a face heróica de dioniso nas dionisíacas de nono de panópolis
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS
PAULO HENRIQUE OLIVEIRA DE LIMA
A FACE HERICA DE DIONISO NAS DIONISACAS DE
NONO DE PANPOLIS
VERSO REVISADA
SO PAULO
2016
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS
A FACE HERICA DE DIONISO NAS DIONISACAS DE NONO DE PANPOLIS
Paulo Henrique Oliveira de Lima
Orientador: Professor Doutor
Fernando Rodrigues Jnior
Dissertao apresentada ao
Programa de Ps-Graduao do
Departamento de Letras Clssicas
e Vernculas da Universidade de
So Paulo para a obteno do
ttulo de Mestre.
VERSO REVISADA
SO PAULO
2016
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Nome: LIMA, Paulo Henrique Oliveira de
Ttulo: A Face Herica de Dioniso nas Dionisacas de Nono de Panpolis
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Letras Clssicas do Departamento de
Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade
de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em
Letras.
Aprovado em: ___/___/______
Banca Examinadora
Prof. Dr. Fernando Rodrigues Jnior Instituio: Universidade de So Paulo
Julgamento:________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr. Instituio:
Julgamento:________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr. Instituio:
Julgamento:________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr. (suplente) Instituio:
Julgamento:________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr. (suplente) Instituio:
Julgamento:________________________ Assinatura: ______________________
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RESUMO
Esta pesquisa pretende discutir a forma com que Dioniso foi transformado em heri
pico nas Dionisacas de Nono de Panpolis, uma epopeia em quarenta e oito cantos
sobre o ciclo de Dioniso, desde a fundao de Tebas e o estabelecimento de seus
antepassados apoteose olmpica do deus. A anlise ser baseada nas caractersticas de
Dioniso no campo de batalha e em oposio aos trs principais adversrios no poema,
Licurgo, Derades e Penteu. Para uma melhor compreenso da construo de Dioniso
como heri, necessria uma anlise sobre o contexto social e cultural em que Nono
compe sua obra, assim como a relao do poeta com Homero, o principal poeta pico
grego. Em anexo encontram-se os cantos XXXIX e XL das Dionisacas em original
grego e na traduo feita por mim.
Palavras-chave: Dionisacas; Nono de Panpolis; literatura imperial; poesia pica;
Dioniso; heri.
ABSTRACT
This research intend to discuss the way Dionysus was transformed into epic hero in
Nonnus Dionysiaca, an epic in forty-eight chants concerning the Dionysian Cycle,
from the foundation of Thebes and the establishment of their ancestors to the Olympic
apotheosis of the god. The analysis will be based on Dionysos features on the battlefield
in opposition to the three main opponents in the poem, Lycurgus, Derades and
Pentheus. For a better understanding of the construction of Dionysus as a hero, an
analysis is needed on the social and cultural context in which Nono composes his poem,
as well as the poet's relationship with Homer, the Greek main epic poet. Attached are
the chants XXXIX and XL of Dionysiaca in original greek and the translation made by
me.
Keywords: Dionysiaca; Nonnus of Panopolis; Imperial Literature; Epic Poetry;
Dionysus; hero.
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Fernando Rodrigues Jnior pela orientao.
Professora Luise Marion Frenkel e ao Professor Andr Malta Campos por
participarem do Exame de Qualificao e contriburem para o desenvolvimento dessa
pesquisa.
CAPES pela bolsa concedida, que me ajudou na progresso do presente estudo e na
aquisio de obras indisponveis nas bibliotecas.
Aos meus pais, Suzana e Pedro, que sempre me ajudaram e apoiaram, minha irm,
Ana Paula, e minha av Conceio.
Jasmim Sedie Drigo, companheira desde a graduao, que me incentivou, apoiou,
motivou e partilhou de todo o processo de desenvolvimento da presente dissertao.
Aos amigos: Luis Mendes, Patrcia Schittler, Roberta Claro, Camilla Dutra pelo apoio e
carinho durante esses anos.
A Brbara da Costa e Silva por ter me apresentado as Dionisacas.
Aos amigos: Rafael Leandro, Alexandre Vicentin, Renata Rodrigues, Alex Nobre,
Danilo Carrenho, Ricardo Nomura, Cristiane Arqueja, Priscila Tiemi, Patrcia Borges,
Celso dos Santos, Marcelo Santana, Andria Harayasiki e os demais colegas da UBC.
Aos demais professores de Grego da Universidade de So Paulo.
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TABELA DE ABREVIAES
AP. Antologia Potica ou Antologia Grega
Argo. Argonautica
Bac. Bacantes
Dion. Dionisacas
Il. Ilada
Od. Odisseia
Teog. Teogonia
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SUMRIO
Introduo....................................................................................................... 9
Captulo I: O mundo de Nono de Panpolis................................................ 13
I. 1: O helenismo na Antiguidade Tardia.......................................... 13
I. 2: A identidade helnica................................................................. 17
I. 3: Nono de Panpolis...................................................................... 19
Captulo II: Dioniso, um heri pico............................................................. 29
II. 1: Licurgo da Arbia...................................................................... 31
II. 2: Derades da ndia....................................................................... 40
II. 3: Penteu de Tebas......................................................................... 60
Captulo III: Pai Homero................................................................................ 73
III. 1: Os Promios.............................................................................. 74
III. 2: Sncrese parte 1...................................................................... 77
III. 3: A Lana e o Escudo................................................................... 78
III. 4: Psogos........................................................................................ 80
III. 5: Sncrese parte 2....................................................................... 82
III. 6: O escudo..................................................................................... 83
Consideraes Finais........................................................................................ 88
Anexos:
I: Canto XXXIX das Dionisacas............................................................ 91
II. Canto XL das Dionisacas.................................................................. 125
Referncias Bibliogrficas................................................................................ 183
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9
Introduo
As Dionisacas so o maior poema em lngua grega preservado. Um pico com
48 cantos e quase 21000 versos, a obra de Nono de Panpolis celebra o ciclo de
Dioniso, deus filho de Zeus que busca reconhecimento para ascender ao Olimpo. O
poeta inicia a obra narrando as aventuras dos antepassados da divindade e seu
estabelecimento em Tebas, o nascimento e morte da primeira verso de Dioniso,
Zagreu, assim como seu renascimento e treinamento para se tornar um deus e receber
suas principais misses: espalhar o vinho, seu atributo, o rito dionisaco e a justia de
Zeus, para ento conquistar um lugar no panteo.
A histria vai alm da narrativa do deus olmpico, abarcando aventuras de heris
como Perseu e Hracles, Teseu, Aquiles, Odisseu e Ajax, alm de muitas aluses
histricas e filosficas a diversos gneros, fazendo com que um leitor mais atento
reconhea a narrativa de Dioniso diluda entre um aparente caos de imagens e
personagens1.
Por se tratar de uma epopeia, a obra de Nono ser sempre equiparada aos
poemas homricos, referncia no gnero. Tal comparao pertinente, pois, alm da
aproximao temtica, h uma possvel imitao e emulao que o autor egpcio faz do
poeta arcaico. As semelhanas comeam quando se nota a extenso da obra de Nono, 48
livros, ou seja, a soma dos dois poemas homricos, a Ilada e a Odisseia, ambos com 24
cantos. Alm da extenso da epopeia, que apresenta dois promios, um no primeiro
livro e outro no vigsimo quinto, no longo segundo promio das Dionisacas (XXV. 1-
270) h uma comparao estendida entre Dioniso e os outros filhos de Zeus de um lado
e a poesia de Nono e a de Homero do outro. O mais clebre dos poetas chamado de
pai no verso 265 das Dionisacas e objeto de pedido de inspirao para a
composio do poema. Assim, Homero pode ser considerado o ponto de referncia mais
importante para a construo do epos de Nono2, como ser debatido no terceiro captulo
da presente dissertao. Em um esforo pelo reconhecimento de sua epopeia, o poeta
egpcio compara a elaborao das Dionisacas jornada que Dioniso tem para ascender
ao Olimpo.
Hopkinson (1994: 14) diz que, na dico e no metro, Nono manifesta a mesma
tcnica de emulao e competio, a busca pelo diferente e similar com relao a
1 Lima (2015: 162).
2 Hopkinson (1994: 122-3).
-
10
Homero. Seu metro o hexmetro, mas a sonoridade, o segmento e o ritmo do verso so
diferentes, decorrente da alterao do verso hexmetro. Ademais, o poeta apresenta uma
transformao da poesia pica misturada a outros gneros de composio, como a
poesia buclica. Seu lxico, fraseologias e outras construes de verso so homricos,
mas o efeito geral do poema nico.
As referncias a Homero no se esgotam quanto a esses aspectos. H uma
correspondncia estrutural entre as Dionisacas e as obras homricas, pois os cantos I-
XXII e XL-XLVIII do poema de Nono, trechos anterior e posterior Guerra da ndia,
so correspondentes Odisseia. Assim como Odisseu, Dioniso viaja atravs de
longnquas e exticas terras em busca de sua identidade e reconhecimento3. Como o
poema homrico, os cantos XL-XLVIII apresentam a temtica do retorno (), em
que a jornada do deus atrasada por uma srie de encontros nos quais o tema da
hospitalidade proeminente, de maneira semelhante a alguns episdios narrados antes
do canto XXV, em que a hospitalidade retratada de forma positiva, como o encontro
de Dioniso e Brongo e Estfilo4, e de forma negativa, como a luta contra Licurgo
5.
O trecho intermedirio, que corresponde Guerra da ndia nos cantos XIII-XL,
mais especificamente nos cantos XXV-XL, denominado Indada por Shorrock (2001:
68)6, uma clara equivalncia Ilada. Mas as referncias homricas presentes no
poema de Nono no se limitam estrutura e ao mote central do poema. O poeta
apresenta inmeros episdios baseados em famosas cenas homricas, como a cfrase do
escudo7, a teomaquia
8, catlogos
9, batalha entre o heri e um rio
10, jogos fnebres
11,
entre outros.
Apesar de prximas estruturalmente e tematicamente, os poemas de Homero e
de Nono so diferentes em relao proposta de Aristteles presente na Potica. O
filsofo, atravs da teoria de unidade de ao12
, distingue a Ilada e a Odisseia, poemas
centrados em um nico evento, no primeiro caso a ira de Aquiles e no segundo caso o
3 Hopkinson (1994b: 18).
4 Dion. XVII-XIX.
5 Dion. XX-XXI.
6 uma tradio crtica a utilizao do termo Indada para designar o trecho da Guerra da ndia, em
aluso Ilada. 7 Dion. XXV.384-567 e Ilia. XVIII. 478-609. A cfrase do escudo de Dioniso e a comparao com o
escudo de Aquiles sero abordados no terceiro captulo desta pesquisa. 8 Dion. XXXVI.1-133 e Ilia. XX.
9 Dion. XIII.43-568; XIV.15-227; XXVI.38-365 e Ilia. II. 394-785.
10 Dion. XXII.1-XXIV.62 e Ilia. XXI.
11 Dion. XXXVII.103-778 e Ilia. XXIII.
12 Potica, VIII.
-
11
retorno de Odisseu, de poemas voltados a narrar a vida de um heri, como as
Heracleidas ou as Teseidas, sem unidade de ao. As Dionisacas poderiam ser
enquadradas no segundo grupo de poemas apresentados por Aristteles, como sem
unidade de ao. Apesar do destaque dado Guerra da ndia, que ocupa a maior parte
do poema, o foco da epopeia noniana Dioniso, desde seu nascimento at sua apoteose.
Ou seja, o modelo homrico importante, mas Nono segue um caminho diferente,
optando por uma abordagem diversa ao gnero pico, considerada oposta a Homero por
Aristteles.
Nono no apresenta referncias somente aos poemas homricos, pois, composta
no sculo V d.C., as Dionisacas so um grande compilado de estilos e tcnicas de
diferentes pocas da literatura grega. Somado pica est o uso de tcnicas bastante
exploradas por poetas helensticos, como aluses literrias, erotismo, grotesco,
digresso e conhecimento cientfico e mitolgico, influncia de poetas como Calmaco e
Apolnio13
, assim como elementos do romance imperial emulados de autores como
Caritn de Afrodisas e Aquiles Tcio. As Dionisacas, assim como as Metamorfoses de
Ovdio, englobam elementos de gneros como a tragdia, a comdia, a pica didtica e a
buclica, a filosofia e a elegia amorosa14
. Rouse (1940: 1.530-1) relata a importncia da
pesquisa de resqucios de toda a poesia grega clssica e ps-clssica na obra de Nono.
Para que a composio de Nono seja compreendida e o poeta faa de Dioniso
um heri pico, deve-se entender o cenrio da formao da epopeia. O primeiro
captulo, O mundo de Nono de Panopolis, tem como objetivo de fazer uma breve
apresentao do contexto social em que as Dionisacas e seu poeta esto inseridos,
sendo discutidos o helenismo na Antiguidade Tardia, as polmicas relacionadas ao
termo Antiguidade Tardia, a separao entre cristianismo e paganismo, a diferena entre
paganismo e helenismo, o significado de ser grego no perodo, a paideia na Antiguidade
Tardia e a emulao dos clssicos em um ambiente cristo; a identidade helnica e as
dicotomias presentes no Imprio Romano, com ateno especial discusso de etnia e
linguagem, especialmente no Egito. Por fim abordarei quem poderia ter sido Nono de
Panopolis, qual seria a sua relao com a religio crist, quais obras foram atribudas a
ele e as referncias a ele em obras posteriores, qual a linguagem e a herana cultural
ajudaram Nono a criar as Dionisacas.
13
Bowersock (1994: 157). 14
Hollis (1994: 46).
-
12
O segundo captulo, Dioniso, um heri pico, o cerne principal da pesquisa,
pois nele que as caractersticas heroicas do protagonista so apresentadas, atravs de
descries narradas no poema e principalmente atravs de oposies aos inimigos do
deus. Durante as viagens, Dioniso enfrenta trs principais adversrios que negam sua
autoridade divina: Licurgo na Arbia, Derades na ndia e Penteu em Tebas. Tais
conflitos servem para que Nono construa um heri a partir de uma divindade
estabelecida no panteo clssico e aproxime um deus de um ser humano.
O terceiro captulo, Pai Homero, analisa a relao de Nono com sua principal
inspirao: Homero. Sero discutidas, nessa parte, a emulao dos poemas homricos; a
relao entre os promios das Dionisacas e da Ilada e da Odisseia; as sncreses
presentes na epopeia noniana, com ateno especial sincrese entre os escudos de
Dioniso e de Aquiles; a lana e o escudo, uma metfora para a luta do poeta, que
combate com a pena e o papel; o psogos, o recurso retrico da censura e do insulto, que
visa a celebrar a prpria obra em detrimento sua fonte; e uma comparao direta na
emulao dos escudos.
-
13
Captulo I: O Mundo de Nono
O helenismo na Antiguidade Tardia
Para compreendermos melhor o contexto no qual as Dionisacas foram
compostas, necessrio traar algumas caractersticas do helenismo dentro do Imprio
Romano do Oriente, no perodo conhecido como Antiguidade Tardia.
O termo Antiguidade Tardia problemtico e usado genericamente para cobrir
um perodo entre os sculos IV VII d.C., quando houve o florescimento do
cristianismo. Ela ocorreu em todo o territrio do Imprio Romano. Para McKenzie
(2010: 230), o termo e o perodo so cunhados para descrever o perodo bizantino15
,
entretanto, Papaioannou (2009: 17-8) afirma que nunca houve uma Antiguidade Tardia
Bizantina. O especialista considera a existncia de uma continuidade e posterior
inalterao no mito em que o Imprio Cristo, do quarto ao dcimo quinto sculos, foi
fundamental para Bizncio. Nas primeiras narrativas sobre o tema, a distino entre
Antiguidade Tardia e Bizncio quase nunca era feita. Em contrapartida, a partir de uma
perspectiva moderna, o mito da continuidade monoltica foi desmantelado, podendo
inferir em uma ruptura com a Antiguidade Tardia dentro da cultura bizantina.Apesar de
inserida dentro do leste do Imprio Romano, a Antiguidade Tardia no foi exclusiva
dele. O pesquisador ainda reitera que no se pode aplicar a cultura da Antiguidade
Tardia parte oriental do Imprio, pois o termo cultura problemtico no perodo,
sendo possvel descrever diversas caractersticas de modo a serem construdas e
reconstrudas para servir s vrias ideologias do poder bizantinas, seja imperial,
eclesistica ou pessoal.
Para Kaldellis (2008: 173), a identidade helnica16
entrou em inatividade
temporria entre os sculos I a.C. a V d.C., pois, nesse perodo, ela teria apenas uma
existncia hipottica, tornando-se ou uma relquia de um passado que poderia ser vista
em textos antigos, ou a anttese do cristianismo. A prtica de cultos pblicos das
religies arcaicas politestas praticamente desapareceu no fim do quinto sculo. Alguns
15
O Imprio Bizantino, ou Imprio Romano do Oriente, durou de 395 at 1453. Aps a morte do
Imperador Teodsio I, em 395, seus dois filhos herdaram o Imprio Romano e dividiram-no em dois: Um
com capital em Roma e outro com capital em Constantinopla (Millar, 2006: 2; Freeman, 1999: 431). 16
Para Kaldellis (2008: 171-3) a identidade helnica composta por cultos religiosos e costumes
helnicos, como a filosofia e a retrica. O autor exclui como caractersticas de identidade a geografia e a
lngua. A inatividade no significa inexistncia, uma vez que havia filsofos e rtores no perodo.
-
14
aspectos dos cultos helnicos acabaram por ser absorvidos pelo cristianismo e dificultou
o ressurgimento em grande escala das prticas17
.
Paralelamente s religies da antiguidade, muitos costumes sociais e prticas
culturais que definem o antigo helenismo retrocederam durante o fim do imprio
romano18
. No passado, entretanto, havia a hiptese de que parte da elite cultural egpcia
formava uma resistncia pag contra o cristianismo, mas, atualmente, essa teoria foi
abandonada em favor da ideia de coexistncia e interao cultural entre pagos e
cristos, uma vez que no se deve confundir o paganismo com o florescimento
helenstico do Egito da Antiguidade Tardia19
. Ou seja, paganismo e helenismo so
distintos no perodo, pois o primeiro termo utilizado para se referir s religies no-
crists, enquanto o segundo se trata da difuso da civilizao e cultura helnica.
Na Grcia dos sculos II a.C a III d.C, independente da liberdade que Roma
concedia aos gregos20
, uma vez que o territrio se tornou uma colnia oficial em 146
a.C.21
, os gregos tornaram-se cidados romanos22
e, posteriormente, cristos. No
perodo os gregos deixam de ser , os nascidos com ascendncia grega, como se
denominavam na antiguidade clssica, mas preferem a denominao 23
,
aqueles que vivem na Grcia. Contribuiu para isso o fato de que o termo ser
empregado em invectiva crist para designar hereges, pagos e atestas.
A lngua grega permanece. Enquanto parte da elite romana se esforava para
assimilar traos helnicos, parte dos gregos desejava se tornar romana24
. No leste do
Imprio Romano (Bizncio), a situao prxima de Roma. Enquanto a religio
oficial era a crist e a lngua administrativa era o latim, a elite bizantina mantinha vivos
os elementos da cultura clssica grega, central paideia que recorre bastante literatura
clssica, em especial Homero. Embora houvesse a manuteno do helenismo, a herana
greco-romana em Bizncio se tornaria um sistema de conhecimento que entrou em
colapso, como mtodo de percepo e representao.
17
O renascimento da cultura helnica na Europa Ocidental deu-se na Renascena com Jorge Gemisto
Pleto, filsofo neoplatnico. Sua importncia atribuda ao reintroduzir os ensinamentos de Plato
durante o Conclio de Florena, em 1438, que foi uma tentativa falha de reconciliao entre as cismticas
Europa Oriental e Ocidental (DeBolt, 1998). 18
Kaldellis (2008: 173). 19
Dijkstra (2016: 75). 20
A administrao local e a poltica tradicional grega no foi abolida com a anexao do territrio. 21
O incio do domnio romano sobre a Grcia convencionalmente datada de 146 d.C., aps o Saque de Corinto. 22
O dito de Caracala, de 212 d.C., concedeu cidadania romana a todos os homens adultos nascidos fora da Pennsula Itlica. 23
Tefanes em 474.1. 24
Kaldellis (2008 : 33) com base em Favorino, 25-27.
-
15
A paideia era o sistema educacional tradicional da Grcia no perodo clssico.
Era formada originalmente pela reunio de disciplinas como a ginstica, a gramtica, a
retrica, a msica, a matemtica, a histria natural e a filosofia, para que o jovem se
tornasse um cidado completo. Para Favorino25
, a paideia seria um fator determinante
para a transformao do conceito de identidade helnica. O ser grego no apenas
quem domina a lngua grega, mas quem tem, em sua essncia, o esprito helnico26
. No
perodo imperial, o escopo e os limites da helenizao em suas definies sociais e
comunicativas eram estabelecidos pelos romanos, de forma que houvesse uma
manuteno contnua de sua prpria identidade romana27
.
No fim do quarto sculo, houve uma tentativa de florescimento dos cultos
ancestrais. Enquanto o Imperador Juliano empreendeu uma srie de reformas que
beneficiavam a execuo de antigos cultos romanos28
, aristocratas como Simaco,
Pretextato e Flaviano formaram uma oposio pag ativa contra o cristianismo, fazendo
com que as artes e a literatura pags se tornassem mais abundantes ao dar suporte aos
cultos e festivais tradicionais romanos. Em um Egito pertencente ao Imprio Romano
do Oriente no quinto e sexto sculos d.C., perodo em que as Dionisacas foram
compostas por Nono de Panpolis, h a predominncia da cultura crist e uma
considervel diminuio do paganismo. No quarto sculo, a cultura crist estava em
plena ascenso, mas sem afetar predomnio da cultura helnica dos membros das elites
crists29
. A concluso a que Kaldellis chega que as tentativas de florescimento do
paganismo, com o retorno das religies helnicas, no formaram uma resistncia contra
o cristianismo, pois, aps a suspenso dos cultos, tais atividades foram integradas aos
costumes romanos, inclusive aos cristos30
.
A elite romana oriental j detinha uma identidade cultural no quinto sculo,
enquanto, no quarto sculo, os cristos se empenhavam em formar sua prpria
identidade e seus textos exploravam a construo do ser cristo. Atravs da invectiva,
um discurso vituperioso, eles tentavam explicar as novas doutrinas polmicas contra o
25
Favorino, 25-27. 26
Para Favorino, um sofista romano do segundo sculo d.C., o esprito helnico implica no parecer ser
um grego, ao emitir a lngua ou ter propriedades em alguma cidade, mas se comportar como tal. O autor
utiliza o exemplo de Atenas, onde no basta ter nascido ou residir na cidade, mas se deve discursar como
um ateniense. Com relao a Esparta, os que se consideram espartanos devem ser devotos ao atletismo. 27
Kaldellis (2008: 32). 28
De acordo com Lemos (2012: 155), o governo do Imperador Juliano ficou conhecido como o perodo
da restaurao pag. 29
Kaldellis (2008 : 174). 30
Cameron (2011).
-
16
paganismo, alm de classificar a cultura helnica de acordo com seus interesses. A
educao clssica poderia ser vista como uma fase preliminar necessria educao
crist31
.
No quinto e sexto sculos, os cristos, ao escrever sobre a experincia humana,
emulam as formas da literatura clssica grega, incluindo o uso de personificaes
quase pags e imagens destoantes do que era atestado nos textos do incio da era
crist32
. Assim, a cultura crist se situou dentro da cultura clssica, facilitada pelo
conhecimento sobre o paganismo e o helenismo. No s a paideia clssica, como
tambm outras doutrinas, como o gnosticismo, tiveram seguidores entre seus
membros33
. Cameron (2007: 21-8), por sua vez, afasta a ideia de resistncia pag contra
o cristianismo no quinto sculo. O pesquisador argumenta que apenas alguns filsofos
tinham um forte interesse na religio antiga, e, em alguns casos, realizavam rituais e
prticas tradicionais, no constituindo nada mais do que um pequeno grupo de
entusiastas. Uma coexistncia pacfica levou a um processo de transformao religiosa,
sendo uma combinao dinmica de elementos das religies tradicionais e do
cristianismo34
.
No fim do sculo V d.C, j h uma literatura clssica crist consolidada tanto em
latim quanto em grego. Dracncio, no Reino Vndalo da frica do Norte, escreveu
poemas cristos e seculares. No leste, enquanto as narrativas ficcionais (romances) so
gradativamente sucedidas por hagiografias35
, as tradies retrica, epistolar e ecfrstica
continuavam a ser preservadas possivelmente por cristos que, ao escreverem em
tpicos de sua religio, valiam-se de estilos retricos gregos, emulando os retores
contemporneos ao utilizarem temas que remontavam ao perodo clssico ateniense de
modo a legitimar seus argumentos36
. Certamente isso era caracterstica da Terceira
Sofstica, que serviu como modelo do helenismo cultural da poca. Em Gaza, havia
autores que escreviam tanto matria crist quanto pag, como Procpio37
, autor de
31
Shorrock (2011: 20). 32
Atravs do dito de Milo, assinado em 313 pelos tetrarcas Constantino I, da parte ocidental de Roma e
Licnio, da parte oriental, que concedia neutralidade quanto o credo religioso, uma tentativa de tornar o
Estado laico, dando fim perseguio contra os cristos. Tal ao teria desestabilizado o paganismo como
religio oficial do Imprio Romano, o que contribuiu para o crescimento da religio crist. 33
Kaldellis (2008: 174-5). 34
Dijkstra (2016: 77; 2008: 14-23), Frankfurter (2003: 344) e Kahlos (2002). 35
Papaioannou (2009: 21). As hagiografias so catlogos ou biografias de algum santo. 36
Kaldellis (2008: 36). 37
Procpio de Gaza foi um sofista cristo que escreveu, no sculo V e VI, comentrios aos livros bblicos
Pentateuco, Josu, Juzes, Rute, livro dos Reis, Crnicas, Isaas, Provrbios, Cntico dos Cnticos e
Eclesiastes. Foi autor de epstolas, 162 no total, endereadas a pessoas de prestgio, a fim de demonstrar
-
17
comentrios bblicos e protagonista de uma contenda com o filsofo Proclo, e, ao
mesmo tempo, elaborador de exerccios retricos baseados em cenas helnicas.
Portanto, a imitao dos clssicos, com sua adaptao e variao, era praticada dentro
dos estilos cristos no quinto sculo. Era comum autores utilizarem imagens
mitolgicas para ornamentar, entreter, instruir ou persuadir seu interlocutor, pois os
modelos de imitao e esttica tirados de obras do perodo de Homero a Alexandre eram
considerados virtuosos38
. A retomada da Era Clssica no sexto sculo foi possvel
graas ao estabelecimento, aps 476 com a cisma entre Ocidente e Oriente, e
estabilizao do Imprio Romano do Oriente, sua receptividade literatura, cultura
clssica, expanso territorial e s vitrias sobre os vndalos, ostrogodos e visigodos.
A identidade helnica
No perodo conhecido como Antiguidade Tardia, as polmicas se caracterizavam
por disputas dicotmicas dentro do imprio. As dicotomias no se evidenciavam apenas
na religio entre cristos e no-cristos, mas tambm em outras esferas da sociedade.
o caso da diviso poltica e territorial entre o Imprio Romano do Ocidente, com sua
capital em Roma39
, e o Imprio Romano do Oriente, com Constantinopla como sede do
Estado. Com o territrio dividido no fim do quinto sculo, o vasto Imprio Romano
apresenta outra dicotomia, agora com relao identidade de sua populao. As
dualidades so marcas presentes nas Dionisacas. Uma vez que Nono forma paradoxos
maniquestas para desenvolver sua epopeia, como a caracterizao de Dioniso como
bom e Derades e os indianos como maus, o louvor da boa hospitalidade de Brongo ante
a violenta investida de Licurgo, uma breve apresentao sobre a aparente dicotomia
quanto a identidade se torna vlida para o presete estudo.
A identidade grega no mais dependente da etnia e se torna um estilo de
construo social, em que conceitos como civilizao, inteligncia e virilidade so
valorizados40
. O se tornar grego buscar uma identidade cultural que remeta ao perodo
sua habilidade retrica. Em uma de suas epstolas, ataca o filsofo Proclo. Sua obra completa est
presente na Patrologia Grega LXXXVII. 38
Kaldellis (2008: 37). 39
Roma foi a primeira capital do Imprio Romano do Ocidente. Milo foi a segunda, de 286 402. Aps
ser sitiada pelos visigodos em 402, a capital do Imprio foi transferida para Ravena at 476. 40
Tese tambm defendida por Goldhill (2001: 6), na qual o ser grego definido no por fatores tnicos
ou ascendncia, mas por elementos comportamentais, linguagem e aparncia fsica.
-
18
clssico. Um retorno da cultura grega que visava ginstica e atividade militar, junto
ao teatro e ao simpsio, importantssimos para a definio de cidadania grega desde os
tempos clssicos. Goldhill (2001: 15) defende que essa cultura supera o local geogrfico
e une geraes. Ela a unio de protocolos sociais, comportamento, expectativas sociais
e formaes ideolgicas.
O conceito de identidade no refletido pela linguagem, mas construdo atravs
dela, sendo expandido para outras formas culturais como arte e arquitetura. Assim, a
identidade passa a ser uma expresso filosfica, psicoanaltica, histrica e uma
discusso sociolgica entre o si e o outro41
, ou seja, uma relao do ser com a
linguagem. Whitmarsh (2004: 139) argumenta que a literatura grega terica e prtica do
principado anterior focada fortemente na mimesis, sendo uma imitao dos modelos
cannicos. Nono utiliza as composies clssicas para compor suas Dionisacas, ao
empregar a mtrica e a temtica de Homero e a tragdia de Eurpides.
Contudo a emulao ultrapassa a esttica pelos seus valores ticos e
comportamentais, sendo reflexos das noes de virtude e excelncia, . Esta
relao foi comentada por Van Nijf (2001: 314), que defende a importncia do esporte e
da literatura na sociedade da Antiguidade Tardia, pois combinados representam a
verdadeira cultura grega, a paideia. No quinto sculo depois de Cristo, o Egito fazia
parte do Imprio Romano do Oriente e parte da sua populao era educada pelos
princpios da paideia. Nono teria nascido em Panpolis e sua erudio em grego um
forte indcio de que ele foi instrudo nesse modelo.
A identidade grega pode, ento, ser definida pela educao e no pelo
nascimento. A paideia foi um elemento crucial para a prpria imagem das elites urbanas
no Imprio Romano do Oriente, mesmo onde a maioria da populao no fosse
etnicamente grega42
.
A identidade cultural diferente da identidade tnica e est ligada, no caso da
identidade cultural grega, a uma manipulao da linguagem para servir aos interesses do
falante ou escritor. No apenas um propsito esttico; a autoapresentao literria, na
Grcia romana, um aspecto crucial da competio estrutural da elite. No Egito da
Antiguidade Tardia, para escrever em grego era necessrio conhecer a tradio clssica,
41
Goldhill (2001: 18). 42
Van Nijf (2001: 317).
-
19
sendo um poeta, um orador ou um filsofo versado no legado helnico, um agonista
contra a tradio43
.
nesse contexto cultural que Nono de Panpolis compe as Dionisacas.
Apoiado no passado, o poeta se baseia na tradio cultural grega que forma a identidade
do Imprio Romano do Oriente e compe o maior poema pico em lngua grega.
Nono de Panpolis
Um Egito pertencente ao Imprio Romano Oriental e com o helenismo e o
cristianismo interrelacionados marca o contexto em que Nono compe as Dionisacas, o
poema mais extenso em lngua grega preservado. Com seus 48 cantos e mais de 21000
versos sobre o ciclo de Dioniso, narrada a trajetria do filho de Zeus que ascende ao
Olimpo e se torna um dos doze principais deuses da mitologia grega. A epopeia crist
Parfrase do Evangelho de So Joo44
tambm creditada a Nono.
No sabemos mais de Nono alm de seu nome e cidade de origem. Os
comentadores costumam buscar no poema informaes que apontem a biografia de seu
autor, e assim que esse tpico se desenvolve, a partir de investigaes feitas pelos
analistas sobre o compositor das Dionisacas baseadas no prprio texto, procedimento
biogrfico utilizado por pesquisadores que buscam elementos da vida do poeta atravs
da linguagem e das descries no poema. Accorinti (2016: 23) discute o local de
nascimento e a vida do poeta a partir do promio das Dionisacas, em que Nono
introduz Proteu em Faros45
, Alexandria, atravs de uma meno ao rio Nilo46
. Accorinti
argumenta ainda que os trechos referentes a Tiro47
e a Beirute48
, podem sugerir um
carter viajante do poeta, de acordo com a descrio de detalhes geogrficos das
regies.
Foram preservadas duas tradies de transmisso dos papiros do poema: um, do
sculo VI, que contm os cantos XIV-XVI atribudos a Nono, com referncia cidade
de Panpolis e ao ttulo da obra49
e outro em que o poema foi preservado em sua
43
Withmarsh (2001: 304). 44
A Parfrase objeto de estudo de pesquisadores como Accorinti, Livrea, Agosti, a chamada escola
italiana. 45
Dion. I. 11-5. 46
Dion. XXVI. 238. 47
Dion. XL. 311-26. 48
Dion. XLI. 14-49 e XLIII. 129-32. 49
Berlim P. 10567.
-
20
totalidade e copiado possivelmente em 1280, considerado adespota50
. Essa ltima
verso do poema, sem os crditos, a verso citada no Etymologicum Magnum e em
Eustcio, contemporneos do papiro laurentiano51
. J o lxico bizantino Suda52
e o
editor alemo das Dionisacas, R. Keydell (1936), creditam o poema, e a datao desse,
ao poeta de Panpolis graas a Agtias, que no sculo VI classifica Nono como um
autor moderno53
.
A datao dos poemas de Nono polmica. Diversos elementos nos prprios
textos sugerem a composio no sculo V. Nono teria conhecimento sobre a
composio de Claudiano, um poeta egpcio que teria vivido entre 370 e 404, autor da
Gigantomaquia (aproximadamente 394) e Sobre o Rapto de Proserpina (396 a 402)54
.
A razo para situar Nono aps Claudiano reside no fato do poeta de Panpolis poder ter
emulado a temtica da batalha dos gigantes na obra perdida55
. Outra evidncia est
presente em uma imitao de um epigrama atribudo a Ciro de Panpolis, datado de
aproximadamente 44156
, e que seria anterior s Dionisacas. A diferena entre o verso
de Ciro e de Nono a eliso do pronome acusativo em Ciro, enquanto Nono no o elide,
como pode ser visto:
Em Ciro, l-se:
J em Nono57
:
Agtias, historiador bizantino (532-580 aproximadamente), situa Nono entre os
poetas modernos, o que leva a crer que as Dionisacas e a Parfrase j so conhecidas
do pblico. Accorinti (2016: 30) revela que podem ter sido influenciados pela estilstica
e mtrica de Nono o Encmio a Herclito de Edessa, de 471, de autoria annima, e o
Encmio ao Nobre Tegenes, de 473, o que leva a crer que as Dionisacas teriam sido
compostas entre 450-70 e o poeta teria vivido entre 400-7058
.
A teoria de De la Fuente (2008: 30) afirma que a Parfrase foi escrita sob a
influncia dos debates teolgicos da poca, podendo ser situada entre o Conclio de
feso, em 431, e da Calcednia, em 451, pois o poema apresenta um tratamento da
50
Laurentiano BML Plut. 32.26 (L). 51
De la Fuente (2008: 26). 52
Suda, Lexicon, N. 489.4: , , ,
` . . 53
Agtias . IV 23. 54
Accorinti (2016: 28), Cameron (1970: 11, 15-6), Whitby (1994: 126). 55
Obra perdida a que o epigrama AP. IX 198 pode se referir. 56
AP. IX. 136. 57
Dion. XVI. 321 e XX. 372. 58
Agosti (2016: 656).
-
21
natureza divina de Jesus Cristo e a meno de Maria como me de Deus (59
)60
.
Livrea e Vian61
concordam que os comentrios de Cirilo de Alexandria para o
Evangelho de Joo, em 425-8, serviram como influncias para que Nono escrevesse sua
Parfrase, o que leva De la Fuente a crer que o perodo de composio do poema seria
entre 431 e 440, antes das Dionisacas. Para o pesquisador, os elementos simblicos e
filosficos presentes nas Dionisacas so argumentos de que a obra pertence a Nono,
pois so elementos diferentes de outros poemas cristos como de Gregrio de Nazianzo
ou de Prudncio. Na Parfrase, h a incluso de elementos helnicos de modo a ampliar
a informao original do evangelho, como exegese e alegorias que se cruzam com as
Dionisacas.
Panpolis, onde Nono teria nascido62
, seria um grande polo cultural ao sul de
Alexandria, em um Egito dominado pelo Imprio Romano do Oriente. A cidade teria
sido fonte do mais substancial acervo de papiros com literatura crist e autores
clssicos63
, servindo de base para os numerosos autores do quarto e quinto sculos,
detentores de uma ampla gama de modelos literrios64
. Em um epigrama presente na
Antologia Palatina65
creditado a Nono, o autor admite que, apesar de ser natural de
Panpolis, ativo em Alexandria. Nas Dionisacas, o poeta supe que o poema fora
composto em Alexandria e no em Panpolis66
.
Nono teria nascido em Panpolis. No sculo XIX, Constantino Simnides67
teria
forjado uma falsa biografia para Nono, enquanto Richard Garnett comps O poeta de
Panpolis68
, uma fico histrica sobre o autor das Dionisacas.
O nome Nono69
pode ser de origem oriental ou talvez crist e raramente aparece
antes do sculo IV70
. Para Accorinti (2016: 25), o significado do nome seria uma
59
Nono utiliza o termo trs vezes na Parfrase: II. 9 e 66, XIX. 135, adaptando ao metro. 60
Livrea (1989: 25) defende que a composio da Parfrase foi concluda entre os dois Conclios, ou
seja, entre 432-50. 61
Assim como Accorinti (2016: 31) e Spanoudakis (2014: 19) 62
Agtias, . IV 23: ,
, , `
( )
. 63
Bagnall (1993: 103). 64
Lima (2015: 164). 65
AP. IX. 198. 66
Van Minnen (2016: 69). 67
Constantino Simnides foi um palegrafo grego do sculo XIX. 68
Em O crepsculo dos deuses (1888). 69
Por causa da falta de detalhes sobre a vida pessoal de Nono, h certa confuso acerca do poeta das
Dionisacas e demais homnimos da poca, como o dicono Nono, secretrio no Conclio da Calcednia,
em 451 d. C., Nono, o filho citado por Sinsio em Epistula ad Anastas (42) e Epistula ad Pylaemenes
-
22
alcunha para tio ou av, prxima do italiano moderno. A denominao no era
muito utilizada no Egito da Antiguidade Tardia71
, sendo mais comum na sia Menor e
na Becia72
. Outra possibilidade para a denominao de Nono mencionada no
vocbulo Nonnus no Etymological Dictionary of Latin and the Other Italic
Languages73
, no qual se atesta que o termo significa monge em latim. Isso pode
indicar que esse no seria seu nome e sim seu ttulo dentro da igreja egpcia, pois, na
regio, a expresso equiparada a Santo74
.
Haveria tambm a possibilidade de o poeta ter sua origem na sia Menor, pois,
em sua epopeia, ele demonstra conhecimento de locais e cultura tradicionalmente
orientais e pouco a respeito do Egito75
, suposto local de origem, e uma possvel
procedncia de famlia crist da prpria sia Menor. Entretanto as Dionisacas so um
poema sobre a vida de Dioniso e suas viagens. Nono no faz do Egito uma rota para a
aventura do deus, mas faz uma descrio maior da Assria, Beirute e outras cidades do
Oriente Mdio e da sia Menor, pois tais cenrios foram rotas para que o protagonista
chegasse ndia. Nono teria sido um poeta que viajou, assim como Dioniso. O poema
apresenta relatos mais detalhados de Tiro76
e Beirute do que do prprio Egito. Beirute
celebrada por ser uma colnia romana fundada por Augusto em 14 d. C. e o elogio
feito por seu papel de repositrio das leis romanas77
, o que, segundo Accorinti (2016:
27), pode sugerir uma participao do poeta na escola de leis em Beirute no quinto
sculo.
Nono foi um poeta que dominou a lngua grega, tal qual parte de seu pblico.
Podemos especular que adquiriu uma formao helnica devido a uma educao
oferecida aos egpcios mais abastados78
.
A paideia clssica permanece em Panpolis do sculo III a VI d.C., pois no
havia uma alternativa proposta pelos cristos para a educao. Parte alto clero
(102), Nono, bispo de Edessa que foi eleito snodo de feso e Nono, comentador da obra de Gregrio de
Nazianzo (Wace: 1234). 70
De la Fuente (2008: 26). 71
H 28 ocorrncias de Nono como substantivo prprio masculino no Egito entre 320-600, segundo o
Trismegistos Project. 72
Accorinti (2016: 25). 73
De Vaan (2008: 413). 74
Wace (1999: 1234). 75
Em Dion. IV. 250 . 76
Dion. XL. 319-26. 77
Dion. XLI. 389-98. 78
Essa uma afirmao com base nos estudos sobre cultura e educao de Cribiore (2001) e Cavero
(2008: 191-290).
-
23
justificava a manuteno da paideia clssica como um estgio para a educao crist79
.
A escrita copta, a lngua corrente no Egito, era ensinado nas escolas eclesisticas, mas a
nfase no era na gramtica e sim na cpia de textos epistolares religiosos, diferente do
ensino do grego, focado na gramtica. O latim era a lngua do exrcito, da
administrao e utilizada em contextos jurdicos. Era estudado quase exclusivamente
por quem seguiria por tais profisses80
. O bilinguismo da elite cultural era essencial
para a comunicao, pois oralmente predominava a lngua corrente egpcia e na escrita,
o grego. O copta teve papel fundamental na comunicao da sociedade egpcia da
Antiguidade Tardia, pois ele foi o responsvel por levar aos demais estratos da
sociedade egpcia o conhecimento restrito a um grupo, e para isso, o copta teve papel
fundamental81
.
De modo geral, a educao egpcia, mais especificamente a alfabetizao,
comeava com um profundo treino em grego, sob a tutela do ou tambm
chamado de , com o qual as crianas aprendiam as letras, slabas, palavras,
sentenas simples e aritmtica. Alguns estudantes continuavam seus estudos com o
, aprendendo um grego mais sistemtico e lendo uma maior gama literria,
principalmente poesia, e por fim passavam pela orientao de um , ou , e
o aluno aprendia retrica. A instituio de ensino era o ginsio, cuja entrada era
permitida apenas a um pequeno grupo. Para ingressar, os pais tinham a incumbncia de
provar a linhagem do aluno, que deveria remeter a um antepassado importante. Aos 14
79
Cavero (2008: 211) e Dorival (2000: 426-7). 80
Cavero (2008: 211-2). 81
O Egito possua trs lnguas em uso em seu territrio: o egpcio usual (demtico e copta), o grego e o
latim. Apesar da lngua oficial do imprio ser o latim, ela era a menos usada, ocupando uma posio
marginal (Bagnall, 1993: 231), sendo muitas vezes omitida. A escrita mais usual dos egpcios entre os
sculos VI a.C. e III. d.C. era o demtico, usada principalmente pelos populares. Concomitante ao
demtico, uma nova lngua surgiu no Egito no sculo III e conseguiu bastante popularidade: o copta
(Bagnall, 1993: 238). Uma vez que a nova lngua englobava uma grande proporo do lxico grego,
houve um significativo desenvolvimento da lngua copta, incluindo produo literria, especialmente
comentrios bblicos e outros textos cristos. A lngua foi um dos estgios da escrita egpcia que adotou
os caracteres gregos e adicionou de seis a oito letras oriundas do demtico, sobretudo para marcar sons
no representados no alfabeto grego (Choat, 2009: 344).
O copta no teria sido uma criao artificial de um pequeno grupo, mas um ponto do processo
evolutivo da, j que essa lngua se tornou muito popular em toda extenso do Egito (Bagnall, 1993: 239).
Mais precisamente, a lngua copta falada foi dividida em vrios dialetos, assim como o grego na Grcia,
visto que na regio de Panpolis predominava o copta akhmimico.
Exceto nos grandes centros culturais, como Alexandria, raramente se falaria grego no Egito e sua
principal forma de comunicao se baseava na escrita. De acordo com Bagnall (1993: 240), o demtico
era utilizado por um pequeno grupo de escribas e teve no terceiro sculo uma diminuio da produo
textual. Logo, os egpcios utilizavam uma grafia baseada no grego para documentao. O conhecimento
de grego era essencial a quem quisesse ter acesso cultura contempornea e, apesar da dominao da
Igreja Copta Crist, o helenismo no Egito revisto e no rejeitado (Choat, 2009: 344).
-
24
anos, o garoto poderia se tornar um efebo, cuja tradio retoma Grcia clssica82
.
Panpolis tinha estudantes suficientes para oferecer mais do que apenas a educao
bsica, com a possibilidade de expanso do conhecimento83
.
No que diz respeito cultura literria nos sculos II-V d.C., a cultura helnica
criava novas obras e refinava o cnone do passado, emulando e transformando mitos
consagrados. A sobrevivncia do helenismo no Egito no deve ser confundida com a
manuteno do paganismo, pois a religio era apenas um dos componentes da cultura
helnica. Mesmo com o domnio de Roma sobre o Egito, os clssicos gregos
continuavam a ser copiados84
e Homero era lido e imitado.
Nos quarto e quinto sculos, baseando-se na quantidade de papiros sobreviventes
encontrados na regio, o helenismo estava inserido em diversos estratos da sociedade.
Trata-se de um recorte do legado cultural grego iniciado no sculo II d.C. Por exemplo,
enquanto squilo desapareceu junto com Sfocles da literatura dos egpcios, Pndaro,
Safo e Tecrito se tornaram mais raros. Houve um declnio da quantidade de obras
desses autores durante a educao dos egpcios de elite, enquanto obras de autores como
Dio Crisstomo, Temstio, Filstrato, Himrio, Heliodoro e Libnio apareciam e eram
incorporados literatura de prestgio85
. A literatura foi gradativamente transformada
pela integrao de autores cristos e pelo uso consciente da educao crist. Essa
transformao afetou a forma com que a populao compreendia a cultura
contempornea e o atletismo. Mas o atletismo tradicional, eventos dramticos e
musicais estavam longe de desaparecer. Ademais, muitos de seus aspectos ocorriam
tambm na cultura de circo, itinerante, uma emulao dos festivais pan-helnicos que se
espalhou rapidamente no oriente a partir do quarto sculo86
.
Os poetas, ao fim do quarto sculo e incio do quinto, evocavam deuses clssicos
e heris gregos, alm de um grande escopo de mitos e lendas que se ligavam a eles, e
tais figuras tambm eram evidenciadas em apresentaes artsticas fazendo acusaes
de paganismo. A cultura clssica fazia parte da educao, no somente dos pagos, mas
tambm dos cristos e a aceitao ou a rejeio desse material literrio no estavam
ligadas religio87
.
82
Bagnall (1993: 99-103), Van Minnen (2016 : 58), Cribiore (2001 : 56-7) e Cavero (2008 : 214-5). 83
Cribiore (2001:40-1) e Cavero (2008: 216). 84
Cribiore (2001: 24). 85
Cavero (2008: 197). 86
Cavero (2008: 194). 87
Bagnall (1993: 252).
-
25
Apesar das Dionisacas serem um poema secular de contedo mitolgico, no h
indcios suficientes para crer que o poeta tenha optado por seguir uma religio no
crist88
. plausvel atribuir a Nono outro poema, a Parfrase do Evangelho de So
Joo, verso do Evangelho de Joo disposta em hexmetros dactlicos, importante para
a compreenso da dicotomia cristo/pago presente no perodo.
Versificao em hexmetros dactlicos do quarto evangelho do novo testamento,
a Parfrase do Evangelho de So Joo um poema cristo que acrescenta linguagem
homrica, ressonncias bquicas, linguagem neoplatnica e interpretao alegrica a
uma matria muito diferente da secular89
.
A respeito da autoria da epopeia dionisaca, todos os autores referenciados na
presente pesquisa creditam a obra ao autor de Panpolis. A maior discusso d-se a
respeito da autoria da Parfrase do Evangelho de So Joo. Entretanto, antes do
assunto do poema cristo ser debatido, importante notar a questo da afirmao de
autoria de Nono para as Dionisacas.
A Antologia Palatina90
apresenta dois epigramas relevantes para a atribuio do
poema de Dioniso ao autor de Panpolis. Um deles, AP IX 198, seria uma espcie de
epitfio:
. ,
.
Eu (sou) Nono. Enquanto Panos () minha plis, em Faros
expeli a estirpe dos Gigantes com a lana ressoante.
Outro epigrama, X. 120, poderia ser atribudo a Nono, pois cita os versos 209-10
do canto XLII91
:
92
,
, .
88
Chuvin (1986: 384). 89
Gelzer (1993: 45). 90
Tambm conhecida como Antologia Grega. 91
De Stefani (2016: 674) argumenta que o epigrama pode ser atribudo a um imitador de Nono, uma vez
que a Antologia Palatina credita a autoria do trecho como annima. 92
Na edio de Keydell (1959), ao invs de , est , sem alterar o sentido.
-
26
Toda mulher tem mais paixo do que um homem, mas, envergonhada,
Ela esconde o aguilho do amor, louca para amar tambm.
Sobre o primeiro epigrama, alguns estudiosos consideram que aludiria a outro
poema de Nono que apresentaria a temtica de gigantes e estaria perdido93
. Outros veem
aqui uma referncia ao canto XLVIII das Dionisacas, em que Dioniso combate contra
os gigantes filhos da Terra94
, ou ento extenso colossal do poema. De Stefani, atravs
da anlise feita por Wifstrand (1933: 167-8 apud De Stefani 2016: 672) salienta que a
autoria do trecho pode ser de Nono, mas pode tambm ser atribudo a um primeiro
editor das Dionisacas. Wifstrand defende que, se os versos no so de Nono, poderiam
ser de um profundo conhecedor da composio noniana. interessante notar que o
epigrama cita a ilha de Faros, local tambm descrito no promio do poema como a
morada do autor95
. A ilha fica em Alexandria, local da Biblioteca, e pode indicar que o
poeta teve contato com as obras. Faros representa uma aluso literria s correntes
alexandrinas de composio96
e poderia ser o local de traduo do antigo testamento
para o grego97
, o que contribui para a teoria de que Nono poderia ser cristo.
A Parfrase representa um ponto muito controverso nos estudos nonianos para
se compreender a potica de Nono. As Dionisacas apresentam mgica, astrologia,
teurgia e orfismo, suficientes para crer que o poeta era pago, ao passo que a Parfrase
apresenta um profundo conhecimento teolgico.
H muitas divergncias sobre a autoria dos poemas. H a hiptese de que os
poemas teriam sido compostos por poetas diferentes, ou poderia ter ocorrido uma
converso do paganismo para o cristianismo, ou Nono seria um cristo que comps uma
obra secular98
.
Alguns pesquisadores, como Lesky (1969: 850), postulam que a obra crist de
mesma autoria da secular e sua composio foi posterior s Dionisacas. Isso implicaria
na converso de Nono ao cristianismo, indicando uma tentativa, por parte da tradio
crtica, de distinguir as autorias do poema cristo e do poema mitolgico99
. A teoria de
que Nono foi um poeta pago convertido em algum momento de sua vida ao
93
De la Fuente (2008: 28). 94
Dion. XLVIII.1-89. 95
Dion. I.13-15. 96
Hopkinson (1994: 9-11). 97
Livrea (1989: 32-35). 98
Cavero (2008: 16). 99
De la Fuente (2012: 32).
-
27
cristianismo, para ento escrever a Parfrase, era comum no comeo do sculo XX100
.
Enquanto isso, outros pesquisadores, como Rohde (1960) e Geffcken (1960), acreditam
que as Dionisacas, de caractersticas to pags, s poderiam ter sido redigidas por um
cristo, especulando que o poeta no seria um pago em alguma fase de sua vida. Houve
tambm a corrente que considerava Nono o ultimo poeta pago, como Damiani
(1902). Assim, nos anos 30, Keydell e Bogner propunham que havia em Nono uma
singularidade pag, pois as Dionisacas baseavam-se no contexto do dionisismo tardio e
se combinavam de forma inexplicvel com o cristianismo da Parfrase. Ainda sobre a
teoria de autoria una, h a corrente que cr que, pela diversidade de tamanho e matria,
a Parfrase seria uma obra composta na juventude, enquanto as Dionisacas seriam do
perodo mais maduro, no qual Nono seria um apstata101
. No entanto h outra teoria, de
Sherry (1991), segundo a qual a Parfrase no seria um poema composto pelo mesmo
poeta das Dionisacas, mas sim atribuda a um exmio imitador de sua arte, um Pseudo-
Nono de Panpolis.
A corrente crtica parece concordar que a Parfrase do Evangelho de So Joo
de um certo Nono. Livrea (1987) e di Bernardo (2007) identificam o autor da Parfrase
como Nono, um bispo de Edessa entre 449 e 451102
, mas no respondem se seria o
mesmo autor do poema sobre Dioniso, enquanto Smith (1996) defende a teoria de que
outro Nono, o Abade, a quem atribudo um dos esclios mitolgicos103
, com aluses a
mitos clssicos, sobre a obra de Gregrio de Nazianzo, seria o autor da Parfrase e das
Dionisacas, pois, h muitos paralelos temticos entre o poema de Dioniso e os
Comentrios o que torna plausvel a teoria de uma nica autoria104
.
notvel a falta de consenso dos pesquisadores. A teoria de composio dos
poemas por poetas diferentes, ou que ambas foram compostas por um mesmo autor, mas
durante etapas contraditrias da vida, no so as nicas possibilidades para Nono de
Panpolis.
Em vista da simbiose entre as culturas pag e crist, pesquisadores, como
Shorrock105
, sugerem que a converso do autor para o cristianismo no fim de sua vida
menos atraente de que a simbiose entre as culturas pag e crist, ou seja, o pesquisador
100
Lesky (1969: 850). 101
De la Fuente (2008: 29). 102
Tefanes em I. 91.26-92.5. 103
Pseudo-Nono, ou Nono, o Abade, seria o autor de comentrios aos Sermes 4, 5, 39 e 45 de Gregrio de Nazianzo. 104
Smith (1996: 238). 105
Shorrock (2001: 129).
-
28
defende que o poema cristo foi elaborado antes ou concomitante ao poema sobre
Dioniso. Estas interpretaes esto relacionadas a novas anlises dos aspectos literrios
e religiosos dos textos tardo-antigos. Por exemplo, Vian (1994: 224) considera que as
Dionisacas so um poema desprovido de construo religiosa, pois o interesse do autor
pelos mistrios rficos, eleusianos e dionisacos seria apenas superficial; o poema nem
conteria uma teologia soteriolgica, nem Dioniso agiria como um Cristo Redentor.
Gigli-Picardi (2003: 82) discorda disso e considera que Nono teria cristianizado o mito
de Dioniso, enquanto Livrea (2000: 72-6) aponta para uma interpretao tipolgica das
Dionisacas, afirmando que Nono pode ter criado uma verso de um deus salvador.
-
29
Captulo 2: Dioniso, um Heri pico
As Dionisacas um poema que apresenta uma proposta dualista refletida no
tema mtico da ordem contra o caos. Para que a estrutura funcione e o objetivo de cantar
Dioniso, que o poeta prope, seja cumprido, uma srie de oponentes foi adicionada
obra de maneira que a autoridade de Dioniso seja justificada, ou seja, que os dons e o
culto da divindade sejam aceitos, e o personagem se torne deus e heri.
O deus tem uma dupla misso no mundo: outorgar humanidade seus dons (o
vinho, a dana e os mistrios que aliviaro as dores dos homens) e ser o paladino da
ordem e da justia de Zeus, subjugando os filhos da terra, em especial Derades106:
Dionisacas, XIII. 1-6:
,
,
, 5
,
.
Traduo
Zeus pai enviou ris prodigiosa morada de Reia,
para que ela anunciasse ao recm desperto Dioniso,
de modo que ele conduza para fora da sia a raa dos arrogantes indianos,
desconhecedores da justia, com seu tirso vingador,
ao ceifar o rei Derades, o cornudo filho do rio, 5
106
De la Fuente (2008: 77), com base nos sete primeiros versos do canto XIII.
-
30
atravs da batalha marinha, e ensine todos os povos
as danas sagradas noturnas e o fruto prpuro da juventude.
Dioniso incumbido por Zeus a viajar para o Oriente, conquistar o mundo
atravs de seu dom e levar a ordem e a justia107
para os homens fora do ambiente
helnico108. Contudo, para que sua misso de espalhar a cultura helnica seja concluda
com sucesso, necessrio que Dioniso se torne um heri, enfrentando diversas
situaes e valorosos adversrios que no deixaro seu dever ser cumprido. Em sua
aventura, que parte da Grcia, chega ndia e retorna, Dioniso se defrontar com
situaes inditas e tiranos que no reconhecem sua autoridade divina e rejeitam a
cultura helnica trazida pelo deus. Assim, sua misso civilizatria e justiceira passa a
ser destronar tais reis, libertar os povos sob o jugo de tais dspotas e espalhar o
helenismo por onde passa.
A mitologia dionisaca da literatura arcaica e clssica claramente suporta as
virtudes de piedade e evita a desmedida de seus personagens109
. Nono coleta quase
todos os mitos de vingana divina e adequa ao seu prprio estilo, geralmente alterando-
os apenas para elevar os poderes de Dioniso110. Assim, os principais inimigos do deus
nas Dionisacas (Licurgo, Penteu, Derades e os indianos) apresentam caractersticas
comuns de crueldade e impiedade. Eles so mpios ao negar hospitalidade a Dioniso e
seus dons, e so cruis por ameaarem a dike, defendida pela divindade, e por serem
oriundos da Terra e partidrios do caos111. A impiedade desses personagens exibida ao
107
Justia de Zeus. Peradotto (1975: 61) em sua anlise da obra de Lloyd-Jones, The Justice of Zeus (1971), Los Angeles: University of California Press, conclui que a Justia de Zeus consiste em duas
coisas: a primeira seria algo como a lei natural, uma ordem divinamente apontada do universo, uma
ordem que nem sempre ou nunca aberta anlise humana; e a segunda que consiste em uma lei moral,
uma concesso s criaturas insignificantes de um dia que so os homens, pelo qual Zeus pune, cedo ou
tarde, um homem que produz injustia contra o outro, seja com relao prpria pessoa ou seus
descendentes. 108
Dion. XIII. 1-34. 109
Dioniso um deus misericordioso na medida em que transforma Ambrosia em planta para salv-la da
morte no confronto contra Licurgo nas Dionisacas, pois ela uma das principais Bacantes. Na mitologia
dionisaca anterior epopeia, a negao aos dons do deus uma das principais caractersticas dos
temacos. Essa particularidade emulada por Nono atravs de Licurgo, Derades e Penteu, e
contrastada com as caractersticas piedosas de Dioniso. 110
McGinty (1978: 87). 111
De la Fuente (2008: 131).
-
31
negarem constantemente a natureza divina de Dioniso, como atestado em XXVI. 24 e
XXXIX. 53, em que ele descrito como no deus112.
Licurgo da Arbia
O primeiro temaco a desafiar Dioniso Licurgo, o rei rabe da Trcia. Descrito
em XX. 149 como , descendente de Ares, sua figura representa a negao da
hospitalidade recebida no palcio de Estfilo113. Apesar da ascendncia de Ares, a
genealogia de Licurgo complexa, pois no prprio poema dito que ele filho de
Drianto114 e do prprio Ares115, possuindo, portanto dupla ascendncia. Chuvin
interpreta que a ascendncia de Ares permite a deificao e posterior apoteose de
Licurgo116.
Dioniso o heri que veio de Tebas para a Arbia (Trcia) como smbolo e
agente da civilizao helnica. Ele simboliza o novo e o vivo que surgem em um mundo
de impiedade, pois Licurgo, ao negar a natureza divina de Baco, assassina e esquarteja
quem passar por seu caminho no altar de Zeus. O temaco personifica os aspectos
terrenos do mbito selvagem e brbaro, sendo o oposto de Penteu, um homem que vive
as leis e detentor do poder da cidade117, simbolizando o helnico.
A conquista ocorre dentro do territrio do inimigo, contudo, nesse primeiro
confronto, a primeira tarefa do heri constituda em se retirar da cena mundana e
penetrar no domnio da experincia e da assimilao. Ou seja, o heri oriundo do
mundo cotidiano se aventura numa regio de prodgios sobrenaturais, encontrando
fabulosas foras e obtendo uma vitria decisiva para o estabelecimento de seu culto.
Dioniso se torna um heri contra a ameaa de Licurgo ao utilizar como armas os
atributos de seus ritos, como as Bacantes e os elementos naturais.
Nas Dionisacas, a partir de XX. 149, Licurgo representado como
, o senhor arrogante, que mata indiscriminadamente quem atravessa seu caminho,
tornando-se a anttese de Dioniso e sua misso civilizatria e justiceira. O temaco um
112
Em Dion. XXVI. 24 por Licurgo: ; e Dion. XXXIX. 53 por Derades: ,
. 113
De la Fuente (2008: 132). 114
Dion. XX. 187; XXI. 1, 66, 159. 115
Dion. XXI. 11, 63, 148. 116
Chuvin (1991: 265). 117
Chuvin (1991: 256).
-
32
adversrio poderoso, descrito como sanguinrio (), sem leis () e
matador de homens (), devoto de Ares e prximo de seu pai com relao
carnificina, ao levar a morte a inocentes estrangeiros, cortar suas cabeas e exp-las em
seu palcio. Ele comparado ao mpio Enomau, que adorna sua morada com a cabea
dos pretendentes que perdiam as corridas nas quais o premio era a mo de sua filha
Hipodmia118.
A impiedade de Licurgo era reforada quando ele sacrificava andarilhos como
gado junto ao altar de Zeus ( ). As cabeas das vtimas decoravam as
entradas de seu palcio, enquanto escudos e elmos serviam como trofus de uma nova
vitria e os ps e as mos adornavam os portais, o que fazia a populao da Trcia
sacrificar em nome do temaco, ao invs de Zeus. O desejo de Licurgo era receber
oferendas de modo a se tornar uma divindade. A figura do monstro-tirano recorrente
no poema de Nono, pois, como Tfon nos cantos I-II, o adversrio de Dioniso
acumulador do benefcio geral e ambiciona conquistar e controlar tudo a seu redor.
Entretanto, o ego inflado do tirano uma maldio para ele mesmo e para seu mundo119.
O combate entre Zeus e Tfon representa a contenda primordial e que servir de modelo
para os duelos de Dioniso, refletindo o carter csmico da luta entre dois mundos,
especialmente a paradoxal temtica da ordem e do caos, o celeste e o ctnico. O gigante
o responsvel pelo roubo do raio de Zeus, mas, chamado de Zeus Ilegtimo (
)120, ele demonstra inexperincia na arte de dominar o raio e juntar nuvens,
tornando seus relmpagos fracos e descoordenados121. Nono utiliza o smile do
comportamento do cavalo ante um cocheiro inexperiente para exemplificar o episdio
ocorrido entre o raio e Tfon122. Com um discurso arrogante contra os deuses do
Olimpo, o monstro promete alteraes da ordem presente, com a mistura dos quatro
elementos, a destruio dos quatro ventos, a fuso da noite e do dia e a destituio dos
atributos dos deuses. Com suas propores, a impiedade de Licurgo anloga de
Tfon, pois, assim como o monstro, o temaco um representante da ordem anterior, na
qual so includos Cronos, Gaia, os Tits e os Gigantes123. Comparvel a um episodio de
118
Conferir Epit. II 3-9 da Biblioteca de Apolodoro. 119
Campbell (1989: 26). 120
Dion. I. 295. 121
Dion. I. 294-306. 122
Dion. I. 307-18. 123
De la Fuente (2008: 75).
-
33
inspirao homrica124, Hera envia ris, disfarada de Ares, para alertar Licurgo sobre a
chegada de Dioniso. A deusa motiva o temaco a atacar o deus ao entregar sua arma
caracterstica, a lana125, colocando em dvida a divindade de Dioniso, dizendo que a
descendncia celeste de Baco seria um mito helnico forjado e, portanto, ele no
passaria de um mortal126.
Hera ocupa um papel fundamental no mito de Licurgo, pois ela simboliza a
averso olmpica a Dioniso, enviando um engano ao deus para que ele no v encontrar
seu adversrio munido de armas. A deusa o faz crer que Licurgo hospitaleiro, um bom
anfitrio ( ) e aceitar seu culto127. Entretanto o ardil enviado por
Hera leva Dioniso loucura, tornando o deus uma vtima de seu prprio artifcio128. A
mensageira aconselha o deus a visitar o temaco sem armas129, pois ele no representa
uma ameaa, pedindo apenas para que ele leve seu principal atributo, o vinho, a fim de
oferece-lo a seu anfitrio130. ris, ento, ordena que Dioniso v vestido com uma tnica
no manchada de sangue, acompanhado somente por suas seguidoras, e oferea, alm
do vinho, presentes de visitante para o rei que ir recebe-lo. A embaixada de paz
aconselhada pela mensageira ao deus inspirada na cena homrica em que Fnix, jax
e Odisseu vo tenda de Aquiles para oferecer presentes e tentar convenc-lo a voltar
guerra, no canto IX. 168-655 da Ilada. Como na cena noniana, os heris homricos vo
ao encontro de seu interlocutor despidos de suas couraas, deixando de lado a guerra,
para negociar a paz entre Aquiles e Agamenon. No poema de Homero, o filho de Peleu
recusa o pedido da embaixada e decide permanecer longe da guerra, ainda irado com o
rei dos Aqueus. J na epopeia de Nono, Dioniso acata o pedido de ris e vai desarmado
at o palcio de Licurgo, com as siringes soando uma amistosa melodia de banquete e as
Bassrides batendo os tambores de Lieu131. Entretanto, de forma oposta ao que fora
prometido ao deus, a recepo do temaco hostil, pois, irritado com o jbilo da
ressoante dana ( ), com os sons das flautas berecintianas
124
Como na Ilada XIV. 293-344. 125
Em cena anloga, tis entrega a Dioniso, por parte de Reia, um escudo forjado por Hefesto, em Dion.
XXV, 300-79. 126
Dion. XX. 206-8. 127
Dion. XX. 263-88. 128
Dion. XXXI. 30-102. 129
Dion. XX. 270-4. 130
Dion. XX. 274-6. 131
Dion. XX. 289-303.
-
34
( ), da siringe ( ) e dos tambores132, com palavras
ofensivas, ele ameaa a embaixada de Dioniso133, dizendo que o presente de
hospitalidade devido seriam seus ps, mos, tirsos e at mesmo a cabea para decorar o
palcio134.
Histrias de resistncias acontecem mais com Dioniso do que outras divindades.
Outros deuses podem ocasionalmente ser insultados, repelidos ou abusados, mas no
tanto quanto Baco135. Ademais, na maior parte dos mitos de resistncia ocorre em
decorrncia da negao do culto dionisaco e dos dons de Dioniso, em especial a
loucura. Para McGinty (1978: 89), h uma relao entre os cultos extticos e a realidade
socioeconmica. A possesso, mania, representa uma estratgia agressiva para um
grupo socialmente marginal, que, atravs da loucura, pode romper as barreiras
tradicionais e mergulhar em uma experincia e privilgios anteriormente negados a eles.
Assim, para o pesquisador, a rejeio a Dioniso simboliza uma relutncia contra os
efeitos causados pelos seus dons, em especial o vinho. Derades, como Licurgo, vai
condenar os dons do deus. O vinho o instrumento utilizado por Dioniso para
transformar a gua do rio Hidaspes e causa a derrota do exrcito indiano por
embriaguez. A loucura dos mistrios dionisacos tambm condenada por Derades e
ser censurada em Tebas por Penteu.
O episdio narrado por Nono uma parfrase da passagem homrica, uma
imitatio cum variatione em 31 versos de algo referido anteriormente, em Homero, em
11.
Homero Ilada VI. 130-40:
130
,
132
Dion. XX. 304-10. 133
Dion. XX. 311-24. 134
Dion. XX. 312-3. 135
McGinty (1978: 89).
-
35
135
,
.
,
, 140
Traduo:
Pois nem o poderoso Licurgo, filho de Drianto 130
viveu muito, ele que rivalizou com os deuses celestes.
Ele que uma vez ps em fuga as nutrizes do furioso Dioniso
sob a sagrada Nisa; elas que abandonaram no cho os tirsos136
todas ao mesmo tempo por causa do assassino Licurgo
portador do aguilho destruidor; tendo fugido, Dioniso 135
mergulhou no mar sob uma onda e Ttis o acolheu em seu seio,
ele que estava aterrorizado. Pois o poderoso tremor se apossou dele
na ameaa do homem. E a ele os deuses que vivem com facilidade odiaram,
e o filho de Cronos o tornou cego; nem viveu muito,
visto que foi odiado por todos os deuses imortais. 140
Em Homero, as Bacantes abandonam somente os de Dioniso em sua
posse, enquanto nas Dionisacas, so os instrumentos do culto dionisaco que as
136
A palavra grega e seu significado : instrumental do culto dionisaco. Foi escolhida a palavra
tirsos, pois um dos principais instrumentos de Dioniso e utilizada pela traduo consagrada de Carlos
Alberto Nunes.
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=qu%2Fsqla&la=greek&can=qu%2Fsqla0&prior=pa=sai
-
36
seguidoras abandonam, temendo por sua vida, nos versos 325-32: , ,
, , e 137, enquanto Licurgo as acerta com seu agudo
aguilho138 e as persegue at uma colina139. O temaco ento, portando sua couraa de
bronze e a afiada lana140, ataca Dioniso desarmado e obriga o deus a fugir para o
mar141, aps Hera ressoar os troves no cu142. Como no episdio homrico, o deus foge
para o mar e acolhido por Ttis e Nereu, que oferecem boa hospitalidade, ao contrrio
de Licurgo. As divindades marinhas representam as figuras protetoras que o heri
encontra em seu caminho e o protegem das foras contra as quais ir se deparar. Dioniso
pode ter sido retratado como juvenil no poema homrico, pois apresenta um cortejo de
nutrizes () e quando escapa para o mar ao fugir do temaco acolhido pela
figura maternal de Ttis143.
Com a fuga de Dioniso, Licurgo concentra seu ataque nas Bacantes que
permanecem em terra. Uma delas, Ambrosia, raivosa () e encorajada por Zeus144,
enfrenta temaco145. Contudo ela sofre um contra ataque e, desarmada, salva da
morte ao transformar-se em uma videira146, outro elemento do culto dionisaco. A
imortalizao de Ambrosia uma recompensa agraciada pelo deus por sua
demonstrao de coragem e por ser sua seguidora. Dioniso pode inspirar coragem, fora
e alegria, tornando suas seguidoras invencveis147. Quando a relao divino-humana
boa, como no caso de Ambrosia, que defende Dioniso do ataque de Licurgo, h a divina
gratificao, podendo o humano ser salvo, agraciado ou imortalizado. Entretanto,
quando a relao no saudvel, ou seja, quando h a rejeio do deus por parte do
mortal, h a punio divina e a vingana do deus executada por meio da natureza geral
do culto: os atributos viram arma contra a impiedade148.
137
De la Fuente (2008: 136). 138
Dion. 325-6. 139
Dion. XX. 325-42. 140
Dion. XX. 344-5. 141
Dion. XX. 344-54. 142
Segundo De la Fuente (2008: 136), essa uma inovao que tem como inspirao Apolnio de Rodes
IV 510. Lind (1940: 141) afirma ser inusitado Hera manusear os raios e troves, pois apenas Zeus e
Atena, com a permisso de seu pai, podem faz-lo, o que descaracterizaria o principal atributo do pai dos
deuses. 143
McGinty (1978: 85). 144
Dion. XXI. 3-4. 145
Dion. XXI. 1-10. 146
Ambrosia imortalizada ao ser transformada em uma planta para escapar de seu agressor, como Dafne
transformada em loureiro em II. 108. 147
Newbold (2001: 184). 148
McGinty (1978: 84).
-
37
De acordo com Cavero (2014: 187), Dioniso deve se estabelecer como um deus
na terra de modo a ser aceito no Olimpo. Ele necessita de sua esfera particular de poder
e atributos caractersticos, como as divindades previamente estabelecidas. A tcnica
utilizada para apresentar o deus como centro do rito e adorao do vinho a narrativa
explanatria de como personagens que encontraram Dioniso so metamorfoseados para
instrumentais do culto bquicos, podendo implicar que h uma pessoa que foi
transformada ao entrar em contato com o deus.
Ambrosia, agora transformada em planta, segura Licurgo pelo pescoo enquanto
as outras Bacantes atacam o temaco indefeso. Como em uma aristeia homrica149, as
nove Bacantes, Polixo, Cleite, Gigarto, Fleio, Erife, Fasileia, Teope, Bromie e Cisseis,
se unem para confrontar o adversrio. Os eptetos das nutrizes, para Cleite
(de cabelos soltos), para Gigarto (folha de uva), para Fleio
(delirante), para Erife (companheira de Eirafiotes),
para Fasileia (lder do coro), para Teope
(nutriz de Lieu), para Bromie (homnima de Brmio) e
para Cisseis (cachos de uva), evidenciam o carter do culto dionisaco como
arma ante o inimigo, uma vez que Nono representa as nutrizes de Dioniso, as Bacantes,
como instrumentos blicos, sendo que parte delas utilizam como armas elementos
naturais ligados flora, principalmente galhos e espinhos. Lind (1940: 150) cr que os
nomes das seguidoras do deus foram inventados pelo poeta, mas algumas so
conhecidas em outras narrativas, como Ambrosia, Fasileia e Polixo, que so nomes de
Hiades150. A metamorfose uma forma de salvao concedida por Dioniso, se tornando
uma prolongao da vida e a permanncia em outra matria um modo de
sobrevivncia aps a morte151.
As transformaes so uma caracterstica inserida por Nono na epopeia para
Dioniso provar-se como um deus152. As Dionisacas esto repletas de nomina
significantia. Diversos personagens que a divindade encontra em sua jornada tem nome
ligado esfera dionisaca ou so metamorfoseadas em instrumentos de culto. Segundo
149
De la Fuente (2008: 137). 150
De la Fuente (2008: 137) afirma que a principal fonte para as seguidoras de Dioniso Higino, nas
Fabulas 182 e 192. 151
Cavero (2014: 188). 152
Dion. XIII. 21-34.
-
38
Cavero (2014: 180-91), na descrio do catlogo das tropas de Dioniso153, as Bacantes e
as ninfas se mantm annimas, sendo identificadas apenas pelo local de origem ou onde
vivem154. As Bassrides tm seus nomes relacionados vegetao e ao vinho, atestando
o poder de Dioniso sobre a natureza155. A tropa de stiros nomeada, como o catlogo
de nereidas na Ilada156 e na Teogonia157.
Os ciclopes e as coribantes so participantes da batalha contra os indianos158.
Atravs de seus nomes, eles contribuem para a imagem de poder ou fora de Dioniso.
De acordo com Gigli-Piccardi (1985: 140), o nome aparece como a personificao de
uma ideia ou de uma imagem de uma certa personagem ou uma qualidade que
representa (nomina significantia). Argilipos (), Esteropes () e
Brontes () so encarnaes do raio, relmpago e trovo; Traquio (),
Elatreu () e Euralo () contribuem em trs tipos de combate: pedra,
rvore incendiria, e perseguio martima; Primneu () representa o vento
favorvel que sopra popa, Ocitoo () contribui com o passo largo, Mimas
() luta no rito da dana prrica marcial, em que Prrico () foi a
personificao da dana marcial; Melisseu () segura sua arma como um
ferro de abelha, e Acmon demonstra maestria na bigorna ()159.
No somente a corte de Dioniso que tem seu nome ligado a elementos naturais.
As metamorfoses dos seguidores de Baco em elementos diferentes relacionados vinha
e ao vinho enaltecem a imagem divina do deus. Ampelo () a vinha160; Cissos
(), a hera161; Clamo (), o junco; Carpo (), o fruto162; Mete
(M), a embriaguez; Estfile () e Estfilo (), os cachos de uvas;
Botris (), a uva; Pito (), o jarro de vinho163. Os nomes atribudos a Dioniso
tambm so carregados de nomina significantia, contudo no representam elementos
naturais ou de culto, mas ajudam a reforar o carter heroico que o deus assume nas
153
Dion. XIII. 53 XIV. 227. 154
Dion. XIV. 203-12 e XXIX. 225-90. 155
Dion. XIV. 219-29. 156
Il. XVIII. 38-48. 157
Teog. 240-64. 158
Dion. XXVIII. 172-330. 159
Dion. XXVIII. 172-311. 160
Dion. X. 175. 161
Dion. X. 199-430. 162
Dion. XI. 351-481. 163
Dion. XVIII. 5-30 ; XVIII. 327-XX. 141.
-
39
Dionisacas. Ele chamado muitas vezes de Brmio (), o estrondoso, e Lieu
(), o libertador.
Enquanto Licurgo era aoitado pelas Bacantes, as mulheres de Nisa se
comportavam como animais e assassinavam suas crianas. A hiptese de Lind (1940:
155) que Dioniso, como punio, envia a loucura aos mortais. Entretanto um dos
temas da poesia a ordem versus o caos, e a loucura nas mulheres acontece exatamente
por causa da ausncia do deus, com Licurgo simbolizando o caos que afasta a ordem,
uma vez que Dioniso fugiu para o mar. Mas a boa ordem ser restaurada com a derrota
de Licurgo.
Aps a priso do temaco, h o julgamento divino. Zeus, Poseidon, Reia, Gaia,
Nereu, Dioniso e Ares aparecem a Licurgo, mas ele se recusa a pedir clemncia ao pai
dos deuses e comete nova impiedade ao ordenar que os elementos relacionados a Baco
sejam queimados. Licurgo , ento, derrotado pelos componentes dionisacos,
instrumentos do rito e ligados aos dons divinos de Dioniso, como elementos naturais
relacionados ao vinho, mas salvo da morte, devido a sua relao com Hera e Ares,
sendo posteriormente adorado como uma divindade pelos rabes164
. Para Chuvin (1991:
265), a apoteose de Licurgo s possvel por sua filiao com Ares, uma vez que o
rabe possui a espada do deus. Assim, o objetivo do temaco em receber oferendas nos
altares cumprido e, diferente de Dioniso, cujos sacrifcios incluem o mel, o deus rabe
recebe libaes de sangue165. Todavia a impiedade do adversrio de Baco no fica
impune e Licurgo recebe a punio de Zeus ao ser cegado166, tal qual a verso homrica.
Dessa forma, Licurgo ter de vagar em sua cidade, agora irreconhecvel para si, ou fazer
desconhecidas viagens167.
O temaco odiado por todo o panteo por atacar um deus, pois Dioniso tem
prognie olmpica e no deve ser oprimido. Os mitos de vingana divina apresentam um
Dioniso equiparvel a outras divindades do panteo helnico. O excesso dionisaco
uma resposta traio ou ao ataque, no necessariamente um atributo do deus168
. O
fechamento do episdio de Licurgo na verso homrica um pouco diferente. O
temaco cego por Zeus, como nas Dionisacas, mas no deificado e, portanto, morre
164
Chuvin (1991: 255) 165
Dion. XXI. 158-61. 166
Dion. XXI. 166. 167
Dion. XXI. 162-9. 168
McGinty (1978: 88).
-
40
pouco tempo depois. A verso de Nono tambm poderia sugerir que ele tivesse
definhado com o tempo, mas explicita a deificao de Licurgo, salvando-o.
O episdio encerrado com a oposio ordem e caos refletida na figura
helenizada de Licurgo, uma divindade rabe169
. O final duplo, com a cegueira do
temaco, clara recepo homrica no poema170, representa a punio sofrida decorrida
da impiedade praticada, ao passo que a divinizao reflete sua redeno.
O mito do mortal que ofende os deuses e punido por sua imprudncia ocupa
uma proeminente posio na tradio religiosa grega. Quase todas as divindades j
sofreram algum tipo de ultraje e o modo pelo qual elas se vingam um componente
significante na definio de sua natureza. Esses mitos representam modelos negativos
de aes humanas contra deuses, como os excessos dos temacos e a impiedade
praticada, tornando os mortais viles e justificando a violncia do culto.
Derades da ndia
J durante o trecho da Guerra da ndia, a Indada, que compreende os cantos
XIII a XL, Nono apresenta Derades, o segundo temaco a desafiar Dioniso. Ele o rei
dos indianos e, junto ao seu povo, ama a guerra e no aceita o culto de Dioniso171.
Derades considerado filho da Terra, pois sua genealogia remete s divindades pr-
olimpicas172. Seu pai o rio Hidaspes, filho de Taumas, cuja me Gaia. A genitora do
temaco Astris, filha de Hlio, neto de Gaia173
. Nono explicita que Hidaspes contm
genuinamente o sangue tit ( ), inserindo-o em p
de igualdade com os demais filhos de Gaia. O contraste genealgico entre Derades e
Dioniso um dos temas que Nono ir abordar durante a Indada para caracterizar a
impiedade do adversrio do deus, uma vez que um filho da Terra e o outro tem
ascendncia olmpica.
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Chuvin (1991:264-5) e De la Fuente (2008: 137) associam Licurgo divindade rabe Shay Al-Qaum, que poderia ser o deus da guerra e dos nmades na regio da Trcia. Chuvin ainda revela uma possvel
ligao de Licurgo com a Nisa da Trcia baseado nas descries feitas por Nono no episdio, como pode
ser visto em: Dion. XX. 146-8; XXI. 102, 109-35 e 362. 170
Il.VI. 139. 171
De la Fuente (2008: 139). 172
Dion. XXVI. 350-65. 173
Derades filho de Hidaspes e Astris. Hidaspes irmo de ris, a mensageira do Olimpo, e ambos so
filhos de Taumas e Electra. Gaia e Pontos so os progenitores de Taumas (Teogonia, 237), enquanto
Oceano e Ttis so os pais de Electra (Teogonia, 265). Astris filha de Hlio e Ceto. Hiprion e Teia so
os antecessores de Hlio (Teogonia, 371) e descendentes de Gaia e Urano (Teogonia, 132). Ceto filha
de Oceano (Teogonia, 133), cuja origem tambm remete a Gaia e Urano.
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Para entender o comportamento de Dioniso no trecho, necessrio coloca-lo em
uma hierarquia csmica. Ele ainda um semideus, filho de um deus e de uma mortal,
mas seu poder muito maior do que qualquer adversrio humano. Dioniso invencvel
( em XXV. 74) na terra, mas inibido por foras que o dominam174, pois, nas
Dionisacas, a ordem csmica tripartite e definida atravs do equilbrio entre Eon, o
eterno e cclico Tempo175, Zeus e Hera176. nesse paradoxo que Nono constri sua
Indada e as aes do deus so desenhadas para formar um c
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