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A mulher IDEAL
ensaio ilustrado de
W. J. Solha
Nelson Gonçalves e Adelino Moreira lançaram em 58 o
samba-canção Escultura, em que o boêmio – cansado de tanto amar – começa a...
esculturar... uma mulher... diferente, que chega à perfeição, contando, para isso,
com a voz de Dulcineia, a malícia de Frineia
, a pureza de Maria, mais o
sorriso e o olhar de Gioconda e, de Du Barry,
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o glamour. Além do porte de nobreza...
de Madame Pompadour.
O resultado deve ter sido mais ou menos isto, isto,
ou... isto: . Conta-se que
o escultor Pigmalião, cansado das cortesãs do Chipre, isolara-se e esculpiu o que
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seria sua mulher ideal, toda beleza e pudor,
apaixonando-se tanto por ela, assim que a viu pronta, que Afrodite a tornou viva.
Em 1913, Bernard Shaw publicou um texto teatral de grande sucesso,
, que logo virou um musical, e o musical – em 64 - um filme de George
Cukor , em que – como quis o dramaturgo - trans-
portou-se a lenda grega para a Londres de seu tempo, o escultor passando a ser
um refinado fonoaudiólogo e a pedra bruta uma florista de vocabulário e modos
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terríveis , donde uma aposta - dele, com um
amigo -, de que – em seis meses – trans-
formaria aquele desastre numa dama da alta sociedade, o que, é claro, consegue.
Já em 2002, Andrew Niccol escreveu, produziu e dirigiu este filme,
em que um diretor de cinema, interpretado por Al Pa-
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cino , cuja carreira vai mal, se desespera ao ver a estrela de sua
próxima tentativa de finalmente recuperar o prestígio, rescindir o contrato e se
mandar, pelo que arrisca uma saída louca: cria, em computador, a atriz de seus
sonhos, a que dá o nome de Simone - derivado de um avançado programa - Simu-
lation One – de que só ele tem conhecimento.
É extraordinário como o trecho que transcrevo abaixo,
do roteiro, nos remete diretamente ao Escultura do Nelson Gonçalves, ao Pigmali-
ão de Chipre e ao My Fair Lady:
- Simone has the voice of a young Jane Fonda, the
body of Sophia Loren, the grace of, well,
Grace Kelly-- and the face of Audrey Hepburn com-
bined with an angel.' (Simone tem a voz de Jane Fonda jovem, o
corpo de Sophia Loren, a graça, bem, de Grace Kelly – o rosto de
Audrey Hepburn, combinado com o de um anjo).
É importante lembrar que tais ingredientes da perfeição feminina também chega-
vam aos meninos, e me remetem a uma personagem de histórias em quadrinhos,
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irmã do Capitão Marvel, marcante na minha infância. Criada em de-
zembro de 42, Mary Batson gritava SHAZAM! – palavra mágica composta do S
de Selene (vigor), H de Hipólita (força), A de
Ariadne ( coragem), Z de Zéfiro ( voo ), A de
Aurora ( beleza ), M de Minerva ( Sabedoria ) – e aí caía um
raio , transformando-a em Mary Marvel, ela já com os dons de todas essas
entidades, embora suas feições originais, na verdade, fossem as de
Judy Garland,
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em grande evidência junto às crianças, na época, por causa do sucesso estrondoso
do Mágico de Oz, lançado três anos antes.
As atrizes de Hollywood, aliás, se tornariam modelos pra milhões de outras mulhe-
res. Quantas adotaram as sobrancelhas a lápis de Marlene Dietrich
, o corte e penteado de Louise Brooks , a
cintura de Lolobrigida, o louro platinado de Jean Har-
low! A própria Audrey Hepburn não seria modelo apenas de S1MØNE. A célebre
soprano Maria Callas chegaria a perder 30 kg - esculpiu-se - , apaixonada pelos
movimentos de cisne, da atriz. No seu site oficial, lê-se que
taking the sublime Audrey Hepburn as her model, in fact, came to be known as one of the most fashionable and
fascinating women in the world. ( tomando a sublime Audrey Hepburn por modelo, veio a ser tida como
uma das mais elegantes e fascinantes mulheres do mundo).
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Afinal, em que consiste a beleza?
- Em perfeição, ausência de erro, diz o biólogo evolucionista Armand
Marie Leroi.
Mas a mulher ideal é mais que isso. Veja bem: o samba-canção Escultura é de 58.
Em 59, Vinicius de Moraes também passa ao país a sua Receita de Mulher.
- As muito feias que me perdoem
mas beleza é fundamental. É preciso
que haja qualquer coisa de flor em tudo isso,
qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture em tudo isso (ou en-
tão
que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na Repú-
blica Popular Chinesa).
Mais ainda:
- Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os
olhos
ao abri-los ela não mais estará presente
com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
e que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
o fel da dúvida.
- e que exale sempre o impossível perfume; e destile sempre
o embriagante mel.
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Confirma-se o bíblico Cântico dos Cânticos, em que o rei poeta assim descreve sua
amada:
- Eis que és formosa, meu amor, eis que és formosa;
Teus dentes são como o rebanho das ovelhas tosquiadas, que sobem do lavadouro,
e das quais todas produzem gêmeos;
Teus seios são como dois filhos – também gêmeos - da gazela, que se
apascentam entre os lírios.
Tu és toda formosa, meu amor, e em ti não há mancha.
Que belos são os teus amores, minha irmã, esposa minha! Quanto melhor é o teu
amor do que o vinho ! E o aroma dos teus unguentos do que o de todas
as especiarias!Favos de mel manam dos teus lábios , minha esposa!
Mel e leite estão debaixo da tua língua, e o cheiro dos teus vestidos é
como o cheiro do Líbano.
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Jardim fechado és tu, minha irmã, esposa minha, manancial
fechado, fonte selada,
fonte dos jardins, poço das águas vivas!
Neste livro, o poeta clássico romano diz:
- O que na verdade embeleza a mulher é a virtude.
Daí “a pureza de Maria”, do nosso samba-canção. Mas... e a malícia de Frineia?
Neruda:
- Um homem só encontra a mulher ideal quando olhar no seu rosto e ver um anjo e, tendo-a nos braços, ter as tentações que só os demônios provocam...
Já para o primeiro autor cristão a escrever em latim, Tertuliano,
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- ...a mulher que se maquila quer mascarar defeitos físicos e se
tornar atraente para o marido e, pior, para os estranhos,
o que enfurece Hamlet contra Ofélia.
- I have heard of your paintings too, well
enough. God has given you one face and you make yourselves another. ( Ouvi falar
de suas pinturas, também. Deus lhes deu um rosto e vocês fazem outros ).
- If thou wilt needs marry, marry a fool, for
wise men know well enough what monsters you make of them. ( Se precisa mesmo
casar, case com um imbecil, porque os espertos sabem muito bem que monstros
vocês fazem deles.)
Freud explica.
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- Hamlet é capaz de qualquer coisa, menos vingar-se do homem que
eliminou seu pai e tomou o lugar dele junto a sua mãe, o homem que lhe mostra os
desejos recalcados de sua própria infância realizados.
Sim, vê-se que, pra Freud, a... mulher ideal nada tem de Judy Garland, Maria Vir-
gem, nem Du Barry, Gioconda, Frineia ou Audrey Hepburn.
- É destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual
para nossa mãe.
Jung – discípulo, depois dissidente dele – diz que toda mulher tem seu Animus,
todo homem sua Anima, mas acaba afirmando a mesma coisa que o mestre:
- Todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem são per-
sonificadas por sua Anima, cujo caráter é, em geral, determinado por sua
mãe.
- É a presença da Anima que faz um homem apaixonar-se subitamente, ao
avistar pela primeira vez uma mulher, sentindo de imediato que é “ela”. Sente-se co-
mo se já a conhecesse a vida inteira.
Bem, a quem interessar possa, aí estão as mães de Freud e de Jung
. Quando eu tinha mais ou menos a idade em que apareço na foto
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abaixo, com meus pais, frequentei um analista, que me diagnosticou um complexo
de édipo mal resolvido. “Vi” meu pai, “vi” muito bem minha
mãe... e disse, rindo: Não.
Bem, o tempo passa, as mulheres mudam.
Mudam, principalmente porque, dois anos depois do
lançamento do samba-canção Escultura, um depois da criação do poema Receita de
Mulher , surgiu um fato novo, que iria desvincular a malícia de Frineia da pureza
de Maria: foi colocada no mercado, em 60, a pílula anticoncepcional, desenvolvida
pelo cientista americano Gregory Pincus, que teve a plena massificação de
seu uso apenas no fim da década, com os movimentos estudantis,
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contribuindo decisivamente para a emancipação fe-
minina. A Beleza Tá na Rua!, proclamou-se.
Separara-se o sexo da procriação, e a mulher passou, pela primeira vez, a decidir
se queria ter filhos. Era a chamada Revolução Sexual. Com isso, a taxa de natali-
dade, que em 60 era 6,3 filhos por mulher, 50 anos depois se reduziu a 1,8. Os ca-
sais não estavam, mais, se repondo. E há uma diferença muito grande entre a Ma-
ria na Anunciação e a Barbarella de Jane Fon-
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da, no filme de 68. E que tal Alcione cantando Mulher
Ideal?
- Eu sou aquilo que sou, e se quiser me mudar
Você vai se arrepender, pois foi assim que gostou
Foi desse jeito que amou, além do bem e do mal
Sou a mulher ideal
E vêm aí mais mudanças:
Segundo o , em 2035 o número de habitantes do continente
europeu atingirá o pico de 521 milhões, e começará a cair. No Brasil isso se dará
mais lentamente, conforme o , que prevê para 2038 o ano em
que começaremos a ter cada vez menos gente, o que significa que, finalmente, à
custa de muita poluição,
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chegaremos ao cumprimento
do Gênesis 1.28, quando seu delirante autor ficcionou a cena de um Criador dizen-
do ao primeiro casal: - Crescei e multiplicai-vos,
enchei a Terra e sujeitai-a, dominai sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu
e sobre todos os animais que se movem na terra.
Bem, nesse meio tempo, trabalhei muito. Com estas geringonças,
quando entrei no BB em 62, fazendo eu
mesmo os balancetes diários e o balanço anual de minha agência, terminando a
carreira, em 90, vendo a contabilidade da minha e de outras 350 agências desta
região totalmente transferida para os computadores do
Recife, o desenvolvimento da tecnologia acompanhando o aumento do número de
clientes, de 6 milhões para 30 milhões, em poucos anos, com ainda maior cresci-
mento do número de suas operações.
Acaso?
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- Deus dá o frio / conforme o cobertor.
Enquanto isso, a mulher já não era, mais, complemento do homem. Ideal? Pra
quem? O autor do Gênesis não faria, hoje, o Jeová dizer Não é bom que o homem
fique só. Nem Drummond diria esta que, hoje, é uma pomposa bobagem:
- Os homens distinguem-se pelo que fazem; as mulheres, pelo que
levam os homens a fazer.
O que se viu, no decorrer da História, foi brilharem figuras excepcionais, tipo Hi-
pácia, Madame Curie, Guiomar Novaes, Clarice Lispector, Virginia Wolf, Nise da
Silveira, Leni Riefensthal, Pina Bausch... como exceções entre as mulheres, cujas
vidas, em sua absoluta maioria, tinham de ser – por força do próprio corpo - to-
talmente dedicadas aos maridos e às pencas de filhos, tribos de netos. Mas o que se
verá agora, será algo como isto:
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Crescei e multiplicai-vos.
E por falar em Martha Argerich, termino lembrando que, quando esta senhora...
... disse que uma mulher poderia ser
uma grande pianista, mas jamais um Mozart, porque gênio exige uma agressivida-
de que ela não tem, eu me perguntei: Não?!!!
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