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artigos
ensaios
traduções
ensaios fotográficos
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dossiê geni
revista eletrônica de filosofia e culturaissn 2238-5274 | vol. 9 - nº.1 | 08/2020
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In Memoriam de José Valdo Barros
Dedicamos a todas as vítimas diretas e indiretas da covid-19
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EDITORIAL
É em meio à instabilidade, às ameaças, aos sucessivos atentados contra a vida, que a Lampejo
publica a sua edição vol.9 n.1, sua décima sétima publicação, que é lançada dentro do caos que cada
vez mais nos permeia. Estamos imersos em uma complexidade de acontecimentos que torna mais
difícil ainda um habitar. O que hoje vivemos já vem de muito tempo, é uma longa história, que parece
estar cada vez mais se aprofundando em seus momentos agônicos, em sua tentativa de
desestabilizar forças. Contudo, tentamos no manter minimamente presentes para o que está
acontecendo.
A presente edição consiste em 29 trabalhos, dentre artigos, ensaios, traduções e um ensaio
fotográfico. Além da edição corrente, ainda contamos com um longo dossiê do GENi – Grupo de
Estudos de Nietzsche da UECE – Universidade Estadual do Ceará, que teve o seu segundo encontro
anual com sede na mesma universidade no final do ano passado (2019). Os trabalhos seguem a já
conhecida vastidão de assuntos que permeiam o imaginário da revista, e assim pensamos ser uma
maneira interessante de propagá-los.
É também com pesar que a presente edição é dedicada a José Valdo Barros Silva Júnior,
professor, amigo de muitas das pessoas envolvidas na produção desta revista, um pensador, que nos
deixou nos últimos meses e que nos faz falta. Valdo fez parte da última edição da Lampejo com seu
artigo Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, mas não só, Valdo
contribuiu com a produção de tantos outros acontecimentos desta revista independente fundada
por outros que são, também como ele, habitantes das periferias do mundo e que almejam pensar
outros modos de vida, que se inquietam, que se interessam pela potência do pensar e pela expansão
das experiências. A presente edição ainda conta com um ensaio seu, escrito sob o pseudônimo
Joaquim Qualquer dos Prazeres, publicado in memoriam. Valdo permeia vários textos desta revista
pelos tantos momentos que se propôs a fazer algo que hoje é cada vez mais difícil: ouvir o outro.
Conseguir levar o outro a sério não só tentando escutá-lo, mas também sempre ousando pensar
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junto. Tantos textos de alunos, professores e outros sujeitos estranhos que habitam este mundo os
quais Valdo perpassa. Valdo continuará sempre presente.
Esta é uma revista produzida por professores e pesquisadores cada vez mais precarizados,
pelos modos de vida que resolvemos abraçar, pelos ataques que sucessivamente sofremos mas que
não nos afastam da nossa empreitada. Assim ressaltamos a importância das atividades dos grupos
e coletivos independentes, da sua microfísica dos movimentos, dos pequenos passos que sabemos
não ser tão pequenos assim. O que nos mostra de fato é que estes acontecimentos ainda
resguardam uma força que talvez não conheçamos tão bem. Uma força que é difícil mesmo de
conhecer pela sua complexidade e por isso mesmo elas não se contentam com respostas fáceis.
Que lampejos continuem acontecendo.
Boa leitura a todas e todos!
Os editores
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ÍNDICEARTIGOS
[p.10] ÚLTIMA QUIMERA: AUGUSTO DOS ANJOSE AUTOFAGIA NACIONALPedro Henrique Magalhães Queiroz
[p.24] MODERNIDADES ALTERNATIVAS. DA CRISE DO PÓS-MODERNISMO ATÉ À TRANSMODERNIDADE DE ENRIQUE DUTRANSMODERNIDADE DE ENRIQUE DUSSELBálint Urbán
[p.47] DA VOZ À PALAVRA... E DE VOLTA À VOZ: RETÓRICA E SIMULACRO NA POLÍTICA MODERNA Alan Duarte
[p.77] NECROPOLÍTICA, FIM DO HUMANISMO E A CRISE DA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA Rogério Luis da Rocha SeixasRogério Luis da Rocha Seixas
[p.89] A ESCOLA, A DISCIPLINA E AS NOVAS TECNOLOGIAS: APROXIMAÇÕES FOUCAULTIANAS Deyvison Rodrigues Lima Sanna Chris Moura Nunes
[p.115] ARTE PÓS-MODERNA: ENTRE APROXIMAÇÕES E RUPTURAS Tiago Nunes Soares Tiago Nunes Soares
[p.127] (SER)TÃO NORDESTINO NA SALA DE AULA: UM NOVO DESENHO SITUADO DE ENSINO Adriana dos Santos Pereira José Roberto Alves Barbosa
[p.142] A CARTOGRAFIA COMO MÉTODO DE PESQUISA FILOSÓFICA. O FILÓSOFO-CARTÓGRAFO MAPEANDO TERRITÓRIOS, ACOMMAPEANDO TERRITÓRIOS, ACOMPANHANDO PROCESSOS E CRIANDO PROCEDIMENTOS DE PESQUISA Francisca de Jesus Cardoso Moura Luizir de Oliveira
[p.163] CÉREBRO, CORPO E INCONSCIENTE NA FILOSOFIA DE BERGSON YYago Antonio de Oliveira Morais
[p.180] NIETZSCHE CONTRA WAGNER, CONTRA OS FILÓLOGOS E CONTRA ELE MESMO: CRÍTICAS E AUTOCRÍTICAS A O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA Luís Francisco Fianco Dias
[p.195] O DUALISMO LIBERAL VERSUS REPUBLICANO SOBRE A QUESTÃO DA LIBERDADE: UMA ANÁLISE BASEADA NAS TEORIAS BASEADA NAS TEORIAS LOCKEANA E ROUSSEAUNIANA Ana Beatriz Borges R. Duarte
[p.212] ZOOPOÉTICA E ZOONTOLOGIA. A QUESTÃO DO ANIMAL ENTRE A LITERATURA E A FILOSOFIAMateus Uchôa
[p.222] O CONCEITO DE TECNOLOGIA NO PENSAMENTO DE HERBERT MARCUSE: ESTUDO INTRODUTÓRIO ESTUDO INTRODUTÓRIO Renê Ivo da Silva Lima
[p.235] VIRTUDE MORAL, SOCIABILIDADE E PODER NO GÓTICO DO SÉCULO XVIII: RADCLIFFE E LEWIS Mariana Dias Pinheiro Santos
[p.251] ENTRE A PAIXÃO E O AMOR FATI: ANÁLISE DO RETRATO COM FRIEDRICH NIETZSCHE E LLOU ANDREAS-SALOMÉ Francisco Xavier de Oliveira Neto
[p.259] A MAGIA NA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO: INTERLÚDIOS ENTRE ETNOLOGIA E TEORIA CRÍTICA José Ygor de Almeida Barros
[p.266] A JUSTIÇA POPULAR E OS ATOS JURÍDICOS: O TRIBUNAL E SEUS REGIMES DE VERDADE O TRIBUNAL E SEUS REGIMES DE VERDADE JURÍDICA Raquel Célia Silva de Vasconcelos
[p.273] A AÇÃO DA LEI E DO LEGISLADOR EM DETRIMENTO DA LIBERDADE E DO PODER SOBERANO DENTRO DA SOCIEDADE CONTRATUAL EM JEAN JACQUES ROUSSEAUCarlos Frederyck Machado Cavalcante Carlos Frederyck Machado Cavalcante
[p.289] CONSIDERAÇÕES SOBRE MORTE E SILÊNCIO EM A RETORNADA DE LAURA EREBER Douglas Santana Ariston Sacramento
ENSAIOS
[p.303] JUROS E CULPA: A PAIXÃO NO CORPO DA COISA Joaquim Qualquer dos Prazeres Joaquim Qualquer dos Prazeres (Valdo Barros) In Memoriam
[p.307] CRÍTICA DA MÁQUINA MÍNIMA Airton Uchôa Neto
[p.322] TRÊS ESTRATOS Alex da Rosa
[p.329] A CRISE NO SISTEMA EDUCACIONAL PÚBLICO BRASILEIRO: RELPÚBLICO BRASILEIRO: RELATO DE EXPERIÊNCIAMarcelo Queiroz Oliveira Júnior
[p.333] MONTECCHIOS E CAPULETOS DIALÉTICA NEGATIVA E FILOSOFIA DA DIFERENÇAThiago Mota
ENSAIO FOTOGRÁFICO
[p.342] GEOPERCEPÇÕES DO OLHAR: O SER E O ESESPAÇO EM INTERFUSÃO Tatiana Prevedello
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DOSSIÊ
TRADUÇÕES
[p. 355] O SÉCULO E O PERDÃO Por Jacques Derrida Tradução: Robson Breno Dourado de Araújo
[p. 389] PSIQUIATRIA E LOUCURA Por Leopoldo María Panero TTradução: Cássio Robson Alves da Silva
[p. 393] A REFORMA DA IMPRENSA Por Albert Camus Tradução: Leandson de Vasconcelos Sampaio
[p. 397] NOTAS SOBRE A “QUESTÃO DOS IMIGRANTES”Por Guy DebordTTradução: Inácio José de Araújo da Costa
ARTIGOS
LINGUAGEM, CONHECIMENTO E VERDADE
[p. 414] A INTRANSPONIBILIDADE DA VERDADE E A NECESSIDADE DA MENTIRA EM UMA PERSPECTIVA NIETZSCHEANA Roberto Barros
[p. 434] [p. 434] A TRAMA FICCIONAL: PARA ALÉM DA “MENTIRA SAGRADA” Miguel Angel de Barrenechea
[p. 449] UMA TEORIA EXTRAMORAL DA VERDADE? Evaldo Sampaio
[p. 468] DA VERDADE AO PERSPECTIVISMO: UMA ABORDAGEM NIETZSCHIANA APLICADA À FIFILOSOFIA DA CIÊNCIA Bruno Camilo de Oliveira
[p. 486] HISTORICISMO MODERNO E FILOSOFIA DA HISTÓRIA: INTERPRETAÇÕES DE JOVEM NIETZSCHE Nara Lívia Timbó de Oliveira
[p. 495] NIETZSCHE E WITTGENSTEIN: O AATOMISMO LÓGICO E A IMPOSSIBILIDADE DE UNIVERSALIZAÇÃO Leandro Maciel de Lira; Mayara Rocha de Sousa
[p. 512] O PROBLEMA DA VERDADE NO JOVEM NIETZSCHE: PERCEPÇÃO E CORRESPONDÊNCIA NA CRÍTICA DE MAUDEMARIE CLARK Edilson Miranda Junior
AARTE, VERDADE E LITERATURA
[p. 524] A FILOSOFIA RENITENTE AO DESTINO NOS PENSAMENTOS DE GIACOMO LEOPARDI: CONTRAPONTO À INTERPRETAÇÃO NIETZSCHIANA SOBRE O PESSIMISMO LEOPARDIANO Taís da Silva Brasil
[p. 535] NIETZSCHE E A DANÇA: O CORPO COMO OBRA DE AOBRA DE ARTE Raquel Rodrigues Rocha
[p. 547] O GÊNIO METAFÍSICO NO PENSAMENTO DO JOVEM NIETZSCHE David Rogério Costa de Lima
[p. 568] SOBRE UM POSSÍVEL DIÁLOGO ENTRE LIMA BARRETO E NIETZSCHE André Mesquita Penna Firme
[p. 585] [p. 585] SÓCRATES E NIETZSCHE: ARTE, VERDADE E DÉCADENCE Jéssyca Aragão de Freitas
MORALIDADE, EDUCAÇÃO E FILOSOFIA DA CULTURA
[p. 599] A FORMAÇÃO DA UNILATERALIDADE POLITICO-MORAL DA PEQUENA POLÍTICA DO OCIDENTE EM NIETZSCHE Cristiane Maria MarinhoCristiane Maria Marinho
[p. 613] AS IMPLICAÇÕES DO PENSAMENTO DO JOVEM NIETZSCHE PARA A EDUCAÇÃO Lucas Josef Lima Brun; Giovanni Perruci RibeiroMárcio Acselrad; Lucas Caminha Cândido Vieira
[p. 624] NIETZSCHE COMO PSICÓLOGO E ARTISTA NA CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA QUE TRANSCENDA TRANSCENDA VALORES Alysson da Silva Lopes; Kallyandra dos Santos Nunes
[p. 634] O GRANDE ACONTECIMENTO: A MORTE DO DEUS-MORAL Hedy Carlos Santos de Pina
[p. 642] O RESSENTIMENTO ENQUANTO DOENÇA EM NIETZSCHE Igor Alysson Lemos PintoIgor Alysson Lemos Pinto
[p. 652] O SENTIDO DA REINTEGRAÇÃO DO HOMEM NA NATUREZA EM NIETZSCHE Helly Lucas Barros Crispim
[p. 671] SOFRIMENTO HUMANO E A “PROPOSTA TERAPÊUTICA” NIETZSCHIANA Danielly Maia de Queiroz
NIETZSCHE E A FINIETZSCHE E A FILOSOFIA FRANCESA CONTEMPORÂNEA
[p. 685] ARTE-EXPRESSÃO: QUANDO SE ESTRANHA A VERDADE Gisele Gallicchio
[p. 705] “FIM DO JUÍZO”, SINTOMATOLOGIA E 7EXISTÊNCIA EM DELEUZE Leandro Lélis MatosLeandro Lélis Matos
[p. 722] HOMEM, ARTE E VERDADE: APROXIMAÇÕES(DES)NECESSÁRIAS ENTRE NIETZSCHE E SARTREPaulo Willame Araújo de Lima
[p. 750] NOTAS SOBRE A ANÁLISE FOUCAULTIANADA PARRESIA E SUA POTENCIALIDADE NA CRIAÇÃODE SUJEITOS ÉTICOS NA ATUALIDADEAntônio Alex Pereira de SousaAntônio Alex Pereira de Sousa
[p. 767] O DESAMPARO HUMANO E A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA EM NIETZSCHE E SARTRE Renan Soares Esteves
Revista Lampejo ISSN 2238-5274
Editores Gustavo CostaL
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Revista Lampejo ISSN 2238-5274
Editores Gustavo CostaLeonel Olimpio Luana Diogo Thiago MotaWWilliam Mendes
Comissão editorial Átila MonteiroDaniel CarvalhoDavid BarrosoFabien LinsGustavo FerreiraHenrique AzevedoHenrique AzevedoJuliana Braga GuedesPaulo Marcelo BritoRogério MoreiraRuy de Carvalho
Conselho editorial Prof. Dr. Ernani ChavesPProf. Dr. Ivan Maia de MelloProf. Dr. José Maria ArrudaProf. Dr. Luiz Felipe SahdProf. Dr. Luiz OrlandiProf. Dr. Miguel Angel de BarrenecheaProf. Dr. José Olímpio PimentaProf. Dr. Peter Pál PelbartPProf. Dr. Roberto MachadoProf. Dra. Rosa Maria DiasProf. Dr. Sylvio Gadelha
Diagramação e editoraçãoLuana DiogoLeonel Olimpio
Capa - Linguagem visualJuliana De BoniJuliana De Boni
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ARTIGOS
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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 10
ÚLTIMA QUIMERA:
AUGUSTO DOS ANJOS E AUTOFAGIA NACIONAL
Pedro Henrique Magalhães Queiroz
RESUMO: O presente artigo foi escrito em tom de entrevista e estruturado em quinze tópicos. Pretende-se, com ele, não mais que apresentar alguns elementos de uma possível reflexão entre a lírica do poeta paraibano Augusto dos Anjos e a configuração atual do capitalismo. Largos são os arcos conceituais, apenas pontes possíveis para apontamentos vindouros. Buscou-se o máximo possível o tom prosaico sem sobrecarregar de citações o texto. PALAVRAS-CHAVE: Augusto dos Anjos; Última Quimera; Autofagia Nacional. ABSTRACT: This article was written in an interview tone and structured in fifteen topics. It is intended, with him, no more than to present some elements of a possible reflection between the lyric of the Paraíba poet Augusto dos Anjos and the current configuration of capitalism. Wide are the conceptual arches, only possible bridges for future notes. It was sought either as much as possible or prosaic without overloading citations in the text. KEYWORDS: Augusto dos Anjos; Last Chimera; National Autophagy.
Licenciado e Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: pedro.magalhaes-7@outlook.com.
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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23
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Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Augusto dos Anjos
A humanidade, que em Homero fora um dia objeto de contemplação para os deuses olímpicos, tornou-se objeto de sua
própria contemplação. Sua autoalienação atingiu tal grau que se lhe torna possível vivenciar sua própria aniquilação como
fenômeno estético de primeira ordem.
Walter Benjamin
Por que última quimera?
Última, uma modulação da vontade de fim. Heidegger falava de um ser para a morte.
Benjamin entrevia na caveira barroca uma ambígua oportunidade: se Deus (o pessoal) está morto,
então... cabe elaborar ludicamente o luto. Configurando com a segunda versão, alemã, do ensaio
sobre a reprodutibilidade técnica: cabe a passagem do sacrifício da primeira natureza a um jogo de
segunda, porque, na segunda, repôs-se, em um patamar quantitativamente qualitativo, o sacrifício
da primeira nas condições da segunda. O trabalho como sacrifício, como tripalium, como “comerás
com o suor do teu rosto”, encontrando uma possibilidade lúdica de jogo com o desenvolvimento das
forças produtivas: o reino da liberdade, enfim, travado e entrevado pelo ritual de sacrifício mercantil;
nem tão ritual, porque a instrumentalização entre meios e fins há muito quebrou a lâmina, a astúcia
da razão há muito opera no inconsciente. Um ritual de sacrifício impessoal – objetivado e
autonomizado –, impagável e sem descanso, sem trégua e sem sono/sonho: da guerra finita à
infinita; da dívida finita à infinita; do eu finito ao eu infinito, sem entraves, narcísico.
Última, várias figuras do fim, de uma morte que já ocorreu e, no entanto, não fizemos o
devido enterro, o devido luto prático e crítico – e, assim, o Erisícton de Augusto dos Anjos come seus
olhos crus no “cemitério dinâmico” do capitalismo, essa doença crônica –, e o cadáver, que já não se
esconde no porão, medo, exala seu cheiro sob a forma de figuras, de tipos a um flâneur no tempo do
fim, sob o manto do Cristo Redentor, na cidade pós-maravilhosa; tipos como: a senhora K., por volta
dos quarenta anos de idade, negra, vinda do interior de Minas, chamando o primeiro que passa de
filho na Praça Quinze, sem fazer nexo sua palavra com os fatos; a jovem N., negra, por volta dos
vinte e cinco anos, na parada de ônibus do Amarelinho da Glória, assustada e, assim, assustando,
fazendo pessoas se afastarem dela, enquanto um olha para o outro querendo saber quem mais está
desempregado, como se se tratasse de uma doença contagiosa. Ambas moradoras de rua, ambas
padeciam do esquecimento e a fantasia parecia ser a única maneira de simbolizar o trauma do real
abandono, nosso realismo fantástico encontrado nas ruas: quimera, quiprocó e quimera. Várias
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figuras do fim: último ciclo de modernização nacional, o petista; última etapa da pré-história
humana. A nossa pretendida dialética centro-periferia.
Dialética centro-periferia?
Marx diz, n'O capital, que a imagem do país mais desenvolvido é a imagem futura do menos
desenvolvido. Noutras palavras, o centro não é mais que a imagem futura da periferia. De modo
geral, o que no século XIX se apresentou como autocrítica da ilustração europeia, sobretudo com os
três divisores de água, Marx, Nietzsche, Freud, consistia em mostrar um outro lado do pretenso
universalismo esclarecido, no caso, a exploração do trabalho (desigualdade e desequivalência) e a
alienação mercantil (estranhamento e fetiche); o inconsciente pulsional; a afirmação ou negação da
vida como fator originário das verdades e valores morais. Havia um fundo falso que era preciso dar
conta.
No interior da “tradição crítica” brasileira – tríade Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Celso
Furtado, apresentada por Antônio Cândido no segundo prefácio de Raízes do Brasil –, retomando
particularmente o Roberto Schwarz de Ao vencedor as batatas, no seu ensaio As ideias fora do lugar,
tratava-se de, a respeito do descompasso entre centro e periferia, ou entre metrópole e colônia,
situar criticamente o enunciado inicial: o país menos desenvolvido é a verdade do país mais
desenvolvido; a periferia, a colônia carrega consigo a verdade, negativa, da metrópole, do centro.
Ou, ainda, o lugar de relevância da vida nacional, seu lugar dentro de uma pretensa história
universal, é sua contribuição para a crítica, como momento da verdade, do discurso centrista,
europeu, esclarecido, universalista. Autocrítica e crítica, em resumo.
Talvez, neste momento – século XXI –, trate-se de revertermos as reversões desta dialética,
seja na direção centro-centro, centro-periferia, periferia-centro: a imagem do país menos
desenvolvido é a imagem futura do mais desenvolvido. E, assim, assinalamos a marca do “nosso
tempo” (Drummond): a regressão; o progresso experimentado como refluxo, em que a imagem
mais arcaica das relações burguesas, a acumulação primitiva e o despotismo (sob a figura do estado
de exceção, de sítio ou de emergência), se apresenta como a verdade, crítica, de nossa experiência
mais contemporânea. Nem centro, nem periferia, diriam o Subcomandante Marcos e os zapatistas.
Como situar a noção de autofagia nessa dialética centro-periferia?
Há um certo consenso em assinalar a catástrofe (René Girard), a urgência ou emergência
(Paulo Arantes), como paradigma do tempo presente, um presente perpétuo, como diria Guy
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Debord nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo: um presente perpétuo sob o signo da
catástrofe e da emergência/urgência.
Segundo Benjamin, no Prólogo epistemológico-crítico do Drama barroco alemão, o extremo –
teoria também da melancolia – é o momento da verdade e, assim, podemos dizer que torna-se
também o trivial, na medida em que esse extremo, a exceção, se apresenta como regra da história
humana. Agamben dá sequência no argumento ao dizer que, em Auschwitz, o campo ainda era uma
experiência fora do enquadramento e, assim, isolável num topos, num lugar; essa exceção tornar-
se-ia regra tendencial até esse mesmo campo tornar-se, hoje, o paradigma dominante e
generalizado da política.
São diagnósticos da extremidade do mal. Mas existe um realmente determinante, o da
contradição, do descompasso entre forma e conteúdo no interior da produção capitalista, que Marx
assinala como contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de
produção: a tendência deste desenvolvimento de reduzir a um mínimo a substância daquela relação,
o tempo de trabalho. Essa é a contradição interna, a autocontradição, por que não a autofagia –
trabalho morto devorando o trabalho vivo sem nos libertar –, inerente ao capital.
Essa contradição interna, por sua vez, precisa de uma compensação externa; assim, tal
compensação vem a aparecer como (i) aumento da produtividade – mais valia relativa; (ii) redução
dos salários – em determinados contextos; (iii) expansão colonial – acumulação prévia – e
neocolonial – novos mercados, compensação da queda da taxa de lucro pelo aumento da massa de
lucro; mas, sobretudo, (iv) a guerra e a especulação – crédito-dívida, capital financeiro, fictício – se
apresentam como dois fatores determinantes dessa compensação, que pode receber, ironicamente,
o nome de antropofagia.
E onde fica Augusto dos Anjos nesse cenário?
Seria preciso situar esses elementos não na passagem biopolítica de Auschwitz ao 11 de
Setembro, mas econômico-política da crise de 1929 a 2008. Augusto dos Anjos e sua lírica, e não
Machado de Assis e sua prosa, parece ser o fantasma capaz de figurar essa opereta. Existe um
problema de forma, outro de conteúdo, e ambos articulados com realidade social e forma literária.
Do ponto de vista da forma literária, a relação prosa e poesia, por que optar por uma e não outra; do
ponto de vista da realidade social, centro e periferia, modernização e atraso. Mas isso é uma questão
que merece uma atenção própria noutro momento.
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Em resumo, parece que a prosa do mundo aproximou-se mais da lírica de Augusto que do
mundo da prosa de Machado. Se estamos lidando com a falência de uma forma-de-vida (Giorgio
Agamben), se estamos lidando com a decomposição e autofagia capitalistas (Anselm Jappe), parece
que aquilo que aparecia apenas como elemento cosmológico, cosmo-agonia segundo Lúcia Helena,
ou mesmo subjetivo, Eu, aquela sua “estranha esgrima” (Charles Baudelaire) com a morte, o verme,
a putrefação, as visões de sangue, o urubu, o corvo, enfim, parece ser a paisagem própria, a alegoria
que melhor apresenta o “sentimento do mundo”, que melhor capta a “precária síntese” do “nosso
tempo” (Drummond).
Benjamin, por exemplo, que tomou As flores do mal de Baudelaire como alegoria do século
XIX, nos ajuda, metodologicamente, a pensar que Augusto dos Anjos não é em si mesmo a melhor
leitura de um tempo e de uma conformação social, mas apenas quando seus versos reagem com o
momento em que o télos do progresso falha, sendo como o recalcado que retorna; assim, Benjamin
diz, no seu ensaio As afinidades eletivas de Goethe, que o distanciamento temporal é uma condição
para a crítica, esse o seu conceito de crítica retirado do primeiro romantismo alemão: o teor de coisa
(Sachgehalt) da obra torna-se objeto da reflexão; e o distanciamento, o desdobramento temporal
(filosofia da história) é elemento determinante nesta tarefa.
Por que poesia e não prosa?
Há uma resposta quanto à natureza dos gêneros; no mundo helênico antigo, a prosa
comunicava a história, mas num relato escrito entre dominantes, tendo, portanto, um caráter
estatal, vertical; a poesia não estava na escrita, estava na oralidade e, assim, atravessava as camadas
populares, além de carregar consigo uma dimensão sublime, inspirada, enquanto a prosa tinha um
teor laico.
A poesia estava ligada, assim, à épica, às grandes narrativas. A prosa, no sentido que o
mundo moderno lhe deu, não como relato do poder, mas como forma de comunicação própria de
uma época fundada sob a separação do indivíduo de qualquer comunidade, sendo-lhe, por isso, mais
adequada, tem caráter de drama privado. Ainda que em Dom Quixote possamos encontrar o
impasse fundamental da cultura no mundo moderno, o da separação entre arte e vida, sonho e
realidade, é a poesia moderna – e em alguns uma prosa poética – que apresenta um “programa” de
“mudar a vida” (Arthur Rimbaud).
Em Marcuse, n'O homem unidimensional, a poesia aparece com o significado dialético de
fazer o não-ser vir a ser; entre os situacionistas (Internacional Situacionista), toda revolução nasceu
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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23
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da poesia (All the kings men), ela “Põe em jogo as dívidas da história que não foram pagas”;
Maiakovski dizia que sem forma revolucionária não há poesia revolucionária; em solo brasileiro, o
elemento poético é determinante na viravolta do conceito de antropofagia; e Benjamin tomou
Baudelaire como epicentro das descrições das fantasmagorias de seu tempo. É como se a poesia,
algo mais do que versos, fosse de encontro à prosa do mundo, e a tensionasse. Mas isso diz pouco,
ainda é preciso situar o problema prosa-poesia na dialética centro-periferia.
Retomando Augusto...
É que o problema anterior tem algo do seguinte: é como se, segundo Roberto Schwarz, o
romance machadiano fosse a melhor configuração, a melhor unidade literária da eclética e ambígua
experiência nacional, sobretudo porque situa-se na sua capital, o Rio de Janeiro, sobretudo porque
Machado viveu a ascensão social (elemento sociológico da transição da primeira à segunda fase),
mas principalmente porque foi na prosa que a “unidade [precária] do diverso” foi possível; algo que
Benjamin pode encontrar, do ponto de vista do centro europeu, Paris, na lírica de Baudelaire – “Mas
isso ainda diz pouco:/ se ao menos mais cinco havia/ com nome de Severino/ filhos de tantas Marias/
mulheres de outros tantos,/ já finados, Zacarias,/ vivendo na mesma serra/ magra e ossuda em que eu
vivia”.
A questão que se apresenta a nós é: a opção por Augusto, de um modo ainda precário, parece
ser, hoje, mais fecunda do que encontrar na dialética paternalismo-ilustração os tipos da nossa
configuração social. Optar por Augusto é distinto, por exemplo, de optar pela prosa. É como se
aquilo que na sua obra poderia ser apenas intuível se tornasse, hoje, algo de bastante perceptível.
Sobre alguns temas na lírica de Augusto.
Na Dialética negativa, Adorno ressalta a importância de um real irredutível para o
pensamento dialético; de modo geral, a prosa do ensaio tem algo a ver com essa compreensão de
uma epistemologia marcada pelo tensionamento com um real irredutível. Falar de Augusto para,
com ele, tratar da decomposição capitalista tem algo nesse sentido. O pano de fundo que nos
interessa retirar dele é duplo: o niilismo como contrapartida do cientificismo, de seu desencanto do
mundo; a figuração alegórica, barroca, da morte como algo histórico, e não meramente natural. É
preciso casar esse apontamento com outro: a inscrição da culpa como destino e sua relação com o
sacrifício, particularmente no interior da crise capitalista contemporânea. Essa é a constelação.
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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23
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Os motivos, para isso, são encontrados: no Poema negro e no Monólogo de uma sombra. No
primeiro, a figura do poeta e de seu ofício é central. No segundo, a sombra se apresenta como
arcaico. Seguindo adiante, nas Cismas do destino encontramos uma figura do medo e do destino, já
de saída: “Recife. Ponte Buarque de Macedo./ Eu, indo em direção à casa do Agra,/ Assombrado com a
minha sombra magra,/ Pensava no destino e tinha medo!”. Em Budismo moderno encontramos o par
ciência-niilismo que pode nos ser fecundo do ponto de vista da crítica: “Tome, Dr., esta tesoura e...
corte/ A minha singularíssima pessoa”.
Aqui, a ciência objetifica o sujeito e isso pode ser pensado em três níveis: i) a viravolta
paradigmática da medicina de urgência como modelo político (Paulo Arantes); ii)
dessubstancialização e esvaziamento subjetivo do “budismo moderno” mercantil; iii) nós somos
também o médico, o doutor, a crítica e a clínica a cortar Augusto, encontrar nele narcisismo (Eu),
niilismo, melancolia e, assim, diagnosticarmos o caráter de decomposição do cadáver das relações
mercantis – a marteladas, a fórceps ou ao bisturi, faremos essa estranha intervenção cirúrgica? Ao
bisturi seria uma delicadeza despudorada, certamente. No mesmo poema temos, ainda, a figura do
“Ah, um urubu pousou na minha sorte!”: o corvo, em todas as suas nuances, e a paisagem de urubus
sobre as jangadas na orla do Fundão. Mas, sobretudo, a Psicologia de um vencido, sua última quimera
e pantera.
E quimera, por que quimera?
Fetichismo da mercadoria, o ponto de partida. Se a história humana pode ser compreendida,
segundo Robert Kurz, como uma história de relações fetichistas, em que a figura do sagrado
ocupava um lugar determinante nas sociedades ditas pré-modernas, esse sagrado torna-se secular
no interior das relações modernas, sendo a mercadoria – “nossa velha inimiga” – a célula germinal
(Marx) dessa sacralização secular. O fetichismo, segundo Kurz no ensaio Dominação sem sujeito
contido no livro Razão sangrenta, pode ser pensado numa articulação entre o conceito de a priori em
Kant (i), o de inconsciente em Freud (ii) e a configuração invertida do ser social em Marx (iii);
estendendo um pouco mais o assunto, o fetichismo baseia-se em três níveis, ao menos, segundo
Anselm Jappe n’As aventuras da mercadoria: projeção, transferência e autonomização. Ora, não é
outra a noção de sagrado; sagrado é justamente uma instância que se aparta do todo e a ele se
sobressai.
O sagrado como as quimeras no percurso da história humana. E inscrito nessa mediação
social do sagrado, um terceiro termo que medeia invertidamente as partes, está toda uma história
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do sacrifício, e por que não uma história da dívida, e assim da culpa, e assim da expiação. Esse é um
tema decisivo no último livro de Kurz, Dinheiro sem valor, que se encerra com o capítulo O sacrifício
e o regresso perverso do arcaico. No caso, a mercadoria – certamente mediada pelo capital como
totalidade negativa – é o arcaico que medeia as relações humanas e seu fetichismo, e seu segredo,
é aquele para o qual humanos e natureza tornam-se meros objetos para a sua realização, e hoje cada
vez mais sob a forma do descarte e extermínio.
É com base nessa noção de sacrifício e regresso perverso do arcaico que precisamos retomar
dois textos de Walter Benjamin, O capitalismo como religião e A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica. De maneira genérica, da noção de capitalismo como (als) religião
precisamos retomar: seu caráter ritualístico, sem descanso (permanente) e sem sacralidade; seu
caráter impagável, infinito, que nenhuma expiação o encerra, o apazigua – “É a Morte — esta
carnívora assanhada —/ Serpente má de língua envenenada/ Que tudo que acha no caminho, come.../
— Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,/ Sai para assassinar o mundo inteiro,/ E o mundo inteiro
não lhe mata a fome!” (Poema negro). Do ensaio sobre a reprodutibilidade técnica a relação entre
primeira (tendente ao sacrifício) e segunda (tendente ao jogo) técnicas coloca o problema de até
que ponto as condições da segunda técnica, no interior do arcaísmo mercantil, atualizam o sacrifício
da primeira num patamar high tech e, assim, entramos em uma imagem genérica desse sacrifício:
“A humanidade, que em Homero fora um dia objeto de contemplação para os deuses olímpicos, tornou-
se objeto de sua própria contemplação. Sua autoalienação atingiu tal grau que se lhe torna possível
vivenciar sua própria aniquilação como fenômeno estético de primeira ordem”. Essa uma possível
constelação global da crise.
Qual a relação entre sacrifício e autofagia?
Diria que quando Benjamin fala que a “autoalienação atingiu tal grau que se lhe torna possível
vivenciar sua própria aniquilação como fenômeno estético”, de alguma maneira, é isso que está sendo
indicado. Não custa lembrar que, como no ensaio Experiência e pobreza, esse apontamento está
tratando da experiência da primeira guerra mundial, na qual o “minúsculo corpo humano” se
encontra (se perde) diante de uma batalha técnica de material, retornando sem narrativa, tamanho
o trauma. É como se Drummond estivesse certo em seu poema O sobrevivente no livro Alguma
poesia: “O último trovador morreu em 1914./ Tinha um nome de que ninguém se lembra mais”.
O ponto é: o desenvolvimento das forças produtivas alcançou tal grau de aperfeiçoamento
que a “humanidade” encontrou-se com a possibilidade de sua própria autoaniquilação, técnica e
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estética (caráter contemplativo); com a bomba atômica essa configuração se torna patente. Não à
toa ser a segunda guerra mundial o limite de uma guerra entre Estados soberanos; a partir de então
a entropia do capital não se escoa mais a uma apoteótica guerra mundial, mas retroage como guerra
civil no interior das sociedades nacionais. De par com essa configuração bélica, no terreno do
monopólio estatal (e mundial) da violência, está o cerne do problema: o descarte do trabalho
humano diante do desenvolvimento técnico, que produzirá o capital fictício como instância
compensatória – nossa grande bolha mundial de crédito-dívida, nosso Baal, nosso Moloch, nosso
Mamon, nosso Bezerro de Ouro –, como consumo do futuro, e produzirá também uma massa de
seres humanos supérfluos, não mais capturáveis nem como exército de reserva. Em resumo, a
autofagia do trabalho morto comendo o trabalho vivo tem duplo efeito: descarte humano em larga
escala (i), hipertrofia do capital fictício (ii).
Autofagia nacional, enfim.
Esse o quiprocó. Em um certo sentido, pensar com Augusto nos leva a perceber que, nele,
não há ingenuidade possível, não há um tropicalismo ingênuo (afirmativo), um modernismo ingênuo
(afirmativo), uma “alegria como prova dos nove” (Oswald), se assim nos for legítimo colocar a
questão; Augusto quase não dá margem a um projeto afirmativo, e isso pode ser, no mínimo,
sintomático.
Outro ponto é que Augusto está situado no declínio da economia escravocrata e açucareira,
sua educação veio deste espólio. Podemos dizer que a República possui nas guerras do Paraguai,
externa, e de Canudos, interna, um elemento determinante na construção do militarismo como
força modernizadora, seja ideologicamente no positivismo, seja industrialmente de Getúlio Vargas
à Ditadura civil-militar de 1964-1985. O espectro desse militarismo é um ponto importante também.
Vinculando declínio da economia escravocrata açucareira e dividendos da guerra contra
Canudos, é no mínimo sintomático que a origem do termo favela, onde se refugiaram em Exílio – no
interior do Reino – os escravos recém-libertos e soldados com promessa de casas próprias, seja
proveniente de um morro no interior da Bahia, onde se aquartelou Canudos, a segunda maior cidade
do Império, perdendo apenas para a capital nordestina de então, a própria Bahia.
Mas o principal problema talvez seja nosso dualismo, nossa interpenetração arcaico-
moderno, nosso “arcaísmo como projeto”, nossa autossabotagem e automartírio sacrificial
permanente em nome da metrópole, dos grandes centros e de uma elite no momento sem adjetivos
e seus caprichos e arbítrios. Falar de autofagia nacional tem esse tom.
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Do capitalismo como religião.
A ética protestante dignifica o trabalho e estabelece uma aberta correspondência entre
progresso material e benção, predestinação espiritual, ao contrário da conotação cristã negativa do
“comerás com o suor do teu rosto”, do tripalium e da usura, ainda que esta não deixasse de possuir
terras nem de acumular riquezas com indulgências; e mesmo os mais anacoretas, os religiosos dos
mosteiros, deixaram também sua contribuição para o surgimento de um ritual diário baseado num
tempo mecânico, quantitativo, hora a hora.
Essa religião do trabalho, se assim quisermos chamar, é peça central na modernidade.
Falando mais precisamente, é o trabalho, o “dispêndio de nervos, músculos e cérebro humano”
(Marx), o sacrificado a um deus secular que tem seu ser no valor, sua essência-fenômeno no dinheiro
e seu conceito no capital: D-M-D'. Assim, a dignificação do trabalho é antes sua imolação no altar
cotidiano do capital, nos termos de Benjamin (O capitalismo como religião), um culto extremado,
sem teologia, sem dogmática, nos seguintes moldes: a) permanente, sem trégua e sem piedade; b)
culpabilizador, de caráter não expiatório e universalizante ao ponto de circunscrever “o próprio Deus
nessa culpa”; c) oculto, apenas manifesto no ponto máximo, no auge, no extremo da culpabilização.
Portanto, segundo Benjamin, o capitalismo tem um caráter cultual em três níveis: permanência,
culpabilização, ocultamento.
Essa noção do trabalho dignificado como o sacrificado também está fortemente atrelada à
experiência das guerras mundiais na primeira metade do século XX. Hoje, na medida de uma
consolidação da substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto – elemento autofágico do
capitalismo –, a noção de sacrifício vem não apenas com a mobilização exploratória e alienante da
força de trabalho, nem apenas com a mobilização das forças produtivas para a guerra, mas
sobretudo sob a forma do descarte e extermínio, com clivagens territoriais, de gênero, raça, etnia,
daqueles que não podem ser mais sacrificados no ritual do trabalho: desemprego estrutural.
Podemos compreender também a partir daqui o elemento da guerra civil, da guerra contra as
populações como elemento autofágico.
Três etapas, então, dessa religião: exploração, guerra, descarte.
Não necessariamente lineares, mas com uma certa linearidade.
O minotauro global.
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O Minotauro antropófago de Wall Street. Varoufakis, ministro das finanças pelo Syriza na
querela grega com a Troika, escreve um livro no qual ele periodiciza o nascimento de um minotauro
global da dívida. Após a segunda guerra, no conselho de Bretton Woods acerca dos caminhos que o
mundo seguiria a partir de então, há uma polêmica entre Keynes, que defendia um dinheiro mundial
sem conotação nacional, e um outro economista em favor dos americanos, que acabam tomando a
medida de passarem por cima do conselho, na medida em que eram a potência nacional vitoriosa,
militar e financeiramente, e estabelecem o dólar como dinheiro mundial lastreado em ouro. Essa
etapa irá fundar os trinta gloriosos (1945-1975), época de ouro do capitalismo em termos de estado
de bem-estar social, operando a potência global numa dinâmica superavitária (i).
Essa época de ouro declinou, diz Varoufakis, nos anos de 1970, conjuntura de reestruturação
produtiva, microeletrônica, retirada do padrão-ouro do dólar (1971), crise do petróleo (1973), e a
potência EUA faz nascer o tal do Minotauro, com alguns serviçais, sendo o touro de Wall Street –
“preferiria não”, poderia dizer novamente Bartleby a essa altura – sua representação visível. Nessa
guinada de época, entra em jogo o elemento da desregulamentação financeira e uma dinâmica
deficitária (ii) da potência mundial que, de uma maneira que ainda não conseguimos apontar, faz o
mundo inteiro pagar sua dinâmica deficitária. O touro de Wall Street tem, assim, uma natureza
antropófoga: “É a Morte — esta carnívora assanhada —/ Serpente má de língua envenenada/ Que tudo
que acha no caminho, come.../ — Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,/ Sai para assassinar o
mundo inteiro,/ E o mundo inteiro não lhe mata a fome!” (Poema negro). O estouro dessa dinâmica se
dá nos anos de 2008, com a crise financeira advinda das hipotecas no setor imobiliário, e desde então
o cenário do mundo passa a ganhar novos contornos, teríamos que inserir, no mínimo, China e
Rússia no jogo.
A sociedade autofágica.
Varoufakis parece não ter uma teoria do valor de fundo, sua análise é bastante
fenomenológica. Encontraremos esse elemento em falta na crítica do valor (Wertkritik), em Robert
Kurz e Anselm Jappe, por exemplo. Apontaremos, mas não desenvolveremos aqui, os dois circuitos
da dívida que Kurz nos diz – na coletânea de ensaios sobre poder mundial e dinheiro mundial: i) do
Pacífico, entre EUA e China; ii) o da Europa, entre Alemanha credora e os países sulistas endividados:
“Cresce o buraco negro entre a criação de valor real no passado e o futuro ficticiamente antecipado. Esta
construção de uma conjuntura de déficit global tem dois eixos principais: um maior, o circuito de déficit
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do Pacífico, entre China/Ásia Oriental e Estados Unidos, e um menor, entre a Alemanha e o restante da
União Europeia, ou melhor, a Zona do Euro”. São apontamentos que ainda precisam de mais atenção.
Particularmente Anselm Jappe, depois de apontada as principais contribuições da Wertkritik acerca
de crise e crítica no seu livro As aventuras da mercadoria, insiste em pensar a correspondência
subjetiva à dinâmica autofágica do capitalismo – que ele retoma a partir de um outro mito, o de
Erisícton, um rei que devorou a si mesmo – a partir do paradigma narcísico-fetichista, epicentro do
seu livro A sociedade autofágica.
Longa, dura caminhada apresentar seu percurso (i) acerca de Descartes, Kant, Sade, Stirner,
Quincey como tipos subjetivos de um narcisismo moderno e seus contornos em vias de consumação
em nosso tempo, ou seja, o percurso que leva a um diagnóstico do sujeito não mais à Ética
protestante e o 'espírito' do capitalismo (Max Weber), paradigma neurótico, mas a um paradigma
narcísico que passa a ser retomado nas discussões psicanalíticas desde os anos de 1970. Longa, dura
caminhada (ii) o percurso das posições acerca do narcisismo. Longa, dura caminhada (iii) percorrida
por Jappe de Freud a Cristopher Lasch, passando por Fromm, Reich, Marcuse, enfim, por aqueles
que não se limitaram a compreender o paradigma narcísico como privado, meramente clínico, mas
público, social, marca de uma forma histórica de subjetividade. A contribuição de Jappe será inserir
a relação do narcisismo com o fetichismo da mercadoria e, assim, encontrar a chave do niilismo
autofágico em curso.
As ideias fora ou em seu devido lugar?
Walter Benjamin pensa o mundo, com Baudelaire, a partir de Paris como a capital do século
XIX. Roberto Schwarz escreve em Paris, exilado no contexto ditatorial brasileiro, o ensaio As ideias
fora do lugar, contido no livro sobre José de Alencar e a primeira fase do romance machadiano: Ao
vencedor as batatas; está, nele, o problema do descompasso entre centro e periferia e,
particularmente, que forma social e ideológica – mediação do favor, paternalismo esclarecido –,
literária – romance machadiano – e subjetiva – volubilidade de caráter consolidada na segunda fase,
com Brás Cubas – nos é própria na passagem do século XIX ao século XX. José Ramos Tinhorão
escreve, no Rio de Janeiro, um texto intitulado A província e o naturalismo, no intuito de pensar
como, no Ceará-Fortaleza, no mesmo século XIX, uma geração de escritores das camadas médias –
a partir dos anos 70 – encontra no naturalismo sua principal forma literária, tendo muitos deles ido
estudar na Escola do Recife, ou seja, na capital da metrópole da província Fortaleza, Recife; ora, é a
experiência da seca o principal elemento que estabelece as continuidades e rupturas dessa geração,
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e marca seu tom. Descompassos por descompassos, descontinuidades por descontinuidades,
centros e periferias relativos para chegar ao trato de um paraibano chamado Augusto dos Anjos, e
dar-lhe o trunfo lírico – nem tão triunfal – do Abgesang das relações de mercado contemporâneas,
sua política da morte tendo como raiz a voracidade da acumulação de capital, que gravita no entorno
de um vazio chamado valor.
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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46
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MODERNIDADES ALTERNATIVAS. DA
CRISE DO PÓS-MODERNISMO ATÉ À
TRANSMODERNIDADE DE ENRIQUE DUSSEL
Balínt Urbán1
RESUMO: Partindo da crise e da crítica do pós-modernismo, presente estudo, depois de apresentar um panorama de propostas teóricas da reflexão contemporânea sobre a modernidade, pretende dar uma leitura da teoria da transmodernidade de Enrique Dussel. O filósofo argentino-mexicano elabora um modelo original da modernidade da perspectiva do Sul subalterno que além de desconstruir os princípios eurocêntricos da modernidade singular propõe uma reavaliação crítica da história européia e do colonialismo. Deste modo, a transmodernidade de Dussel, articula-se como um caso exemplar das modernidades alternativas cujo objectivo é criar um diálogo entre o pensamento ocidental e as epistemologias marginais. PALAVRAS-CHAVE: modernidade, pós-modernismo, modernidades alternativas, transmodernidade, epistemologias do Sul, Enrique Dussel ABSTRACT: Departing from the critic of post-modernism this study focuses on the theory of transmodernity elaborated by the Argentinian-Mexican philosopher, Enrique Dussel. In my opinion Dussel’s approach on modernity can be understood from the perspective of alternate modernities and their critical stance towards the Eurocentric narrative of modernity. Transmodernity provides not only a complex ideology to deconstruct the singular-occidental character of modernity but also
1 Universidade Eötvös Loránd de Budapeste. E-mail: urbanbalintmail@gmail.com
mailto:urbanbalintmail@gmail.com
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opens up a space where emancipation and local epistemologies can interact in order to create a new, alternative form of modernization. KEYWORDS: modernity, post-modernism, alternative modernities, transmodernity, epistemologies of the South
Apesar da tese vastamente propagada e aceita sobre o fim definitivo da modernidade enquanto
complexo período histórico-político e econômico-social, ideologia e epistemologia particular de
origem e inspiração europeia, parece que a cultura mundial não se quer separar do paradigma do
moderno que continua fazendo parte dos modelos descritivos destinados para interpretar o estado
atual das sociedades e dos sistemas econômicos vigentes. „Modernist culture has come to penetrate
the values of everyday life; the life-world is infected by modernism.”2 Formulou um dos principais
pensadores do debate sobre o desfecho da modernidade nos anos oitenta do século passado,
enfatizando a penetração incondicional da vida pelas mais diversas manifestações da modernidade,
supondo uma indissociabilidade evidente entre a vida e a própria máquina metafórica da
modernidade. Portanto, ainda hoje, as mais diversas tentativas de definição com a ajuda das quais
pretendemos compreender a complexidade dos fenômenos socioeconômicos e tecnológicos da era
contemporânea, dum modo ou outro, se relacionam com a grande narrativa da modernidade, e
procuram inventar novas formas alternativas para continuar, superar, criticar, reposicionar ou
simplesmente expandir a herança da própria modernidade histórica, remetendo-nos para a acima
referida inseparabilidade ontológica da humanidade do paradigma moderno. O facto de que a
maioria dos modelos sintéticos das últimas décadas que tentaram formular respostas à questão da
transformação radical do espaço socioeconômico nos finais do século XX e no início do novo milénio,
define-se em relação à modernidade clássica (classical modernity)3, torna-nos evidente por um lado
a viabilidade da tese sobre a impossibilidade de conclusão e de terminação do projeto emancipatório
moderno, defendido entre outros por Jürgen Habermas4 e Anthony Giddens,5 e por outro lado revela
uma certa obsessão cultural com o paradigma da modernidade que assombra a consciência das
sociedades e dos sujeitos já há vários séculos.
2 HABERMAS, Jürgen. Modernity – an incomplete project. In: FOSTER, Hal (org.). The Anti-Aesthetic. Essays on Post-modern Culture. Port Townsend-Washington: Bay Press, 1983, p. 6. 3 PEUKERT, Detlev. The Weimar Republic: The Crisis of Classical Modernity. New York: Hill & Wang, 1992. 4 HABERMAS, 1983, pp. 12-13. 5 GIDDENS, Anthony. The Consequences of Modernity. Cambridge: Polity Press, 1996, pp. 47-48.
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Uma série de autores que por motivos diferentes manifestaram uma certa aversão para com o
paradigma popularizado e vastamente usado do pós-moderno enquanto estado socioeconômico e
cultural do capitalismo tardio,6 sugeriu e elaborou matrizes distintas para substituir o pós-
modernismo e para suprir suas falácias. Enquanto Anthony Giddens compartilhando as mesmas
premissas com Jürgen Habermas acerca do caráter incompleto do movimento emancipatório, fala
sobre uma modernidade tardia (late modernity) enquanto uma fase autêntica do projeto moderno
que se baseia na separação do tempo e do espaço, no desencaixe das instituições sociais e na
apropriação reflexiva do conhecimento,7 Gilles Lipovetsky opta pelo termo da hipermodernidade
(hypermodernity) e define-a como o segundo período moderno ou o próprio cumprimento total do
projeto capitalista em cujo centro se encontra o conceito do excesso8 (daí a preferência pelo prefixo
–hiper em vez do prefixo –pós que sugere a conclusão dum certo tipo de desenvolvimento).
Zygmunt Bauman cunha o conceito da modernidade líquida (liquid modernity) para referir à
substituição da antiga solidez das instituições, formas de produção, relações interpessoais, etc. por
uma incerteza total e desconcertante,9 e Marc Augé de acordo com as bases teóricas de Lipovetsky,
no seu livro Non-Places – Introduction to an Anthropology of Supermodernity elabora uma teoria da
supermodernidade (supermodernity) enfocada na expansão excessiva das fronteiras do tempo, do
espaço e da individualidade e que apresenta como o outro lado mais positivo do pós-modernismo
niilista-desconstrucionista.10 Tanto Lipovetsky como Bauman e Augé tomam como ponto de partida
nas suas análises o fenômeno da aceleração incondicional e a consequente extremização do
processo moderno. Para eles o desenvolvimento e o movimento da modernidade considera-se um
facto inquestionável o que os leva para rejeitar a suposição do fim definitivo do projeto iluminista e
a conclusão do progresso moderno explicado duma posição nietzschiana por Gianni Vattimo.11
Como Bauman enfatiza
As time flows on, ‘modernity’ changes its forms in the manner of the legendary Proteus… What was some time ago dubbed (erroneously) 'post-modernity' and what I've chosen to call, more to the point, 'liquid modernity', is the growing conviction that change is the only permanence, and uncertainty the only certainty. A hundred years ago 'to be modern' meant to chase 'the final state of perfection' -- now it means an infinity of improvement, with no 'final state' in sight and none desired.12
6 JAMESON, Fredric. Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University Press, 2001. 7 GIDDENS, 1996.; vide também LUVIZOTTO, Caroline Kraus: Modernidade e modernidade tardia. In: LUVIZOTTO, Caroline Kraus: As tradições gaúchas e sua racionalização na modernidade tardia. São Paulo: Editora UNESP, 2010, pp. 60-61 (53-63) 8 LIPOVETSKY, Gilles. Hypermodern Times. Cambridge: Polity Press, 2005, pp. 31-32. 9 BAUMAN, Zygmunt. Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press, 2012. 10 AUGÉ, Marc. Non-Places – Introduction to an Anthropology of Supermodernity. London-New York: Verso, 2000, pp. 24-37. 11 VATTIMO, Gianni. La fine della modernitá. Milano: Garzanti, 2011, p. 176. 12 BAUMAN, 2012, viii.
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Nas esteiras da ideia do caráter proteano da modernidade e da sua transformação permanente
Robert Samuel, Alan Kirby e os autores holandeses Timotheus Vermeulen e Robin van den Akker
partem da tese de que o novo milénio trouxe não só o fim do paradigma pós-moderno mas também
e a necessidade da sua superação. Todos eles expressam uma forte insatisfação para com o código
vigente do pós-modernismo e ressaltam a inadequação deste com o estado socio-cultural e
tecnológico do século XXI. As suas propostas, assim, consideram-se reações à crise epistemológica
do pós-modernismo e procuram formular modelos alternativos de descrição e de análise. Alan Kirby
declara a morte do pós-modernismo e acredita que através da reestruturação dos espaços digitais e
da emergência do assim chamado web 2.0 que aposta muito mais na representação visual e na
própria criatividade interveniente dos usuários, entramos num período além do reino pós-moderno
que podemos chamar modernismo digital (digimodernism). Segundo Kirby o modernismo digital
constitui „the dominant cultural, technological social and political expression of our times.”13 Robert
Samuel, por sua vez, argumenta que a abordagem e a análise da cultura, da identidade e da
tecnologia não se pode basear mais nas dicotomias tradicionais da modernidade como a oposição
entre as esferas públicas e privadas, a separação cartesiana do objeto e do sujeito e a relação
hierárquica entre o humano e a máquina. As novas formas da mídia e da tecnologia e os modos como
a humanidade as usa diariamente exigem um repensamento dinâmico das narrativas correntes da
modernidade. Portanto, em vez de ver e interpretar a liberdade individual e a alienação mecanizada
como forças sociais opostas, temos que reconhecer que o sujeito contemporâneo recorre à
automatização para expressar e desenvolver a sua própria autonomia. Além disso, na opinião de
Samuel no caso da automodernidade (automodernity) não se trata da aceleração e da extremização
acima descrita do avanço do projeto moderno, senão de uma certa unificação numa estrutura
globalizada e altamente tecnicizada das esferas do capitalismo, da democracia e da ciência cuja
separacao constitui um dos passos fundamentais do nascimento do discurso da modernidade.14
Finalmente os teóricos holandeses Thimoteus Vermeulen e Robert van den Akker declaram que os
tempos pós-modernos do último quartel do século XX que cultivaram um forte relativismo cultural
e fizeram da ironia e da paródia autênticos modelos ontológicos e interpretativos tanto do passado
como do presente, definitivamente acabaram. Na perspectiva deles o novo milênio caracteriza-se
muito mais por uma certa reativação de determinados traços da modernidade clássica dezenovista
13 KIRBY, Alan. Digimodernism: How New Technologies Dismantle the Postmodern and Reconfigure our Culture. London-New York: Continuum, 2009, p. 2. 14 SAMUELS, Robert. New Media, Cultural Studies, and Critical Theory after Postmodernism: Automodernity from Zizek to Laclau. New York: Palgrave Macmillan, 2009, pp. 3-27.
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como por exemplo o idealismo, a esperança, a participação política e ética, e por uma nova
disposição pela sensibilidade, pelo sentimentalismo, pelos horizontes pessoais e pela integridade
das histórias (vinculadas parcialmente pelo uso incondicional das redes socias).15
Além do pendor de ultrapassar e criticar o pós-modernismo típico dos anos 70, 80 e 90, o que
relaciona estes conceitos mais recentes do moderno é a influência e a penetração das novas formas
de telecomunicação que redimensionaram não só as interações sociais mas também as formas de
perceber, conceber o construir a realidade. Enquanto as grandes teorias do pós-modernismo
frequentemente usaram como metáfora principal a televisão e o vídeo,16 estas novas abordagens
que propagam a superação do pós-modernismo, tornam-se aos produtos mais recentes da
revolução tecnológica, nomeadamente à internet e ao mundo das redes socias, para explicar a
transformação da modernidade.
Este panorama com as mais diversas tentativas de redefinir e reinterpretar a modernidade, a meu
ver, representa dum modo axial a tese inicialmente exposta sobre a obsessão e a inseparabilidade
da cultura do paradigma da modernidade. No entanto, a maioria das soluções apresentadas
continua a pensar a modernidade como um projeto essencialmente eurocêntrico, ou seja, a
modalidade econômico-política e socio-discursiva do espaço simbólico da zona euro-atlântica. O
modelo da transmodernidade elaborado pelo filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel constitui
um certo contraponto da reflexão eurocêntrica da modernidade, aconselhando uma crítica dos
princípios do projeto moderno e uma reformulação deste da perspectiva do assim chamado Sul
global, tendo em conta não só a tensão entre o epistemicídio colonial e as formas de saber locais,17
e as possibilidades de construir uma modernidade própria, diferente da versão ocidental
consagrada, mas também as contribuições históricas do Sul para a própria modernidade e a para o
estabelecimento do seu discurso simbólico. Para entender a argumentação de Dussel e a essência
da sua teoria da transmodernidade temos que ver primeiro os paradoxos inerentes da própria
modernidade.
Segundo as narrativas e teorias principais da modernidade, o padrão substancial do progresso
socioeconômico cujos pontos referenciais e constituintes são a reforma religiosa, a revolução
15 VERMEULEN, Timotheus – AKKER, Robin van den. Notes on Metamodernism. Journal of Aesthetics & Culture. Vol. 2., n. 1., 2010. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.3402/jac.v2i0.5677 16 WOODS, Tim. Postmodernism, film, video and televisual culture. In: WOODS, Tim. Beginning Postmodernism. Manchester-New York: Manchester University Press, 1999, p. 194. 17 SANTOS, Boaventura de Sousa – Meneses, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 10.
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.3402/jac.v2i0.5677
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científica de Copernico, Galileu e Newton, a filosofia cartesiana do sujeito, a corrente cultural do
Iluminismo, a revolução industrial, a emergência do capitalismo enquanto sistema econômico
dominante, a organização burocrática dos estados e a crescente desencanto do mundo e o controle
biopolítico das sociedades através das forças invisíveis do bio-poder, tem a ver com uma consciência
e uma história exclusivamente européias. O ponto comum dos fenômenos acima-referidos, sem
qualquer dúvida, é o funcionamento duma certa racionalidade teleológica – Zweckrationalitat na
formulacao de Max Weber18 – que penetra até medula todas as esferas da experiência e da realidade
partindo da ciência até à
economia e à sociedade. O sujeito moderno, tanto como a ciência, a tecnologia e a política
modernas, está baseado na crença incondicional na razão instrumental e nas suas potências
inquestionáveis de conhecer, conceber, interpretar e controlar.19 No entanto, já durante o período
da modernidade clássica do século XIX, surgiram algumas dúvidas quanto a essa racionalização total
do ser e da dominação absoluta da razão que fazem da modernidade um fenômeno bastante
paradoxal. Por um lado, a complexidade das esferas ontológicas, epistemológicas e discursivas
envolvidas com o projeto moderno produz uma complexidade extensa dentro da própria dinâmica
do moderno que nos permite falar não de só diversas fases cronológicas como modernidade precoce
(early-modern age/frühe Neuzeit), modernidade clássica e modernidade tardia, mas – seguindo a
lógica do título da monografia magistral de Matei Calinescu Five Faces of Modernity20 – também de
faces diferentes que refletem certas posturas ideológicas. A metáfora antropológica de Calinescu
permite-nos, então, fazer distinções nítidas entre as faces diferentes da modernidade. Dilip
Gaonkar, por sua vez, enfatiza uma dualidade primordial da narrativa moderna que segundo ele
lembra as duas faces de Jano, ou seja, a modernidade tem um lado afirmativo, positivo e
emancipatório, mas ao mesmo tempo dispõe de um outro lado sinistro, cruel e dominador.
The bright side of societal modernization anticipated by Enlightenment philosophers (…) refers to the palpable improvement in the material conditions of life as evident in economic prosperity, political emancipation, technological mastery, and the general growth of specialist knowledge. The dark side refers to the existential experience of alienation and despair associated with living in a disenchanted world of deadening and meaningless routine. This is the Sisyphean world of repetition devoid of a subjectively meaningful telos.21
18 WEBER, Max. The Vocation Lectures. Indianapolis-Cambridge: Hackett Publishing Company, 2004. 19 CASCARDI, Anthony J. The Subject of Modernity, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, pp. 16-17. 20 CALINESCU, Matei. Five Faces of Modernity. Durham: Durham University Press, 1987. 21 GAONKAR, Dilip Parameshwar. On alternative modernities. In: GAONKAR, Dilip Parameshwar (org.). Alternative Modernities. Durham-London: Duke University Press, 2001, p. 9.
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Entre os aspetos mais negativos do avanço moderno Gaonkar menciona a alienação e o tédio
produzidos pelo desencanto e pela burocratização do mundo, descritos ambos amplamente por
Weber. O que o autor do estudo não refere é a própria perversão da razão e da abordagem
racionalizante da realidade. Estas constituem a base duma certa crítica da modernidade que surge
depois da Segunda Guerra Mundial, da experiência do terror absoluto dos campos de extermínio e
das câmaras de gás. Na tradição do pensamento européia foi provavelmente o filósofo alemão,
Martin Heidegger que numa palestra sua proferida alguns anos após o fim da guerra, falou do
Holocausto como de um projeto industrializado, como de uma fábrica de morte. Giorgio Agamben
no terceiro volume da série Homo Sacer em que escreve sobre a catástrofe do Holocausto e as suas
consequências socio-culturais aponta que „ad Auschwitz non si moriva, venivano prodotti cadaveri.
Cadaveri senza morte, non-uomini il cui decesso è svilito a produzione in serie”22 Ou seja a
tecnicização e a industrialização que constituíam os eixos principais da modernidade e em princípio
serviam a emancipação da humanidade, passaram a ser usados e abusados para cumprir objectivos
mais sinistros, para realizar aquilo que antes era completamente impensável: o assassinato
racionalmente organizado de milhões e milhões de pessoas. Sem qualquer dúvida, a crítica mais
elaborada desta faceta macabra da modernidade foi desenvolvida no livro de Adorno e Horkheimer
publicado sob o título A dialética do Esclarecimento. Embora Adorno e Horkheimer façam uma
avaliação crítica do Iluminismo, a sua argumentação pode ser aplicada sem problemas para a grande
narrativa da modernidade, sendo o Esclarecimento eminentemente inseparável do discurso
moderno e às vezes até identificado com ele.23 O que Adorno e Horkheimer declaram logo no início
do livro é que o próprio discurso ideológico do Esclarecimento na verdade se define como uma
autêntica construção totalitária.24 Na análise deles é a própria razão moderna e a ocupação gradual
mas quase completa da realidade por ela que faz funcionar a lógica perversa do Terceiro Reich e a
organização sistemática do genocídio. Desta forma, aquela razão em que o Século das Luzes
colocou todas as esperanças para emancipar a humanidade, junto com a tecnologia se tornou afinal
no próprio destrutor dessa mesma humanidade. Nas esteiras das teses de Adorno e Horkheimer
sobre a dialética do Esclarecimento e a perversão da razão moderna, Zygmunt Bauman falando já
diretamente de modernidade e não de Iluminismo, salienta que „the Holocaust was a unique
encounter between the old tensions which modernity ignored, slighted or failed to resolve -- and the
22 AGAMBEN, Giorgio. Quel chi resta di Auschwitz. L’archivio e il testimone. Torino: Bollati Boringhieri, 2000, p. 66. 23 GERAS, Norman – WOKLER, Norbert (Org.). The Enlightment and Modernity. London: Macmillan Press, 2000. 24 ADORNO, Theodor Wiesengrund – HORKHEIMER, Max. Dialektik der Aufklärung. Philosphische Fragmente. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 2006, p. 12.
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powerful instruments of rational and effective action that modern development itself brought into
being.”25 O pensador polonês, na verdade, aprofunda de uma perspectiva weberiana as idéias dos
filósofos da escola de Frankfurt e analisa a relação íntima entre o desenvolvimento da civilização
moderna, a revolução industrial, o estabelecimento das instituições burocráticas públicas e a
tragédia do Shoah, afirmando que o extermínio industrializado dos judeus foi o fruto orgânico das
sociedades modernas e que nele se revela uma certa verdade da modernidade (truth of modernity).26
Uma outra anomalia da modernidade que dum certo modo se liga às teses críticas acima expostas é
revelada por Charles Taylor. O filósofo canadiano distingue dois modelos principais e paralelos da
modernidade: um modelo cultural e particular e um outro modelo aculturado e universal. Dos dois
conceitos aquele que conseguiu se afirmar como a narrativa primordial e dominante da
modernidade é a versão aculturada o que, na opinião de Taylor, tem a ver com o facto que a
ideologia emancipatória e salvacionista da modernidade na verdade nasceu da cultura cristã que
desde o início se tinha inscrito num horizonte eminentemente universal27 (basta só lembrar as cartas
de São Paulo sobre as pretensões universais da expansão da fé e do catolicismo, palavra cuja
etimologia grega aliás se refere à própria universalidade) e depois desenvolveu-se sob a égide
universalista e humanista do Iluminismo. Esta variante aculturada da modernidade quer eliminar as
diferenças religiosas, epistemológicas e culturais entre as mais diversas regiões do mundo e
pretende criar um mundo homogêneo e universal baseado nos mesmos valores ideológicos, nas
mesmas instâncias políticas, nas mesmas tecnologias de produção e nas mesmas estruturas
socioeconômicas.
(…) traditions impede development. Over against the blazing light of modern reason, all traditional societies look alike in their immobile night. What they hold us back from is ‘‘development,’’conceived as the unfolding of our potentiality to grasp our real predicament and apply instrumental reason to it. The instrumental individual of secular outlook is always already there, ready to emerge when the traditional impediments fall away. Development occurs through modernization, which designates the ensemble of those culture-neutral processes, both in outlook (individuation, rise of instrumental reason) and in institutions and practices (industrialization, urbanization, mass literacy, the introduction of markets and bureaucratic states) which carry us through the transition. This outlook projects a future in which we all emerge together into a single, homogeneous world culture. In our traditional societies, we were very different from each other. But once these earlier horizons have been lost, we shall all be the same.28
25 BAUMAN, Zygmunt. Modernity and the Holocaust. Ithaca: Cornell University Press, 1989, p. xiv. 26 Idem, p. 6. 27 TAYLOR, Charles. Two theories of modernity. In: GAONKAR, Dilip Parameshwar (org.). Alternative Modernities. Durham-London: Duke University Press, 2001, pp. 174-175. 28 Idem, p. 181.
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Fredric Jameson, por sua vez, escreve também dessa versão aculturada da modernidade. Como
localiza a essência da modernidade no capitalismo global e na sua expansão mundial, na leitura dele
a modernidade, desde a sua germinação, é necessariamente universal e singular, e assim
permanecerá para sempre.29 Para o teórico marxista todas as manifestações da modernidade têm a
ver com o capitalismo e com as pretensões hegemonizantes do sistema da capital o que não permite
o desenvolvimento de modernidades locais que não seguem fielmente o padrão da versão euro-
atlântica e não cumprem rigorosamente as suas normas. Jameson basicamente rejeita a
possibilidade de existência de modernidades diferentes e declara que só pode existir uma
modernidade singular (singular modernity) que funciona de acordo com as mesmas leis e princípios
por todos os lados.30 Jameson não defende nada a narrativa eurocêntrica da modernidade, senão só
constata que apesar das esperanças de questionar e deslocar essa narrativa, ela continua sendo
vigente nas dinâmicas econômicas do mundo globalizado. Por isso mesmo, neste ponto vale a pena
voltar às ideias de Taylor e Gaonkar que ao contrário de Jameson apoiam a tese da possibilidade de
outras modernidades.
Taylor, por sua vez, argumenta que as assim chamadas variantes culturais da modernidade como se
desenvolveram de tradições e epistemologias diferentes, são (e serão) inevitavelmente diferentes.31
A modernidade como sempre supõe uma base cultural à qual se sobrepõe, e na realidade não se
pode livrar da influência desse substrato local. "Each repetition of the sign of modernity is different,
specific to its historical and cultural conditions of enunciation"32 Ressalta Homi Bhabha no seu livro
The Location of Culture, ou seja, em vez de falar de uma só versão da modernidade em que se
refletem os valores culturais, políticos e econômicos do continente europeu e as ideologias do
eurocentrismo, teríamos de falar sobre várias modernidades diferentes que seguindo a sugestão de
Taylor e de Gaonkar podemos chamar de modernidades alternativas (alternative modernities). Essas
modernidades alternativas que desconstroem a narrativa de uma modernidade singular e
eurocêntrica apresentam iterações características e regionais da dominante européia. Desta forma,
como Matei Calinescu sugere
„(…) one should not speak of one modernity, one way or pattern of modernization, one unified concept of modernity which would be inherently universalist and would presuppose universal and uniform standards, independent of temporal and geographic coordinates. If modernity is indeed creative-whether economically as development or, at the other end of
29 JAMESON, Fredric. A Singular Modernity. Essay on the Ontology of the Present. London-New York: Verso, 2002, p. 12. 30 Idem, p. 13. 31 TAYLOR, 2001, p. 182. 32 BHABHA, Homi. The Location of Culture. New York: Routledge, 1992, p. 247.
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the spectrum of possibilities, as growth of knowledge and of insight through unpredictable discoveries- then it cannot but be plural, local, and non-imitative.”33
Luís Madureira, tratando dos casos específicos da modernidade da região do Caribe e do Brasil fala
sobre modernidades periféricas ou marginais, e partindo da teoria derridiana ressalta o elemento da
criatividade no processo da construção da modernidade nos territórios pós-coloniais. Na
interpretação de Madureira, no caso destas modernidades periféricas, temos sempre que contar
com um forte potencial crítico que consegue deslocar a narrativa tradicional da modernidade
singular euro-atlântica e que é capaz de reescrever os eixos discursivos desta da perspectiva das
epistemologias locais.34
A teoria da transmodernidade de Enrique Dussel, por um lado encaixa-se na ordem das
modernidades alternativas que propagam a legitimidade e a autenticidade das variantes nao
consagradas e nao centrais do avanço socioeconômico e político-cultural, e por outro lado aposta
naquele potencial crítico das modernidades periféricas que Madureira realça. O modelo da
transmodernidade de Dussel é uma abordagem crítica da modernidade que nasceu duma
perspectiva crítica e pós-colonial latino-americana, mas que se aplica para todos os territórios do Sul
global que enfrentaram e ainda estão enfrentando a necessidade da modernização e da elaboração
de agendas próprias quanto ao estabelecimento e cumprimento do projeto moderno. A inspiração
latino-americana da transmodernidade é importante mas não impede o alargamento dela para
outras regiões periféricas. No entanto o facto de que no caso da América Latina não se trata só dum
conflito dialético entre a cultura indígena e o mundo do colonizador, mas antes de mais, de uma
estrutura mais complexa por causa da instituição da escravatura e a forte presença das tradições
africanas, faz desta região uma conjuntura especial para a modernidade. „Históricamente,
encontramos que la modernidad en Latinoamérica está llena de contradicciones y, por decirlo de
algún modo, de paradojas.”35 O objetivo de Dussel com a elaboração da transmodernidade,
portanto, é dupla. Quer situar a América Latina – e num contexto mais vasto o Sul periférico – na
história mundial, e ao mesmo tempo reinterpretar e reescrever radicalmente a narrativa tradicional
desta mesma história mundial. Com essas premissas pretende-se, então, nao só a desconstrução da
dialética e da hierarquia entre o mundo euro-atlântico, detentor de uma modernidade singular, mas
33 CALINESCU, Matei. Modernity, Modernism, Modernization: Variations on Modern Themes. In: Symploké, vol. 1., n. 1., 1993, p. 17. 34 MADUREIRA, Luís. Cannibal Modernities. Postcoloniality and the Avant-garde in Caribbean and Brazilian Literature. Charlottesville-London: University of Virginia Press, 2005, pp. 2-5. 35 ANAYA, Mario Magallón. América Latina y la Modernidad. In: Archipélago, n. 62., 2008, p. 46.
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também o questionamento das representações e narrativas do continente europeu que foram sendo
construídas desde a modernidade, fazendo deste território não só o dominador simbólico do mundo
inteiro, mas também um exemplo autêntico que as outras regiões devem seguir. Deste ponto de
vista a empresa de Dussel reflete a influência das teses de Walter Benjamin sobre o conceito da
história. Para o filósofo alemão a história não é outra coisa que a própria narrativa interpretativa do
poder, dos fortes, dos vencedores que são capazes de construi-la e de dar-lhe sentido segundo as
suas premissas políticas e visões ideológicas. O processo histórico é uma mera construção narrativa
nas mãos do poder, é uma “presa”, uma certa colonização narrativa do passado. O poder tem a
capacidade de construir uma narrativa forte e totalizante com que se apodera do passado, criando
dele uma versão única e colonizada. “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo
«como ele de fato foi». Significa apoderarmo-nos de uma recordação (Erinnerung).”36 Para
podermos chegar ao desmantelamento da visão totalizante da história escrita pela perspectiva dos
vencedores, Benjamin sugere escovar a história a contrapelo,37 ou seja, concentrar-se naqueles
eventos, manifestações e sujeitos que passaram a ser excluídos da versão oficializada do processo
histórico. O próprio Dussel afirma a forte influência do pensamento de Benjamin na elaboração dos
seus conceitos:
Benjamín con su «mesianismo materialista» y su interpretación de la teología como el enano oculto debajo del tablero de ajedrez del turco, al decir del propio Michel Löwy anticipando la crítica que efectuaría la teología de la liberación latinoamericana, abre nuevos debates (en los que me encuentran preparado, ya que ha sido la orientación de toda mi vida): el elfrentamiento del helenocentrismo filosófico y su desarollo, como eurocentrismo moderno
(…).38 Além da profunda insatisfação para com a versão eurocêntrica da modernidade e da narrativa
histórica escrita e estabelecida por ela, Dussel, como a maioria dos teóricos mencionados neste
estudo, expressa um descontentamento profundo no que diz respeito ao paradigma pós-moderno.
O problema de Dussel com o pós-modernismo não é só o niilismo ético, o relativismo e o
perspectivismo radical que impossibilitam o estabelecimento de qualquer tipo de identidade ou
posição firme mas crítica ao mesmo tempo, mas também o desaparecimento do horizonte da
salvação. Além disso, na interpretação do filósofo argentino-mexicano, o pós-modernismo, na
verdade, apesar da sua aparente sensibilidade para com o ex-cêntrico, continua sendo uma
36 BENJAMIN, Walter. O Anjo da História. Obras escolhidas de Walter Benjamin. Lisboa:Assírio & Alvim, 2010, p. 11 37 Idem., pp. 12-13. 38 DUSSEL, Enrique. Filosofías del Sur y Descolonización. Buenos Aires: Editorial Docencia, 2014, p. 9.
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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46
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construção teórica fortemente eurocêntrica que não faz outra coisa de que repetir o hubris inicial e
constitutivo da modernidade singular.
Na verdade, a partir da problemática „pós-moderna” sobre a natureza da Modernidade – que, em última análise, é uma visão ainda europeia da Modernidade – começamos a perceber que, o que chamávamos como pós-moderno era algo diferente do que aludiam os pós-modernos nos anos 1980 (ao menos davam uma definição diferente do fenômeno da Modernidade daquela que eu havia entendido a partir dos trabalhos realizados para situar a América Latina em confronto com a cultura moderna observada a partir da periferia colonial). Por isso, sentimos a necessidade de reconstruir a partir de uma perspectiva „exterior”, ou seja, global (nao proviniciana como eram as perspectivas europeias), o conceito de „modernidade” que era – e ainda é – na
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