã o p o d e m a p a r e c e r . A r e c e i t a é r e j e i t a d a q u a n d o o b o l o f i c a
s i s t e m a t i c a m e n t e d u r o ; a d ú v i d a e o s q u e s t i o n a m e n t o s s u r g e m q u a n d o a a ç ã o é f r u s t r a d a e m s e u s o b j e t i v o s .
A q u e l e s q u e d u v i d a m o u p r o p õ e m n o v o s s i s t e m a s d e i d e i a s , o u s ã o l o u c o s o u s ã o i g n o r a n t e s , o u s ã o i c o n o c l a s t a s
i r r e v e r e n t e s .
A c o n t e c e u , e n t r e t a n t o , q u e a o s p o u c o s , m a s d e f o r m a c o n s t a n t e , p r o g r e s s i v a , c r e s c e n t e , o s h o m e n s c o m e ç a r a m a
f a z e r c o i s a s n ã o p r e v i s t a s n o r e c e i t u á r i o r e l i g i o s o . N ã o e r a m a q u e l e s q u e f i c a v a m n a c ú p u l a d a h i e r a r q u i a s a g r a d a
q u e a s f a z i a m . E n e m a q u e l e s q u e e s t a v a m c o n d e n a d o s a o s s e u s s u b t e r r â n e o s . O s q u e e s t ã o e m c i m a r a r a m e n t e
e m p r e e n d e m c o i s a s d i f e r e n t e s . N ã o l h e s i n t e r e s s a m u d a r a s c o i s a s . O p o d e r e a r i q u e z a s ã o b e n e v o l e n t e s p a r a c o m
a q u e l e s q u e o s p o s s u e m . E o s q u e s e a c h a m m u i t o p o r b a i x o , e s m a g a d o s a o p e s o d a s i t u a ç ã o , g a s t a m s u a s p o u c a s
e n e r g i a s n a s i m p l e s l u t a p o r u m p o u c o d e p ã o . E v i t a r a m o r t e p e l a f o m e j á é u m t r i u n f o . F o i d e u m a c l a s s e
s o c i a l q u e s e e n c o n t r a v a n o m e i o q u e s u r g i u u m a n o v a e s u b v e r s i v a a t i v i d a d e e c o n ó m i c a , q u e c o r r o e u a s c o i s a s e o s
s í m b o l o s d o m u n d o m e d i e v a l .
E m o p o s i ç ã o a o s c i d a d ã o s d o m u n d o s a g r a d o , q u e h a v i a m c r i a d o s í m b o j o s q u e l h e s p e r m i t i s s e m c o m p r e e n d e r a
r e a l i d a d e c o m o u m d r a m a e . v i s u a l i z a r s e u l u g a r d e n t r o d e s u a t r a m a , à n o v a c l a s s e i n t e r e s s a v a m a t i v i d a d e s c o m o
p r o d u z i r c o m e r c i a n a l i z a r ,
4 4
r a c i o n a l i z a r o t r a b a l h o , v i a j a r p a r a d e s c o b r i r n o v o s m e r c a d o s , o b t e r l u c r o s , c r i a r r i q u e z a s . E , s e o s
p r i m e i r o s s e d e f i n i a m e m t e r m o s d a s m a r c a s d i v i n a s q u e p o s s u í a m p o r n a s c i m e n t o , o s ú l t i m o s a f i r m a v a m :
" P o r n a s c i m e n t o n a d a s o m o s . N ó s n o s f i z e m o s . S o m o s o q u e p r o d u z i m o s " . E a s s i m c o n t r a s t a v a a s a c r a l i d a d e
i n ú t i l d o s q u e o c u p a v a m o s l u g a r e s p r i v i l e g i a d o s d a s o c i e d a d e m e d i e v a l c o m a u t i l i d a d e p r á t i c a
d a q u e l e s q u e , s e m m a r c a s d e n a s c i m e n t o , e r a m e n t r e t a n t o c a p a z e s d e a l t e r a r a f a c e d o m u n d o p o r m e i o d o s e u
t r a b a l h o . E m n o m e d o p r i n c í p i o d a u t i l i d a d e a t r a d i ç ã o s e r á , d e m a n e i r a s i s t e m á t i c a , s a c r i f i c a d a à
r a c i o n a l i d a d e d a p r o d u ç ã o d a r i q u e z a . A q u i l o q u e n ã o é ú t i l d e v e p e r e c e r .
N a m e d i d a e m q u e o u t i l i t a r i s m o s e i m p ô s e p a s s o u a g o v e r n a r a s a t i v i d a d e s d a s p e s s o a s , p r o c e s s o u - s e
u m a e n o r m e r e v o l u ç ã o n o c a m p o d o s s í m b o l o s . A l g u n s a c h a m q u e i s t o o c o r r e u p o r e n t e n d e r e m q u e
o s s í m b o l o s s ã o c ó p i a s , r e f l e x o s , e c o s d a q u i l o q u e f a z e m o s . S e i s t o f o r v e r d a d e , o s s í m b o l o s n ã o p a s s a m d e
e f e i t o s d e c a u s a s m a t e r i a i s , e l e s m e s m o s v a z i o s d e q u a l q u e r t i p o d e e f i c á c i a . A c o n t e c e q u e , c o m o j á s u g e r i m o s , o s
s í m b o l o s n ã o s ã o m e r a s e n t i d a d e s i d e a i s . E l e s g a n h a m d e n s i d a d e , i n v a d e m o m u n d o e a í s e c o l o c a m a o l a d o d e
a r a d o s e d e a r m a s . P o r i s t o r e j e i t o q u e e l e s s e j a m u m a s i m p l e s t r a d u ç ã o , n u m a o u t r a l i n g u a g e m , d a s
f o r m a s m a t e r i a i s d a s o c i e d a d e e s u a s n e c e s s i d a d e s v i t a i s . O q u e n e c e s s i d a d e s v i t a i s . O q u e
4 5
o c o r r e é q u e , a o s u r g i r e m p r o b l e m a s n o v o s , r e l a t i v o s à v i d a c o n c r e t a , o s h o m e n s s ã o p r a t i c a m e n t e o b r i g a d o s a
i n v e n t a r r e c e i t a s c o n c e p t u a i s n o v a s . P r o d u z i u - s e , e n t ã o , u m a n o v a o r i e n t a ç ã o p a r a o p e n s a m e n t o , d e r i v a d a d e u m a
v o n t a d e n o v a d e m a n i p u l a r e c o n t r o l a r a n a t u r e z a . O h o m e m m e d i e v a l d e s e j a v a c o n t e m p l a r e c o m p r e e n d e r . S u a
a t i t u d e e r a p a s s i v a , r e c e p t i v a . A g o r a a n e c e s s i d a d e d a r i q u e z a i n a u g u r a u m a a t i t u d e a g r e s s i v a , a t i v a , p e l a q u a l a n o v a
c l a s s e s e a p r o p r i a d a n a t u r e z a , m a n i p u l a - a , c o n t r o l a - a , f o r ç a - a a s u b m e t e r - s e à s s u a s i n t e n ç õ e s , i n t e g r a n d o - s e n a
l i n h a q u e v a i d a s m i n a s e d o s c a m p o s à s f á b r i c a s , e d e s t a s a o s m e r c a d o s . E s i l e n c i o s a m e n t e a b u r g u e s i a t r i u n f a n t e
e s c r e v e o e p i t á f i o d a o r d e m s a c r a l a g o n i z a n t e : " o s r e l i g i o s o s , a t é a g o r a , t e m b u s c a d o e n t e n d e r a n a t u r e z a ; m a s o
q u e i m p o r t a n ã o é e n t e n d e r , m a s t r a n s f o r m a r " .
Q u e o c o r r e u a o u n i v e r s o r e l i g i o s o ?
O u n i v e r s o r e l i g i o s o e r a e n c a n t a d o . U m m u n d o e n c a n t a d o a b r i g a , n o s e u s e i o , p o d e r e s e p o s s i b i l i d a d e s q u e
e s c a p a m à s n o s s a s c a p a c i d a d e s d e e x p l i c a r , m a n i p u l a r , p r e v e r . T r a t a - s e , p o r t a n t o , d e a l g o q u e n e m p o d e s e r
c o m p l e t a m e n t e c o m p r e e n d i d o p e l o p o d e r d a r a z ã o , e n e m c o m p l e t a m e n t e r a c i o n a l i z a d o e o r g a n i z a d o p e l o p o d e r ' I o
t r a b a l h o .
M a s c o m o p o d e r i a o p r o j e t o d a b u r g u e s i a
o b r e v i v e r n u m m u n d o d e s t e s , o b s c u r e c i d o p o r
m i s t é r i o s e a n a r q u i z a d o p o r i m p r e v i s t o s ? S u a
4 6
i n t e n ç ã o e r a p r o d u z i r , d e f o r m a r a c i o n a l , o c r e s c i m e n t o d a r i q u e z a . I s t o e x i g i a o e s t a b e l e c i m e n t o d e
u m a p a r a t o d e i n v e s t i g a ç ã o q u e p r o d u z i s s e o s r e s u l t a d o s d e q u e s e t i n h a n e c e s s i d a d e . E q u e i n s t r u m e n t o m a i s
l i v r e d e p r e s s u p o s t o s i r r a c i o n a i s r e l i g i o s o s , m a i s u n i v e r s a l , m a i s t r a n s p a r e n t e p o d e e x i s t i r q u e a m a t e m á t i c a ?
L i n g u a g e m t o t a l m e n t e v a z i a d e m i s t é r i o s , t o t a l m e n t e d o m i n a d a p e l a r a z ã o : i n s t r u m e n t o i d e a l p a r a a c o n s t r u ç ã o
d e u m m u n d o t a m b é m v a z i o d e m i s t é r i o s e d o m i n a d o p e l a r a z ã o . P o r o u t r o l a d o , c o m o a a t i v i d a d e h u m a n a
p r á t i c a s ó s e p o d e d a r s o b r e o b j e t o s v i s í v e i s e d e p r o p r i e d a d e s s e n s t V e i s e v i d e n t e s , a s e n t i d a d e s i n v i s í v e i s d o
m u n d o r e l i g i o s o n ã o p o d i a m t e r f u n ç ã o a l g u m a a d e s e m p e n h a r n e s t e u n i v e r s o . E e u o c o n v i d a r i a a v o l t a r
a o c u r t o t r e c h o d e H u m e , q u e c o l o q u e i c o m o e p í g r a f e d e s t e c a p í t u l o , p o i s q u e e l e r e v e l a c l a r a m e n t e o e s p í r i t o d o
m u n d o u t i l i t á r i o q u e s e e s t a b e l e c e u , e o d e s t i n o q u e e l e r e s e r v o u p a r a o s s í m b o l o s d a i m a g i n a ç ã o : a s c h a m a s .
P e r d e a n a t u r e z a s u a a u r a s a g r a d a . N e m o s c é u s p r o c l a m a m a g l ó r i a d e D e u s , c o m o a c r e d i t a v a K e p l e r , e t e r r a
a n u n c i a o s e u a m o r . C é u s e t e r r a n ã o s ã o o p o e m a d e u m S e r S u p r e m o i n v i s í v e l . E é p o r i s t o q u e n ã o e x i s t e
n e n h u m i n t e r d i t o , n e n h u m a p r o i b i ç ã o , n e n h u m t a b u a c e r c á - l o s . A n a t u r e z a é n a d a m a i s q u e u m a f o n t e
d e m a t é r i a s - p r i m a s , e n t i d a d e b r u t a , d e s t i t u í d a d e v a l o r . O r e s p e i t o p e l o r i o e p e l a f o n t e .
4 7
q u e p o d e r i a i m p e d i r q u e e l e s v i e s s e m a s e r p o l u í d o s , o r e s p e i t o p e l a f l o r e s t a , q u e p o d e r i a i m p e d i r q u e e l a v i e s s e a
s e r c o r t a d a , o r e s p e i t o p e l o a r e p e l o m a r , q u e e x i g i r i a q u e f o s s e m p r e s e r v a d o s , n ã o t ê m l u g a r n o u n i v e r s o
s i m b ó l i c o i n s t a u r a d o p e l a b u r g u e s i a . O s e u u t i l i t a r i s m o s ó c o n h e c e o l u c r o c o m o p a d r ã o p a r a a a v a l i a ç ã o d a s
c o i s a s . E a t é m e s m o a s p e s s o a s p e r d e m s e u v a l o r r e l i g i o s o . N o m u n d o m e d i e v a l , p o r m a i s d e s v a l o r i z a d o q u e
f o s s e m , o s e u v a l o r e r a a l g o a b s o l u t o , p o i s l h e s e r a c o n f e r i d o p e l o p r ó p r i o D e u s . A g o r a a l g u é m v a l e o
q u a n t o g a n h a , e n q u a n t o g a n h a . M u i t o d o q u e s e p e n s o u s o b r e a r e l i g i ã o t e m s u a s o r i g e n s n e s t e c o n f l i t o . E a s
r e s p o s t a s d a d a s à p e r g u n t a " o q u e é a r e l i g i ã o ? " t ê m m u i t o a v e r c o m a s l e a I d a d e s d a s p e s s o a s e n v o l v i d a s . A
c o n d e n a ç ã o d o s a g r a d o e r a e x i g i d a p ê l o s i n t e r e s s e s d a b u r g u e s i a e o a v a n ç o d a s e c u l a r i z a ç ã o . E s t e c o n f l i t o , n a
v e r d a d e , n ã o s e c i r c u n s c r e v e d e m a n e i r a p r e c i s a , n ã o e s t á c o n t i d o d e n t r o d e l i m i t e s e s t r e i t o s d e t e m p o e e s p a ç o ,
p o r q u e e l e r e s s u r g e e s e m a n t é m v i v o n a s f r o n t e i r a s d a e x p a n s ã o d o c a p i t a l i s m o e o n d e q u e r q u e a d i n â m i c a d a
p r o d u ç ã o d o s l u c r o s c o l i d a c o m o s m u n d o s s a c r a i s . B a s t a a b r i r o s n o s s o s j o r n a i s e t o m a r c i ê n c i a d a s t e n s õ e s
e n t r e I g r e j a e E s t a d o , I g r e j a e i n t e r e s s e s e c o n ó m i c o s . A a r g u m e n t a ç ã o é a m e s m a . A s i d e i a s s e r e p e t e m . Q u e a
r e l i g i ã o c u i d e d a s r e a l i d a d e s e s p i r i t u a i s , q u e d a s c o i s a s m a t e r i a i s a e s p a d a e o d i n h e i r o s e e n c a r r e g a m .
4 8
É n e c e s s á r i o r e c o n h e c e r q u e a r e l i g i ã o r e p r e s e n t a v a o p a s s a d o , a t r a d i ç ã o . T r a t a v a - s e d e u m a f o r m a d e
c o n h e c i m e n t o s u r g i d o e m m e i o a u m a o r g a n i z a ç ã o s o c i a l e p o l í t i c a d e r r o t a d a .
A c i ê n c i a , p o r s u a v e z , a l i n h a v a - s e a o l a d o d o s v i t o r i o s o s e e r a p o r e l e s s u b v e n c i o n a d a . S e u s m é t o d o s e
c o n c l u s õ e s s e m o s t r a v a m e x t r a o r d i n a r i a m e n t e a d a p t a d o s à l ó g i c a d o m u n d o b u r g u ê s . I m p o r t a v a - l h e , a n t e s d e
m a i s n a d a , p a r a n ã o d i z e r e x c l u s i v a m e n t e , s a b e r c o m o a s c o i s a s f u n c i o n a m . C o n h e c e r é s a b e r o
f u n c i o n a m e n t o . E q u e m s a b e o f u n c i o n a m e n t o t e m o s e g r e d o d a m a n i p u l a ç ã o e d o c o n t r o l e . E a s s i m é q u e
e s t e t i p o d e c o n h e c i m e n t o a b r e o c a m i n h o d a t é c n i c a , f a z e n d o a l i g a ç ã o e n t r e a u n i v e r s i d a d e e a f á b r i c a , a
f á b r i c a e o l u c r o . A q u e d i s t â n c i a n o s e n c o n t r a m o s d a c i ê n c i a m e d i e v a l q u e s e p e r g u n t a v a a c e r c a d a
f i n a l i d a d e d a s c o i s a s e b u s c a v a o u v i r h a r m o n i a s e v i s l u m b r a r p r o p ó s i t o s d i v i n o s n o s a c o n t e c i m e n t o s d o
m u n d o !
O s u c e s s o d a c i ê n c i a f o i t o t a l . C o i s a s b e m - s u c e d i d a s n ã o p o d e m s e r q u e s t i o n a d a s . C o m o d u v i d a r d a
e f i c á c i a ? I m p õ e - s e a c o n c l u s ã o : a c i ê n c i a e s t á a o l a d o d a v e r d a d e . O c o n h e c i m e n t o s ó n o s p o d e c h e g a r
a t r a v é s d a a v e n i d a d o m é t o d o c i e n t í f i c o . E i s t o s i g n i f i c a , a n t e s d e m a i s n a d a , r i g o r o s a o b j e t i v i d a d e .
S u b m i s s ã o d o p e n s a m e n t o a o d a d o , s u b o r d i n a ç ã o d a i m a g i n a ç ã o à o b s e r v a ç ã o . O s f a t o s s ã o e l e v a d o s à
c a t e g o r i a d e v a l o r e s . I n s t a u r a - s e u m d i s c u r s o c u j o ú n i c o p r o p ó s i t o
4 9
é d i z e r a s p r e s e n ç a s . A s c o i s a s q u e s ã o d i t a s e p e n s a d a s d e v e m c o r r e s p o n d e r à s c o i s a s q u e s ã o v i s t a s e p e r c e b i d a s .
I s t o é a v e r d a d e .
E o d i s c u r s o r e l i g i o s o ? E n u n c i a d o d e a u s ê n c i a s , n e g a ç ã o d o s d a d o s , c r i a ç ã o d a i m a g i n a ç ã o : s ó p o d e s e r
c l a s s i f i c a d o c o m o e n g o d o c o n s c i e n t e o u p e r t u r b a ç ã o m e n t a l . P o r q u e , s e e l e " n ã o c o n t é m q u a l q u e r r a c i o c í n i o
a b s t r a i o r e l a t i v o à q u a n t i d a d e e a o n ú m e r o " , " n ã o c o n t é m r a c i o c í n i o s e x p e r i m e n t a i s q u e d i g a m r e s p e i t o a
m a t é r i a s d e f a t o e e x i s t ê n c i a " , " n ã o p o d e c o n t e r c o i s a a l g u m a a n ã o s e r s o f i s m a s e i l u s õ e s " .
P i o r q u e e n u n c i a d o d e f a l s i d a d e s , d i s c u r s o d e s t i t u í d o d e s e n t i d o . S e d i g o " o f o g o é f r i o " , e s t o u
d i z e n d o u m a f a l s i d a d e . D i g o a l g o q u e q u a l q u e r p e s s o a e n t e n d e ; s ó q u e n ã o é v e r d a d e . M a s s e a f i r m o " o
f o g o , d i a n t e d a p r o b a b i l i d a d e , e s c u r e c e u o s i l ê n c i o " , o l e i t o r f i c a r á p a s m o e d i r á : " C o n h e ç o t o d a s a s p a l a v r a s ,
u m a a u m a . M a s a c o i s a n ã o f a z s e n t i d o " . P a r a q u e u m e n u n c i a d o p o s s a s e r d e c l a r a d o f a l s o é n e c e s s á r i o q u e e l e
f a ç a s e n t i d o . M a s a c i ê n c i a n e m m e s m o a f a l s i d a d e c o n c e d e u à r e l i g i ã o . D e c l a r o u - a d i s c u r s o d e s t i t u í d o d e
s e n t i d o , p o r s e r e f e r i r a e n t i d a d e s
i m a g i n á r i a s . . .
E s t a b e l e c e u - s e , a s s i m , u m q u a d r o s i m b ó l i c o n o q u a l n ã o h a v i a l u g a r p a r a a r e l i g i ã o . F o i i d e n t i f i c a d a c o m o
p a s s a d o , o a t r a s o , a i g n o r â n c i a d e u m p e r í o d o n e g r o d a h i s t ó r i a . I d a d e d a s T r e v a s , 0 e x p l i c a d a c o m o
c o m p o r t a m e n t o i n f a n t i l d e
5 0
p o v o s e g r u p o s n ã o e v o l u í d o s , i l u s ã o , ó p i o , n e u r o s e , i d e o l o g i a . O p o n d o - s e a e s t e q u a d r o s i n i s t r o , u m f u t u r o
l u m i n o s o d e p r o g r e s s o , r i q u e z a , e c o n h e c i m e n t o c i e n t í f i c o . E a s s i m n ã o f o r a m p o u c o s o s q u e e s c r e v e r a m
p r e c o c e s n e c r o l ó g i o s d o s a g r a d o , e f i z e r a m p r o f e c i a s d o d e s a p a r e c i m e n t o d a r e l i g i ã o e d o a d v e n t o d e u m a o r d e m
s o c i a l t o t a l m e n t e s e c u l a r i z a d a e p r o f a n a .
M a s , s e t a l q u a d r o d e i n t e r p r e t a ç ã o d o f e n ó m e n o r e l i g i o s o s e e s t a b e l e c e u , f o i p o r q u e , d e f a t o , e l a p e r d e u s e u
p o d e r e c e n t r a l i d a d e . C o m o d i z i a R i c k e r t , c o m o t r i u n f o d a b u r g u e s i a D e u s p a s s o u a t e r p r o b l e m a s h a b i t a c i o n a i s
c r ó n i c o s . D e s p e j a d o d e u m l u g a r , d e s p e j a d o d e o u t r o . . . P r o g r e s s i v a m e n t e f o i e m p u r r a d o p a r a f o r a d o m u n d o .
P a r a q u e o s h o m e n s d o m i n e m a t e r r a é n e c e s s á r i o q u e D e u s s e j a c o n f i n a d o a o s c é u s .
E a s s i m s e d i v i d i r a m á r e a s d e i n f l u ê n c i a s .
A o s n e g o c i a n t e s e p o l í t i c o s f o r a m e n t r e g u e s a t e r r a , o s m a r e s , o s r i o s , o s a r e s , o s c a m p o s , a s c i d a d e s , a s f á b r i c a s ,
o s b a n c o s , o s m e r c a d o s , o s l u c r o s , o s c o r p o s d a s p e s s o a s .
A r e l i g i ã o f o i a q u i n h o a d a c o m a a d m i n i s t r a ç ã o d o m u n d o i n v i s í v e l , o c u i d a d o d a s a l v a ç ã o , a c u r a d a s a l m a s
a f l i t a s .
C u r i o s o q u e a i n d a t i v e s s e s o b r a d o t a l e s p a ç o p a r a a r e l i g i ã o . C u r i o s o q u e o s f a t o s d a e c o n o m i a n ã o t i v e s s e m
l i q u i d a d o , d e v e z , o s a g r a d o . P a r e c e , e n t r e t a n t o , q u e h á c e r t a s r e a l i d a d e s a n t r o p o l ó g i c a s q u e p e r m a n e c e m , a
d e s p e i t o d e t u d o
51
As pessoas continuam a ter noites de ins�nia e a pensar sobre a vida e sobre a morte.. . E os negociantes e
banqueiros tamb�m t�m alma, n�o lhes bastando a posse da riqueza, sendo -lhes necess�rio plantar sobre ela tamb�m
as bandeiras do sagrado. Querem ter a certeza de que a riqueza foi merecida, e buscam nela os sinais do favor divino
e a cercam das confiss�es de piedade.
N�o � por acidente que a mais poderosa das moedas se apresente tamb�m como a mais piedosa, trazendo gravada
em si mesma a afirma��o "In God we trust" — "n�s confiamos em Deus". ..
E tamb�m os oper�rios e camponeses possuem almas e necessitam ouvir as can��es dos c�us a fim de suportar as
tristezas da terra. E sobreviveu o sagrado tamb�m como religi�o dos opri midos. . .
52
A COISA QUE NUNCA MENTE
"N�o existe religi�o alguma que seja falsa. Todas elas respondem, de formas
diferentes, a condi��es dadas da exist�ncia humana." (E. Durkheim)
No mundo dos homens encontramos dois tipos de coisas.
Em primeiro lugar, h� as coisas que significam outras: s�o as coisas/s�mbolo. Uma alian�a significa casamento;
uma c�dula significa um valor; uma afirma��o significa um estado de coisas, al�m dela mesma. Mas algu�m pode
usar uma alian�a na m�o esquerda sem ser casado. Uma c�dula pode ser falsa. Uma afirma��o pode ser uma mentira.
Por isto, quando nos defron tamos com as coisas que significam outras, � inevit�vel que levantemos perguntas acerca
de
53
sua verdade ou falsidade.
Depois, h� as coisas que n�o significam outras. Elas s�o elas mesmas, n�o apontam para nada, s�o destitu�das de
sentido. Tomo um copo d'�gua. A �gua mata a sede. Isto me basta. N�o me pergunto se a �gua � verdadeira. Ela �
cristalina, fria, gostosa.. . O fogo � fogo. Que � que ele significa? Nada. Significa -se a si mesmo. Ele aquece,
i l u m i n a , q u e i m a . P e r g u n t a r s e e l e é v e r d a d e i r o n ã o f a z s e n t i d o . A q u e l a f l o r , l á n o m e i o d o j a r d i m , n a s c i d a p o r
a c i d e n t e d e u m a s e m e n t e q u e o v e n t o l e v o u , t a m b é m n ã o s i g n i f i c a c o i s a a l g u m a . A f l o r é a f l o r . D e u m a f l o r ,
c o m o d e t o d a s a s c o i s a s q u e n ã o s i g n i f i c a m o u t r a s , n ã o p o s s o l e v a n t a r a q u e s t ã o a c e r c a d a v e r d a d e , a q u e s t ã o
e p i s t e m o l ó g i c a . M a s p o s s o p e r g u n t a r s e e l a é p e r f u m a d a , s e é b e l a , s e é p e r f e i t a . . . C o i s a s q u e n a d a s i g n i f i c a m
p o d e m s e r t r a n s f o r m a d a s e m s í m b o l o s . A r a p o s a c o m e ç o u a f i c a r f e l i z a o o l h a r p a r a o t r i g a l . . . T a m b é m o f o g o s e
t r a n s f o r m a e m s í m b o l o n a s v e l a s d o s a l t a r e s o u n a s p i r a s o l í m p i c a s . E a f l o r p o d e s e r u m a c o n f i s s ã o d e a m o r o u u m a
a f i r m a ç ã o d e s a u d a d e , s e j o g a d a s o b r e u m a s e p u l t u r a . . .
C o i s a s q u e n a d a s i g n i f i c a m p o d e m p a s s a r a s i g n i f i c a r , p o r m e i o d e u m a r t i f í c i o : b a s t a q u e s o b r e e l a s e s c r e v a m o s
a l g o , c o m o f a z e m o s n a m o r a d o s q u e g r a v a m s e u s n o m e s n a s c a s c a s d e á r v o r e s , e a q u e l e s q u e , a c r e d i t a n d o e m s u a
p r ó p r i a i m p o r t â n c i a , m a n d a m c o l o c a r p l a c a s c o m e m o r a t i v a s
5 4
c o m s e u s n o m e s e m l e t r a s g r a n d e s s o b r e a s p i r â m i d e s e v i a d u t o s q u e m a n d a m c o n s t r u i r .
À s v e z e s a t é m e s m o a s p a l a v r a s , c o i s a s / s í m b o l o p o r e x c e l ê n c i a , s e t r a n s f o r m a m e m c o i s a s . A a r t e n o s a j u d a a
c o m p r e e n d e r i s t o . A o o l h a r p a r a u m q u a d r o o u u m a e s c u l t u r a é f á c i l v e r n e l e s s í m b o l o s q u e s i g n i f i c a m u m c e n á r i o
o u u m a p e s s o a . A s s i m , o g r a u d e v e r d a d e d a o b r a d e a r t e s e r i a m e d i d o p o r s u a f i d e l i d a d e e m c o p i a r o o r i g i n a l . U m a
o b r a d e a r q u i t e t u r a c o p i a o q u ê ? N ã o c o p i a c o i s a a l g u m a . T r a t a - s e d e u m a c o n s t r u ç ã o q u e o a r t i s t a f a z , u s a n d o
c e r t o s m a t e r i a i s , e e s t a o b r a p a s s a a s e r u m a c o i s a e n t r e o u t r a s c o i s a s . U m a t e l a d e P i c a s s o d e v e r i a t e r u m b a i x o g r a u d e
v e r d a d e . . . E m n a d a s e p a r e c e c o m o o r i g i n a l . N ã o p o d e r í a m o s a v e n t a r a h i p ó t e s e d e q u e o a r t i s t a p l á s t i c o n ã o e s t á
e m b u s c a d e v e r d a d e , d e c o n f o r m i d a d e e n t r e s u a o b r a e u m o r i g i n a l , m a s q u e , a o c o n t r á r i o , e s t á c o n s t r u i n d o u m a
c o i s a , e l a m e s m a o r i g i n a l e ú n i c a ?
A l g u é m p e r g u n t o u a B e e t h o v e n , d e p o i s d e h a v e r e l e e x e c u t a d o a o p i a n o u m a d e s u a s c o m p o s i ç õ e s :
" Q u e q u e r o s e n h o r d i z e r c o m e s t a p e ç a m u s i c a l ? Q u e é q u e e l a s i g n i f i c a ? " " O q u e e l a s i g n i f i c a ? O q u e q u e r o
d i z e r ? E s i m p l e s . "
A s s e n t o u - s e a o p i a n o e e x e c u t o u a m e s m a
5 5
pe�a.
Ela n�o significava coisa alguma. N�o se tratava de uma coisa que significa outra, um s�mbolo. Ela era a pr�pri a
coisa.
Arquitetos, artistas pl�sticos, m�sicos, constr�em coisas usando tijolos, tintas e bronze, sons. E h� aqueles que
constr�em coisas usando palavras. Medite sobre esta afirma��o de Archibald Mac Leish.
"Um poema deveria ser palp�vel e mudo como um fruto redondo, . um poema deveria n�o ter palavras como o voo
dos p�ssaros, um poema n�o deveria significar coisa alguma
e simplesmente. . . ser."
Lembro-me que, quando menino, em uma cidade do interior, os homens se reuniam ap�s o jantar para contar
caso s. As est�rias eram fant�s ticas, e todos sabiam disto. Mas nunca ouvi ningu�m dizer ao outro: "Voc� est�
mentindo". A rea��o apropriada a um caso fant�stico era outra: "Mas isto n�o � nada". E o novo artista iniciava a
constru��o de um outro objeto de palavras. Faz pouco tempo que me dei conta de que, naquele jogo, o julgamento
de verdade
• falsidade n�o entrava. Porque as coisas eram ditas n�o para significar algo. As coisas eram ditas
• fim de construir objetos que podiam ser belos, fascinantes, engr a�ados, grotescos, fant�sticos
mas nunca falsos. . .
H� certas situa��es em que as palavras deixam de significar, abandonam o mundo da verdade e da falsidade, e
passam a existir ao lado das coisas.
Quem confunde coisas que significam com coisas que nada significam comete graves equ�vocos.
As obras de Bach foram descobertas por acaso quando eram usadas para embrulhar carne num a�ougue. O
a�ougueiro n�o entendia os s�mbolos, n�o conseguia entender o texto escrito e, conse -q�entemente, n�o podia
ouvir a m�s ica. Para ele a �nica realidade era a coisa: o papel, muito bom para embrulhar.
A ci�ncia medieval olhava para o universo e pensava que ele era um conjunto de coisas que
significavam outras. Cada planeta era um s�mbolo. Dever iam ser decifrados para que ouv�s semos a mensagem
de que eram portadores. E Kepler tentou descobrir as harmonias musicais destes mundos. . . A F�sica s�
avan�ou quando o universo foi reconhecido como coisa. E foi assim que Galileu parou de perguntar o que
� que o universo significa e concentrou -se simples mente em saber o que ele �, como funciona, quais as leis que o
regem.
Q u e m s e p r o p u s e r a e n t e n d e r a f u n ç ã o d o d ó l a r a p a r t i r d a c o i s a e s c r i t a q u e e s t á i m p r e s s a n a s c é d u l a s c h e g a r i a a
c o n c l u s õ e s c ó m i c a s . O d ó l a r n ã o s e e n t e n d e a p a r t i r d o s i g n i f i c a d o d e
5 7
" f n G o d w e t r u s t " , m a s a p a r t i r d o s e u c o m p o r t a m e n t o c o m o c o i s a d o m u n d o d a e c o n o m i a . F o i i s t o
q u e o s e m p i r i s t a s / p o s i t i v i s t a s f i z e r a m c o m a r e l i g i ã o . I g n o r a r a m - n a c o m o c o i s a s o c i a l e s e c o n c e n t r a r a m
n o s e n u n c i a d o s e a f i r m a ç õ e s q u e a p a r e c e m j u n t o a e l a . C o n c l u í r a m q u e o d i s c u r s o r e l i g i o s o n a d a s i g n i f i c a v a .
C o n c l u s ã o t ã o b a n a l q u a n t o a f i r m a r q u e a á g u a , o f o g o e a f l o r n ã o t ê m s e n t i d o a l g u m . I M ã o l h e s p a s s o u p e l a
c a b e ç a q u e a s p a l a v r a s p u d e s s e m s e r u s a d a s p a r a o u t r a s c o i s a s q u e n ã o s i g n i f i c a r . N ã o p e r c e b e r a m q u e a s p a l a v r a s
p o d e m s e r m a t é r i a - p r i m a c o m q u e s e c o n s t r ó e m m u n d o s .
A s i t u a ç ã o é i r ó n i c a . N a I d a d e M é d i a o s f i l ó s o f o s , d e d e n t r o d e s u a p e r s p e c t i v a r e l i g i o s a , d e s e j a v a m v e r
m e n s a g e n s e s c r i t a s n o s c é u s . C o n t e m p l a v a m o u n i v e r s o c o m o u m t e x t o d o t a d o d e s i g n i f i c a ç ã o . M a s a c i ê n c i a n ã o
s a i u d o s e u i m p a s s e e n q u a n t o n ã o s e r e c o n h e c e u q u e e s t r e l a s e p l a n e t a s s ã o c o i s a s , n a d a s i g n i f i c a m .
A g o r a a s i t u a ç ã o s e i n v e r t e u . S ã o o s e m p i r i s t a s / p o s i t i v i s t a s q u e i n s i s t e m e m i n t e r p r e t a r a r e l i g i ã o
c o m o u m t e x t o , i g n o r a n d o - a c o m o c o i s a . E é e n t ã o q u e o c o r r e a r e v o l u ç ã o s o c i o l ó g i c a . M u d a n ç a r a d i c a l d e
p e r s p e c t i v a . E u m n o v o m u n d o d e c o m p r e e n s ã o d a r e l i g i ã o s e i n s t a u r a c o m a a f i r m a ç ã o :
" C o n s i d e r e o s f a t o s s o c i a i s c o m o s e f o s s e m c o i s a s . "
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E D u r k h e i m c o m e n t a :
" D i z - s e q u e a c i ê n c i a , e m p r i n c í p i o , n e g a a r e l i g i ã o . M a s a r e l i g i ã o e x i s t e . C o n s t i t u i - s e n u m s i s t e m a d e f a t o s
d a d o s . E m u m a p a l a v r a : e l a é u m a r e a l i d a d e . C o m o p o d e r i a a c i ê n c i a n e g a r t a l r e a l i d a d e ? "
O r a , s e a r e l i g i ã o é u m f a t o , o s j u l g a m e n t o s d e v e r d a d e e d e f a l s i d a d e n ã o p o d e m s e r a e l a a p l i c a d o s .
" N ã o e x i s t e r e l i g i ã o a l g u m a q u e s e j a f a l s a " , c o n t i n u a e l e , h o r r o r i z a n d o e m p i r i c i s t a s e s a c e r d o t e s , b l a s f e m o s e
b e a t o s . A r e l i g i ã o é u m a i n s t i t u i ç ã o e n e n h u m a i n s t i t u i ç ã o p o d e s e r e d i f i c a d a s o b r e o e r r o o u u m a m e n t i r a . " S e e l a
n ã o e s t i v e s s e a l i c e r ç a d a n a p r ó p r i a n a t u r e z a d a s c o i s a s , t e r i a e n c o n t r a d o , n o s f a t o s , u m a r e s i s t ê n c i a s o b r e a q u a l n ã o
p o d e r i a s e r t r i u n f a d o . " E e l e c o n t i n u a :
" N o s s o e s t u d o d e s c a n s a i n t e i r a m e n t e s o b r e o p o s t u l a d o d e q u e o s e n t i m e n t o u n â n i m e d o s c r e n t e s d e t o d o s o s
t e m p o s n ã o p o d e s e r p u r a m e n t e i l u s ó r i o . A d m i t i m o s q u e e s t a s c r e n ç a s r e l i g i o s a s d e s c a n s a m s o b r e u m a
e x p e r i ê n c i a e s p e c í f i c a c u j o v a l o r d e m o n s t r a t i v o é , s o b u m . d e t e r m i n a d o â n g u l o , u m n a d a i n f e r i o r à q u e l e d a s
e x p e r i ê n c i a s c i e n t í f i c a s , m u i t o e m b o r a s e j a m d i f e r e n t e s . "
5 9
T o d o s c o n c o r d a r i a m e m q u e s e r i a a c i e n t í f i c o d e n u n c i a r a l e i d a g r a v i d a d e s o b a a l e g a ç ã o d e q u e m u i t a s p e s s o a s
t ê m m o r r i d o e m d e c o r r ê n c i a d e q u e d a s . S e a s s i m p r o c e d e m o s e m r e l a ç ã o a o s f a t o s d o u n i v e r s o f í s i c o , p o r q u e n o s
c o m p o r t a m o s d e f o r m a d i f e r e n t e e m r e l a ç ã o a o s f a t o s d o u n i v e r s o h u m a n o ? A n t e s d e m a i s n a d a é n e c e s s á r i o
e n t e n d e r . E j á d i s p o m o s d e u m a s u s p e i t a : a o c o n t r á r i o d a q u e l e s q u e i m a g i n a v a m q u e a r e l i g i ã o e r a u m f e n ó m e n o
p a s s a g e i r o , e m v i a s d e d e s a p a r e c i m e n t o , a s u a u n i v e r s a l i d a d e e p e r s i s t ê n c i a n o s s u g e r e m q u e e l a n o s r e v e l a " u m
a s p e c t o e s s e n c i a l e p e r m a n e n t e d a h u m a n i d a d e " . 3 Q u e s ã o a s r e l i g i õ e s ? Ã p r i m e i r a v i s t a n o s e s p a n t a m o s c o m a
i m e n s a v a r i e d a d e d e r i t o s e m i t o s q u e n e l a s e n c o n t r a m o s , o q u e n o s f a z p e n s a r q u e t a l v e z s e j a i m p o s s í v e l d e s c o b r i r
u m t r a ç o c o m u m a t o d a s . N o e n t a n t o , a s s i m c o m o n o j o g o d e x a d r e z a v a r i e d a d e d o s l a n c e s s e d á s e m p r e e m c i m a
d e u m t a b u l e i r o , q u a d r i c u l a d o e d i v i d i d o e m e s p a ç o s b r a n c o s e p r e t o s , a s r e l i g i õ e s , s e m e x c e ç ã o a l g u m a ,
e s t a b e l e c e m u m a d i v i s ã o b i p a r t i d a d o u n i v e r s o i n t e i r o , q u e s e r a c h a e m d u a s c l a s s e s n a s q u a i s e s t á c o n t i d o t u d o o q u e
e x i s t e . E e n c o n t r a m o s a s s i m o e s p a ç o d a s c o i s a s s a g r a d a s e , d e l a s s e p a r a d a s p o r u m a s é r i e d e p r o i b i ç õ e s , a s c o i s a s
s e c u l a r e s o u p r o f a n a s .
S a g r a d o e p r o f a n o n ã o s ã o p r o p r i e d a d e s d a s c o i s a s . E l e s s e e s t a b e l e c e m p e l a s a t i t u d e s d o s h o m e n s p e r a n t e s c o i s a s ,
e s p a ç o s , t e m p o s , p e s s o a s ,
6 0
a ç õ e s .
O m u n d o p r o f a n o é o c í r c u l o d a s a t i t u d e s u t i l i t á r i a s . Q u e é u m a a t i t u d e u t i l i t á r i a ? Q u a n d o m i n h a
e s f e r o g r á f i c a B i c f i c a v e l h a , e u a j o g o f o r a . F a ç o o m e s m o c o m p r e g o s e n f e r r u j a d o s . U m m e d i c a m e n t o
c u j o p r a z o d e v a l i d e z f o i e s g o t a d o v a i p a r a o l i x o . A n t i g a m e n t e s e u s a v a o c o a d o r d e p a n o p a r a f a z e r o c a f é .
D e p o i s a p a r e c e r a m o s c o a d o r e s d e p a p e l , m a i s " p r á t i c o s " , e o s a n t i g o s f o r a m a p o s e n t a d o s c o m o i n ú t e i s .
D e p o i s a i n f l a ç ã o f e z c o m q u e o v e l h o c o a d o r d e p a n o f i c a s s e m a i s ú t i l q u e o d e p a p e l . É m a i s e c o n ó m i c o . N u m
m u n d o u t i l i t á r i o n ã o e x i s t e c o i s a a l g u m a p e r m a n e n t e . T u d o s e t o r n a d e s c a r t á v e l . O c r i t é r i o d a u t i l i d a d e
r e t i r a d a s c o i s a s e d a s p e s s o a s t o d o v a l o r q u e e l a s p o s s a m t e r , e m s i m e s m a s , e s ó l e v a e m c o n s i d e r a ç ã o s e e l a s
p o d e m s e r u s a d a s o u n ã o . É a s s i m q u e f u n c i o n a a e c o n o m i a . D e f a t o , o c í r c u l o d o p r o f a n o e o c í r c u l o d o
e c o n ó m i c o s e s u p e r p õ e m . O q u e n ã o é ú t i l é a b a n d o n a d o . M a s c o m o é o i n d i v í d u o q u e j u l g a d a u t i l i d a d e o u
n ã o d e u m a d e t e r m i n a d a c o i s a , e s t a é u m a á r e a e m q u e o s i n d i v í d u o s p e r m a n e c e m d o n o s d o s s e u s n a r i z e s t o d o o
t e m p o . N i n g u é m t e m n a d a a v e r c o m a s s u a s a ç õ e s . N a m e d i d a e m q u e a v a n ç a o m u n d o p r o f a n o e s e c u l a r , a s s i m
a v a n ç a t a m b é m o i n d i v i d u a l i s m o e o u t i l i t a r i s m o .
N o c í r c u l o s a g r a d o t u d o s e t r a n s f o r m a . N o â m b i t o s e c u l a r o i n d i v í d u o e r a d o n o d a s c o i s a s ,
6 1
o c e n t r o d o m u n d o . A g o r a , a o c o n t r á r i o , s ã o a s c o i s a s q u e o p o s s u e m . E l e n ã o é o c e n t r o d e c o i s a a l g u m a e s e
d e s c o b r e t o t a l m e n t e d e p e n d e n t e d e a l g o q u e l h e é s u p e r i o r ( S c h l e i e r m a c h e r ) . S e n t e - s e l i g a d o à s c o i s a s
s a g r a d a s p o r l a ç o s d e p r o f u n d a r e v e r ê n c i a e r e s p e i t o ; e l e é i n f e r i o r ; o s a g r a d o l h e é s u p e r i o r , o b j e t o d e
a d o r a ç ã o . O s a g r a d o é o c r i a d o r , a o r i g e m d a v i d a , a f o n t e d a f o r ç a . O h o m e m é a c r i a t u r a , e m b u s c a d e v i d a ,
c a r e n t e d e f o r ç a . V ã o - s e o s c r i t é r i o s u t i l i t á r i o s . O h o m e m n ã o m a i s é o c e n t r o d o m u n d o , n e m a o r i g e m d a s
d e c i s õ e s , n e m d o n o d o s e u n a r i z . S e n t e - s e d o m i n a d o e e n v o l v i d o p o r a l g o q u e d e l e d i s p õ e e s o b r e e l e i m p õ e
n o r m a s d e c o m p o r t a m e n t o q u e n ã o p o d e m s e r t r a n s g r e d i d a s , m e s m o q u e n ã o a p r e s e n t e m u t i l i d a d e
a l g u m a . D e f a t o , a t r a n s g r e s s ã o d o c r i t é r i o d e u t i l i d a d e é u m a d a s m a r c a s d o c í r c u l o d o s a g r a d o . O j e j u m , o
p e r d ã o , a r e c u s a e m m a t a r o s a n i m a i s s a g r a d o s p a r a c o m e r , a a u t o f l a g e l a ç ã o e , n o s e u p o n t o e x t r e m o , o a u t o -
s a c r i f í c i o : t o d a s e s t a s s ã o p r á t i c a s q u e n ã o s e d e f i n e m p o r s u a u t i l i d a d e , m a s s i m p l e s m e n t e p e l a d e n s i d a d e
s a g r a d a q u e a r e l i g i ã o l h e s a t r i b u i . E é i s t o q u e a s t o r n a o b r i g a t ó r i a s .
D u r k h e i m n ã o i n v e s t i g a v a a r e l i g i ã o g r a t u i t a m e n t e , p o r s i m p l e s c u r i o s i d a d e . E l e v i v i a n u m m u n d o q u e
a p r e s e n t a v a s i n a i s d e d e s i n t e g r a ç ã o e q u e e s t a v a r a c h a d o p o r t o d o s o s p r o b l e m a s a d v i n d o s d a e x p a n s ã o d o
capitalismo — proble -
62
mas semelhantes aos nossos. E era isto que o levava a perguntar: como � poss�vel a sociedade? Que for�a misteriosa �
esta que faz com que indiv�duos isolados, cada um deles correndo atr�s dos seus interesses, em conflitos uns com
os outros, n�o se destruam uns aos outros? Por que n�o se devoram? Qual a origem da razo�vel harmonia da vida
social?
A resposta que havia sido ante riormente propos ta para esta quest�o dizia que os indiv�duos, impulsionados por
seus interesses, haviam criado a sociedade como um meio para a sua satisfa��o. O indiv�duo toma a decis�o, a
sociedade vem depois. O indiv�duo no centro, a sociedade como sistema que gira ao seu redor. Tudo isto se
encaixa muito bem naquele esquema utilit�rio, pragm�tico, do mundo secular, que indicamos. E, ainda mais, se a
sociedade � um meio, ela praticamente tem o estatuto daqueles objetos que podem ser descar tados quando perdem
a sua utilidade.
O problema est� em que a vida social, tal como a conhecemos, n�o se enquadra neste jogo secular e utilit�rio. As
coisas mais s�rias que fazemos nada t�m a ver com a utilidade. Resultam de nossa rever�ncia e respeito por
normas que n�o criamos, que nos coagem, que nos p�em de joelhos.. . Do ponto de vista estritamente utilit�rio
seria mais econ�mico matar os velhos, castrar os portadores de defeitos gen�ticos, matar as crian�as defeituosas,
abortar as gravidezes aci -
63
dentais e indesejadas, fazer desaparecer os adver s�rios pol�ticos, fuzilar os criminosos e poss�veis criminosos. . .
Mas alguma coisa nos diz que tais coisas n�o devem ser feitas. Por qu�? Porque n�o. Por raz�es morais, sem
justificativas utilit�rias. E mesmo quando as fazemos, sem sermos apanhados, h� uma voz, um sentimento de culpa,
a consci�ncia, que nos diz que algo sagrado foi violentado.
Que ocorre quando a seculariza��o avan�a, o utilitarismo se imp�e e o sagrado se dissolve? Roubadas daquele
centro sagra do que exigia a rever�ncia dos indiv�duos para com as normas da vida social, as pessoas perdem os seus
pontos de orienta��o. Sobrev�m a anomia. E a sociedade se estilha�a sob a crescente press�o das for�as centr�fugas
do individualismo. Se � poss�vel quebrar as normas, tirar proveito e escapar ileso, que argumento utilit�rio pode
ser invocado para evitar o crime?
O sagrado � o centro do mundo, a origem da ordem, a fonte das normas, a garantia da harmonia. Assim,
q u a n d o D u r k h e i m e x p l o r a v a a r e l i g i ã o e l e e s t a v a i n v e s t i g a n d o a s p r ó p r i a s c o n d i ç õ e s p a r a a s o b r e v i v ê n c i a d a v i d a
s o c i a l . E é i s t o o q u e a f i r m a a s u a m a i s r e v o l u c i o n á r i a c o n c l u s ã o a c e r c a d a e s s ê n c i a d a r e l i g i ã o .
Q u a l é e s t a c o i s a m i s t e r i o s a m e n t e p r e s e n t e n o c e n t r o d o c í r c u l o s a g r a d o ? D o n d e s u r g e m a s e x p e r i ê n c i a s r e l i g i o s a s
q u e o s h o m e n s e x p l i -
6 4
c a r a m e d e s c r e v e r a m c o m o s n o m e s m a i s v a r i a d o s e o s m i t o s m a i s d i s t i n t o s ? Q u e e n c o n t r a m o s n o c e n t r o d a s
r e p r e s e n t a ç õ e s r e l i g i o s a s ? A r e s p o s t a n ã o é d i f í c i l .
N a s c e m o s f r a c o s e i n d e f e s o s ; i n c a p a z e s d e s o b r e v i v e r c o m o i n d i v í d u o s i s o l a d o s ; r e c e b e m o s d a s o c i e d a d e u m
n o m e e u m a i d e n t i d a d e ; c o m e l a a p r e n d e m o s a p e n s a r e n o s t o r n a m o s r a c i o n a i s ; f o m o s p o r e l a a c o l h i d o s ,
p r o t e g i d o s , a l i m e n t a d o s ; e , f i n a l m e n t e , é e l a q u e c h o r a r á a n o s s a m o r t e . É c o m p r e e n s í v e l q u e e l a s e j a o D e u s q u e
t o d a s a s r e l i g i õ e s a d o r a m , a i n d a q u e d e f o r m a o c u l t a , e s c o n d i d a a o s o l h o s d o s f i é i s . A s s i m , " e s t a r e a l i d a d e ,
r e p r e s e n t a d a p e l a s m i t o l o g i a s d e t a n t a s f o r m a s d i f e r e n t e s , e q u e é a c a u s a o b j e - t i v a , u n i v e r s a l e e t e r n a d a s s e n s a ç õ e s
s u i g e n e r i s c o m a s q u a i s a e x p e r i ê n c i a r e l i g i o s a é f e i t a , é a s o c i e d a d e " .
A o s f i é i s p o u c o i m p o r t a q u e s u a s i d e i a s s e j a m c o r r e i a s o u n ã o . A e s s ê n c i a d a r e l i g i ã o n ã o é a i d e i a , m a s a f o r ç a .
" O f i e l q u e e n t r o u e m c o m u n h ã o c o m o s e u D e u s n ã o é m e r a m e n t e u m h o m e m q u e v ê n o v a s v e r d a d e s q u e o d e s c r e n t e
i g n o r a . E l e s e t o r n o u m a i s f o r t e . E l e s e n t e , d e n t r o d e s i , m a i s f o r ç a , s e j a p a r a s u p o r t a r o s s o f r i m e n t o s d a e x i s t ê n c i a ,
s e j a p a r a v e n c ê - l o s . " O s a g r a d o n ã o é u m c í r c u l o d e s a b e r , m a s u m c í r c u l o d e p o d e r .
D u r k h e i m p e r c e b e q u e a c o n s c i ê n c i a d o s a g r a d o s ó a p a r e c e e m v i r t u d e d a c a p a c i d a d e h u m a n a
6 5
N a s c e m o s f r a c o s e i n d e f e s o s ; i n c a p a z e s d e s o b r e v i v e r c o m o
i n d i v í d u o s i s o l a d o s ; r e c e b e m o s d a s o c i e d a d e u m n o m e e
u m a i d e n t i d a d e ; ( . . . ) É c o m p r e e n s í v e l q u e e l a s e j a o D e u s
q u e t o d a s a s r e l i g i õ e s a d o r a m . . .
6 6
p a r a i m a g i n a r , p a r a p e n s a r u m m u n d o i d e a l . C o i s a q u e n ã o v e m o s n o s a n i m a i s , q u e p e r m a n e c e m s e m p r e
m e r g u l h a d o s n o s f a t o s . O s h o m e n s , a o c o n t r á r i o , c o n t e m p l a m o s f a t o s e o s r e v e s t e m c o m u m a a u r a s a g r a d a q u e
e m n e n h u m l u g a r s e a p r e s e n t a c o m o d a d o b r u t o , s u r g i n d o a p e n a s d e s u a c a p a c i d a d e p a r a c o n c e b e r o i d e a l e d e
a c r e s c e n t a r a l g o a o r e a l . N a v e r d a d e , o i d e a l e o s a g r a d o s ã o a m e s m a c o i s a .
S u a c e r t e z a d e q u e a r e l i g i ã o e r a o c e n t r o d a s o c i e d a d e e r a t ã o g r a n d e q u e e l e n ã o p o d i a i m a g i n a r u m a s o c i e d a d e
t o t a l m e n t e p r o f a n a e s e c u l a - r i z a d a . O n d e e s t i v e r a s o c i e d a d e a l i e s t a r ã o o s d e u s e s e a s e x p e r i ê n c i a s s a g r a d a s . E
c h e g o u m e s m o a a f i r m a r q u e " e x i s t e a l g o d e e t e r n o n a r e l i g i ã o q u e e s t á d e s t i n a d o a s o b r e v i v e r a t o d o s o s s í m b o l o s
p a r t i c u l a r e s n o s q u a i s o p e n s a m e n t o r e l i g i o s o s u c e s s i v a m e n t e s e e n v o l v e u . N ã o p o d e e x i s t i r u m a
s o c i e d a d e q u e n ã o s i n t a a n e c e s s i d a d e d e m a n t e r e r e a f i r m a r , a i n t e r v a l o s , o s s e n t i m e n t o s c o l e t i v o s e
i d e i a s c o l e t i v a s q u e c o n s t i t u e m s u a u n i d a d e e p e r s o n a l i d a d e " . A r e l i g i ã o p o d e s e t r a n s f o r m a r . M a s n u n c a
d e s a p a r e c e r á . E e l e c o n c l u i r e c o n h e c e n d o u m v a z i o e a n u n c i a n d o u m a e s p e r a n ç a :
" O s v e l h o s d e u s e s j á e s t ã o a v a n ç a d o s e m a n o s o u j á m o r r e r a m , e o u t r o s a i n d a n ã o n a s c e r a m " .
E n t r e t a n t o ,
6 7
" U m d i a v i r á q u a n d o n o s s a s s o c i e d a d e s c o n h e c e r ã o d e n o v o a q u e l a s h o r a s d e e f e r v e s c ê n c i a c r i a t i v a , n a s q u a i s
i d e i a s n o v a s a p a r e c e m e n o v a s f ó r m u l a s s ã o e n c o n t r a d a s q u e s e r v i r ã o , p o r u m p o u c o , c o m o u m g u i a p a r a a
h u m a n i d a d e . . . "
68
AS FLORES SOBRE AS CORRENTES
"O sofrimento religioso �, ao mesmo tempo, express�o de um sofrimento real e
protesto contra um sofrimento real. Suspiro da criatura oprimida, cora��o de um
mundo sem cora��o, esp�rito de uma situa��o sem esp�rito: a religi�o � o �pio do
povo." (K. Marx)
Entramos num outro mundo. Durkheim contemplou as t�nues cores do mundo sacral que desapa recia, como
nuvens de crep�sculo que passam de rosa ao negro, sob as mudan�as r�pidas da luz que mergulha. Fascinado,
empreendeu a busca das origens, do tempo perdido. .. E l� se foi atr�s da religi�o mais simples e primitiva que se
conhecia, sob a esperan�a de que o mundo sacra l-to t�m i�o dos abor�genes australianos nos oferecesse vis�es de um
para�so — uma ordem
69
social constru�da em torno de valores espirituais e morais. Penetra no passado a fim de compreender o presente.
Compreender com esperan�a. . .
Marx n�o habita o crep�sculo. Vive j� em plena noite. Anda em meio aos escombros. Analisa a dissolu��o.
Elabora a ci�ncia do capital e faz o diagn�stico do seu fim. Nada tem a pregar e nem oferece conselhos. N�o
procura para�sos perdidos porque n�o acredita neles. Mas dirige o seu olhar para os horizontes futuros e espera a
vinda de uma cidade santa, sociedade sem oprimidos e opressores, de liberdade, de transfigu ra��o er�tica do corpo.
. .
Mas o solo em que pisa desconhece o mundo sacral, de normas morais e valores espirituais. Ele � seculariz ado do
princ�pio ao fim e somente conhece a �tica do lucro e o entusiasmo do capital e da posse. N�o importa que os
capitalistas frequentem templos e fa�am ora��es, nem que construam cidades sagradas ou sustentem movimentos
mission�rios, nem ainda que haja �gua benta na inaugura��o das f�bricas e celebra��es de a��es de gra�as pela
prosperidade, e muito menos que missas sejam rezadas pela eterna salva��o de suas almas. .. Este mundo ignora os
elementos espirituais. Sal�rios e pre�os n�o s�o estabelecidos nem pela religi�o e nem pela �tica. A riqueza se
constr�i por meio de uma l�gica duramente material: a l�gica do lucro, que n�o conhece a compaix�o. Na verdade,
aqueles que
70
t�m compaix�o se condenam a si mesmos � destrui��o. . . N�o se pode negar que os gestos e as falas ainda se referem
aos deuses e aos valores morais: maquilagem, incenso, desodorante, perfumaria, uma aura sagrada que tudo envolve
no seu perfume, sem que nada se altere. E Marx tem de insistir num procedimento rigorosamente materialista de
an�lise. De fato, materialismo que � uma exig�ncia do pr�prio sistema que s� conhece o poder dos fatores
materiais. � a l�gica do lucro e da riqueza que assim estabelece — e n�o as inclina��es pessoais daquele que a
analisava.
Poucas pessoas sabem que o pensamento de Marx sobre a religi�o tomou forma e se desen volveu em meio a uma
luta pol�tica que travou. E a luta n�o foi nem com cl�rigos e nem com te�logos, mas com um grupo de fil�sofos
que entendia que a religi�o era a grande culpada de todas as desgra�as sociais de ent�o, e desejava estabelecer um
programa educativo com o obje -tivo de fazer com que as pessoas abandonassem as ilus�es religiosas. Marx estava
convencido de que a religi�o n�o tinha culpa alguma. E que n�o existia nada mais imposs �vel que a elimi na��o de
ideias, ainda que falsas, das cabe�as dos homens. . . Porque as pessoas n�o t�m certas ideias porque querem. E
imagino que cl�rigos e religiosos poder�o esfregar as m�os com prazer: "Finalmente descobrimos um Marx do
nosso
71
lado". Nada mais distante da verdade. A religi�o n�o era culpada pela simples raz�o de que ela n�o fazia diferen�a
alguma. Como poderia um eunuco ser acusado de deflorar uma donzela? Como poderia a religi�o ser acusada de
responsa bilidade, se ela n�o passava de uma sombra, de um eco, de uma imagem invertida, projetada sobre a parede?
Ela n�o era causa de coisa alguma. Um sintoma apenas. E, por isto mesmo, os fil�sofos que se apresentavam como
perigosos revo lucion�rios n�o passavam de r�plicas de D. Quixote, investindo contra moinhos de vento.
Marx n�o desejava gastar energias com drag�es de papel. Estava em busca das for�as que realmente movem a
s o c i e d a d e . P o r q u e e r a a í , e s o m e n t e a í , q u e a s b a t a l h a s d e v e r i a m s e r t r a v a d a s .
Q u e f o r ç a s e r a m e s t a s ?
O s f i l ó s o f o s r e v o l u c i o n á r i o s a q u e n o s r e f e r i m o s , h e g e l i a n o s d e e s q u e r d a , d e s e j a v a m q u e a s o c i e d a d e p a s s a s s e
p o r t r a n s f o r m a ç õ e s r a d i c a i s . E e l e s e n t e n d i a m q u e a o r d e m s o c i a l e r a c o n s t r u í d a c o m u m a a r g a m a s s a e m q u e a s c o i s a s
m a t e r i a i s e r a m c i m e n t a d a s u m a s n a s o u t r a s p o r m e i o d e i d e i a s e f o r m a s d e p e n s a r . A s s i m , a r m a s , m á q u i n a s , b a n c o s ,
f á b r i c a s , t e r r a s s e i n t e g r a v a m p o r m e i o d a r e l i g i ã o , d o d i r e i t o , d a f i l o s o f i a , d a t e o l o g i a . . . A c o n c l u s ã o p o l í t i c o -
t á t i c a s e s e g u e n e c e s s a r i a m e n t e : s e h o u v e r u m a a t i v i d a d e c a p a z d e d i s s o l v e r i d e i a s e m o d i f i c a r f o r m a s a n t i g a s d e
p e n s a r , o e d i f í c i o s o c i a l i n t e i r o c o m e ç a r á a t r e m e r . E f o i
7 2
a s s i m q u e e l e s s e d e c i d i r a m a t r a v a r a s b a t a l h a s r e v o l u c i o n á r i a s n o c a m p o d a s i d e i a s , u s a n d o c o m o a r m a a l g u m a
c o i s a q u e n a q u e l e t e m p o s e c h a m a v a c r í t i c a . H o j e , p o s s i v e l m e n t e , e l e s f a l a r i a m d e c o n s c i e n t i z a ç ã o . E i n v e s t i r a m
c o n t r a a r e l i g i ã o .
M a r x s e r i u d i s t o . O s h e g e l i a n o s v ê e m a s c o i s a s d e c a b e ç a p a r a b a i x o . P e n s a m q u e a s i d e i a s s ã o a s c a u s a s d a v i d a
s o c i a l , q u a n d o e l a s n a d a m a i s s ã o q u e e f e i t o s , q u e a p a r e c e m d e p o i s q u e a s c o i s a s a c o n t e c e r a m . . . " N ã o é a c o n s c i ê n c i a
q u e d e t e r m i n a a v i d a ; é a v i d a q u e d e t e r m i n a a c o n s c i ê n c i a . " E e l e a f i r m a v a :
" A t é m e s m o a s c o n c e p ç õ e s n e b u l o s a s q u e e x i s t e m n o s c é r e b r o s d o s h o m e n s s ã o n e c e s s a r i a m e n t e s u b l i m a d a s d o s e u
p r o c e s s o d e v i d a , q u e é m a t e r i a l , e m p i r i c a m e n t e o b s e r v á v e l e d e t e r m i n a d o p o r p r e m i s s a s m a t e r i a i s . A p r o d u ç ã o
d e i d e i a s , d e c o n c e i t o s , d a c o n s c i ê n c i a , e s t á d e s d e a s s u a s o r i g e n s d i r e t a m e n t e e n t r e l a ç a d a c o m a a t i v i d a d e
m a t e r i a l e a s r e l a ç õ e s m a t e r i a i s d o s h o m e n s , q u e s ã o a l i n g u a g e m d a v i d a r e a l . A p r o d u ç ã o d a s i d e i a s d o s h o m e n s ,
o p e n s a m e n t o , a s s u a s r e l a ç õ e s e s p i r i t u a i s a p a r e c e m , s o b e s t e â n g u l o , c o m o u m a e m a n a ç ã o d e s u a c o n d i ç ã o
m a t e r i a l . A m e s m a c o j s a s e p o d e d i z e r d a p r o d u ç ã o e s p i r i t u a l d e u m p o v o , r e p r e s e n t a d a p e l a l i n g u a g e m d a
p o l í t i c a , d a s l e i s , d a m o r a l , d a r e l i g i ã o ,
7 3
d a m e t a f í s i c a . O s h o m e n s s ã o o s p r o d u t o r e s
d e s u a s c o n c e p ç õ e s . "
"� o homem que faz a religi�o; a religi�o n�o
faz o homem."
� o fogo que faz 5 tuma�a; a fuma�a n�o faz
o fogo.
;
E, da mesma forma como � in�til tentar apagar o fogo assoprando a fuma�a, tamb�m � in�til tentar mudar as
condi��es de vida pela cr�tica da religi�o. A consci�ncia da fuma�a nos remete ao inc�ndio de onde ela sai. De
forma id�nt ica, a consci�ncia da religi�o nos for�a a encarar as condi��es materiais que a produzem.
Quem � esse homem que produz a religi�o?
Ele � um corpo, corpo que tem de comer, corpo que necessita de roupa e habita��o, corpo que se reproduz,
corpo que tem de transformar a natureza, trabalhar, para sobreviver.
Mas o corpo n�o existe no ar. N�o o encon tramos de forma abstraia e universal. Vemos homens
indissoluvelmente amarrados aos mundos onde se d� sua luta pela sobreviv�ncia, e exibindo em seus corpos as
marc as da natureza e as marcas das ferramentas. Os b�ias -frias, os pescadores, os que lutam no campo, os que
trabalham nas constru��es, os motoristas de �nibus, os que trabalham nas forjas e prensas, os que ensinam crian�as
e adultos a ler — cada um deles, de maneira espec�fica, traz no seu corpo as marcas
74
do seu trabalho. Marcas que se traduzem na comida que podem comer, nas enfermidades que podem sofrer,
nas divers�es a que podem se dar, nos anos que podem viver, e nos pensamentos com que podem sonhar — suas
religi�es e espe ran�as.
Marx tamb�m sonhava e imaginava. E muito embora haja alguns que o considerem importante em virtude
da ci�ncia econ�mica que estabeleceu, desprezando como arroubos juvenis os voos de sua fantasia, coloco-
me entre aqueles outros que invertem as coisas e se det�m especialmente nas fronteiras em que o seu
pensamento invade os horizontes das utopias. E Marx se perguntava sobre um outro tipo de trabalho que
daria prazer e felicidade aos homens, trabalho companheiro das cria��es dos artistas e do prazer n�o utili-
t�rio do brinquedo e do jogo. . . Trabalho express�o da liberdade, atividade espiritual criadora, construtor
de um mundo em harmonia com a inten��o. . . � claro que Marx nunca viu este sonho ut�pico realizado em
sociedade alguma. Foi ele que o construiu a partir de pequenos fragmentos de experi�ncia, trabalhados pela
mem�ria e pela esperan�a. Mas s�o estes hori zontes ut�picos que agu�am os olhos para que eles percebam os
absurdos do "topos", o lugar que habitamos. E, ao contemplar o trabalho, o que ele descobriu foi aliena��o
d o p r i n c í p i o a o f i m .
7 5
O q u e é a l i e n a ç ã o ?
A l i e n a r u m b e m : t r a n s f e r i r p a r a u m a o u t r a p e s s o a a p o s s e d e a l g u m a c o i s a q u e m e p e r t e n c e . T e n h o u m a c a s a :
p o s s o d o á - l a o u v e n d ê - l a a u m o u t r o . P o r e s t e p r o c e s s o e l a é a l i e n a d a . A a l i e n a ç ã o , a s s i m , n ã o é a l g o q u e
a c o n t e c e n a c a b e ç a d a s p e s s o a s . T r a t a - s e d e u m p r o c e s s o o b j e t i v o , e x t e r n o , d e t r a n s f e r ê n c i a , d e u m a p e s s o a a
o u t r a , d e a l g o q u e p e r t e n c i a à p r i m e i r a .
P o r q u e o t r a b a l h o é m a r c a d o p e l a a l i e n a ç ã o ?
V o l t e m o s p o r u m i n s t a n t e a o t r a b a l h o n ã o a l i e n a d o , c r i a d o r , l i v r e , q u e M a r x i m a g i n o u . S u a m a r c a
e s s e n c i a l e s t á n i s t o : o h o m e m d e s e j a a l g o . S e u d e s e j o p r o v o c a a i m a g i n a ç ã o q u e v i s u a l i z a a q u i l o q u e é d e s e j a d o ,
s e j a u m j a r d i m , u m a s i n f o n i a o u u m s i m p l e s b r i n q u e d o . A i m a g i n a ç ã o e o d e s e j o i n f o r m a m o c o r p o , q u e s e
p õ e i n t e i r o a t r a b a l h a r , p o r a m o r a o o b j e t o q u e d e v e s e r c r i a d o . E q u a n d o o t r a b a l h o t e r m i n a o c r i a d o r
c o n t e m p l a s u a o b r a , v ê q u e é m u i t o b o a e d e s c a n s a . . .
Q u e a c o n t e c e c o m a q u e l e q u e t r a b a l h a d e n t r o d a s a t u a i s c o n d i ç õ e s ?
E m p r i m e i r o l u g a r , e l e t e m d e a l i e n a r o s e u d e s e j o . S e u d e s e j o p a s s a a s e r o d e s e j o d e o u t r o . E l e t r a b a l h a p a r a
o u t r o .
E m s e g u n d o l u g a r , o o b j e t o a s e r p r o d u z i d o n ã o é r e s u l t a d o d e u m a d e c i s ã o s u a . E l e n ã o e s t á g e r a n d o u m
f i l h o s e u . N a v e r d a d e , e l e n ã o e s t á m e t i d o n a p r o d u ç ã o d e o b j e t o a l g u m p o r q u e
7 6
c o m a d i v i s ã o d a p r o d u ç ã o n u m a s é r i e d e a t o s e s p e c i a l i z a d o s e i n d e p e n d e n t e s , e l e é r e b a i x a d o d a c o n d i ç ã o d e
c o n s t r u t o r d e c o i s a s à c o n d i ç ã o d e a l g u é m q u e s i m p l e s m e n t e a p e r t a u m p a r a f u s o , a p e r t a u m b o t ã o , d á u m a
m a r t e l a d a . S e s e p e r g u n t a r a u m o p e r á r i o d e u m a f á b r i c a d e a u t o m ó v e i s : " q u e é q u e v o c ê f a z ? " , n e n h u m d e l e s d i r á
" e u f a ç o a u t o m ó v e i s . V o c ê j á v i u c o m o s ã o b o n i t o s o s c a r r o s q u e f a b r i c o ? " . E l e s n ã o d i r ã o q u e o b j e t o s p r o d u z e m ,
m a s q u e f u n ç ã o e s p e c i a l i z a d a s e u s c o r p o s f a z e m : " S o u t o r n e i r o . S o u f e r r a m e n t e i r o . S o u e l e t r i c i s t a . "
E m t e r c e i r o l u g a r , e e m c o n s e q u ê n c i a d o q u e j á f o i d i t o , o t r a b a l h o n ã o é a t i v i d a d e q u e d á p r a z e r , m a s a t i v i d a d e
q u e d á s o f r i m e n t o . O h o m e m t r a b a l h a p o r q u e n ã o t e m o u t r o j e i t o . T r a b a l h o f o r ç a d o . S e u m a i o r i d e a l : a
a p o s e n t a d o r i a . O p r a z e r , e l e i r á e n c o n t r a r f o r a d o t r a b a l h o . E é p o r i s t o q u e e l e s e s u b m e t e a o t r a b a l h o e a o p a g o
d o s a l á r i o .
Em �ltimo lugar, o trabalho cria um mundo independente da vontade de oper�rio s. . . e capi talistas. Porque
tamb�m os capitalistas est�o alienados. Eles n�o podem fazer o que desejam. Todo o seu comportamento �
rigorosamente determinado pela lei do lucro. N�o � dif�cil compreender como isto acontece. Imaginemos que
voc�, sabendo que o bom do capitalismo � ser capitalista, e dispondo de uma certa import�ncia ajuntada na
poupan�a, resolva dar voos mais
77
altos e investir na bolsa de valores. Como � que voc� ir� proceder? Voc� dever� consultar tabelas que o informem
dos melh ores investimentos. E que � que voc� vai encontrar nelas? N�meros, nada mais. N�meros indicam as
possibilidades de lucro. Se as firmas em que voc� vai investir est�o derrubando florestas e provocando devas ta��es
ecol�gicas, se elas prosperam pela produ��o de armas, se elas s�o injustas e cru�is com os seus empregados, tudo isto �
absolutamente irrele vante. Estabelecida a l�gica do lucro, todas as coisas — da talidomida ao napalm — se
transfor mam em mercadorias, inclusive o oper�rio. Este � o mundo secular, utilit�rio, que horrorizava
Durkheim. � o mundo capitalista, regido pela l�gica do dinheiro. E o que ocorre � que o mundo estabelecido pela
l�gica do lucro — que inclui de devasta��es ecol�gicas at� a guerra — est� totalmente alienado, separado dos desejos
das pessoas, que prefeririam talvez coisas mais simples. . . Assim, as �reas verdes s�o entregues � especula��o
imobili�ria, os �ndios perdem suas terras porque gado � melhor para a economia que �ndio, as terras v�o-se
transformando em desertos de cana, enquanto que rios e mares viram caldos venenosos, e os peixes b�iam,
mortos...
Mas que fatores levam os trabalhadores a aceitar tal situa��o? Por que trabalham de forma alienada? Por que n�o
saem para outra?
78
Porque n�o h� alternativas. Eles s� possuem os seus corpos. Para produzir dever�o acopl� -los �s m�quinas, aos
meios de produ��o. M�quinas e meios de produ��o n�o s�o seus, e s�o gover nados pela l�gica do lucro. E � assim que
o pr�prio conceito de aliena��o nos revela uma sociedade partida entre dois grupos, duas classes sociais. Duas
maneiras totalmente diferentes de ser do corpo. Os trabalhadores s�o acoplados �s m�quinas e, por isto, t�m de
seguir o seu ritmo e fazer o que elas exigem. Isto deixar� marcas nas m�os, na postura, no rosto, nos olhos,
especialmente os olhos. . . Os corpos que habitam o mundo do lucro tamb�m t�m suas marcas, que v�o do colarinho
b r a n c o ( o s a m e r i c a n o s f a l a m m e s m o n o s t r a b a l h a d o r e s w h i t e c o l l a r ) , p a s s a n d o p ê l o s r e s t a u r a n t e s q u e f r e q u e n t a m ,
a s a v e n t u r a s a m o r o s a s q u e t ê m , e a s e n f e r m i d a d e s c a r d i o v a s c u l a r e s q u e o s a f l i g e m . . .
E n ã o é n e c e s s á r i o p e n s a r m u i t o p a r a c o m p r e e n d e r q u e o s i n t e r e s s e s d e s t a s d u a s c l a s s e s n ã o s ã o h a r m ó n i c o s . P a r a
M a r x a q u i s e e n c o n t r a a c o n t r a d i ç ã o m á x i m a d o c a p i t a l i s m o : o c a p i t a l i s m o c r e s c e g r a ç a s a u m a c o n d i ç ã o q u e t o r n a
o c o n f l i t o e n t r e t r a b a l h a d o r e s e p a t r õ e s i n e v i t á v e l . M a r x n u n c a p r e g o u l u t a d e c l a s s e s . A c h a v a t a l s i t u a ç ã o
d e t e s t á v e l . A p e n a s c o m o u m m é d i c o q u e f a z u m d i a g n ó s t i c o d e u m p a c i e n t e e n f e r m o , e l e d i z i a : o d e s e n l a c e é
i n e v i t á v e l p o r q u e o s ó r g ã o s e s t ã o e m g u e r r a . . . O p r o b l e m a n ã o é d e n a t u r e z a
7 9
m o r a l n e m d e n a t u r e z a p s i c o l ó g i c a . N ã o s e r e s o l v e c o m b o a v o n t a d e p o r p a r t e d o s o p e r á r i o s e g e n e r o s i d a d e p o r
p a r t e d o s p a t r õ e s . N e n h u m s a l á r i o , p o r m a i s a l t o q u e s e j a , e l i m i n a r á a a l i e n a ç ã o . T r a t a - s e d e u m a l e i , s o b o p o n t o
d e v i s t a d e M a r x , t ã o r i g o r o s a q u a n t o a l e i d a q u í m i c a q u e d i z : c o m p r i m i n d o - s e o v o l u m e d e u m g á s a p r e s s ã o
a u m e n t a ; e x p a n d i n d o - s e o v o l u m e , a p r e s s ã o c a i . E a q u i p o d e r í a m o s a f i r m a r : " S a l á r i o s c o m p r i m i d o s a o s e u
m í n i m o p r o d u z e m m i l a g r e s e c o n ó m i c o s e x p a n d i d o s a o s e u m á x i m o " .
I s t o é a r e a l i d a d e : h o m e n s t r a b a l h a n d o , e m r e l a ç õ e s u n s c o m o s o u t r o s , s o b c o n d i ç õ e s q u e e l e s n ã o e s c o l h e r a m ,
f a z e n d o c o m s e u s c o r p o s u m m u n d o q u e n ã o d e s e j a m . . . E é d i s t o q u e s u r g e m e c o s , s o n h o s , g r i t o s e g e m i d o s ,
p o e m a s , f i l o s o f i a s , u t o p i a s , c r i t é r i o s e s t é t i c o s , l e i s , c o n s t i t u i ç õ e s , r e l i g i õ e s . . .
S o b r e o f o g o , a f u m a ç a ,
s o b r e a r e a l i d a d e a s v o z e s ,
s o b r e a i n f r a - e s t r u t u r a a s u p e r e s t r u t u r a ,
s o b r e a v i d a a c o n s c i ê n c i a . . .
S ó q u e t u d o a p a r e c e d e c a b e ç a p a r a b a i x o , c o n f u s o . D i z M a r x , l á e m O C a p i t a l , q u e s ó v e r e m o s c o m c l a r e z a
q u a n d o f i z e r m o s a s c o i s a s d o p r i n c í p i o a o f i m , d e a c o r d o c o m u m p l a n o p r e v i a m e n t e t r a ç a d o . M a s q u e m f a z a s
c o i s a s d o p r i n c í p i o a o f i m ? Q u e m c o m p r e e n d e o p l a n o e r a l ? O s
8 0
p r e s i d e n t e s ? O s p l a n e j a d o r e s ? O s m i n i s t r o s ? O F M I ?
C o m p r e e n d e - s e q u e o q u e a s p e s s o a s t ê m n o r m a l m e n t e e m s u a s c a b e ç a s n ã o s e j a
c o n h e c i m e n t o , n ã o s e j a c i ê n c i a , m a s p u r a i d e o l o g i a , f u m a ç a s , s e c r e ç õ e s , r e f l e x o s d e u m
m u n d o a b s u r d o .
E é a q u i q u e a p a r e c e a r e l i g i ã o , e m p a r t e p a r a i l u m i n a r o s c a n t o s e s c u r o s d o
c o n h e c i m e n t o . M a s , p o b r e d e l a . . . E l a m e s m a n ã o v ê . C o m o p r e t e n d e i l u m i n a r ? I l u m i n a
c o m i l u s õ e s q u e c o n s o l a m o s f r a c o s e l e g i t i m a ç õ e s q u e c o n s o l i d a m o s f o r t e s .
" A r e l i g i ã o é a t e o r i a g e r a l d e s t e m u n d o ,
o s e u c o m p ê n d i o e n c i c l o p é d i c o ,
s u a l ó g i c a e m f o r m a p o p u l a r ,
s u a s o l e n e c o m p l e t u d e ,
s u a j u s t i f i c a ç ã o m o r a l ,
s e u f u n d a m e n t o u n i v e r s a l d e c o n s o l o e l e g i t i m a ç ã o . "
D e f a t o , q u a n d o o p o b r e / o p r i m i d o , d a s p r o f u n d e z a s d o s e u s o f r i m e n t o ,
b a l b u c i a : " É a v o n t a d e d e D e u s " , c e s s a m t o d a s a s r a z õ e s , t o d o s o s a r g u m e n t o s ,
a s i n j u s t i ç a s s e t r a n s f o r m a m e m m i s t é r i o s d e d e s í g n i o s i n s o n d á v e i s e a s u a
p r ó p r i a m i s é r i a , u m a p r o v a ç ã o a s e r s u p o r t a d a c o m p a c i ê n c i a , n a e s p e r a d a
s a l v a ç ã o e t e r n a d e s u a a l m a . E o s p o d e r o s o s u s a m a s m e s m a s p a l a v r a s
s a g r a d a s e i n v o c a m o s p o d e r e s d a d i v i n d a d e c o m o c ú m p l i -
8 1
c ê s d a g u e r r a e d a r a p i n a . E o s h a b i t a n t e s o r i g i n a i s d e s t e c o n t i n e n t e e s u a s
c i v i l i z a ç õ e s f o r a m m a s s a c r a d o s e m n o m e d a c r u z , e a e x p a n s ã o c o l o n i a l
l e v o u c o n s i g o p a r a a Á f r i c a e a Á s i a o D e u s d o s b r a n c o s , e c o n s t i t u i ç õ e s
s e e s c r e v e m i n v o c a n d o a v o n t a d e d e D e u s , e u m r e p r e s e n t a n t e d e D e u s v a i
a o l a d o d a q u e l e q u e f o i c o n d e n a d o a m o r r e r . . . N a d a s e a l t e r a , n a d a s e t r a n s -
f o r m a , m a s s o b r e t o d a s a s c o i s a s d o s h o m e n s s e e s p a l h a o p e r f u m e d o
i n c e n s o . . .
R e l i g i ã o ,
" e x p r e s s ã o d e s o f r i m e n t o r e a l , p r o t e s t o c o n t r a u m s o f r i m e n t o r e a l ,
s u s p i r o d a c r i a t u r a o p r i m i d a , c o r a ç ã o d e u m m u n d o s e m c o r a ç ã o , e s p í r i t o
d e u m a s i t u a ç ã o s e m e s p í r i t o , ó p i o d o p o v o " .
E , d e s t a f o r m a , a s p a l a v r a s q u e b r o t a m d o s o f r i m e n t o s e
t r a n s f o r m a m , e l a s m e s m a s , n o b á l s a m o p r o v i s ó r i o p a r a u m a d o r
q u e e l e é i m p o t e n t e p a r a c u r a r . E é p o r i s t o q u e é ó p i o , " f e l i c i d a d e
i l u s ó r i a d o p o v o " , q u e d e v e s e r a b o l i d a c o m o c o n d i ç ã o d e
s u a v e r d a d e i r a f e l i c i d a d e . M a s o a b a n d o n o d a s i l u s õ e s n ã o s e
c o n s e g u e p o r m e i o d e u m a a t i v i d a d e i n t e l e c t u a l . A s p e s s o a s n ã o
p o d e m s e r c o n v e n c i d a s a a b a n d o n a r s u a s i d e i a s r e l i g i o s a s . I d e i a s
s ã o e c o s , f u m a ç a , s i n t o m a s . . . S e e l a s t ê m t a i s i d e i a s é p o r q u e a s u a
s i t u a ç ã o a s e x i g e . É n e c e s s á r i o , e n t ã o , q u e s u a s i t u a ç ã o s e j a
m u d a d a , a s f e n d a s c u r a d a s , p a r a
8 2
q u e a s i l u s õ e s d e s a p a r e ç a m .
" A e x i g ê n c i a d e q u e s e a b a n d o n e m a s i l u s õ e s s o b r e u m a d e t e r m i n a d a
s i t u a ç ã o , é a e x i g ê n c i a d e q u e s e a b a n d o n e u m a s i t u a ç ã o q u e n e c e s s i t a
d e i l u s õ e s . "
" A c r í t i c a a r r a n c o u a s f l o r e s i m a g i n á r i a s d a c o r r e n t e n ã o p a r a q u e o
h o m e m v i v a a c o r r e n t a d o s e m f a n t a s i a s o u c o n s o l o , m a s p a r a q u e e l e
q u e b r e a c o r r e n t e e c o l h a a f l o r v i v a . A c r í t i c a d a r e l i g i ã o d e s i l u d e o
h o m e m , a f i m d e f a z ê - l o p e n s a r e a g i r e m o l d a r a s u a r e a l i d a d e c o m o
a l g u é m q u e , s e m i l u s õ e s , v o l t o u à r a z ã o ; a g o r a e l e g i r a e m t o r n o d e s i
m e s m o , o s e u s o l v e r d a d e i r o . A r e l i g i ã o é n a d a m a i s q u e o s o l i l u s ó r i o
q u e g i r a e m t o r n o d o h o m e m , n a m e d i d a e m q u e e l e n ã o g i r a e m t o r n o d e
s i m e s m o . "
M a r x a n t e v ê o f i m d a r e l i g i ã o . E l a s ó e x i s t e n u m a s i t u a ç ã o m a r c a d a p e l a
a l i e n a ç ã o . D e s a p a r e c i d a a a l i e n a ç ã o , n u m a s o c i e d a d e l i v r e , e m q u e n ã o h a j a
o p r e s s o r e s , n ã o i m p o r t a q u e s e j a m c a p i t a l i s t a s , b u r o c r a t a s o u q u e m q u e r
q u e o s t e n t e a l g u m s i n a l d e s u p e r i o r i d a d e h i e r á r q u i c a , d e s a p a r e c e r á t a m b é m a
r e l i g i ã o . A r e l i g i ã o é f r u t o d a a l i e n a ç ã o . E c o m i s t o o s r e l i g i o s o s m a i s d e v o t o s
c o n c o r d a r i a m t a m b é m . N e m n o P a r a í s o e n e m n a C i d a d e S a n t a s e e / n i t e m
a l v a r á s p a r a a c o n s t r u ç ã o d e t e m p l o s . . .
8 3
O e q u í v o c o é p e n s a r q u e o s a g r a d o é s o m e n t e a q u i l o q u e o s t e n t a o s n o m e s
r e l i g i o s o s t r a d i c i o n a i s . B e m l e m b r a v a D u r k h e i m q u e a s r o u p a s s i m b ó l i c a s
d a r e l i g i ã o s e a l t e r a m . O n d e q u e r q u e i m a g i n e m o s v a l o r e s e o s a c r e s c e n t e m o s
a o r e a l , a í e s t á o d i s c u r s o d o d e s e j o , j u s t a m e n t e o l u g a r o n d e n a s c e m o s
d e u s e s . E M a r x f a l a s o b r e u m a s o c i e d a d e s e m c l a s s e s q u e n i n g u é m n u n c a v i u ,
e n a v i s ã o t r a n s p a r e n t e e c o n h e c i m e n t o c r i s t a l i n o d a s c o i s a s , e n o t r i u n f o
d a l i b e r d a d e e n o d e s a p a r e c i m e n t o d e o p r e s s o r e s e o p r i m i d o s , e n q u a n t o
o E s t a d o m u r c h a d e v e l h i c e e i n u t i l i d a d e , a o m e s m o t e m p o q u e a s p e s s o a s
b r i n c a m e r i e m e n q u a n t o t r a b a l h a m , p l a n t a n d o j a r d i n s p e l a m a n h ã ,
c o n s t r u i n d o c a s a s à t a r d e , d i s c u t i n d o a r t e à n o i t e . . . D e f a t o , f o r a m - s e o s
s í m b o l o s s a g r a d o s , j u s t a m e n t e a q u e l e s " j á a v a n ç a d o s e m a n o s o u j á m o r t o s . .
. " . M a s e u m e p e r g u n t a r i a s e a r a z ã o p o r q u e o m a r x i s m o f o i c a p a z d e p r o d u -
z i r " h o r a s d e e f e r v e s c ê n c i a c r i a t i v a , n a s q u a i s i d e i a s n o v a s a p a r e c e r a m e
n o v a s f ó r m u l a s f o r a m e n c o n t r a d a s , q u e s e r v i r a m , p o r u m p o u c o , c o m o g u i a s
p a r a a h u m a n i d a d e " , s i m , e u m e p e r g u n t a r i a s e t u d o i s t o s e d e v e u a o r i g o r d e
s u a c i ê n c i a o u à p a i x ã o d e s u a v i s ã o , s e s e d e v e u a o s d e t a l h e s d e s u a e x p l i c a ç ã o
o u à s p r o m e s s a s e e s p e r a n ç a s q u e e l e f o i c a p a z d e f a z e r n a s c e r . . . E s e i s t o f o r
v e r d a d e , e n t ã o , à a n á l i s e q u e o m a r x i s m o f a z d a r e l i g i ã o c o m o ó p i o d o p o v o ,
u m o u t r o c a p í t u l o d e v e r i a s e r a c r e s c e n t a d o s o b r e a r e l i g i ã o c o m o
8 4
a r m a d o s o p r i m i d o s , s e n d o q u e o m a r x i s m o , d e d i r e i t o , t e r i a d e s e r
i n c l u í d o c o m o u m a d e l a s . . . P a r e c e q u e a c r í t i c a m a r x i s t a d a r e l i g i ã o n ã o
t e r m i n a c o m e l a , m a s s i m p l e s m e n t e i n a u g u r a u m o u t r o c a p í t u l o . P o r q u e ,
c o m o A l b e r t C a m u s c o r r e t a m e n t e o b s e r v a , " M a r x f o i o ú n i c o q u e
compreendeu que uma religi�o que n�o invoca a transcend�ncia deveria ser
chamada de pol� tica. . .".
85
VOZ DO DESEJO
“ A religi�o � um sonho de mente humana....”
(L.Feuerbach)
De fato, � poss�vel encarar a religi�o como se ela n�o passasse de um
discurso sem sentido, como o fizeram os empiricistas/positivistas. Mas, como
Camus observou, n�o � poss�vel ignorar que as pessoas encont ram raz�es
para viver e morrer em suas esperan�as religiosas, lan�ando -se em empresas
grandiosas e atrevendo -se a gestos loucos, compondo poemas e can��es,
marcando o lugar onde os mortos amados foram enterrados e, se necess�rio,
entregando -se mesmo ao mart�rio. Enquanto, por outro lado, parece que
estes mesmos que propuseram a liquida��o do discurso religioso ainda n�o
produziram os seus m�rtires, e dificilmente poder�o oferecer raz�es para viver
86
e morrer...Sei que a compara��o � injusta. Mas o seu prop�sito �
simplesmente mostrar que o discurso religioso cont�m algo mais que a pura
ausencia de sentido , n�o podendo, por isso mesmo, ser exorcizado pela
cr�tica epstemologica.
Por outro lado, � poss�vel analisar a religi�o de um �ngulo sociol�gico,
como o fizeram Marx e Durkheim. O mesmo procedimento pode ser
a p l i c a d o a o s u i c í d i o . D e f a t o , a a n á l i s e c i e n t í f i c a m o s t r a q u e a
f r e q u ê n c i a e i n c i d ê n c i a d o s u i c í d i o s e g u e m , d e m a n e i r a c u r i o s a , c e r t o s
s u l c o s s o c i a i s : p r o t e s t a n t e s s e s u i c i d a m m a i s q u e c a t ó l i c o s , h a b i t a n t e s
d a s c i d a d e s m a i s q u e c a m p o n e s e s , v e l h o s m a i s q u e o s m o ç o s , h o m e n s m a i s
q u e m u l h e r e s , s o l t e i r o s m a i s q u e o s c a s a d o s . . . M a s , p o r m a i s r i g o r o s o s
q u e s e j a m o s r e s u l t a d o s d e t a l a n á l i s e , r e s t a - n o s u m a d ú v i d a : s e r á q u e a
e x p l i c a ç ã o q u e e n u n c i a o s q u a d r o s s o c i o l ó g i c o s d o s u i c í d i o n o s d i z a l g o
a c e r c a d o s u i c i d a ? A q u e l a ú l t i m a n o i t e , q u a n d o a d e c i s ã o e s t a v a s e n d o
t o m a d a : o s p e n s a m e n t o s , a s m ã o s c r i s p a d a s , q u e m s a b e a s p r e c e s e a s c a r t a s
e s b o ç a d a s , o s p a s s o s a t é a j a n e l a , o s o l h o s t r i s t e s p a r a o c é u t r a n q u i l o . . .
N ã o . E s t e d r a m a / p o e s i a q u e o c o r r e n a s o l i d ã o d a a l m a q u e p r e p a r a s e u
ú l t i m o g e s t o e s c a p a p e r m a n e n t e m e n t e d a a n á l i s e s o c i o l ó g i c a . E , p a r a s e r
t o t a l m e n t e h o n e s t o : t a l d r a m a l h e é a b s o l u t a m e n t e i n d i f e r e n t e .
S e e u m e n c i o n o o s u i c í d i o é p a r a
e s t a b e l e c e r u m a a n a l o g i a c o m a
r e l i g i ã o . P o r q u e a n á l i s e
8 7
s o c i o l ó g i c a , e m a m b o s o s c a s o s , f a z u m s i l ê n c i o t o t a l s o b r e o q u e
o c o r r e n a s p r o f u n d e z a s d a a l m a . S e é v e r d a d e q u e a r e l i g i ã o é u m f a t o
s o c i a l , a p e s s o a q u e f a z p r o m e s s a s a o s e u D e u s p a r a q u e s e u f i l h o v i v a , o u
d o b r a o s j o e l h o s , n a s o l i d ã o , c h o r a n d o , o u e x p e r i m e n t a a p a z
i n d i z í v e l d e c o m u n h ã o c o m o s a g r a d o , o u s e c u r v a p e r a n t e a s
e x i g ê n c i a s m o r a i s d e s u a f é , c o n f e s s a n d o p e c a d o s q u e n i n g u é m
c o n h e c i a e p e d i n d o p e r d ã o a o i n i m i g o , s i m , e s t a p e s s o a e s e u s
s e n t i m e n t o s r e l i g i o s o s s e e n c o n t r a m n u m a e s f e r a d e e x p e r i ê n c i a
i n d i f e r e n t e à a n á l i s e s o c i o l ó g i c a , p o r s e r í n t i m a , s u b j e t i v a , e x i s t e n c i a l .
M a s s e r á q u e i s t o a t o r n a m e n o s r e a l ?
E , q u a n d o n o s d i s p o m o s a e n t r a r n e s t e s a n t u á r i o d e s u b j e t i v i d a d e ,
d e f r o n t a m o - n o s , u m a v e z m a i s , c o m o e n i g m a . Q u a i s s ã o a s r a z õ e s
q u e f a z e m c o m q u e o s h o m e n s c o n s t r u a m o s m u n d o s i m a g i n á r i o s
d a r e l i g i ã o ? P o r q u e n ã o s e m a n t ê m e l e s d e n t r o d o e s t ó i c o e
m o d e s t o r e a l i s m o d o s a n i m a i s , q u e a c e i t a m a v i d a c o m o e l a é , n ã o f a z e m
c a n ç õ e s , n e m r e v o l u ç õ e s , n e m r e l i g i õ e s e , c o m i s t o , e s c a p a m à
m a l d i ç ã o d a n e u r o s e e d a a n g ú s t i a ?
E f o i e m m e i o a p e n s a m e n t o s s e m e l h a n t e s a e s t e q u e u m r e l i g i o s o d o
s é c u l o p a s s a d o t e v e e s t e l a m p e j o d e u m a v i s ã o q u e c o l o c a v a a r e l i g i ã o s o b
u m a l u z a t o t a l m e n t e d i f e r e n t e .
P o r q u e n ã o t e n t a v a e n t e n d e r a r e l i g i ã o d a m e s m a f o r m a c o m o
e n t e n d e m o s o s s o n h o s ? S o n h o s
8 8
s ã o a s r e l i g i õ e s d o s q u e d o r m e m . R e l i g i õ e s s ã o o s s o n h o s d o s q u e e s t ã o
a c o r d a d o s . . .
É b e m p o s s í v e l q u e a s p e s s o a s r e l i g i o s a s s e s i n t a m d e s a p o n t a d a s ,
p r o v a v e l m e n t e e n f u r e c i d a s . Q u e s ã o o s s o n h o s ? C o n g l o m e r a d o s d e a b s u r d o s a
q u e n i n g u é m d e v e p r e s t a r a t e n ç ã o . M u n d o f a n t a s m a g ó r i c o d e c o n t o r n o s
i n d e f i n i d o s , e m q u e a s c o i s a s s ã o e n ã o s ã o , e m q u e f a z e m o s c o i s a s q u e n u n c a
f a r í a m o s s e e s t i v é s s e m o s a c o r d a d o s . E t a n t o i s t o é v e r d a d e q u e
f r e q u e n t e m e n t e n ã o t e m o s c o r a g e m p a r a c o n t a r o q u e f i z e m o s e m n o s s o s o n o . .
. F e l i z m e n t e e s q u e c e m o s t u d o , q u a s e s e m p r e . . . E f o i a s s i m q u e p e n s a r a m
t a m b é m o s c o n t e m p o r â n e o s d e L u d w i g F e u ë r b a c h , q u e o c o n d e n a r a m a o
o s t r a c i s m o i n t e l e c t u a l p a r a o r e s t o d e s e u s d i a s . O u s a d i a d e m a i s d i z e r q u e
r e l i g i ã o é a p e n a s s o n h o . . .
M a s q u e m d i z a p e n a s s o n h o é p o r q u e n ã o e n t e n d e u . D e f a t o , o s s o n h o s n ã o
c o r r e s p o n d e m a o s f a t o s d a v i d a a q u i d e f o r a . N ã o s ã o r e p o r t a g e n s s o b r e o s
e v e n t o s d o d i a . D e l e s s e r i a p o s s í v e l d i z e r o m e s m o q u e s e d i s s e d o d i s c u r s o
r e l i g i o s o : d e s t i t u í d o s d e s e n t i d o , n ã o s i g n i f i c a m c o i s a a l g u m a . . .
N i n g u é m d i s c o r d a : o s s í m b o l o s o n í r i c o s n ã o s i g n i f i c a m o m u n d o e x t e r i o r .
M a s , e s e e l e s f o r e m e x p r e s s õ e s d a a l m a h u m a n a , s i n t o m a s d e a l g o q u e o c o r r e
e m n o s s o í n t i m o , r e v e l a ç õ e s d a s n o s s a s p r o f u n d e z a s ? A p r o p o s t a p o d e r i a s e r
a c e i t a a n ã o s e r p e l o f a t o d e q u e n e m n ó s m e s m o s e n t e n -
8 9
demos o que os sonhos significam. Ser� que, nos sonhos, falamos conosco
mesmos numa l�ngua que nos � estranha? Se os sonhos s�o revela��es do nosso
interior, por que � que tais revela��es n�o s�o feitas em linguagem clara e
direta? Por que a obscuridade, o enigma?
Mensagens s�o enviadas em c�digo quando h� algu�m que n�o deve
compreend� -las. O inimigo: o c�digo � uma forma de engan�-lo. Assim ele
deixa passar, como inocente, a mensa gem que pode significar sua pr�pria
destrui��o. E � isto que parece acontecer no sonho: somos aquele que envia a
mensagem e, ao mesmo tempo, o inimigo que n�o deve entend� -la.. .
� exatamente isto que diz a psican�lise.
Somos seres rachados, atormentados por uma guerra interna sem fim,
chamada neurose, na qual somos nossos pr�prios advers�rios. Um dos lados de
n�s mesmos habita a luz diurna, representa a legalidade, e veste as m�scaras de
uma enorme companhia teatral, desempenhando pap�is por todos
reconhecidos e respeitados — marido fiel, esposa dedicada, profissional
competente, pai compreensivo, velho s�bio e paciente — e pela representa��o
convincente recebendo recompensas de status, respeito, poder e dinheiro. E
todos sabem que a transgress�o das leis que regem este mundo provoca puni��es
e deixa estigmas dolo rosos. . . Por detr�s da m�scara, entretanto, est� um outro
ser, amorda�ado, em ferros, reprimido.
90
recalcado, proibido de fazer ou dizer o que deseja, sem permiss�o para ver a
luz do sol, condenado a viver nas sombras.. . � o desejo, roubado dos seus
direitos, e dominado, pela for�a, por um poder estranho e mais forte: a
sociedade. � desejo grita: "Eu quero!" A sociedade responde: "N�o podes",
"Tu deves". O desejo procura o prazer. A sociedade proclama a ordem. E
assim se configura o conflito. Se a sociedade estabelece proibi��es � porque
ali o desejo procura se infiltrar. IM�o � necess�rio proibir que as pessoas
comam pedras, porque ningu� m o deseja. S� se pro�be o desejado. Assim,
pode haver leis proibindo o incesto, o furto, a exibi��o da nudez, os
atos sexuais em p�blico, a crueldade para com crian�as e animais, o assas -
sinato, o homossexualismo e lesbianismo, a ofensa a poderes
constitu�dos. � que tais desejos s�o muito fortes. O aparato de repress�o e
censura ser� tanto mais forte quanto mais intensa for a tenta��o de
transgredir a ordem estabelecida pela sociedade.
Tudo seria mais simples se a repress�o estivesse localizada fora de n�s e o
desejo alojado dentro de n�s. Pelo menos, desta forma, os inimigos
estariam claramente identificados e separados. Entretanto a psican�lise
afirma que, se � verdade que a ess�ncia da sociedade � a repress�o do
indiv�duo, a ess�ncia do indiv�duo � a repress�o de si mesmo. Somos os dois
lados do combate.
91
Perseguidor e perseguido, torturador e torturado. N�o � exatamente isto
que experimentamos no sentimento de culpa? Somos nossos pr�prios
acusadores. E, no seu ponto extremo, a culpa desemboca no suic�dio: o suicida
�, ao mesmo tempo, carrasco e v�tima.
Vivemos em guerra permanente conosco mesmos. Somos
incapazes de ser felizes. N�o somos os que desejamos ser. O que
desejamos ser jaz reprimido.. . E � justamente a�, diria Feuerbach,
que se encontra a ess�ncia do que somos. Somos o nosso desejo, desejo que
n�o pode florescer. Mas, o pior de tudo, como Freud observa, � que nem
sequer temos 'consci�ncia do que desejamos. N�o sabemos o que queremos
ser. N�o sabemos o que desejamos porque o desejo, reprimido, foi
for�ado a habitar as regi�es do esquecimento. Tornou-se inconsciente.
Acontece que o desejo � indestrut�vel. E l�, do esquecimento em que se
encontra, ele n�o cessa de enviar mensagens cifradas — para que os seus
captores n�o as entendam. E elas aparecem como sintomas neur�ticos, como
lapsos e equ� vocos, como sonhos. . . Os sonhos s�o a voz do desejo. E � aqui
que nasce a religi�o, como mensa gem do desejo, express�o de nostalgia,
esperan�a de prazer. ..
Mas o acordo entre Freud e Feuerbach termina aqui. Daqui para a
frente caminhar�o em direc�es opostas.
9 2
F r e u d e s t a v a c o n v e n c i d o d e q u e o s n o s s o s d e s e j o s , p o r m a i s
f o r t e s q u e f o s s e m , e s t a v a m c o n d e n a d o s a o f r a c a s s o . E i s t o p o r q u e a
r e a l i d a d e n ã o f o i f e i t a p a r a a t e n d e r a o s d e s e j o s d o c o r a ç ã o . A i n t e n ç ã o
d e q u e f ô s s e m o s f e l i z e s n ã o s e a c h a i n s c r i t a n o p l a n o d a C r i a ç ã o . A
r e a l i d a d e s e g u e s e u c u r s o f é r r e o , e m m e i o à s n o s s a s l á g r i m a s e s u r d a a e l a s .
E n v e l h e c e m o s , a d o e c e m o s , s e n t i m o s d o r e s , n o s s o s c o r p o s s e t o r n a m
f l á c i d o s , a b e l e z a s e v a i , o s ó r g ã o s s e x u a i s n ã o m a i s r e s p o n d e m a o s
e s t í m u l o s d o o d o r , d a v i s t a , d o t a t o , e a m o r t e s e a p r o x i m a i n e x o r á v e l .
N ã o h á d e s e j o q u e p o s s a a l t e r a r o c a m i n h a r d o " p r i n c í p i o d a
r e a l i d a d e " .
E m m e i o a e s t a s i t u a ç ã o s e m s a í d a a i m a g i n a ç ã o c r i a m e c a n i s m o s d e
c o n s o l o e f u g a , p o r m e i o d o s q u a i s o h o m e m p r e t e n d e e n c o n t r a r , n a
f a n t a s i a , o p r a z e r q u e a r e a l i d a d e l h e n e g a . E v i d e n t e m e n t e , n a d a m a i s
q u e i l u s õ e s e n a r c ó t i c o s , d e s t i n a d o s a t o r n a r n o s s o d i a - a - d i a m e n o s
m i s e r á v e l .
A r e l i g i ã o é u m d e s t e s m e c a n i s m o s . R e l i g i õ e s s ã o i l u s õ e s , r e a l i z a ç õ e s d o s
m a i s v e l h o s , m a i s f o r t e s e m a i s u r g e n t e s d e s e j o s d a h u m a n i d a d e . S e e l a s s ã o
f o r t e s é p o r q u e o s d e s e j o s q u e e l a s r e p r e s e n t a m o s ã o . E q u e d e s e j o s s ã o e s t e s ?
D e s e j o s q u e n a s c e m d a n e c e s s i d a d e q u e t ê m o s h o m e n s d e s e d e f e n d e r d a f o r c a
e s m a g a d o r a m e n t e s u p e r i o r d a n a t u r e z a . E e l e s p e r c e b e r a m q u e , s e f o s s e m
c a p a z e s d e v i s u a l i z a r , e m m e i o a e s t a r e a l i d a d e
9 3
F r e u d e s t a v a c o n v e n c i d o d e q u e o s n o s s o s d e s e j o s , p o r m a i s f o r t e s q u e
f o s s e m , e s t a v a m c o n d e n a d o s a o f r a c a s s o .
9 4
f r i a e s i n i s t r a q u e o s e n c h i a d e a n s i e d a d e , u m c o r a ç ã o q u e s e n t i a e p u l s a v a c o m o
o d e l e s , o p r o b l e m a e s t a r i a r e s o l v i d o . D e u s é e s t e c o r a ç ã o f i c t í c i o q u e o d e s e j o
i n v e n t o u , p a r a t o r n a r o u n i v e r s o h u m a n o e a m i g o . E e n t ã o a p r ó p r i a m o r t e
p e r d e u o s e u c a r á t e r a m e a ç a d o r . A s r e l i g i õ e s s ã o , a s s i m , i l u s õ e s q u e t o r n a m a
v i d a m a i s s u a v e . N a r c ó t i c o s . C o m o d i r i a M a r x : o ó p i o d o p o v o .
M a s e l a s e s t ã o c o n d e n a d a s a d e s a p a r e c e r .
E i s t o p o r q u e a h u m a n i d a d e s e g u e u m p r o c e s s o d e d e s e n v o l v i m e n t o m u i t o
s e m e l h a n t e à q u e l e p o r q u e p a s s a c a d a u m d e n ó s . N a s c e m o s c r i a n ç a s e t e m o s a
m a i o r e x p e r i ê n c i a p o s s í v e l d o p r a z e r : a u n i ã o p e r f e i t a c o m o s e i o m a t e r n o .
P a r a c r e s c e r , e n t r e t a n t o , t e m o s d e p e r d e r o p a r a í s o , c u j a m e m ó r i a n ã o n o s
a b a n d o n a n u n c a . P e r d e m o s o s e i o e c r i a m o s c o n s o l o s s u b s t i t u t i v o s : o d e d o , a
c h u p e t a . M a s t a m b é m o d e d o e a c h u p e t a n o s s ã o p r o i b i d o s . E t r a t a m o s d e
r e e n c o n t r a r a r e a l i z a ç ã o d o p r a z e r n o s b r i n q u e d o s , n o s q u a i s o d e s e j o r e i n a
s u p r e m o . M a s c a d a a v a n ç o e m m a t u r i d a d e s i g n i f i c a u m a p e r d a d e a r t i f í c i o s
s u b s t i t u t i v o s d o p r a z e r . V a m o s s e n d o e d u c a d o s p a r a a r e a l i d a d e .
A b a n d o n a m o s a s i l u s õ e s . D e i x a m o s o s p r a z e r e s d a f a n t a s i a . A j u s t a m o - n o s a o
m u n d o , t a l c o m o e l e é . T o r n a m o - n o s a d u l t o s . D e f o r m a a n á l o g a o i n í c i o d a
h i s t ó r i a d a h u m a n i d a d e é m a r c a d o p e l a c o m p u l s ã o d o p r a z e r . E o s h o m e n s
i n v e n t a r a m r i t u a i s m á g i c o s e s i s t e m a s r e l i g i o s o s
. 9 5
c o m o e x p r e s s õ e s d a o n i p o t ê n c i a d o d e s e j o , e m o p o s i ç ã o à r e a l i d a d e . A o s
p o u c o s , e n t r e t a n t o , c o m o u m a l a g a r t a q u e s a i d o c a s u l o , a h u m a n i d a d e
a b a n d o n o u a s i l u s õ e s i n v e n t a d a s p e l o p r i n c í p i o d o p r a z e r e c r i s t a l i z a d a s n a
r e l i g i ã o , p a r a i n g r e s s a r n o m u n d o a d u l t o c o n t r o l a d o p e l o p r i n c í p i o d a
r e a l i d a d e e e x p l i c a d o p e l a c i ê n c i a . E d a m e s m a f o r m a c o m o o
d e s e n v o l v i m e n t o d a i n f â n c i a a t é a i d a d e a d u l t a é i n e v i t á v e l , t a m b é m é
i n e v i t á v e l o d e s a p a r e c i m e n t o d a r e l i g i ã o , r e s q u í c i o d e u m m o m e n t o i n f a n t i l
d e n o s s a h i s t ó r i a , e a s u a s u b s t i t u i ç ã o d e f i n i t i v a p e l o s a b e r c i e n t í f i c o .
N ã o é c u r i o s o q u e F r e u d n ã o t e n h a t i d o p a r a c o m a r e l i g i ã o a m e s m a s i m p a t i a
q u e t i n h a p a r a c o m o s s o n h o s ? E m r e l a ç ã o a o s s o n h o s e l e m a n i f e s t a u m e n o r m e
c u i d a d o p a r a c o m o s d e t a l h e s , t r a t a n d o d e i n t e r p r e t a r a s p i s t a s m a i s i n s i g n i -
f i c a n t e s , p o i s a t r a v é s d e l a s o a n a l i s t a p o d e r i a t e r a c e s s o a o s s e g r e d o s d o
i n c o n s c i e n t e . M a s e m r e l a ç ã o à r e l i g i ã o o s e u j u í z o é g l o b a l e d e s t i t u í d o d e
n u a n ç a s . E l a é c o n d e n a d a c o m o u m a i l u s ã o q u e d e v e a c a b a r . A c o n t e c e q u e
F r e u d e s t a v a c o n v e n c i d o d e q u e o s d e s e j o s e s t ã o c o n d e n a d o s a o f r a c a s s o , f a c e a o
p o d e r i n a l t e r á v e l d a n a t u r e z a e d a c i v i l i z a ç ã o . D a í a i n u t i l i d a d e d e s o n h a r . . .
O s s o n h o s n o s c o n d u z e m a o p a s s a d o , p a r a í s o e m q u e h a v i a a u n i ã o p e r f e i t a e
d i v i n a c o m o s e i o m a t e r n o . M a s o p a s s a d o a c a b o u . E o f u t u r o n ã o o f e r e c e
p o s s i b i l i d a d e s d e s a t i s f a ç ã o
9 6
d o d e s e j o . E e s t a é a r a z ã o p o r q u e o s h o m e n s r e a l m e n t e s á b i o s , o s c i e n t i s t a s ,
v o l u n t a r i a m e n t e a b a n d o n a m o s d e s e j o s , e s q u e c e m o s s o n h o s , l i q u i d a m a
r e l i g i ã o . O s d e s e j o s d e v e m s e r r e p r i m i d o s , s e j a v o l u n t a r i a m e n t e , s e j a p e l a
f o r ç a . . .
E m F r e u d o s s o n h o s s ã o m e m ó r i a s i n ú t e i s d e u m p a s s a d o q u e n ã o p o d e s e r
r e c u p e r a d o . F e u e r b a c h , a o c o n t r á r i o , c o n t e m p l a n e l e s l a m p e j o s d o f u t u r o .
N ã o , n ã o q u e r e m o s d i z e r q u e o s s o n h o s s e j a m d o t a d o s d e p o d e r e s p r o f é t i c o s
p a r a a n u n c i a r o q u e a i n d a n ã o o c o r r e u . A c o n t e c e q u e , p a r a F e u e r b a c h , o s
s o n h o s c o n t ê m a m a i o r d e t o d a s a s v e r d a d e s , a v e r d a d e d o c o r a ç ã o h u m a n o , a
v e r d a d e d a e s s ê n c i a d o s h o m e n s .
P o r q u e r a z ã o t a l e s s ê n c i a a p a r e c e r e p r e s e n t a d a n a l i n g u a g e m e n i g m á t i c a d o s
s o n h o s ?
P o r q u e a s c o n d i ç õ e s r e a i s d e n o s s a v i d a i m p e d e m e p r o í b e m a s u a
r e a l i z a ç ã o .
M a s , s e i s t o é u m f a t o , c h e g a m o s à c o n c l u s ã o d e q u e o c o r a ç ã o h u m a n o
p r o c l a m a , s e m c e s s a r : " O q u e é , n ã o p o d e s e r v e r d a d e " . D a m e s m a f o r m a c o m o o
p r i s i o n e i r o g r i t a : " A s g r a d e s n ã o p o d e m s e r e t e r n a s ! " . C a d a s o n h o é u m
p r o t e s t o , u m a d e n ú n c i a , u m a r e c u s a . S e o s n o s s o s d e s e j o s d e a m o r s ó p o d e m s e r
d i t o s n a s c â m a r a s e s c u r a s e n o t u r n a s d o s q u a r t o s , d a s c h a v e s , d o s o n o e d a
i n a ç ã o , é p o r q u e o s e s p a ç o s e o s t e m p o s c l a r o s e d i u r n o s d a v i d a p ú b l i c a e
p o l í t i c a s ã o o o p o s t o d o d e s e j o . A r e a l i d a d e é a n e g a ç ã o d o d e s e j o . P o r t a n t o a
r e a l i d a d e d e v e s e r a b o l i d a , a f i m d e
97
ser transformada. Freud se concentra na inutilidade dos sonhos. Feuerbach
percebe que eles s�o confiss�es de projetos ocultos e subversivos, an�ncios,
ainda que enigm�ticos, de utopias em que a realidade se harmonizar� com o
desejo — e os homens ent�o ser�o felizes. N�o � de causar espanto que, no livro
de Orwell, 7554, um homem tenha sido condenado � pris�o por haver
sonhado. Sonhou em voz alta. Confessou que os seus desejos estavam muito
distantes e eram muito diferentes. E, sem que ele sequer tivesse consci�ncia
daquilo que o seu cora��o queria (os desejos s�o incons cientes!), foi confinado �
pris�o. . . E � justamente sobre tais desejos que fala a religi�o. E � assim que
Feuerbach afirma:
"A religi�o � o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revela��o
dos seus pensa mentos mais �ntimos, a confiss�o p�blica dos seus segredos de
amor."
Aqui � necess�rio parar um pouco para ler, reler, meditar, usufruir a
densidade po�tica das palavras. E ele continua:
"Como forem os pensamentos e as disposi��es do homem, assim ser� o seu
Deus; quanto valor tiver um homem, exatamente isto e n�o mais ser� o valor
do seu Deus. Consci�ncia de Deus � autoconsci�ncia, conhecimento de Deus
98
� autoconhecimento."
Assim, se a psican�lise dizia "conta-me teus sonhos e decifrarei o
teu segredo", Feuerbach acrescenta "conta-me acerca do teu Deus e eu
te direi quem �s".
"Deus � a mais alta subjetividade do homem. . . Este � o mist�rio da
religi�o: o homem projeta o seu ser na objetividade e ent�o se
transforma a si mesmo num objeto face a esta imagem, assim
convertida em sujeito."
É o h o m e m q u e f a l a , d a s p r o f u n d e z a s d o s e u s e r , n u m a l i n g u a g e m q u e
n e m e l e m e s m o e n t e n d e . A d e s p e i t o d i s t o , f a l a s e m p r e a v e r d a d e ,
p o r q u e d i z d o s s e u s s e g r e d o s d e a m o r e a n u n c i a o m u n d o q u e p o d e r i a
f a z ê - l o f e l i z .
N ã o , a l i n g u a g e m r e l i g i o s a n ã o é u m a j a n e l a , n ã o é u m v i d r o
t r a n s p a r e n t e , a b r i n d o - s e p a r a u m l a d o d e l á o n d e h a b i t a m e n t i d a d e s
e x t r a - m u n d a n a s . A r e l i g i ã o é u m s o n h o . M a s n o s s o n h o s n ã o n o s
e n c o n t r a m o s n e m n o v a z i o , c o m o p e n s a v a o e m p i r i c i s m o , e n e m n o s
c é u s , c o m o a f i r m a v a m o s t e ó l o g o s , " r n a s n a t e r r a , n o r e i n o d a
r e a l i d a d e . O q u e o c o r r e é q u e n o s s o n h o s v e m o s a s c o i s a s r e a i s n o
e s p l e n d o r m á g i c o d a i m a g i n a ç ã o e d o c a p r i c h o , a o i n v é s d a s i m p l e s l u z
d i u r n a d a r e a l i d a d e e d a n e c e s s i d a d e " . O m u n d o d o s a g r a d o n ã o é u m a
r e a l i d a d e d o l a d o d e l á ,
9 9
Q u a l o t e u s o n h o , q u e m é t e u D e u s ? N ó s t e d i r e m o s q u e m é s .
1 0 0
m a s a t r a n s f i g u r a ç ã o d a q u i l o q u e e x i s t e d o l a d o d e c á .
D i s s o l v e - s e a q u i a m a l d i ç ã o q u e o e m p i r i s m o / p o s i t i v i s m o h a v i a l a n ç a d o
s o b r e a r e l i g i ã o . T o m a v a o d i s c u r s o r e l i g i o s o c o m o s e f o s s e j a n e l a e , o l h a n d o
o m u n d o l á f o r a , p e r g u n t a v a : o n d e e s t ã o a s e n t i d a d e s s o b r e q u e f a l a a r e l i g i ã o ?
O s d e u s e s e d e m ó n i o s ? O p e c a d o e a g r a ç a ? O s e s p í r i t o s ? O s a s t r a i s ? N a d a ,
a b s o l u t a m e n t e n a d a e n c o n t r a m o s q u e c o r r e s p o n d a a e s t e s c o n c e i t o s . . . E
F e u e r b a c h s e r i a , c o m o n o s r i m o s d e a l g u é m q u e c u m p r i m e n t a s u a p r ó p r i a
i m a g e m , n o e s p e l h o . . .
E s p e l h o . É i s t o : a l i n g u a g e m r e l i g i o s a é u m e s p e l h o e m q u e s e r e f l e t e a q u i l o
q u e m a i s a m a m o s , n o s s a p r ó p r i a e s s ê n c i a . O q u e a r e l i g i ã o a f i r m a é a d i v i n -
d a d e d o h o m e m , o c a r á t e r s a g r a d o d o s s e u s v a l o r e s , o a b s o l u t o d o s e u c o r p o , a
b o n d a d e d e v i v e r , c o m e r , o u v i r , c h e i r a r , v e r . . . E a s s i m c h e g a m o s à m a i s
e s p a n t o s a d a s c o n c l u s õ e s d e s t e h o m e m q u e a m a v a a r e l i g i ã o e n e l a e n c o n t r a v a a
r e v e l a ç ã o d o s s e g r e d o s d e s u a p r ó p r i a a l m a : " O s e g r e d o d a r e l i g i ã o é o
a t e í s m o " .
N e c e s s a r i a m e n t e . S ó p o d e r e i r e c o n h e c e r - m e , n a i m a g e m d o e s p e l h o , s e
s o u b e r q u e n ã o e x i s t e n i n g u é m l á d e n t r o . S ó p o d e r e i r e c o n h e c e r - m e e m
m i n h a s i d e i a s d e D e u s s e s o u b e r q u e n ã o e x i s t e D e u s a l g u m . . . S o u e u o ú n i c o
a b s o l u t o . . .
É e v i d e n t e q u e a s p e s s o a s r e l i g i o s a s n ã o p o d e m a c e i t a r t a l c o n c l u s ã o . E
F e u e r b a c h c o n c l u i r i a ,
1 0 1
e m c o n s e q u ê n c i a d i s t o , q u e o s e n t i d o d a r e l i g i ã o e s t á e s c o n d i d o d a s p e s s o a s
r e l i g i o s a s . E l a s s o n h a m m a s n ã o e n t e n d e m o s s e u s s o n h o s . . .
E a s s i m a r e l i g i ã o é p r e s e r v a d a c o m o s o n h o . S ó q u e , n o m o m e n t o e m q u e o
s o n h o é i n t e r p r e t a d o e c o m p r e e n d i d o . D e u s d e s a p a r e c e : o s c é u s s e
t r a n s f o r m a m e m t e r r a , o q u e e s t a v a l á e m c i m a r e a p a r e c e l á n a f r e n t e , c o m o
f u t u r o . . . E a s i m a g e n s q u e a r e l i g i ã o t o m a v a c o m o r e t r a t o s d o s e r m a i s b e l o e
m a i s p e r f e i t o p a s s a m a c o n s t i t u i r u m h o r i z o n t e d e e s p e r a n ç a e m q u e o s h o m e n s
e s p a l h a m o s s e u s d e s e j o s , u t o p i a d e u m a s o c i e d a d e e m q u e o p r e s e n t e é m á g i c a e
m i r a c u l o s a m e n t e m e t a m o r f o s e a d o p e l o h o m e m q u e q u e b r a a s c o r r e n t e s , p a r a
c o l h e r a f l o r , n ã o e m v i r t u d e d e p r e s s õ e s q u e v ê m d e f o r a , m a s e m r e s p o s t a a o s
s o n h o s q u e v ê m d e d e n t r o .
E t u d o s e t r a n s f o r m a s o b o s n o s s o s o l h o s . P o r q u e a s r e l i g i õ e s ,
c a l e i d o s c ó p i o s d e a b s u r d o s , s e c o n f i g u r a m a g o r a c o m o s í m b o l o s o n í r i c o s d o s
s e g r e d o s d a a l m a , i n c l u s i v e a n o s s a . E p o r d e t r á s d o s m i t o s e r i t o s , c e r i m ó n i a s
m á g i c a s e b e n z e ç õ e s , p r o c i s s õ e s e p r o m e s s a s , p o d e m o s p e r c e b e r o s c o n t o r n o s ,
a i n d a q u e t é n u e s , d o h o m e m q u e e s p e r a u m a n o v a t e r r a , u m n o v o c o r p o . E o s
s e u s s o n h o s r e l i g i o s o s s e t r a n s f o r m a m e m f r a g m e n t o s u t ó p i c o s d e u m a n o v a
o r d e m a s e r c o n s t r u í d a .
1 0 2
O D E U S D O S O P R I M I D O S
M a h a t m a G a n d h i , l í d e r h i n d u , a s s a s s i n a d o e m
1 9 4 8 . M a r t i n L u t h e r K í n g , p a s t o r p r o t e s t a n t e ,
a s s a s s i n a d o e m 1 9 6 8 . O s c a r R a n u l f o H o m e r o ,
a r c e b i s p o c a t ó l i c o , a s s a s s i n a d o e m 1 9 8 0 .
M u i t o s s é c u l o s a t r á s , b e m a n t e s d o s t e m p o s d e C r i s t o , s u r g i u e n t r e
o s h e b r e u s u m a e s t r a n h a e s t i r p e d e l í d e r e s r e l i g i o s o s , o s p r o f e t a s .
Q u e m e r a m e l e s ? E m g e r a l a s p e s s o a s p e n s a m q u e p r o f e t a s s ã o v i d e n t e s
d o t a d o s d e p o d e r e s e s p e c i a i s p a r a p r e v e r o f u t u r o , s e m m u i t o o
q u e d i z e r s o b r e o a q u i e o a g o r a . N a d a m a i s d i s t a n t e d a v o c a ç ã o d o p r o f e t a
h e b r e u , q u e s e d e d i c a v a , c o m p a i x ã o s e m p a r a l e l o , a v e r , c o m p r e e n d e r ,
a n u n c i a r e d e n u n c i a r o q u e o c o r r i a n o s e u p r e s e n t e . T a n t o a s s i m q u e s u a s
p r e g a ç õ e s e s t a v a m m a i s
1 0 3
p r ó x i m a s d e e d i t o r i a i s p o l í t i c o s d e j o r n a i s q u e d e m e d i t a ç õ e s
e s p i r i t u a i s d e g u r u s r e l i g i o s o s . E l e s p o u c o o u n a d a s e p r e o c u p a v a m
c o m a q u i l o q u e v u l g a r m e n t e c o n s i d e r a m o s c o m o p r o p r i a m e n t e
p e r t e n c e n d o a o c í r c u l o d o s a g r a d o : o c u l t i v o d a s e x p e r i ê n c i a s
m í s t i c a s , d a s a t i t u d e s p i e d o s a s e d a s c e l e b r a ç õ e s c e r i m o n i a i s e s t á p r a t i -
c a m e n t e a u s e n t e d o â m b i t o d o s s e u s i n t e r e s s e s . M a v e r d a d e , b o a p a r t e d e
s u a p r e g a ç ã o e r a t o m a d a p e l o a t a q u e à s p r á t i c a s r e l i g i o s a s
d o m i n a n t e s e m s e u s d i a s , p a t r o c i n a d a s e c e l e b r a d a s p e l a c l a s s e s a c e r d o t a l .
E i s t o p o r q u e e l e s e n t e n d i a m q u e o s a g r a d o , a q u e d a v a m o n o m e d e
v o n t a d e d e D e u s , t i n h a a v e r f u n d a m e n t a l m e n t e c o m a j u s t i ç a e a
m i s e r i c ó r d i a . E m s u a s b o c a s t a i s p a l a v r a s t i n h a m u m s e n t i d o
p o l í t i c o e s o c i a l q u e t o d o s e n t e n d i a m . P a r a s e c o m p r e e n d e r o q u e
d i z i a m n ã o e r a n e c e s s á r i o s e r f i l ó s o f o o u t e ó l o g o . S u a p r e g a ç ã o e s t a v a
c o l a d a à s i t u a ç ã o d o s h o m e n s c o m u n s . Q u e s i t u a ç ã o e r a e s t a ?
O E s t a d o c r e s c i a c a d a v e z m a i s , t o r n a n d o - s e c e n t r a l i z a d o e
c o n c e n t r a d o n a s m ã o s d e u n s p o u c o s . E , c o m o s e m p r e a c o n t e c e ,
quando o poder de alguns aumenta, o poder dos outros diminui. As
pequenas comunidades rurais, que em outras �pocas haviam sido o
centro da vida do povo hebreu, se enfraqueciam em decorr�ncia dos
pesados impostos que sobre elas reca�am. A fraqueza do povo crescia na
medida em que se avolumava o poder dos ex�rcitos — porque
104
sem eles o Estado n�o subsiste. Os camponesas, pobres, tinham de vender suas
propriedades, que eram ent�o transformadas em latif�ndios por um pequeno
grupo de capitalistas urbanos. � de tal situa��o que surgem os profetas como
porta -vozes dos desgra�ados da terra. Assim, quando pregavam a justi�a, todos
compreendiam que eles estavam exigindo o fim das pr�ticas de opress�o. Era
necess�rio que a vida e a alegria fossem devolvidas aos pobres, aos sofredores,
aos fracos, aos estrangeiros, aos �rf�os e vi�vas, enfim, a todos aqueles que se
encontravam fora dos c�rculos da riqueza e do poder.
Instaurou-se com os profetas um novo tipo de religi�o, de natureza �tica e
pol�tica, e que entendia que as rela��es dos homens com Deus t�m de passar
pelas rela��es dos homens, uns com os outros:
"Abomino e desprezo vossas celebra��es solenes.
Corra, por�m, a justi�a como um ribeiro impetuoso. . ." (Amos, 5.24).
As autoridades, por raz�es �bvias, os detes tavam, acusando -os de traidores
e denunciando sua prega��o como contr�ria aos interesses nacio nais. Foram
proibidos de falar, perseguidos e mesmo mortos. E enquanto lutavam com o
poder estatal, de um lado, confrontavam-se com os
1 0 5
r e p r e s e n t a n t e s d a r e l i g i ã o o f i c i a l , d o o u t r o . P a r e c i a - l h e s q u e u m a r e l i g i ã o
p r o t e g i d a p e l o E s t a d o s ó p o d i a e s t a r a s e u s e r v i ç o . S u a d e n ú n c i a p r o f é t i c a ,
a s s i m , s e d i r i g i a n ã o a p e n a s à q u e l e s q u e e f e t i v a m e n t e o p r i m i a m o s f r a c o s ,
c o m o t a m b é m à q u e l e s q u e s a c r a l i z a v a m e j u s t i f i c a v a m a o p r e s s ã o ,
e n v o l v e n d o - a n a a u r a d a a p r o v a ç ã o d i v i n a . E f o i a s s i m q u e , c e r c a d e 2 5 0 0 a n o s
a n t e s q u e q u a l q u e r p e s s o a d i s s e s s e q u e a r e l i g i ã o é o ó p i o d o p o v o , e l e s
p e r c e b e r a m q u e a t é m e s m o o s n o m e s d e D e u s e o s s í m b o l o s s a g r a d o s p o d e m s e r
u s a d o s p ê l o s i n t e r e s s e s d a o p r e s s ã o , e a c u s a r a m o s s a c e r d o t e s d e e n g a n a d o r e s d o
p o v o e o s f a l s o s p r o f e t a s d e p r e g a d o r e s d e i l u s õ e s :
" E l e s e n g a n a m o m e u p o v o d i z e n d o q u e t u d o v a i b e m q u a n d o n a d a v a i b e m .
P r e t e n d e m e s c o n d e r a s r a c h a d u r a s n a p a r e d e c o m u m a m ã o d e c a l . . . "
( E z e q u i e l , 1 3 . 1 0 ) .
E e m o p o s i ç ã o a e s t a f a l s a r e l i g i ã o q u e s a c r a - l i z a v a o p r e s e n t e e l e s t e c e r a m ,
c o m a s d o r e s , t r i s t e z a s e e s p e r a n ç a s d o p o v o , v i s õ e s d e u m a t e r r a s e m m a l e s ,
u m a u t o p i a , o R e i n o d e D e u s , e m q u e a s a r m a s s e r i a m t r a n s f o r m a d a s e m
a r a d o s , a h a r m o n i a c o m a n a t u r e z a s e r i a r e s t a b e l e c i d a , o s l u g a r e s s e c o s e
d e s o l a d o s s e c o n v e r t e r i a m e m m a n a n c i a i s d e á g u a s , o s p o d e r o s o s s e r i a m
d e s t r o n a d o s e a t e r r a d e v o l v i d a , c o m o h e r a n ç a , a o s m a n s o s , f r a c o s , p o b r e s e
o p r i m i d o s .
1 0 6
Ê p r o v á v e l q u e o s p r o f e t a s t e n h a m s i d o o s p r i m e i r o s a c o m p r e e n d e r
a a m b i v a l ê n c i a d a r e l i g i ã o : e l a s e p r e s t a a o b j e t i v o s o p o s t o s , t u d o d e p e n -
d e n d o d a q u e l e s q u e m a n i p u l a m o s s í m b o l o s s a g r a d o s . E l a p o d e s e r
u s a d a p a r a i l u m i n a r o u p a r a c e g a r , p a r a f a z e r v o a r o u p a r a l i s a r , p a r a d a r
c o r a g e m o u a t e m o r i z a r , p a r a l i b e r t a r o u e s c r a v i z a r . D a í a n e c e s s i d a d e d e
s e p a r a r o D e u s e m c u j o n o m e f a l a v a m , q u e e r a o D e u s d o s o p r i m i d o s , e
q u e d e s p e r t a v a a e s p e r a n ç a e a p o n t a v a p a r a u m f u t u r o n o v o , d o s í d o l o s d o s
o p r e s s o r e s , q u e t o r n a v a m a s p e s s o a s g o r d a s , p e s a d a s , s a t i s f e i t a s c o n s i g o
m e s m a s , e n r a i z a d a s e m s u a i n j u s t i ç a e c e g a s p a r a o j u l g a m e n t o d i v i n o
q u e s e a p r o x i m a v a . . .
M a s e s t a l i ç ã o f o i e s q u e c i d a . A m e m ó r i a d o D e u s d o s o p r i m i d o s s e
p e r d e u . . . E n ã o é d i f í c i l c o m p r e e n d e r p o r q u ê . V i s õ e s s e m e l h a n t e s à s s u a s
s ó a p a r e c e m e m m e i o a o s p o b r e s e f r a c o s . M a s o s p o b r e s e o s f r a c o s v ã o d e
d e r r o t a e m d e j r o t a . . . Q u e m p r e s e r v a r i a s u a s m e m ó r i a s ? Q u e m a c o -
l h e r i a s u a s d e n ú n c i a s ? Q u e m r e g i s t r a r i a a s s u a s q u e i x a s ? N ã o s e p o d e e s p e r a r
t a n t a g e n e r o s i d a d e d o s v e n c e d o r e s . S ã o o s f o r t e s q u e e s c r e v e m a h i s t ó r i a e
e s t a é a r a z ã o p o r q u e n ã o s e e n c o n t r a m a l i a s r a z õ e s d o s d e r r o t a d o s . J á
n o t a r a m c o m o o s d e r r o t a d o s s ã o s e m p r e d e s c r i t o s c o m o v i l õ e s ? O q u e
r e s t o u , c o m o h i s t ó r i a , f o r a m o s r e l a t o s q u r e l i g i ã o t r i u n f a n t e , m ã o s
d a d a s c o m o s c o n q u i s t a d o r e s , f e z d e s i m e s m a e d a q u e l e s q u e
1 0 7
f o r a m e s m a g a d o s . E , a s s i m , e m n o s s a m e m ó r i a r e s t o u a p e n a s a r e l i g i ã o
d o s f o r t e s , j u s t a m e n t e a q u e l a q u e o s p r o f e t a s d e n u n c i a r a m . Q u a n t o à
r e l i g i ã o d o s p r o f e t a s , e l a c o n t i n u o u e m e r g i n d o a q u i e a l i . M a s a q u e l e s q u e
e m p u n h a r a m s u a s e s p e r a n ç a s f o r a m d e r r o t a d o s . E , p a r a e f e i t o s
p r á t i c o s , f o i c o m o s e t a l r e l i g i ã o n u n c a t i v e s s e e x i s t i d o . . . E a s
e v i d ê n c i a s , a s s i m , p a r e c i a m s e a j u n t a r p a r a l e v a r à c o n c l u s ã o d e q u e a
r e l i g i ã o n a d a m a i s é q u e a l i e n a ç ã o , n a r c ó t i c o , i l u s ã o . F o i e n t ã o q u e u m a s é r i e
d e f a t o r e s c o i n c i d e n t e s p e r m i t i u q u e s e r e c o n s t r u í s s e a p e r d i d a v i s ã o
p r o f é t i c a d a r e l i g i ã o c o m o i n s t r u m e n t o d e l i b e r t a ç ã o d o s o p r i m i d o s .
P r i m e i r o , o d e s e n v o l v i m e n t o d a c i ê n c i a h i s t ó r i c a , q u e t o r n o u p o s s í v e l
a r e c u p e r a ç ã o d o s f r a g m e n t o s d o p a s s a d o , n u m e s f o r ç o p a r a s e
p e n e t r a r a t r á s d a c o r t i n a d e i n t e r p r e t a ç õ e s q u e o s v i t o r i o s o s h a v i a m
e r i g i d o . E l á f o r a m e n c o n t r a d o s , c o m f r e q u ê n c i a , r e v o l u c i o n á r i o s
q u e f a l a v a m e m n o m e d e D e u s e e m n o m e d o s p o b r e s , n ã o i m p o r t a q u e t i v e s s e m
n a m ã o a e s p a d a , c o m o T h o m a s M u n z e r , a n a b a t i s t a , l í d e r d e c a m p o -
n e s e s n o s é c u l o X V I , o u q u e s e v a l e s s e m a p e n a s d o p o d e r d o e x e m p l o e d a n ã o
v i o l ê n c i a , c o m o f o i o c a s o d e S ã o F r a n c i s c o d e A s s i s .
D e p o i s , o d e s e n v o l v i m e n t o d a a r t e d a i n t e r p r e t a ç ã o q u e p e r m i t i a
v i s l u m b r a r , a t r a v é s d o d i s c u r s o d o s v i t o r i o s o s , a v e r d a d e a c e r c a d o s
v e n c i d o s . A r t e d a i n t e r p r e t a ç ã o ? P a r a n o s s o s o b j e t i v o s
1 0 8
b a s t a s a b e r q u e " o q u e o A n t ó n i o f a l a a c e r c a d e P e d r o c o n t é m m a i s i n f o r m a ç õ e s
a c e r c a d e A n t ó n i o q u e a c e r c a d e P e d r o " . A s s i m , m u i t o e m b o r a o s d e r r o t a d o s
t i v e s s e m d e i x a d o p o u c o s d o c u m e n t o s s o b r e s i m e s m o s , n o s p r ó p r i o s d o c u -
m e n t o s d o s v i t o r i o s o s a v e r d a d e e s t a v a e s c o n d i d a , c o m o o n e g a t i v o d e u m a
f o t o g r a f i a , c o m o c o r c o m p l e m e n t a r , c o m o o o p o s t o . A q u i l o q u e o s
o p r e s s o r e s d e n u n c i a m n o s o p r i r n i d o s n ã o é a v e r d a d e d o s o p r i m i d o s , m a s
a q u i l o q u e o s o p r e s s o r e s t e m e m . A s s i m , q u a n d o a s v e r s õ e s o f i c i a i s ,
j u s t i f i c a d o r a s d o s m a s s a c r e s d o s m o v i m e n t o s r e v o l u c i o n á r i o s d e c a m p o n e s e s ,
o s d e s c r e v i a m c o m o f a n á t i c o s , l u n á t i c o s , a n á r q u i c o s , r e v e l a - s e e m q u e m e d i d a
o s t r a b a l h a d o r e s d e e n x a d a e p é n o c h ã o q u e s t i o n a v a m a o r d e m d e d o m i n a ç ã o .
E a h i s t ó r i a d o B r a s i l a p r e s e n t a m u i t o s e x e m p l o s d e s t e s m o v i m e n t o s ,
d e n o m i n a d o s m e s s i â n i c o s . M e s s i â n i c o s ? S i m . E s p e r a v a m u m m e s s i a s , u m
r e p r e s e n t a n t e d e D e u s p a r a e x e r c e r o p o d e r e e s t a b e l e c e r u m a s o c i e d a d e j u s t a
s o b r e a f a c e d a t e r r a .
A o m e s m o t e m p o s e e l a b o r o u u m a c i ê n c i a n o v a q u e r e c e b e u o n o m e d e
s o c i o l o g i a d o c o n h e c i m e n t o . S e u p o n t o d e p a r t i d a é e x t r e m a m e n t e s i m p l e s :
e l a c o n s t a t a q u e a m a n e i r a p e l a q u a l p e n s a m o s é c o n d i c i o n a d a . p e l a t e x t u r a
s o c i a l d e n o s s a s v i d a s . C e r t o d i a e u " e s t a v a e n g r a x a n d o o s s a p a t o s , n u m a p r a ç a .
O g a r o t o , e n g r a x a t e , v i u u m h o m e m q u e s e a p r o x i m a v a e c o m e n t o u :
1 0 9
" L á v e m u m f r e g u ê s " . P e r g u n t e i : " É s e u c o n h e c i d o ? " . " N ã o " , f o i a r e s p o s t a .
" E n t ã o , c o m o é q u e v o c ê s a b e q u e e l e é u m f r e g u ê s ? " . A o q u e e l e r e s p o n d e u : " O
s e n h o r n ã o o l h o u p r ó s s a p a t o s d e l e ? " . É a s s i m , o s o l h o s d o s e n g r a x a t e s e o s e u
pensamento seguem os caminhos do seu trabalho. O seu mundo, talvez, se
divida entre pessoas cal�adas e pessoas descal�as. E as pessoas cal�adas se
classifiquem em pessoas que usam sapatos engrax�veis e outras que usam
sand�lias havaia nas, alpargatas e sapatos de camur�a. . . E assim por diante. No
seu ponto extremo esta linha de pensamento nos levaria � conc lus�o de que os
poderosos pensam diferentemente daqueles que n�o t�m poder: "o mundo dos
felizes � diferente do mundo dos infelizes" (Wittgenstein).
Mas, n�o � verdade que toda sociedade tem uma classe dominante e uma
classe dominada? Uma classe que pode e outra que n�o pode? Uma classe forte e
uma classe fraca? At� mesmo as crian�as e velhos sabem disto — especialmente
as crian�as e velhos. E tamb�m os migrantes, e os camponeses assolados pela
seca, e os doentes que morrem sem atendimento m�dico. . . e assim por diante. E
a conclus�o que se segue, necessa riamente, � que os sonhos dos poderosos
t�m de ser diferentes dos sonhos dos oprimidos. E tamb�m suas religi�es. ..
Os poderosos moram em o�sis. O seu poder lhes abre avenidas largas para o bem-
estar, a
110
ran�a, a tranquilidade, a prosperidade, o lucro, a sa�de. O futuro? Os
fortes n�o querem mudan�as. Que o futuro seja uma continua��o do
presente. E como se perpetua o presente? Primeiro, pelo uso da for�a.
Constroem-se fortalezas. Depois � necess�rio que tanto dominadores
quanto dominados aceitem tal situa��o como leg�tima. Riqueza pela
vontade de Deus, pobreza pela vontade de Deus. . . Tudo se reveste com a
aura sagrada. Mas j� sabemos que coisas sagradas s�o intoc�veis. Elas exigem
rever�ncia e submiss�o, independentemente de quaisquer considera��es
utilit�rias. O sagrado est� destinado � eternidade, bem como o mundo do
poder que ele envolve. E � por isto que nos templos se encontram bandeiras
e rituais de a��es de gra�a s�o celebrados pelo triunfo dos que venceram.
Com os dominados a situa��o � diferente. N�o habitam os o�sis, mas os
desertos. Sem poder, sem seguran�a, sem tranquilidade, de um lado para
outro, sem ra�zes e sem terras, sem casas, sem trabalho. Sua condi��o � de
humilha��o. Doen�a. Morte prematura. E o futuro? Os fracos exigem a
mudan�a, se n�o com sua voz, por medo, pelo menos em seus sonhos. O
sofrimento prepara a alma para a vis�o (Buber). E dos pobres e oprimidos
brotam as esperan�as — tal como aconteceu com os profetas hebreus — de
um futuro em que eles herdar�o a terra.
Reencontramo-nos assim no mundo dos profe-
111
tas em que a religi�o aparece com toda a sua ambival�ncia pol�tica: os
sonhos dos poderosos eternizam o presente e exorcizam um futuro novo;
os sonhos dos oprimidos exigem a dissolu��o do presente para que o
futuro seja a realiza��o do Reino de Deus, n�o importa o nome que se lhe
d�.
� ir�nico, mas esta conclus�o escandaliza tanto a gregos quanto a
troianos. De um lado, aqueles que se horrorizaram com a afirma��o de
Marx de que a religi�o � o �pio do povo se horrorizam agora com a
possibilidade de que talvez ela n�o o seja. . . Teria sido melhor que Marx
estivesse certo, porque assim os detentores do poder n�o teriam de se
preocupar com os profetas e suas esperan�as. Mas, por outro lado, s�o os
pr�prios marxistas que n�o podem esconder sua perplexidade. E isto
porque, na eventualidade de que as religi�es possam revolucionar a reali-
dade, ter�o de admitir que os fantasmas superes-truturais podem se
encarnar e fazer hist�ria. . .
Um fascinante estudo deste assunto se encontra no artigo de KarI
Mannheim entitulado "A mentalidade ut�pica", em que ele analisa a
maneira como o desejo e a imagina��o incidem sobre os fatores materiais
para determinar a pol�tica. Contrariamente �queles que pensam que a a��o
� sempre o efeito de uma causa material que a antecede, Mannheim sugere
que aquilo que caracteriza propriamente a pol�tica, como atividade
humana.
112
� a capacidade que t�m os homens para imaginar utopias e organizar o seu
c o m p o r t a m e n t o c o m o u m a t á t i c a p a r a r e a l i z á - l a s . Q u e s ã o u t o p i a s ? R e a l i d a d e s ?
D e f o r m a a l g u m a . C o m o o p r ó p r i o n o m e e s t á i n d i c a n d o , u t o p i a s s e r e f e r e m a
a l g o q u e n ã o s e e n c o n t r a e m l u g a r a l g u m ( d o g r e g o o u = n ã o + t o p o s = l u g a r ) .
C o m o s u r g e m e l a s ? C a i r ã o d o a r ? N ã o . S ã o a s c l a s s e s s o c i a i s o p r i m i d a s q u e , n ã o
e n c o n t r a n d o s a t i s f a ç ã o p a r a o s s e u s d e s e j o s e m s u a " t o p i a " , e m i g r a m p e l a i m a -
g i n a ç ã o p a r a u m a t e r r a i n e x i s t e n t e o n d e s u a s a s p i r a ç õ e s s e r e a l i z a r ã o . S u a
a t i v i d a d e p o l í t i c a s e t o r n a , e n t ã o , p e r e g r i n a ç ã o n a d i r e ç ã o d a t e r r a p r o m e t i d a ,
c o n s t r u ç ã o d o m u n d o q u e a i n d a n ã o e x i s t e .
F o i i s t o q u e o c o r r e u c o m o s c a m p o n e s e s a n a b a - t i s t a s d o s é c u l o X V I .
M o v i d o s p o r u m p r o f u n d o f e r v o r r e l i g i o s o , i n i c i a r a m u m m o v i m e n t o
r e v o l u c i o n á r i o p a r a a c o n s t r u ç ã o d e u m a n o v a o r d e m s o c i a l , d e a c o r d o c o m a
v o n t a d e d e D e u s . D e l e s a s m e m ó r i a s f o r a m p o u c a s . N e m m e s m o M a r x s e
l e m b r o u d e s t e s a n c e s t r a i s d o p r o l e t a r i a d o . E s q u e c i m e n t o c o m p r e e n s í v e l . A s
m e m ó r i a s d o s d e r r o t a d o s d e s a p a r e c e m c o m f a c i l i d a d e .
M a s E n g e l s l h e s f e z j u s t i ç a . M a i s d o q u e i s t o , a c r e d i t o u e n c o n t r a r f e r m e n t o
s e m e l h a n t e d e n t r o m e s m o d a c o m u n i d a d e c r i s t ã p r i m i t i v a . É b e m p o s s í v e l .
N ã o e r a e l a f o r m a d a p o r g r u p o s d e s t i t u í d o s d e p o d e r ? E n ã o s o f r e r a m e l e s
t o d o t i p o d e p e r s e g u i ç ã o ? N ã o é d e s e e s p a n t a r , p o r t a n t o ,
1 1 3
q u e u m d o s s e u s t e x t o s s a g r a d o s , o A p o c a l i p s e , t e n h a f a l a d o s o b r e a
e s p e r a n ç a d e u m a r e v o l u ç ã o t o t a l n o c o s m o s , e m q u e t o d a s a s p o t ê n c i a s d o
m a l , i n c l u s i v e o E s t a d o , s e r i a m d e s t r u í d a s .
M a s p e r m a n e c e u m p r o b l e m a , p o r q u e e s t a d e s c r i ç ã o q u e f a z e m o s d a r e l i g i ã o
d o s p o b r e s e o p r i m i d o s p a r e c e n ã o c o r r e s p o n d e r à r e a l i d a d e . É r a r o v ê -
l o s e n v o l v i d o s c o m q u a l q u e r c o i s a q u e s e p a r e ç a c o m a r e l i g i ã o d o s
p r o f e t a s . P a r e c e q u e e l e s s e s e n t e m m a i s à v o n t a d e n a c o m p a n h i a d o m á g i c o ,
d o c u r a n d e i r o , d o m i l a g r e i r o , t r a t a n d o d e r e s o l v e r o s p r o b l e m a s d o s e u
d i a - a - d i a s e m m u i t a e s p e r a n ç a , s a b e n d o q u e a s c o i s a s s ã o o q u e s ã o p ê l o s
d e c r e t o s i n s o n d á v e i s d a v o n t a d e d e D e u s , s e n d o m a i s g a r a n t i d o a c r e d i t a r q u e
o s p o b r e s h e r d a r ã o o s c é u s q u e h e r d a r ã o a t e r r a . E a q u i v o l t a m o s à
s o c i o l o g i a d o c o n h e c i m e n t o . E x i s t i r á a l g u m a o u t r a a l t e r n a t i v a p a r a
a q u e l e s q u e d i a r i a m e n t e e x p e r i m e n t a m a i m p o t ê n c i a ? N ã o s e r á a s u a f a l t a
d e p o d e r q u e o s l e v a a e m p u r r a r s u a s e s p e r a n ç a s p a r a o o u t r o m u n d o ? S e i s t o f o r
v e r d a d e , o q u e s e p o d e r i a e s p e r a r d e u m a s i t u a ç ã o e m q u e o s p o b r e s e
o p r i m i d o s d e s c o b r e m a s u a f o r ç a ? P a r e c e q u e q u a n d o i s t o a c o n t e c e e l e s s e
a t r e v e m a t r a n s f o r m a r s e u s s o n h o s e m r e a l i d a d e , f a z e m d e s c e r o p a r a í s o
d o s c é u s à t e r r a , c o l o c a m - n o n o h o r i z o n t e , e c o m e ç a m a s u a m a r c h a . E
é e n t ã o q u e c o m e ç a m a a p a r e c e r o s m á r t i r e s . S e a r e l i g i ã o f o s s e a p e n a s ó p i o ,
v e r i a m ó s o E s t a d o e o p o d e r e c o n ó m i c o a o s e u l a d o ,
1 1 6
d a a c u s a ç ã o , n o s a s s e g u r a r a m q u e a r e l i g i ã o é u m a l o u c a q u e b a l b u c i a c o i s a s s e m
n e x o , d i s t r i b u i n d o i l u s õ e s , f a z e n d o a l i a n ç a s c o m o s p o d e r o s o s , n a r c o t i z a n d o o s
p o b r e s . O u t r o s , p e l a d e f e s a , a f i r m a r a m q u e s e m a r e l i g i ã o o m u n d o h u m a n o
n ã o p o d e e x i s t i r e q u e , q u a n d o d e c i f r a m o s o s s e u s s í m b o l o s , c o n t e m p l a m o -
n o s c o m o n u m e s p e l h o . E m a i s , q u e é j u s t a m e n t e c o m e s t e s s í m b o l o s q u e o s
o p r i m i d o s c o n s t r ó e m s u a s e s p e r a n ç a s e s e l a n ç a m à l u t a .
C u r i o s o , e n t r e t a n t o , q u e n e n h u m a d a s t e s t e m u n h a s t e n h a s i d o j a m a i s v i s t a
n o s l u g a r e s s a g r a d o s , e m b u s c a d e c o m u n h ã o c o m o d i v i n o . E o q u e é m a i s
g r a v e : é s a b i d o q u e n e n h u m a d e l a s j a m a i s a c r e d i t o u n a q u i l o q u e a r e l i g i ã o t e m
a d i z e r .
É a s s i m c o m o s c i e n t i s t a s : p r e s t a m a t e n ç ã o , s e m a c r e d i t a r ; e s c u t a m e
a n o t a m , c o n v e n c i d o s d e q u e o s h o m e n s n ã o s a b e m s o b r e o q u e e s t ã o f a l a n d o .
E l e s p e n s a m q u e a q u e l e s q u e n ã o p a s s a r a m p e l a e d u c a ç ã o c i e n t í f i c a , o s h o m e n s
c o m u n s , s ã o c o m o s o n â m b u l o s : c a m i n h a m e n v o l v i d o s p o r u m a n u v e m d e
i l u s õ e s e e q u í v o c o s q u e n ã o o s d e i x a v e r a v e r d a d e . M í o p e s . C e g o s . V ê e m a s
c o i s a s d e c a b e ç a p a r a b a i x o . N ã o p o r m á f é , m a s p o r i n c a p a c i d a d e c o g n i t i v a . E
e s t a é a r a z ã o p o r q u e o s c i e n t i s t a s o u v e m s u a s p a l a v r a s c o m u m s o r r i s o
c o n d e s c e n d e n t e . S e r ã o e l e s , o s c i e n t i s t a s , q u e r e t i r a r ã o d o d i s c u r s o d o s e n s o
c o m u m a v e r d a d e a q u e s o m e n t e a c i ê n c i a t e m a c e s s o . E é p o r i s t o q u e n e n h u m
c i e n t i s t a p o d e a c r e d i t a r
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n a s p a l a v r a s d a r e l i g i ã o . S e a c r e d i t a s s e m s e r i a m r e l i g i o s o s e n ã o h o m e n s d e
c i ê n c i a .
N ã o l h e s s o b r a o u t r a a l t e r n a t i v a . T o d a s a s c i ê n c i a s , s e m e x c e ç ã o , s ã o
o b r i g a d a s a u m r i g o r o s o a t e í s m o m e t o d o l ó g i c o : d e m ó n i o s e d e u s e s n ã o
p o d e m s e r i n v o c a d o s p a r a e x p l i c a r c o i s a a l g u m a . T u d o s e p a s s a , n o j o g o d a
c i ê n c i a , c o m o s e D e u s n ã o e x i s t i s s e . . . E s e é d a í q u e p a r t e m o s c i e n t i s t a s , c o m o
p o d e r i a m e l e s a c r e d i t a r n a q u e l e s q u e i n v o c a m o s d e u s e s e t ê m a i n g e n u i d a d e d e
o r a r ? . . .
M a s n ã o h a v e r á u m d e v e r d e h o n e s t i d a d e a n o s o b r i g a r a o u v i r a r e l i g i ã o , a t é
a g o r a s i l e n c i o s a ? N ã o d e v e r e m o s p e r m i t i r q u e e l a a r t i c u l e o s s e u s p o n t o s d e
v i s t a ? O u n o s c o m p o r t a r e m o s c o m o i n q u i s r i o r e s ? N o m u n d o e n c a n t a d o d a
A l i c e a c o n t e c e u u m f a m o s o j u l g a m e n t o e m q u e o j u i z g r i t a v a : " A s e n t e n ç a
p r i m e i r o , o j u l g a m e n t o d e p o i s ! " . F a r e m o s n o s s o o c o m p o r t a m e n t o d o
m a g i s t r a d o d o i d o ? N ã o . T e r e m o s d e o u v i r a v o z d a r e l i g i ã o , a i n d a q u e e l a
e s t e j a m a i s p r ó x i m a d a p o e s i a q u e d a c i ê n c i a .
A q u e m v o u i n v o c a r c o m o r e p r e s e n t a n t e d a r e l i g i ã o ? V o c ê p e r c e b e u q u e , e m
C ü d a c a p í t u l o , e s f o r c e i - m e p o r a s s u m i r a i d e n t i d a d e d a q u e l e e m c u j o n o m e
f a l e i . T e n t e i s e r p o s i t i v i s t a , t e n t e i s e r D u r k h e i m , f a l e i c o m o s e f o s s e M a r x ,
c o m o s e f o s s e F r e u d e F e u e r b a c h , p r o c u r e i a s v i s õ e s d o s m u n d o s d o s p r o f e t a s .
E s t r a n h a e m a r a v i l h o s a c a p a c i d a d e , e s t a d e b r i n c a r d e " f a z - d e - c o n t a " .
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A b a n d o n a r n o s s a s c e r t e z a s p a r a v e r c o m o o m u n d o s e c o n f i g u r a n a v i s ã o d e
o u t r a p e s s o a . E é i s t o q u e t e r e m o s d e f a z e r a g o r a , p e d i n d o o s i l ê n c i o d o
c i e n t i s t a q u e e m n ó s h a b i t a , a f i m d e p e r m i t i r q u e f a l e , t a l v e z , u m p e d a ç o d e
n ó s m e s m o s : p e d a ç o q u e , s e m i n v o c a r o s n o m e s s a g r a d o s , i n s i s t e e m d e s e j a r ,
e m e s p e r a r , e n v i a n d o s e u s g r i t o s s i l e n c i o s o s d e a s p i r a ç ã o e p r o t e s t o p ê l o s
b u r a c o s s e m f i m d o s m o m e n t o s d e i n s ó n i a e s o f r i m e n t o . P o d e s e r q u e n ã o
a c r e d i t e m o s e m d e u s e s , m a s b e m q u e d e s e j a r í a m o s q u e e l e s e x i s t i s s e m . I s t o
t r a n q u i l i z a r i a o n o s s o c o r a ç ã o . T e r í a m o s c e r t e z a s s o b r e a s c o i s a s q u e a m a m o s
e q u e v e m o s , c o m t r i s t e z a , e n v e l h e c e r , d e c a i r , s u m i r . . . A h ! S e p u d é s s e m o s
f i c a r g r á v i d o s d e d e u s e s . . . E é a s s i m q u e p a s s a m o s p a r a u m o u t r o m u n d o e m
q u e a f a l a n ã o e s t á s u b o r d i n a d a a o s o l h o s , m a s l i g a d a a o c o r a ç ã o . Ê q u e " o
c o r a ç ã o t e m r a z õ e s q u e a p r ó p r i a r a z ã o
d e s c o n h e c e " .
U m v e l h o f e i t i c e i r o d i z i a a o s e u a p r e n d i z q u e o s e g r e d o d e s u a a r t e e s t a v a
e m a p r e n d e r a f a z e r o m u n d o p a r a r . C o n s e l h o q u e p a r e c e l o u c u r a , m a s
q u e v i r a s a b e d o r i a q u a n d o n o s d a m o s c o n t a d e q u e o n o s s o m u n d o f o i
p e t r i f i c a d o p e l o h á b i t o . A c o s t u m a m o - n o s a f a l a r s o b r e o m u n d o d e u m a
c e r t a f o r m a , p e n s a m o - l o s e m p r e d e n t r o d o s m e s m o s q u a d r o s , v e m o s
t u d o s e m p r e d a m e s m a f o r m a , e o s s e n t i m e n t o s s e e m b o t a m p o r s a b e r m o s
q u e o q u e v a i s e r é i g u a l à q u i l o q u e j á f o i . M a s , q u a n d o b r i n c a m o s d e f a z -
d e - c o n t a , é c o m o s e
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o n o s s o m u n d o r e p e n t i n a m e n t e p a r a s s e n a m e d i d a e m q u e a l i n g u a g e m , o
p e n s a m e n t o , o s o l h o s e o s e n t i m e n t o d e u m o u t r o f a z e m s u r g i r u m m u n d o
n o v o à n o s s a f r e n t e . E f o i i s t o q u e o c o r r e u à s p o b r e s r ã s d e s t a p a r á b o l a , j á
c o n t a d a e m o u t r o s l u g a r e s , e q u e v o u r e p e t i r :
" N u m l u g a r n ã o m u i t o l o n g e d a q u i h a v i a u m p o ç o f u n d o e e s c u r o o n d e ,
d e s d e t e m p o s i m e m o r i a i s , u m a s o c i e d a d e d e r ã s s e e s t a b e l e c e r a . T ã o f u n d o
e r a o p o ç o q u e n e n h u m a d e l a s j a m a i s h a v i a v i s i t a d o o m u n d o d e f o r a .
E s t a v a m c o n v e n c i d a s q u e o u n i v e r s o e r a d o t a m a n h o d o s e u b u r a c o . H a v i a
s o b e j a s e v i d ê n c i a s c i e n t í f i c a s p a r a c o r r o b o r a r e s t a t e o r i a e s o m e n t e
u m l o u c o , p r i v a d o d o s s e n t i d o s e d a r a z ã o , a f i r m a r i a o c o n t r á r i o .
A c o n t e c e u , e n t r e t a n t o , q u e u m p i n t a s s i l g o q u e v o a v a p o r a l i v i u o
p o ç o , f i c o u c u r i o s o , e r e s o l v e u i n v e s t i g a r s u a s p r o f u n d e z a s . Q u a l n ã o
f o i s u a s u r p r e s a a o d e s c o b r i r a s r ã s ! M a i s p e r p l e x a s f i c a r a m e s t a s , p o i s
a q u e l a e s t r a n h a c r i a t u r a d e p e n a s c o l o c a v a e m q u e s t ã o t o d a s a s v e r d a d e s j á
s e c u l a r m e n t e s e d i m e n t a d a s e c o m p r o v a d a s e m s u a s o c i e d a d e . O p i n t a s s i l g o
m o r r e u d e d ó . C o m o é q u e a s r ã s p o d i a m v i v e r p r e s a s e m t a l p o ç o , s e m a o
m e n o s a e s p e r a n ç a d e p o d e r s a i r ? C l a r o q u e a i d e i a d e s a i r e r a a b s u r d a p a r a
o s b a t r á q u i o s , p o i s , s e o s e u b u r a c o e r a o u n i v e r s o , n ã o p o d e r i a h a v e r u m " l á
f o r a " . E o p i n t a s s i l g o s e p ô s a
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c a n t a r f u r i o s a m e n t e . T r i n o u a b r i s a s u a v e , o s c a m p o s v e r d e s , a s á r v o r e s
c o p a d a s , o s r i a c h o s c r i s t a l i n o s , b o r b o l e t a s , f l o r e s , n u v e n s , e s t r e l a s . . . o q u e p ô s
e m p o l v o r o s a a s o c i e d a d e d a s r ã s , q u e s e d i v i d i r a m . A l g u m a s a c r e d i t a r a m e
c o m e ç a r a m a i m a g i n a r c o m o s e r i a l á f o r a . F i c a r a m m a i s a l e g r e s e a t é m e s m o
m a i s b o n i t a s . C o a x a r a m c a n ç õ e s n o v a s . A s o u t r a s f e c h a r a m a c a r a . A f i r m a ç õ e s
n ã o c o n f i r m a d a s p e l a e x p e r i ê n c i a n ã o d e v e r i a m s e r m e r e c e d o r a s d e c r é d i t o ,
e l a s a l e g a v a m . O p i n t a s s i l g o t i n h a d e e s t a r d i z e n d o c o i s a s s e m s e n t i d o e
m e n t i r a s . E s e p u s e r a m a f a z e r a c r í t i c a f i l o s ó f i c a , s o c i o l ó g i c a e p s i c o l ó g i c a
d o s e u d i s c u r s o . A s e r v i ç o d e q u e m e s t a r i a e l e ? D a s c l a s s e s d o m i n a n t e s ? D a s
c l a s s e s d o m i n a d a s ? S e u c a n t o s e r i a u m a e s p é c i e d e n a r c ó t i c o ? O p a s s a r i n h o s e r i a
u m l o u c o ? U m e n g a n a d o r ? Q u e m s a b e e l e n ã o p a s s a r i a d e u m a a l u c i n a ç ã o
c o l e t i v a ? D ú v i d a s n ã o h a v i a d e q u e o t a l c a n t o h a v i a c r i a d o m u i t o s p r o b l e m a s .
T a n t o a s r ã s - d o m i n a n t e s q u a n t o a s r ã s - d o m i - n a d a s ( q u e s e c r e t a m e n t e
p r e p a r a v a m u m a r e v o l u ç ã o ) n ã o g o s t a r a m d a s i d e i a s q u e o c a n t o d o p i n t a s s i l g o
e s t a v a c o l o c a n d o n a c a b e ç a d o p o v ã o . P o r o c a s i ã o d e s u a p r ó x i m a v i s i t a o
p i n t a s s i l g o f o i p r e s o , a c u s a d o d e e n g a n a d o r d o p o v o , m o r t o , e m p a l h a d o e a s
d e m a i s r ã s p r o i b i d a s , p a r a s e m p r e , d e c o a x a r a s c a n ç õ e s q u e e l e l h e s e n s i n a r a . .
. "
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F o i a s s i m q u e a c o n t e c e u : a c i ê n c i a e m p a l h o u a r e l i g i ã o , t i r a n d o d e l a
v e r d a d e s m u i t o d i f e r e n t e s d a q u e l a s q u e a p r ó p r i a r e l i g i ã o v i v a c a n t a v a .
A c o n t e c e q u e a s p e s s o a s r e l i g i o s a s , a o d i z e r o s n o m e s a g r a d o s , r e a l m e n t e
c r ê e m n u m " l á f o r a " e é d e s t e m u n d o i n v i s í v e l q u e s u a s e s p e r a n ç a s s e
a l i m e n t a m . T u d o t ã o d i s t a n t e , t ã o d i f e r e n t e d a s a b e d o r i a c i e n t í f i c a . . .
S e v a m o s o u v i r a s p e s s o a s r e l i g i o s a s é n e c e s s á r i o " f a z e r - d e - c o n t a " q u e
a c r e d i t a m o s . Q u e m s a b e o p i n t a s s i l g o t e m r a z ã o ? Q u e m s a b e o u n i v e r s o é m a i s
b o n i t o e m i s t e r i o s o q u e o s l i m i t e s d o n o s s o p o ç o ? S o b r e o q u e f a l a a r e l i g i ã o ?
É n e c e s s á r i o q u e n ã o n o s d e i x e m o s c o n f u n d i r p e l a e x u b e r â n c i a d o s s í m b o l o s
e g e s t o s , v i n d o s d e l o n g e e d e p e r t o , d e o u t r o r a e d e a g o r a , p o r q u e o t e m a d a
c a n ç ã o é s e m p r e o m e s m o . V a r i a ç õ e s s o b r e u m t e m a d a d o . A r e l i g i ã o f a l a
s o b r e o s e n t i d o d a v i d a . E l a d e c l a r a q u e v a l e a p e n a v i v e r . Q u e é p o s s í v e l s e r
f e l i z e s o r r i r . E o q u e t o d a s e l a s p r o p õ e m é n a d a m a i s q u e u m a s é r i e d e r e c e i t a s
p a r a a f e l i c i d a d e . A q u i s e e n c o n t r a a r a z ã o p o r q u e a s p e s s o a s c o n t i n u a m a s e r
f a s c i n a d a s p e l a r e l i g i ã o , a d e s p e i t o d e t o d a a c r í t i c a q u e l h e f a z a c i ê n c i a . A
c i ê n c i a n o s c o l o c a n u m m u n d o g l a c i a l e m e c â n i c o , m a t e m a t i c a m e n t e p r e c i s o
e t e c n i c a m e n t e m a n i p u l á v e l , m a s v a z i o d e s i g n i f i c a ç õ e s h u m a n a s e i n d i f e r e n t e
a o n o s s o a m o r . B e m d i z i a M a x W e b e r q u e a d u r a l i ç ã o q u e a p r e n d e m o s d a
c i ê n c i a é q u e o s e n t i d o d a v i d a n ã o p o d e s e r
1 2 2
e n c o n t r a d o a o f i m d a a n á l i s e c i e n t í f i c a , p o r m a i s c o m p l e t a q u e s e j a . E n o s
d e s c o b r i m o s e x p u l s o s d o p a r a í s o , a i n d a c o m o s r e s t o s d o f r u t o d o c o n h e -
c i m e n t o e m n o s s a s m ã o s . . .
O s e n t i d o d a v i d a : n ã o h á p e r g u n t a q u e s e f a ç a c o m m a i o r a n g ú s t i a e p a r e c e
q u e t o d o s s ã o p o r e l a a s s o m b r a d o s d e v e z e m q u a n d o . V a l e r á a p e n a v i v e r ? A
g r a v i d a d e d a p e r g u n t a s e r e v e l a n a g r a v i d a d e d a r e s p o s t a . P o r q u e n ã o é r a r o
v e r m o s p e s s o a s m e r g u l h a d a s n o s a b i s m o s d a l o u c u r a , o u o p t a r e m
v o l u n t a r i a m e n t e p e l o a b i s m o d o s u i c í d i o p o r t e r e m o b t i d o u m a r e s p o s t a
n e g a t i v a . O u t r a s p e s s o a s , c o m o o b s e r v o u C a m u s , s e d e i x a m m a t a r p o r i d e i a s o u
i l u s õ e s q u e l h e s d ã o r a z õ e s p a r a v i v e r : b o a s r a z õ e s p a r a v i v e r s ã o t a m b é m b o a s
r a z õ e s p a r a m o r r e r .
M a s o q u e é i s t o , o s e n t i d o d a v i d a ?
O s e n t i d o d a v i d a é a l g o q u e s e e x p e r i m e n t a e m o c i o n a l m e n t e , s e m q u e s e
s a i b a e x p l i c a r o u j u s t i f i c a r . N ã o é a l g o q u e s e c o n s t r u a , m a s a l g o q u e n o s
o c o r r e d e f o r m a i n e s p e r a d a e n ã o p r e p a r a d a , c o m o u m a b r i s a s u a v e q u e n o s
a t i n g e , s e m q u e s a i b a m o s d o n d e v e m n e m p a r a o n d e v a i , e q u e e x p e r i m e n t a m o s
c o m o u m a i n t e n s i f i c a ç ã o d a v o n t a d e d e v i v e r a o p o n t o d e n o s d a r c o r a g e m
p a r a m o r r e r , s e n e c e s s á r i o f o r , p o r a q u e l a s c o i s a s q u e d ã o à v i d a o s e u s e n t i d o .
É u m a t r a n s f o r m a ç ã o d e n o s s a v i s ã o d o m u n d o , n a q u a l a s c o i s a s s e i n t e g r a m
c o m o e m u m a m e l o d i a , o q u e n o s f a z s e n t i r r e c o n c i l i a d o s c o m o u n i v e r s o a o
n o s s o
1 2 3
r e d o r , p o s s u í d o s d e u m s e n t i m e n t o o c e â n i c o , n a p o é t i c a e x p r e s s ã o d e R o m a i n
R o l l a n d , s e n s a ç ã o i n e f á v e l d e e t e r n i d a d e e i n f i n i t u d e , d e c o m u n h ã o c o m a l g o
q u e n o s t r a n s c e n d e , e n v o l v e e e m b a l a , c o m o s e f o s s e u m ú t e r o m a t e r n o d e
d i m e n s õ e s c ó s m i c a s . " V e r u m m u n d o e m u m g r ã o d e a r e i a / e u m c é u n u m a
f l o r s i l v e s t r e , / s e g u r a r o i n f i n i t o n a p a l m a d a m ã o / e a e t e r n i d a d e e m u m a
h o r a " ( B l a k e ) .
O s e n t i d o d a v i d a é u m s e n t i m e n t o .
S e a p r e t e n s ã o d a r e l i g i ã o t e r m i n a s s e a q u i , t u d o e s t a r i a b e m . P o r q u e n ã o h á
l e i s q u e n o s p r o í b a m d e s e n t i r o q u e q u i s e r m o s . O e s c â n d a l o c o m e ç a q u a n d o a
r e l i g i ã o o u s a t r a n s f o r m a r t a l s e n t i m e n t o , i n t e r i o r e s u b j e t i v o , n u m a h i p ó t e s e
a c e r c a d o u n i v e r s o . P o d e m o s e n t e n d e r a s r a z õ e s p o r q u e o h o m e m r e l i g i o s o n ã o
p o d e s e s a t i s f a z e r c o m o p á s s a r o e m p a l h a d o . A r e l i g i ã o d i z : " o u n i v e r s o
i n t e i r o f a z s e n t i d o " . A o q u e a c i ê n c i a r e t r u c a : " a s p e s s o a s r e l i g i o s a s s e n t e m e
p e n s a m q u e o u n i v e r s o i n t e i r o f a z s e n t i d o " . A q u e l a a f i r m a ç ã o s a g r a d a q u e
e c o a v a d e u n i v e r s o e m u n i v e r s o , r e v e r b e r a n d o e m e t e r n i d a d e s e i n f i n i t o s , a
c i ê n c i a a p r i s i o n a d e n t r o d o p o ç o p e q u e n o e e s c u r o d a s u b j e t i v i d a d e e d a
s o c i e d a d e : i l u s ã o , i d e o l o g i a . O s e n t i d o d a v i d a é d e s t r u í d o . Q u e p o d e r e s t a r d a
a l e g r i a d a s r ã s , s e o " l á f o r a " q u e o p i n t a s s i l g o c a n t o u n ã o e x i s t i r ?
A f i r m a r q u e a v i d a t e m s e n t i d o é p r o p o r a f a n t á s t i c a h i p ó t e s e d e q u e o
u n i v e r s o v i b r a c o m
1 2 4
o s n o s s o s s e n t i m e n t o s , s o f r e a d o r d o s t o r t u r a d o s , c h o r a a l á g r i m a d o s
a b a n d o n a d o s , s o r r i c o m a s c r i a n ç a s q u e b r i n c a m . . . T u d o e s t á l i g a d o .
C o n v i c ç ã o d e q u e , p o r d e t r á s d a s c o i s a s v i s í v e i s , h á u m r o s t o i n v i s í v e l q u e
s o r r i , p r e s e n ç a a m i g a , b r a ç o s q u e a b r a ç a m , c o m o n a f a m o s a t e l a d e S a l v a d o r
Dali. E � esta cren�a que explica os sacrif�cios que se oferecem nos altares e as
preces que se balbuciam na solid�o.
� poss�vel que tais imagens jamais tenham passado pela sua cabe�a e que
voc� se sinta perdido em meio �s met�foras de que a experi�ncia religiosa
lan�a m�o. E me lembrei de um di�logo, dos mais belos e profundos j�
produzidos pela literatura, em que Ivan Karamazov argumenta com seu
irm�o Alioscha, invocando a mem�ria de um menininho, castigado p�los pais
por haver molhado a cama, e trancado num quartinho escuro e frio, fora de
casa, na noite gelada. E ele fala das m�ozinhas, batendo na porta, pedindo
para sair, l�grimas rolando pela face torcida pelo medo. Que raz�es, no
universo inteiro, poderiam ser invocadas para explicar e justificar aquela dor?
A gente sent e que aqui se encontra algo profundamente errado, eternamente
errado, errado sempre, sem atenuantes, do princ�pio dos mundos at� o seu
fim. E sentimos igual quando pensamos nos torturados, nos executados, nos
que morrem de fome, nos escravizados, nos que terminaram seus dias em
campos de concentra��o,
125
na vida animal que � destru�da pela gan�ncia, nas armas, na velhice
abandonada. . . E poder�amos ir multiplicando os casos, sem fim. ..
Que raz�es trazemos conosco que nos compelem a dizer n�o a tais atos?
Ser�o os nossos senti mentos apenas? Mas, se assim for, que poderemos alegar
quando tamb�m o carrasco, tamb�m o torturador, tamb�m os que fazem
armas e guerra invocarem os seus sentimentos como garantia de suas a��es?
Tamb�m eles sentem. . . Ainda permanecem humanos. . .
N�o, nossos julgamentos �ticos n�o descansam apenas em nossos
sentimentos. � verdade que nos valemos deles. Mas verdade � tamb�m que
invocamos o universo inteiro como testemunha e garantia de nossa causa.
Vibra com o infinito a voz do cora��o. Cremos que o universo possui um
cora��o humano, uma voca��o para o amor, uma prefer�ncia pela felicidade e
pela liberdade — tal como n�s. Assim, anunciar que a vida tem sentido �
proclamar que o universo � nosso irm�o. Nossos sentimentos s�o expre ss�es da
realidade. E � esta realidade, �ncora de sentimentos, que recebe o nome de
D e u s .
A r e l i g i ã o c u i d o u , c o m c a r i n h o e s p e c i a l , d e e r i g i r c a s a s a o s d e u s e s e c a s a s
p a r a o s m o r t o s , t e m p l o s e s e p u l c r o s . N e n h u m o u t r o s e r e x i s t e n e s t e m u n d o
q u e , c o m o n ó s , e r g a s ú p l i c a s a o s c é u s e e n t e r r e , c o m s í m b o l o s , o s s e u s m o r t o s .
E i s t o n ã o é a c i d e n t a l . P o r q u e a m o r t e é a q u e l a
1 2 6
p r e s e n ç a q u e , v e z p o r o u t r a , r o ç a e m n ó s o s e u d e d o e n o s p e r g u n t a : " A p e s a r
d e m i m , c r ê s a i n d a q u e a v i d a f a z s e n t i d o ? " .
C o m o a f i r m a r o s e n t i d o d a v i d a p e r a n t e a m o r t e ? Q u e c o n s o l o o f e r e c e r
a o p a i , d i a n t e d o f i l h o m o r t o ? D i z e r q u e a v i d a f o i c u r t a , m a s b e l a ? C o m o
c o n s o l a r a q u e l e q u e s e d e s c o b r i u e n f e r m o p a r a m o r r e r e v ê o s r i s o s e
c a r i n h o s c a d a v e z m a i s d i s t a n t e s ? E o s m i l h õ e s q u e m o r r e m i n j u s t a m e n t e :
T r e b l i n k a , H i r o s h i m a , B i a f r a ?
T u d o t ã o d i f e r e n t e d e u m a s o n a t a d e M o z a r t : c u r t a , p e r f e i t a . E m v i n t e
m i n u t o s t u d o o q u e d e v e r i a t e r s i d o d i t o o f o i . O a c o r d e f i n a l n a d a
i n t e r r o m p e , c o m p l e t a a p e n a s .
C o m o a f i r m a r o s e n t i d o d a v i d a p e r a n t e o a b s u r d o d a e x i s t ê n c i a
r e p r e s e n t a d o d e m a n e i r a e x e m p l a r p e l a m o r t e q u e r e d u z a n a d a t u d o o q u e o
a m o r c o n s t r u i u e e s p e r o u ?
" A q u i l o q u e é f i n i t o p a r a o e n t e n d i m e n t o é n a d a p a r a o c o r a ç ã o "
( F e u e r b a c h ) . E i s o p r o b l e m a . " D e u m l a d o , a e s t r e l a e t e r n a , e d o o u t r o a
v a g a i n c e r t a . . . " ( C e c í l i a M e i r e l e s ) . O s e n t i d o d a v i d a s e d e p e n d u r a
n o s e n t i d o d a m o r t e . E é a s s i m q u e a r e l i g i ã o e n t r e g a a o s d e u s e s o s s e u s
m o r t o s , e m e s p e r a n ç a . . . E n t r e a s c a s a s d o s d e u s e s e a s c a s a s d o s m o r t o s
b r i l h a a e s p e r a n ç a d a v i d a e t e r n a p a r a q u e o s h o m e n s s e r e c o n c i l i e m c o m a
m o r t e e s e j a m l i b e r t a d o s p a r a v i v e r . Q u a n d o a m o r t e é t r a n s f o r m a d a e m
a m i g a , n ã o é m a i s n e c e s s á r i o l u t a r c o n t r a e l a . E n ã o s e r á v e r d a d e
1 2 7
q u e t o d a a n o s s a v i d a é u m a l u t a s u r d a p a r a e m p u r r a r p a r a l o n g e o s
h o r i z o n t e s " a p r o x i m a d o s e s e m r e c u r s o " ? A s o c i e d a d e é u m b a n d o d e h o m e n s
q u e c a m i n h a m , l u t a n d o , e m d i r e ç ã o à m o r t e
i n e v i t á v e l .
P e n s e n o q u e v o c ê f a r i a s e l h e f o s s e d i t o q u e l h e r e s t a m t r ê s m e s e s d e v i d a .
D e p o i s d o p â n i c o i n i c i a l . . . S u a s r o t i n a s d i á r i a s , a s c o i s a s q u e v o c ê c o n s i d e r a
i m p o r t a n t e s , i n a d i á v e i s , p e l a s q u a i s s a c r i f i c a o ó c i o , a m e d i t a ç ã o , o
b r i n q u e d o . . . A l e i t u r a d o s j o r n a i s , o s c a n h o t o s d o s t a l õ e s d e c h e q u e , o s
d o c u m e n t o s p a r a o I R , o s r e s s e n t i m e n t o s c o n j u g a i s , o s r a n c o r e s
p r o f i s s i o n a i s , a p ó s - g r a d u a ç ã o , a s p e r s p e c t i v a s d e c a r r e i r a . . . T u d o i s t o
e n c o l h e r i a a t é q u a s e d e s a p a r e c e r . E o p r e s e n t e g a n h a r i a u m a p r e s e n ç a
q u e n u n c a t e v e a n t e s . V e r e s a b o r e a r c a d a m o m e n t o ; s ã o o s ú l t i m o s : o
q u a d r o , e s q u e c i d o n a p a r e d e ; o c h e i r o d e j a s m i m ; o c a n t o d e u m
p á s s a r o , e m a l g u m l u g a r ; o b a r u l h o d o s g r i l o s , e n q u a n t o o s o n o n ã o v e m ; a
g r i t a r i a d a s c r i a n ç a s ; o s s a l p i c o s d a á g u a f r i a , p e r t o d a f o n t e . . . T a l v e z v o c ê a t é
c r i a s s e c o r a g e m p a r a t i r a r o s s a p a t o s e e n t r a r n a á g u a . . . Q u e i m p o r t a r i a o
e s p a n t o d a s p e s s o a s s ó l i d a s ? T a l v e z e n c o n t r e m o s a q u i a s r a z õ e s p o r q u e a
s o c i e d a d e o c u l t a e d i s s i m u l a a m o r t e , t o r n a n d o - a a t é m e s m o a s s u n t o
p r o i b i d o p a r a c o n v e r s a ç ã o . A c o n s c i ê n c i a d a m o r t e t e m o p o d e r d e l i b e r t a r e
i s t o s u b v e r t e a s l e a l d a d e s , v a l o r e s e r e s p e i t o s d e q u e a o r d e m s o c i a l
d e p e n d e . C o l o c a n d o o s
1 2 8
s e p u l c r o s n a s m ã o s d o s d e u s e s , a r e l i g i ã o o b r i g a a i n i m i g a a s e
t r a n s f o r m a r e m i r m ã . . . L i v r e s p a r a m o r r e r , o s h o m e n s e s t a r i a m l i v r e s
p a r a v i v e r . M a s o s e n t i d o d a v i d a n ã o é u m f a t o . N u m m u n d o a i n d a s o b o
s i g n o d a m o r t e , e m q u e o s v a l o r e s m a i s a l t o s s ã o c r u c i f i c a d o s e a b r u t a l i d a d e
t r i u n f a , é i l u s ã o p r o c l a m a r a h a r m o n i a c o m o u n i v e r s o , c o m o r e a l i d a d e
p r e s e n t e . A e x p e r i ê n c i a r e l i g i o s a , a s s i m , d e p e n d e d e u m f u t u r o . E l a s e
n u t r e d e h o r i z o n t e s u t ó p i c o s q u e o s o l h o s n ã o v i r a m e q u e s ó p o d e m
s e r c o n t e m p l a d o s p e l a m a g i a d a i m a g i n a ç ã o . D e u s e o s e n t i d o d a v i d a s ã o
a u s ê n c i a s , r e a l i d a d e s p o r q u e s e a n s e i a , d á d i v a s d a e s p e r a n ç a . D e f a t o , t a l v e z
s e j a e s t a a g r a n d e m a r c a d a r e l i g i ã o : a e s p e r a n ç a . E t a l v e z p o s s a m o s a f i r m a r ,
c o m E r n e s t B l o c h : " o n d e e s t á a e s p e r a n ç a a l i t a m b é m e s t á a r e l i g i ã o " .
A v i s ã o é b e l a , m a s n ã o h á c e r t e z a s . C o m o o t r a p e z i s t a q u e t e m d e s e l a n ç a r
s o b r e o a b i s m o , a b a n d o n a n d o t o d o s o s p o n t o s d e a p o i o , a a l m a r e l i g i o s a t e m
d e s e l a n ç a r t a m b é m s o b r e o a b i s m o , n a d i r e ç ã o d a s e v i d ê n c i a s d o s e n t i m e n t o ,
d a v o z d o a m o r , d a s s u g e s t õ e s d a e s p e r a n ç a . N o s c a m i n h o s d e P a s c a l e
K i e r k e g a a r d , t r a t a - s e d e u m a a p o s t a a p a i x o n a d a . E o q u e é l a n ç a d o s o b r e a
m e s a d a s i n c e r t e z a s e d a s e s p e r a n ç a s é a v i d a i n t e i r a .
E o l e i t o r , p e r p l e x o , e m b u s c a d e u m a c e r t e z a f i n a l , p e r g u n t a r i a : " M a s , e
D e u s , e x i s t e ? A v i d a t e m s e n t i d o ? O u n i v e r s o t e m u m a f a c e ? A m o r t e
1 2 9
é m i n h a i r m ã ? " . A o q u e a a l m a r e l i g i o s a s ó p o d e r i a r e s p o n d e r : " N ã o s e i . M a s
e u d e s e j o a r d e n t e m e n t e q u e a s s i m s e j a . E m e l a n ç o i n t e i r a . P o r q u e é m a i s b e l o o
r i s c o a o l a d o d a e s p e r a n ç a q u e a c e r t e z a a o l a d o d e u m u n i v e r s o f r i o e s e m
s e n t i d o . . . "
1 3 0
I N D I C A Ç Õ E S P A R A L E I T U R A
" A c e i t a , m e u f i l h o , u m c o n s e l h o f i n a l o u s o d o s l i v r o s n ã o
t e m f i m e o e s t u d o e m d e m a s i a é e n f a d o n h o . "
( L i v r o d o E c l e s i a s t e s , 1 2 . 1 2 )
S e , a d e s p e i t o d a a d v e r t ê n c i a d o s á b i o h e b r e u , v o c ê d e s e j a r l e r u m p o u c o
mais, eu aconselharia o seguinte:
Em rela��o � linguagem religiosa leia o livro de Ernst Cassirer Antropologia
Filos�fica (S�o Paulo, Mestre Jou, 1972), que faz urna linda discuss�o dos
s�mbolos em geral. Para uma an�lise da realidade social como produto da
atividade humana, P. Berger & T. Luckmann, A Constru��o Social da
Realidade (Petr�polis, Vozes, 1974).
Nada melhor, como introdu��o � cr�tica que o empirismo faz � linguagem
religiosa, que a leitura de D. Hume, Investiga��o Acerca do Entendimento
Humano (S�o Paulo, Nacional, 1972).
As partes mais relevantes do estudo que Durk -heim faz do sistema tot�mico
na Austr�lia podem ser encontradas no volume XXXIII da s�rie "Os
131
Pensadores” , da Abril Cultural, onde voc� poder� ler intridu��es e conclus�es
de As Formas Elemetares da Vida Religiosa.
H� uma colet�nea de escritos de Marx e Engels diretamente relacionados com
a religi�o, mas n�o ainda em portugu�s. Em espanhol o t�tulo � Sobre Ia
Religi�n l (Salamanca, Ediciones S�gueme, 1975). Para quem quiser importar
o livro o ende re�o � Apartado 332, Salamanca, Espanha.
A menos que eu me engane, Ludwig Feuerbach n�o est� traduzido para o
portugu�s. As refer�ncias, via de regra, nos v�m atrav�s de Marx, o que � uma
pena, porque Feuerbach escreve com a beleza de um poeta. A revista Reflex�o
n9 17, do Instituto de Filosofia e Teologia da PUCAMP, publicou um artigo
did�tico de minha autoria, com mais detalhes e cita��es de textos, sobre a
religi�o em Marx e Feuerbach. O t�tulo: "O Problema da Aliena��o".
Endere�o: rua Marechal Deodoro, 1099, 13100, Campinas.
De Freud leia O Futuro de Uma Ilus�o, O M ai-estar da Civiliza��o,
Totem e Tabu.
Sobre a religi�o prof�tico-messi�nica � indispens�vel a leitura do estudo de
Karl Mannheim intitulado "A Mentalidade Ut�pica", em Ideologia e Utopia
(R. de Janeiro, Zahar, 1972). N�o se esquecer o livro de Teixeira Coelho, O
que � utopia, desta s�rie (Brasiliense, 1980). D� uma espiada no ensaio de
Engels "A guerr a Camponesa na Alema nha". Se voc� gosta de tecnologia poder�
ler alguns
132
documentos da Confer�ncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), como
"Exig�ncias Crist�s de Uma Ordem Pol�tica", "A Caminhada do Povo de
Deus na Am�rica Latina", "Eu ouvi os clamores do meu povo", "N�o
oprimas teu irm�o". A chamada teologia da liberta��o � uma tentativa de re-
cuperar a tradi��o prof�tica. Curiosamente houve, nos Estados Unidos, em
fins do s�culo passado e in�cio deste s�culo, um movimento semelhante
denominado "Evangelho Social" (Social Gospel). Veja, a este respeito,
Ronald C. White, Jr — C. Howard Hopkins, 7776 Social Gospel
(Philadelphia, Temple University Press, 1976). � surpreendente. E n�o se
esque�a de ler textos originais. Por exem plo, os profetas do Antigo
Testamento.
Quanto ao testemunho pessoal de pessoas religiosas, a literatura n�o tem
fim. A par�bola das r�s foi inspirada no livro de Theodore Roszak, Contra-
cultura (Petr�polis, Vozes, 1972). O problema do sentido da vida �
discutido por Albert Camus, em O Mito de Sísifo. � evidente que o
�ltimo cap�tulo n�o representa ningu�m em particular, mas expressa uma
linha que passa por Agostinho, Pascal, Kierke -gaard, Miguel de Unamuno,
Nicolas Berdiaev, Martin Buber e Nietzsche, um religioso que nunca con-
seguiu dar nomes aos seus deuses. Leia tamb�m, de P. Berger, Um Rumor de
Anjos (Petr�polis, Vozes, 1973).
Voc� constatar� que, por vezes, o estudo n�o � t�o enfadonho, como dizia
o escritor sagrado. . .
Biografia Rubem A. Alves
Eu nasci em Boa Esperan�a, Minas Gerais. Poucos foram l�, mas muitos
ouviram a "Serra de Boa Esperan�a", do Lamartine Babo. Em 1933.
Depois, pinguei por v�rias cidades pequenas, at� uma juventude no
Rio de Janeiro.
Estudei m�sica, teologia e quis ser m�dico, por amor a Albert
Schweitzer.
F u i p a s t o r n u m a i g r e j a d o i n t e r i o r d e M i n a s , L a v r a s , c i d a d e d e i p ê s e
d e e s c o l a s . C o n v i v i c o m o p o v o , e d e 5 8 a 6 4 d e i x e i o s l i v r o s , s e m
r e m o r s o s , p a r a v i v e r d o r e s e a l e g r i a s d e o u t r o s . A s s i m v i v e m p a s t o r e s
p r o t e s t a n t e s e , i m a g i n o , s a c e r d o t e s c a t ó l i c o s .
P a s s e i a l g u m a s v e z e s p ê l o s E s t a d o s U n i d o s . L á f i z m e u d o u t o r a m e n t o .
P r i n c e f o n , N e w J e r s e y . L i v r o s :
A Tlieology of Hunian Hope, t r ê s e d i ç õ e s e m i n g l ê s . T r a d u z i d o p a r a o
i t a l i a n o , o f r a n c ê s e o e s p a n h o l . Tomorrow's Oúld, u m l i v r o s o b r e a
i m a g i n a ç ã o e a m a g i a , a e s p e r a n ç a e a u t o p i a . E s o b r e p l a n t a r á r v o r e s e m
c u j a s o m b r a n u n c a n o s a s s e n t a r e m o s . O Enigma da Religião ( V o z e s ) .
Protestantismo e Repressão ( Á t i c a ) .
C o n c o r d o c o m O c t á v i o P a z q u a n d o e l e d i z q u e a t a r e f a d o i n t e l e c t u a l
é f a z e r r i r p ê l o s s e u s p e n s a m e n t o s e f a z e r p e n s a r p ê l o s s e u s c h i s t e s . . .