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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO –
CURSOS DE MESTRADO E DOUTORADO
MARISTELA SILVA DE MORAIS
A PERSPECTIVA DIALÓGICA DA EDUCAÇÃO
NA PROPOSTA CURRICULAR DA EJA
NA REDE MUNICIPAL DO RECIFE
RECIFE/ 2013
1
MARISTELA SILVA DE MORAIS
A PERSPECTIVA DIALÓGICA DA EDUCAÇÃO
NA PROPOSTA CURRICULAR DA EJA
NA REDE MUNICIPAL DO RECIFE
Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Educação, pela Universidade
Federal de Pernambuco.
Área de Conhecimento: Teoria e História da Educação.
Orientador: Profº Dr. José Luís Simões
RECIFE/ 2013
Catalogação na fonte
Bibliotecária Katia Tavares, CRB-4/1431
M827p Morais, Maristela Silva de .
A perspectiva dialógica da educação na proposta curricular da EJA
na rede municipal do Recife / Maristela Silva de Morais. – Recife: O
autor, 2013.
154 f.: il. ; 30 cm.
Orientadora: José Luís Simões.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco,
CE. Programa de Pós-graduação em Educação, 2013.
Inclui Referências e Anexos.
1. Educação - Currículo. 2. Educação - EJA. 3. Freire, Paulo. 4.
UFPE - Pós-graduação. I. Simões, José Luís. II. Título.
375 CDD (22. ed.) UFPE (CE2013-29)
2
MARISTELA SILVA DE MORAIS
A PERSPECTIVA DIALÓGICA DA EDUCAÇÃO
NA PROPOSTA CURRICULAR DA EJA
NA REDE MUNICIPAL DO RECIFE
Dissertação de Mestrado defendida e APROVADA em 22 / 03 / 2013, como requisito
Parcial à obtenção do título de Mestre em Educação, pela Universidade Federal de
Pernambuco.
Comissão Examinadora
_________________________________________________
Prof. Dr. José Luís Simões - UFPE
1º Examinador/Presidente
____________________________________________________
Prof. Dr. Junot Cornélio Matos- UFPE
2º Examinador
____________________________________________________
Prof. Dr. André Gustavo Ferreira da Silva - UFPE
3º Examinador
3
“Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense
errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições
necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas
certezas. Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e
necessariamente distante do puritanismo, rigorosamente ético e
gerador de boniteza, me parece inconciliável com a desvergonha da
arrogância de quem se acha cheia ou cheio de si mesmo”.
(Paulo Freire – Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática
educativa, 1996).
4
A todos que lutam pela educação com a consciência e o compromisso
de ensinar a ler e escrever, não apenas as palavras do mundo letrado,
mas aquelas impressas nas relações estabelecidas no convívio social.
5
AGRADECIMENTOS
...Ao Divino Mestre, pela presença constante, fortaleza que me capacitou diante das
inúmeras dificuldades e descrença dos homens.
...A minha linda família, meu esposo Flávio e meus filhos Carlos e Eduarda, pela
espera por minha presença, quando a ausência se fez necessária nos dias e noites diante de
livros e esperanças. Minha irmã e cunhado queridos, Paula e Fabiano, obrigada pelo apoio
sincero e amoroso.
...Ao Profº Drº José Luís Simões pela solidariedade e paciência com as quais me
acolheu em seu grupo de orientandos, possibilitando a concretização de um sonho acalentado
e contribuindo com a causa que abracei de uma educação humanizada e humanizadora. Minha
gratidão e reconhecimento.
...Aos Mestres Especiais, Profª Shalimar Gonçalves, exemplo de superação e
humildade, sua postura docente torna-se estímulo àqueles que desejam “ser mais”, obrigada
por acreditar em minha capacidade como estudante e ser humano; e, ao Profº Drº Junot
Cornélio Matos, pela oportunidade de estar em sua presença, fazendo parte de suas reflexões
ao mesmo tempo em que contribuía com as minhas. O senhor me ensinou na prática, a
possibilidade e concretude da relação dialógica educador-educando, incapaz de envaidecer-se
pela sua capacidade intelectual, demonstrou que é possível “pensar certo” na incerteza e não
na confiança de quem “tudo” sabe. A vocês, meus agradecimentos especiais.
...Aos professores da Rede Municipal de Ensino do Recife, pela disponibilidade e
colaboração em suas participações como atores desta pesquisa, em especial as professoras
Maria Lúcia e Priscila Dias.
...Aos amigos, Profº Laudelino e Iranilda Pereira, por sua disponibilidade e
credibilidade, meus agradecimentos sinceros.
A todos e todas fica registrada a minha sincera gratidão.
6
LISTA DE TABELAS
Tabela nº01 – Categorias Teóricas utilizadas para análise.............................................. 97
Tabela nº02 – Identificação dos docentes por sexo....................................................... 117
Tabela nº03 – Identificação dos docentes por faixa etária (período de 10 em 10 anos...... 117
Tabela nº04 – Identificação docente por anos de profissão............................................. 118
Tabela nº05 – Identificação docente por anos na Rede Municipal de Ensino do Recife... 118
Tabela nº06 – Formação inicial dos docentes entrevistados........................................... 119
Tabela nº07 – Formação continuada dos docentes entrevistados................................... 119
Tabela nº08 - Quadro-Síntese das Unidades de Análise dos Documentos....................... 148
7
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
CD/FNDE–Conselho Deliberativo/ Fundo Nacional de desenvolvimento da Educação
CEA – Campanha de Educação de Adultos
CEAA – Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos
CNBB - Conselho Nacional dos Bispos do Brasil
CNER- Campanha Nacional de Educação Rural
DGE- Diretoria Regional de Ensino
EJA - Educação de Jovens e Adultos
FAFIRE – Faculdade Frassinetti do Recife
Fenep – Fundo Nacional de Ensino Primário
FUP - Federação Única dos Petroleiros
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INEP – Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa
IPF- Instituto Paulo Freire
NUPIC – Núcleo de Pesquisas e Iniciação Científica
LDBN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEB – Movimento de Educação de Base
MCP- Movimento de Cultura Popular
MEC - Ministério da Educação
MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização
MOVA – Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos
NSE- Nova Sociologia da Educação
PBA- Programa Brasil Alfabetizado
PC/REC – Proposta Curricular da Rede de Ensino do Recife
PEFEJA- Proposições para o ensino fundamental da Educação de Jovens Pnac - Programa
Nacional de Alfabetização e Cidadania
PPCC/RE – Proposta Pedagógica Construindo Competências da Rede Municipal de Ensino
do Recife
PPPs – Projetos Políticos Pedagógicos
PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
SC – Santa Catarina
SIRENA – Sistema de Rádio Educativo Nacional
Usaid - Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................................ 12
CAPÍTULO 1. A TRAJETÓRIA DOS ESTUDOS SOBRE EJA NA PERSPECTIVA
DIALÓGICA.....................................................................................................
21
1.1 Caminhos de uma Educação para adultos: um breve histórico................................................ 24
1.2 Principais Campanhas para EJA no Brasil................................................................................ 29
1.3 A atualidade da EJA na cidade do Recife.................................................................................. 37
1.4 Marias, Pedros, Severinas,... brancos, negros, índios,... trabalhadores, desempregados,
jovens, idosos,... homens, mulheres...? Afinal, quem são os sujeitos da EJA?....................... 40
CAPÍTULO 2. O CURRÍCULO, SEUS SIGNIFICADOS, DIMENSÕES E REFLEXÕES
SOBRE SEUS CONCEITOS ............................................................................. 44
2.1 O Discurso Curricular na educação........................................................................................... 45
2.2 Teorias Críticas e Pós-Críticas: uma aproximação.................................................................... 48
2.3 O Currículo como instrumento articulador na prática docente.................................................. 55
2.3.1 O Currículo na Educação de Jovens e Adultos....................................................................... 57
CAPÍTULO 3. DIÁLOGO E DIALOGICIDADE EM PAULO FREIRE............................... 60
3.1 O Diálogo como necessidade humana....................................................................................... 63
3.2 Amor, Humildade, Fé, Confiança e Esperança: elementos norteadores do diálogo
libertador..................................................................................................................................
68
3.3 O Ser Humano como histórico-cultural na concretude da sua existência................................. 70
3.4 Educação Bancária e Libertadora: alguns pressupostos ........................................................... 72
3.5 A Problematização, Conscientização e Libertação propostas pela dialogicidade Freireana..... 76
CAPÍTULO 4. O PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PESQUISA.................. 83
4.1 O Currículo na EJA e a pesquisa documental........................................................................ 87
4.2 A Análise do Conteúdo Curricular............................................................................................. 89
CAPÍTULO 5. COMPARTILHAR NARRATIVAS E CONSTRUIR NOVOS
SIGNIFICADOS: POLÍTICA DE ENSINO DA REDE
MUNICIPAL DO RECIFE.......................................................................
95
5.1 Subsídios para a organização curricular: o início do processo.................................................. 98
5.2 A Proposta Curricular e sua perspectiva para a construção de novos significados, em um
mundo de diferentes saberes culturais..................................................................................... 105
9
5.3 O Caráter problematizador da educação e a construção de novos saberes............................... 106
5.4 O movimento dialético da conscientização para a educação humanizadora............................ 111
5.5 O perfil histórico-cultural dos docentes entrevistados..................................................... 115
5.6 A perspectiva docente sobre a EJA, o Currículo e a Educação Dialógica................................ 120
5.6.1 Concepções sobre a Educação de Jovens e Adultos na atualidade....................................... 121
5.6.2 Contribuições e considerações sobre a “Proposta Curricular” para a EJA na Rede
Municipal de Ensino do Recife: uma perspectiva docente................................................... 123
5.6.3 O diálogo como orientação curricular nas escolas da Rede: qual a sua contribuição? ....... 127
5.6.4 A problematização no contexto pedagógico dos docentes..................................................... 129
5.6.5 Conscientização: “compromisso ético que se deve ter com a educação”............................. 132
5.6.6 A construção da autonomia como possibilidade para o exercício da cidadania................... 134
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................... 137
REFERÊNCIAS............................................................................................................................ 144
ANEXOS......................................................................................................................................... 150
10
RESUMO
A Dialogicidade da Educação proposta pelo educador brasileiro, Paulo Freire, está presente
em suas experiências educativas no Brasil e no Mundo. Considerando o diálogo enquanto
elemento basilar da sua pedagogia, procurou demonstrar a importância deste elemento, na
diversidade de relações estabelecidas na sociedade, principalmente aquelas ligadas às
diferenças sociais, as quais, defendendo o caráter político intrínseco a educação, afirma o
diálogo como instrumento essencial a uma sociedade democrática. Este estudo buscou
analisar nas construções curriculares apontadas pela Rede Municipal de Ensino do Recife na
modalidade EJA- Educação de Jovens e Adultos, uma perspectiva dialógica freireana, que
favoreça a prática pedagógica pautada na dialogicidade da educação. Para tanto, identificamos
as concepções de sujeito, sociedade e mundo, além dos fundamentos e princípios filosóficos
que subjazem a proposta, evidenciando as contribuições e limitações da organização
curricular e a compreensão sobre a teoria analisada, com base nos relatos de professores
atuantes nesta rede. Por ser um trabalho exclusivamente teórico, nossas opções teórico-
metodológicas baseia-se na pesquisa bibliográfica dos principais textos escritos pelo autor
sobre esta temática, leitura de documentos, aplicação de questionários e aprofundamento
teórico sobre temáticas relacionadas ao currículo e EJA. Enquanto metodologia para análise
dos dados, utilizamos a Análise do Conteúdo para interpretação dos documentos e entrevistas.
Os resultados demonstram uma conotação diminuta sobre aspectos mais particulares da teoria,
não se constituindo como total afastamento, mas aponta para reflexões pouco aprofundadas
quanto ao seu caráter de orientação a práticas pedagógicas no interior das instituições. Outro
ponto revelado refere-se à aproximação das concepções docentes a este respeito, ou seja, os
educadores e educadoras demonstram uma compreensão favorável à perspectiva dialógica nas
turmas de EJA, embora esta, não esteja enraizada na Proposta. Com isso, confirma-se a
possibilidade do trabalho pedagógico voltado às orientações teóricas atribuídas a
dialogicidade da educação, sendo esta uma prática favorável ao principio democrático
atribuído à orientação curricular da Rede Municipal de Ensino do Recife.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo, EJA, Paulo Freire, Dialogicidade da Educação.
11
ABSTRACT
Dialogicity of Education proposed by the Brazilian philosopher and educator, Paulo Freire, is
present in their educational experiences in Brazil and worldwide. Considering the dialogue as
a basic fact of his pedagogy, sought to demonstrate the importance of this element in the
diversity of relationships within the society, especially those related to social differences,
which, defending the intrinsic political character education, says the dialogue as an essential
tool to a democratic society. This study investigates the constructions curriculum outlined by
the Municipal School of Recife in the form EJA-Youth and Adult Education, a Freirean
dialogical perspective, which promotes the teaching practice based in the dialogical education.
Therefore, we identify the concepts of subject, society and world, beyond the fundamentals
and philosophical principles underlying the proposal, highlighting the contributions and
limitations of curricular organization and understanding of the theory analyzed, based on
reports from teachers working in this network. Being a purely theoretical work, our theoretical
and methodological choices based on the literature of the major texts written by the author on
this topic, read documents, questionnaires and theoretical expertise on issues related to
curriculum and EJA. While methodology for data analysis, we used the Analysis of Content
for interpretation of documents and interviews. The results demonstrate a diminutive
connotation about particular aspects of the theory and do not constitute the total removal, but
points to reflections as little depth to his character-oriented teaching practices within the
institutions. Another revealed concerns the approximation of teachers conceptions in this
regard, ie educators demonstrate an understanding favorable to the dialogical perspective EJA
classes, although this one is not rooted in Motion. Thus, it is confirmed the possibility of
pedagogical work focused on theoretical orientations assigned dialogicity education, which is
a practice conducive to democratic principle attributed to the orientation of the curriculum
Municipal Schools of Recife.
KEYWORDS: Curriculum, EJA, Paulo Freire, Dialogicity Education.
13
O “lugar” da Educação de Jovens e Adultos abarcou, tanto no passado quanto no
presente, um conjunto de relações que se revelam em aspectos formais, e informais dentro de
práticas profissionais, conhecimentos básicos e mesmo no desenvolvimento de habilidades
socioculturais. De acordo com Haddad e Pierro (2000), em seu artigo Escolarização de
Jovens e Adultos na Revista Brasileira de Educação, muitos desses processos se desenvolvem
de modo mais ou menos sistemático fora de ambientes escolares, realizando-se, na família,
nos locais de trabalho, nos espaços de convívio sociocultural e lazer, nas instituições
religiosas e, nos dias atuais, também com o concurso dos meios de informação e comunicação
a distância.
É possível observar que, desde o Brasil Colônia, os interesses acerca da educação
para a população não infantil direcionavam-se somente á população adulta com
“necessidades” de doutrinação, o que acabava por valorizar o caráter religioso em detrimento
do educacional. Nesse sentido, é possível perceber uma fragilidade da educação, naquele
momento, se considerarmos que educar não representava aumento de produtividade, tendo em
vista que esta se dava sobre o aumento do número de escravos, revelando descaso com a
educação. Segundo os autores, “os religiosos exerciam sua ação educativa missionária, em
grande parte, com adultos” (p. 109), pois além de “transmitir o evangelho, transmitiam
normas de comportamento e ensinavam os ofícios necessários ao funcionamento da economia
colonial, inicialmente aos indígenas e, posteriormente, aos escravos negros” e em seguida, “as
escolas de humanidades para os colonizadores e seus filhos”.
Durante o Brasil Império, várias reformas educacionais preconizavam que
deveria haver classes noturnas de “ensino elementar para adultos analfabetos”, entretanto
referências mais concretas sobre o ensino noturno, para a população adulta, datam do relatório
apresentado pelo ministro José Bento da Cunha Figueiredo, no qual informava o número de
200 mil alunos que frequentavam a escola, em 1876, evidenciando a difusão, na época, do
ensino noturno para adultos (CUNHA, 1999 p. 9). Por volta de 1940, os altos índices de
analfabetismo no País permitiram a criação de um fundo destinado à alfabetização e à
educação da população adulta analfabeta, valorizando e conferindo, até certo ponto,
independência a esse segmento.
Apesar das oscilações políticas, podemos considerar que, até a Segunda Guerra
Mundial, as preocupações com esse segmento caminhavam junto à educação popular para
difundir o ensino elementar. As necessidades urgentes em se construir uma política com bases
14
eleitorais para alimentar o governo central, gerar mão de obra para produção, além de integrar
as massas imigrantes recentes, trouxe por volta de 1947, a Campanha Nacional de Educação
de Adultos, “na qual, numa primeira etapa de três meses, previa-se a alfabetização e depois a
implantação do curso primário em duas etapas de sete meses cada uma” (CUNHA, 1999 p.
10), em seguida, uma próxima etapa era iniciada, a “ação em profundidade” cabia à
capacitação profissional e ao desenvolvimento comunitário.
Embora fosse considerada a abertura para discussões sobre o analfabetismo e a
educação de adultos no Brasil, este era visto não como o efeito, mas como a causa da situação
econômica, social e cultural do país, criando a imagem do adulto analfabeto como alguém
marginalizado e muitas vezes comparado psicológica e emocionalmente com crianças, “não
sendo reconhecida sua experiência existencial, bem como o acúmulo de conhecimentos que
esta experiência lhes deu e continua dando” (FREIRE, 1979 p. 12). Essa visão preconceituosa
foi, aos poucos, sendo superada e o adulto analfabeto passou a ser reconhecido como um ser
capaz de raciocinar, resolver problemas e produzir.
Os impasses travados, diante de uma educação de massa, envolviam propostas
técnico-pedagógicas que, embora procurassem ir além da escolarização, sofriam críticas ao
seu método e aprendizado superficial num curto período de alfabetização. Assim, por volta de
1960, surge um novo paradigma pedagógico que inspirou vários programas de alfabetização e
educação popular, propondo uma educação que valorizasse o exame crítico da realidade dos
educandos, a identificação e possível solução de seus problemas de forma consciente. Este
posicionamento trazia reflexões sobre o entendimento da relação entre a problemática
educacional e a problemática social, tendo as ideias do educador e filósofo Paulo Freire, como
norteadoras de uma nova pedagogia de alfabetização de adultos. “Antes apontado como causa
da pobreza e da marginalização, o analfabetismo passou a ser interpretado como efeito da
pobreza gerada por uma estrutura social não igualitária” (CUNHA, 1999 p. 12). De acordo
com Paulo Freire (2010), era necessário pensar numa educação que levasse o educando a
assumir-se como sujeito de sua aprendizagem, como alguém capaz e responsável por
entender-se como ser histórico e social permeado de capacidades que lhe permitissem
transformar sua realidade.
Este breve percurso histórico contextualiza uma modalidade educacional, hoje
reconhecida como EJA – Educação de Jovens e Adultos, caracterizada pelo regresso de
jovens, adultos e idosos à escola, proporcionando o resgate de um tempo em que os estudos
15
não puderam ser realizados ou concluídos, criando ofertas de qualificação profissional, na
maioria das vezes exigida pelo mercado de trabalho ou ainda, oportunizando a dignidade que
o ler e escrever parece garantir. O caráter homogêneo que tenta limitar os sujeitos da EJA,
com histórias de vida diferentes, caracteriza-os como um grupo composto por pessoas com
idade que não se adéqua aos padrões de escolaridade normal, sejam eles adolescentes, jovens
ou adultos. Esta questão recai sobre as especificidades encontradas na EJA, hoje reconhecida
por diversas pesquisas, como fator preponderante na formação dos educandos, nesta
modalidade de ensino.
De acordo com a última pesquisa realizada em 2009 pelo IBGE - Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, sobre a taxa de analfabetismo no Brasil é possível
perceber, um total de 9,7 pessoas com mais de 15 anos sem Ensino Fundamental. Esse índice
corresponde a 14,1 milhões de cidadãos sem os conhecimentos escolares básicos.1 De acordo
com estudos realizados pela Secretaria Municipal de Educação, em documento produzido
para subsidiar e organizar as políticas curriculares de ensino, na cidade do Recife, o Censo
2010 declara que 7% da população, acima de 15 anos, encontram-se em situação de
analfabetismo. Considerando uma maior incidência sobre a população negra da cidade, a qual
o índice sobe para 11%, contra 4,5% da população branca. Quando consideradas pessoas com
mais de 60 anos, o índice de analfabetismo fica em torno de 17%2.
Reconhecemos que fatores econômicos, políticos e sociais são responsáveis por
essa realidade, ao mesmo tempo, programas voltados a este setor, tentam amenizar estes
índices, mas não conseguem garantir a permanência dos estudantes nas salas de aula.
O contato direto com esta realidade, se deu ao longo da graduação, no Curso de
Pedagogia, realizado na Faculdade Frassinetti do Recife – FAFIRE, em experiências
oportunizadas pelas disciplinas de estágio e na própria disciplina de Educação de Jovens e
Adultos – EJA em nível teórico, alguns questionamentos conduziram esta pesquisadora a um
estudo mais aprofundado destes fatos. Caminhando junto ao grupo de estudos, no Núcleo de
Pesquisa e Iniciação Científica – NUPIC, em 2010, na mesma instituição, cuja temática
relacionava-se a Metodologia Docente & Dialogicidade em turmas de Educação de Jovens e
1 Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 1999/2009. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2008
/indic_sociais2008.pdf. Acesso em 05/10/2011 às 15h32min.
2 Fonte: Caderno 1 – Fundamentos Teóricos- Metodológicos para política de ensino da Rede Municipal do
Recife – subsídios para atualização da organização curricular, Secretaria de Educação, 2012 p. 127.
16
Adultos – Um aporte, nos estudos de Freire e Bakhtin, procurou-se analisar a prática docente,
na potencialização da dialogicidade freireana, em turmas da Educação de Jovens e Adultos.
As entrevistas e observações, assim como os estudos teóricos, proporcionaram um novo olhar
sobre a modalidade EJA, compreendendo o diálogo como instrumento significativo na
aprendizagem de seus sujeitos.
Os resultados revelaram, serem habituais, nas turmas observadas, abordagens
docentes em torno de conteúdos resumidos a aprendizagem da leitura e da escrita e das
operações matemáticas, implicando na valorização diferenciada às disciplinas de Língua
Portuguesa e Matemática em detrimento das outras disciplinas. Estas observações
restringiram-se as turmas dos módulos I e II, pois o objetivo da pesquisa estava em verificar
estas experiências, nas turmas de alfabetização. Além de uma possível valorização
diferenciada sobre conteúdos curriculares, as observações demonstraram a pouca incidência
ou ausência de abordagens, que tornassem possível a construção de uma educação para
autonomia de seus sujeitos.
Embora, seja pertinente que a organização e planejamento didático e de conteúdos
na EJA, considerem sua maioria, como indivíduos inseridos no mercado de trabalho, seja este
formal ou informal, que ao frequentarem uma sala de aula sintam urgência em aprender a
leitura, a escrita e as operações matemáticas para atender as necessidades do dia a dia, não
podemos desconsiderar que atrelado a essas urgências, o educando possui o direito de
construir uma autonomia baseada na consciência de seu papel na sociedade.
Assim, refletindo um pouco mais sobre essa realidade, considerando a
importância do próprio exercício da reflexão como articulador de questionamentos, tornou-se
possível o contato com os elementos, em princípio, concebidos para orientar o trabalho
docente, apresentando propostas, que procuram atender as necessidades de seus sujeitos, nas
diversas esferas do desenvolvimento humano: a Proposta Curricular da Rede Municipal de
Ensino da cidade do Recife.
Comumente, as orientações em torno das diretrizes curriculares, procuram negar a
existência de práticas decorrentes de uma concepção tradicional ou tecnicista da educação,
não considerando aos papéis, tanto da escola, quanto dos professores, apenas o repasse de
“conteúdos”, como um conjunto de conhecimentos, informações ou fatos selecionados sob
um leque cultural mais abrangente. Este posicionamento confirmaria uma organização de
conteúdos “retalhados da realidade, desconectadas da totalidade em que se engendram,
17
tornando-se verbosidade alienada e alienante, transmitidos por uma lógica “bancária” de
educação” (FREIRE, 2005a p. 65-66).
Embora a educação básica para jovens e adultos seja alvo de projetos em nível
Municipal, Estadual ou Nacional, o debate, em torno das diretrizes curriculares para a EJA,
torna-se cada vez mais relevante, pois a realidade educacional exige continuamente dos
profissionais da educação, uma formação para pensar e trabalhar com realidades culturais e
sociais, que estabelecem um lugar dentro dos conteúdos curriculares.
Nesta perspectiva, levantamos questões norteadoras deste estudo, referentes à:
como a organização curricular tem orientado o trabalho docente na EJA? Tais orientações
possibilitam o desenvolvimento de práticas sociais, no interior dos conteúdos ensinados?
Existem direcionamentos, que possibilitem o desenvolvimento de práticas pedagógicas
dialógicas? Os profissionais envolvidos com a EJA desconhecem estas práticas, ou não é
possível visualizá-las nas políticas de reorganização curricular?
Dessa forma, nossa pesquisa terá como foco, as Propostas Curriculares para EJA,
conforme concebidas pela Secretaria de Educação da Cidade do Recife, buscando encontrar
diretrizes para um trabalho dialógico, na EJA, tendo como principal norte as ideias sobre
Dialogicidade da Educação, apresentadas pelo educador Paulo Freire. Entendemos que vários
teóricos apresentam contribuições relevantes na perspectiva do diálogo, podendo-se
referenciar importantes nomes como, por exemplo, Martin Buber, Hannah Arendt, Matthew
Lipman, Moacir Gadotti, entre outros. No entanto, as abordagens freireanas sobre a temática
explorada, aproximam-se dos nossos objetivos, pois reconhecem a Educação de Jovens e
Adultos como meio de construção e reconstrução do sujeito para uma formação que se
pretende crítica, portanto criativa, fortalecida nos conhecimentos históricos, já acumulados,
no respeito a práticas sociais de sujeitos que precisam reconhecer-se como protagonistas de
sua própria história e agentes ativos da realidade. Assim, não obstante reconheçamos a
pertinência e importância das diversas contribuições, é nosso intento determo-nos na
abordagem freireana.
Esta pesquisa tem como objetivo central, identificar na Proposta Curricular da
Rede Municipal de Ensino na cidade do Recife, uma perspectiva dialógica que favoreça a
prática pedagógica pautada na dialogicidade da educação. De modo específico, vemos a
necessidade de examinar as concepções de sujeito, sociedade e mundo que se visualiza na
PC/REC da EJA, possibilitando-nos verificar os fundamentos e princípios filosóficos que
18
subjazem esta organização curricular. Frente aos fundamentos e princípios filosóficos,
encontrados no documento, tentaremos analisar os encaminhamentos apresentados ao
desenvolvimento da prática docente, na perspectiva dialógica freireana, evidenciando as
contribuições e limitações desta perspectiva curricular a partir dos relatos docentes sobre tais
propostas.
Desse modo, nossa pretensão em perceber uma proposta dialógico-curricular para
a EJA na Rede Municipal de Ensino na cidade do Recife, procurou considerar como
procedimentos investigativos a pesquisa bibliográfica e documental, tendo em vista a
apreensão de uma teoria específica no conteúdo de documentos produzidos pela Secretaria
Municipal de Educação e relatos coletados através de questionários aplicados a professores
atuantes na EJA. Optamos pela aplicação de questionários, com perguntas abertas,
viabilizando a livre expressão dos entrevistados e sua compreensão sobre a temática abordada
por este estudo. Enquanto metodologia de análise, utilizamos a análise do conteúdo descrito
por Bardin e Franco, desenvolvida em nosso capítulo referente aos procedimentos teórico-
metodológicos. Apesar de considerarmos as contribuições de diversos teóricos, destacamos a
pedagogia do educador e filósofo Paulo Freire, especificamente suas ideias sobre
dialogicidade e currículo, como basilares a este estudo, o qual encontra-se dividido em cinco
capítulos.
O primeiro capítulo propõe, além do estado da arte, sobre os estudos referentes à
EJA, numa perspectiva dialógica, procuramos organizar um breve histórico sobre esta
modalidade de ensino no Brasil e na cidade do Recife. Este levantamento objetivou aproximar
o leitor do contexto desta pesquisa, demonstrando um pouco do que foi e está sendo a EJA,
tanto no campo das pesquisas, quanto em suas raízes históricas. No segundo capítulo,
abordamos suscintamente, a teoria curricular em seu posicionamento crítico, procurando
situar questões referentes às ideias, possivelmente condutoras da construção curricular no
município.
A Dialogicidade da Educação na perspectiva freireana será o tema a ser explorado
no terceiro capítulo. Caminhando na direção do aprofundamento sobre esta teoria, procuramos
apreender as categorias que a compõe, utilizadas como subsídio a nossas análises. Algumas
reflexões acerca do conceito de diálogo em Paulo Freire, também estão presentes, pois se
configura como elemento fundamental na pedagogia do autor. Nesse sentido, esboçamos no
19
quarto capítulo, os procedimentos teórico-metodológicos, utilizados na pesquisa,
demonstrando os caminhos percorridos, para o alcance dos objetivos propostos.
Finalmente, no último e quinto capítulo, esboçamos nossas análises sobre os
documentos que orientam a organização curricular na EJA e os relatos dos professores
entrevistados. É válido salientar que, considerando a ausência de uma proposta específica para
EJA, nos debruçamos sobre os documentos mais atuais produzidos pela Secretaria de
Educação do município. Nas considerações finais demonstramos nossa percepção acerca do
capítulo anterior, procurando responder, na medida do possível, os objetivos e hipóteses
propostas, além de delinear os limites e possibilidades que este estudo trouxe a pesquisa em
educação.
O trabalho em questão representa um esforço teórico, embasado na prática
inspiradora e problematizada. Acompanha-o, a certeza de que, toda verdade é sempre
provisória, pois os fenômenos ultrapassam aquilo que suas leituras significam. Assim, tomar a
dialogicidade como uma categoria de leitura e análise da experiência, situada e datada, da
Educação de Jovens e Adultos, conforme preconizada pela Secretaria Municipal de Educação
da Cidade do Recife, foi uma experiência singular; porém, desprovida do intento de
estabelecer uma palavra última. Na verdade, foi, antes, uma experiência formativa com a
pretensão sincera de juntar-se às rodas de conversas de homens e mulheres, profissionais da
educação, que acreditam que a possibilidade de construção de uma sociedade nova, passa
inevitavelmente, pela educação.
21
Por se tratar de uma investigação teórica com análise conceitual, procuramos
utilizar a pesquisa bibliográfica, na tentativa de nos inteirarmos nas produções que vêm sendo
discutidas em diferentes contextos e espaços de construção do conhecimento. Apesar de
considerarmos diversas fontes bibliográficas relevantes, na compreensão da história e
características da Educação de Jovens e Adultos, o cerne da abordagem teórica de nossa
investigação estará apoiado, nas contribuições teóricas do educador Paulo Freire, tanto na
fundamentação como na orientação do processo de análise da Proposta Curricular da EJA e de
outros possíveis documentos produzidos pela Secretaria Municipal de Educação do Recife.
Ponderamos a importância de um levantamento de produções referentes tanto ao
objeto quanto à temática explorada, dando procedência ao trabalho de levantamento
bibliográfico que, em princípio buscou localizar estudos voltados à dialogicidade, na
educação de jovens e adultos. Inicialmente, delimitamos a procura pelo tema Proposta
Curricular, na EJA, por se tratar de uma temática mais abrangente que, de certa forma,
poderia nos dar diversas fontes sobre quais caminhos vem servindo como subsídio para
estudos nesta temática, assim como a importância que vem sendo conferida à EJA.
De fato, diversos foram os trabalhos, em nível nacional, encontrados com
objetivos voltados ao tema EJA, no entanto, muitos deles referem-se a programas específicos
e formação ou práticas docentes. Ao delimitarmos nossa busca, especificando quanto ao nosso
objeto de estudo, constatamos raras propostas que trouxessem a dialogicidade como enfoque
de pesquisa. Quando a direcionamos para a educação de jovens e adultos, essa busca tornou-
se mais escassa, deparando-nos apenas com a tese de doutorado proposta por Eder Soares com
A dialogicidade freireana na Educação de Jovens e Adultos3, na qual procurou compreender e
interpretar as percepções e significados das experiências vividas por jovens e adultos
alfabetizandos a partir da concepção dialógica apresentada por Paulo Freire. Assim,
percebemos nossos esforços como relevantes ao proporcionar experiências de pesquisa pouco
exploradas.
A consulta ao Banco de Teses e Dissertações da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, contribui com pesquisas realizadas
em diversas universidades brasileiras, reunindo um grande número de trabalhos realizados.
3 Tese de Doutorado em 2006 pela Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual
Paulista, “Júlio de Mesquita”.
22
Pesquisamos um período correspondente aos últimos dez anos de pesquisa, de 2000 a 2010, e
verificamos sob o tema Proposta Curricular na EJA apenas 6 dissertações, com objetivos
voltados, em linhas gerais, às análises curriculares para esse segmento e nenhuma ocorrência
em teses, quando verificamos que somente, a partir de 2005, é possível perceber alguns
estudos voltados para EJA, mas não com ênfase nas propostas curriculares.
Assim, após a leitura de seus resumos, destacamos as seguintes pesquisas: Jerri
Adriani da Silva com o tema Um estudo sobre as especificidades dos/as educandos/as nas
propostas pedagógicas de educação de jovens e adultos – EJA: tudo junto e misturado4, onde
procura trazer contribuições acerca das especificidades dos sujeitos da EJA, do ponto de vista
das PPPs e Diretrizes Curriculares. A pesquisa de Eliza Solange Vasconcelos Marques com A
especificidade da educação de jovens e adultos no discurso curricular da rede municipal do
Recife5, procurando analisar textos referentes ao período de 1960 a 2003, na apreensão de
enunciados, voltados ao olhar que as propostas curriculares têm apresentado sobre a
especificidade da EJA. Ainda, dentro desta temática, podemos referenciar o trabalho de Maria
Cândida Sérgio com A organização do tempo curricular na prática pedagógica da educação
de jovens e adultos6, onde o trabalho pedagógico é visto através do tempo estabelecido pelo
currículo.
Na busca pelo termo Proposta Curricular e Dialogicidade com o objetivo de
estreitar o caminho na direção do objeto em questão, encontramos o trabalho de Claudete
Bonfanti Vieira com A “dialogicidade” na proposta curricular, nas escolas organizadas em
ciclos de formação7, na qual se desenvolveram estudos com o objetivo de analisar o lugar e o
significado da “dialogicidade”, em escolas organizadas por ciclo de formação, na cidade de
Criciúma/SC, constatando-se indícios de orientações direta ou indiretamente inspiradas no
pensamento de Paulo Freire.
Dentro da especificidade da última busca, no Banco de Teses e Dissertações da
PUC/SP, encontramos a pesquisa de Eronildes Figueira de Almeida com Currículo em Paulo
Freire: um estudo dos aspectos técnico, estético e político do currículo em Paulo Freire8, a
4 Dissertação de Mestrado em Educação defendida em Jun./2010 pela Universidade Federal de Minas Gerais –
UFMG. 5 Dissertação de Mestrado em Educação defendida em Jun./2010 pela Universidade Federal de Pernambuco
UFPE. 6 Dissertação de Mestrado em educação defendida em 2009 pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
7 Dissertação de Mestrado em Educação defendida em Set./2007 pela Universidade do Extremo Sul Catarinense
– UNESC. 8 Tese em Educação defendida em Mar./2002 pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
23
qual procura identificar elementos centrais, na pedagogia freireana, na formulação de uma
proposta concreta de ação curriculista dinâmico-dialógica.
Na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPED,
especificamente, em seu site, ao analisarmos os índices de trabalhos, apresentados nas 12
últimas reuniões anuais do GT- Educação de Pessoas Jovens e Adultas, não foi encontrado
nenhum trabalho que abordasse a temática em questão, no entanto podemos referenciar alguns
textos que nos auxiliam na compreensão de determinados aspectos abordados nesta pesquisa:
Currículo e Educação de Jovens e Adultos: abordando a cidadania – 23ª reunião em 20009,
O Currículo na Educação de Jovens e Adultos 10
– 28ª reunião em 2005 e a Educação
Dialógica, na aprendizagem de pessoas jovens e adultas: entrelaçando experiência e
educação11
– 33ª reunião em 2011. Cabe destacar que, no mesmo período, analisando o GT –
Currículo nas reuniões anuais da ANPED, encontramos apenas 2 trabalhos apresentados com
referências às propostas curriculares para a EJA e nenhuma ocorrência relacionada à
“dialogicidade”, em meio ao universo de temáticas, com as quais nos deparamos.
A consulta aos periódicos do portal CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal), nos possibilitou o acesso a diversas publicações de artigos, nas mais variadas
revistas, envolvendo as temáticas educacionais. No entanto, não visualizamos nenhuma
produção referente ao tema “dialogicidade”, ainda que dentro de um contexto diferente do
qual nos propomos explorar. Ao delimitarmos nossas pesquisas ao campo do currículo ou
EJA, tivemos acesso a algumas produções. Na revista Currículo sem Fronteiras foram
encontradas 2 ocorrências de trabalhos sobre a EJA, dentro de um universo de 23 edições,
correspondentes aos últimos dez anos de produções. A revista Em Aberto do (INEP) -
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, nos apresentou 12
produções em EJA dentro de 83 volumes com diversos trabalhos.
Dentre outras buscas, verificou-se a existência da revista Educação da
Universidade Federal Santa Maria, a qual publica trabalhos, na área de educação, resultante
de pesquisas e práticas educativas, refletidas teoricamente. Dentre as 6 ocorrências, o artigo
de Cláudia Marcelo Moura Abreu e Cláudia Lemos Vóvio, intitulado Perspectivas para o
currículo da Educação de Jovens e Adultos: dinâmicas entre os conhecimentos do cotidiano e
da ciência, procurou apresentar alguns desafios, na organização de currículos, para a
9 Comunicação oral apresentada pelos autores Valdenice Leitão da Silva (FUNESO) e Carlos Eduardo Ferreira
Monteiro (UFPE). 10
Comunicação oral apresentada pelo autor Benedito Gonçalves Eugênio (PUC/SP). 11
Comunicação oral apresentada pela autora Juliana Franzi (UFSCar)
24
escolarização de pessoas jovens e adultas. As autoras verificaram a existência da apropriação
das principais categorias no campo da EJA, numa perspectiva curricular. No entanto,
constatou-se que existe um trabalho rigoroso a ser feito sobre a percepção de relações entre os
conhecimentos do cotidiano e científico, considerando a escola em sua função social,
informação, para nós, relevante quando pensamos nas contribuições que nossos estudos
poderão proporcionar.
Desse modo, percebemos com o levantamento realizado os vários
direcionamentos, dados à pesquisa, tanto no campo do Currículo para Educação de Jovens e
Adultos quanto à própria EJA, enquanto espaço de investigação, intuímos haver certa
escassez de textos que explorem a dialogicidade, principalmente quando esta vem estabelecer
uma ponte entre as propostas curriculares e as experiências oriundas da EJA12
. Dito isto,
reafirmamos a relevância contida em todas as pesquisas utilizadas ou não em nossos estudos,
como fontes ricas em informações construídas sob olhares diferenciados, verdadeiras
contribuições à pesquisa em educação.
Contudo, esta pesquisa procura diferenciar-se das demais quanto à sua
especificidade, na construção de um estudo pedagógico e social, que não apenas procura
refazer o caminho percorrido pelas propostas curriculares para a EJA, mas reafirma a
importância da sua construção, tendo o diálogo como elemento mediador de um trabalho
docente, para uma educação dialógica com vista à contribuição significativa na construção da
autonomia de seus sujeitos. Para tanto, entendemos fazer-se necessário o “trilhar” pelos
caminhos da educação de adultos e, posteriormente de jovens e adultos na construção da
compreensão de sua real importância para a formação do cidadão, não apenas alfabetizado,
mas capaz de modificar uma realidade social, dentro da coletividade.
1.1 Caminhos de uma Educação para Adultos: um breve histórico
A proposta educativa, que possui a EJA, enquanto espaço de construção do
conhecimento, oportuniza a inserção dos estudantes, no mercado de trabalho ou mesmo o
domínio da leitura e da escrita como conhecimento básico para uma participação mais “ativa”
na sociedade. Visivelmente, nos dias atuais, o conhecimento tornou-se peça-chave para a
12
Consideramos esta conclusão a partir do universo de pesquisas as quais tivemos acesso em nosso
levantamento. Contudo, não estamos isentos da possibilidade de não haver contemplado alguma pesquisa nesta
direção. Deixamos esta observação antecipadamente, caso esta possibilidade venha a ocorrer.
25
compreensão da sociedade contemporânea. Admitimos que já nos inserimos na era da
informação, mesmo olhando para trás e percebendo que grandes massas da população estejam
excluídas dele. Uma vez que o conhecimento se tornou o capital13
da humanidade, é elemento
fundamental para a sobrevivência de todos.
No século que findou, dois projetos de sociedade fracassaram relativamente
ao processo civilizatório: um porque privilegiou o eu, eliminando o nós; o
outro porque privilegiou o nós, desconsiderando o eu. Neste novo século,
confrontam-se dois projetos antagônicos de sociedade: um subordina o social
ao econômico e ao império do mercado; outro prioriza o social. Faz-se
necessário construir um projeto de sociedade onde o ser humano seja
resgatado, na sua plenitude de eu e nós, com base na prioridade do social
sobre o econômico. Para que este novo mundo seja possível, é necessária
que toda a humanidade entenda e aceite a educação transformadora como
pré-condição. Esta educação tem como pressupostos o princípio de que
ninguém ensina nada a ninguém e que todos aprendem, em comunhão, a
partir da leitura coletiva do mundo (GADOTTI, 2006).
A educação não pode e não deve ser vista como um problema isolado. Ela está
intimamente ligada aos embaraços vividos pela economia, política e cultura, além das crises
éticas e religiosas. Nesse sentido, a educação precisa se constituir, na direção do fazer
história, afirmando a subjetividade como condição da transformação social, que assegure o
papel do sujeito na história e a própria história como uma possibilidade de emancipação. A
EJA, enquanto prática educativa é trabalho extremamente humano, que se concretiza no
envolvimento de seus participantes, humanizando sua natureza e naturalizando a dimensão de
ser humano. É um aprendizado que, para mostrar sua verdade, necessita sair de si mesmo,
modelar-se, adquirindo corpo, na própria realidade, na forma de atividade prática.
Quando buscamos uma educação que objetiva a afirmação daquele que se educa,
nos deparamos com um ponto de partida que também se faz ponto de chegada ao ato
educativo: a realidade dos educandos. Afirmando-se, é possível lutar pelos seus direitos e
assegurar uma vida digna para todos. Assim, constituímos um elemento relevante do processo
educativo: a transformação da realidade dos que não são reconhecidos como agentes
transformadores e tem suas identidades negadas.
1313
Ver BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998. Para maiores explanações a cerca
dos conceitos de capital cultural.
26
Esta pode ser considerada, hoje, uma visão sobre educação diferenciada dos
propósitos impulsionadores da educação de adultos em outros momentos. Assim julgamos ser
pertinente “caminhar” por algumas concepções que movimentaram tanto a educação de
adultos, quanto às propostas pedagógicas que motivaram diferentes momentos, tendo em vista
a ausência por um longo período de políticas e planejamentos de ideias, reveladoras de uma
verdadeira preocupação com as condições de exclusão escolar, presentes na sociedade
brasileira.
Como afirmamos anteriormente, a Educação de Jovens e Adultos tem
contemplado diferentes esferas educacionais, sendo elas formais ou informais. Haddad &
Pierro (2000, p. 108) lembram que “qualquer tentativa de historiar um universo tão plural de
práticas formativas implicaria sério risco de fracasso, pois a educação de jovens e adultos,
compreendida nessa acepção ampla, estende-se por quase todos os domínios da vida social”.
As ideias sobre o conceito de alfabetização, em si, não favorecem essa construção, pois as
diversas perspectivas à sua volta consideram-na sob o olhar de práticas educativas formais ou
oficiais, experiências informais, oriundas de práticas sociais, a própria decodificação do
sistema alfabético, além da capacidade do uso social da leitura e da escrita.
Quando nos reportamos aos caminhos percorridos pela Educação de Adultos,
segundo alguns autores, que nos ajudam em nossas reflexões, identificamos que o interesse
pelos adultos que não frequentaram a escola, no tempo adequado, tem sua gênese, desde o
período do Brasil Colônia, ainda que, com maior ênfase, a doutrinação em detrimento de
interesses puramente educacionais. Nas palavras de Galvão & Soares,
Pode-se afirmar que, desde a chegada dos portugueses ao Brasil, o ensino do
ler e do escrever aos adultos indígenas constituiu, ao lado da catequese, uma
das ações prioritárias no interior do projeto de colonização. Os indígenas
adultos foram submetidos a uma intensa ação cultural e educacional [...],
vale ressaltar que os jesuítas são considerados os principais agentes
educativos do Brasil desde sua chegada em 1549 até 1759, quando foram
expulsos pelas novas diretrizes da economia e política portuguesas. O
período que segue a expulsão dos jesuítas parece não ter conhecido
experiências sistemáticas significativas em relação à alfabetização de adultos
(GALVÃO & SOARES, 2006 p.28-29).
27
No período Imperial, por volta de 1827, foi promulgada uma primeira lei para a
educação no país que, segundo Neves (2003, p. 15), em sua tese O Método Lancasteriano14
e
o projeto de formação disciplinar do povo, procurou “construir um sistema nacional de
educação escolar, composto por escolas elementares, secundárias e superiores”. No entanto,
neste início de século, estava em debate a obrigatoriedade do ensino que, enquanto
gratuidade, enfatiza Paiva (1987, p. 73) “ não tinha condições de ser cumprida, por falta de
escolas, de professores e em face às condições de vida dos próprios alunos”, em seu livro
Educação Popular e Educação de Adultos , onde apresenta uma ampla visão histórica da
educação de adultos e da educação popular, no Brasil, em sua primeira edição, recebendo o
acréscimo, posteriormente, de mais dois artigos relacionados ao tema, numa visão mais atual.
Na cidade do Recife, em 1840, surge o ensino das primeiras letras ao adulto, nos
cursos de ensino profissional, oferecido pelo Arsenal de Guerra do Recife. Em 1869, com a
finalidade de tornar mais efetivo o processo de escolarização, atendendo a um maior número
possível de analfabetos, foram criadas escolas noturnas e, aos domingos e no período do
verão, criaram-se escolas temporárias e ambulantes (NEVES, 2003).
Esta discussão, assim como as questões voltadas para a educação, de maneira geral,
não sofreram grandes avanços, no período republicano. Permaneceu em sua estagnação e
contribuiu para o crescimento do número de pessoas não escolarizadas no país. As
preocupações com a educação popular tinham um caráter quantitativo e não qualitativo, nas
quais não cabiam as discussões acerca das condições precárias, onde a educação de adultos se
desenvolvia. Paiva (1987) comenta sobre as modificações sofridas por este pensamento.
No final do período imperial, vários projetos de reforma foram apresentados
à Assembleia Geral, dentre os quais se encontrava, em 1882, o parecer-
projeto de Rui Barbosa15
com um diagnóstico educacional (...) de que existia
14
Joseph Lancaster era inglês, defensor da nobreza e para ganhar a vida na Inglaterra do século XIX, criou uma
escola para filhos de trabalhadores independente do credo ou posição social. Segundo Neves (2005), o Método
Lancaster foi o primeiro método oficial de ensino concebido no Brasil, que marca o inicio da descolonização e a
instituição do Estado Nacional. É conhecido como método mútuo ou monitoral que, consistia em fazer com que
os alunos mais avançados ensinem aqueles que ainda não aprenderam. Foi instituído como Ensino Oficial no
decreto de 15/10/1927 e perdurou até 1946. Para maior aprofundamento verificar a referência: NEVES, Fátima
Maria. A instrução pública, o método de ensino pedagógico de Lancaster e a instituição do Estado
Nacional (1822). In: ROSSI, E. NEVES, F. M.; RODRIGUES, E. (Org.). Fundamentos Históricos da Educação
no Brasil. Formação de Professores. EAD, n. 4. Maringá: EDUEM, 2005.
15
Paiva, em sua obra Educação Popular e Educação de Adultos, afirma que Rui Barbosa por volta de 1822
manifestou preocupação com a educação popular quando procurou salientar a “absoluta miséria do ensino
28
uma ligação estreita entre a educação e a riqueza de um país, bem como a
proposição de que houvesse um programa de defesa contra a ignorância
popular, o qual se referia à liberdade de ensino aliada à defesa do ensino
laico, à obrigatoriedade escolar entre 5 e 15 anos, à reorganização do ensino
primário, à fundação de escolas normais, ao financiamento da educação e a
criação de um Conselho Superior de Instrução Nacional e de um fundo
escolar para o desenvolvimento da instrução (PAIVA, 1987 p. 73 ).
As habilidades com a leitura e a escrita atraíram maior atenção, quando em 1882,
a Lei Saraiva16
tornou proibido o voto do analfabeto. Podemos considerar que, ao final do
século XIX, uma importante parcela da população era analfabeta, algo em torno de 80%.
Souza (2007, p. 27) afirma que “havia expectativa entre aqueles que idealizavam a
valorização da educação de que a restrição ao voto do analfabeto fosse ampliar a expansão do
sistema escolar, algo que não ocorreu”.
Compreendemos que os “esforços”, até então desprendidos para que a população
sentisse a necessidade da busca pela educação formal, não havia alcançado seus objetivos. A
educação de adultos ganhou importantes discussões, quando se ampliou o debate em torno da
educação popular. Freire (2005a, p. 15) aponta que o conceito da Educação de Adultos “vai se
movendo, na direção do de Educação Popular, na medida em que a realidade começa a fazer
algumas exigências à sensibilidade e à competência científica dos educadores e educadoras”.
Freire inicia uma discussão que, ainda hoje, faz parte das reflexões, em torno da educação
para adultos: a importância da compreensão crítica do educador sobre a realidade e sua
relação com os conteúdos ensinados.
Sobre educação popular, entendia-se como uma educação ofertada a toda a
população gratuitamente. De caráter universal, era oferecida uma concepção de educação,
para as camadas populares, na qual existia a instrução elementar e, possivelmente, o ensino
técnico-profissional. A educação de adultos era considerada parte da educação popular, uma
vez que a difusão da escola elementar incluía as escolas noturnas para adultos. Porém, “a
popular no país”, levando em consideração a precariedade de recursos que eram destinados à educação, algo em
torno de 1,99% em concorrência com despesas militares em torno de 20,86% do total despendido no Império.
(PAIVA, 1987 p. 72) 16
Segundo Moreira (2005b), a Lei Saraiva foi sancionada pelo Imperador em 9 de janeiro de 1881, sendo
regulamentada sete meses depois sob o Decreto nº 8213 de 13 de agosto de 1881. A lei previa o voto direto nas
eleições em todo o Reino e em seu preâmbulo determinava a realização de um senso com vista ao alistamento
dos eleitores. Quanto à população analfabeta, a lei previa que esta não poderia votar, salvo sob a apresentação de
um requerimento feito através de um eleitor por ele indicado. Além disso, os votantes eram selecionados pelos
seus rendimentos anuais líquidos, o que excluía a população de baixa renda que tinha como característica o
analfabetismo.
29
educação de adultos passou a ser tratada como alfabetização e educação de base quando se
reivindicou que ela tivesse menor duração que aquela ofertada à população em idade
adequada” (PAIVA, 1987 p. 85).
Souza (2007) compreende que foi, ao longo do século XX, que a educação
popular recebeu maior valorização, pois, de um lado, existiam idealizadores da educação que
tentavam fortalecer o lugar dela nos debates políticos e, de outro, havia a organização popular,
que seria adensada com as mudanças advindas das relações econômicas e da reorganização
dos espaços rural e urbano. Foi só, ao final do século XIX, nos primórdios da industrialização,
que a educação passou a fazer parte do debate político nacional (...). Foi, a partir da segunda
metade do século XX, que a educação de adultos teve maior valorização política e social,
tanto na esfera governamental quanto na sociedade civil organizada.
Os primeiros indícios relacionados a iniciativas oficiais para educação de adultos
têm seus registros, por volta de 1940, na ocasião da criação do Fenep (Fundo Nacional do
Ensino Primário), em 1942. Seguindo as palavras de Paiva (1987, p. 173), “após o final da
Segunda Guerra Mundial, os ideais democráticos incentivaram o debate sobre a educação de
massas e a organização de Centros de Cultura Popular”, com o objetivo de difusão cultural às
classes trabalhadoras.
1.2 Principais Campanhas para EJA no Brasil
Como afirmamos anteriormente, é possível perceber as primeiras iniciativas
oficiais, em torno da educação para adultos, em meados do século XX. A partir da década de
40 deste século, no Brasil, era possível perceber o aumento da população urbana, o
surgimento e avanço dos meios de comunicação, escrito e falado, e em nível educacional,
modificações realizadas em diversas estruturas de ensino, em todos os níveis. Após a Segunda
Guerra Mundial, alguns esforços começaram a surgir para tentar diminuir os altos índices de
analfabetismo decorrentes de vários séculos, nos quais o acesso à instrução formal no país foi
privilégio das elites nos grandes centros urbanos.
Uma das primeiras iniciativas foi a Campanha de Educação de Adultos (CEA), ou
ainda, Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA), criada em 1947. Essa
iniciativa procurou expandir entre as massas os princípios de um novo regime político, a
30
democracia liberal. Esta campanha foi um dos maiores movimentos de educação de massa no
Brasil. De acordo com Fávero, em documentos reunidos no arquivo do Núcleo de Pesquisas e
Documentação de Jovens e Adultos sob o título Educação Popular 1947 - 1966, com a
regulamentação do Fundo Nacional do Ensino Primário, em 1945, assim como, a elaboração
do Plano de Ensino Supletivo para Adolescentes e Adultos Analfabetos, aprovado pelo
Ministério da Educação e Saúde para 1947, o CEAA foi uma consequência direta destas
iniciativas e, juntamente com ela, outras ações precisaram ser desenvolvidas.
Foi prevista uma série de medidas para a execução desse plano: instalação
do Serviço Nacional de Educação de Adultos, no Departamento Nacional de
Educação; elaboração e aprovação de planos anuais subsequentes de ensino
supletivo; preparação e distribuição de cartilhas e textos de leituras para
adultos; mobilização da opinião pública em favor da educação de adultos, e
busca de integração, por parte do governo federal, das atividades dessa área
de ensino que vinham sendo realizadas nos estados. Justificava-se sua ação
pelo poder da educação na construção da sociedade desejada para o Brasil na
época e perseguia objetivo bastante concreto: a ampliação das bases
eleitorais, o que explica as metas basicamente quantitativas dos planos
elaborados para o ensino supletivo e a insistência na diminuição das taxas de
analfabetismo, bastante altas no período. (FÁVERO, 2008 – Campanhas
Nacionais).
No entanto, quanto à concepção teórica sobre o analfabetismo, acreditava-se que o
adulto analfabeto não possuía as mesmas capacidades que o adulto alfabetizado, reproduzia-se
a ideia da necessidade de integrar esse homem “marginal” às problemáticas da vida cívica na
busca por uma unificação cultural brasileira. Nas palavras de Galvão & Soares (2006, p. 42),
“o analfabeto continuava a ser considerado incapaz e marginal, e era, ele próprio, comparado
a uma criança”. Esta iniciativa previa uma formação inicialmente “extensiva”, seguida de uma
“ação em profundidade17
”. Os autores afirmam, ainda, que “a primeira Campanha Nacional de
Alfabetização, se assentou sobre alicerces de bases fracas (...), foi uma ação emergencial que
continuava a propor a erradicação do analfabetismo” (p. 43). A CEAA entrou em declínio a
partir de 1954.
17
Essas ações sustentavam o objetivo de oferecer o ensino de técnicas de leitura e escrita, alfabetizar no período
de três meses e condensar o curso primário em dois períodos letivos, cada um com sete meses de duração, esta
caracterizava a fase “extensiva”. A “ação em profundidade” procurou oferecer capacitação profissional às
comunidades e possíveis ligações com essas localidades, no entanto, essa fase nunca foi posta em prática, pois
“requeria vultuosos recursos e outros métodos” (op. cit.)
31
Após a criação da Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações
Rurais, foram criadas as Missões Rurais. A primeira delas foi organizada em 1950, na cidade
de Itaperuna, no Rio de Janeiro. Dentre as campanhas para o combate ao analfabetismo,
fortalecendo as campanhas já existentes, surgiu a CNER (Campanha Nacional de Educação
Rural) em 1952. Essa iniciativa procurou voltar seus objetivos para o homem do campo
através de centros de treinamento de líderes rurais, centros sociais rurais, missões rurais e
semanas educativas. Segundo Souza (2007, p. 32), esses centros deveriam promover entre as
populações do campo “a consciência do valor da entreajuda para que os problemas locais
pudessem ser resolvidos”.
Como parte da CEAA, em 1957, surgiu o SIRENA (Sistema de Rádio Educativo
Nacional) com pretensões de alfabetizar adultos através do rádio. De acordo com Fávero
(2008- Campanhas Nacionais), essa campanha consistia em “emissões educativas, gravadas
por locutores da Rádio Nacional e distribuídas em discos de acetato às emissoras, em geral
católicas, que se responsabilizavam pela implantação de escolas radiofônicas”. Um dos
estados que mais obteve êxito em seus esforços, foi a Paraíba, onde foi implantado o Sirepa
(Sistema de Rádio-Educativo da Paraíba). Antes das transmissões, os monitores eram
treinados para transmitir os conteúdos. O SIRENA publicou a radio cartilha que era impressa
em cores e, muitas vezes, adaptada para atender as exigências dos lugares onde eram
adotadas. Em 1961, com o Movimento de Educação de Base (MEB), uma parceria entre o
Governo Federal e o Conselho Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), as aulas eram
elaboradas por equipes centrais e, consequentemente, transmitidas às escolas radiofônicas
onde um professor-locutor estabelecia relações entre os conteúdos e as atividades dos alunos.
Beisiegel (1997, p. 224) afirma que “os trabalhos se orientavam para “a conscientização”,
procurando despertar nos educandos a necessidade de engajamento, em organizações
profissionais, organizações de classe e em grupos voltados para o desenvolvimento das
comunidades”. Um ano depois, em 1962, as atividades receberam orientação para a educação
sindicalista, a politização e o processo de sindicalização rural. O sistema radiofônico, para
alfabetização de adultos, passou a fazer parte de um movimento maior, no qual se pretendia
não apenas alfabetizar, mas como afirma Beisiegel (1997, p. 224), “elevar o nível cultural das
massas, conscientizando-as paralelamente”.
Ainda, no final da década de 1950, realizou-se o II Congresso Nacional de
Educação de Adultos, uma busca por novas perspectivas teóricas que direcionassem a
32
educação de adultos. Nele, Paulo Freire se destacou pela sua preocupação com os problemas
sociais que originavam o analfabetismo. Anunciava-se uma pedagogia dialógica que,
posteriormente, aprofundada, procurava valorizar o ser humano, dentro de um processo de
aprendizagem que possui uma bagagem de experiências, com urgência de uma participação
ativa e consciente na sociedade. Defendia-se uma educação não “para” o homem, mas com o
homem.
Subjacentes a essas novas práticas propostas estavam a concepção, sobre o
adulto não alfabetizado, que não podia mais ser visto como alguém ignorante
e imaturo, mas como um ser produtor de cultura e de saberes. Por isso, um
dos pressupostos que baseavam a sua proposta de alfabetização era que a
leitura do mundo, precedia a leitura do mundo precedia a leitura da palavra.
Além disso, afirmava que o problema do analfabetismo não era o único nem
o mais grave da população: as condições de miséria em que vivia o não
alfabetizado é que deveriam ser problematizadas (GALVÃO & SOARES,
2006 p. 43).
Esta década ainda foi palco da Campanha Nacional de Erradicação do
Analfabetismo. Conforme afirma Beisiegel (op. cit. p. 229), o programa antecipava o
“aprofundamento dos estudos sobre os problemas sociais, econômicos e culturais das áreas
selecionadas (...), a melhoria do ensino primário (...) e transformar as escolas em centros de
reuniões da população local”. Extinta em 1961, levou consigo a dúvida de como conciliar
atuação de qualidade e superação dos desafios, diante da intenção de atingir uma parcela
importante da sociedade. O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) entendeu a
educação para adultos como “instrumento de formação de agentes de construção do futuro
desejado” (BEISIEGEL, op. cit. p. 221).
Em 13 de maio de 1960, a cidade do Recife, sob os cuidados do então prefeito e
posteriormente governador, Miguel Arraes foi palco para o surgimento de um movimento
para a cultura e educação, viabilizando diversas atividades que além dos objetivos voltados
para alfabetização, procurou democratizar a cultura e a educação, propondo a conscientização
das classes populares e a transformação das velhas estruturas sociais existentes. Nascia o
Movimento de Cultura Popular (MCP).
Quanto à alfabetização para jovens e adultos, este movimento oportunizou o
surgimento de um novo método para alfabetizar jovens e adultos, criado por Paulo Freire,
apontando para uma concepção dialógica da educação. De acordo com Souza, tal abordagem
caracterizava-se pela
33
busca de interação entre homem e mundo, sendo o sujeito entendido como
elaborador e criador de conhecimentos; o homem é pensado e educado tendo
como pressuposto a sua cultura, a sua prática social; ele é visto como sujeito
que se constrói como tal à medida que pensa o seu contexto; na educação o
homem é considerado como sujeito do conhecimento, a escola como um dos
lugares do conhecimento, portanto não o único; o processo de ensino-
aprendizagem é desenvolvido com vistas à superação da relação entre
opressores e oprimidos; há horizontalidade na relação professor-aluno,
embora o docente tenha clareza quanto ao seu papel de orientador do
processo educativo; a metodologia caracteriza-se pela dialogicidade e pela
problematização dos conteúdos escolares em relação aos conteúdos do
mundo da vida (SOUZA, 2007 p. 80).
Esse novo paradigma para educação de jovens e adultos esteve presente, nos
trabalhos desenvolvidos por Freire nos primeiros anos de 1960 no MCP. Neste momento,
mais de 50% da população não participava da vida política do país, devido à sua condição de
não alfabetizada. Nesta perspectiva, o analfabetismo era visto “não como causa da situação de
pobreza, mas como efeito de uma sociedade injusta e não igualitária. Por isso, a alfabetização
de adultos deveria contribuir para a transformação da realidade social” (GALVÃO &
SOARES, 2006 p. 44). Além do Movimento de Cultura Popular, outra grande iniciativa foi
desenvolvida, em Natal, a campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler, desenvolvida
e coordenada pelo então professor Moacyr de Góes. Este movimento educacional surgiu em
1961, um ano após a primeira eleição para prefeito no município. Os propósitos trazidos por
essa iniciativa originaram-se de acordo com Souza (idem p.34) por meio de “discussões
semelhantes às do MCP, principalmente a ênfase nas carências educacionais (...) iniciando a
criação de escolas de ler, escrever e contar para atender as populações mais pobres”. A
concepção freireana sobre educação permeou os espaços de educação popular, no início dos
anos 60 quando, em 1964, em decorrência da ditadura militar, as iniciativas com vista à
educação de adultos para conscientização política, seus idealizadores e colaboradores foram
extintos e alvo de repressão.
Neste momento, o governo permitiu apenas a existência de programas de
alfabetização para adultos de caráter conservador e assistencialista, os quais eram observados
suas práticas e propostas. Ainda em 1964, surge uma parceria entre a Agência Norte-
Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), Governos Federais e Estaduais,
além de agências privadas que originou os trabalhos realizados pela Cruzada ABC. Em
1967, ele mesmo, o governo, assumiu o controle dessa atividade lançando o Movimento
34
Brasileiro de Alfabetização – Mobral, inicialmente nas cidades de Recife, Sergipe e Paraíba.
O MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) tinha três características
básicas: independência institucional e financeira face aos sistemas regulares de ensino e aos
demais programas de educação de adultos; articulação de uma organização operacional
descentralizada, apoiada em comissões municipais, incumbidas de promover a realização da
campanha nas comunidades e a centralização das orientações do processo educativo. (...) Na
década de 1970, houve inserção do ensino supletivo, no sistema regular de ensino. Os Centros
de Estudos Supletivos completavam a atuação do Mobral, estendendo a escolaridade até das
séries primárias. Caracterizava-se pelo ensino a distância e por módulos de trabalho (SOUZA,
2007).
O MOBRAL tinha sua atuação inicial voltada à população analfabeta, entre 15 e
30 anos, objetivando uma “alfabetização funcional”, numa proposta de valorização do
conhecimento escrito, de leitura e cálculo, além de uma integração social, sob um
reajustamento à família, à comunidade e à pátria. De acordo com Galvão & Soares (2006), os
métodos e o material didático, apoiados pelo movimento, apresentavam semelhanças com os
utilizados por outros movimentos de educação e cultura popular, tendo como ponto de partida
as palavras-chave retiradas da realidade dos educandos para então ensinar os padrões silábicos
da língua portuguesa. Contudo, seu caráter superficial pode ser percebido, “à medida que o
conteúdo crítico e problematizador das propostas anteriores foi esvaziado” (p. 46). Na ocasião
de sua extinção, em 1985 com a Nova República e o fim do Regime Militar, o Mobral foi
substituído pela Fundação Educar.
Souza (2007) afirma que essa nova fundação deveria fomentar programas
destinados àqueles que não tiveram acesso à escola ou que dela foram excluídos. A fundação
era vinculada ao MEC e atuava com o apoio financeiro das prefeituras municipais ou de
associações da sociedade civil. No entanto, esta iniciativa foi vencida pelo governo Collor,
havendo o lançamento do Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (Pnac). Este tem
sua gênese das discussões estabelecidas na Conferência Mundial sobre a Educação para
Todos em 1990 na Tailândia, considerado Ano Internacional da Alfabetização. A autora nos
lembra que, “na esfera internacional, havia a preocupação com os 900 milhões de analfabetos
existentes no planeta”. No entanto, apesar de assumir a alfabetização como prioridade, o
governo do então presidente Fernando Collor de Melo, resolveu extinguir a Fundação Educar,
não instituindo, na ocasião, nenhum outro órgão que assumisse suas funções.
35
Em 1991, o MEC realiza a transferência da obrigatoriedade com a educação
supletiva, que era do Governo Federal, para os estados e municípios. Com a aprovação da
LDBN 9.394/96 e, posteriormente, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de
Jovens e Adultos, este segmento vem ganhando importantes discussões sobre suas
problemáticas em diferentes esferas sociais18
.
Para Souza (2007), ainda na atualidade, a EJA desenvolve-se por meio de projetos
pontuais, sendo que, em muitos deles, os educadores são pessoas voluntárias, que têm boa
vontade, para ensinar a ler e escrever, mas não têm a formação para o exercício da docência.
Ainda assim, os educadores que hoje possuem uma formação inicial, para alfabetizar, estão
frente à realidade deste segmento, sem conhecer o verdadeiro sentido de sua prática. A este
respeito, Galvão & Soares abrem uma reflexão acerca das concepções que permeiam a prática
docente nas turmas de EJA:
Muitos alfabetizadores, ao deparar-se pela primeira vez com uma turma de
adultos não alfabetizados, parecem se portar diante de “tábulas rasas”, que
precisam do saber do outro para sobreviver. A ideia de que os educadores
têm, entre suas tarefas, a “implantação” de uma suposta consciência crítica
nos educandos é, do mesmo modo, muito forte: aqui também se repete uma
concepção iluminista de educação, na medida em que se atribui aos
intelectuais o papel de disseminar a verdade suposta (GALVÃO &
SOARES, 2006 p. 50-51).
Esta concepção de alfabetização, direcionada ao jovem ou adulto, acaba por
contradizer o pensamento freireano sobre tais questões, embora este mesmo pensamento sirva
de referência, nas mais variadas situações educativas, o que ainda não se percebe está além
dos “conhecimentos prévios” levados à escola pelo adulto, “que precisariam ser resgatados
pelo alfabetizador, para ensinar aquilo que quer, mas um sujeito que já construiu uma história
de vida, uma identidade e, cotidianamente, produz cultura” (GALVÃO & SOARES, 2006 p.
51).
Contudo, a EJA, que observamos na atualidade, tem sobrevivido, através de
vários programas voltados para esse segmento, parcerias entre Secretarias Estaduais e
Municipais de Educação e entidades da sociedade civil, além de alguns programas, oriundos
de universidades, associações, empresas e de iniciativas individuais. De fato, o termo parceria
18
Foi a partir da aprovação da LDBN 9394/96 que a Educação de Adultos passou a ser considerada como
Educação de Jovens e Adultos – EJA.
36
parece ser hoje, o grande articulador da Educação de Jovens e Adultos, sendo reconhecidas
como convênios estabelecidos entre a sociedade civil e o poder público, “ficando a cargo do
governo o financiamento e da empresa ou organização social o encaminhamento pedagógico e
da comunidade à organização para a participação das turmas de EJA” (SOUZA, 2007 p. 40).
O que não podemos deixar de perceber é que sua trajetória reafirma a vontade da
sociedade, em persistir na valorização da educação destes sujeitos que, ao mesmo tempo em
que são jovens, em busca de formação para o mercado de trabalho, representam o adulto na
busca de uma realização, muitas vezes, considerada tardia.
Esta realidade, inevitavelmente, nos direciona a questionamentos sobre a
existência de um problema social- histórico em pleno século XXI e uma fragilidade educativa
dos que conseguem o acesso a essa educação. Em termos de vontade pública e civil, a
constituição e legislação para a Educação de Jovens e Adultos, especificamente, a LDBN
(9.394/96), procuram garantir orientações a propostas pedagógicas concretas e mais próximas
da realidade, referenciando em seu 1º artigo, segundo Lemos (1999), princípios norteadores
da educação que estimula a criação de propostas alternativas para promover a igualdade de
condições para o acesso e permanência do aluno, no processo educativo, a utilização de
concepções pedagógicas, que valorizem a experiência extraescolar e a vinculação da educação
como o trabalho e com as práticas sociais (LEMOS 1999, p. 19).
Revisitar os caminhos percorridos pela EJA, em nosso país, proporciona uma
melhor compreensão sobre sua atual situação, nos permite vislumbrar um panorama de ações,
realizadas em favor deste segmento de ensino, contudo, juntamente com esta visão, podemos
perceber os reais motivos que levaram e ainda levam à construção de políticas de ensino a
esta modalidade. Neste sentido, nossa preocupação, em torno das propostas curriculares,
ganha força, por caminhar de encontro a estas políticas, na procura por compreendê-las em
sua visão de homem, sociedade e mundo, percebendo a possibilidade do reconhecimento
sobre a importância, nos dias atuais, de uma construção dialógica de educação.
Considerarmos a cidade do Recife como cenário de alguns dos principais
acontecimentos sobre a EJA, no país, incluindo nesta, as experiências conduzidas por Paulo
Freire, estreitamos o fio condutor de nossas reflexões, na medida em que se tenta
compreender em que momento esta história passou a ser escrita, de forma diferente, em que
parte deste trajeto seus objetivos tomaram outras direções, caminhos que culminaram, nos
projetos de alfabetização, ainda existentes e na falta de reconhecimento da educação de jovens
37
e adultos, como parte integrante e igualmente importante da educação brasileira, assim como
é vista a educação básica em nosso país.
Igualmente relevante ao “lugar”, ocupado pela EJA, faz- se necessário pensar na
ininterrupção da aprendizagem inicial da leitura e da escrita. Na medida em que muitas ações
se configuraram em forma de campanhas, não se percebe uma preocupação com a
continuidade destas, ou seja, o ler e escrever perdem seu caráter social e são vistos, apenas,
como um processo de decodificação da língua. No entanto, seria injusto desconsiderar
experiências de alfabetização, apreciadas como significativas, mas que foram instituídas, de
maneira isolada, destacando-se justamente por não considerar como centro da aprendizagem
dos alunos o material a ser utilizados por eles, mas a tomada de consciência sobre a
importância das vivências sociais e as experiências de uso da leitura e da escrita, em seu
caráter social, tidas pelos alfabetizandos.
Assim, considerando nosso foco de pesquisa sobre a organização curricular da
rede municipal de ensino do Recife, torna-se importante conhecermos, ainda que
sucintamente, as ações e programas adotados pelo município para a EJA e sua proposta
pedagógica de alfabetização.
1.3 A atualidade da EJA na cidade do Recife.
Como posto anteriormente, olhar para a educação de jovens e adultos na
atualidade, nos remete, inevitavelmente, a um passado que ainda se faz presente na realidade
educativa para este segmento. O espaço destinado a EJA, antecipadamente, evidencia sua
importância na educação do país. Quando pensada sob o olhar das políticas públicas, o caráter
emergencial de erradicação ou controle do analfabetismo tende a defender ações
emergenciais, que desconsideram experiências constituídas, historicamente, sobre
alfabetização, experiências que não alcançaram o sucesso desejado, mas utilizadas de maneira
reorganizada nos dias atuais.
Em Pernambuco, a EJA vem sendo organizada pelos municípios que recebem
apoio do Ministério da Educação (MEC) e do governo estadual, a partir de políticas de
incentivo e financiamento de projetos, que viabilizam o ensino regular para o jovem ou
adulto. Estas iniciativas são postas em prática, através de profissionais da educação,
geralmente inseridos na rede de ensino do município ou voluntários. Na cidade do Recife,
38
estas iniciativas se constituem com base em projetos nacionais, como o Brasil Alfabetizado e
o MOVA – Brasil ou na própria rede municipal de ensino, através de espaços inseridos nas
comunidades.
Na rede municipal de ensino do Recife, os estudantes da EJA “cumprem todo o
Ensino Fundamental, dividido em cinco módulos, num período de cinco anos ou menos.
Turmas especiais de EJA contemplam estudantes portadores de necessidades especiais” 19
.
De acordo com a Prefeitura do Recife, o EJA tem absorvido estudantes egressos do programa
Brasil Alfabetizado, no módulo II deste segmento, além de viabilizar um Projeto Piloto com
cerca de 600 estudantes, objetivando ampliar os módulos IV e V, com projeto pedagógico,
voltado para algumas áreas do conhecimento, numa perspectiva de organização do trabalho e
ação comunitária.
O Programa Brasil Alfabetizado (PBA) 20
, de autoria do Ministério da Educação,
vem sendo organizado pelo município, com o poio de ações da sociedade civil, na
mobilização dos alunos e formação dos alfabetizadores. Em parceria com universidades
públicas, o munícipio conta com o apoio de estudantes universitários de diferentes áreas do
conhecimento e educadores comunitários, no monitoramento das turmas e formação
sistemática. Seus objetivos, segundo o MEC, de acordo com a resolução CD/FNDE Nº 32 de
1º de julho de 2011 buscam em seu Art. 2º:
I – contribuir para superar o analfabetismo no Brasil, universalizando a educação
de jovens, adultos e idosos e a progressiva continuidade dos estudos em níveis mais elevados,
promovendo a acesso à educação como direito de todos, em qualquer momento da vida, por
meio da responsabilidade solidária entre a União, os estados, o Distrito Federal e os
municípios;
II – colaborar com a universalização do Ensino Fundamental, apoiando as ações
de alfabetização de jovens, adultos e idosos, realizadas pelos estados, Distrito Federal e os
municípios, seja por meio da transferência direta de recursos financeiros suplementares aos
que aderirem ao Programa, seja pelo pagamento de bolsas a voluntários que nele atuam.
19
Informações adquiridas através do site: http://www2.recife.pe.gov.br/projetos-e-acoes/projetos/educacao-de-
jovens-e-adultos-eja/ em 20/10/2012.
20
O Brasil Alfabetizado é desenvolvido em todo o território nacional com atendimento prioritário a 1.928
municípios que apresentam taxa de analfabetismo igual ou superior a 25%. Desse total, 90% localiza-se na
região Nordeste. Esses municípios recebem apoio técnico para efetivação das ações do programa, visando
garantir a continuidade dos estudos aos analfabetos.
39
De acordo com Souza (2007), é possível perceber a existência de uma iniciativa
governamental, para uma possível ampliação da alfabetização. Contudo, apesar de apontar
para a valorização do profissional da educação neste segmento, percebemos em seus
fundamentos e no próprio objetivo do Programa, iniciativas que sustentam a ideia do
professor como voluntário e bolsista e não como profissional reconhecido da EJA.
Ainda atendendo ao caráter de projeto educativo e social, o MOVA-Brasil é uma
proposta nacional de combate ao analfabetismo tendo como Comitê Gestor o Petróleo
Brasileiro S.A. (Petrobrás), o Instituto Paulo Freire (IPF) e a Federação Única dos Petroleiros
(FUP), compreendendo que as ações educativas, se desenvolvem através da geração de
emprego e renda para a população. Em seu aspecto metodológico, o projeto busca
fundamentar-se, nos princípios filosóficos, políticos e pedagógicos do educador Paulo Freire,
corroborando com seu pensamento, quando afirma que “a ação pedagógica se desenvolve com
base na Leitura de Mundo do educando ou educanda, a partir da qual se identificam as
situações significativas da realidade em que ele ou ela está inserido (a)” (MOVA- Brasil,
2012). Neste princípio, surgem os temas geradores em concordância com a metodologia
freireana, servindo como base para a escolha dos conteúdos.
De acordo com o projeto, torna-se, igualmente importante, considerar os meios
pelos quais os conteúdos se desenvolvem, numa construção do conhecimento problematizado
através da realidade.
O conhecimento construído no ato de educar busca problematizar a realidade
e a compreensão mais profunda do mundo vivido. A partir dessa
compreensão crítica, educandos e educandas são estimulados a planejar
ações de intervenção social e passam a atuar como sujeitos da construção de
realidades mais justas e humanas (MOVA – Brasil, 2012).
Em Pernambuco, o polo estende a sua área ao Estado da Paraíba, tendo iniciado
suas atividades no ano de 2006, com uma equipe de coordenadores, responsáveis pela gestão
do projeto nos estados, formação de educadores e acompanhamento pedagógico dos
estudantes.
No entanto, diante dos diversos aspectos relevantes às propostas para EJA,
apontamos aqui outro, igualmente importante, na construção curricular deste segmento e, por
que não, ser considerado como uma necessidade inerente à prática educativa em EJA, poucas
vezes explorada pelo docente e tão importante quanto à necessidade da formação do
40
educando, é o reconhecimento das características que formam os sujeitos da EJA nos dias
atuais.
1.4 Marias, Pedros, Severinas,... brancos, negros, índios,... trabalhadores,
desempregados,... jovens, idosos,... homens, mulheres...? Afinal, quem são os sujeitos da
EJA?
Diversas leituras nos mais diferentes âmbitos e discussões em torno da EJA, assim
como as distintas, e muitas vezes, semelhantes reflexões sobre esse segmento, construíram em
nossas buscas a necessidade em elucidar questões como esta, utilizada para abrir a sessão. Ser
sujeito de algo, comumente, nos remete a uma posição de “protagonista” na ação
desenvolvida, o que muitas vezes não ocorre na educação de jovens e adultos. Este
entendimento torna-se comum, não apenas em textos e produções acadêmicas, mas no
discorrer de textos oficiais, os quais são instrumentos importantes em nossa pesquisa. Não se
constitui como objetivo abrir discussões sobre tal categoria, mas aproximar-nos mais
claramente deste conceito dentro da teoria freireana.
De acordo com Sandro de Castro Pitano, em sua tese intitulada Jürgen Habermas,
Paulo Freire e a crítica à cidadania como horizonte educacional: uma proposta de
revivificação da Educação Popular, ancorada no conceito de sujeito social, na qual aponta
uma construção freireana de sujeito social que se concretiza no “homem novo, pensado por
Freire, cuja postura ativa e dialógica, diante do mundo, revela suas origens enraizadas no
processo de libertação” (PITANO, 2008 p. 180)21
. Contudo, “encontra fundamento e
autenticidade no movimento de vir a ser, a marca da incompletude de quem se constrói,
individual e coletivamente, no movimento histórico de busca pela humanização solidária de
todos” (PITANO, 2010 p. 384). Dito isto, não pretendemos utilizar uma terminologia
freireana sobre tal categoria, mas utilizar as diferentes expressões que a circundam dentro da
diversidade constituinte da EJA.
Pensar na diversidade, não apenas enquanto prática pedagógica, mas como parte
integrante da organização curricular, permite ao educando afirmar-se no reconhecimento da
21
Ao consultarmos o Dicionário Paulo Freire, no qual o autor escreve o verbete “sujeito social”, o autor faz uma
observação quanto à presença em algumas obras freireanas do termo sujeito, estando este sempre atrelado a
diferentes formulações, embora tais expressões apresentem afinidade semântica. Destas, destacam-se: sujeito da
história, sujeito do processo, sujeito conhecedor, ser sujeito, sujeito dialógico, sujeito da educação, sujeito da
transformação, sujeito consciente, sujeito político, sujeito crítico, sujeito ético e sujeito cognoscente.
41
sua própria identidade. Silva (2010)22
aponta para uma diversidade de identidades que
orientam a conduta dos indivíduos, seu modo de ser e estar no mundo. Nesta variedade
identitária, as fronteiras existentes entre suas dimensões se fragilizam e permitem que
situações de discriminação e exclusão se conjuguem, na existência dos sujeitos da EJA. Aqui,
discursamos sobre a diversidade de gêneros, raças, religiões, entre outras características
formadoras destes educandos, mas não deixamos de lado outra reflexão, situada no universo
da alfabetização, a postura discriminatória presente na realidade dos “não letrados”.
ABREU & VÓVIO (2010) utilizando as contribuições de Peeter Tulviste, em seu
livro The cultural-historical development of verbal thinking, demonstra que durante um longo
período do século passado, uma perspectiva discriminatória e dicotômica permeou grande
parte dos discursos sobre a importância da educação escolar e aquisição da escrita.
Argumentava-se que ambas promoveriam o desenvolvimento político, econômico, científico
das sociedades e seriam um sinônimo de progresso social; e, no âmbito individual, seriam
responsáveis pelo desenvolvimento cognitivo das pessoas e pela aquisição de um conjunto de
habilidades e conhecimentos necessários para inserção em sociedades modernas, burocráticas
e letradas, como a nossa. Foram atribuídos à escolarização e à linguagem escrita efeitos
homogêneos e universais, responsáveis pela transformação das sociedades e da mente
humana. Tais atribuições encontravam-se baseadas na constatação unânime de estudos
interculturais de que a escolarização, mais que qualquer outro fator, promoveria
transformações, no pensamento, gerando diferenças na maneira de enfrentar as tarefas
propostas nessas investigações.
Na contramão dessa perspectiva, uma nova vertente, construída, a partir do final
dos anos de 1970, opõe-se, radicalmente, ao estabelecimento de dicotomias ou à comparação
valorativa entre escolarizados e não escolarizados, tornando possível abarcar a complexidade
e heterogeneidade da mente humana. Diversamente, os resultados de estudos, fundados nessa
perspectiva, têm impelido pesquisadores e educadores à análise de como pessoas, não ou
pouco escolarizadas, operam cognitivamente e participam de práticas sociais, oferecendo
importantes informações, para que se possa compreender e explicar as estratégias e os
procedimentos que elas usam, distintos daqueles mecanismos utilizados pelas pessoas que
passaram pelo processo de escolarização e, consequentemente, dominam a escrita e dela
22
Dissertação de Mestrado em Educação realizada por Jerry Adriani da Silva e intitulada como “Um estudo
sobre as especificidades dos (as) educandos (as) nas propostas pedagógicas da educação de jovens e adultos –
EJA: tudo junto e misturado! pela Faculdade de Educação – UFMG, 2010.
42
fazem uso. “Assim, se socialmente, pessoas pouco ou não escolarizadas podem ter muitos
pontos em comum, do ponto de vista de seus patrimônios culturais, há mais diferenças e
descontinuidades do que uma perspectiva discriminatória tentou demonstrar” (ABREU &
VÓVIO, 2010 p. 187).
Considerar a construção de um trabalho educativo, com jovens e adultos, significa
atender as necessidades específicas desses sujeitos. Embora o contato com a educação formal
tenha sido pouco ou quase inexistente, as pessoas jovens ou adultas “carregam consigo
marcas profundas de vivências constitutivas de grandes dificuldades, mas também de
esperanças e possibilidades, algo que não deveria ficar fora do processo de construção do
saber vivenciado pela escola” (SILVA, 2010 p. 66).
Compreender os sujeitos das EJA, em sua homogeneidade e heterogeneidade,
quando apontamos as especificidades para a educação de jovens e adultos, é direcionar nosso
olhar para o seu perfil de estudante. Nos dias atuais, não é possível pensar, na educação, para
esta modalidade, a partir de ideias pautadas numa metodologia infantilizada. Entender o
jovem ou adulto como “um membro atuante, na sociedade, é considerá-lo não apenas como
um trabalhador, e sim pelo conjunto de ações que exerce sobre um círculo de existência”
(PINTO, 2007 p. 83). É preciso entendê-lo como jovem, adulto, homem, mulher, idoso, idosa,
pais e mães, trabalhadores formais ou informais, moradores de comunidades mais ou menos
carentes. Desconsiderar esta diversidade de seres e seus propósitos para retomada da educação
escolarizada ou mesmo pensar, nesta educação, como menos significativa, se comparada à
educação para crianças, significa transgredir sua dignidade enquanto cidadão. De acordo com
Vieira Pinto (2007, p. 72), “a alfabetização do adulto é um processo pedagógico,
qualitativamente distinto da infantil”. O autor faz algumas considerações acerca desta
distinção:
a) A distinção entre educação escolarizada da criança e do adulto tem que
se apreciar sempre do ponto de vista das disponibilidades sociais de
trabalho, tais como existem em uma determinada sociedade;
b) O que distingue essas modalidades de educação, não são seus aspectos
pedagógicos específicos (conteúdo e forma, conhecimento e método).
Isso é apenas o secundário, estruturado sobre uma realidade de base (e
que a reflete), o primário, que é a distribuição das possibilidades sociais
de trabalho. Para a criança ir à escola não é um dever (noção idealista,
abstrata), e sim primordialmente um poder (que se decide no plano
social);
c) Os problemas pedagógicos (a matéria a ensinar, os currículos, os
métodos) correspondentes a cada faixa etária são distintos. Não se pode
reduzir o adulto à criança, tampouco se pode reduzir a criança ao adulto.
43
d) O que distingue uma modalidade de educação da outra, não é, portanto o
conteúdo, os métodos, as técnicas de instruir (isto é o secundário, o
reflexo) e sim os motivos, os interesses que a sociedade, como um todo,
tem quando educa uma criança ou um adulto (PINTO, 2007 p. 71-72).
Conforme Pinto (2007), o ponto de partida do processo formal da instrução não é
a ignorância do educando e sim, ao contrário, aquilo que ele sabe, a diferença de
procedimento pedagógico se origina da diferença do acervo cultural que possuem a criança e
o adulto, no momento em que começam ser instruídos pela escola. O autor comenta que, a
distinção da idade se traduz pela distinção da experiência acumulada, ou seja, de educação
informal (pré-escolar) que a sociedade distribui à criança e ao adulto, em razão do desigual
período de vida que cada um possui.
Vale ressaltar que, se por um lado temos altos índices de analfabetismo ou mesmo
de pessoas pouco escolarizadas, de outro, “muito pouco se sabe sobre quem são estas pessoas,
como vivem, o que sabem, o que significa para elas não saber ler e escrever, o que querem
aprender” (ABREU & VÓVIO, 2010 p. 186). Assim, reformulamos algumas reflexões
propostas pelas autoras pertinentes às nossas investigações: para que serve a escola destinada
a grupos tão heterogêneos do ponto de vista cultural como as pessoas jovens e adultas, com
pouca ou nenhuma escolarização? Ou, como realizar escolhas, no interior de currículos que
devem conectar-se às necessidades educativas de pessoas que percorreram um longo período
de suas vidas sem os conhecimentos e práticas sociais compartilhadas no território escolar?
Estas escolhas muito dependem da maneira como vemos a construção curricular
existente, como direcionamos o conhecimento obtido sobre esta construção e quais
concepções carrega subjetivamente em seu interior, influentes em diversos aspectos da prática
de professores e professoras. Os conceitos apontados pelas teorias curriculares “organizam e
estruturam nossa forma de ver a realidade” (SILVA, 2004 p. 17), sem as quais dificilmente
“veríamos” as influências de modelos educacionais, anteriormente concebidos como
determinantes para o sucesso do processo educativo. Nesta perspectiva, abriremos algumas
reflexões sobre a construção curricular, para que possamos melhor compreender sua
institucionalização como documento relevante a prática pedagógica docente.
45
A construção de propostas curriculares que procuram atenuar a ineficiência do
sistema educativo público está intimamente relacionada com a fragilidade do cumprimento do
papel social da escola frente à sociedade contemporânea. Discursar sobre as práticas
curriculares requer, inevitavelmente, um posicionamento político, ético e estético, diante da
realidade educacional e sociocultural apresentada, caracterizada, na atualidade, por sua
heterogeneidade, onde, nitidamente, se percebem os desencontros entre os escritos oficiais, as
práticas educativas e o pensar dos profissionais da educação, muito embora os argumentos
sejam direcionados para uma construção curricular dentro da coletividade.
Neste capítulo, tentaremos balizar as teorias curriculares e sua influência na
educação, não pretendendo realizar uma análise minuciosa, mas discursar sobre as
problemáticas que as encerram, considerando seus diferentes aspectos, possibilitando
reflexões sobre a visão de homem, sociedade e mundo, subjetivamente, incorporada à
organização curricular, explorada em nossa pesquisa. No entanto, procuramos centralizar
nossas discussões sobre o aspecto crítico do currículo, considerando os pressupostos teóricos
trazidos por Henry Giroux, Paulo Freire, Sacristán e Tomaz Silva. Muito embora o enfoque
freireano não esteja voltado para uma teorização específica sobre currículo, podemos
considerar a existência de um esforço teórico “em responder à questão curricular
fundamental: “o que ensinar”? e uma preocupação com a questão epistemológica
fundamental: “o que significa conhecer” (SILVA, 1999 p. 57)”.
Nessa direção, consideramos as perspectivas atreladas à construção curricular para
EJA, levando em consideração as contribuições apresentadas pelos diversos conceitos teóricos
sobre o currículo. Temos como certo que o tema não fica esgotado com as apresentações e
discussões propiciadas pelo capítulo aqui desenvolvido. Entretanto, parece fundamental
esclarecer, que para o debate em torno da organização curricular da EJA é imprescindível uma
visão mais global do tema, para além mesmo da nossa proposta, que se articula em torno do
tema da dialogicidade.
2.1 O Discurso Curricular na educação
Entender a organização curricular apenas como uma relação de conteúdos a serem
trabalhados pelos professores acaba por comprometer sua verdadeira função quando
pensamos, no espaço escolar como instituição social. Superar esta e outras visões sobre o
46
currículo constituiu alicerces para o surgimento de teorias curriculares, que procuram
reconhecer a organização curricular como processo que implica lutas, conflitos e relações de
poder em diferentes momentos da história.
Podemos considerar a ideia de que “por trás” de todo currículo há uma teoria mais
ou menos aparente e imediata, construindo uma “filosofia curricular ou uma orientação
teórica, síntese de uma série de posições filosóficas, epistemológicas, científicas,
pedagógicas e de valores sociais” (SACRISTÁN, 2000 p. 35). O conteúdo a ser ensinado, a
relação professor x aluno, o sistema avaliativo e o próprio acesso ao conhecimento já
determinavam a ideia de currículo, antes da sua legitimação no campo educacional. Esse
conceito nos remete a conceber o currículo numa abordagem histórica, nos questionando
sobre como, em diferentes períodos, as diferentes teorias encerram as discussões sobre
currículo.
Diante da análise curricular a qual nos propomos, julgamos relevante considerar
tal questão, tendo em vista sua influência, na maneira como a EJA vem sendo organizada e
pensada na cidade do Recife. Conhecer as teorias elaboradas sobre o currículo nos auxilia, na
reflexão sobre a quem serve o currículo, que política pedagógica o elabora, ou que visão de
homem, sociedade e mundo o constituiu?
Seguindo uma perspectiva pós-estruturalista, Silva (2004), procura apreender o
significado da teoria como um discurso ou texto político, pondo em evidencia a implicação
das descrições linguísticas da “realidade” em sua produção. Para o autor, enquanto a teoria
descobre e descreve o objeto constituído numa relação de independência relativa à teoria, o
discurso “produz seu próprio objeto: a existência do objeto é inseparável da trama linguística
que supostamente o descreve” (SILVA, 2004 p. 12). Independente das definições
apresentadas pelas diversas teorias ou discursos sobre o currículo, dentre elas circula uma
questão central convindo como pano de fundo sobre os conhecimentos que devem ser
ensinados: “o quê” deve ser ensinado? A construção curricular acaba incorporando uma
seleção de critérios que servem a determinadas teorias como justificativas a questão, estas por
sua vez, procuram justificar os porquês de alguns conhecimentos e de outros não.
Esta seleção de conhecimentos, na construção curricular, não deixa de estar
atrelada à formação da “identidade” e “subjetividade” dos seus envolvidos, tendo em vista
que o próprio pensar sobre os conhecimentos a serem adquiridos está diretamente relacionado
com aquilo que somos ou nos tornamos. Dentro da coletividade “afirmada”, nos dias atuais,
47
pelo sistema educacional, a própria escolha, materializada no coletivo, requer visões
diferentes de grupos diferentes, cada um com suas identidades, abrindo um espaço para a
disputa de poder sobre a construção do currículo.
Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo conhecimento é
uma operação de poder. Destacar, entre muitas possibilidades, uma
identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder. As
teorias do currículo não estão, nesse sentido, situadas num campo
“puramente” epistemológico, de competição entre “puras” teorias. As teorias
do currículo estão ativamente envolvidas na atividade de garantir o
consenso, se obter hegemonia... Estão situadas num campo epistemológico
social... Estão no centro de um território contestado. (SILVA, 2004 p. 16)
(grifo do autor).
São estas relações de poder, instituídas no interior do currículo, que irão separar
as teorias tradicionais das teorias críticas e pós-críticas23
. Contudo, o currículo, como campo
especializado de estudos ganhou força, a partir das primeiras décadas do século XX, nos
Estados Unidos, a partir da institucionalização da educação de massas e o processo de
industrialização. Nesse contexto, o currículo foi considerado como campo de estudos
institucionalizado, a partir de 1918 com o livro The Curriculum de John Franklin Bobbitt.
Com um discurso claramente voltado para a economia, Bobbitt procurou transferir para a
escola um modelo de organização proposto por Frederick Taylor o qual utilizava os princípios
da administração científica, vendo os estudantes como “produtos”.
Estabelecendo padrões ao currículo, Bobbitt defende uma visão tecnicista, na qual
“as finalidades da educação estão dadas pelas exigências profissionais da vida adulta, o
currículo se resume a uma questão de desenvolvimento, a uma questão técnica” (SILVA,
2004 p. 24). Contrariamente as ideias de Bobbit, uma vertente mais progressista representada
por John Dewey, em seu livro publicado em 1902, The child and the curriculum, despontou
para uma construção da democracia contrária à evidência dada à economia.
23
Silva (2004, p. 17) nos convida a uma reflexão sobre a teorização curricular a partir de algumas categorias
enfatizadas por estas teorias: Teorias Tradicionais – enfatizam o ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia,
didática, organização, planejamento, eficiência e objetivos. Teorias Críticas – enfatizam a ideologia, reprodução
cultural e social, poder e classe social, capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação e
libertação, currículo oculto e resistência. Teorias Pós- Críticas – enfatizam a identidade, alteridade, diferença,
subjetividade, significação e discurso, saber-poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade e
multiculturalismo.
48
O modelo proposto por Bobbitt consolidou-se com a publicação do livro de
Ralph Tyler, em 1949, intitulado Basic Principles of Curriculum e Instruction, construindo os
paradigmas da organização e do desenvolvimento. As ideias de Tyler (1974) buscavam
responder a algumas questões, consideradas básicas, geradoras da atividade educacional: que
objetivos educacionais deve a escola procurar atingir? Que experiências educacionais podem
ser oferecidas que tenham probabilidade de alcançar esses propósitos? Como organizar
eficientemente essas experiências educacionais? Como podemos ter certeza de que esses
objetivos estão sendo alcançados?
De acordo com Silva (2004), além de dedicar-se mais precisamente às questões
referentes ao currículo, Tyler expande o modelo de Bobbitt incorporando em sua teoria as
áreas de psicologia e disciplinas acadêmicas, não perdendo seu caráter objetivo. Para
Sacristán (2000), o currículo, visto sob este prisma, aparece como um conjunto de objetivos
de aprendizagens selecionados que devem dar lugar à criação de experiências apropriadas que
tenham efeitos cumulativos avaliáveis, de modo que se possa manter o sistema numa revisão,
para que nele se operem as oportunas reacomodações (SACRISTÁN, 2000 p. 46).
Ocupando-se da questão sobre como fazer o currículo, as teorias tradicionais
assumiam o “status quo” e com isto se propuseram unicamente a elaborar e organizar o
currículo. Analisando esta atividade técnica, as teorias críticas acabam por questioná-la,
pondo em destaque as conjecturas visíveis, nos arranjos sociais e educacionais, preocupando-
se com a tese sobre os conceitos que possibilitem o entendimento a respeito do que o
currículo faz.
2.2 Teorias Críticas e Pós-críticas: uma aproximação
Ao final da década de 1960, as discussões sobre a concepção técnica do currículo
daria lugar a um novo discurso envolvendo as questões curriculares. As teorias críticas
mudam o foco de tais discussões, pondo em evidência o porquê de alguns conhecimentos e
não outros. Algumas teorizações críticas, mais gerais sobre educação, influenciaram as teorias
curriculares que se propuseram a caminhar, na direção da desconfiança, dos questionamentos,
da transformação social, caracterizando o que mais tarde poderíamos chamar de teorias
Críticas e Pós-Críticas, influentes na teorização curricular contemporânea.
49
Silva (2004) aponta uma breve cronologia sobre os textos característicos de tais
teorizações que serviram como base para a construção dos conceitos percebidos na teorização
Crítica e Pós-Crítica do currículo. Em 1970 – Paulo Freire com A pedagogia do Oprimido,
Louis Althusser e A ideologia e os aparelhos ideológicos; Pierre Bourdieu e Jean-Claude
Passeron em A reprodução. No ano de 1971 – Baudelot e Establet com L’école capitaliste em
France; Basil Bernstein em Class, codes and control, v I e Michael Young, Knowledge and
control: new directions for the sociology of education. Em 1976 – Samuel Bowles e Herbert
Gintis com Schooling in capitalista America; Willim Pinar e Madeleine Grumet em Toward a
poor curriculum, bem como Michael Apple com sua obra Ideologia e currículo.
Com a explosão da literatura crítica nos anos de 1970 e 1980, Apple abre uma
nova discussão crítica sobre as teorias tradicionais, tendo como base as críticas radicais á
educação liberal nos trabalhos de Althusser e Bourdieu, direcionando grande ênfase a
questões sobre ideologia e currículo, construindo sua teoria, diante da ideia sobre a ação que a
escola desempenha na classificação do conhecimento oficial. Ao dar ênfase ao conceito de
hegemonia apoiado nas ideias de Gramsci, abre-se uma reflexão sobre a aceitação passiva dos
arranjos sociais existentes, não objetivando o conflito, a resistência ou oposição, mas “uma
luta em torno de valores, significados e propósitos sociais” (SILVA, 2004 p. 49). A ideia de
currículo como resistência apontada por Apple é reforçada pela influência Paul Willis no livro
Aprendendo a ser trabalhador24
.
Embora, a influência de Apple, na construção curricular crítica tenha estabelecido
reflexões mais enraizadas, em teorias gerais sobre educação, e não sendo nosso objetivo
aprofundá-las, prevalecemo-nos de suas ideias, no cerne de nossas discussões, quando nos
leva a reflexão sobre as conexões existentes entre a construção curricular e as relações de
poder. Silva (2004) sugere alguns questionamentos sobre as contribuições de Apple, dentro do
que seria o início de uma politização sobre o currículo. Como as formas de divisão de
sociedade afetam o currículo? Qual conhecimento – de quem – é privilegiado no currículo?
Quais grupos se beneficiam e quais grupos são prejudicados pela forma como o currículo está
organizado?
24
Esta obra relata uma pesquisa, na qual Willis acompanha um grupo de jovens da classe operária em suas
atividades tanto na escola quanto no trabalho, argumentando sobre o encaminhamento desses jovens para
ocupações da classe operária não é o simples resultado passivo de uma lei econômica ou social, mas a criação de
uma cultura juvenil operária, fruto de uma masculinidade fortemente associada com a cultura operária no chão
da fábrica. Em suas conclusões, vislumbra nesse meio cultural, um momento e um espaço de criação autônoma e
ativa que poderia ser explorado para uma resistência mais politicamente informada.
50
A teorização crítica sobre o currículo também pode ser fortemente observada nas
ideias de Henry Giroux. Ao valer-se dos conceitos propostos pela Escola de Frankfurt, mais
especificamente desenvolvido por Adorno, Horkheimer e Marcuse, direcionando sua crítica,
num primeiro momento, a racionalidade técnica e utilitária bem como as ideias dominantes
sobre a construção curricular. Sob a ótica da resistência para o desenvolvimento de uma
construção pedagógica e curricular crítica dos arranjos sociais, Giroux procurou compreendê-
los, através dos conceitos de emancipação e libertação, fortemente defendida pela concepção
libertadora de Paulo Freire.
Assim como Paulo Freire, em sua crítica à “educação bancária” e, na defesa pela
construção de significados, afirmando a cultura dada pelos sujeitos envolvidos no ato
pedagógico, Giroux coaduna com as ideias freireanas, construindo uma tendência,
impulsionada posteriormente numa visão sobre a pedagogia e o currículo, através do conceito
de “política cultural”. Neste conceito, Silva (2004) esclarece que o currículo não estaria
apenas envolvido, numa construção de significados e valores culturais, tampouco seria
relacionado apenas a transmissão de “fatos” e conhecimentos “objetivos”, mas “como um
local, onde ativamente se reproduzem e se criam significados sociais, estreitamente ligados a
relações de poder e desigualdade” (SILVA, 2004 p. 55), numa disputa entre a imposição e
contestação.
Giroux defende a escola, como área de produção cultural, na qual práticas e
representações da linguagem são construídas ou bloqueadas à medida que permite às pessoas
a intervirem, na formação de suas próprias subjetividades. Para ele, “é na linguagem, e,
através dela, que os indivíduos, em contextos históricos específicos, moldam seus valores em
determinadas formas e práticas” (GIROUX, 1987 p. 84). Em sua teoria, a escola é uma das
“esferas públicas básicas, onde, pela influência da autoridade, da resistência e do diálogo, a
linguagem é capaz de construir a maneira como vários indivíduos e grupos codificam e,
assim, leem o mundo” (GIROUX, 1987 p. 84-85).
A proposta de um currículo que seja emancipador e libertador foi defendida por
Giroux, através da formação de uma consciência, capaz de perceber a dominação e a
autoridade atribuída pelas classes dominantes. “A vida social, em geral, a pedagogia e o
currículo, em particular, não são feitos apenas de dominação e controle (SILVA, 1999 p. 53).
Nessa perspectiva, a organização curricular transcorre por três campos que a
constituem: o público, permitindo que escola e currículo considerem os estudantes e seus
51
interesses, dentro da vida social; a percepção dos professores como transformadores, não
admitindo o docente apenas como técnico, mas enquanto sujeito crítico e questionador; além
de assumir uma pedagogia como afirmação das vozes, experiências e história dos estudantes
que a organização curricular não pode desconsiderar.
A crítica freireana ao currículo existente, através da concepção de “educação
bancária”, como mencionamos anteriormente, expressa uma visão epistemológica sobre o
conhecimento, como fato a ser transferido sempre do educador ao educando. Para Freire
(2005), neste conceito de educação, o “educador aparece como seu indiscutível agente, como
seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é “encher” os educandos dos conteúdos de sua
narração” (FREIRE, 2005 p. 65). Dentro de uma perspectiva fenomenológica, Freire defende
uma concepção “problematizadora” de educação, contrária à “educação bancária”,
considerando o ato de conhecer não como ato isolado, individual, mas através de uma
intercomunicação mediada pelo mundo a ser conhecido, por sua intersubjetividade.
É essa intersubjetividade do conhecimento que permite a Freire conceber o
ato pedagógico como ato dialógico. A educação bancária torna desnecessário
o diálogo na medida em que apenas o educador exerce um papel ativo
relativamente ao conhecimento. Em vez do diálogo, há aqui uma
comunicação unilateral. Na perspectiva da educação problematizadora, ao
invés disso, todos os sujeitos estão ativamente envolvidos no ato do
conhecimento. O mundo - objeto a ser conhecido – não é simplesmente
“comunicado”; em vez disso, educador e educandos, criam dialogicamente,
um conhecimento do mundo (SILVA, 1999 p. 60).
Abrindo mão de uma visão apenas estruturalista da educação, Freire procurou dar
ênfase a uma teorização pedagógica, que contesta profundamente a concepção do
conhecimento como “ato de depósito”. Em sua crítica ao currículo tradicional, este é visto
como verbalista, narrativo e dissertativo, numa construção “oca e vazia”, desprendida dos
sujeitos ativos, no ato do conhecimento. Embora não tenha desenvolvido uma teoria
curricular, sua contribuição a este campo se dá através do reconhecimento dos conteúdos,
como mediadores da construção do conhecimento.
Este enfoque sobre os conteúdos, apesar dos indícios gestados nas teorias
tradicionais conduz a uma reflexão sobre como se constroem os “conteúdos programáticos”.
Na perspectiva freireana, é nas experiências dos educandos, e conjuntamente, com estes que
52
se pode encontrar a origem dos “temas geradores”, codificados posteriormente por
especialistas e educadores, envolvidos diretamente no ato pedagógico.
O que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem
peças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os
níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão do mundo, em que se
encontram envolvidos os “temas geradores” (FREIRE, 2005 p. 101).
Aplicado a uma educação problematizadora, o conteúdo programático possibilita
aos educandos uma investigação crítica, em diálogo com o educador. Este, por sua vez,
constitui-se como peça fundamental, como mediador, tornando a própria prática de abertura
ao outro como reflexão crítica, viabilizando, nesta, o diálogo verdadeiro25
. Discorrer sobre
uma construção curricular, sob este enfoque, possibilita o desenvolvimento de um aspecto,
relevante à teoria freireana, pondo em evidência o enfraquecimento das fronteiras entre o
conhecimento erudito e o popular, abrindo uma perspectiva, para um pensar não mais sobre
uma “cultura”, mas em “culturas”. De acordo com Silva (2004, p. 62), “essa ampliação do que
constitui cultura permite que se veja a chamada “cultura popular” como um conhecimento que
legitimamente deve fazer parte do currículo”.
No Brasil, a predominância do pensamento de Paulo Freire sofreria contestações,
em meados de 1980, através da “pedagogia histórico-crítica” ou “pedagogia crítico-social dos
conteúdos”, desenvolvida por Demerval Saviani.
O surgimento da Nova Sociologia da Educação (NSE), na Inglaterra, como uma
forma crítica de abordagem ao currículo foi marcada pelo livro Knowledge ande control
(1971), organizado por Michael Young, no qual desenvolveu sua crítica à “antiga” sociologia
da educação, quanto ao modelo empírico/estatístico sobre a análise do fracasso escolar de
crianças e jovens, nas classes menos favorecidas, procurando analisar “como as funções de
seleção e de organização social da escola, que subjazem, nos currículos, se realizam através
das condições, nas quais seu desenvolvimento ocorre” (SACRISTÁN, 2000 p. 19). Young
defende a tese de que o currículo pode ser considerado uma estrutura por onde o
conhecimento é difundido socialmente.
25
As discussões sobre as categorias de diálogo e dialogicidade apontados por Paulo Freire são apresentadas em
capítulo posterior, ampliando as discussões sobre estes conceitos.
53
Esta corrente sociológica, envolvendo a construção curricular, tende a fortalecer
suas ideias, através da teoria apresentada por Basil Bernstein, na busca por compreender no
currículo sua estrutura organizacional. Para este teórico, “o conhecimento educacional formal
encontra sua realização, através de três sistemas de mensagens – o currículo, a pedagogia e a
avaliação”, (SILVA, 2004 p. 71), considerados como conhecimento válido, transmissão valida
do conhecimento e realização válida desse conhecimento da parte de quem é ensinado,
respectivamente.
Diversas abordagens, dentro da teoria crítica curricular, foram discutidas e
reformuladas com bases sociológicas, marxistas, neomarxistas, humanistas de
fenomenológicas adotadas por diversos teóricos envolvidos ou influentes nas questões
curriculares. Assim como numa determinada realidade foram desenvolvidas ideias sobre o
entendimento dessa realidade, a partir da década de 90, pode-se perceber o surgimento de
outras vertentes curriculares, que diversificaram o campo, associando suas ideias ao pós-
modernismo e aos estudos culturais. De acordo com Sacristán (2000, p. 19), “uma escola sem
conteúdos culturais, é uma proposta irreal, além de descomprometida26
”.
Assim a pós-modernidade trouxe discussões que “ferem” os conceitos adotados
pela teoria crítica, questionando as bases da razão e da racionalidade, fundamentadas na
perspectiva iluminista da Modernidade. A pós-modernidade desacredita as pretensões de um
currículo crítico, no qual os sujeitos envolvidos possam alcançar a emancipação e libertação.
“O pós-modernismo, de certa forma, constitui uma radicalização dos questionamentos
lançados às formas dominantes de conhecimento pela pedagogia crítica” (SILVA, 2004 p.
115). Contudo, esse movimento intelectual não chegaria a construir uma teoria coerente e
unificada, mas “um conjunto variado de perspectivas, abrangendo uma diversidade de campos
intelectuais, políticos, estéticos e epistemológicos” (SILVA, 2004 p. 111). Podemos
considerar que o pós-modernismo trouxe consigo o fenecimento da pedagogia crítica e o
nascimento de uma pedagogia pós-critica.
Outra abordagem feita por diversos autores recorrem às ideias do pós-
estruturalismo, apoiadas nos conceitos sobre discurso e poder de Foucault e a desconstrução
sobre o conceito de diferença (différance) de Jacques Derrida. Assim como o pós-
26
Silva (2004), no aponta algumas discussões sobre as teorias pós-críticas traçando um panorama geral sobre as
origens, influências e conceitos, além da relação existente com as teorias críticas sobre a construção curricular. O
autor pontua os conceitos de multiculturalismo, as relações de gênero e a pedagogia feminista, o currículo como
narrativa étnica e racial, os Estudos Culturais, Pós-Modernismo, Pós- Estruturalismo e o Pós-Colonialismo.
54
modernismo, essa abordagem deriva-se de uma estrutura abrangente, não se constituindo,
propriamente, uma teoria do currículo, o que seria desconexo, quando levamos em
consideração a rejeição dessas abordagens sobre qualquer tipo de sistematização. Entre estes,
há uma diferenciação que consiste no limite à teorização sobre linguagem e o processo de
significação, atribuídos ao pós-estruturalismo e um campo mais abrangente tomado pelo pós-
modernismo.
Portanto sendo o estruturalismo, baseado no estruturalismo linguístico de
Ferdinand de Saussure, nos anos de 1950 e 1960, conteve o meio intelectual, o pós-
estruturalismo procurou dar continuidade às ideias de linguagem, como processo de
significação, mas busca dar certa fluidez, indeterminação e incerteza à rigidez atribuída pelo
estruturalismo. Este, por sua vez, apresenta um conceito de sujeito como invenção cultural,
social e histórica, logo no pós-estruturalismo, “não existe sujeito a não ser como o simples e
puro resultado de um processo de produção cultural e social” (SILVA, 2004 p. 120). A este
respeito, Foucault acrescenta uma mudança a respeito da noção de poder, sendo este
determinante, na constituição do sujeito, numa relação estreita com o saber.
Procurando analisar a complexidade das relações de poder, herdadas entre a esfera
econômica, política e cultural da conquista colonial europeia, a teoria pós-colonialista trouxe
ao currículo as contribuições de Frantz Fanon, Aimé Césaire e Albert Memmi. Dentre estes,
os livros de Fanon passaram a ser considerados como precursores para uma teoria pós-
colonial na atualidade.27
No Brasil, as obras iniciais de Paulo Freire podem ser apreciadas
como introdutórias ao pensamento pós-colonialista, na educação, quando em diversas
passagens de suas obras, podemos encontrar citações tanto de Fanon quanto de Memmi. Nos
estudos contemporâneos, com bases pós-colonialistas, Edward Said em seu livro
Orientalismo, iniciando uma narrativa sobre o “Outro”, numa perspectiva de dominação,
como objeto de saber e poder.
Para Sacristán (2000), o currículo modela-se, dentro do sistema escolar concreto,
direcionado a sujeitos reais, serve-se de determinados meios, cristalizando-se, num contexto,
que lhe atribui um significado real. De tal modo, abrimos a reflexão sobre a importância do
conhecimento sobre as teorias do currículo por parte de todos os envolvidos diretamente no
sistema educacional. Conhecê-las nos leva a questionamentos, cujas respostas se mostram
27
As obras aqui consideradas são: Pele negra, máscaras brancas, publicado em 1952 e Os danados da terra,
publicado em 1961.
55
desveladoras dos porquês de uma dada realidade. Afinal, quando organizamos um
planejamento ou decidimos quais conteúdos abordar, pensamos na distribuição desses
conteúdos de forma crítica? Como vemos os conteúdos inseridos no núcleo “duro” de cada
disciplina? Quais critérios são utilizados para a escolha dos temas trazidos para sala de aula?
Nesse sentido, torna-se relevante entender as relações existentes entre a sociedade
e o currículo, pois é inegável a influência de uma cultura hegemônica, nos materiais didáticos,
na escola e, na maioria das vezes na prática dos professores e professoras resistentes à
reflexão. Ante do desafio de sermos educadores e educadoras, inerente à nossa prática, há
uma necessidade em compreender quais saberes são socialmente relevantes e como se dá o
processo de hierarquização entre esses saberes, além do entendimento sobre as concepções de
homem, sociedade e educação constituídas como as bases que sustentam as propostas
curriculares, hoje vivenciadas em nossas escolas.
Brevemente e de maneira pontual nos limitamos a fazer considerações sobre
algumas das diversas teorias originárias em diferentes momentos da sociedade. No entanto, é
importante que não percamos de vista os conceitos apresentados pela teoria crítica no âmbito
educacional e da sociedade, pois estes conceitos nos auxiliam, na compreensão, sobre a
construção curricular para EJA na rede de ensino da Cidade do Recife.
2.3 O currículo como instrumento articulador na prática docente
O currículo, sob um ponto de vista teórico, para uma educação que exige do
docente uma formação, cada vez mais específica, considerando discursos, que apreciam a
conscientização, emancipação e libertação, destoam consideravelmente do ponto de vista
diferente do pensar tecnicista sobre o currículo, no qual se privilegiou a didática, o
planejamento e a eficiência destes na construção da aprendizagem, desconsiderando-se assim,
aspectos sociais e culturais dos processos educativos. As abordagens, em torno de aspectos
críticos do currículo trouxeram perspectivas diversas sobre a educação e seus processos de
escolarização. Tais abordagens são apontadas por Santiago (2006), sob um ponto de vista que
as caracteriza, de acordo com o modo como direcionamos seus estudos. A autora faz sua
distinção, concebendo-o como uma disciplina curricular, campo de investigação científica ou
mesmo do ponto de vista das práticas pedagógicas.
56
No primeiro sentido de disciplina curricular – o currículo é instrumento de
trabalho utilizado predominantemente por docentes que fazem uso dele
como um dos conteúdos de formação e como um dos saberes profissionais,
com alcance muito limitado no ensino superior. No segundo caso, campo de
investigação, o currículo é do interesse básico dos pesquisadores/as que se
preocupam com os processos de escolarização em diferentes níveis,
modalidades e formas de concepção, organização, efetivação e avaliação. No
que se refere a práticas pedagógicas, o interesse é centralizado nas práticas
administrativas e pedagógicas que ocorrem no âmbito escolar e não escolar,
além daquelas oriundas da relação docente-discente (SANTIAGO 2006, p.
74).
Considerando o currículo, enquanto campo de investigação, a partir de
observações sobre práticas pedagógicas, vivenciadas pela pesquisadora e citadas
anteriormente, percebe-se um crescimento quanto à sua teorização, ao mesmo tempo em que
não podemos “fechar os olhos” para um distanciamento das práticas escolares. Essas questões
nos movem para o sentido desta pesquisa quando procura compreender este direcionamento,
dentro da construção curricular para a EJA. Em Santiago (2006, p. 75), esta perspectiva
curricular “passa a interessar não mais como uma questão que deve responder ao – como fazer
o currículo – mas ao efeito do deste – o que ele causa, o que ele diz, o que ele é capaz de
fazer”.
Analisando a relação entre a formação, o currículo e a prática pedagógica em
Paulo Freire, Santiago (2006) aponta o diálogo como uma categoria que representa a
dimensão dinâmica do deste, sendo entendida como uma “relação epistemológica, de
horizontalidade, capaz de gerar autonomia, responsabilidade e compromisso pelo exercício da
fala-escuta e como processo de reflexão coletiva” (SANTIAGO, 2006 p. 81). É através do
diálogo que se propõe a construção do “conteúdo programático” da educação para jovens e
adultos. Diálogo que procura estabelecer os “temas significativos” para o conteúdo curricular.
Este se torna um ponto de ampla conceituação, o qual poderiam ser consideradas
diversas definições e concepções, mas que não seriam uteis à compreensão da teoria
empreendida neste estudo. Quando consideramos o diálogo como elemento norteador das
relações dialógicas, compreendidas numa perspectiva freireana, estamos reafirmando o
diálogo como possibilitador de uma educação para libertação autêntica, porque, através dele, é
possível o encontro dos homens para a comunicação e superação da situação de oprimidos.
Igualmente importante é a reflexão, em torno desta concepção na organização curricular da
EJA, a qual se torna necessário considerar quais contribuições esta organização tem trazido ao
educador e educadora, enquanto agente ativo e materializador de tais concepções curriculares.
57
2.3.1 O Currículo na Educação de Jovens e Adultos
A escola para os sujeitos jovens e adultos é vista como território, socialmente
instituído, para mediar o processo que compreende ter acesso a bens produzidos ao longo da
história da humanidade e a modelos culturais de ação, fundados em saberes, valores, práticas
e outros referentes. É também lócus privilegiado de produção, circulação e consolidação de
significados, de conhecimentos (ABREU & VÓVIO, 2010 p. 183). Revisitar a história da
EJA nos permite perceber que esta permaneceu em sua maior parte, relacionada ao modo de
alfabetização, além da relevante influência de concepções distintas, que aprofundou, cada vez
mais, o debate em torno das relações entre educação e mudança social. As autoras apontam a
primeira concepção como educação compensatória, “orientada para recuperar o “atraso28
”
educativo de pessoas que não puderam estudar em idade “própria”, com fortes traços do
modelo e formato da educação regular” (ABREU & VÓVIO, 2010 p. 184).
De acordo com Di Pierro (2005), é possível observar, no campo legal, a presença
deste paradigma, na EJA, desde a concepção do ensino supletivo, por volta de 1971,
mantendo este segmento, “nas rígidas referências curriculares, metodológicas, de tempo e
espaço da escola de crianças e adolescentes, interpondo obstáculos à flexibilização da
organização escolar, necessária ao atendimento das especificidades desse grupo sociocultural”
(DI PIERRO, 2005, p. 1118).
A educação como meio para transformação e emancipação das pessoas, é
considerada como uma segunda concepção, oriunda das experiências de Paulo Freire em
continuidade na Educação Popular.
Ultrapassar dicotomias e definir o papel da educação escolar para pessoas
jovens e adultas, bem como estabelecer currículos para a educação escolar
pública com a meta de integrar plenamente grupos estigmatizados e
destituídos de seus direitos educativos, são algumas problemáticas para as
quais uma perspectiva emancipatória e sensivelmente cultural tem tentado
responder. As produções de inúmeros pesquisadores e as experiências no
campo da educação popular a partir dos postulados humanistas e críticos de
Freire têm feito emergir e reiterar princípios produtivos para a construção e
concretização de currículos orientados para essa perspectiva. Destacamos,
28
O termo atraso encontra-se entre aspas, pois, em nossa sociedade, um dos discursos correntes é o de que as
crianças e adolescentes devam ocupar os bancos escolares. A impossibilidade de acessar e permanecer em
processos de escolarização é, muitas vezes, tomados como de responsabilidade dos indivíduos, como um
problema de atraso a ser compensado, na vida adulta, de modo abreviado (ABREU & VÓVIO, 2010 p. 195).
58
por exemplo, o (re) conhecimento da realidade social dos educandos e das
comunidades onde esses programas estão inseridos; a valorização das
experiências prévias dos educandos e dos patrimônios culturais construídos
fora do âmbito escolar e de modos muito variados, a reorganização dos
conteúdos escolares, a ressignificação dos processos de avaliação, com foco
na aprendizagem e com novos formatos, a investigação sobre as reais
necessidades de aprendizagem dos sujeitos, entre outros (ABREU &
VÓVIO, 2010 p. 185).
Assim, a organização curricular, para educação de jovens e adultos não pode ser
pensada, a partir dos interesses da educação básica, mas de acordo com as especificidades
deste segmento, considerando suas características próprias, levando em consideração seus
sujeitos e o lugar que ocupam na sociedade. Na verdade, podemos considerar a existência de
uma equação complexa entre os conhecimentos relevantes e necessários ao processo de
escolarização e sua articulação com os saberes, oriundos do cotidiano dos estudantes. A
abordagem, formalista do currículo considera a superioridade do saber teórico sobre o prático,
dos conhecimentos eruditos sobre os conhecimentos do cotidiano. Nesta abordagem
constroem-se visões tradicionalistas de educação que muito embora negadas, ainda se fazem
presentes, na prática docente, especificamente, na educação de jovens e adultos.
Conforme Barreto (2006), a visão tradicional de conhecimento faz uma separação
nítida entre fazer e pensar; apresenta uma valorização exagerada da memória, uma
necessidade de verbalização excessiva, uma concepção de conhecimento como absoluto;
hierarquiza os conhecimentos – transformando diferenças em desigualdades; concentra-se na
transmissão verbal do conhecimento; não favorece os alunos da “área popular” e, como
decorrência, educa para a submissão (BARRETO, 2006 apud ABREU & VÓVIO, 2010 p.
189). A autora explora a transmissão verbal do conhecimento científico em seu sentido
equivocado em se constituir como única forma de conceber o conhecimento. Defende a
transmissão como um discurso sobre o objeto do conhecimento, o qual mesmo se
estabelecendo entre sujeitos, em diferentes posições, não impede a existência de reflexões,
discussões e apropriação.
Considerar os imperativos da vida cotidiana de estudantes, na EJA, dentro dos
conteúdos curriculares, não significa estabelecer degraus que separam tais necessidades dos
conhecimentos científicos necessários à sua formação, mas possibilitar o pensar, na
organização curricular, de maneira a conceber espaços de construção do conhecimento, a
partir das experiências vivenciadas por seus principais envolvidos. Deste modo, procuramos
59
vislumbrar nos documentos que embasam a formação curricular da EJA, na cidade do Recife,
indícios de uma teoria cada vez mais necessária como base teórico-metodológica para a
educação que vem sendo desenvolvida neste segmento, a dialogicidade da educação pensada e
refletida pelo educador Paulo Freire e sutilmente explorada no próximo tópico deste estudo.
Neste intento, procuramos demonstrar os fundamentos da teoria dialógica da
educação, trazendo como elemento fundante nesta teoria, o diálogo. Apresentado como
necessidade humana e consequentemente a prática humanizadora. Paulo Freire nos fala sobre
o diálogo condutor da libertação no qual educadores e educandos desfazem a contradição
entre ambos por meio da mediação do mundo, tornando-se mutuamente sujeitos da educação.
Tentar compreendê-la se constitui nossa intenção no capítulo subsequente.
61
A problemática que procuramos investigar, nesta pesquisa faz referência às
possíveis contribuições da Proposta Curricular da Rede Municipal de Ensino do Recife, como
possibilidades de direcionamentos a práticas pedagógicas dialógicas, na Educação de Jovens e
Adultos. Diante dos esforços teóricos em direção aos estudos e fundamentos da pedagogia
freireana, percebemos a dialogicidade como uma categoria-chave, no propósito a que nos
dispomos, procurando não supor antecipadamente que esta categoria esteja presente em tais
propostas, mas ressaltar sua relevância à medida que buscamos as possibilidades de sua
existência.
Muitas são as obras que fazem alusão à influência do pensamento de Paulo Freire
sobre a Educação de Jovens e Adultos cabendo destacar nossa intenção em utilizar aquelas
que melhor esclarecem as ideias-força, representantes do seu pensamento, tendo em vista que
a categoria a qual nos propomos analisar não se encontra ancorada, especificamente em
apenas uma de suas obras, mas no conjunto de algumas delas. Nitidamente, o diálogo
encontra-se instituído na ação pedagógica de Freire.
Não obstante consideremos o educador Paulo Freire, reconhecido como educador
de adultos, sendo autor de um método para alfabetização que convida o educando a um
processo de apreensão da realidade com vista à transformação, não significa afirmar que
nossos esforços se resumem a tentar perceber suas concepções, nas mensagens de
documentos. De certo, nos debruçamos, na tentativa de verificar uma ideia central, em seu
pensamento, na perspectiva das diretrizes curriculares, considerando o lugar e o significado
do diálogo, no processo de formação dos educandos, dentro das propostas curriculares para
EJA, assim como verificar este desdobramento sobre as narrativas docentes.
Freire oferece uma contribuição significativa na formação de uma sociedade
democrática e libertadora, à medida que cria uma concepção de educação popular,
direcionada ao excluído do conhecimento e, consequentemente, da sociedade com a qual
convive. Procurou construir e defender suas ideias, em direção a um modelo de sociedade
excludente, desigual e opressora, propondo a superação, através do desenvolvimento da
consciência crítica. Suas ideias sobre educação, sucessivamente, instigaram a construção de
teorias, com base no respeito aos educandos, na constituição da autonomia, na presença de
uma educação dialógica, propondo uma constante reflexão, que reformulou suas ideias e
possibilitou a criação de novos paradigmas educacionais, na recriação de uma práxis
pedagógica libertadora.
62
Como mencionado anteriormente, as concepções de diálogo e dialogicidade, em
Paulo Freire, não são demonstradas, de forma pontual em uma de suas obras e no esforço de
compreendê-las, nos debruçamos fundamentalmente, naquelas que melhor nos apresentam
ideias que correspondem à curiosidade que nos move. Por hora, identificamos as obras
Educação como prática da liberdade (2010), Pedagogia do Oprimido (2005), Extensão ou
Comunicação (2001), Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa
(1996), Ação cultural para a liberdade e outros escritos (1981) e Pedagogia da Esperança
(1992), nas quais ousamos fazer uma interpretação e sistematização das ideias que assinalam
a teoria da dialogicidade na perspectiva do educador.
3.1 O Diálogo como necessidade humana.
O reconhecimento do homem como sujeito de sua realidade pode tornar-se
possível, através de uma metodologia problematizadora, construindo possibilidades de
reflexão e ação sobre essa realidade. Dialogar as necessidades e urgências do outro se torna,
necessário ao trabalho docente, na EJA, pois dentro do âmbito educacional deste segmento
emergem particularidades que caracterizam seus participantes. Nessa construção de relações,
entendemos ser a linguagem a primeira instituição cultural do ser humano é por meio dela,
que as relações passam a fazer sentido.
Diante do campo conceitual abrangente, no qual se compõe a dialogicidade da
educação, não podemos deixar de enfatizar a importância da constituição da linguagem,
dentro da formação social do ser humano, à medida que esta abarca diferentes manifestações
facilitadoras, na construção de variantes instrumentos de comunicação. Contudo, não
pretendemos fazer uma análise linguística, como mencionado, anteriormente, mas situá-la
dentro de nossas discussões, tendo em vista seu papel fundamental na constituição do ser
humano.
Esta linguagem procura ser vista como local de relações sociais, não apenas como
a “representação do pensamento”, tampouco como “instrumento de comunicação”, mas como
uma linguagem que constitui os homens e constitui a ação entre os estes, por meio do trabalho
coletivo. Como ato de conhecimento, a alfabetização de jovens adultos necessita de que uma
relação de autêntico diálogo entre educadores e educandos, se confirme; nele se façam
igualmente sujeitos do ato de conhecer, mediatizados pelo objeto do conhecimento. Neste
caminho, Freire (1981, p. 40) afirma que “os alfabetizandos assumem, desde o começo
63
mesmo da ação, o papel de sujeitos criadores, refletindo criticamente sobre o próprio processo
de ler e escrever e sobre o profundo significado da linguagem”. Entendemos ser o diálogo um
caracterizador da linguagem e elemento constituinte de ações, capazes de traduzir o pensar
dialógico na educação.
Estas ações implicam o reconhecimento do caráter histórico e social da fala,
servindo como instrumento de comunicação, assim como sua concepção, enquanto declaração
de relações e lutas sociais. “O diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria
natureza histórica dos seres humanos. É parte do nosso progresso histórico, do caminho para
nos tornarmos seres humanos” (SHOR & FREIRE, 1986, p. 64). Este reconhecimento do
homem como ser histórico, envolvido num caminho de transformação, considera o diálogo de
extrema importância, nesse processo. As relações de produção e sua estrutura sociopolítica
revelaram-se, de certo modo, através da comunicação estabelecida em cada época ou grupo
social.
Na procura por entender o diálogo nas obras freireanas, encontramos um de seus
principais elementos, senão o seu elemento mais importante, a palavra. Esta viria como um
meio, para que o diálogo se estabeleça e ganhe sentido através da ação – reflexão de seus
sujeitos.
Se, é dizendo a palavra com que, “pronunciando” o mundo, os homens o
transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens
ganham significação enquanto homens, por isto, o diálogo é uma exigência
existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de
seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não
pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito ao outro, nem
tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas entre seu
permutantes (FREIRE, 2005a p.91).
Em Bakhtin (1986), a palavra é o modo mais puro e sensível da relação social,
como fenômeno ideológico, trata-se da comunicação da vida cotidiana. O material
privilegiado de comunicação, na vida cotidiana, é a palavra (BAKHTIN, 1986 p. 36). Tendo a
palavra como meio para a existência do diálogo, pronunciar a palavra não seria sinônimo de
transmissão de ideias que são absorvidas por seus envolvidos, nem tampouco discussão
intelectualizada fundada a razão de um sujeito ao outro, mas na conquista do mundo por
sujeitos dialógicos para a libertação dos homens. Entender a Educação de Jovens e Adultos
como ato dialógico torna-se um momento do processo de humanização, não se tratando de um
64
diálogo como troca de informações, mas um diálogo como fenômeno humano, onde a palavra
ganha força na ação e reflexão.
Esta palavra, viva e dinâmica, ação e reflexão, denúncia e anúncio, destruidora e
construtora, acusadora e libertadora, existencializada no diálogo (JORGE, 1979 p. 34) 29
. E
concretizando-se no diálogo, característica puramente humana, em Paulo Freire, “é a palavra
dos homens entre si, uns com os outros, dialogicamente” (idem), não se constituindo, no
silencio, na verbosidade, no falso testemunho entre os homens.
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco
pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os
homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o
mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta
problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar.
(2005a p. 90) (grifo do autor)
Esta existência humana nos difere de outros animais, ao mesmo tempo em que
nos traz a necessidade em estabelecer relações propícias ao diálogo que em Freire (1986, p.
64) é visto não apenas enquanto método ou tática para se conseguir resultados desejáveis,
“mas como o momento em que os humanos se encontram, para refletir sobre sua realidade tal
como a fazem e refazem”. Este encontro, mediatizado pelo conhecimento do mesmo objeto os
torna igualmente sujeitos, nessa construção, como nos lembra Freire, tanto é sujeito o “eu”
como o “tu”. Compreendido como necessidade humana, em Bakhtin (1997), dialogando nos
construímos, na relação/confronto com o outro. Dessa relação/confronto, podemos construir
consensos, situação harmoniosas e/ou criativas/originais, como podemos dominar/ocultar. É,
pois, uma relação de sentido constituída/expressa por sujeitos reais.
Observar aspectos constituidores de uma prática dialógica, em diretrizes
curriculares, traz a necessidade da compreensão do verdadeiro sentido do diálogo, ao qual nos
remetemos. Este sentido procura considerar o diálogo, não apenas enquanto situação de
oposição ao monólogo, mas como uma “travessia” de algo por meio da palavra. Esse algo, a
ser atravessado, remete-nos ao mundo das significações, das experiências, numa tradução da
29
Traremos para esta reflexão sobre diálogo e dialogicidade, as contribuições de Jorge, J. Simões em seus livros
“A ideologia de Paulo Freire” (1981) e “Sem ódio nem violência – a perspectiva de libertação segundo Paulo
Freire” (1979) por trazerem subsídios a uma melhor compreensão sobre o diálogo e a dialogicidade na
perspectiva libertadora como aprofundamento da teoria freireana, suas referências encontram-se ao final deste
estudo.
65
vida vivida para a vida refletida. Amplia a capacidade de duvidar e perguntar, distanciando-
nos do sentimento de ter que encontrar todas as respostas e nos remete a um constante
perguntar sobre os problemas práticos que envolvem a própria existência humana e sua
condição30
. O perguntar sobre esses problemas induz a tentativa de solucioná-los. De acordo
com Galeffi (2008, p. 135), “questionar é pôr-se diante de uma escolha e de uma decisão
inadiável: abrir-se para o agir comum-pertencente e corresponsável ou manter-se iludido
diante do jogo de forças no mundo e das relações humanas”.
Dialogar pressupõe dispor-se a julgamentos, permitir-se fazer parte de um estado
de consciência de seus participantes, o sentimento, juízos de valor, o modo de agir, os
conceitos pré-estabelecidos, sem o verdadeiro entendimento da realidade. “Tudo o que se põe
como certo é suspenso no movimento dialógico” (GALEFFI, 2008, p.319). O diálogo, em seu
caráter filosófico, constitui-se numa atitude investigativa, que não se limita a ideias e posições
determinadas, soberanas historicamente. Na educação, a práxis dialógica se estabelece, num
diálogo, que envolve a tradição, as solicitações da vida presente e um projetar-se, no constante
devir, conduzindo a um lugar proporcionado pelos dialogantes. Não pressupõe um ponto de
chegada, mas de onde se deseja partir, num movimento constante entre ambos.
O diálogo não é lugar conciliador de conflitos interpessoais, e sim o lugar
onde os conflitos são tomados como problemas vitais emergentes comuns,
problemas que requisitam plena atenção e investigação na condução
inteligente e diligente da vida em seu sentido prático e em seu mistério
insondável (GALEFFI 2008, p. 317).
Freire (1979) ressalta que, para tornar o diálogo um ato de conhecimento, é
necessário que os sujeitos cognoscentes tentem compreender a realidade, cientificamente, no
sentido de descobrir nela a sua razão de ser, ou seja, o que a faz como está sendo. Não se trata
de ter a razão superada pela palavra, mas no saber em que a (re) invenção e a investigação se
constituam numa busca intrigante, impaciente e constante com o os outros e com o mundo. O
diálogo, aqui explorado, faz um convite a seus dialogantes, ao comprometimento com uma
existência que é humana onde se torna necessário ser capaz de ver, no outro, sua própria
condição. Não se trata apenas de um conhecer sobre algo que propõe um desenvolvimento
30
Esta observação ajuda-nos na reflexão filosófica necessária a compreensão de aspectos caracterizadores do
diálogo no âmbito educacional.
66
intelectual, mas perceber-se como sujeito capaz de questionar, compreender e modificar a
realidade à sua volta, num processo que implica constante devir.
Nesse caminho, Freire (1996) pontua que o diálogo consiste no respeito aos
educandos, não somente enquanto pessoas, mas também enquanto expressões de uma prática
social. Não se trata de espontaneísmo, que deixa os estudantes entregues a si próprios. A
presença do educador não é apenas uma sombra da presença dos educandos, pois não se trata
de negar a autoridade que o educador tem ou representa, para ele, “o pensar do educador
somente ganha autenticidade, na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados ambos
pela realidade” (FREIRE, 2005 p. 74). As diferenças entre o educador e o educando se dão,
numa relação em que a liberdade do educando não é proibida de exercer-se, pois essa opção
não é, na verdade, pedagógica, mas política, o que faz do educador um político e um artista, e
não uma pessoa neutra.
Diante do objeto cognoscível, numa relação onde o diálogo é o elemento
norteador, educandos e educadores são capazes de estabelecer uma relação assumindo uma
postura de sujeitos cognoscentes na qual o diálogo mesmo assume o papel de mediador, não
permitindo um “vácuo” entre seus pronunciantes. Freire aponta para uma compreensão sobre
o diálogo que vai, além de percebê-lo como “espaço livre”, mas como um lugar para a
educação, dentro de uma postura que exige responsabilidade, objetivos, direcionamento,
determinação e disciplina, na direção de uma educação para a transformação.
O diálogo significa uma tensão permanente entre a autoridade e a liberdade.
Mas, nessa tensão, a autoridade continua sendo, porque ela tem autoridade
em permitir que surjam as liberdades dos alunos, as quais crescem e
amadurecem, precisamente porque a autoridade e a liberdade aprendem a
autodisciplina (...). Uma situação dialógica não quer dizer que todos os que
nela estejam envolvidos têm que falar! O diálogo não tem como meta ou
exigência que todas as pessoas da classe devam dizer alguma coisa, ainda
que não tenham nada a dizer! (SHOR & FREIRE, 1986 p. 67).
Assim, dialogar é também escutar, fundamentalmente, as opções e urgências do
educando, num encontro dos seres humanos, na busca do ser mais, por isso ele não pode
fazer-se, de forma vazia, fastidiosa, burocrática, sem esperança, nas atitudes que dele podem
nascer, tomando o sentido inautêntico, de doação. O pensamento crítico que se materializa, no
diálogo, como um constante processo de reconhecimento da realidade, aberto na
67
dialogicidade, corresponde a uma das possíveis atitudes geradas por um diálogo verdadeiro,
apontado por Freire (2005, p. 95) como ”um pensar que percebe a realidade como processo,
que capta em constante devenir e não como algo estático”.
A relação epistemológica, capaz de ser estabelecida entre educador e educando,
diante do objeto do conhecimento, possibilita um vínculo entre esses sujeitos adequado a uma
aprendizagem coletiva onde o diálogo “é a confirmação conjunta do professor e dos alunos,
no ato comum de conhecer e reconhecer o objeto de estudo” (SHOR & FREIRE, 1986 p. 65).
Então, “em vez de transferir o conhecimento, estaticamente, como se fosse uma posse fixa do
professor, o diálogo requer uma aproximação dinâmica na direção do objeto” (idem). Não
existem “fórmulas” pré- estabelecidas, um modelo determinado de diálogo, sua importância
se constitui em sua própria constituição como instrumento de libertação31
.
A prática dialógica enquanto constituição do sujeito, estabelecida entre
educadores e educandos em turmas de EJA, sendo a práxis docente uma ponte para a
“travessia” deste diálogo, precisa fundamentar-se em uma concepção de educação, como
prática da liberdade, permitindo uma práxis (ação-reflexão-ação) que não se traduz num
simples encontro entre educador e educando em situações pedagógicas. É preciso que esse
diálogo se estabeleça no entendimento de constantes indagações sobre o que dialogar.
Assim, é necessário debruçar-se sobre a compreensão dos conteúdos abordados e
a relação que será estabelecida com a realidade, por meio do diálogo, resultando no trabalho
pedagógico realizado pelo docente, nas salas de aula. Nesta relação dialógica entre conteúdos
e realidade, surge a abordagem das variantes econômicas, sociais, políticas e educativas, pois
“é respondendo às suas necessidades existenciais – e não às desligadas das existências deles –
que o diálogo se torna o meio mais viável da libertação” (JORGE, 1979 p. 63). O diálogo
constitui-se como o “selo do ato cognoscente” desvelador da realidade. De acordo com Freire
(2001, p. 52), o que se pretende com o diálogo é “a problematização do próprio
conhecimento, em sua indiscutível relação com a realidade concreta, na qual se gera e sobre a
qual incide, para melhor compreendê-la, explicá-la, transformá-la”
Contudo, Freire nos traz algumas exigências à existência do diálogo verdadeiro,
diálogo como instrumento de libertação. Componentes essenciais ao encontro dos homens
31
Ainda neste capítulo, exploramos o diálogo como instrumento de libertação na prática educativa, descrita na
teoria dialógica freireana.
68
com os homens e com o mundo pronunciado, ou seja, como sinônimo de liberdade e
humanização.
3.2 Amor, humildade, fé, confiança e esperança: elementos norteadores do diálogo
libertador.
Para Freire (2005), o diálogo é mais que a pronúncia do mundo, é um ato de
amor, significando compromisso com os homens que se encontram na condição de
oprimidos32
, assumindo responsabilidade com sua causa, a causa da libertação.33
É uma
superação do sentimento de arrogância, de autossuficiência, de alienação da ignorância que dá
lugar à confiança, à esperança, ao pensar verdadeiro, crítico, ao encontro dos homens para ser
mais, acreditar em suas possibilidades, antes mesmo de se dizer comprometido com suas
necessidades.
De fato, quando pensamos em manipulação, sujeição, ordens, imposições, muitas
vezes justificadas pelo próprio amor, mas que não permitem a liberdade, os homens não são
vistos como sujeitos, mas como objetos da transformação. No amor verdadeiro, o diálogo
torna-se um compromisso, um ato de valor, no qual seus sujeitos permitem-se libertar da
opressão e “passam a criar a si mesmos e ao mundo, não já como objetos, mas como sujeitos
que fazem a própria história na liberdade que o amor lhes dá como direito” (JORGE, 1979 p.
40). Em Freire (2005, p.92), “somente com a supressão da situação opressora é possível
restaurar o amor que nela estava proibido. Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não
amo os homens, não me é possível o diálogo”.
O diálogo requer aproximação, encontro, aceitação, para Freire, não pode ser um
ato arrogante. O diálogo estabelecido, verticalmente, de cima para baixo, não pode ser
libertador, não pode conter a humildade. De acordo com Freire (2005), não há diálogo se não
vejo a ignorância em mim e nunca no outro; não há diálogo, se nos colocamos como
“diferentes”, superiores, incapazes de perceber-nos no outro; não há diálogo, se detenho a
32
Em decorrência do processo de colonização, as relações de poder determinaram uma condição de opressor-
oprimido em nossa realidade social. O caráter explorador e de dominação de uns para com os outros está
historicamente presente na sociedade brasileira. Pode ser caracterizado primeiramente, pela relação entre
colonizador e nativo, o senhor e o escravo, e sucessivamente, até os dias atuais, com diferentes configurações e
podendo até ser mais sutil do que anteriormente. 33
O sentido de libertação remonta as definições para uma educação libertadora. Esta, por sua vez, busca
desenvolver uma consciência crítica, a qual os educandos já são portadores, vendo-os como sujeitos da história.
Procura mostrar que todos são agentes transformadores do mundo, capazes de decifrar os enigmas da sociedade,
refletindo e buscando caminhos para mudar as situações de opressão.
69
verdade e, no outro, apenas vislumbro sua incapacidade; não há diálogo, se não somos
capazes de admitir nosso inacabamento e, como seres inacabados, necessitados, também, do
que o outro pode ensinar. De fato, o diálogo libertador requer homens e mulheres, em
comunhão, na busca para “ser mais”.
Esta busca requer para o educador, a existência de uma intensa fé nos homens34
.
Fé, no seu poder criador, na sua capacidade de criação e recriação, de “fazer e refazer”. Este,
para Freire, é um dado a priori do diálogo. Não se pode estabelecer uma relação de
horizontalidade sem que antes homens e mulheres acreditem em seu poder dialógico
mutuamente.
O homem dialógico tem fé nos homens antes de encontrar-se frente a frente
com eles. Esta, contudo, não é uma ingênua fé. O homem dialógico, que é
crítico, sabe que, se o poder de fazer, de criar, de transformar, é um poder
dos homens, sabem também que podem eles, em situação concreta,
alienados, ter este poder prejudicado... Está convencido que este poder de
transformar, mesmo que negado em situações concretas, tende a renascer.
Pode renascer. Pode constitui-se (FREIRE, 2005 p. 94).
Constitui-se, numa relação de horizontalidade, permitida pela existência da
confiança, de um lado ao outro, implicando testemunho dos sujeitos, de acordo com suas
convicções e intenções. Não há confiança, “se a palavra, descaracterizada não coincide com
os atos. Dizer uma coisa e fazer outra, não levando a palavra, a sério, não pode ser estímulo à
confiança” (idem). Podemos considerar, neste aspecto, a importância das relações
estabelecidas entre educadores e educandos, pois são nestas relações que se estabelecem a
confiança necessária ao diálogo autêntico.
Não existe tampouco diálogo sem esperança (FREIRE, 2005 p. 94). Sendo esta
uma virtude condutora dos homens à conquista de algo, conquista que implica uma busca, os
homens se põem a serviço desta, porque se constituem como seres inconclusos. “Sendo a
esperança a virtude que dinamiza o homem para esta busca de sua inconclusão, ele busca
porque espera” (JORGE, 1979 p. 44). Esperar... Esperança! É neste dinamismo que Freire nos
fala de esperança, não no sentido do cruzar de braços, mas como quem espera algo do seu
quefazer, move-se na luta35
. De acordo com Freire (1979, p. 48), “quem espera na pura
34
A fé neste estudo, de acordo com as reflexões do educador, será abordada como postura diante do ser humano
e não está relacionada à filiação religiosa. 35
Esta luta, no pensamento de Paulo Freire, não é aquela sanguinolenta, como nos mostra a história de tantos
processos de libertação, mas, uma luta humana, luta tecida na palavra do homem, a luta do diálogo (JORGE,
1979 p. 55).
70
espera, vive um tempo de espera vã. A espera só tem sentido, quando, cheios de esperança,
lutamos para concretizar o futuro anunciado, que vai nascendo da denúncia militante”.
Por fim, nos coloca como último elemento o diálogo verdadeiro, inseparável do
pensar verdadeiro. Crítico. Solidário. Firme, na oposição ao pensar ingênuo, que propõe aos
homens uma falsa libertação, “estratificando as experiências do passado, de que resulta ser o
presente, algo normalizado e bem comportado” (idem). O diálogo crítico torna-se um dos
elementos principais da dialogicidade proposta por Paulo Freire e, por este motivo, nossas
reflexões não repousam nos aspectos, até então despendidos, mas perdura pelas reflexões que
se seguem, no intento em desvelar um pouco mais sobre a pedagogia da libertação.
3.3 O ser humano como ser histórico-cultural na concretude da sua existência.
Em Freire, o ser humano se estabelece como decisivo nas transformações
históricas. Na história, os homens se constituem, ao mesmo tempo em que a constroem.
Afirma que, “o homem é homem e o mundo é histórico-cultural, na medida em que ambos
inacabados se encontram, numa relação permanente, na qual o homem, transformando o
mundo, sofre os efeitos de sua própria transformação” (FREIRE, 2001 p. 76). Como seres de
práxis, transformar e sofrer os efeitos da transformação significa impregnar o mundo com sua
presença, deixando, nele, as marcas do trabalho humano.
A criticidade e as relações que se acham nas relações entre os seres humanos
e o mundo implicam em que estas relações se dão com um espaço que não é
apenas físico, mas histórico e cultural. Para os seres humanos, o aqui e o ali,
envolvem sempre um agora, um antes e um depois. Desta forma, as relações
entre os seres humanos e o mundo são em si históricas, como históricos são
os seres humanos, que não apenas fazem a história em que se fazem, mas
consequentemente, contam a história deste mutuo fazer (FREIRE, 1981 p.
55).
Em seu sentido antropológico, o homem é visto como ser concreto, numa
realidade também concreta, chamada mundo. Para Freire, o ser concreto “é o homem, situado
no tempo e no espaço, cuja vida se encontra, igualmente, como ele, numa época precisa, num
contexto social e cultural determinado” (JORGE, 1979 p. 51). O autor afirma ser este contexto
“o mundo no qual e com o qual o homem enraíza, porque ele é um ser que existe no e com o
71
mundo” (idem). Numa cultura do silêncio, existe se significa apenas viver acreditando em sua
incapacidade de refletir sobre si mesmo e sobre sua experiência no mundo.
De acordo com Freire (1981, p. 53), romper esta aderência, permite à existência
ser vista “como um modo de vida que é próprio”, sendo capaz de “transformar, produzir, de
decidir, de criar, de recriar, de comunicar-se”. Lembra-nos que “o sujeito existente reflete
sobre sua vida, no domínio mesmo da existência e se pergunta em torno de suas relações com
o mundo” (idem). Dominar a própria existência implica, segundo Freire, domínio do trabalho,
dos valores, da história, da cultura, estabelecendo relações “dialéticas entre a determinação e a
liberdade”.
Nesta reflexão, compreendemos, no pensamento antropológico freireano, que
estas relações não se fazem sobre considerações abstratas, transcendentes, sem compromisso,
erradicadas da vida concreta, extasiadas e inoperantes. Pelo contrário, são, existencialmente
concretas, implicam construção do conhecimento, para intervenção na realidade, pelo
aprofundamento do pensamento, criticamente, permitindo-se desvelar o “avesso” deste
mundo, seus desafios e necessidades. Compreender o homem como ser histórico e de
possibilidades, entendendo a história como um processo dialético, aponta para a existência de
relações dialéticas com a realidade cujas reflexões sobre a educação Paulo Freire traz como
processo de busca do homem por sua libertação.
Na alfabetização de jovens e adultos, torna-se uma prática que envolve os
educandos em suas relações com os outros e com o mundo, contribuindo para que se tornem,
em seu contexto social, seres de práxis. Em Freire (1981 p. 17), “como seres que,
transformando o mundo com o seu trabalho, criam o seu mundo. Este mundo criado pela
transformação do mundo que não criaram e que constitui seu domínio é o mundo da cultura
que se alonga no mundo da história”. Esta transformação é a própria marca do seu trabalho,
realizado em Freire, através do diálogo verdadeiro e libertador.
72
3.4 Educação Bancária e Libertadora: alguns pressupostos
Na relação oprimidos e opressores36
, dentro de uma perspectiva freireana, o
diálogo não pode se estabelecer, pois há uma diferença profunda de interesses, quando do
contrário, o diálogo verdadeiro estaria vinculado à pronúncia do mundo. Freire destaca a
educação libertadora 37
como uma das dinâmicas centrais da dialogicidade da educação, uma
vez que se constitui contrária à educação bancária, sendo esta domesticadora, e sempre a
serviço da dominação; logo, produz uma falsa visão do homem e do mundo. Em Freire, a
educação se torna um ato de depositar em que os educandos são os depositários e o educador
o depositante. “Em lugar de comunicar-se, o educador faz comunicados e depósitos que os
educandos, meras incidências, recebem, pacientemente, memorizam e repetem” (FREIRE,
2005, p.66).
Esta concepção de educação revela uma descrença, no educando, em sua
capacidade de agir, discutir, trabalhar, movendo-se no sentido contrário de uma educação
democrática, na qual o homem é visto não apenas como capaz de discutir os seus problemas,
mas como um dever de toda proposta que se afirme educativa e popular. Por isso, um
programa que objetiva a imposição de conteúdos e pensamentos não condiz com uma visão
libertadora sobre a educação.
Numa modelo de educação que se impõe, ditamos ideias. Não trocamos
ideias. Discursamos aulas. Não debatemos ou discutimos temas.
Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos com ele. Impomos-lhe
uma ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhes propiciamos
meios para o pensar autêntico, porque recebendo as fórmulas que lhes
damos, simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a incorporação é o
resultado de busca de algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e
de procura. Exige reinvenção. (FREIRE, 2010 p. 104).
Não havendo reinvenção, não há diálogo. As relações entre educadores-educandos
são caracterizadas por narrações que “falam da realidade como algo parado, estático,
compartimentado e bem comportado, completamente alheio à experiência existencial dos
36
O termo oprimidos e opressores, embora analisado dentro do contexto histórico e político no qual vivia o país,
tem sua conotação trazida para a postura que ambos, professor e aluno, ocupam diante de uma prática
pedagógica antidialógica. 37
A educação problematizadora tem um caráter autenticamente reflexivo, implica num constante ato de
desvelamento da realidade com vista à emersão da consciência na busca por mudanças que resultam da inserção
crítica nesta realidade.
73
educandos” (FREIRE, 2005 p. 65). Os modelos de alfabetização, ainda existentes, que
incidem sobre a mera repetição mecânica de sílabas, no aprendizado da leitura e da escrita,
apenas trazem um aprendizado válido, quando simultâneo ao mecanismo da formação
vocabular, há uma percepção do educando sobre a “solidariedade existente entre a linguagem-
pensamento e realidade, cuja transformação, ao exigir novas formas de compreensão, coloca
também a necessidade de novas formas de expressão” (FREIRE, 1981 p. 20). Freire
fundamenta a concepção “bancária” de educação, na teoria antidialógica, que vai de encontro
a uma educação libertadora.
A educação “bancária” encontrada na ação antidialógica, pauta-se em atitudes
que negam a autonomia dos educandos. A primeira delas é a conquista, correspondendo,
segundo Freire (2005a, p. 157) a uma atitude em que o “antidialógico, dominador, nas suas
relações com o seu contrário, o que pretende é conquistá-lo, cada vez mais, através de mil
formas. Das mais duras às mais sutis. Das mais repressivas às mais adocicadas, como o
paternalismo”. Esta atitude reforça a ideia apontada por Paulo Freire sobre a mitificação da
realidade, através de palavras e frases alienantes, que em nada, contribuem à reflexão crítica
sobre esta realidade38
.
Uma segunda atitude posta por Freire consiste na divisão, pois “na medida em que
as minorias submetendo as maiorias ao seu domínio as oprimem. Dividi-las e mantê-las
divididas é condição indispensável à continuidade do seu poder” (FREIRE, 2005a p. 160).
Na educação, esta característica favorece a existência da dicotomia mundo-
homens, prática-teoria, ensinar-aprender, ação-reflexão, negadas pela dialética freireana. A
ideia de manipulação vem confirmar o antidialogismo, à medida que as “elites dominadoras,
vão tentando conformar as massas populares a seus objetivos, e quanto mais imaturas,
politicamente, estejam elas, tanto mais facilmente se deixam manipular pelas elites que não
podem querer que se esgotem seu poder” (FREIRE, 2005a p. 167). Este conteúdo político não
pode ser negado, de acordo com Freire, quando se admite a inexistência da neutralidade na
educação, do contrário, a educação libertadora e dialógica jamais poderia ser posta em prática.
Podemos verificar em Freire (1989) a impossibilidade da existência desta prática
destituída de seu caráter político, quando a reflexão existe de um ponto de vista crítico. Assim
38
Na sociedade atual, cada vez mais somos conduzidos a uma sloganização da tecnologia e dos modelos
comportamentais que furtam a liberdade e capacidade consciente do ser humano sobre suas escolhas através dos
meios de comunicação de massa. Paulo Freire não faz uma crítica diretamente aos meios em si mesmos, mas ao
uso que se lhes dá.
74
como também não pode haver negação sobre o papel educativo exercido pela política,
lembrando-nos que este processo educativo e ato político não se esgotam em si mesmos, pois
todo ato político requer um posicionamento de denúncia ou de anúncio e a educação não está
à margem desse processo, logo há inexistência da sua neutralidade.
Mas é nesse sentido também que, tanto no caso do processo educativo
quanto do ato político, uma das questões fundamentais seja a clareza em
torno de a favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê,
fazemos a educação e de a favor de quem e do quê, portanto contra quem e
contra o quê, desenvolvemos a atividade política. Quanto mais ganhamos
esta clareza através da prática, tanto mais percebemos a impossibilidade de
separar o inseparável: a educação da política. Entendemos então, facilmente,
não ser possível pensar, sequer, a educação, sem que se esteja atento à
questão do poder (FREIRE, 1989a p. 15-16). (grifo do autor)
Esta questão do poder, na teoria da dialogicidade freireana, não se encontra
ancorada apenas nas relações entre educadores e educandos, mas no desenvolvimento do
próprio processo educativo como um todo, incluindo-se neste a organização curricular. Nesta
organização, torna-se possível vislumbrar, quando consideramos a última característica da
antidialogicidade, nomeada como invasão cultural, apontada por Freire (2005a, p. 173), como
“a penetração que fazem os invasores, no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes
sua visão de mundo, enquanto lhes freia a criatividade, ao inibirem sua expansão39
”.
Assim, as relações estabelecidas entre educador-educando não podem existir sob
o intento de manter uma “certa ordem”, quando o educador anuncia aquilo que não
corresponde à verdade dos fatos, apenas para a conquista da admiração de seus alunos,
tampouco impor uma verdade que não seja de todos, mas apenas sua, desconsiderando o
mundo de significações trazidas por seus alunos, na dinâmica estabelecida pelo diálogo.
Com nitidez, percebemos a educação “bancária” em oposição à educação
problematizadora, pois não procura a consciência crítica de educandos e educadores,
negando-lhes respostas, impondo suas verdades como absolutas, não permitindo o diálogo
entre os sujeitos e sua realidade. Dessa forma, uma educação problematizadora precisa induzir
ao pensamento crítico, precisa estar permeada de intenções que levem o sujeito a uma atitude
39
É importante lembrar que, em um mundo globalizado, múltiplas formas de dominação cultural emergem a
cada dia. Por isso as sociedades precisam atentar para o desenvolvimento de suas expressões culturais autênticas.
Afinal, não se vislumbram nenhum progresso material ou liberdades individuais e coletivas sem uma evolução
cultural. (GUSTSACK, Felipe. Dicionário Paulo Freire. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010 – Verbete:
Invasão cultural)
75
de questionamento frente ao objeto de conhecimento, posicionando-se com dúvida e não de
forma passiva, como nos sugere a concepção “bancária” de educação.
Enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica uma espécie de
anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação
problematizadora de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante
ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a
segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte
sua inserção crítica na realidade (FREIRE, 2005a p. 80).
A educação, ao constituir-se libertadora, tem suas bases no conhecimento
dialógico, não permitindo a invasão ou manipulação, ao contrário, procura quebrar a
dicotomia mundo-homens e possibilitar a transformação da realidade.
Somente o homem, como um ser que trabalha que tem um pensamento-
linguagem, que atua e é capaz de refletir sobre si mesmo e sobre a sua
própria atividade, que dele se separa, somente ele, ao alcançar tais níveis, se
fez um ser da práxis. Somente ele vem sendo um ser de relações num mundo
de relações. (...) Desprendendo-se do seu contorno, veio tornando-se um ser,
não da adaptação, mas da transformação do contorno, um ser de decisão. (...)
Daí que, para este humanismo, não haja outro caminho senão a
dialogicidade. Para ser autêntico só pode ser dialógico. E ser dialógico, para
o humanismo verdadeiro, não é dizer-se descomprometidamente dialógico; é
vivenciar o diálogo. Ser dialógico é não invadir, é não manipular, é não
sloganizar. Ser dialógico é empenhar-se na transformação constante da
realidade (FREIRE, 2001, p. 39).
É no movimento dialógico que Freire apresenta as características de uma
educação também dialógica, sendo a primeira delas a co-laboração, realizada exclusivamente
pela comunicação entre sujeitos em diálogo verdadeiro. Para o educador, ao contrário do que
ocorre, na conquista da ação antidialógica, em comunhão, “os sujeitos dialógicos se voltam
sobre a realidade mediatizadora que, problematizada, os desafia” (FREIRE, 2005 p. 193).
Assim se realiza uma análise crítica sobre a realidade problema, através da comunhão que
gesta a união dos oprimidos no domínio humano e não das coisas, na qual se cortando o
“cordão umbilical” em seu caráter mágico e mítico quebra-se sua ligação ao mundo da
opressão, tornando-se sujeitos do ato de desvelar.
Enquanto ato de co-laboração e união, naturalmente a ação dialógica ocasiona a
organização dos sujeitos envolvidos, quando afirma ser na comunhão que os sujeitos
dialógicos transformam a realidade que os mediatiza. Nesta organização, Freire (2005a)
76
defende o testemunho como peça chave para a verdadeira organização, tendo em vista seu
caráter cultural e pedagógico; nesta, os sujeitos dialógicos precisam estar atentos à coerência
entre o que dizem e o que fazem, tendo ousadia para enfrentar os riscos da existência, radicais
enquanto testemunho da ação, valentes no ato amoroso que nega a acomodação e, por fim, a
crença nos homens e em seu testemunho existencial.
A última característica apontada por Paulo Freire sobre a teoria da ação dialógica
é a síntese cultural. Implícita ou explicitamente, Freire (2005a, p. 207), considera toda ação
cultural como uma “forma sistematizada e deliberada de ação que incide sobre a estrutura
social, ora no sentido de mantê-la como está ou mais ou menos como está, ora no de
transformá-la”. Nas palavras de Freire, a síntese cultural “como ação histórica, se apresenta
como instrumento de superação da própria cultura alienada e alienante” (idem, p. 209),
considerando-se a existência, concomitantemente necessária da investigação temática,
elemento impulsionador e permanente, no processo de transformação do contexto sócio
histórico.
A investigação temática estrutura a metodologia dialógica freireana, reforça a
ideia da ação como intrínseca à investigação, incentivando o potencial criador das relações
homem-mundo. Propor a síntese cultural para Freire implica compreendê-la sobre a estrutura
social, constituída na dialética permanência-mudança, utilizada por Bergson, como duração.
“Isto é o que explica que a estrutura social, para ser, tenha de estar sendo ou, em outras
palavras: estar sendo é o modo que tem a estrutura social de “durar” (FREIRE, 2005a, p. 207).
Nesta relação de duração, perdura em Freire, a importância do estar sendo sob o enfoque
problematizador para uma consciência crítica constituída pela práxis – ação-reflexão.
3.5 A Problematização, Conscientização e Libertação propostas pela dialogicidade freireana.
A problematização do conhecimento frente à sua irrefutável relação com a
realidade, na qual se gera e sobre a qual ocorre, possibilita a construção do conhecimento e
não sua simples repetição ou memorização, mas estando diante da realidade, construir um
conhecimento que permite melhor compreendê-la, explicá-la, transformá-la. Desvelar essa
realidade, a partir de uma educação que a problematize, como verdadeira situação
gnosiológica consiste em Freire (2001), na problematização do mundo do trabalho, das obras,
dos produtos, das ideias, das convicções, das aspirações, dos mitos, da arte, da ciência, enfim,
o mundo da cultura e da história, que, resultando das relações homem-mundo, condiciona os
77
próprios homens, seus criadores. “Colocar este mundo humano como problema para os
homens significa propor-lhes que admirem, criticamente, numa operação totalizada, sua ação
e a de outros sobre o mundo” (idem, p. 57).
Conforme Silva (et. al, 2010a p. 5) em seu artigo Dialogicidade da Educação:
possibilidade de intervenção consciente, na realidade, a problematização para Freire não
apresenta um sentido unívoco, pois “a medida que se atrela a um método de conhecimento e,
consequentemente, de aprendizagem, também destaca-se como um atitude inerente à essência
do ser da consciência”, revelando-se como “condição ontológica que possibilita a ação
intencional do sujeito e o leva a posicionar, de maneira ativa, frente aos objetos e aos
acontecimentos do mundo” (idem). Os autores atribuem a “problematização” segundo Freire,
dois sentidos: um epistemológico e outro antropológico. Assim, no primeiro uma forma de
conceber conhecimento estaria numa relação entre sujeitos e objetos desse conhecimento,
reforçando que “os objetos de conhecimento não têm um fim instituídos em si mesmos e o
conhecimento que deles obtemos é apenas uma dimensão da mediação que se estabelece entre
os sujeitos” (SILVA et. al, 2010a p. 6).
Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser o
término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos
cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de outro, a educação
problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da
contradição educador-educandos. Sem esta, não é possível a relação
dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em
torno do mesmo objeto cognoscível (FREIRE, 2005a p. 78).
Contudo, em seu sentido antropológico, a problematização, na concepção
freireana, seriam os questionamentos, ou seja, “no ato dialógico como situação antropológica
do ser humano, problematizar implica perguntar, mas a pergunta não é apenas um ato de
conhecimento, mas um ato que realiza a existência humana” (SILVA, 2010a p. 6). Dessa
forma, estabelecer o diálogo excluído de uma educação dialógica é recusar-se a
disponibilidade no enfrentamento de situações que a própria problematização pode gerar, pois
o risco de uma “aventura dialógica” não promove o adormecimento, mas o dinamismo entre
seus envolvidos.
Neste sentido, compreendemos que o método, neste modelo de educação, é o
diálogo. O diálogo problematizador. Nele, os sujeitos cognoscentes descritos por Freire, a
partir da situação gnosiológica, a qual se envolvem, têm, na permanência do ato de conhecer,
78
o quefazer problematizador. Para Freire (2001 p. 56), a tarefa do educador “é a de
problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza e não a de dissertar sobre ele, de
dá-lo, de estendê-lo, de entregá-lo, como se tratasse de algo já feito, elaborado, acabado,
terminado”. Para o educador, o diálogo e a problematização não adormecem ninguém.
Conscientizam. Na dialogicidade, a problematização educador-educando e educando-
educador, vão ambos desenvolvendo uma postura crítica da qual resulta a percepção de que
este conjunto de saber se encontra em interação. “Saber que reflete o mundo e os homens, no
mundo e com ele, explicando o mundo, mas, sobretudo, tendo de justificar-se na sua
transformação” (idem, p. 36).
De acordo com Freire (2001, p. 37), “rejeitar em qualquer nível, a
problematização dialógica é insistir, num irrefutável pessimismo, aos homens e a vida”. Na
descrença da capacidade humana, o educador insiste “na prática depositante de um falso
saber, que, anestesiando o espírito crítico, serve à “domesticação” dos homens e
instrumentaliza a invasão cultural”. Do contrário, a atitude problematizadora nasce da própria
natureza dialógica humana, que em sua inconclusão, vive a constante tensão entre teoria e
prática, ser e saber, pensar e viver, constituindo-se como ser da pergunta e não da resposta. A
educação problematizadora tem em seu objetivo final a emancipação do ser humano como
compromisso histórico, quando se compromete na criação e transformação autenticas.
Este compromisso, porque dialógico, perpassa pela construção de uma
conscientização, que oportuniza o homem a assumir o seu compromisso histórico, à medida
que reafirma este compromisso consigo mesmo. A “conscientização” proposta por Freire, não
tem apenas um sentido político, mas, sobretudo epistemológico. Podemos considerar que isso
implica ter o homem como único ser capaz de construir uma ação consciente sobre o mundo,
intervir, mudar, escolher e ter autonomia.
Ao fazer uma reflexão sobre a existência dos animais e dos homens, Freire
enfatiza o caráter determinista, acrítico, singular e a-histórico dos animais, condição que não
lhes permite “assumir a vida” e, porque não assume, “não pode construí-la”, tampouco
transformar o seu entorno, estão “imersos” em sua atemporalidade.
Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua atividade e do
mundo em que estão ao atuarem em função de finalidades que propõem e se
propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e em suas relações
com o mundo, os com os outros, ao impregnarem o mundo com sua presença
criadora através da transformação que realizam nele, na medida em dele
podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao
79
contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é
histórica (FREIRE, 2005a p. 104).
No entanto, a conscientização para Freire se dá, a partir da tomada de consciência,
a qual possui níveis característicos construídos por meio da ação dos homens enquanto
trabalham, na coletividade e não no esforço intelectual ou individualista40
. Afirma a tomada
de consciência como “uma operação própria do homem, de sua defrontação com o mundo,
com a realidade concreta que se lhe torna presente como uma objetivação” (FREIRE, 2001 p.
52). Assim, aponta para um nível mágico, no qual os fatos não são apreendidos em sua
complexidade. A tomada de consciência ainda não implicaria uma conscientização, mas seu
aprofundamento proporciona uma “apropriação” desta, como realidade histórica, passível de
transformações.
Na conscientização, o diálogo constitui-se como fundamental, pois a própria
consciência é essencialmente dialógica, através das relações que estabelecemos com os outros
e com o mundo. “É pelo diálogo que as consciências se colocam, na contemplação do mundo,
vão ao mundo, e comunicam-se” (JORGE, 1981 p. 45). Enquanto resultado das profundas
experiências vividas, em seu contexto histórico e social, Freire expõe a conscientização, em
níveis distintos, de acordo com o “aprofundamento” alcançado por seus sujeitos. O primeiro
deles está denominado como consciência semi-intransitiva, no qual “o homem está imerso,
circunscrito a áreas estreitas de interesses e preocupações, não podendo, portanto, apreender
os problemas, além de sua esfera biológico-vital” (idem, p. 46). Suas preocupações estão
ainda no plano vegetativo, no qual não existem relações existenciais, o que segundo Freire,
“falta-lhes um teor de vida no plano histórico”.
Isto não significa dizer que, neste nível de consciência, o homem já não é um ser
aberto, como afirmamos, anteriormente, mas que há uma limitação, em sua esfera de
compreensão, caracterizadora do seu “incompromisso” com a sua própria existência. Estando
comprometido com a natureza e não com sua existência, o homem imerge, na magia, na
ingenuidade, na mistificação da realidade. Contenta-se com a simplicidade, na interpretação
dos problemas. Este é o que Paulo Freire denomina consciência transitivo-ingênua ou
transitividade ingênua. Afirma que a percepção ingênua ou mágica da realidade da qual
40
Paulo Freire no contexto histórico da América Latina, distinguiu três tipos de marcos históricos socioculturais:
Sociedades fechadas, Sociedades em processo de transição e Sociedades abertas. Para cada uma dessas
sociedades Paulo Freire apresenta um tipo de consciência: a sociedade fechada é a consciência semi-intransitiva;
a sociedade em processo de transição, a consciência ingênua transitiva; e a sociedade aberta, a consciência
transitiva. (JORGE, 1981 p. 46).
80
resultava a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz de perceber-se. “E
porque é capaz de perceber-se, enquanto percebe a realidade que lhe parecia inexorável, é
capaz de objetivá-la” (FREIRE, 2005a p. 85).
O homem, a partir da percepção sobre os desafios que lhe cercam, percebe a
“dinamicidade dialogal da vida. Parte então, para o diálogo com outro homem, com o seu
mundo. Está se transitivando. Fazendo-se dialógico. Começando o seu processo de ser
histórico” (JORGE, 1081 p. 50). No entanto, seu nível de consciência transitivo- ingênua, não
lhe permite superar a simplicidade com que interpreta os fatos, “descurando a dimensão de
aprofundamento dos mesmos por causa de certo “gosto” pelas explicações de ordem
“fabulosa”. Por isso ela é frágil na argumentação e apresenta um grande teor emocional”
(idem). Aqui, dois caminhos se apresentam: o regresso ao nível anterior ou a evolução sobre si
mesmo, caminhando na direção da consciência crítica ou transitividade crítica.
As características desta consciência são apontadas por Freire (2005a, p. 69),
através de uma educação dialogal e ativa, “voltada para a responsabilidade social e política,
caracterizada pela profundidade, na interpretação dos problemas, pela substituição de
explicações mágicas por princípios causais”. Freire também assinala para uma postura não
preconceituosa e responsável, pela recusa à quietude, mas com segurança, nas argumentações,
através do diálogo e não da polêmica. Ela é, pois, “um compromisso com a realidade, nas
exigências e nos desafios, por serem históricos, fazem do homem um ser histórico, desafios
esses que são captados nas relações do homem com o mundo e com os outros homens”
(JORGE, 1981 p. 53).
Considerando que existem relações entre a sociedade e a educação, e que, do
ponto de vista dos que lideram educar de forma sistemática, objetiva a reprodução das ideias
dominantes, uma proposta de conscientização para a formação crítica, com vista à
transformação da realidade, admite que seus envolvidos posicionem-se contra a ideologia que
afirma ser a escola um lugar de opressão.
É como seres conscientes que homens e mulheres estão não apenas no
mundo, mas com o mundo. Somente homens e mulheres como seres
“abertos” são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente
transformando o mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la
por meio de sua linguagem criadora (FREIRE, 1979 p. 75).
81
Percebemos que Freire não apenas procurou trazer uma teoria que pudesse ser
compreendida, dentro de um modelo de educação e pedagogia, mas quais ações podem levar
ao alcance de uma educação verdadeiramente libertadora. A categoria da libertação para
Freire se estabelece, na práxis, onde é possível a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo
para transformá-lo. É através do conhecimento da nossa falta de liberdade que possibilitamos
nossa libertação. Para Freire (2005a p. 82), “a educação problematizadora se faz, assim, um
esforço permanente, através do qual os homens vão se percebendo, criticamente, como estão
sendo no mundo com que e em que se acham”.
O processo de alfabetização de adultos, percebido sob um ponto de vista
libertador, “é um ato de conhecimento, um ato criador, em que os alfabetizandos exercem o
papel de sujeitos cognoscentes, tanto quanto os educadores” (FREIRE, 1979 p. 74). Sob este
olhar, ele acrescenta que, “os alfabetizandos não são vistos como “vasilhas vazias”, meros
recipientes das palavras do educador” (op. cit.), mas como seres, no mundo e com o mundo,
capazes de uma compreensão, crescentemente crítica e possuidora de ações sobre a realidade.
Esta condição possibilita o educando tornar-se um ser de práxis, preparado para o
exercício da autonomia, frente aos desafios da realidade. A criticidade que alicerça a
autonomia requer tanto do educador quanto do educando uma reflexão crítica, no movimento
capaz de originar constatações, conhecimento, intervenção para sua transformação. Freire
ressalta a existência de um “rigor metodológico” aliado, ao “saber da experiência” e o
“conhecimento organizado” (sistematizado), como exigência do caminho para a criticidade.
A prática dialógica não implica deixar os estudantes, entregues a si mesmos, “o
diálogo não implica vácuo político, não é um “espaço livre” onde se possa fazer o que quiser.
O diálogo se dá dentro de algum tipo de programa ou contexto” (SHOR & FREIRE, 1986 p.
66), para isso são necessários “responsabilidade, direcionamento, disciplina, determinação e
objetivos”.
Os caminhos percorridos por Freire e as experiências por ele adquiridas, ao longo
de sua trajetória, nos revelam, em suas obras, uma vontade educacional, social e política, na
superação de ideologias, que disseminam a opressão e as situações de desigualdade. De certo,
esta contribuição valiosa muito colaborou e originou momentos de discussão, reflexões e
ações críticas, o enfrentamento de problemas, o reconhecimento do ser humano como agente e
não como objeto da história, a ousadia, na superação de obstáculos, que nascem,
cotidianamente, na prática escolar. Procurou construir uma teoria fundamentada, no respeito
82
aos educandos, na construção da autonomia, tendo a dialogicidade como princípio
metodológico.
Desse modo, no próximo capítulo, procuramos construir um percurso
metodológico suficiente, ao alcance dos objetivos propostos por este estudo. Nesta direção,
delimitamos os instrumentos de coleta e análise de dados, considerando, também, o diálogo
entre a teoria dialógica, contemplada neste capítulo, e o material encontrado. Procuramos
demonstrar este percurso, enfatizando não apenas a metodologia utilizada, enquanto técnica
de coleta e análise, mas relacionando-a a necessidade posta pela teoria, em sua apreensão no
conteúdo dos documentos e relatos utilizados.
84
É intenção deste capítulo, relatar o percurso metodológico de realização da nossa
pesquisa. As idas e vindas, ao longo de quase dois anos de investigação, mostraram que fazer
pesquisa é um aprendizado árduo, que nem sempre corresponde ao prévio planejamento
elaborado. Em nosso caso, como será possível identificar a seguir, tivemos um aprendizado e
situações, nos quais, as estratégias projetadas tiveram um redimensionamento em razão da
escassez de informações e depoimentos. Além disso, os achados aqui e alí, constituem
novidades sem que esgotem os próprios fenômenos em si. Merece registro as indicações da
banca prévia, quando da qualificação do projeto desta dissertação, no sentido de afunilar a
perspectiva de pesquisa, delimitando melhor seu campo e objeto.
Ao observamos, em experiências anteriores, as possibilidades de práticas
dialógicas, nas turmas de EJA, através do trabalho docente, percebemos a ausência dessas
práticas ou mesmo a existência de diversos aspectos desfavoráveis à sua possível
concretização. Dentre eles, nos chamou atenção a Proposta Curricular para EJA, na cidade do
Recife, por conter em seu interior subsídios que servem como uma orientação para projetos e
propostas educativas, em escolas, que atendem a esta modalidade. Assim, passamos a tentar
compreender qual o encaminhamento que a PC/REC na EJA apresenta ao docente, para
potencialização de uma prática pedagógica, pautada na dialogicidade da educação.
Tais propostas correspondem às diretrizes para a Rede Municipal de Ensino do
Recife, lugar anteriormente investigado, através de pesquisas in loco, realizadas no Núcleo de
Pesquisa e Iniciação Científica – NUPIC, na Faculdade Frassinetti do Recife – FAFIRE, lugar
de formação, em nível de graduação. Observações e entrevistas revelaram a inexistência ou
pouca incidência de práticas docentes, engajadas numa perspectiva dialógica, nesta rede,
informações que construíram a problemática do presente estudo, em torno da PC/REC para
EJA, enquanto lugar de orientação, não apenas do trabalho docente, mas de práticas
educativas no “chão da escola”. Seria o trabalho docente, descaracterizado de uma prática
dialógica, pelo desconhecimento do professor sobre tal perspectiva ou seria o currículo,
instrumento que orienta a prática docente, o grande vilão desta “ausência”?
Revisitando as propostas curriculares para a rede municipal de ensino do Recife,
foi possível percebermos, em seu levantamento histórico, a influência da estadualização das
escolas municipais, na primeira década do século XX, sobre a organização da rede municipal
de ensino no Recife, pois através deste movimento, Recife “volta a constituir uma rede de
ensino, na década de 1960, com a ação do Movimento de Cultura Popular – MCP, uma
85
inclusão da educação fundamental ao projeto que trabalhava com música, teatro e artes
plásticas” (RECIFE, 2012 p. 10).
Anteriormente a esse período, o ensino encontrava-se sob a responsabilidade
do município e apresentava diversas interferências caracterizadas por espaços físicos
impróprios, ausência ou inadequação de materiais didáticos e falta de qualificação
profissional. Conforme Marques (2010), em sua pesquisa sobre a Especificidade da EJA, no
discurso curricular da Rede Municipal de Ensino do Recife, podemos considerar, na proposta
curricular do Movimento de Cultura Popular – MCP,
uma educação voltada para conscientização, para a qualidade do ensino, para
sujeitos específicos, não quaisquer sujeitos, mas os das camadas populares;
com professores com formação específica para trabalhar com esses sujeitos
específicos e com os saberes culturais, sendo o principal instrumento de ação
cultural estimulando o desenvolvimento intelectual e crítico da população;
circulação do saber cultural e científico; com uma metodologia também
singular – educação para a mudança; educação dialógica para a libertação
(...) onde reconhecendo a conscientização como enunciado chave na prática
discursiva no MCP, situa os homens no espaço e no tempo, rumo ao
caminho de marcar sua presença no mundo como sujeito da história,
transformando as relações sociais estabelecidas (MARQUES, 2010 p. 74-
75).
Considerando uma ampla instabilidade política vivida pela sociedade brasileira,
culminada pelo golpe militar de 1964, as escolas do município foram incorporadas pela
Fundação Guararapes. Em maio de 1988, a Fundação publicou a Teimosia Proposta
Curricular, para alfabetização e educação básica de jovens e adultos. De acordo com Marques
(2010), o texto argumenta uma filosofia, para educação básica de jovens e adultos “como
expressão maior de reflexão criativa, para se repensar as relações sociais, na perspectiva da
construção de hegemonia popular” (MARQUES, 2010 p. 80). O texto também apontaria para
uma Educação Popular, como um dos instrumentos para “contestação das relações sociais
dominantes, sem perder de vista a apropriação dos códigos sociais, linguísticos, as operações
matemáticas e outras informações do interesse do povo” (ibidem). No entanto, esses interesses
ainda não eram suficientemente abrangentes ou mesmo poderiam ser considerados seus
propósitos como uma continuidade dos trabalhos realizados pelo MCP.
Após um período, sem maiores mudanças, na construção curricular da rede, surgiu
em 2002/2003, sob a coordenação da DGE (Diretoria Regional de Ensino) e o Departamento
de Educação de Jovens e Adultos do município, um documento intitulado Proposições para o
86
ensino fundamental da Educação de Jovens Adultos – versão preliminar, tendo como
fundamento “a construção de uma escola democrática”, em defesa da “participação política
dos indivíduos e grupos sociais, nas decisões públicas, que tenham impacto sobre a formação
da cidadania e a opção incondicional por programas voltados para inclusão social” (PEFEJA,
2003 p. 7 apud MARQUES, 2010 p. 95).
Considerando o período de dez anos, após a última versão do documento, a
Secretaria de Educação da Prefeitura do Recife propõe, em fevereiro de 2012, as Políticas de
Ensino da Rede Municipal do Recife – Subsídio para atualização da Organização Curricular,
na qual procura reorganizar os fundamentos teórico-metodológicos do ensino, nos diferentes
segmentos da educação, no município, considerando a participação efetiva de estudantes,
professores, gestores e de uma equipe pedagógica da rede. Assim, optou-se por produzir uma
série de cadernos, iniciada com o de Fundamentos Teórico-Metodológicos, “visando se
constituir como um dos subsídios a orientar a organização curricular e a elaboração dos
projetos políticos pedagógicos em cada unidade de ensino” (PC/REC, 2012 p. 20).
Embora tenha sido disponibilizado, recentemente, considerando o período de
elaboração da pesquisa, este primeiro caderno nos trouxe importante embasamento teórico-
metodológico para as análises, no entanto, por não se tratar de uma proposta específica, para a
modalidade de ensino, a qual nos propomos explorar, explicitamos as limitações que o
próprio documento aponta. Torna-se importante salientar o caráter insuficiente de
informações, contidos no documento, quando o colocamos como fonte exclusiva para alcance
dos objetivos propostos. Por esta razão, não descartamos a hipótese da utilização de outros
materiais, que viessem a ser “concluídos” pela Secretaria de Educação do Município, no
decorrer da nossa pesquisa41
, no entanto, esta expectativa não foi superada. Desse modo, a
entrevista nos serviu como instrumento complementar aos objetivos, especificamente
definidos. Diante dos entraves comuns e inesperados, que envolvem os caminhos da pesquisa,
concordamos com Minayo (1994) quando afirma ser
a pesquisa uma atitude e uma prática teórica de constante busca que define
um processo intrinsecamente inacabado e permanente. É uma atividade de
aproximação sucessiva da realidade que nunca se esgota, fazendo uma
combinação particular entre teoria e dados. (MINAYO, 1994, p.23).
41
De acordo com informações obtidas através da Gerência de EJA do município, o caderno cuja temática aborda
especificamente a modalidade em questão, encontra-se em fase de desenvolvimento e indisponível até o
momento de conclusão desta pesquisa.
87
Este caráter de inacabamento nos conforta, à medida que as dificuldades em
atingirmos a linha de chegada possam originar novas hipóteses de pesquisa, indagações e
questionamentos, assumindo a permanente busca que alimenta a pesquisa. Pesquisar exige um
esforço, na busca por um caminho metodológico, capaz de abarcar os objetivos aos quais nos
propomos, considerando, entre outros aspectos, o rigor científico por parte do pesquisador.
Delinear esse caminho é estabelecer uma metodologia capaz de contemplar as pretensões
anunciadas. De acordo com Minayo (1994),
a metodologia é o caminho do pensamento e a prática exercida na
abordagem da realidade, incluindo as concepções teóricas, o conjunto de
técnicas que possibilitam a construção da realidade e o sopro divino do
potencial criativo do investigador (MINAYO, 1994 p. 16).
Destarte, levantemos a problemática, alvo de nossas inquietações sobre quais
contribuições a proposta curricular da rede municipal de ensino do Recife tem possibilitado ao
docente da EJA o desenvolvimento de práticas pedagógicas, pautadas na dialogicidade da
educação, procuramos considerar a organização curricular, como articuladora de saberes,
desconsiderando sua configuração tradicionalista e manipuladora do saber docente.
Conforme Shor & Freire (1986), a educação é muito mais controlável, quando o professor
segue o currículo padrão e os estudantes atuam como se só as palavras do professor
contassem. Se os professores ou os alunos exercessem o poder de produzir conhecimento em
classe, estariam então reafirmando seu poder de refazer a sociedade. A estrutura do
conhecimento oficial é também a estrutura da autoridade social. Esta afirmação nos possibilita
ainda questionar quais os fundamentos ou princípios filosóficos subjazem o conteúdo de tais
propostas? É possível perceber um direcionamento a práticas emancipatórias e criadoras da
autonomia dos sujeitos envolvidos? Quais reflexões apresentadas pela organização curricular
tornam-se pertinentes ao cotidiano do trabalho docente?
4.1 O currículo na EJA e a pesquisa documental
O esforço da procura por possíveis respostas na PC/REC para a EJA caracterizou
nossa pesquisa como documental, demonstrando-se como relevante, de acordo com Lüdke &
André (1986), pois
88
os documentos constituem-se como uma fonte poderosa de onde podem ser
retiradas evidências que fundamentem afirmações e declarações do
pesquisador. Representam ainda uma fonte “natural” de informação. Não são
apenas uma fonte de informação contextualizada, mas surgem num
determinado contexto e fornecem informações sobre esse mesmo contexto
(LÜDKE & ANDRÉ, 1986 p. 39).
O currículo, enquanto documento e campo de estudo, evoluiu consideravelmente,
nas últimas décadas, e vem ganhando visibilidade e prestígio. Evoluiu de campo,
eminentemente técnico, – com preocupações centradas na organização e desenvolvimento do
conhecimento (...), para um campo multidimensional. Este, além de requerer múltiplos
enfoques para sua compreensão e efetivação, amplia seu raio de significação e de ação. Nessa
visão multidimensional, o currículo passa, portanto, de uma visão restritiva de ordenamento
de saberes, no campo educativo e da escolarização, a uma mais ampla. Em decorrência, o
campo do currículo abre um leque temático para estudos e discussões. (SANTIAGO, 2006 p.
73-74).
Nossa busca, a partir do universo curricular, diz respeito a uma concepção
dialógica de educação apresentada por Paulo Freire, constituindo-se, como alicerce teórico,
sobre o qual esteve apoiada nossa pesquisa. Para o autor, a concepção de educação, para a
construção da autonomia e libertação, não supõe que a sua dialogicidade comece ao
estabelecer-se o encontro entre educadores-educandos, em circunstâncias de construção da
aprendizagem, “mas antes, quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes.
Esta inquietação, em torno do conteúdo do diálogo, é a inquietação em torno do conteúdo
programático da educação” (FREIRE, 2005a p. 96).
Desse modo, as diversas possibilidades de pesquisa oferecidas pelos documentos
nos levam a definir, primordialmente, aqueles que nos conduziram a respostas sobre nossas
inquietações, como instrumento de coleta de dados, considerando a inexistência de uma
Proposta Curricular específica para EJA no município. A inconclusão do caderno,
característico da EJA, até o fechamento desta pesquisa, nos direcionou à utilização dos
documentos, que embasam a construção deste caderno e, consequentemente, serviram como
subsídios para esta proposta de pesquisa. Este impasse, durante a pesquisa, nos trouxe a
reflexão sobre a importância de ponderarmos a compreensão docente, sobre alguns aspectos
abordados, na pesquisa, estreitamente relacionados à construção curricular e à dialogicidade,
nas turmas da educação de jovens e adultos. Para tanto, consideramos a utilização da
entrevista estruturada, através de um questionário, com perguntas abertas, aplicadas a
89
professores de diferentes escolas da rede, mas com trabalhos desenvolvidos nas séries iniciais
de alfabetização, nos módulos I e II.
A aplicabilidade do questionário como instrumento de coleta de dados ocupa um
lugar de complementariedade, na busca por elementos, tendo em vista nosso objetivo, em
analisar os documentos, que fundamentam a construção curricular para EJA. Sua estrutura
aberta permitiu aos entrevistados “emitir sua opinião, exprimir seu pensamento pessoal,
traduzi-lo com suas próprias palavras, conforme seu próprio sistema de referências”
(LAVILLE & DIONNE, 1999 p. 186). Esta dinâmica nos esclareceu alguns pontos revelados
e fortemente acentuados, nos documentos, dentre eles a qualidade do próprio documento,
enquanto construção coletiva e democrática, para uma educação que também se faz
democraticamente.
De modo específico, acreditamos ter sido possível visualizar, em nossas análises
possíveis, respostas aos objetivos de identificar as concepções de sujeito, sociedade e mundo,
que se visualizam na PC/REC para EJA; analisar os fundamentos e princípios filosóficos que
subjazem à Proposta curricular, para EJA, assim como, frente aos fundamentos e princípios
filosóficos, encontrados no documento, examinar os encaminhamentos que a PC apresenta ao
desenvolvimento de uma prática docente, na perspectiva dialógica freireana, considerando a
opinião docente sobre tais questões.
Nosso esforço em torno das construções curriculares, para uma prática dialógica
envolvendo o trabalho em EJA, nos move no sentido de compreender quais contribuições este
documentos tem fornecido aos docentes, como embasamento teórico e metodológico,
considerando a prática dialógica, relevante ao processo de aprendizagem dos alunos. A partir
da seleção de documentos pertinentes a esta investigação, assim como o levantamento
bibliográfico necessário à solidez das categorias, que constituem nosso referencial teórico,
torna-se possível explicitar os caminhos necessários à análise dos dados, abarcada pela análise
de conteúdo.
4.2 A Análise do Conteúdo Curricular.
Alicerçar nossas investigações sobre determinados instrumentos de análise não se
constituiu uma tarefa fácil. Entendemos a relevância de tal escolha, tendo em vista seu
posicionamento decisivo, na construção das possíveis respostas, para os objetivos a que nos
90
propomos alcançar. Desse modo, optamos pela Análise de Conteúdo, tendo em vista a
insuficiência de documentos, que subsidiam a organização curricular para EJA, em nível
municipal. A ausência de uma proposta curricular específica, para este seguimento, na rede de
ensino do Recife, nos direciona para um instrumento de análise, que possa dar conta do
material até o momento produzido, considerando que outro tipo de análise mais abrangente
poderia comprometer os resultados obtidos.
Para tanto, recorremos às reflexões sobre Análise de Conteúdo descrita por
Laurence Bardin e Maria Laura Puglisi Franco, ambos com suas produções, cujos títulos
recebem a mesma nomenclatura da análise. A preocupação com a Análise do Conteúdo das
mensagens, dos enunciados do discurso e das informações é muito mais antiga do que a
reflexão que se ocupa da formalização de seus pressupostos epistemológicos, teóricos e de
seus procedimentos operacionais (FRANCO, 2008 p. 7), ainda quando, na tentativa de
conhecer os significados trazidos pelas metáforas e parábolas foram realizados os estudos dos
textos bíblicos.
Os procedimentos para Análise de Conteúdo sofreram diversas críticas que
serviram, a nosso ver, como um fulcro orientador, para seu aprimoramento e utilização, cada
vez mais frequente, em pesquisas qualitativas. Na verdade, optar por este tipo de análise, ao
procurar compreender o encaminhamento que a PC/REC, na EJA apresenta ao docente, para a
potencialização de uma prática pedagógica, pautada na dialogicidade da educação, é possível
ao considerarmos a Análise de Conteúdo, “enquanto procedimento de pesquisa, no âmbito de
uma abordagem metodológica crítica e epistemologicamente apoiada numa concepção de
ciência, que reconhece o papel ativo do sujeito, na produção do conhecimento” (FRANCO,
2008 p. 10). Nesta perspectiva, o conteúdo das mensagens adquire uma conotação diferente
daquela estabelecida pela Análise do Discurso, distinção feita por Maurice Pêcheux assim
descrita:
O objeto da linguística é a língua, quer dizer o aspecto coletivo e virtual da
linguagem, enquanto que o da análise do conteúdo é a palavra, isto é, o
aspecto individual e atual (em ato) da linguagem... O papel da linguística
resume-se, independentemente do sentido deixado à semântica, a descrição
de funcionamento da língua, para além das variações individuais ou sociais
tratadas pela psicolinguística. Já a Análise de Conteúdo trabalha a palavra,
quer dizer, a prática da língua realizada por emissores identificáveis. A
linguística estuda a língua para descrever seu funcionamento. A Análise de
Conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as
quais se debruça (PÊCHEUX, 1973 apud FRANCO, 2008 p. 11).
91
Este conhecer o que está “por trás das palavras”, justifica o enfoque orientador de
nossas analises, quando procura, segundo Franco, não apenas produzir inferências42
sobre as
características do texto, escrito ou verbal, mas as possíveis causas das mensagens, permitindo
apreender a “teoria” exposta pelos autores, a qual tende a nos mostrar sua concepção de
realidade, sujeito, sociedade e mundo. Nessa perspectiva, “tal concepção (consciente ou
ideologizada) é filtrada, mediante seu discurso (oral, verbal ou simbólico) e resulta em
implicações extremamente importantes para quem se propõe fazer análise do conteúdo”
(FRANCO, 2008 p. 26).
Considerando o conteúdo manifesto e explícito nos documentos orientadores
sobre a organização curricular para EJA, como base inicial do processo de análise, não
significa que desconsideramos a possibilidade de uma apreciação do seu conteúdo “oculto”,
ou seja, os significados atribuídos às mensagens em suas entrelinhas, “o que nos encaminha
para além do que pode ser identificado, quantificado e classificado para o que pode ser
decifrado, mediante códigos especiais e simbólicos” (FRANCO, 2008 p. 28). Além disso, o
caminhar, neste processo, exige do pesquisador como garantia a relevância dos resultados,
ponderar a contextualização, inegavelmente presente como atribuidora de veracidade aos
achados.
O reconhecimento de orientações, para uma educação dialógica, na perspectiva
freireana, pressupõe que consideremos as características dessa educação, ou seja, as
categorias que a compõem. Tais categorias são vislumbradas em nossa pesquisa através da
problematização, conscientização e libertação, fortemente associadas ao marco teórico
conceitual mencionado anteriormente, compondo o universo da dialogicidade da educação
desenvolvida por Freire, a organização curricular na perspectiva dialógica e pela EJA. Tais
categorias procuram conferir ao procedimento sua relevância teórica, à medida que induz a
uma comparação necessária, deixando de considerar as informações obtidas como puramente
descritivas.
Entendemos ser a dialogicidade refletida por Freire uma teoria que apresenta certo
grau de complexidade, não sendo nossa intenção reduzi-la a análises categoriais estanques, no
entanto sentimos a necessidade em aliar esta teoria às concepções percebidas, nos documentos
42
Produzir inferências em Análise de Conteúdo tem um significado bastante explícito e pressupõe a comparação
dos dados, obtidos mediante discursos e símbolos, com os pressupostos teóricos de diferentes concepções de
mundo, de indivíduo e de sociedade. Situação concreta que se expressa a partir das condições da práxis de seus
produtores e receptores acrescida do momento histórico/social da produção e/ou recepção. (FRANCO, 2008 p.
31)
92
existentes, caminhando na direção dos objetivos aos quais nos propomos. Em Franco (2008),
um dado sobre o conteúdo de uma mensagem (escrita, falada ou figurativa) é sem sentido até
que seja relacionado a outros dados. O vínculo entre eles é representado por alguma forma de
teoria, implicando a toda análise de conteúdo a existência de comparações (FRANCO, 2008 p
30). Este movimento comparativo confere à pesquisa um caráter dinâmico-dialógico, pois
considera e estrutura um diálogo entre o referencial teórico, o conteúdo dos documentos e a
fala dos docentes entrevistados.
Entre outros relevantes motivos, tais comparações nos levam a considerar os
métodos lógico-semânticos43
como adequado à nossa proposta, por apresentar características,
a partir da compreensão do sentido. Este, segundo Franco (2008), é o sentido da palavra.
Sentido expresso, nas palavras, imagem e símbolos, sentido nas percepções e analogias das
mensagens e sentido das hierarquias dos sentidos, o que implica diagnosticar diferentes
valores das mensagens e das ideias em uma hierarquia, que vai do particular até o mais geral
(FRANCO, 2008 p. 36). Este método de análise vem a nos proporcionar maior clareza, nas
atribuições feitas, as unidades retiradas no interior dos conteúdos, construindo uma ponte
entre estes e as categorias de análise, consideradas como referência à teoria explorada neste
estudo.
Contudo, tendo definido nosso objetivo de compreender o encaminhamento que a
PC/REC, na EJA, apresenta ao docente, para a potencialização de uma prática pedagógica,
pautada na dialogicidade da educação, determinado o marco teórico, a partir da dialogicidade
da educação apresentada por Paulo Freire, considerando a “Proposta Curricular para EJA”
como material de análise, bem como a opinião dos docentes da EJA sobre tais questões,
utilizamos, como Unidade de Registro, o tema, originando uma análise temática, característica
da análise de conteúdo. De acordo com Bardin (1977, p. 105), o tema é uma “unidade de
significação que se liberta naturalmente de um texto analisado, segundo certos critérios
relativos à teoria, servindo de guia à leitura”. Estas unidades podem se constituir como
“núcleos de sentido”, correspondente a possíveis sentenças (sujeito e predicado), um conjunto
destas ou mesmo um parágrafo, que possa trazer um significado explícito ou implícito, dentro
dos nossos objetivos, no tocante à dialogicidade, no conteúdo curricular.
43
Os outros métodos podem ser considerados como Lógico-Estéticos e Formais, analisando os efeitos do sentido
da retórica da língua e da palavra evoluindo para análise do discurso ou o método Semântico e Semântico-
Estruturais, investigam as conotações que formam o campo semântico de uma imagem ou enunciado aplicando-
se a universos psicosociosemânticos ou sócio semânticos mais amplos (FRANCO, 2008 p. 34).
93
Entendemos esta escolha como necessária à compreensão da teoria dialógica,
sobre os documentos analisados, pois quando levamos em consideração seu significado, seria
um erro tentar associá-la a unidades menores, como as unidades classificadas por palavras,
por exemplo.
Desse modo, esta associação ao marco teórico serviu como orientação a formação
das categorias de análise definidas a priori por estarem relacionadas aos objetivos propostos
pela pesquisa. No entanto, considerando a amplitude presente, no significado e compreensão,
atribuídos às categorias, tornou-se necessário o reagrupamento destes significados, para que
pudéssemos contemplar, com sucesso, as unidades de análise em evidência, no conteúdo
documental44
, implicando um movimento entre o material de análise e a teoria. Assim, para a
constituição do corpus de análise categorial, proveniente de um reagrupamento, tomamos
alguns cuidados qualitativos descritos por Bardin (1977) e Franco (2008), sendo o primeiro
deles a exclusão mútua, na qual “um mesmo conjunto categorial, só pode funcionar com um
registro e com uma dimensão de análise. Na Pertinência, a categoria está adaptada ao material
de análise escolhido, e quando pertence ao quadro teórico definido” (BARDIN, 1977 p. 120).
Afirmando que “o sistema de categorias deve refletir as intenções da investigação, as questões
do pesquisador e/ ou corresponder às características das mensagens”. O autor aponta, ainda
para a Objetividade e fidelidade, nas quais, “as diferentes partes de um mesmo material, ao
qual se aplica uma determinada matriz de categorias, devem ser codificadas da mesma
maneira, mesmo quando submetidas a várias análises” (idem). Na produtividade, é possível
considerar “a possibilidade de resultados férteis, em índices de inferências, em hipóteses
novas e em dados relevantes para o aprofundamento de teorias e para a orientação de uma
prática crítica, construtiva e transformadora” (FRANCO, 2008 p. 68).
Com a finalidade em proceder, sob uma análise qualitativa do conteúdo,
construímos uma grade mista45
de categorias, pressupondo as categorias teóricas, ajustadas à
dialogicidade proposta por Freire e emparelhadas46
aos conteúdos, encontrados nos
documentos e opiniões dos professores. Assim, podemos citar, como exemplo, a categoria
44
Este reagrupamento de significados, originou um conjunto de subcategorias que exploramos com maior
aprofundamento em nosso capítulo referente a analise do material. 45
A construção de uma grade mista possibilita ao pesquisador um caráter mutável, podendo ser levado em
consideração todos os elementos que se mostram significativos, mesmo que isso implique numa abrangência do
campo das categorias (LAVILLE & DIONNE, 1999 p. 222). 46
O emparelhamento procura verificar se há verdadeiramente correspondência entre a construção teórica e a
situação observável, os conteúdos (LAVILLE & DIONNE, 1999 P. 227). LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean.
A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artmed, Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1999.
94
central Problematização, na qual apontamos subcategorias, que possibilitam sua compreensão
a aplicação do material analisado, considerando-as como problematização do conhecimento,
da realidade e das relações sociais e culturais. Desse modo, prosseguimos com as demais
categorias, procurando construir uma dinâmica dialógica, em nossas análises considerando o
referencial teórico utilizado, o conteúdo da PC/REC para EJA e as respostas apresentadas
pelos docentes.
Nossos esforços, na construção dos caminhos teórico-metodológicos desta
investigação, diante da relevância atribuída à qualidade, não apenas dos procedimentos de
análise, mas a todo o conjunto da pesquisa, procura situar-se, dentro de uma perspectiva
dialógico-curricular, considerando o currículo, sob um ponto de vista crítico e libertador
capaz de “alimentar” o trabalho docente, na construção de uma educação, que possibilite a
autonomia de seus sujeitos.
95
CAPÍTULO 5
COMPARTILHAR NARRATIVAS E CONSTRUIR NOVOS SIGNIFICADOS:
POLÍTICA DE ENSINO DA REDE MUNICIPAL DO RECIFE
96
Reconfigurando as reflexões anteriores, procuramos primeiramente, resgatar
pontos relevantes, na história da Educação de Jovens e Adultos, no Brasil, conduzindo nossas
reflexões sobre as direções que esta modalidade de ensino tem percorrido, nos dias atuais,
com maior ênfase à sua atuação na cidade do Recife. Tendo como norte o objetivo de
identificar na Proposta Curricular da Rede de Ensino, na cidade do Recife, uma perspectiva
dialógica, que favoreça a uma prática pedagógica, pautada na dialogicidade da educação,
suscintamente, buscamos a reflexão em torno do currículo e sua constituição, enfatizando
aspectos referentes à construção curricular na EJA. Estando nosso objeto de estudo,
diretamente relacionado à dialogicidade da educação, na perspectiva freireana, construímos
uma discussão sobre este universo dialógico estritamente ligado à concepção de diálogo,
pensada e materializada na prática docente.
Como vimos anteriormente, as concepções em torno do currículo, nos diversos
momentos vividos pela educação, construíram modelos de organização curricular, fiéis as
suas teorias e verdadeiros reflexos das relações político-econômico-sociais de cada época. O
que percebemos são construções curriculares que parecem tentar uma aproximação com um
modelo “ideal” de currículo, compatível com as necessidades, cada vez mais mutáveis da
sociedade contemporânea. Contudo, este não se constitui como nosso objetivo. Nossa
pretensão está, na busca por elementos no interior da construção curricular, que favoreça o
trabalho docente, nas turmas de EJA, numa perspectiva dialógica de educação.
Neste capítulo, retomamos as ideias centrais que alicerçam a educação dialógica,
na perspectiva freireana, considerando as categorias-força identificadas como
problematização, conscientização e libertação47
, presentes nesta teoria, como subsídio à
compreensão, tanto da construção curricular quanto das concepções e expectativas, presentes
no relato dos professores (as) atuantes, na rede municipal de ensino do Recife, na modalidade
EJA.
Em nossas análises, utilizamos estas categorias a priori por emergirem do nosso
referencial teórico e por estarem estritamente ligadas aos objetivos desta pesquisa.
Considerando a amplitude de interpretações, existentes em tais categorias, optamos pela
utilização de subcategorias, expressas como significados direcionados ao que nos propomos
buscar. Ressaltamos a importância da utilização das subcategorias por valorizarem o material
47
Anunciamos as categorias Problematização, Conscientização e Libertação através das nossas interpretações
sobre uma educação dialógica apresentada por Paulo Freire, não considerando tais categorias como estanques.
Outras pesquisas poderão apontar novas categorias que expliquem a teoria em evidencia nesta pesquisa.
97
analisado, principalmente no tocante aos documentos, quando estes não corresponderam às
expectativas da pesquisadora, tendo em vista seu volume mínimo e a ausência de uma
proposta pedagógica, especificamente construída para a educação de jovens e adultos, no
município. Na tabela a seguir, demonstramos as categorias que ora se apresentam como
categorias-força e suas respectivas subcategorias:
Tabela nº 01 – Categorias Teóricas Utilizadas para Análise
CATEGORIAS SUBCATEGORIAS
PROBLEMATIZAÇÃO Realidade; Conhecimento; Relações
Sociais e Culturais.
CONSCIENTIZAÇÃO Reflexão Crítica; Transformação da
realidade.
LIBERTAÇÃO Construção da Autonomia.
Embora a natureza da nossa pesquisa seja documental, consideramos relevante a
utilização da entrevista, através da aplicação de questionários como possibilidade em se obter
uma visão mais direcionada sobre como os documentos orientadores da política de ensino, na
rede municipal do Recife, tem contribuído para a prática pedagógica docente e sua relação
com a aprendizagem dos alunos. Buscamos verificar, no conteúdo emitido, nos relatos dos
professores entrevistados, correspondências qualitativas relacionadas à percepção destes
atores sobre as características da educação dialógica, bem como as contribuições apresentadas
pelos documentos atuais à sua prática, nas salas de aula da EJA.
Torna-se oportuno esclarecermos a maneira pela qual estruturamos nossas
análises. Tendo em vista nosso objeto de estudo, nos prevalecemos sobre uma dinâmica
dialógica para interpretação dos dados. Optamos por um diálogo entre os conteúdos
apresentados, nos documentos, nas respostas oriundas dos questionários e na própria
categorização, gestada no interior dos significados atribuídos e interpretados, nesta pesquisa,
98
sobre a dialogicidade da educação na perspectiva freireana. Desse modo, apesar de
analisarmos as categorias, em itens diferentes, neste capítulo, correspondentes a cada material
analisado, não faremos distinção entre ambas, haja vista que, além destas, não se constituírem,
isoladamente, no cerne da teoria analisada, estaríamos evidenciando um conhecimento
fragmentado, incompatível com as reflexões propostas pela própria teoria em questão.
Abrimos a sessão de análises com a apresentação de documentos constituídos,
anteriormente, à atual proposta preliminar disponibilizada pela Secretaria Municipal de
Educação. Consideramos tais documentos como relevantes, na compreensão do que está
proposto hoje, e quais caminhos foram percorridos em sua construção.
5.1 Subsídios para a organização curricular: o início do processo
Embora tenha sua construção, ainda em versão preliminar e apresentando até o
momento o Caderno I – Fundamentos Teórico-Metodológicos podemos considerar que as
iniciativas em torno de novas perspectivas, para a construção curricular, no ensino da cidade
do Recife, ocorreram, na administração da gestão municipal (2001-2004), com a organização,
também preliminar, da Proposta Pedagógica, Construindo Competências, em 200248
.
Analisando as transformações pelas quais a sociedade contemporânea tem
exigido, cada vez mais, sujeitos sociais inteirados com as novas tecnologias, em meio à
comunicação de massa e as diferentes formações culturais e sociais estruturantes da complexa
vida, nessa mesma sociedade, pôde-se dar início a discussões que buscaram propor a
formação, por meio da educação de “sujeitos, capazes de dialogar com estes complexos
desafios, promovendo entre eles a consciência de si mesmo e do outro, a corresponsabilidade
e o respeito às diferenças” (RECIFE, 2002 p. 6).
Pensada por princípios éticos de solidariedade, liberdade, participação e justiça
social, a proposta Construindo Competências considerou, no âmbito educacional, a vivência
desses princípios, “através da democratização das relações sociais, vividas na escola” (Idem).
Procurando afirmar o reconhecimento das singularidades e da interação, estabelecida entre os
48
Segundo seus autores, a proposta apresenta-se como resultado da discussão compartilhada entre professores,
coordenadores, dirigentes, assessores e equipe técnico-pedagógica da rede municipal de ensino sobre a
organização do currículo, como alternativa às questões emergidas do cotidiano da prática pedagógica.
99
conhecimentos, a PPCC/RE49
, organizou sua estrutura, a partir das orientações das Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educação Básica para o Ensino Médio, estendendo-a à educação
infantil e ensino fundamental, “considerando o diálogo permanente que existe entre as áreas e
entre os componentes curriculares que as constituem” (RECIFE, 2002 p. 7). Assim, o
conhecimento passou a ser organizado em três grandes áreas: Linguagens e Códigos; Ciências
Humanas; Ciências da Natureza e Matemática, justificadas pelas “afinidades existentes entre
os diversos componentes curriculares” (idem).
Ao apreciar a interdisciplinaridade e a contextualização como elementos
fundamentais ao processo de construção do conhecimento, a PPCC/RE, considerou a
necessidade da reflexão sobre as práticas “que se limitam apenas a uma mera transmissão do
conhecimento, em que os mais diversos conteúdos são “depositados,” na cabeça dos alunos,
de forma desprovida de significado” (RECIFE. 2002 p. 8). Este posicionamento aparece como
indicativo, a favor de uma prática pedagógica, que estivesse inteirada com uma “nova”
maneira de trazer o conhecimento para sala de aula, uma preocupação com as práticas
existentes, que apontavam para a acumulação de saberes, não mobilizados em situações reais,
negando ao educando sua capacidade de construção do conhecimento.
De acordo com Freire (2005, p. 66), esta prática a ser modificada ancora-se, na
concepção de educação bancária, na qual “a única margem de ação, que se oferece aos
educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los”. Nesta perspectiva,
estando educadores e educandos alheios à busca, à práxis, negando sua criatividade, não
admitindo a transformação, a construção do saber, Freire considera que “só existe saber, na
invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no
mundo, com o mundo e com os outros” (idem, p. 67). Conforme a PPCC/RE, o saber é
construído, a partir da interação entre indivíduos que se constituem e constituem cultura, em
conformidade com o paradigma sócio interacionista.
É interagindo com o outro que ele constrói a objetividade do conhecimento e
também a subjetividade, constituindo-se, assim, como sujeito histórico que
influencia e é influenciado pela cultura. Considerando, portanto, esse
processo de desenvolvimento e aprendizagem, a educação busca formar um
sujeito que seja capaz de aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a
conviver e aprender a ser (RECIFE, 2002 p. 6).
49
Com o objetivo de evitar repetições estabelecemos a sigla PPCC/RE para Proposta Pedagógica Construindo
Competências da cidade do Recife.
100
Neste sentido, o trabalho com o conceito de competência expõe o desejo em
suplantar a fragmentação do conhecimento, apontado pela organização do trabalho
pedagógico por disciplinas. A separação dos conhecimentos por disciplinas, ao menos na
educação básica, “é o obstáculo para a conexão dos saberes com o conhecimento do senso
comum, com as particularidades dos contextos sociais e culturais singulares, com a
experiência idiossincrática de cada aluno” (SACRISTÁN, 2000 p. 80). Nessa abordagem, a
formação do cidadão é considerada para além do domínio desarticulado dos componentes
curriculares, aponta-se para a necessidade de “superar a lógica positivista de fragmentação do
conhecimento, assegurando a interdisciplinaridade como objetivo do trabalho pedagógico”
(PPCC/RE, 2002 p. 6-7).
O modo como o conhecimento vem sendo produzido, nas escolas da rede
movimenta a proposta em direção a uma maior preocupação, com a retenção do conhecimento
por parte do aluno e a ausência da utilização do conhecimento adquirido, diante da realidade
objetiva. Assim, defende a necessidade do aluno em “saber por que está aprendendo e ter
clareza, em relação aos objetivos e ao processo educativo e como isto se articula com os
processos da vida fora do contexto escolar” (PPCC/RE, 2002 p. 9).
Nessa direção, a PPCC/RE procura organizar seu conteúdo, através das áreas
instituídas, justificando sua relevância, a partir das competências a serem alcançadas, numa
ligação com os objetivos estabelecidos. Assim, organiza os componentes curriculares,
separadamente, de acordo com os eixos e seus respectivos conteúdos e séries. Considerando a
área de linguagens, códigos e suas tecnologias, a proposta entende a linguagem como
...mediadora das aprendizagens, fator de socialização, de construção e de
constituição dos vínculos sociais, é dar oportunidade ao sujeito de viver
situações de interação e delas se apropriar e se sentir como cidadão
autônomo, responsável, crítico, desafiante, desejoso, estético e ético, que
constrói sua própria história e identidade cultural na relação com o outro
(PPCC/RE, 2002 p. 11).
Ao direcionar suas reflexões sobre a linguagem, Paulo Freire a apresenta, numa
relação sujeito versus objeto, expressa através do conhecimento produzido pelo homem.
Sendo a linguagem uma manifestação do pensamento, materializada ingênua ou criticamente,
seu desenvolvimento possibilita o alcance de uma consciência transitivo-crítica, na superação
101
de uma linguagem anunciada, por meio de uma “palavra oca, da qual não se pode esperar a
denúncia do mundo” (FREIRE, 2005 p. 90).
Dentro das competências estabelecidas, na área de ciências da natureza,
matemática e suas tecnologias, a proposta justifica essa interdisciplinaridade por meio da
necessidade de integração do conhecimento para compreensão dos problemas, na busca de
soluções e numa direção contrária à fragmentação do conhecimento. Considerando a
realidade, o cotidiano e, “ao mesmo tempo, sem perder de vista a totalidade, num permanente
diálogo entre teoria e prática, e de modo interdisciplinar, esta área volta-se para a
compreensão, conhecimento e transformação do mundo” (RECIFE, 2002 p. 49). Dentre os
componentes curriculares, aqui entendidos como disciplinas curriculares, o item relacionado a
Ciências nos demonstra maior preocupação com a organização do trabalho pedagógico e as
implicações que este traria ao cotidiano dos alunos. Neste componente, o conhecimento, é
posto numa relação entre cultura, sociedade outras e áreas do conhecimento.
O conhecimento científico contribui para o exercício da cidadania e
transformação da realidade. Tal conhecimento se constrói de modo histórico
e conjunto, influenciado pelo contexto socioeconômico, compreendido como
questionável e transitório. Desse modo, não pode ser tomado como verdade
última e deve ser tratado com atitude crítica e questionamento dos métodos
(RECIFE, 2002 p. 51).
Este componente curricular também apresenta, pela primeira vez, uma ideia
inicial e sintetizada sobre uma metodologia dialógica, na perspectiva freireana. Manifesta a
intensão do trabalho organizado, em momentos pedagógicos, compreendidos na
problematização inicial, organização do conhecimento e sua aplicabilidade, na
contextualização do conhecimento trabalhado, sendo necessário “ensinar como o
conhecimento é produzido, tratá-lo de forma dialógica, conforme Freire, numa dimensão
histórica, considerando os aspectos socioeconômicos” (idem).
A área de ciências humanas e suas tecnologias propõem aos educandos “o
conhecimento de si mesmos, com vista ao estabelecimento de relações sociais, pautadas na
solidariedade e na afetividade” (RECIFE, 2002 p. 82), construídos sobre uma base conceitual
compreendida, nas relações sociais como “guia” a compreensão dos diversos fenômenos,
relacionados ao tempo, espaço, natureza e cultura. Pontua como uma das principais
competências da área a possibilidade em “perceber que existem diferentes leituras e maneiras
102
de refletir sobre um mesmo fato e que o conhecimento pode ser construído, com autonomia, a
partir das incertezas, da crítica e da comparação” (RECIFE, 2002 p. 83-84).
Numa visão sucinta sobre a Proposta Pedagógica, Construindo Competências da
rede de ensino da cidade do Recife (2002), percebe-se um embasamento teórico-
metodológico, iniciador de discussões sobre os encaminhamentos, pensados para uma prática
pedagógica, que procure distanciar-se da rigidez dos métodos tradicionais de ensino,
integrando as questões sociais, econômicas e culturais como basilares ao trabalho docente.
No decorrer do percurso, considerando a dinâmica existente nas relações sociais e
culturais, além das necessidades emergentes da convivência em sociedade, a organização
curricular passa a considerar outras questões. Primeiramente, a preocupação com a criança,
jovem ou adulto com deficiência, para os quais o currículo sofreria adaptações que levassem
“em conta suas diferenças, seu processo de construção do conhecimento, mas também a
inclusão em turmas compatíveis com suas idades e interesses” (PC/REC, 2012 p. 16). Além
desta questão, a ampliação do ensino fundamental de oito para nove anos, ocasionando a
entrada das crianças aos seis anos, no 1º ano do ensino fundamental e a organização de
diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil, educação de jovens e adultos e os
fundamentos para uma educação, nas relações étnico-raciais, apontam para uma necessidade
em repensar as concepções teórico-metodológicas e as diretrizes orientadoras das ações na
rede de ensino.
Diante desta nova perspectiva, a equipe técnica da Secretaria de Educação Básica,
entre outros departamentos, ao analisar o documento Construindo Competências e demais
documentos disponibilizados por outras redes de ensino, propõe um movimento para debate
em forma de questões iniciado em 2009/2010 e disponibilizado pelo Ministério da Educação e
Cultura – MEC, a coleção Indagações sobre o Currículo. Estes documentos trouxeram
importantes contribuições para o debate, nas redes de ensino sobre a organização curricular,
originando uma diversidade de questões discutidas em fóruns de docentes, representantes das
unidades educacionais, rodas de planejamento da EJA, encontros pedagógicos da educação
infantil, educação especial e profissional, abrindo reflexões como: para quem, o que, por que
e como ensinar e aprender? Que diálogo é possível entre a teoria acumulada e as propostas e
práticas de reorientação curricular? Qual o papel da docência da pedagogia e da escola? Que
concepções de sociedade, de escola, de educação, de conhecimento, de cultura e de currículo
103
orientarão as escolhas das práticas educativas? Por que damos ao ordenamento dos conteúdos
curriculares tamanho poder de condicionar a vida dos cidadãos?
Estas e outras indagações estão postas como subsídio à reflexão coletiva de todos
os envolvidos no processo educacional. De acordo com este documento em seu caderno
Currículo e Desenvolvimento Humano, as reflexões coletivas, entre diferentes concepções,
apontam para uma pluralidade necessária a esse processo, pois as escolas são responsáveis por
uma diversidade de projetos curriculares e reflexões teóricas. Quando consideramos as
variáveis pedagógicas e sociais, percebemos um processo educativo complexo, não podendo
ser “analisado fora da interação dialógica entre escola e vida, considerando o
desenvolvimento humano, o conhecimento e a cultura” (LIMA, 2007 p. 6).
Podemos considerar uma estrutura similar, na construção da atual proposta da
rede, na qual é possível observar a afirmação e reafirmação de uma organização coletiva,
envolvendo o documento. Nessa organização, optou-se por introduzir as “vozes” dos
estudantes, com indagações sobre “como gostariam que fosse sua escola, creche ou
CEMEI?50
O que precisava ser feito para isso? O que gostariam de estudar, pesquisar,
discutir?”. Além da opinião dos estudantes, o documento defende a participação docente, não
apenas sob discussões em fóruns ou encontros, mas através de relatos e memórias das
experiências vivenciadas no cotidiano das escolas.
Estas reflexões podem ser observadas ao longo do documento, em consonância
com a utilização de referenciais, no campo do currículo, assim como nos fundamentos e
normas legais, no âmbito educacional. Foram realizadas sínteses das respostas dos (as)
professores (as), diante das indagações e apontados elementos, caracterizadores de suas
expectativas relacionadas à educação com qualidade social.
Conforme a Proposta para Reorganização Curricular (2012), em sua maioria, as
(os) professoras (es) reafirmam o compromisso com uma educação que valoriza o
aprendizado de atitudes e a construção de conceitos para que os estudantes sejam capazes de
solucionar os problemas que se apresentem em sua vida, aprendendo a relacionar-se com o
outro e com o ambiente do qual fazem parte. Esta dinâmica para reorganizar o currículo
existente tem sido seguida pela rede municipal do Recife através de uma metodologia de
trabalho, que entende ser o currículo constituído por diversos textos, envolvidos nos discursos
da docência, das crianças, dos adolescentes e adultos, capazes de “ensinar e aprender os
50
Centro de Ensino Municipal da Educação Infantil
104
diferentes saberes torna visíveis as práticas significativas e abriga várias formas de pensar e
agir, pois acredita que o consenso pode silenciar vozes” (PC/REC, 2012 p. 18).
É relevante considerarmos o lugar ocupado pela fala de todos os envolvidos, na
construção curricular, principalmente quando esta traz o relato das práticas docentes e
considera o conhecimento existente, na realidade dos envolvidos no processo escolar. Em sua
concepção, Freire (2009) defende a presença participante de alunos, pais e mães de alunos e
demais envolvidos no universo escolar, seja ele ou ela docente ou não. Considera a atuação
indispensável de especialistas, o que não significa colocá-los “como “proprietários”
exclusivos de um componente fundamental da prática educativa” como o currículo, mas
significa “democratizar o poder da escolha sobre os conteúdos a que se estende,
necessariamente, o debate sobre a maneira mais democrática de tratá-los, de propô-los à
apreensão dos educandos” (FREIRE, 2009 p. 111). Para ele, não é possível democratizar a
escolha dos conteúdos, sem democratizar o seu ensino.
Nesta perspectiva, consideramos, em nossas análises, o papel relevante atribuído
aos especialistas que, até então, procuram reconstruir e construir novos horizontes para a rede
de ensino da cidade do Recife. Nosso olhar sobre a proposta direciona-se, na procura por
“achados” que revelem a possibilidade de uma educação dialógica na EJA, considerando a
teoria freireana sobre esta perspectiva. Mais uma vez, reafirmamos não ser nossa pretensão
encontrar, de maneira explícita e sistematizada, esta teoria, mas perceber, na orientação
curricular, uma educação, no sentido defendido por Freire. “Educar, no sentido freireano, é
conhecer criticamente, como sujeito do conhecimento, e não como recebedor de um
conhecimento doado ou prescrito” (JORGE, 1981 p. 29).
Construímos a análise do conteúdo, nos documentos estabelecidos recentemente
pela Secretaria Municipal de Educação da cidade do Recife, em parceria com as escolas do
município, para atualização da organização curricular. É adequado considerar seu caráter
transitório e não específico quanto à modalidade de ensino EJA. No entanto, por se constituir
como referencial teórico-metodológico para todos os níveis de ensino, tornou-se relevante sua
análise, quando consideramos as categorias apontadas pelo referencial teórico da pesquisa, a
qual procuramos delinear nos itens subsequentes.
105
5.2 A Proposta Curricular e sua perspectiva para a construção de novos significados em um
mundo de diferentes saberes culturais.
Em conformidade com o objetivo geral e, especificamente propostos por este
estudo, buscamos analisar a proposta para organização curricular do ensino na cidade do
Recife, na perspectiva dialógica da educação refletida pela teoria freireana. Com isso, torna-se
necessário considerar as categorias que, ao nosso ver, tendem a caracterizar esta teoria,
servindo-se como subsídios extremamente relevantes às nossas análises. Em anexo a este
estudo, apresentamos um quadro-síntese das unidades de análise,51
utilizadas em diálogo com
as categorias insurgidas do nosso referencial teórico usado por este estudo. Como afirmado
anteriormente, buscamos, neste primeiro momento, a análise sobre os documentos
disponibilizados pela Secretaria de Educação do Município, apresentados em linhas gerais, a
maneira como foi pensada sua organização.
De modo estrutural, a PC/REC, em seu primeiro caderno, procura realizar um
percurso histórico sobre o ensino na rede, demonstrando os caminhos traçados pela memória
pedagógica da educação no município, assim como, apresentando as possibilidades e
necessidades, em se construir coletivamente diretrizes comuns a todos os docentes da rede.
Em seguida, demonstra os princípios que norteiam a educação no Recife, abrindo uma
reflexão sobre quais conhecimentos privilegiar, na escola, seu sistema avaliativo, os processos
de ensinar e aprender para, finalmente, explorar ainda que sucintamente sua concepção de
educação básica e, especificamente, seu olhar sobre as etapas ou modalidade que a compõe52
.
Os princípios norteadores da proposta curricular para a rede de ensino da cidade
do Recife reafirmam sua fundamentação, nas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a
Educação Básica, apontados em documentos anteriores, como é o caso da Proposta
Pedagógica Construindo Competências em 2002, versão preliminar. Estes princípios
correspondem à construção da liberdade, solidariedade, participação, justiça social, pluralismo
de ideias e respeito aos direitos, entendidos como a base política de ensino da rede.
51
O quadro demonstra as temáticas consideradas pela pesquisadora e se referem a rotina metodológica proposta
pela técnica da Análise de Conteúdo, descrita por Bardin (1977). 52
A Secretaria de Educação Municipal vivencia na atualidade, a construção de cadernos específicos para os
ciclos e modalidades de ensino, não concluído em tempo hábil, o qual seria objeto de nossas análises, o caderno
correspondente às orientações curriculares sobre a EJA.
106
De acordo com a PC/REC, estes princípios objetivam a garantia da permanência
dos estudantes, “como protagonistas da construção de seus conhecimentos” (PC/REC, p. 24-
25). Esta afirmativa nos envolve, no pensamento de Paulo Freire, quanto ao lugar ocupado por
educadores e educandos, na construção do conhecimento. De acordo com o autor, a educação
dialógica requer do educador e da educadora um refazer constante do ato cognoscente, na
própria cognoscitividade dos educandos, quando “estes em lugar de serem recipientes dóceis
de depósito, são agora investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador
crítico, também” (FREIRE, 2005 p. 80).
Nesse sentido, considerar os educandos como protagonistas dos conhecimentos
construídos, requer do educador assumir-se como educador problematizador, capaz de
proporcionar não “aos”, mas “com os educandos, as condições em que se dê a superação do
conhecimento no nível da doxa pelo verdadeiro conhecimento, o que se dá no nível do logos”
(Idem). Assim, uma educação problematizadora, tendo em sua essência a reflexão, provocará,
num constante desvelamento da realidade, a busca pela emersão das consciências, de acordo
com Freire, resultante numa inserção crítica na realidade.
Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o
mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais
obrigados a responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na
própria ação de captá-lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como
um problema em suas conexões com os outros, num plano de totalidade e
não como algo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se
crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada (FREIRE, 2005
p.80).
Compreendemos, nas palavras de Freire, ser a prática problematizadora uma
espécie de provocação ao surgimento de novas compreensões, gestadas no próprio processo
de busca por respostas. Nesse processo, a procura, cada vez mais profunda, propõe aos que
nele se engajam o compromisso e o reconhecimento dos homens e mulheres, como seres de
relações para e com o mundo.
5.3 O Caráter problematizador da educação e a construção de novos saberes.
O processo de alfabetização de jovens e adultos, entendido como ato de
conhecimento, como nos aponta o educador Paulo Freire, deve estar necessariamente,
107
envolvido, num esforço de mobilização, organização, nos quais os educandos “se apropriam
como sujeitos, ao lado dos educadores, do próprio processo. Assim, deve engajá-los, na
problematização permanente de sua realidade ou de sua prática nesta” (FREIRE, 1981 p. 45).
Esta prática possibilita a compreensão da alfabetização para além de uma aprendizagem
mecânica, “bancária”, segundo o educador, mas como uma leitura de mundo, assumindo o
papel de sujeitos criadores. “Aprender a ler e escrever já não é, pois memorizar sílabas,
palavras ou frases, mas refletir, criticamente, sobre o próprio processo de ler e escrever e
sobre o profundo significado da linguagem” (idem, p. 40).
Em Freire (1979), entendido como ato de conhecimento, o processo de
alfabetização de jovens e adultos, conduzido com seriedade ao problema da linguagem,
precisa por como objeto a ser descoberto as relações dos seres humanos com seu mundo.
Considerando uma prática problematizadora, o docente estaria, então, cercado de
possibilidades enriquecedoras desta prática, ao apreciar o cotidiano dos alunos, da escola e da
comunidade. Neste sentido, a PC/REC, aponta ser o “cotidiano, com toda a sua gama de
possibilidades e de diversidades de práticas avaliativas, o caminho a ser pensado e percorrido,
enquanto instrumento concreto de trabalho e de reflexões”. Presenciamos assim, um
direcionamento para as relações estabelecidas, cotidianamente, como fontes geradoras de
conhecimento, considerando que “a cidade e o entorno da escola suscitam diálogos com os
conteúdos de ensino, ressignificando a aprendizagem, transformando a vivência em
conhecimento” (PC/REC, 2012 p. 113).
O diálogo possível entre os conteúdos e a realidade problematizada, traduz o que
consideramos em nossas subcategorias como a problematização do conhecimento. O conteúdo
problematizado, dialogicamente, não admite a dicotomização entre o conhecimento do
professor e do educando. Em Freire, (2005, p. 80), “na medida em que o educador apresenta
aos educandos, como objeto de sua “ad-miração”53
, o conteúdo, qualquer que ele seja, do
estudo a ser feito, “re-admira” a “ad-miração” que antes fez, na “ad-miração” que fazem os
educandos”. Considerando a PC/REC, a escola como ambiente reflexivo, torna-se orientação
ao trabalho docente diante do conhecimento ser “possível analisar aquilo que já se sabe,
53
O termo “ad-miração” proposto por Freire, não tem em seus escritos o significado usual. Segundo o autor, esta
operação está diretamente ligada a uma prática consciente e ao caráter criador da linguagem. Ad- mirar implica
pôr-se em face do “não-eu”, curiosamente, para compreendê-lo. Mas, se o ato de conhecer é um processo – não
há conhecimento acabado – ao buscar conhecer ad-miramos não apenas o objeto, mas também a nossa ad-
miração anterior o mesmo objeto. Quando ad-miramos nossa anterior ad-miração (sempre uma ad-miração de),
estamos simultaneamente admirando o ato de ad-mirar e o objeto ad-mirado, de tal modo que podemos superar
erros ou equívocos possivelmente cometidos na ad-miração passada (FREIRE, 1981 p. 43).
108
colocar esse saber em diálogo com outro tipo de conhecimento e chegar a novas conclusões,
construindo novos saberes” (p. 128). No entanto, quais direcionamentos metodológicos
caberiam à mediação de tais reflexões? De que maneira, tomando o pensamento freireano, o
docente poderia propor esta “ad-miração” ou “re-admiração” do objeto a ser desvelado?
Este questionamento é direcionado pela proposta através da “capacidade de leitura
de mundo, e de articulação dialógica entre os diversos saberes” (idem). Convém apreciarmos,
nos documentos, um posicionamento que inicia discussões em favor da educação
problematizadora a partir da articulação entre os conhecimentos disciplinares e as
experiências de vida dos educandos. No entanto, torna-se importante ressaltar o entendimento
e orientação necessários aos docentes envolvidos diretamente nas práticas em EJA. Saber sua
existência não pode e não deve ser condição singular à sua prática, o aprofundamento sobre
questões teóricas e metodológicas constituem-se como fundamentais para a existência de uma
verdadeira articulação dialógica, como indicado pela proposta.
A articulação do conhecimento erudito ao saber popular, numa concepção
dialógica da educação, pressupõe aos educadores e educadoras reconhecerem-se a si mesmos
e aos seus educandos como seres históricos. Como educação problematizadora, a construção
do conhecimento, segundo Freire (2005 p. 83), “parte exatamente do caráter histórico e da
historicidade dos homens”. A PC/REC orienta o docente, enquanto prática pedagógica para
uma aprendizagem desafiadora, a reflexão entre ambos, professor e aluno, reflexão “sobre as
ideias, hipóteses e conhecimentos que trazem acerca de um novo estudo e facilitar sua
interação, enquanto, sujeito histórico, com o objeto do conhecimento, que é cultural” (idem, p.
89).
Este reconhecimento da presença histórica do ser humano e da sua realidade
cultural, enquanto produção do próprio homem, pensada entre educadores e educandos, diante
do objeto do conhecimento, está proposta por Freire, através da “capacidade que têm os
educandos de conhecer, em termos críticos, – de ir mais além da mera opinião – se vai
estimulando no processo de desvelamento de suas relações com o mundo histórico-cultural”
(FREIRE, 1981 p. 44).
Percebe-se, nos documentos, uma preocupação inicial com tais questões, quando
em relação aos conhecimentos produzidos em sala de aula, afirmam ser necessário “explicitar
o momento histórico, em que foram produzidos, investigar que interesses sociais mobilizaram
sua produção, buscar outros pontos de vista para explicá-los” (p. 57). Em continuidade a este
109
posicionamento, a PC/REC também reafirma a importância de uma postura docente, que se
faz crítica, diante dos conteúdos, ante a escolha do programa ao qual se pretende acompanhar.
Não é suficiente apenas definir “o que” ensinar e “em quanto tempo”, mas
dar conta do “como” ensinar, compreendendo o processo humano de
aprender, questionando “por que” e “para que” ensinar garantindo o direito à
educação, ao conhecimento, aos temas culturais, à formação de identidades
no reconhecimento da diversidade (PC/REC, 2012 p. 55).
Esta postura docente, diante do conhecimento, muito embora possua uma
conotação dialógica, necessita de certos cuidados, quando apontamos para a origem destas
escolhas, muitas vezes realizadas, a partir de uma visão pessoal da realidade. De acordo com
Freire (2005, p. 97-98), estas escolhas têm suas falhas, muitas vezes, “porque não levaram em
conta, num mínimo instante, os homens em situação a quem se dirigia seu programa, a não
ser com puras incidências de sua ação”.
Quando analisada, a partir da categoria problematização, diante dos aspectos
sociais e culturais, a PC/REC aponta a escola como um “lugar de diálogo e reflexão sobre os
objetos culturais presentes, no cotidiano do mundo, em que vivemos” (p. 127). Este diálogo
com vista à reflexão está pressuposto em quatro eixos, que, segundo a Proposta, estão
constituídos, levando-se em consideração às principais temáticas do mundo contemporâneo.
Propomos ao jovem, adulto e idoso estudante da EJA um espaço para
reflexão, convergido nos seguintes eixos temáticos: I – Identidade e
diferença; II – Mundo do trabalho e economia solidária; III – Meio ambiente
e sustentabilidade e IV – Interculturalidade, mídia e consumo. Também faz
parte desse conjunto de eixos temáticos, o desafio de aprofundar o olhar
crítico a respeito dos Modelos de Desenvolvimento, que envolvem a
compreensão dos processos da vida econômica e política das sociedades
humanas, numa perspectiva histórica, classista e, portanto, crítica (PC/REC,
2012 p. 128). (grifo do autor)
É possível observar, nos documentos, textos que discorrem sobre as temáticas
citadas, algumas, de maneira mais aprofundada, como é o caso das temáticas I, III e IV, outras
abordadas, com menor profundidade, citada pelo item II. Nesta, encontramos poucas
referências ou referências mais explícitas, sobre como estas reflexões seriam desenvolvidas,
assim como um aprofundamento teórico sobre tais questões. No entanto, optamos por melhor
compreender a segunda parte da citação, referente ao “desafio de aprofundar o olhar crítico, a
110
respeito dos Modelos de Desenvolvimento,” presentes na sociedade contemporânea. Esta nos
parece uma questão pertinente a ser discutida e posta a reflexão a partir da teoria dialógica.
Considerar os modelos de desenvolvimento, a partir de uma realidade humana,
possibilita a reflexão sobre os processos que articulam os diferentes aspectos da sociedade,
sejam eles econômicos, políticos, sociais ou culturais. Este exercício crítico sobre os modelos
de desenvolvimento, apontados pela Proposta, nos parecem pertinentes ao caráter
humanizador da educação defendido por Freire. A reprodução de modelos, muitas vezes,
gestados em outras realidades, são absorvidos e propagados pela população, sem qualquer
avaliação; esta é substituída pela mera aceitação e contemplação ingênua, impressa a crianças,
jovens e adultos.
Nas sociedades massificadas, de acordo com Freire (1979), os indivíduos
“pensam” e agem, de acordo com as prescrições que recebem, diariamente, dos chamados
meios de comunicação. Nestas sociedades, onde tudo ou quase tudo é pré-fabricado e o
comportamento é quase automatizado, os indivíduos se “perdem” porque não têm que
“arriscar-se”, pois não se veem obrigados a pensar sobre as coisas, sejam elas insignificantes
ou não. A tecnologia deixa de ser percebida como uma das grandes expressões da criatividade
humana e passa a ser tomada como uma espécie de nova divindade a que se cultua. A
eficiência deixa de ser identificada com a capacidade que têm os seres humanos de pensar, de
imaginar, de arriscar-se, na atividade criadora, para reduzir-se ao mero cumprimento, preciso
e pontual, das ordens que vêm de cima.
O debate a respeito da influência dos meios de comunicação sobre a sociedade,
com vista à problematização, inicia-se na proposta, quando afirma a necessidade do
“aprofundamento de saberes sobre as tecnologias, suas possibilidades e limites, bem como as
implicações estéticas e políticas do seu uso na nossa sociedade” (PC/REC, 2012 p. 127), o
que em Freire (1992 p. 133), possibilita “a assunção de uma posição crítica, vigilante,
indagadora”, mas evitando-se uma concepção fatalista ou mesmo de idolatria.
Este debate envolve ainda a impossibilidade da negação sobre a presença da
televisão, do rádio, internet, programas tecnológicos, facilitadores da comunicação imediata
dos acontecimentos e da própria rotina humana, em tempo real, presentes no cotidiano dos
educandos. Com suas linguagens, muitas vezes específicas, muitas vezes sedutoras, atraentes,
trazem informações que ocasionam mudanças de hábitos e valores, “no cotidiano do jovem e
da sociedade”.
111
Por esta razão, é preciso ampliar o debate sobre o papel educativo dessas
mídias de forma crítica, propiciando o desenvolvimento de uma cultura
midiática, onde educadores (as) e educandos (as) sejam autores (as) de
conhecimentos e não apenas consumidores de informação. (PC/REC, 2012
p. 73). (grifo nosso)
Deste modo, a proposta procura fortalecer o debate, em torno da influência
conduzida pelas mídias, sobre os modelos comportamentais, os quais, muitas vezes, adotam
uma postura ingênua acerca desse fenômeno midiático. De acordo com a proposta, “cabe à
escola, enquanto instituição formadora, e aos professores, enquanto agentes de transformação,
procurar compreender a natureza desses fenômenos e integrá-los ao currículo formal ou
informalmente” (idem p. 73). Em Freire, (1979, p. 72), “quanto mais somos capazes de
desvelar a razão de ser, de por que somos como estamos sendo, tanto mais nos é possível
alcançar também a razão de ser da realidade em que estamos, superando assim, a concepção
ingênua que delas possamos ter”.
Este caráter reflexivo com vista à criticidade impulsiona educandos/educandas e
educadores/educadoras ao movimento necessário e inerente ao processo dialógico da
educação, possibilita o início do processo de conscientização, caracterizado por Freire, a partir
da superação da “semi-intrasitividade” da consciência humana.
5.4 O movimento dialético da conscientização para a educação humanizadora.
A educação humanizadora, na alfabetização de jovens e adultos, possui em seu
cerne as diretrizes para uma prática inseparável ao processo de conscientização. Para tanto,
torna-se necessário a existência de uma realidade problematizada pelos sujeitos envolvidos,
haja vista que a problematização nasce do desejo inerente ao ser humano, em saber mais, não
apenas de si, mas do mundo que o cerca, afirmada por Freire na busca do “ser mais”. Como
visto em nosso referencial teórico, a conscientização estabelece-se em diferentes níveis,
necessários à sua concretização, na superação da consciência opressora, com vista à
consciência crítica. Esta, a consciência crítica, de acordo com Freire, é a “consciência da
análise, da percepção, da comunicação, da dialogização e, portanto, da problematização. Ela
tudo problematiza através de suas relações, na e com a realidade: o homem, o mundo, a
história, as realidades” (JORGE, 1981 p. 67).
112
Em sua abordagem sobre os processos de ensinar e aprender, numa relação entre o
espaço escolar e a aprendizagem do pensar, a PC/REC (2012) defende esta relação com
crianças, jovens e adultos tendo seus objetivos voltados à “promoção do processo de
humanização” (p. 85), em conformidade com os discursos teóricos trazidos por João
Francisco de Souza, Elvira Souza Lima e Paulo Freire. Nesta consonância de opiniões, os
docentes são vistos, no processo humanizador, como “mediadores” da aprendizagem do
conhecimento formal e as experiências cotidianas, indicando ser preciso “possibilitar um
processo educativo, articulador dos conhecimentos que os alunos trazem, com os novos
conhecimentos, a serem construídos no ambiente escolar, para que sejam dotados de
significados” (PC/REC, 2012 p. 85).
A prática articuladora entre o conhecimento erudito e o popular reforça a
inseparabilidade do homem com o mundo, assim como suas relações dialéticas com este
mundo. No entanto, Freire (1979, p. 41) demonstra a importância da construção dialética do
conhecimento, como processo de alfabetização de jovens e adultos, em contextos, que
dialeticamente, estão relacionados, sendo o primeiro o “contexto do autêntico diálogo entre
educadores (as) e educandos (as), enquanto sujeitos do conhecimento. É o contexto teórico”.
Outro seria o contexto concreto, “em que os fatos se dão, na realidade social, em que se
encontram os alfabetizandos (as)”. O educador assinala que a postura pedagógica frente à
realidade, construída e reconstruída nesse constante movimento social, não pode ser pensada
como determinação, mas como possibilidade. Para Freire (1996), esta postura deve,
dialeticamente, possibilitar a construção de papéis, não apenas do ponto de vista de quem
constata o que ocorre, mas também o de quem intervém. Não como objeto da história, mas
como seu sujeito, igualmente, sujeito da cultura, da política, constatando não para adaptação,
mas para a mudança.
Daí se faça importante, na prática do desvelamento da realidade social, no
processo conscientizador, que a realidade seja apreendida não como algo que
é, mas como devenir, como algo que está sendo. Mas se está sendo, no jogo
da permanência e da mudança, e se não é ela o agente de tal jogo, é que este
resulta da prática de seres humanos sobre ela (FREIRE, 1981 p. 117) (grifo
do autor).
Apesar de encontrarmos afirmações, apenas, no texto especificamente direcionado
às séries finais da EJA sobre este “modelo” de prática pedagógica, na PC/REC (2012 p. 128),
afirma-se ser, na “capacidade de leitura de mundo, e de articulação dialógica entre os diversos
113
saberes, em que se estabelecem uma das mais importantes características da prática da
docente”. Ao fazer referências à leitura de mundo, Freire não se reporta a algo afastado,
intocável, destoante do contexto real, mas a uma realidade próxima, direta, a um mundo
imediato. Para ele, na medida em que “os alfabetizandos vão organizando uma forma, cada
vez mais justa de pensar, através da problematização de seu mundo, da análise crítica de sua
prática, irão podendo atuar cada vez mais, seguramente no mundo” (idem).
É possível apreciarmos que este “conhecer, para transformar,” torna-se um
processo caracterizador da prática libertadora. Para a PC/REC (2012 p. 121), a concepção de
liberdade, “deve estar focalizada, na perspectiva de o indivíduo tornar-se livre da miséria, da
subordinação a interesses que burlam suas necessidades materiais, da exploração, da
discriminação e desenvolvam o desejo de justiça social”. A este respeito, Freire nos aponta
em seus escritos, a vocação exclusivamente humana, em ser sujeito de si, sua vocação
ontológica, em ser mais, vocação que também se faz histórica.
Sendo a liberdade uma vocação natural de todo ser humano, não pode ser
considerada como um dom, mas com uma conquista. Conquista alcançada pelos sujeitos, em
situação de opressão, tendo a palavra como mediadora, tecida no diálogo libertador. Podemos
considerar as situações descritas pelas propostas, como situações de opressão vividas pela
sociedade atual, situações a muito evidenciadas por Freire, em momentos históricos distintos,
mas sempre caracterizadoras de relações estabelecidas entre opressores e oprimidos.
Esta concepção de liberdade está afirmada na PC/REC, considerando-se seu
caráter estético e ético, como direcionamento ao “ensino, na perspectiva humanista de
formação integral do aluno”. Procura dissertar este aspecto, sob três pontos constitutivos,
formadores da totalidade da educação estética, sendo estes o campo da arte, relacionado à
beleza artística, suas leis e categorias; o campo da percepção estética da natureza,
envolvendo sua beleza e a relação existente com os homens; e campo do conteúdo estético das
relações sociais. Este último, com maior ênfase, por subsidiar diretamente os princípios éticos
norteadores da Proposta na rede.
Favorecendo o reconhecimento, a valorização e a produção do belo, não
apenas na Arte, mas nas relações dos alunos com a natureza/meio ambiente
em seus múltiplos aspectos, e dando especial atenção ao âmbito da estética
das relações sociais, campo necessário de observação, análise e crítica para a
formação das bases éticas necessárias ao conhecimento e intervenção
criadora do educando em seu contexto social, faz-se uma contribuição no
114
sentido de elaborar novos significados e sentidos que preservem os valores
defendidos – solidariedade, liberdade, participação e justiça social, visando a
formação de cidadãos ativos e participativos com senso estético e princípios
éticos, que repercutem de maneira transformadora e benéfica na
coletividade. (PC/REC, 2012 p. 120)
Nesta perspectiva, embora suas obras não nos revelem com maior
aprofundamento esta temática, Freire (1996, p.32-33) nos aponta que “a necessária promoção
da ingenuidade a criticidade não pode e não deve ser feita à distância de uma rigorosa
formação ética, ao lado sempre da estética”. Assim, a liberdade de escolha, da criticidade
consciente, a capacidade humana de valorar sobre as ações e acontecimentos, de intervir,
decidir e romper com toda e qualquer relação social desumanizante, torna possível uma
intervenção crítica sobre a esteticidade da sociedade, seus preconceitos sobre os padrões de
beleza, felicidade, comportamentos individuais ou coletivos, conhecimento, etc., “só somos
porque estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os
seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela” (idem).
A prática libertadora, inerente à consciência de inacabamento, “nos fez seres
éticos”. Assim, igualmente importante e, portanto, como princípio ético de educadores e
educadoras, se faz necessária a reflexão, em torno do respeito à autonomia dos educandos e
educandas, no caminhar do processo libertador. A PC/REC pensa a este respeito, quando
reconhece nas ações desenvolvidas dentro do ambiente escolar, a existência da inadequação
destas ações sobre as necessidades dos estudantes de EJA.
Encontrar o sentido da prática escolar que ao mesmo tempo respeite a
especificidade do estudante jovem ou adulto, sem deixar de cumprir a tarefa
escolar propriamente dita, ou seja, garantindo o acesso aos conhecimentos
construídos pela humanidade e necessários para a vida social, requer um
esforço criativo e vigilância crítica permanente. (PC/REC 2012, 130).
O esforço e vigilância apontados pela proposta se fazem, na pedagogia freireana,
também em termos éticos, pois “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um
imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros” (FREIRE,
1996 p. 59). Para Freire (1996), não pode haver desrespeito à curiosidade do educando, ao
seu gosto estético, à sua inquietude ou linguagem, mais precisamente à sua sintaxe ou
prosódia, assim como uma prática que ironiza, minimiza ou se exime do cumprimento de
115
propor limites, pois esta seria uma prática violadora dos princípios fundamentais éticos da
nossa existência.
É nesse sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos
dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a
forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados,
assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos. (FREIRE, 1996
p.60)
Assim, tomando como empréstimo os conceitos éticos e estéticos, refletidos nos
escritos freireanos, em nosso contínuo processo de inacabamento, buscamos refletir sobre as
orientações teórico-metodológicas apontadas pelo documento Políticas de Ensino da Rede
Municipal do Recife (subsídios para atualização e reorganização curricular), analise esta, sob
olhar dos referenciais teóricos desta pesquisa, acerca da dialogicidade da educação na
perspectiva do educador Paulo Freire. Igualmente aos estudantes, educadores e, como seres
humanos, que somos, na constante busca pela autonomia, enquanto amadurecimento de “ser
para si”, como processo de “vir a ser”, procuramos trazer reflexões sobre a proposta, enquanto
possibilidade e aprofundamento teórico, igualmente importante à própria prática docente. Do
mesmo modo, nos debruçamos, nos próximos subitens deste capítulo de análises sobre os
relatos dos participantes da EJA, buscando apreender os significados, que atribuem não
apenas a proposta enquanto objeto de orientação da prática, mas suas percepções sobre a EJA,
a construção curricular, o diálogo e o significado atribuído à educação, na perspectiva
dialógica.
5.4 O perfil histórico-cultural dos docentes entrevistados
Relevante à construção curricular, diante das problemáticas que envolvem a
educação, na sociedade atual, consideramos a necessidade em examinar os direcionamentos e
contribuições apresentados, a partir do relato docente sobre tais propostas. Estes “atores
sociais” expõem, em sua maneira de ver e compreender esta construção, uma importante
ferramenta facilitadora da aproximação necessária que ora precisamos estabelecer. Sem este
116
referencial, o caminho, nesta direção, se faria com menor credibilidade, pois não seria
possível, com base apenas nos documentos54
, lançar mão de opiniões sobre sua contribuição.
Outro ponto, para nós fundamental, e este encontra-se diretamente relacionado ao
referencial teórico e ao campo explorado por este estudo, seria apreender, nesta narrativa
docente, sua compreensão sobre a perspectiva de educação defendida pelo educador Paulo
Freire enquanto fundamento teórico-metodológico ao docente nas turmas de EJA.
Contudo, julgamos necessário conhecermos o perfil dos docentes participantes da
pesquisa e os critérios utilizados, para que se fizessem partícipes. Tais critérios foram
elencados, a partir da necessidade primeira de serem docentes na EJA, especificamente nas
séries iniciais, entendidas como módulos I e II. Um segundo critério está no fato de serem
professores que vivenciam a proposta, ainda que não seja específica a esta modalidade, pois
entendemos suas orientações gerais como necessárias à prática docente, em qualquer nível de
ensino ofertado pela rede. Outro fator delineador deste perfil se constitui, no fato de serem
professores da rede municipal do Recife, descartando a possibilidade de participantes que
estivessem como docente, nas turmas de EJA, em outro município ou vinculados a programas
advindos do governo estadual.
Em princípio, foram distribuídos trinta questionários aos docentes, em diferentes
unidades de ensino, na cidade do Recife, considerando em algumas instituições a presença de
mais de um docente. Destes, foram apreciadas as respostas de 15 docentes, 50% do total,
tendo em vista dois fatores preponderantes: o primeiro, como justificado anteriormente refere-
se aos critérios para análise; um segundo fator está relacionado ao fato da recusa por parte de
alguns professores, em participar da pesquisa, com e sem justificativas.
Para conhecermos esta parcela de participantes da pesquisa, em seu aspecto
histórico-cultural, acrescentamos algumas questões que nos revelassem um pouco deste perfil.
Conforme podemos observar, na tabela abaixo, há uma predominância do sexo feminino, no
grupo, sendo verificado, no universo de 15 docentes, apenas 4 do sexo masculino, com
predominância do sexo feminino, o que confirma as pesquisas e discussões sobre esta
predominância de sexo, na profissão docente, sobretudo nas séries iniciais do ensino
fundamental.
54
Consideramos este fato relevante à utilização da entrevista, pois o volume dos documentos encontrados a
respeito da modalidade no município não se constitui como suficiente, assim o caráter de complementariedade
das entrevistas nos proporcionou maior abrangência nas análises.
117
Tabela nº 02 – Identificação dos Docentes por Sexo
SEXO Nº DE PROFESSORES %
Feminino 11 73,33
Masculino 4 26,66
TOTAL 15 100%
Num segundo momento, abordamos uma questão referente à faixa etária dos
entrevistados, na qual podemos observar uma predominância de pessoas com idade entre 40 e
49 anos completos, 60% do total, quando organizamos estas informações, a partir de um
período de 10 em 10 anos.
Tabela nº 03 – Identificação dos Docentes por Faixa Etária (período de 10 em 10
anos)
FAIXA ETÁRIA Nº DE PROFESSORES %
20 a 29 anos 1 6,66
30 a 39 anos 1 6,66
40 a 49 anos 9 60
50 a 59 anos 4 26,66
TOTAL 15 100%
Muitos destes docentes apresentaram uma quantidade, bastante representativa de
anos, no exercício da docência, o que os caracterizou como professores experientes na
profissão, muito embora este quantitativo revele certa oscilação, quando observamos os anos
em docência, na rede municipal do Recife, muitos deles com referencia de trabalhos
desenvolvidos na educação básica em um turno e nas salas da EJA no período noturno. Nesta
ocasião, a identificação também foi realizada, considerando-se o período de 10 em 10 anos.
118
Tabela nº 04 – Identificação Docente por anos de Profissão
ANOS NA PROFISSÃO Nº DE DOCENTES %
1 a 10 anos 2 13,33
11 a 20 anos 6 40
21 a 30 anos 6 40
31 a 40 anos 1 6,66
TOTAL 15 100%
Tabela nº 05 – Identificação Docente por anos na Rede Municipal de Ensino do Recife
ANOS NA REDE Nº DE DOCENTES %
1 a 10 anos 8 53,33
11 a 20 anos 4 26,66
21 a 30 anos 2 13,33
TOTAL 15 100%
É possível observar um percentual relevante de professores que apresentam um
período de 1 a 10 anos, nesta rede de ensino. Estas informações colaboram com nossas
expectativas, quando pensamos na proposta, enquanto espaço de vivência, pois estes
professores (as) nos fornecem informações importantes, quando revelam sua percepção sobre
o currículo existente, considerando sua participação, no percurso curricular trilhado por esta
rede de ensino. Ao mesmo tempo em que pudemos encontrar professores atuantes, na EJA,
com um vínculo sólido, neste segmento, nos perguntamos sobre a formação continuada desses
docentes.
É sabido que toda formação quanto mais específica se constitua, melhor conduz o
professor ao trabalho desenvolvido. Esta perspectiva se funda no universo da pesquisa, da
busca incessante pelo conhecimento, na indagação que deveria fazer parte da natureza da
prática docente. Em Freire (1996), a pesquisa se constitui como um dos saberes necessários à
prática educativa, pois “não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses quefazeres
se encontram um no corpo do outro” (p. 29). No entanto, muitas vezes a busca pela
especialização não se dá apenas pelo aprofundamento da prática, por motivos pessoais ou
119
acadêmicos, mas pela exigência imposta pelo mercado de trabalho e suas politicas salariais55
.
No universo constituinte da nossa pesquisa, expomos, nos quadros a seguir, em quais níveis
se deram a formação inicial dos professores entrevistados, assim como a continuidade desta
formação.
Tabela nº 06 – Formação Inicial dos Docentes Entrevistados
FORMAÇÃO INICIAL Nº DE DOCENTES %
Pedagogia 10 66,66
Psicologia 1 6,66
Outra Graduação 4 26,66
TOTAL 15 100%
Tabela nº 07 – Formação Continuada dos Docentes Entrevistados
FORMAÇÃO
CONTINUADA
Nº DE DOCENTES
%
Graduação 2 13,33
Especialização em EJA 0 0
Outra especialização 11 73,33
Mestrado 2 13,33
TOTAL 15 100%
É possível observar uma formação inicial com predominância, no curso de
Pedagogia, contudo, a continuidade desta formação não se concretiza, na especialização em
EJA, tendo em vista a atuação destes docentes na modalidade de ensino em questão. Este
ponto reafirmando outro, igualmente importante como possibilidade de futuros estudos, são
os motivos que levam os docentes a atuarem, na EJA, e principalmente a falta de exigência
55
A este respeito, consultamos a pesquisa sobre A Formação de professores para a Educação de Jovens e
Adultos na Pós-Graduação Latu-Sensu da UFPE, de Francisca Maria da Conceição, no Programa de Pós-
Graduação – Mestrado, na UFPE, 2003.
120
por parte das políticas de ensino, nesta modalidade, enquanto critérios norteadores para a
escolha destes profissionais no segmento educativo em questão.
5.6 A perspectiva docente sobre a EJA, o Currículo e a Educação Dialógica.
Em continuidade às análises necessárias ao presente estudo, iniciamos, neste
subitem, as considerações docentes sobre as temáticas abordadas, ao longo das nossas
discussões. Esta contribuição, em seu caráter de complementariedade, como justificada
anteriormente, utilizou um questionário com perguntas abertas, para que os entrevistados
pudessem expressar-se livremente sobre o tema. Nossa intencionalidade, nas questões, está
voltada para uma investigação específica, no entanto, consideramos alguns pontos dissertados
pelos professores como relevantes às nossas reflexões, temas que direta ou indiretamente
incidem sobre a presente abordagem.
Inicialmente, foram consideradas as questões que fazem referência à percepção
docente sobre a EJA, na atualidade, para que pudéssemos perceber como este segmento tem
sido visto pelos educadores, levando-se em consideração a realidade vivenciada por cada
profissional56
. Num segundo momento contemplamos a Proposta Curricular, nesta rede de
ensino, a respeito da sua contribuição, na prática docente, na EJA e o que deveria ser levado
em consideração numa elaboração curricular para este segmento.
Ao trazermos as questões, mais detidamente a teoria da dialogicidade da
educação, procuramos compreender em quais parâmetros o diálogo vem sendo considerado e
percebido, nas propostas curriculares, no interior das escolas e, consequentemente, pudemos
inferir no conteúdo das respostas, a concepção sobre diálogo apontada pelos docentes.
Contudo, a partir da necessidade em aprofundar as reflexões sobre a teoria, enfatizamos as
categorias teóricas assinaladas por este estudo, não objetivando a total compreensão dos
professores sobre a teoria em si, mas expondo-as separadamente, tornou-se possível observar
sua compreensão quanto à possibilidade de torná-las presentes, na construção do
conhecimento produzido por educadores-educandos, na sala de aula, tendo como perspectiva
uma organização curricular que considere esses parâmetros.
56
Esta realidade está atrelada ao fato de não termos entrevistado professores (as) de uma única instituição,
devido ao perfil necessário, mas profissionais em diferentes escolas consequentemente inseridas nas diversas
comunidades existentes na cidade do Recife.
121
Com o objetivo de preservar a identidade dos entrevistados, optamos por utilizar
como nomenclatura, para identificação dos relatos dos docentes, a letra “P”, como indicação
para “professor” e, como resultado, uma numeração que está entre 1 e 15, de acordo com o
numero de professores entrevistados. Alguns relatos não participam, em determinados
questionamentos, por terem o mesmo sentido de outros relatos, ocasionando em respostas
passiveis de generalização.
5.6.1 Concepções sobre a Educação de Jovens e Adultos na atualidade.
Antes de aprofundarmos as questões que fazem referências à abordagem teórica,
na qual procuramos demonstrar sua relevância, tornou-se igualmente importante e, como
premissa, compreendermos a percepção sobre a EJA construída pelos docentes. Entendemos
que as leis, diretrizes e pareceres sobre a educação, destinadas ao jovem ou adulto, comungam
de uma concepção que orienta todas as propostas e programas ofertados a este público no
país.
A EJA, de acordo com Lei 93.94/96, passando a ser uma modalidade da
educação básica nas etapas do ensino fundamental e médio, usufrui de uma
especificidade própria, que como tal deveria receber um tratamento
consequente (Parecer CNE/CEB 11/2000, p. 2). (grifo nosso)
Esta perspectiva sobre a EJA, enquanto modalidade de ensino, perpassa a
concepção docente, no entanto, não se reduz a um “lugar,” tecnicamente instituído, mas
configura uma abertura, para discussões que, embora implícitas no conceito de modalidade,
como observamos na citação do parecer, se fazem presentes no cotidiano dos seus envolvidos,
de acordo com o relato do P.10:
“Percebo a EJA como uma modalidade de ensino que possibilita aos alunos
que não conseguiram ou pararam de estudar, por vários motivos, de serem
incluídos no processo educativo e, assim, oportunizando efetivamente uma
aprendizagem significativa para que estes indivíduos possam ver além do
olhar, utilizando o conhecimento construído como instrumento de
integração no mundo, analisando-o, criticando-o e transformando-o”.
(P.10)
Para que esta integração seja possível, Freire (1979, p. 17) enfatiza que a
“alfabetização se faz, então, um quefazer global, que envolve os alfabetizandos em suas
122
relações com o mundo e com os outros”. Afirma que este “quefazer” funda-se, na prática
social dos alfabetizandos, “contribui para que estes se assumam como seres do quefazer – da
práxis” (idem). Para alguns docentes, estas relações estão além da aquisição de saberes sobre
a leitura e a escrita, estas relações enfatizam o resgate possível, desde o sentimento de não
pertencer, ao mundo, no reconhecimento das potencialidades cognitivas, sociais e culturais,
inerentes a todos os sujeitos.
“Articular a EJA com a atualidade resgata: desejos e sonhos, maquiados
por frustrações, traumas, tristezas e descrença. Percebo a EJA como um
grande resgate, como uma possibilidade de melhoria na vida das pessoas,
uma nova aprendizagem, muitos sorrisos”. (P.3)
“Embora sejam muitos os problemas encontrados na educação de jovens
adultos atualmente, considero-a como não apenas uma oportunidade de
aprendizagem sobre a leitura e a escrita além da aprendizagem dos
conteúdos curriculares, percebo-a também como uma ferramenta para o
exercício da cidadania através de uma organização curricular e prática
docente que sejam capazes de resgatar e amadurecer a competência
cognitiva, social e cultural pertencente a todos os seus envolvidos”. (P. 10)
A percepção sobre o resgate, apontado pela P.3, remonta a função equalizadora
pertencente à EJA, de acordo com o Parecer (CNE/CEB 11/2000 p. 10) para a qual “o
indivíduo que teve sustada sua formação, qualquer tenha sido a razão, busca reestabelecer sua
trajetória escolar, de modo a readquirir a oportunidade de um ponto igualitário no jogo
conflitual da sociedade”, enfatizada por novas inserções “no mundo do trabalho, na vida
social, nos espaços da estética e na abertura nos canais de participação”.
Nas palavras da P.10, este resgate é apontado, no interior da EJA, pelas diretrizes
tanto da organização curricular57
quanto do trabalho docente. De acordo com Freire (2005a p.
100), “será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de
aspirações do povo que poderemos organizar o conteúdo programático da educação”. No
entanto, alguns docentes apontam para uma desconjuntura existente, na EJA, gestada não
apenas no currículo, em sua organização ou mesmo na maneira pela qual está sendo
elaborado, mas pelo fato de os “professores não terem formação específica para tratar de
questões específicas da EJA” (P.1). Esta especificidade encontra-se, no cerne da alfabetização
de jovens e adultos, como discutimos, em capítulo anterior, e precisamente deve ser
57
A respeito da organização curricular para EJA no discurso docente estaremos abrindo uma maior reflexão no
próximo subitem deste capítulo.
123
compreendida pelos educadores, exigindo destes uma formação que também se faz específica,
mas não observada, satisfatoriamente, nas palavras da P. 8, a nosso ver como necessária a
uma educação problematizadora, portanto crítica.
O professor precisa estar comprometido com as questões sociais e
desenvolver a consciência crítica, sem excluir a preparação para o
cotidiano da dinâmica escolar, o que acontece muito raramente... o
educador necessita ter o perfil ideal e a vontade de trabalhar com essa
especificidade”. (P.8)
Entendemos a preocupação da professora dentro do que Freire denominaria como
“concepção ingênua da educação”. Esta concepção não se relaciona apenas ao modo como o
docente trata os conteúdos ou o conhecimento construído, mas envolve, também, sua postura
enquanto profissional. Chama-nos a atenção para as habilidades e aptidões necessárias ao
docente na EJA, exigidas em menor intensidade a professores de outros segmentos de ensino.
Esta observação pode ser analisada, dentre outras considerações, no discurso da P.2, que
percebe à EJA, como “uma sequela do descaso sobre a educação nos demais segmentos de
ensino”.
De fato, não podemos negar a insuficiência, na qualidade educacional pública no
país e, consequentemente, no município, no entanto, a partir de uma reflexão crítica é possível
perceber que esta “sequela”, não está apenas em razões históricas ou políticas, mas sua
existência possui uma conotação cultural e a escola está intimamente relacionada às mudanças
deste contexto. Neste sentido, abre-se um leque de possibilidades, com vista à reflexão sobre
estas dificuldades, dentre elas, a perspectiva dialógica apontada por nossos estudos, através da
organização curricular da EJA para o município.
5.6.2 Contribuições e considerações sobre a “Proposta Curricular” para a EJA na Rede
Municipal de Ensino do Recife: uma perspectiva docente.
Embora relativamente recente, as políticas de reorganização curricular para os
diversos segmentos de ensino ofertados pelo município, no período de realização deste
estudo, encontrava-se disponível aos profissionais envolvidos com o sistema educacional.
Esta situação nos permitiu investigar junto aos docentes, quais as contribuições e necessidades
podem ser observadas no documento. Além disso, consideramos, também, o fato da utilização
124
da Proposta Curricular Construindo Competências ser considerada como documento
norteador do planejamento escolar, mesmo em seu caráter preliminar, num período de quase
dez anos.
Assim, observamos um equilíbrio entre as opiniões dos professores entrevistados,
no qual os docentes não desconsideram as contribuições presentes, na proposta, mas,
enfatizam sua insuficiência diante da realidade, na qual se insere a EJA. De acordo com o
relato do P. 10, esta insuficiência tem como base a grade curricular e sua falta de diálogo com
as reais necessidades dos educandos e o que buscam no retorno ao ambiente escolar.
“Não, uma vez que a grade curricular não atende de fato e efetivamente as
particularidades e necessidades da EJA, pois é um público diferenciado e
que corresponde positivamente quando se sente contemplado nas suas
necessidades reais. Além disso, eles buscam na escola um conhecimento que
possibilite seu crescimento profissional, pessoal e cultural, ou seja, na sua
totalidade”. (P.10)
Ainda, neste relato, considera como reflexão necessária ao currículo, “a realidade
cotidiana dos estudantes, bem como, a bagagem de conhecimento que eles trazem para o
universo escolar” (P. 10). Esta observação também é posta por Freire (2005a), ao enfatizar
não ser possível estabelecer uma relação entre os conteúdos programáticos e as necessidades
dos educandos, desconsiderando sua ligação, “umbilicalmente” existente com o mundo, negar
seu conhecimento sobre este mundo e “entregar-lhe o conhecimento ou impor-lhes um
modelo de bom homem, contido no programa, cujo conteúdo nós mesmos organizamos”
(p.97). Para o autor, “ao educador humanista, a incidência da ação é a realidade a ser
transformada por eles com outros homens e não estes” (p. 98).
Além da organização de conteúdos, os professores apontam a prática docente e a
concepção da EJA, enquanto modalidade de ensino, em seu caráter de complementariedade,
como ações que incidem diretamente sobre a organização curricular e, consequentemente, não
contemplam suas urgências, como demonstrado no relato da P.4.
“Ainda se percebe essa modalidade de ensino á luz de “programas” tudo
fica muito aligeirado e sem a garantia de continuidade. Outro fator é que
muitos docentes não optaram pela EJA por afinidade e sim por ser uma
proposta que apareceu de repente”. (P. 4)
Em contrapartida, alguns docentes não percebem esta fragilidade, na maneira
como a EJA tem sido vista; na opinião do P. 11, “tendo definido as competências, o professor
125
tem liberdade, para efetivar sua prática, de maneira mais adequada a sua realidade
discente”, assim, como afirma a P.5, a causa não está, na organização curricular, “mas o
trabalho docente é que está deficiente”. Para tanto, é possível observar que alguns professores
não atestam a eficiência ou não da organização, mas além da inexistência de uma proposta
específica, a pouca frequência em sua discussão e o caráter político que incide sobre a
educação, como fatores que dificultam as ações pedagógicas.
“Talvez agora com o estudo realizado em 2012, onde vários coordenadores
da EJA participaram, bem como os professores em poucas formações, desde
2007, estão tentando reconstruir essa proposta, as cadernetas, etc, mas as
mudanças de gestão nesta gerência atrapalham bastante... O certo é que
uma nova proposta deveria acontecer o mais urgente possível e que seja
uma construção coletiva, onde todos os atores participem, dê a sua
contribuição”. (P. 8)
“Parcialmente, pois a própria ausência ou inexistência de uma proposta
curricular específica justifica ser esta colaboração não totalmente
contemplativa. Embora tenhamos uma política de reorganização curricular
recém-formulada e de caráter preliminar, lançado em 2012, esta não trata
das especificidades da EJA. Por isso, acaba recaindo sobre a prática do
professor”. (P.15)
Os fatores apontados pelos professores refletem a urgência com que devem ser
pensadas estas diretrizes, não desconsiderando os documentos, produzidos nacionalmente,
mas resgatando a importância das produções, cujos objetivos e propostas estão mais próximos
da realidade do município. Além desta preocupação, percebe-se a insistência que recai sobre
como as especificidades da EJA vêm sendo discutidas e consideradas no cerne destas
propostas.
Desse modo, verificamos, nas respostas dos professores, quando questionados
sobre o que deveria ser considerado, na elaboração de um currículo para a EJA,
posicionamentos que recaem sobre o educando, seja com a preocupação em prepará-lo para o
mundo do trabalho ou mesmo, enfatizando a heterogeneidade do grupo. Apontam, também,
para as necessidades dos educandos e suas relações na sociedade. Nas palavras da P.1, há uma
necessidade de “reformulação, na proposta curricular, que dê conta dos interesses relativos
à idade e às necessidades (de trabalho, por exemplo) dos alunos que buscam a EJA, sem
perder a relação com o que a sociedade atual exige em termos de conhecimento”. Esta
preocupação também pode ser verificada quando a P.12 afirma a importância de um currículo
126
que “esteja associado à necessidade do aluno, contribuindo para uma formação mínima
necessária à entrada do aluno no mercado de trabalho”.
Nas palavras de Freire (2005a), esta preparação por ele chamada de “técnica”, não
pode estar dissociada dos propósitos da conscientização, caso contrário, seria um fator
caracterizador da invasão cultural58
. Como treinamento técnico, reproduz uma maneira
estreita de formar, interessante sempre à classe dominadora. Ele nos demonstra que uma
formação técnico-científica não ocupa uma posição antagônica a uma educação humanista,
mas ela precisa estar “a serviço da sua libertação permanente e de sua humanização”.
Desde esse ponto de vista, a formação dos homens, para qualquer quefazer,
uma vez que nenhum deles pode dar a não ser no tempo e no espaço, está a
exigir a compreensão: a) da cultura como superestrutura e, não obstante,
capaz de manter na infraestrutura, revolucionariamente transformando-se
“sobrevivências do passado”, e b) do quefazer mesmo, como instrumento da
transformação da cultura (FREIRE, 2005a, p. 181-182).
Este aprofundamento sobre a formação do educando recai, na ação do professor e,
consequentemente, na proposta curricular. No entanto, alguns professores defendem a
importância dessa construção, não apenas do ponto de vista conceitual, “mas com
procedimentos e atitudes” (P.3). Embora seja um desafio a todos os envolvidos nesta
discussão, para a P. 6, “a seleção cultural do currículo sofre determinações políticas,
econômicas, culturais e sociais”; assim, “a seleção do conhecimento escolar não é um ato
desinteressado, mas é o resultado de lutas e negociações,” portanto defende ser o currículo
“culturalmente determinado, situado, historicamente, não podendo ser desvinculado da
totalidade social”.
Esta “totalidade social” está voltada, no relato dos professores, através do trabalho
pedagógico, realizado a partir da realidade dos alunos e, consequentemente, das suas
necessidades. Nas palavras da P.10, visualizamos, nitidamente, esta posição, quando afirma
ser fundamental “considerar a realidade cotidiana dos estudantes, bem como a bagagem de
conhecimento que eles trazem para o universo escolar, possibilitando uma interação efetiva e
contemplando suas necessidades”.
Em sua teoria dialógica, Freire afirma a prática problematizadora, necessária à
percepção da realidade em sua totalidade, fora desta prática o que se percebe é uma “visão
58
Esta é uma das características da ação antidialógica, como exploramos no capítulo anterior.
127
focalista” da realidade, na qual o educando apreende as partes de um todo, sem perceber a
integralidade existente entre elas, para a composição desse todo. Considerando esta teoria, o
diálogo problematizador oportuniza experiências necessárias a esta percepção, nele é possível
estabelecer reflexões que aproximam a compreensão dos educandos sobre as relações
existentes, superando a visão focalista da realidade.
5.6.3 O diálogo como orientação curricular nas escolas da Rede: qual a sua contribuição?
Ao fundamentarmos a concepção de diálogo, numa perspectiva freireana,
demonstramos sua importância para a verdadeira prática humanista e, como consequência
libertadora. Diálogo estabelecido em relações de horizontalidade, problematizado na
realidade dos seus envolvidos. De fato, o diálogo consiste na ação sobre o objeto do
conhecimento, mas não pode ser feito aleatoriamente. Daí a importância de planejarmos esta
ação. De certo modo, a organização curricular, enquanto instrumento da prática, pode
proporcionar ou não este momento dialógico.
Assim, ao questionarmos os professores sobre a abertura para o diálogo em sua
prática, enquanto orientação curricular, obtivemos, em sua maioria, respostas positivas.
Contudo, foram expostas algumas questões relacionadas diretamente, à abertura dos
professores a esta prática e não ao currículo. Ao mesmo tempo, em que se observa uma
aproximação entre o conceito de diálogo, demonstrado em nossos estudos, percebe-se que o
professor é posto como o grande responsável por sua efetivação. Em princípio, identificamos
nas palavras da P. 3, uma percepção sobre o diálogo, numa perspectiva ampla, posta como
condição essencial para a existência da EJA, como movimento natural. Para este professor, a
prática do diálogo, nas turmas da EJA “estimula a participação, a escuta do outro, a
criatividade, a autonomia. Ele se dá sempre, a cada minuto de aula, exercita a interação, o
social, o afetivo e o cognitivo”. E conclui: “sem o diálogo uma turma de EJA não funciona”.
Como visto anteriormente e apontado por Paulo Freire, é neste movimento de
constante construção que o diálogo se constitui e constitui os sujeitos envolvidos em sua
dinâmica. Para tanto, também nos lembra que “ensinar exige disponibilidade para o diálogo”
(FREIRE, 1996 p. 135). Neste “estar disponível”, educandos e educadores se abrem à vida,
128
aos seus desafios, testemunham a certeza do inacabamento e por isso se põem a procura de
explicações, de respostas, “inauguram uma relação dialógica”.
No relato de alguns professores, esta “disponibilidade” não se concretiza, por isso
a inexistência do diálogo acaba sendo uma situação gestada na prática docente e não na
ausência de orientações curriculares. Nas palavras do P.15, “nem todo professor está disposto
a dialogar, a dispor, a escutar, a praticar a argumentação, a quebrar a inibição que este
público tem em dizer o que pensa e refletir sobre sua visão de mundo”.
As orientações curriculares sobre esta prática são vistas pelos docentes, como
positivas e estimuladoras, mas anterior à própria existência do diálogo está a importância de
fundamentá-lo, teoricamente, como nos mostra o relato da P.1.
“Os currículos até promovem a prática dos diálogos, porém os professores
não se apropriam dessas questões. Antes de promover o diálogo com os
alunos, é preciso que os professores dialoguem, discutam o currículo, e
aquilo que o fundamenta”. (P.1)
A postura docente de não negação ao diálogo confirma, em Freire (1996 p. 33),
seu compromisso ético em estar sendo. Isso permite uma formação educativa, que vai além do
treinamento técnico, confirma “o que há de fundamentalmente humano no exercício
educativo: o seu caráter formador”. Esta é uma característica, para Freire, do pensar certo, o
qual exige “profundidade e não superficialidade, na compreensão e interpretação dos fatos”.
A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser
humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando como quem se
comunica, a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo
comunicado. Não há inteligibilidade que não seja comunicação e
intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por
isso é dialógico e não polêmico (FREIRE, 1996 p. 38).
Esta comunicação, na luta por uma educação libertadora, não está no conflito que
gera a violência, mas através da problematização da realidade, do conhecimento e das
relações sociais e, culturalmente instituídas, nas quais os sujeitos possam perceber e atuar,
compreendendo a capacidade que têm em modificá-las.
129
5.6.4 A problematização no contexto pedagógico dos docentes.
Dentro da teoria analisada, o diálogo é o elemento fundador da educação para a
libertação. Nele, educandos e educadores se fazem seres de práxis, é neste diálogo que se
concretiza o exercício sobre o pensar certo, fundamentado na concepção do homem, como ser
consciente, histórico, comunicativo e dono do seu quefazer. Para tanto, percebemos que
estas relações não se dão, a não ser numa prática problematizadora, capaz de despertar, em
seus envolvidos, a capacidade inerente a todo ser humano de questionar e por à prova o modo
pelo qual está sendo no e com o mundo, posta por Paulo Freire em sua teoria dialógica.
Neste caminho, tornou-se necessário perceber como os docentes compreendem e
articulam a prática problematizadora, quando levamos em consideração a realidade, na qual
estão envolvidos os educandos, o conhecimento instituído, vivenciado ou produzido, além das
relações, construídas social e culturalmente, como meios necessários à sua libertação.
Os docentes entrevistados revelam duas vertentes a respeito da problematização
da realidade, a primeira, do ponto de vista das experiências cotidianas dos estudantes e a
segunda parte do princípio da escolha dos conteúdos programáticos, que permitem vivenciar
esta realidade, na sala de aula de maneira problematizadora.
O primeiro posicionamento pode ser verificado, através do relato do P.7, pois
defende que, “criando meios para que o aluno se posicione, criticamente, diante dos fatos de
seu cotidiano” é possível construir uma atmosfera problematizadora, além de “levar
informações e acontecimentos, através dos meios de comunicação... debater e ir à busca de
soluções, avaliar os pontos positivos e negativos, acerca das situações cotidianas” (P.3). De
acordo com Freire (1979 p. 44), “é fundamental que a informação seja sempre precedida e
associada à problematização do objeto, em torno de cujo conhecimento ele dá esta ou aquela
informação”. Defende que o aprendizado da leitura e da escrita não deve ser proposto
paralelamente “a realidade dos educandos”, mas deve ter como propósito o conhecimento
desta realidade a fim de modifica-la. Para o P.4 este objetivo encontra-se “na relação do
educador e do educando com o mundo que o cerca, considerando tudo que a vida oferece”.
Como segundo posicionamento, alguns docentes assinalam que esta
problematização pode ser posta, “resgatando no currículo conteúdos contextualizados,
propiciando uma análise mais crítica da realidade” (P.12), pois “considerar a realidade dos
alunos, no momento da escolha dos conteúdos e sua abordagem, pode ser um meio para esta
130
problematização” (P.9). “O momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação
como prática da liberdade59
” (FREIRE, 2005 p.101). Considerar a realidade em seu aspecto
problematizador, promove o reconhecimento adquirido em experiências nesta realidade, “o
saber da experiência feito,” enquanto parte igualmente importante na construção curricular.
A problematização do conhecimento, no relato dos professores, é vista através da
problematização dos conteúdos didáticos ou do conhecimento adquirido, nas experiências dos
educandos, problematizados conjuntamente nas relações, estabelecidas em sala de aula. De
acordo com a P.3, para a concretização destas relações é preciso “utilizar os conhecimentos
prévios, acerca de conteúdos trabalhados, questionar sempre, levar o aluno a pensar, a
criticar”. Para o P.7, esta dinâmica, “desperta a postura crítica, diante de conhecimentos pré-
estabelecidos, questionando supostas verdades universais”.
Esta postura diante do conhecimento institucionalizado ou não, para Freire (2005),
não está dissociada, mas dialeticamente relacionada, cabendo à escola não apenas respeitar os
saberes, socialmente construídos, pela comunidade, mas refletir com os estudantes o porquê
de alguns dos sabres e as afinidades estabelecidas com o ensino dos conteúdos. Considerar o
saber da experiência dos educandos, não significa para Freire (2009), girar em torno deste
saber, mas “superá-lo” e não “ficar nele”. Numa perspectiva crítica e democrática do
currículo, “é a necessidade de jamais nos permitir cair na tentação ingênua de magicizá-los”
(idem, p. 112). Nesta reflexão, o educador nos põe frente a alguns questionamentos:
Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da
cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição
dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem estar das populações?
Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva
associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva com que
a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a
morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os
saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles
têm como indivíduos? (FREIRE, 1996 p. 30)
Para alguns professores, a pesquisa é vista como facilitadora, na apreensão e
reflexão, sobre o conhecimento, nela há uma busca por informações, “levando os estudantes a
questionar, comparar e avaliar os conhecimentos construídos, oportunizando a compreensão
59
No modelo de educação libertadora proposta por Paulo Freire, este momento de busca é o que denomina de
investigação sobre o Universo Temático ou Temas Geradores trazido da realidade dos educandos para a
composição do universo curricular.
131
e transformação do seu meio” (P. 10), pois “ela deve colaborar para a compreensão e
transformação da realidade, em que cidadãos não estão satisfeitos com a sua vivência”
(P.11).
Esta insatisfação não está atrelada apenas à realidade, enquanto estrutura física ou
ao conhecimento que tem sido oportunizado pelas escolas, mas faz parte das relações
estabelecidas com estes meios, relações diretamente envolvidas com aspectos sociais e
culturais da sociedade. Quando questionamos os docentes sobre problematização destas
relações, no relato da P.1 encontramos a seguinte reflexão:
Problematizar as relações sociais e culturais possibilita ao aluno da EJA um
conhecimento que vai além dos conteúdos, na verdade, proporciona um
novo olhar sobre as relações estabelecidas na sociedade e que fazem parte
do cotidiano das pessoas até então vistas de maneira ingênua, sem o devido
aprofundamento de diversas questões.
Neste aprofundamento da percepção ingênua sobre o mundo e suas relações, os
educandos percebem-se como parte deste mundo, assumindo sua condição social, para
modificá-la e percebem suas características culturais enquanto produtores desta cultura. De
acordo com a P.4, a prática docente dos conteúdos curriculares será capaz de problematizar
essas relações, quando “perceberem o aluno como detentor de cultura e que esta não é nada
apartado dele, bem como sujeito autor e produtor de bens culturais e não mero expectador”.
É neste sentido que Freire atribui o significado da cultura ao trabalho, como atividade
humana, que transforma, “transformar o mundo, através do seu trabalho, “dizer” o mundo,
expressá-lo e expressar-se são próprios dos seres humanos” (FREIRE, 1979 p. 20). Como
seres de práxis, transformam, o mundo e se transformam com ele, impregnando-se da
presença criadora, deixando nele a marca do seu trabalho.
Alguns professores afirmam ser necessário, ao conhecimento e aprofundamento
destas relações um posicionamento crítico, “diante das relações, que se estabelecem, no
âmbito da sociedade e da cultura, produzida neste meio” (P.7), além de orientar os estudantes
“a grande diversidade cultural, existente em sua realidade, com necessidade de respeito,
conhecimento e riqueza de saberes” (P.9). Nas palavras de Freire (1983, p. 23), “esta
apropriação crítica os impulsiona a viver o verdadeiro papel que lhes cabe como homens. O
de serem sujeitos de transformação no mundo, com o qual se humanizem”. É nesta
perspectiva que a P.8 afirma:
132
...Quando o homem e a mulher se reconhecem como fazedores de cultura,
está vencido ou quase, o primeiro passo para sentirem a importância, a
necessidade, a possibilidade de se apropriarem da leitura e da escrita,
alfabetizando-se politicamente.
Esta posição demanda o esforço da conscientização, concretamente realizado,
tendo como consequência a apropriação crítica dos homens sobre a posição que ocupam com
os demais no mundo.
5.6.5 Conscientização: “compromisso ético que se deve ter com a educação60
”.
Apontada como compromisso ético da prática docente, a conscientização é posta
pelos professores entrevistados como necessária ao processo educativo pelo qual atravessa a
EJA. No relato da P. 3, “o trabalho com a conscientização faz parte do dia a dia da prática
docente, mas não é tão fácil como pensamos”. Afirma ser, através do diálogo conflituoso, das
discordâncias entre diferentes pontos de vista que o diálogo acontece.
“Os adultos são na maioria das vezes, carregados de valores, sejam
eles: religiosos, familiares, preconceituosos, libertários, dentre
outros, o adulto já tem uma opinião formada e algumas vezes batem
de frente uns aos outros, eu acho ótimo, conscientização através de
uma tempestade de ideias e diferentes opiniões, nós enquanto
docentes devemos conduzir da melhor forma possível, não é fácil, mas
também não é impossível”.
Sobre este ponto, Freire (1979) afirma ser “o conflito a parteira da consciência”.
Nele, várias dimensões de um mesmo objeto são analisadas, criticamente, impulsionando os
sujeitos envolvidos na busca constante pelo seu desvelamento, “nota-se uma inclinação para
um trabalho em que o aluno se torne consciente de sua realidade e passe a intervir, no meio,
para o exercício pleno da cidadania” (P.7). E esta não é tarefa das mais fáceis, como nos
afirmou a P.3. Ao contrário, “uma prática docente que não aponte para o seu papel
conscientizador apenas reproduz o status quo da desigualdade e das injustiças sociais”,
lembra o P.7.
60
Relato docente sobre a conscientização enquanto instrumento pedagógico da prática docente.
133
Nessa perspectiva, percebemos, em alguns relatos, um posicionamento que recaí
sobre a postura do professor e os caminhos apontados por sua prática. O docente que decide por
uma educação problematizadora, não pode negar aos educandos o ato da conscientização, caso
contrário, o mundo é apresentado como algo estático e adaptável, consequentemente
reprodutor, como afirmado no relato acima citado. De acordo com a P.10, a conscientização
possibilita aos alunos “evoluir, conceitualmente, substituindo suas crenças por novas
aprendizagens e aplicando os novos conhecimentos em novas situações, formando indivíduos
ativos no seu meio e, assim, transformando-o”.
Podemos considerar este processo, apontado pela P.10, nas reflexões freireanas,
como o aprofundamento da tomada de consciência, cuja concretização não se faz, no esforço
intelectualista ou mesmo individualista da realidade, mas na relação dos homens com o mundo,
enquanto atuam, enquanto trabalham. Na prática educativa, a tomada de consciência, ultrapassa
“a mera apreensão da presença do fato, o coloca de forma crítica, num sistema de relações,
dentro da totalidade em que se deu” (FREIRE, 1983 p. 53), superando-se, recai sobre seu
aprofundamento e, consequentemente, concretiza o esforço da conscientização61
.
Este esforço é a própria busca dos homens na comunhão, na comunicação,
consequentemente em diálogo com outros homens. Na educação problematizadora, ele é um
dado essencial. Assim sendo, “podemos dizer que o diálogo é que levará o homem a aprofundar
a sua tomada de consciência da realidade” (JORJE, 1981 p. 67), considerando o
aprofundamento da tomada de consciência, como a própria conscientização, “segue-se que o
diálogo problematizador é o método da conscientização. Por isso, afirma Paulo Freire, o
diálogo e a problematização não adormece a ninguém. Conscientizam” (idem, p. 68).
Enquanto processo de libertação, a conscientização torna-se fundamental para a
libertação do ser humano em seu estado de oprimido. Ela é a práxis maior e, autenticamente
libertadora, na qual o homem torna-se sujeito do seu agir e da sua presença histórica, no
mundo, por meio do desvelamento crítico da realidade e consequentemente da sua ação,
também crítica, sobre esta mesma realidade. Consequentemente, desenvolve a capacidade de
agir sobre as estruturas humanas, na defesa por seus direitos, no respeito e justiça à sua
condição de cidadão ativo na sociedade, tornando-se seres autônomos no se quefazer.
61
Em capítulo anterior, refletimos sobre os níveis pelos quais a conscientização na perspectiva freireana está
sendo estudada.
134
5.6.6 A construção da autonomia como possibilidade para o exercício da cidadania.
Como discutido em capítulo anterior, na perspectiva dialógica da educação, está
um conceito que é central no pensamento freireano, a libertação dos seres humanos da condição
de oprimidos. Em sua teoria pedagógica, este conceito está presente, na afirmação dos homens,
como seres de integração, existentes histórica e culturalmente, seres criativos, capazes de
exercer um posicionamento crítico diante dos acontecimentos do mundo. A luta pela
humanização, contra as forças da opressão e dominação fazem parte da construção desta
sociedade, por isso Freire defende a humanização enquanto luta igualmente histórica e os
homens como seres vocacionados na busca por sua libertação.
Nesta perspectiva, o último questionamento, direcionado aos professores,
relaciona-se ao entendimento docente sobre a construção da liberdade, no processo educativo
que envolve a EJA. Lembramos que esta liberdade não foi condicionada, apenas do ponto de
vista discente, mas objetivou o envolvimento de todos os sujeitos envolvidos no processo. No
entanto, percebemos, na maioria dos relatos, uma conotação a construção da autonomia,
enquanto possibilidade de não “necessitar” do outro, ser independente em suas ações. Esta
postura pode ser melhor observada no relato da P.1:
“O conhecimento dá autonomia ao cidadão. A liberdade é uma consequência dessa autonomia. À medida que eu domino certo
conhecimento, eu deixo de necessitar que alguém resolva as minhas
necessidades. Então eu tenho autonomia, eu não dependo do outro. Eu sou
livre... Quando o cidadão aprende a ler, ele não espera por outro para
tomar um ônibus e resolver um problema pessoal sozinho... ele não precisa
esperar o dia da consulta para tirar a dúvida na administração de um
remédio que precisa tomar logo”.
De fato, não podemos deixar de ressaltar a importância da aquisição da leitura e
da escrita para os educandos quando apontadas suas necessidades cotidianas. No entanto,
considerar apenas este ponto de vista, no entendimento sobre a educação libertadora, é o
mesmo que enfatizar o reducionismo ao qual a educação bancária procura tratar o processo
educativo. De acordo com Freire (1979, p. 53), embora os seres humanos sejam os únicos
capazes de refletir sobre suas limitações, na busca pela libertação, que sua reflexão “não se
perca numa vanguidade descomprometida, mas se dê, no exercício da ação transformadora da
realidade condicionante”. Assim, fazer uso dos instrumentos educativos, nas relações
135
cotidianas, sob o ponto de vista crítico e transformador, ultrapassa a concepção ingênua do ler e
escrever, apenas para decodificar a própria individualidade.
A construção da liberdade também foi apresentada pelos professores entrevistados
enquanto construção da autonomia para o exercício da cidadania. Nas palavras da P.7, a partir
da perspectiva de uma educação dialógica, a construção da liberdade “se dá, num processo
contínuo de respeito mútuo e aprofundamento das discussões que visem, por meio da
problematização e conscientização, à busca constante do exercício de uma cidadania plena”.
Nesta perspectiva, a P.10 nos relata sobre a construção da liberdade considerando a “realidade
objetiva” e o conhecimento como instrumentos necessários a este exercício.
“Buscando informações no meio em que vivemos, confrontando com o
conhecimento científico, oportunizando a ampliação e construção de novos
conhecimentos de forma consciente, crítica e reflexiva, levando o indivíduo
a exercer de fato e efetivamente sua cidadania”.
É possível perceber, no relato dos professores, que todo o processo educativo,
envolvido na construção da liberdade, culmina no exercício da cidadania. E este processo, que
aqui nos remetemos, está intimamente relacionado à alfabetização, visto como “um capítulo
da prática educativa”, sendo importante considerar suas relações individuais e coletivas, assim
como uma formação para a cidadania. De acordo com Freire (2001, p.30) duas questões
precisam ser refletidas, criticamente, diante da impossibilidade de negação dessas relações,
com o processo de alfabetização: a primeira consiste em saber “que ela não é a alavanca de
uma tal formação – ler e escrever não são suficientes, para perfilar a plenitude da cidadania”.
Uma segunda reflexão está em “ser necessário que a tornemos e a façamos como um ato
político, jamais como um quefazer neutro”.
Igualmente, reafirma a necessidade da compreensão das relações sociais, através
do olhar crítico, no exercício da cidadania, dentro da coletividade, na qual direitos e deveres
são comuns a todos, mas negados a muitos que se encontram em situação de opressão, como
nos lembrou Paulo Freire. Para o educador, a cidadania também está associada ao
desvelamento da realidade por sujeitos conscientes, concretizado na participação, na
transformação da sociedade e consequentemente, daqueles que nela existem.
Os relatos docentes, sobre os diversos questionamentos abordados por este estudo,
nos deram uma visão mais ampla, sobre a possibilidade de uma construção curricular na
136
perspectiva dialógica. Consideramos tão importante quanto esta organização, a compreensão
que os docentes possuem, acerca desta teoria, pois compreendemos, no trabalho pedagógico, a
materialização destes conceitos, reafirmando a necessidade do conhecimento, por parte do
professor, sobre os saberes apresentados pelo currículo.
Contudo, contemplamos, na próxima sessão, nossas conclusões sobre o presente
estudo, procurando considerar as análises realizadas, nos documentos e nos relatos dos
professores, apresentamos uma visão geral e, ao mesmo tempo específica, sobre as
contribuições da organização curricular para a EJA e como estas têm oportunizado o trabalho
pedagógico, numa perspectiva dialógica da educação.
138
Diante das reflexões propostas nos capítulos anteriores, considerando a teoria em
questão nesta pesquisa, os documentos utilizados nas análises e os relatos apresentados pelos
docentes, atuantes na Educação de Jovens e Adultos, procuramos desenvolver, sobre a
temática das considerações, uma compilação das ideias apreendidas nas análises realizadas no
capítulo anterior. Nesta tarefa, busca-se expor os pontos convergentes e divergentes entre as
ideias que alicerçam a teoria freireana sobre dialogicidade da educação e as propostas
curriculares construídas pela Rede Municipal de Ensino da cidade do Recife, na modalidade
EJA. Os relatos docentes sobre a proposta curricular e a teoria em questão, aproximam a
perspectiva dialógica do trabalho pedagógico, não apenas enquanto conceito teórico-
metodológico, mas como articulador da organização curricular.
Não há como desconsiderar a importância do diálogo na formação dos sujeitos da
EJA. Esta foi nossa preocupação inicial, ao nos depararmos com práticas distantes desta
hipótese, construídas pelas experiências de pesquisas anteriores, nos aguçou a curiosidade em
compreender os direcionamentos apontados pelo currículo. Afinal, são os docentes
desconhecedores desta possibilidade, ou não foram oportunizadas reflexões a respeito? É
possível não considerar práticas educativas dialógicas numa sociedade com tantas diferenças
sociais? Como oportunizar a reflexão sobre as diferenças étnicas, culturais, linguísticas e
sociais “fora” do diálogo problematizador?
Assim, conhecer em maior profundidade, as relações e contribuições que esta
teoria apresenta ao ato educativo, nos permite tentar apreendê-las no cerne da organização
curricular, enquanto perspectiva dialógica favorável à prática pedagógica. Para tanto,
analisamos os conteúdos dos documentos disponíveis com base na teoria sobre a
dialogicidade da educação apontada pelo educador Paulo Freire, cujas categorias teóricas
elegemos no interior da própria teoria, além disso, analisar a compreensão dos professores
sobre a contribuição curricular e perspectiva dialógica, demonstraram as possibilidades desta
prática, no caráter alfabetizador apresentado pela EJA.
A opção teórico-metodológica da pesquisa nos permitiu apreender com maior
segurança, as informações que precisávamos, pois a análise do conteúdo, diante das
dificuldades encontradas, alicerçou as informações e conclusões as quais chegamos. Tais
dificuldades se tornaram uma “muralha” que, a princípio, parecia intransponível, mas, aos
poucos fomos escalando e sobrevivendo. A ausência de uma proposta curricular específica
139
para EJA tornou-se motivo de frustrações e ousadia. Afinal, não contávamos que a rede de
ensino da cidade do Recife, nas dimensões que possui, não ofereceria esta contribuição.
Contudo, optamos pela utilização dos documentos mais recentes, produzidos pela
Secretaria de Educação Municipal, entendido como subsídio para todos os segmentos de
ensino, incluindo-se a modalidade EJA, por trazer informações que indicam as concepções da
rede sobre os sujeitos em formação educativa, a sociedade contemporânea e o mundo, além
dos fundamentos e princípios filosóficos que subjazem a proposta, contemplando os nossos
objetivos. Esta ausência de documentos, também se tornou um fator que, mais tarde, nos
levou a considerar os relatos dos professores, pois concluímos serem de grande valor para que
melhor compreendêssemos a contribuição desta escassa produção curricular, já que, no
momento anterior, eram os professores, os grandes “vilões” da ausência de práticas
humanizadora na EJA.
O intenso trabalho de analisar e apreender significados, tanto nos documentos
quanto nos relatos, não se constitui como tarefa fácil, pois além da compreensão sobre a
própria teoria, encontrar seus indícios no material analisado, envolveu a preocupação em não
impor uma “camisa de força” no conteúdo. Por tanto, os significados atribuídos neste estudo,
não estão sob um posicionamento estático, considerando que outras pesquisas sobre a mesma
temática, poderão encontrar novas conclusões, o que a nosso ver, contribui positivamente com
as pesquisas em educação.
A Política de reorganização curricular proposta pela Rede Municipal de Ensino do
Recife demonstra sua concepção sobre o sujeito, sociedade e mundo, com base nos princípios
norteadores da Rede, expostos anteriormente no documento intitulado Proposta Curricular
Construindo Competências. Estes princípios correspondem à liberdade, solidariedade,
participação, justiça social, pluralismo de ideias e respeito aos direitos, estimulado a prática
educativa em seu caráter democrático, o qual considera a diversidade, a cultura e o meio
ambiente pertencentes às ações e projetos que abram o espaço ao falar, planejar, assumir
responsabilidades, reivindicar direitos, representar ideias e sujeitos, enquanto possibilidade de
construção da cidadania.
Percebemos que estes princípios demonstram uma conotação favorável à
concepção de educação numa perspectiva crítica, lançando o olhar sobre a construção da
escola democrática quando procura oportunizar a todos a participação plena na construção de
uma sociedade mais justa e igualitária, favorecendo a expressão das culturas, reconhecendo
140
e aceitando as diferenças como elemento enriquecedor das aprendizagens, enfatizando o
diálogo, a cooperação e a solidariedade entre os pares.
Na Proposta, o sujeito é visto como produtor de cultura, compreendida como
experiência vivida de qualquer agrupamento humano, buscando a valorização não apenas da
aprendizagem cognitiva e intelectual, mas resgatando e aprimorando as relações necessárias
ao seu convívio em sociedade. Assim, é percebida uma preocupação com a formação de
sujeitos conscientes, reflexivos, no pleno desenvolvimento do senso crítico, cidadãos em plena
atividade de construção da própria história, colaboradores e atuantes na sociedade, agentes
de mudança. Esta concepção do sujeito identifica-se com as reflexões desenvolvidas neste
estudo, pois, ao abandonar a ideia do sujeito apenas enquanto consumidor de cultura, mas
passando a considera-lo igualmente produtor, abraça o conceito de concebê-lo como agente
ativo da sociedade, capaz de modificar a realidade e agir sobre ela.
A sociedade é reconhecida em seu caráter transitório e dinâmico, o qual necessita
do processo educativo, maior preocupação com ações que acompanhem seus acontecimentos
e inovações, com o objetivo de inserção dos educandos em seu meio. Este posicionamento
enfatiza a diversidade no interior da sociedade, não apenas em seu aspecto econômico, mas no
tocante aos grupos sociais distintos, que atribuem significados próprios às ações que
desenvolvem e ao mundo que os rodeia, ou seja, constroem identidades, produzem cultura.
Em sua complexidade e diversidade, a sociedade é posta como tema de estudo,
com o objetivo de obter novas relações, questionadoras da discriminação, das relações de
opressão e violência. O mundo e suas relações são percebidos em sua totalidade, considerando
não apenas as relações estabelecidas entre os seres humanos, mas a compressão que possuem
sobre suas ações neste. Suas permanências e transformações, as mudanças ocorridas no tempo
e no espaço, seus conflitos e a diversidade que o constitui.
Nesta perspectiva, os documentos apresentam um direcionamento para a formação
do sujeito na EJA em sua integralidade, com base nos princípios que caracterizam a educação
problematizadora apontada pelo educador Paulo Freire, a qual recai sobre o respeito aos
saberes dos educandos como base para uma escola democrática e comprometida com a
formação humana. No entanto, este caráter problematizador da educação, não demonstra
aprofundamento sobre as questões que envolvem uma prática problematizadora e suas
características, nem por quais meios esta prática se daria, como visto em nossas reflexões, esta
exige uma postura que está além da simples discussão sobre os problemas da vida cotidiana.
141
Embora não tenha sido nossa pretensão encontrar nitidamente orientações para
uma prática dialógica, não podemos desconsiderar nossa percepção sobre o distanciamento ou
aproximação no conteúdo dos documentos a respeito desta prática. Em princípio há uma
preocupação com a revisão dos fundamentos que incidem sobre a EJA, mas a ideia de
distanciamento das instituições e dos profissionais docentes para a possível superação das
circunstâncias sociais, características do público da EJA, ainda está evidente. Como
considerar o conjunto de saberes, memórias, capacidades, histórias individuais e coletivas,
permeadas de sentidos mobilizadores e transformadores, se não é possível apreciar a
mudança social que estes saberes podem provocar? A nosso ver, esta seria a lacuna, na qual
será o próprio estudante construidor deste enfretamento, mediados pela instituição e pelo
trabalho docente.
Isso não significa dizer que há uma impossibilidade de orientações ao trabalho
dialógico na EJA, mas percebemos que passos estão sendo dados na direção de reflexões que
futuramente possibilitem estes aspectos. O trabalho dialógico requer o aprofundamento
teórico sobre diversas questões, exige mudanças não apenas metodológicas, mas enquanto
atitude, portanto, não pode ser imposto ou prescrito.
O aspecto coletivo evidenciado na construção da Proposta enfatiza sua
preocupação em considerar a participação daqueles, que estão diretamente envolvidos com o
processo educativo. Esta iniciativa considerou os relatos de 55 instituições da rede, seus
professores, coordenadores e gestores, contando, também, com a participação de alguns
estudantes. Neste ponto, quando questionados sobre a contribuição da Proposta, os
professores enfatizaram esta construção coletiva, mas consideraram insuficiente pelo tempo
em que ocorreu. Não desconsideram a importância da iniciativa, mas defendem o
aprofundamento das questões discutidas.
Outra questão relevante enquanto caminho dialógico, observado, na maioria das
vezes, pelos relatos docentes contidos no documento e reafirmados no relato das entrevistas, é
a importância do diálogo no trabalho com EJA. O docente parece reconhecer a importância do
diálogo enquanto caminho para a compreensão das situações políticas, econômicas e sociais
que envolvem os educandos. No entanto, ainda que este discurso docente esteja presente na
Proposta, e esta, considere ser na capacidade de leitura de mundo, e de articulação dialógica
entre os diversos saberes que se estabelece a prática docente, não se evidencia nenhum
aprofundamento sobre a questão.
142
É importante salientar que, os docentes entrevistados, afirmam ser a escola, lugar
favorável ao diálogo, na qual há possibilidade para abertura deste, enquanto ato pedagógico.
Concluímos que, independente do currículo existente, as instituições e seus participantes têm
reconhecido a importância desta prática no interior de seus projetos.
Quando tratamos da teoria dialógica considerando as partes que a constitui, assim
como na problematização, a conscientização e libertação são trazidas superficialmente,
atreladas a outros pontos de vista, mas não direcionam nitidamente o docente a perceber seus
fundamentos. Contudo, os docentes em seus relatos, nos deram indícios da compreensão ou
aproximação destes conceitos, reconhecendo-os em diversos momentos como relevantes a
prática pedagógica na EJA.
Ao nos reportamos a resultados observados anteriormente, não foi possível
perceber esta prática nas salas de aula, assim, lançamos nossos esforços na direção das
orientações curriculares. Estas por sua vez, demonstraram que, de fato, não há um
encaminhamento específico para o desenvolvimento de uma prática docente na perspectiva
dialógica freireana. O que é possível perceber, são discussões iniciais e sucintas sobre tal
temática, não claramente, como já enfatizamos, mas abrindo reflexões para futuras
possibilidades que precisam ser melhor discutidas na coletividade e exploradas teoricamente.
A EJA em sua especificidade traduz os anseios de um público, que se distingue
dos demais, específico em seus propósitos, mas diferenciado cultural e historicamente. Com
este público, a sala de aula torna-se lugar de encontro para uma diversidade de expressões,
singulares e comuns, considerando as experiências que cada aluno possui, além da sua visão
cristalizada sobre a realidade. No entanto, estas reflexões em nada contribuem, se como
profissionais da educação, não formos capazes de valorizar, sem preconceitos, estas vivências.
É neste sentido que procuramos despertar discussões sobre o aspecto dialógico necessário a
EJA. De um ponto de vista formador, os profissionais da educação precisam estar preparados
para receber este público e viabilizar estes saberes. Nossa contribuição está no despertar para
uma formação continuada que favoreça o diálogo nas turmas de EJA. Pensar na formação
docente para uma prática dialógica permite a valorização não apenas dos estudantes, mas
possibilita aos professores e professoras articular, uma prática criativa e, portanto, crítica, na
formação educativa que, também, se faz humana.
Infelizmente, o tempo de pesquisa, não favorece maior aprofundamento e
acompanhamento sistemático desta dinâmica, o que, talvez, poderia beneficiar a amplitude
143
das questões aqui propostas. Um acompanhamento sistemático das discussões sobre o
documento junto às instituições ou mesmo uma nova leitura sobre a educação dialógica na
perspectiva freireana, poderiam abrir um leque de possibilidades para novas conclusões.
Considerando o caráter preliminar da Proposta e a possibilidade do surgimento de novos
cadernos, incluindo-se o caderno específico para a EJA, novos estudos comparativos poderão
surgir como aprofundamento deste, por ora concluído. Além disso, como aprofundamento
desta pesquisa, poderíamos pensar numa investigação mais específica, sobre a temática do
currículo na EJA, propondo indagações sobre os saberes contemplados, seus limites e
possibilidades na prática educativa.
Não podemos almejar, como decorrência das análises propostas, resultados
acabados, universais. Esta postura, enquanto docentes e pesquisadores, não estaria em nada,
confirmando a atitude defendida em nossos estudos. É na perspectiva freireana que nos
sentimos inacabados, como seres humanos que somos, em hipótese alguma, donos da verdade
absoluta. Por isso, acreditamos ser também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e
que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperança. Este é um
saber fundante da nossa prática educativa, da formação docente, da nossa inconclusão
assumida (Paulo Freire).
145
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150
ANEXO 1
Quadro nº 8 – Quadro-Síntese das Unidades de Análises dos Documentos62
Problematização (Realidade, Conhecimento e Relações sociais e culturais)
Conscientização (Reflexão crítica/Transformação da realidade)
Libertação (Construção da autonomia)
Unidades Temas
1 Não é suficiente apenas definir “o que” ensinar e “em quanto tempo”, mas dar
conta também do “como” ensinar, compreendendo o processo humano de
aprender, questionando “por que” e “para que” ensinar garantindo o direito à
educação, ao conhecimento, aos temas culturais, à formação de identidades no
reconhecimento da diversidade.
2 Em relação aos conhecimentos produzidos em sala de aula: explicar o momento
histórico em que foram produzidos, investigar que interesses sociais
mobilizaram sua produção, buscar outros pontos de vista para explica-los.
3 Refletir sobre o papel da mídia na sociedade e na formação das pessoas deve
configurar-se como uma das funções da escola nos dias atuais.
4 É preciso ampliar o debate sobre o papel dessas mídias de forma crítica,
propiciando o desenvolvimento de uma cultura midiática onde educadores e
educandos sejam autores de conhecimentos e não apenas consumidores de
informação.
5 O cotidiano com toda a gama de possibilidades e de diversidade de práticas
avaliativas é, portanto, o caminho a ser pensado e percorrido enquanto
instrumento concreto de trabalho e de reflexões sobre avaliação.
6 As tarefas de aprendizagem que os estudantes venham a realizar precisam ser
desafiadoras, partir de necessidades que motivem a pesquisa, para o professor
refletir com os estudantes as ideias, hipóteses e conhecimentos que trazem
acerca de um novo estudo e facilitar sua interação, enquanto sujeito histórico,
com o objeto do conhecimento que é cultural.
7 A cidade e o entorno da escola suscitam diálogos com os conteúdos de ensino,
ressignificando a aprendizagem, transformando a vivência em conhecimento.
8 Além de identificar e reconhecer os saberes já construídos por estes estudantes
é importante que a escola seja também um espaço de garantia e
aprofundamento de saberes sobre as tecnologias, suas possibilidades e limites,
bem como as implicações estéticas e políticas do seu uso na nossa sociedade.
9 A escola é um lugar de diálogo e reflexão sobre os objetos culturais presentes
no cotidiano do mundo em que vivemos.
10 A escola é um espaço reflexivo, no qual é possível analisar aquilo que já se
sabe, colocar esse saber em diálogo com outro tipo de conhecimento e chagar a
novas conclusões, construindo novos saberes.
11 Também faz parte desse conjunto de eixos temáticos, o desafio de aprofundar o
olhar crítico a respeito dos Modelos de Desenvolvimento, que envolvem a
compreensão dos processos da vida econômica e política das sociedades
62
Estes temas foram considerados a partir dos conteúdos dos documentos analisados. É importante salientar que
não foram utilizados todos os temas durante as análises, mas aqueles que melhor atendiam as expectativas da
pesquisa.
151
humanas, numa perspectiva histórica, classista e, portanto, crítica.
12 Possibilitar um processo educativo articulador dos conhecimentos que os
alunos trazem, com os novos conhecimentos a serem construídos no ambiente
escolar, para que sejam dotados de significados.
13 Cabe à escola, enquanto instituição formadora, e aos professores, enquanto
agentes de transformação, procurar compreender a natureza desses fenômenos
e integrá-los ao currículo formal ou informalmente.
14 A dinâmica constante de indagações vai caminhando para a construção de um
currículo em que os docentes se fazem protagonistas ao refletirem sobre sua
prática de ensino e sobre a aprendizagem dos estudantes, sobre o que ensinar e
com quais vivências.
15 A relação com as crianças, os jovens ou adultos que se estabelece na escola tem
por objetivo promover o seu processo de humanização.
16 Incorporar à proposta pedagógica a educação estética no plano das relações
sociais significa direcionar o ensino na perspectiva humanista de uma
formação integral do aluno.
17 A concepção de liberdade deve ser focalizada na perspectiva de o indivíduo
tornar-se livre, da subordinação a interesses que burlam suas necessidades
materiais, da exploração, da discriminação e desenvolvam o desejo de justiça
social.
18 Sobre a concepção de liberdade: Contribui para uma formação sensível
transformadora das relações sociais e para a formação de sentimentos e ideais
estéticos que se conciliam com os valores expressos, particularmente, com o
princípio da solidariedade humana.
19 Na EJA pessoas jovens, adultas, idosas das mais variadas origens e processos
biográficos depositam suas expectativas, projetos e sonhos. Portanto, uma das
mais importantes tarefas de que devemos nos ocupar desses sonhos e projetos,
evitando que sejam destruídos por práticas alheias ao princípio de
humanização.
20 Encontrar o sentido da prática escolar que ao mesmo tempo respeite a
especificidade do estudante jovem ou adulto, sem deixar de cumprir a tarefa
escolar propriamente dita, ou seja, garantindo o acesso aos conhecimentos
construídos pela humanidade e necessários para a vida social, requer um
esforço criativo e vigilância crítica permanente.
21 É, portanto, na capacidade de leitura do mundo e de articulação dialógica
entre os diversos saberes que se estabelece uma das mais importantes
características da prática docente.
152
ANEXO 2
Política de Ensino da Rede Municipal do Recife
Caderno 1 Fundamentos Teórico-Metodológicos
2012
Versão de Fevereiro
153
Sumário
CONSTRUINDO SIGNIFICADOS
Memória pedagógica da rede
Educadoras (es) e Educandas(os) Construindo a Política de Ensino, a Política
de Ensino Construindo Educadoras (es) e Educandas (os)
ESCOLA DEMOCRÁTICA, DIVERSIDADE, CULTURA E MEIO
AMBIENTE Princípios Norteadores da Educação no Recife.
A escola democrática
A diversidade na escola democrática
> Relações Étnico-Raciais, uma história para ser contada.
> Orientação Sexual: desejos, comportamentos e identidades
sexuais.
> Justiça de Gênero na escola
Meio Ambiente e Educação: construindo a cidadania ambiental e
planetária
3. QUE CONHECIMENTOS PRIVILEGIAR NA ESCOLA?
O currículo e a identidade das professoras, professores e estudantes Integrar novos
saberes ao currículo.
Eixos Temáticos – Temas Culturais orientadores da prática pedagógica
As práticas educacionais além da escola
O desafio de lidar com as Tecnologias da Informação e Comunicação na Escola
154
4. A AVALIAÇÃO
Concepção de avaliação
Instrumentos avaliativos
Os Conselhos Pedagógicos
5. OS PROCESSOS DE ENSINAR E APRENDER
A aprendizagem do pensar
Registro da prática – fazer e pensar sobre o fazer
6. OS PROCESSOS DE ENSINAR E APRENDER
A aprendizagem do pensar
Registro da prática – fazer e pensar sobre o fazer
7. EDUCAÇÃO BÁSICA NO RECIFE
Concepção de Educação Básica
Etapas da Educação Básica no Recife
Educação Infantil
Ensino Fundamental
Ensino Fundamental Organizado em Ciclos
Anos Iniciais do Ensino Fundamental (1º e 2º Ciclos de
Aprendizagem / 1º ao 5º ano)
Anos Finais do Ensino Fundamental (3º e 4º Ciclos de
Aprendizagem / 6º ao 9º ano)
Ensino Fundamental em Tempo Integral
Modalidades da Educação Básica no Recife
Educação de Jovens e Adultos
Educação Especial
Educação Profissionalizante
8. REFERÊNCIAS
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