anais do congresso brasileiro de direito civil - dez anos do código civil: desafios e perspectivas
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ANAIS DO CONGRESSO NACIONAL DE DIREITO CÍVEL: DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL - RESPOSTAS, PROBLEMAS E PERSPECTIVAS.
SUMÁRIO
A TEORIA DA RELAÇÃO JURÍDICA E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE: UMA ANÁLISE A PARTIR DA CATEGORIA DO SUJEITO DE DIREITO ......................... 1
ESTATUTO DO NASCITURO ................................................................ 16
O DEVER DE MITIGAÇÃO DOS PREJUÍZOS ..................................... 31
O SISTEMA CODIFICADO DE RESPONSABILIDADE CIVIL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS ............................................. 45
1
A TEORIA DA RELAÇÃO JURÍDICA E OS
DIREITOS DA PERSONALIDADE: UMA
ANÁLISE A PARTIR DA CATEGORIA DO
SUJEITO DE DIREITO.
Felipe Klein Gussoli 1
Resumo. 1. A relação jurídica e seus elementos: como foi e como é. 2. O
“elemento” essencial – da pessoa ao sujeito de direitos. 3. A insuficiência da
Teoria da Relação Jurídica de modelo cientificista. 4. Direitos da personalidade:
antes de sujeito a pessoa. Conclusão.
Resumo.
A Teoria Moderna da Relação Jurídica, criação da pandectística, chega aos seus mais de
dois séculos de aplicação com o frescor de nuvem de cientificidade a soprar. Pelo menos
assim o é nos Tribunais, até mesmo no Parlamento. Aqueles, muitas vezes aplicam a letra
fria da Lei, que por ocasião os legisladores moldam tomando por base situações fáticas que
os doutrinadores rotulam como “relevantes” ao destino da nação. No entanto, já nos tempo
da fertilização in vitro, dos cadastros genéticos, do dinheiro virtual e da Constituição dita
cidadã, será mesmo tão simples dizer o que é o que não é relevante? Será que a
complexidade dos dias atuais torna mesmo a realidade, simplificada pela Teoria da Norma
(e da Relação Jurídica), tão fácil de apreender? Este singelo estudo busca desvendar os
caminhos da Teoria da Relação Jurídica quando aplicada aos direitos da personalidade. A
ideologia por trás da técnica e o rebaixamento do homem a sujeito demonstram os motivos
da dificuldade de compreensão dos direitos da personalidade como direitos da pessoa, seja
qual pessoa for ela. Assim, sem negar e utilidade da teoria, pode-se iniciar a revelar o mito
que sua desmedida crença revela.
Palavras-chave: Relação jurídica. Sujeito de direito. Pandectística. Direitos da
Personalidade.
1 Aluno do 4º ano de graduação da UFPR e aluno-pesquisador bolsista da Fundação Araucária (IC 2012-2013)
2
1. A relação jurídica e seus elementos: como foi, como é.
Ao aluno recém ingresso na faculdade de direito é ensinado o conceito tradicional de
relação jurídica, bem resumido por Manuel Antonio Domingos de ANDRADE:
Relação jurídica vem a ser unicamente a relação da vida social
disciplinada pelo direito, mediante atribuição a uma pessoa (em sentido
jurídico) de um direito subjetivo e a correspondente imposição a outra
pessoa de um dever ou de uma sujeição. 2
Sem mais delongas, vai-se às razões históricas do instituto, que localiza nos
autores do século XIX a introdução do conceito moderno de relação jurídica. Assim, fica
claro a todos que a teoria é produto da notável abstração dos juristas modernos, que
enclausuraram a complexidade da realidade em categorias jurídicas próprias.
Passemos então, em primeiro lugar, às definições clássicas, tal qual se faria
tradicionalmente nas semanas que se seguem à chegada na universidade.
Primordial para a conceituação de relação jurídica ideia de vínculo/nexo entre dois
sujeitos de direito. Para Francisco AMARAL, a relação jurídica é na realidade o “vínculo que
o direito reconhece entre pessoas ou grupos, atribuindo-lhes poderes e deveres (...) uma
situação em que duas ou mais pessoas se encontram, a respeito de bens ou interesses
jurídicos.”3 Esses interesses são as necessidades de bens materiais ou imateriais que têm
as pessoas em sentido técnico-jurídico. Nesta linha, a situação jurídica estabelecida sob a
luz do conceito de relação jurídica implica num estado no qual uma das partes detém
posição de poder e a outra de dever.
O conceito bebe eminentemente da fonte privatista do direito, e por isso o conteúdo
dessas relações ditas jurídicas é geralmente determinado pela autonomia dos particulares.4
Só é relação jurídica, no entanto, quando as relações sociais tornam-se relevantes para o
direito. A relevância do vínculo está no potencial efeito gerador de controvérsias e conflitos
entre os particulares, ou mesmo o interesse do particular em estabelecer quadros fáticos na
realidade.
2 ANDRADE, p.2. 3 AMARAL, p.195. 4 A ideologia em voga quando do ápice da influência da escola histórica do direito sugeria neutralidade ao direito. Seria este um sistema natural e perfeito de interferência na vida dos particulares. O individualismo e a autonomia da vontade eram as chaves para a determinação do ordenamento jurídico em convergência com a ordem natural. Para AMARAL, a conseqüência deste momento histórico foi o surgimento da relação jurídica “como um conceito representativo da ideia de ligação entre vontades autônomas e diversas, e que por isso mesmo se coloca o centro do sistema de direito civil, numa perspectiva interindividual.” Idem, p.201.
3
Deste modo, depreende-se um conceito abstrato de relação jurídica e um conceito
concreto do termo. Aquele é a relação social (elemento material) disciplinada pelo
ordenamento, ou seja, a relação que ganha importância jurídica, vez que o direito, por meio
do poder estatal/Lei (elemento formal) assim a define.5 Para Carlos Alberto da MOTA
PINTO, estamos diante de uma relação jurídica abstrata quando nos referimos à “modelo,
paradigma ou esquema contido na lei”.6
A relação jurídica em sentido concreto/restrito/técnico diz respeito à situação
específica de sujeição de uma das partes àquela parte titular de um poder.7 MOTA PINTO
considera a expressão adequada para situações existentes na realidade, entre pessoas
determinadas, com objeto determinado e fato jurídico assim também classificado. 8
Desta feita, as situações contidas nas relações sociais tidas como relevantes para o
direito têm como principal efeito a criação, extinção ou modificação de direitos. Assim, fatos
jurídicos como o nascimento ou a morte são hipóteses de fatos relevantes para o
ordenamento jurídico. Não menos relevantes são as manifestações da vontade humana, os
chamados atos jurídicos, que também criam, extinguem ou modificam direitos (ex.:
casamento, contrato, testamento).
Sob outro prisma é possível abordar o conceito de relação jurídica do ponto de vista
estático ou dinâmico. O primeiro corresponde à estrutura da relação, o segundo “se
manifesta nos eventos que marcam a existência da relação”. 9
Quanto à estrutura da relação jurídica podemos classificar seus elementos em
sujeito, objeto, fato jurídico, garantia. Assim sendo, a relação jurídica existe entre sujeitos de
direito, incide sobre um objeto, advém de um fato jurídico e pode se efetivar se necessário
coercitivamente mediante a garantia a ela disposta.
Os sujeitos de determinada relação jurídica são as pessoas, em sentido técnico,
entre as quais existe o vínculo jurídico estabelecido pela norma. Do lado ativo o sujeito
possuidor de um direito subjetivo e do lado passivo da relação o sujeito em posição de quem
cumpre um dever jurídico ou se submete a uma sujeição.
5 Para as relações relevantes para o direito, mas não previstas expressamente pelo ordenamento jurídico é comum a utilização do termo “relações de fato”. Para AMARAL, a expressão é usada para “aquelas situações desprovidas de uma estrutura jurídica definida (...) São exemplos comuns a união de fato, a sociedade de fato (...)” Idem, p.197. 6 MOTA PINTO, p. 177. 7 “A relação jurídica traduz a regulamentação jurídica (aspecto formal) do comportamento dos indivíduos (aspecto material) no seu dia-a-dia, na disciplina de seus interesses, estabelecendo situações ativas (poderes) e situações passivas (deveres).”AMARAL, 205. 8 MOTA PINTO, p. 177. 9 AMARAL, p.197.
4
Considera-se objeto da relação jurídica “aquilo sobre que incidem os poderes do
titular activo da relação”. 10 Desta maneira, o objeto poderia ser pessoas, direitos, coisas e
modos de ser da própria pessoa 11. ANDRADE entende objeto como “aquilo sobre que
incide o direito subjectivo, sobre que incidem o poder ou poderes em que este direito se
analisa”. Esta perspectiva incentiva a cisão do conceito em objeto mediato, ou seja, a coisa
a prestar, e objeto imediato, personificado no comportamento da parte passiva da relação
(um fazer ou um não fazer – a prestação). 12
O elemento intitulado fato jurídico é aquilo que faz nascer a relação jurídica. O fato
jurídico é qualquer ato de vontade humana ou evento da natureza que cria relações
jurídicas, portanto, produz efeitos jurídicos.13
Explicitados esses elementos estruturais, não se pode compreender uma relação
jurídica sem eficácia, ou seja, sem finalidade prática.14 Logo, o último elemento classificado pela
doutrina é a chamada garantia, abordada no direito processual civil. Esta se realiza nos meios
postos à disposição do titular de um direito subjetivo para coagir o sujeito passivo da relação ao
cumprimento do dever jurídico a ele imputado. A ordem jurídica sanciona o não cumprimento de
deveres jurídicos, e para tanto conta com aparelho estatal próprio para coagir o sujeito que se
recusa a satisfazer seu dever.
Quanto ao conteúdo da relação jurídica simples15, divide-se o conjunto de poderes
(normalmente de exercício voluntário) do conjunto de deveres (exercício obrigatório ou
necessário).
Os poderes se apresentam como direitos subjetivos, pretensão, direito potestativo e
faculdade jurídica. 16
O direito subjetivo diz respeito à possibilidade de seu titular exigir ou pretender um
comportamento positivo ou negativo - ou ainda produzir efeitos jurídicos de forma inevitável -
de outro sujeito.17 A diferença entre “exigir” e “pretender” se explica pela possibilidade de
recorrer aos tribunais no caso do primeiro e pela existência das obrigações naturais no
segundo. 18
10 MOTA PINTO, p. 189. 11 Ibidem, p.190. 12 ANDRADRE, p. 20-21. 13 MOTA PINTO, p. 190. 14 FACHIN, p.123. 15 Cf. a classificação usual das chamadas relações jurídicas simples e relações jurídica complexas: MOTA PINTO, p. 187. 16 AMARAL, p. 207. 17 MOTA PINTO, p. 179. 18 Ibidem, p. 183.i
5
De outra parte, também como conteúdo da relação jurídica existem os poderes
designados direitos potestativos ou direitos subjetivos impróprios. Em contraposição aos
próprios, não estão vinculados a nenhum dever jurídico.19 Caracterizam-se pela
inelutabilidade. Impõem-se à parte contrária de forma inafastável, produzindo efeitos
jurídicos na esfera jurídica desde a manifestação do ato de livre vontade de seu titular. 20
Não há o elemento objeto quando o conteúdo da relação jurídica se apresenta sob a forma
de direitos potestativos, dado que nesses casos não existe objeto sobre o qual incida a
relação, senão apenas o próprio conteúdo.21
As faculdades jurídicas como poderes são poderes que compõem o conteúdo de
um dado direito subjetivo. 22
Ainda quanto ao conteúdo da relação, do lado passivo dos poderes estará sempre um
dever jurídico ou uma sujeição.23 Contraposto aos direitos subjetivos propriamente ditos estão os
deveres jurídicos. Sem embargo das sanções dispostas pelo ordenamento para fomentar a
prestação do sujeito passivo, são de cumprimento também voluntário por parte do sujeito passivo.
Opostos aos direitos potestativos estão as sujeições. A sujeição não implica em
comportamento para a parte adversa da relação, senão apenas determina o que para esta
deve fazer.24
A configuração dual da relação, que conforma a corrente personalista, tem razão de
ser. As influências e determinações históricas justificam, em grande parte, a opção
conceitual de que sistema civil faz uso.
O caráter patrimonial das relações jurídicas e a pecuniarização25, que leva a resolver
qualquer problema com perdas e danos, indica a insuficiência do conceito apresentado – ao
menos nos seus moldes clássicos. Veja-se, por exemplo, o regime das incapacidades no direito
brasileiro (arts. 3º e 4º do Código Civil). Aqui o que define o incapaz é o discernimento para
prática dos atos da vida civil. No entanto, basta olhar com atenção para perceber que a proteção
dos interesses substancia-se no conteúdo patrimonial desses mesmos interesses. Neste singelo
19 FACHIN, p.125. 20 MOTA PINTO, p.183. 21 ANDRADE, p. 21. 22 MOTA PINTO exemplifica: “o credor – titular de um direito de crédito, que é um direito subjetivo – tem a faculdade de exigir ao devedor o pagamento, a faculdade de exigir, em certas condições, um reforço da garantia, etc; o proprietário – titular do direito de propriedade, que um direito subjectivo, concretamente uma espécie de direitos reais – tem a faculdade de usar a coisa, a faculdade de a fruir, a faculdade de dispor dela”.MOTA PINTO, p. 179. 23 Ibidem, p. 184. 24 Ibidem, p. 185. 25 FACHIN, 127.
6
exemplo, vê-se que a incapacidade nasce da ideia de que cabe ao direito civil somente
preocupar-se com as situações patrimoniais do sujeito de direito.26
Apreendidos esses conceitos básicos, para uma análise da teoria da relação
jurídica nos seus moldes clássicos no âmbito dos direitos da personalidade optamos aqui
por uma exposição acerca do elemento essencial da teoria: o sujeito de direito.
2. O “elemento” essencial – da pessoa ao sujeito de direitos.
Os sujeitos de determinada relação jurídica são as pessoas, em sentido técnico,
entre as quais existe o vínculo jurídico estabelecido pela norma.
Aqui os dados técnicos que emprestam existência jurídica ao ser humano. Posto
isso, o direito elege um momentos precisos para conferir os vários status do ser no
ordenamento. Os registros que se fazem no decorrer da vida da pessoa marcam a
existência jurídica delas. “O começo, quer da pessoa jurídica, quer da pessoa natural, está
jungido a essa espécie de rito de passagem.” 27
Acerca da relevância do sujeito de direito nos moldes usualmente apresentados,
leciona FACHIN:
A possibilidade de existir um direito sem sujeito, nesse sistema jurídico
encontra somente justificativa em algumas exceções. O sistema jurídico,
nesse caso, não tem nenhuma porosidade. Ele chama para si a definição do
que é sujeito, e o que está fora, a rigor, não é sujeito propriamente dito. 28
Essa concepção de sistema jurídico não é produto do agora. Nosso sistema civil, já
em 1916 e ainda em 2002, é influenciado pela Escola das Pandectas, que corresponde ao
posicionamento do pensamento jurídico numa pretensa cientificidade, submetendo o direito
a um sistema típico das ciências da dedução ou indução.29
É inegável a apropriação das categorias do BGB alemão de 1896 pelos
doutrinadores brasileiros. A existência da Parte Geral no Código Civil identifica de que fonte
nós bebemos. 30
26 RODRIGUES, p. 22. 27 FACHIN, p. 130. 28 Idem. 29 CARVALHO, p.40-41. 30 “Que o direito civil se divide em direito das obrigações, direito das coisas, direito de família e direito sucessório, que a tudo isto preside uma ‘parte geral’ (‘Allgemeiner Teil’) centrada na relação jurídica civil, (...) que nessa relação jurídica, abstratamente pensado o homem é elemento ao lado de outros elementos – do objecto, do do facto jurídico, da garantia - ,
7
No sistema das Pandectas a abstração conceitual determinava a invenção de
categorias cada vez mais fluídas. No século XIX, sob inspiração do direito romano aperfeiçoa-se
o conceito base do direito moderno, a relação jurídica. O sujeito de direito torna-se apenas um
elemento da categoria. A personalidade do sujeito é um dado secundário.
O aspecto relacional, o vínculo, se sobressai frente à pessoa. Para além disso,
como bem lembra FACHIN:
(...) a relação jurídica, classicamente moldada, leva em conta uma noção
abstrata e genérica de pessoas. A própria pessoa é que se coloca in
abstrato, perfil jurídico não definido a partir de suas condições concretas;
compreende imensa gama, independente de sua condição econômica,
social ou histórica, noção que tem a pretensão de inscrever a todos ao
mesmo tempo. 31
Quanto à relação entre a pessoa e o Outro, Antonio Manuel HESPANHA explica
bem como o direito ocidental moderno lida com o sujeito e a alteridade:
O primeiro factor deste desequilíbrio reside no facto de que, ao passo que
cada Eu (cada “pessoa”) é fruto de uma reflexão profunda, (...) o sujeito com
que o direito lida é uma entidade objectiva, (...) sem profundidade. (...) Por
isso o direito considera como dispensáveis os elementos não objectiváveis,
não exteriorizados (...). O segundo factor de superficialização do Outro é
que, como todos os Outros, considerados nos seus aspectos externos, são
iguais, todos podem ser tratados pelo direito de forma geral e abstrata.
Tratados como ‘indivíduo’, ou seja, apenas como o menor divisor comum, a
menor entidade indivisível e indistinta da sociedade.32
Sob este ângulo, a crítica à despersonalização do ser humano no direito moderno
também é contundente. A personalidade do sujeito é secundária, pois como “A” é igual aos
outros deve ser tratado como todos os outros.
No entanto, a categoria de sujeito não servia bem a qualquer homem. Ou melhor,
não servia igualmente a todos os homens e mulheres. Na sua essência o projeto alemão
nem sequer possuindo, na qualidade de sujeito, qualquer posição específica de privilégio (pois condivide esse estatuto com outros sujeito de direito); que não nos deve surpreender, enfim, essa formalização das relações ou esta desumanização do homem, porque o Direito (direito objectivo), se oferece como um prius em face dos direitos de cada um (direito subjectivo), sendo ele que funciona como o distribuidor desses direitos e até da capacidade ou da personalidade que ostenta (...).” Ibidem, p. 47-48. 31 FACHIN, p. 88. 32HESPANHA, 477.
8
tinha um propósito: servir a burguesia. Era, portanto, uma manifestação dirigida ao burguês,
sua família e seu patrimônio.33
Aqui é que passamos a considerar, então, os motivos da insuficiência da relação
jurídica, também naquilo que tange os direitos da personalidade. Estamos hoje longe de
uma sociedade patriarcal. Ou ao menos não é mais uma sociedade calcada nos ideiais
clássicos de propriedade, contrato e família.
Deste modo, novos interesses devem prevalecer. Aquilo que diz respeito aos aspectos
físicos, psíquicos e ao espírito da pessoa em si, não deve ser apenas protegida contra o Estado.
Ademais, ainda que importante, não basta apenas uma solução reparadora à sua tutela. A
defesa da personalidade deve ser potencializada a todos, e não a uma categoria restrita de
indivíduos nem de situações. 34 Diante desses pressupostos, passemos ao detalhamento das
insuficiências da teoria nos moldes clássicos.
3. A instrumentalização da Teoria da Relação Jurídica de modelo cientificista.
Ao tratar o sujeito como elemento abstrato da relação ignora-se sua concretude. As
características formadoras da sua personalidade pouco interessam. Esquece-se da
realidade que emana nas relações entre os sujeitos. A atenção é apenas para a moldura
que enquadra um dos recortes que o direito posto fez.
Para CARVALHO, ao proceder da maneira distinta, e colocar a pessoa humana no
centro do sistema de direito privado, dois nobres propósitos seriam atendidos: lembrar que
“hominum causa omne jus constituum” e trazer à mente que é justamente este primeiro
propósito que “entra em crise quando a outras razões ou interesses se dá precedência no
sistema.” 35 36
Ao considerar a pessoa, o homem comum se potencializa. Sua personalidade e as
manifestações delas também. Assim,
quando, como no direito dos negócios, a sua vontade faz lei, mas ainda
quando, como no direito das pessoas, a sua personalidade se defende, ou
quando, como no direito das associações, a sua sociabilidade se
reconhece, ou quando, como no direito de família, a sua afectividade se
33 CARVALHO, p. 35. 34 Acerca da insuficiência da tipificação dos direitos da personalidade, rumo que de certo modo tomou nosso Código Civil de 2002, cf.: SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade e o Código Civil de 2002. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.) Diálogos sobre Direito Civil. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. P.231- 264. 35 CARVALHO, p. 73. 36 No entanto, toda cautela é pouca. Em que pese a boa intenção de colocar o homem no centro do sistema, é preciso atentar para o otimismo da proposta. Não seria esse proceder, “à luz de um antropomorfismo sistêmico, (...) cair-se, novamente, em construções abstratas e nos mesmos problemas até então gerados?” In: FACHIN, 193.
9
estrutura, ou quando, como no direito das coisas e no direito sucessório, a
sua dominialidade e responsabilidade se potenciam (...). 37
Ou seja, nosso Diploma Civil, ao tratar muitas vezes a pessoa de forma técnica38,
nega direitos subjetivos inatos à pessoa.39 Deste modo, o condicionamento da titularidade
de direitos à concessão de personalidade jurídica acarreta na diminuição do exercício dos
direitos de personalidade.
Para comprovar o ângulo instrumental da técnica jurídica, notam-se as categorias
da capacidade e personalidade como ativadoras do sujeito no trânsito jurídico. A
capacidade, definida a contrario sensu é a chave para entender a relação jurídica como freio
à plena realização da pessoa:
Nessa perspectiva, é interessante notar como se opera a qualificação de um
sujeito. A inserção de uma distinção, no sentido de fazer uma qualificação
diversa – conforme, por exemplo, o sexo – pode significar uma
discriminação. Nesse sentido, parece evidente a relação que há entre a
incapacidade e conjunto de idéias vigorante: incapacidades podem ser
frutos da concepção ideológica inspiradora de certa racionalidade. 40
Assim, os direitos da personalidade também são fruto de uma racionalidade. Por isso,
mais de duas décadas após a promulgação da Constituição de 1988, devemos entender a
personalidade em dois sentidos. 41 O primeiro, na linha que acabamos de classificar como
representativa de uma ideologia própria, qual seja, estritamente técnica: personalidade como
possibilidade de ser sujeito de direito e obrigações. O segundo sentido - e esse a nosso ver o que
de certa forma anula o falso neutralismo do primeiro sentido – é aquele que surge da pessoa
como centro de dignidade. É a personalidade enquanto atributo inerente à sua complexidade que
diferencia cada indivíduo um do outro e confere importância à pessoa em razão dela ser.
Essa posição é firme na doutrina nacional. Por exemplo, Gustavo TEPEDINO,
acerca da constitucionalização do direito civil na ordem brasileira pós-88 acredita na
promoção da pessoa humana frente ao indivíduo basilar e neutro do direito civil codificado.42
Nesse sentido, queremos apontar para a insuficiência da teoria da relação jurídica clássica.
Ao mesmo tempo, começamos a trilhar o caminho da necessidade de proteção da
personalidade independentemente do instituto das capacidades. Logo, a personalidade e
sua tutela pelo direito é um dado pré-jurídico.
37 Ibidem, p.92. 38 Acerca das incapacidades, cf. art. 3º e 4º do Código Civil. 39 FACHIN, p.99. 40 Ibidem, p. 181. 41 RODRIGUES, p. 2 -3. 42 TEPEDINO, p.341.
10
4. Direitos da personalidade: antes do sujeito a pessoa.
Ao ignorar a personalidade do homem, o direito alemão moderno, pretensamente
neutro nas suas acepções, queria distanciar-se de qualquer ideologia identificada com o
direito natural. Ao apresentar-se como reação ao jusnaturalismo, o desenvolvimento de
qualquer teoria dos direitos da personalidade perdeu força.
A pessoa como elemento da relação jurídica enfraqueceu idéias de direitos inerentes
ao homem. A identificação jurídica que os juristas do século XVIII e XIX fizeram entre sujeito de
direito e ser humano é gérmen do esvaziamento da pessoa humana para o direito.
Não só para os sistemas de base jusnaturalista, mas também para as correntes
cientificistas da Escola Histórica também o homem, centro de imputação jurídica, surge
agora para o direito
finalmente apartado de seu próprio corpo, pois o exercício da qualidade de
pessoa exige capacidade jurídica. Esta, por sua vez valoriza apenas o
elemento intelectivo, racional, que compõe o ser humano e que lhe permite
compreender e responder pelos vínculos jurídicos que estabelece. 43
Para José Antônio Peres GEDIEL, a consequência disso é compreensão, mais
tarde, do corpo do sujeito como coisa, ou seja, como objeto mediato da relação jurídica
travada entre sujeitos:
No início do século XIX, definiu-se, pela primeira vez, o corpo como coisa,
em seu sentido jurídico moderno, incluindo-o entre as coisas fora do
comércio (res extra commercium).44
Em razão do caráter patrimonial do direito civil, a que já aduzimos, o trânsito
jurídico-econômico das criações intelectuais da pessoa fazem nascer transformações. Se o
corpo é res extra commercium, as criações do intelecto não. Já no século XX era possível a
comercialização dos produtos da alma. Aqui que surgem os direitos do autor como algo
diverso dos direitos morais do autor.
Nesse momento é que coisa se diferencia como espécie de bem, e então “a Ciência
jurídica passou a aprimorar a classificação dos bens que compõem o núcleo da pessoa,
bens da personalidade (...)”. Portanto, o que os direitos da personalidade buscam é
43 GEDIEL, p. 63. 44 Ibidem, p. 64-65.
11
“harmonizar a no sujeito os termos da equação moderna: sujeito e objeto da relação jurídica
e liberdade jurídica de apropriação de bens.” 45
Essa limitação da personalidade aos contornos que o direito desenha se mostra
insuficiente. A construção dos direitos da personalidade moldada na forma do direito civil
moderno não é capaz de tutelar nem realizar a pessoa em toda sua potencialidade.
A instrumentalização da teoria, ou seja, a concessão da personalidade pelo sistema
jurídica é insuficiente à construção de uma teoria dos direitos da personalidade que abarque
a complexidade da vida. Na final da década de 70 dos século passado dois dos mais ilustres
juristas paranaenses já insistiam:
Em uma visão personalista, o ordenamento jurídico, ao construir dentro do
sistema, a noção de personalidade, assume uma noção pré-normativa, a noção
de pessoa humana, faz de tal noção uma noção aceita pela ordem positiva. 46
Continuam José LAMARTINE e Francisco MUNHOZ, em brilhante exposição que
resume as idéias aqui postas:
Não assume nem a aceita porém no mesmo sentido de pura aceitação da
realidade externa com que aceita e assume a qualidade de objetos (...) É
que, no caso do ser humano, o dado pré-existente à ordem legislada não é
um dado apenas ontológico, que radique no plano do ser; ele é também
axiológico. E ser e valor estão intimamente ligados (...) O homem vale, tem
a excepcional e primacial dignidade de que estamos a falar, porque é. E é
inconcebível que um ser humano seja sem valer. Por isso mesmo, a
personalidade é uma noção insuscetível de gradações ou restrições.47
Conclusão.
Se há um norte para a superação dessa realidade ele pode estar na
constitucionalização e na principiologia axiológica no direito.48
LAMARTINE e MUNIZ, igualmente afirmam:
Daí decorre a importância de que o problema seja analisado à luz dos
grandes princípios constitucionais, que fornecem inclusive critérios de valor
45 Ibidem, p. 67-68. 46 LAMARTINE; MUNIZ, p. 231. 47 Idem. 48 FACHIN, 113.
12
e que devem inspirar uma releitura do próprio texto da lei ordinária à luz
dessa inspiração global que a Constituição acolhe. 49
Note-se, assim, a tendência atual de abandono da abstração, e aproximação da
situação concreta: do sujeito e do objeto da relação.50 Isso decorre do simples fato de que,
entre aquilo que o direito entende como realidade e a própria realidade, há uma lacuna
desconsiderada: “Nem todos os objetos, portanto, são objetos de direito, e nem todos os
que não são objetos deveriam deixar de sê-los.” 51
Ao privilegiar uma teoria da pessoa do homem, é possível inclusive uma teoria da
relação jurídica, pois o dado aqui é pré-normativo. Aqui a pessoa é anterior à relação e a
relação só é importante na medida de sua correspondência às situações jurídicas da vida
real.52
Vale lembrar que na perspectiva constitucional a centralidade da pessoa é
respaldada nos direitos fundamentais, própria da ordem constitucional cidadã, que deve se
sobrepor à qualquer lógica mercadológica. Somente assim os direitos da personalidade
serão encarados segundo uma perspectiva realmente protetiva.
A partir dessa abordagem, longe do direito civil servir às técnicas negociais do século
XXI, deve servir à inclusão social e às situações jurídicas existenciais. Aí a função da relação
jurídica como conceito que propicia melhor vida ao homem e proteção aos direitos da pessoa.
Nosso atual sistema, assim como foi o das Pandectas, são apenas sistemas. Apenas
um modo de apresentar o direito. Não é ele o direito. O próprio Orlando de CARVALHO explica
no decorrer de suas considerações críticas à relação jurídica que é imprescindível que os
sistemas externos (o direito neste caso), falem a “linguagem de certo tempo e país – exprima
em suma, a mentalidade de uma época -, como é infalível que recorra a um mínimo de artifício,
de fórmulas de uso ou fórmulas de convenção”.53 Frise-se, entretanto, a importância de estar
atento para a imperfeição dos conceitos. A pretensa cientificidade das categorias esconde,
quase sempre, alguma ideologia instrumentalizadora da técnica.
Assim posta a questão, não queremos, ao menos inicialmente, uma ruptura ou
abandono da teoria da relação jurídica. Tampouco se deseja a retomada de um
jusnaturalismo cego, signatário de uma ordem fundada na religião ou na razão. 54
49 LAMARTINE; MUNIZ p. 229. 50 FACHIN, 93. 51 FACHIN, 177. 52 Ibidem, p. 96. 53 Ibidem, p. 52. 54 CARVALHO, a respeito da herança cientificista alemã diz ser “óbvio que a reaccção contra o sistema das Pandectas não pode corresponder nem a um retorno ao casuísmo nem a um retorno ao empirismo mais ou menos ingênuo.” Op. Cit, p. 68.
13
Sob a premissa de uma nova ordem social que preza pela valorização de todos, o
que se quer é a releitura dos conceitos jurídicos num contexto assumidamente protetor dos
elementos existências do homem.55
Não menos certos disso estão os LAMARTINE e MUNIZ, que determinam a
negação do direito subjetivo como início de esvaziamento da noção de pessoa. E assim
afirmam:
Esse conteúdo (o direito subjetivo), sobre o qual o direito civil, em particular,
foi e permanece construído, noção fundamental do direito privado
contemporâneo, responde a sentimentos muito profundos, dentro os quais o
do respeito à pessoa humana. 56
HESPANHA, atento à importância das criações jurídicas robustas, cita J. DERRIDA,
que brilhantemente expõe a releitura das idéias clássicas da seguinte maneira:
ler de outro modo (...) significa sempre passar através das disciplinas
clássicas, e nunca abandoná-las ou desvalorizá-las. 57
Se DERRIDA estiver certo, abandonar a relação jurídica é desperdiçar uma
categoria chave para compreensão do mundo complexo que nos cerca, de modo que assim
também se estará abandonando um instrumento útil e precioso à defesa da pessoa. Porém,
da pessoa em sua concretude. A pessoa que é.
REFERÊNCIAS:
AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 7ª Ed. SP: Renovar, 2008.
ANDRADRE, Manuel Domingues de. Teoria Geral da Relação Jurídica. Coimbra: Almedina, 1997.
GEDIEL, José Antônio Peres. Tecnociência, dissociação e patrimonialização jurídica do corpo humano. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1980. p. 57 – 85.
55 Nesse sentido, aludimos à HESPANHA, ao defender que “se tiver que haver uma teoria do direito, ela há-de ser uma teoria da prática (e não uma mera prática da pura teoria).”Op. cit., p. 321. Nesse sentido, também FACHIN, ao afirmar que “Integra a porosidade do jurídico a reconstrução contínua de conceitos e definições.” Op. Cit. p. 177. 56 LAMARTINE; MUNIZ, p. 233. 57 HESPANHA, p. 426.
14
FACHIN, Luz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à luz do novo Código Civil Brasileiro. 2ªEd. RJ: Renovar, 2003. HESPANHA, Antonio Manuel. O Caleidoscópio do Direito: O direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. 2º Ed. Coimbra: Almedina, 2009. LAMARTINE, José; MUNIZ Francisco. O Estado de direito e os direitos da personalidade. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, nº 19, Curitiba, 1979-1980. p. 223 – 241. MARINONI, Luiz G. e ARENHART, Sérgio C. Curso de Processo Civil: Execução. Vol. 3. SP: RT, 2013. MOTA PINTO, Carlos Alberto de. Teoria Geral do Direito Civil. 4ª Ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Coimbra, 2005.
RODRIGUES, Rafael Garcia. A pessoa e o ser humano no Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
15
ESTATUTO DO NASCITURO: UM AVANÇO NO RETROCESSO
Juliana de Oliveira Horst1
1 INTRODUÇÃO
Decidir sobre o aborto não é um problema isolado, independente de outros problemas, mas sim um exemplo expressivo e extremamente emblemático das escolhas que as pessoas devem fazer ao longo de suas vidas, todas as quais expressam convicções sobre o valor da vida e o significado da morte2.
Nas últimas décadas a questão do aborto tem invadido o campo da política em
diversos países ocidentais. No Brasil, a disputa entre os mais conservadores e os
progressistas tem tomado corpo e se acirrado tanto na sociedade, quanto na Câmara dos
Deputados e Congresso Nacional. De um lado encontramos o anteprojeto do novo
Código Penal, que dentre suas inovações, prevê a descriminalização do aborto até a 12ª
semana de gravidez. Em contrapartida, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei
478/2007, recentemente aprovado pela Comissão de Tributação e Finanças da Câmara
dos Deputados, conhecido pelos parlamentares como Estatuto do Nascituro e pelos
movimentos feministas como ‘’Bolsa Estupro’’.
O presente trabalho não buscará esgotar o assunto, mas sim, aproximá-lo de
nossa realidade, levando em consideração seu caráter de novidade. Ademais, serão
analisados quais seriam os possíveis impactos da aprovação deste estatuto para a vida
das mulheres brasileiras. Uma das perspectivas tomadas será a dignidade da pessoa
humana e seus subprincípios, de acordo com Maria Celina Bodin, que pauta-se nos
postulados Kantianos:
O substrato material da dignidade desse modo entendida pode ser desdobrado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade
1 Estudante de Direito da UFPR. 2 DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: Aborto, eutanásia, direitos individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 84.
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livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social em relação ao qual tem garantia de não vir a ser marginalizado3 (grifado).
Em essência temos o direito à igualdade, à integridade psicofísica, à liberdade e
à solidariedade. Ainda, o recém-empossado Min. Luís Roberto Barroso, aumenta o leque
da essência da dignidade da pessoa humana incluindo algumas ideias mais gerais:
Grosso modo, esta é a minha concepção minimalista: a dignidade humana identifica (1) o valor intrínseco de todos os seres humanos, assim como (2) a autonomia de cada individuo, (3) limitada por algumas restrições legítimas impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário)4.
Resta evidente que esses subprincípios essenciais à dignidade da pessoa
humana se conflitam ao tratarmos da temática do aborto e, por isso, serão identificados
e analisados ao decorrer da exposição do conteúdo do Estatuto do Nascituro.
Ainda, ao longo do trabalho, se buscará fazer alguns apontamentos em
relação às tendências mundiais com relação aos direitos humanos das mulheres,
como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra a Mulher – ‘’Convenção de Belém do Pará’’, a Declaração Sobre a
Eliminação da Violência Contra as Mulheres e a Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento.
Cabe por fim justificar a utilização de fontes bibliográficas mais “informais”
como postagens de blogs e artigos de jornal. Isso se dá por conta da atualidade do
tema, refletido nos espaços virtuais de debate público do tempo presente. É
necessário voltar os olhares para essa forma de pronunciamento, mais comum e
mais acessível que os meios clássicos acadêmicos, para se captar o debate em sua
totalidade e complexidade.
2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Com o advento da Segunda Guerra Mundial, houve uma mudança
paradigmática nas bases do direito. Antes, com o Código Napoleônico, por exemplo,
desfrutávamos de um sistema jurídico liberal e individualista, que se reportava à
autonomia privada e à livre circulação de riquezas. Após a Segunda Guerra, diante de
3 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Dados à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 85. 4 BARROSO, Luis Roberto. “Aqui, lá e em todo lugar”: A dignidade da pessoa humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, no prelo.
17
todos os massacres e crimes contra a humanidade cometidos pelos regimes nazista e
fascista, fomos conduzidos à necessidade de reconstrução dos Direitos Humanos e de
criação de institutos jurídicos de valorização e de proteção da pessoa, como a
Organização das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos5.
Nesse sentido, constituições em toda a Europa passaram a adotar o
princípio da dignidade da pessoa humana como fio condutor de seus ordenamentos
jurídicos. No Brasil, com a Constituição de 1988, a dignidade da pessoa humana
também foi erigida como valor supremo da ordem constitucional, no qual toda a
ordem jurídica brasileira se apoia e se constrói. Além disso, com o fenômeno da
constitucionalização do direito civil, a dignidade da pessoa humana foi consagrada
como cláusula geral de tutela da personalidade. Esse deslocamento da visão liberal
para uma visão mais humanista estendeu a proteção da autonomia privada para
proteger, também, a esfera existencial da pessoa humana.
No entanto, diversas críticas doutrinárias foram tecidas contra a regulação dos
direitos da personalidade (que são constitutivos da identidade do sujeito) pelo Código
Civil de 2002. Uma delas é a de que a proteção da pessoa não se esgota no rol taxativo
e estático previsto pelo legislador civilista. Os direitos da personalidade não podem ser
reduzidos a um número limitado de situações definidas em lei, devendo ser ela
protegida em todas as situações existenciais. Ainda, o caráter indisponível e
irrenunciável dos direitos da personalidade se mostra incompatível com uma sociedade
complexa tal como é a nossa. Em relação a isso Pietro Pelingieri defende:
A personalidade, portanto, não é um direito, mas sim um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessante exigência mutável de tutela6.
Discordando das limitações impostas pelo artigo 11 do Código Civil, que
define os direitos da personalidade como indisponíveis, intransmissíveis e
irrenunciáveis, a doutrina civil-constitucional proclamou a importância da autonomia
privada nas relações extrapatrimoniais como um mecanismo de livre desenvolvimento
da personalidade e como forma de efetivação da dignidade da pessoa humana.
5 ALVARENGA, Luísa Baran de Mello. Atos de disposição sobre o próprio corpo: O caso da bodymodification. Trabalho de graduação (Bacharelado em Direito) – Departamento de Direito, PUC-RJ, Rio de Janeiro, 2010. 6 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar: 2008 p.764.
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Porém, como sabemos, essa concepção mais progressista dos direitos da
personalidade se encontra, ainda, com pouco espaço para se desenvolver. Os
conflitos com relação à autonomia corporal ganham mais força quando os princípios
que envolvem a dignidade da pessoa humana ou os direitos da personalidade se
chocam entre si. No caso da interrupção da gravidez essa situação fica evidente,
pois, o direito à vida e o direito ao corpo, ambos legalmente indisponíveis, se
conflitam ao ponto de que só um poderá prevalecer. No entanto, com veremos, o
direito à vida do feto se chocará – a partir desse estatuto – com uma gama muito
maior de direitos da mulher, como seus direitos reprodutivos, à saúde, à igualdade, a
não ser discriminada, etc.
É certo que o PL 478/2007 analisado por esse trabalho será o projeto original,
é certo que algumas alterações foram feitas, no entanto, as mudanças foram apenas
textuais, pois, na prática os impactos na vida das mulheres serão os mesmos. A
justificação do projeto se mantém e, por isso, a escolha de analisar o projeto original.
A justificação assim estabelece:
O presente Estatuto pretende tornar integral a proteção ao nascituro, sobretudo no
que se refere aos direitos de personalidade. Realça-se, assim, o direito à vida, à
saúde, à honra, à integridade física, à alimentação, à convivência familiar, e proíbe-
se qualquer forma de discriminação que venha a privá-lo de algum direito em razão
do sexo, da idade, da etnia, da aparência, da origem, da deficiência física ou
mental, da expectativa de sobrevida ou de delitos cometidos por seus genitores.
3 O ESTATUTO DO NASCITURO E A LEGALIZAÇÃO DO ABORTO
Teoricamente, há na relação entre a legalização do aborto e a aprovação do
estatuto duas posições sobre os direitos da personalidade contrapostas. De um lado
estão aqueles que defendem o direito à vida do feto (grupo fortemente fomentado
pela bancada política religiosa), do outro lado estão aqueles que defendem o direito
das mulheres sobre o próprio corpo e à integridade psicofísica.
A criação desse projeto se insere em uma conjuntura de avanço das forças
religiosas no cenário político brasileiro que desde a aprovação pelo Supremo
Tribunal Federal da interrupção da gravidez em casos de anencefalia do feto,
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buscam, mais fortemente, reverter a situação do aborto no Brasil. O Estatuto
mostrou-se, portanto, um meio adequado para o atingimento desses fins que, caso
aprovado, não só reverterá a decisão do STF como anulará qualquer possibilidade
de interrupção, até mesmo nos casos já previstos por nosso Código Penal.
A criminalização do aborto, incluindo o terapêutico, colocaria o Brasil na
contramão do que tem feito diversos outros países do mundo, como França,
Holanda, Canadá, etc., onde a legalização do aborto ganhou espaço no âmbito
jurídico. Muitos desses países foram influenciados pelas as previsões de direitos
humanos das mulheres de diversos Tratados Internacionais de Direitos Humanos
fomentados não só pela Organização das Nações Unidas e também por ONGs
internacionais e outros órgãos de respaldo global.
Ademais, o Estatuto traria contradições entre a legislação interna e os
Tratados Internacionais já assinados pelo Brasil. Dentre eles a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, que em
seu artigo 1º estabelece:
Artigo 1º Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado’.
E a Declaração Sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, que prevê:
Artigo 3º As mulheres têm direito ao gozo e à proteção, em condições de igualdade, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos domínios político, econômico, social, cultural, civil ou em qualquer outro domínio. Tais direitos incluem, nomeadamente, os seguintes: f) O direito de gozar do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir.
Um dos principais documentos internacionais relacionados aos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres foi a Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento (Conferência de Cairo, 1994), que foi corroborada
pela conferência internacional de Beijing em 1995. Segundo Flávia Piovesan, a
Conferência ocorrida em Cairo foi inédita ao reconhecer a liberdade de
autodeterminação das mulheres para um planejamento democrático de suas
próprias vidas. Conferindo às mulheres a possibilidade de decidir sobre o exercício
ou não da maternidade, bem como o direito ao acesso pleno às informações e
20
serviços de saúde para exercer da melhor maneira possível sua autonomia de
escolha7. De acordo com a resolução da conferência do Cairo:
96. Os direitos humanos das mulheres inclui seu direito de ter controle e decidir livre e responsavelmente sobre questões relacionadas à sua sexualidade, incluindo, sua saúde sexual e reprodutiva, livre de coerção, discriminação e violência8.
Tendo em mente esses aspectos apresentados, serão analisadas as
características primordiais do Estatuto do Nascituro, buscando entender seus
objetivos e suas implicações para a realidade social.
3.1 Art. 2º Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido
Esse projeto de lei visa à proteção integral do nascituro, dando a ele a
qualidade de “futura pessoa em desenvolvimento”, ou seja, ele possuirá todos os
direitos de uma pessoa já nascida no momento de sua concepção – um sujeito de
direito completo no instante em que o espermatozoide e óvulo se encontrarem.
Assim, o poder decisório da mulher que está grávida é extremamente reduzido, pois,
o zigoto possui todos os direitos que ela possui e, ainda, de maneira mais protetiva.
A possibilidade de interrupção da gravidez prevista no artigo 128, inciso I, do
Código Penal, não será mais aplicada. Em caso de risco de morte, a mãe deverá ser
preterida, não podendo se submeter a qualquer tipo de tratamento de saúde que
coloque em risco a vida ou a integridade do feto. Essa ideia é bastante reforçada
pelo art. 4º do projeto de lei, quando postula sobre a prioridade absoluta do feto
sobre o direito à vida, à saúde, à alimentação, etc.
Dessa forma, mulheres que sofram de doenças como o câncer, não
poderiam fazer quimioterapias e radioterapias, por exemplo. Essa medida se mostra
completamente desarrazoada, pois, coloca ambos em risco, aumentando a
mortalidade materna e fetal. Ademais, é impensável que a vida da mulher seja
mitigada dessa forma e que ela esteja completamente refém de seu aparelho
reprodutivo, não há para ela nenhuma possibilidade de interferência nessa escolha,
que já teria sido feita pelo Estado.
7 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Rio de Janeiro: Max Limonad, 1997. 8 Tradução livre de: “96. The human rights of women include their right to have control over and decide freely and responsibly on matters related to their sexuality, including sexual and reproductive health, free of coercion, discrimination and violence”.
21
Um exemplo concreto da criminalização total do aborto acontece hoje na
Nicarágua. Em 2008 entrou em vigor na Nicarágua a lei que proíbe o aborto em
qualquer hipótese, prevendo penas de até 30 anos para aqueles que infringirem a
norma. Diante disso, mulheres deixam de procurar atendimento de saúde e os
médicos temem submeter mulheres grávidas (e muitas vezes terrivelmente doentes)
a tratamentos médicos, pois, caso o feto seja prejudicado poderão (mãe e médico)
responder criminalmente. Como consequência disso, o número de mortes maternas
por falta de atendimento médico aumentou na Nicarágua9.
Essa lei mostra o quanto a criminalização total do aborto é uma medida
diametralmente oposta àquelas buscadas pelos direitos humanos, privando as
mulheres do seu direito à saúde, à igualdade, à integridade, não descriminação, etc.
Vale ainda ressaltar que a proibição do aborto não inibe sua prática, que é realizada em
clínicas clandestinas ou até mesmo na própria casa da gestante, expondo-a a
procedimentos arriscados sem o apoio, a higiene e a infraestrutura necessária, o que
resulta também em uma das maiores causas de morte de mulheres – não só na
Nicarágua como também no Brasil.
3.2 Art. 9º É vedado ao Estado e aos particulares discriminar o nascituro,
privando-o da expectativa de algum direito, em razão do sexo, da idade, da
etnia, da origem, da deficiência física ou mental ou da expectativa de sobrevida
O artigo 9º do Estatuto visa combater, principalmente, a decisão proferida
pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 54, que autorizou a interrupção da gravidez em caso de anencefalia
do feto. Dessa forma, o artigo revoga outra exceção de não criminalização do
aborto, que seria no caso de malformação fetal incompatível com a vida extrauterina.
De acordo com as professoras Ana Carla Matos e Estefânia Maria Barboza,
com relação aos fetos anencefálicos a figura que encontramos não é a do aborto,
mas sim a antecipação terapêutica do parto – por não existir potencialidade de vida.
Essa formulação se encontra no campo da medicina, sendo um fato bastante atípico
que, portanto, não seria alcançado pelos artigos que criminalizam o aborto no
9 CAROLINE, Priscila. Estatuto do nascituro: Retrocesso na pauta do Congresso. Blogueiras feministas: De olho na web e no mundo, 25 abr. 2013. Diponível em: http://migre.me/eRuN3. Acesso em: 03/06/13.
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Código Penal10. Ainda, em sua sustentação na ADPF 54, Luis Roberto Barroso
afirma que nosso Código Civil não deixa claro quando a vida se inicia, mas diz que
ela se encerra no momento em que o cérebro para de funcionar, assim, não há vida
em sentido jurídico11.
A impossibilidade de interrupção nos casos de anencefalia fetal mostraria
não só a falta de solidariedade para com essas gestantes, mas também uma grande
afronta à integridade física e psicológica da mulher, que iria ver seu corpo se
transformar por nove meses à espera de alguém que não virá, como se seu ventre
fosse agora um caixão. Esse momento é singular na vida das mulheres que o
presenciam, elas devem ter a opção de escolher como gostariam de lidar com esse
drama pessoal, interrompendo a gravidez ou a levando a termo. Qualquer uma das
escolhas não será feita isenta de dor, porém, ela só cabe à mulher e não ao Estado.
3.3 Art. 13 O nascituro concebido por ato de violência sexual não sofrerá
qualquer discriminação ou restrição de direitos
A última das exceções previstas no artigo 128 do Código Penal para a não
criminalização do aborto é revogada pelo artigo 13 do PL 478, que é o caso de fetos
que sejam frutos de estupro, por exemplo. O dispositivo 13 apesar de se utilizar de
uma sutileza semântica, é o que tem a maior brutalidade pragmática. No caso da
aprovação desse estatuto as mulheres que forem vítimas de violência sexual e por
conta disso engravidarem, não poderão mais interromper a gravidez, pois o feto não
poderá ser prejudicado pelo ato ilícito do seu genitor.
No entanto, a crueldade do artigo 13 não se encerra em fazer com que a
mulher dê à luz ao fruto de um ato violento, mas se estende por seus incisos. O
inciso segundo, o mais polêmico de todos, informa que o agressor, se identificado,
será responsável por pagar pensão alimentícia, caso contrário essa obrigação será
do Estado, no valor máximo de um salário mínimo, até que a criança complete 18
anos de idade. Porém, esse dever que pode recair sobre o Estado já está
disciplinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, independentemente do fato
de serem ou não frutos de estupro.
10 BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Interrupção como direito da gestante. Gazeta do povo, 14 mai. 2012. Disponível em: http://migre.me/eRv2z. Acesso em: 03/06/13. 11 BARROSO, Luis Roberto. Sustentação oral na ADPF 54. STF, Brasília, 11 abr. 2012. Disponível em: http://migre.me/eTbYC. Acesso em: 05/06/13.
23
Foi essa possibilidade de vínculo criado entre a vítima e o agressor que ficou
conhecida pelo movimento feminista como Bolsa Estupro. Pois, além do fato de o
Estatuto do Nascituro reduzir o valor da pensão que a vítima tem direito, podendo
superar um salário mínimo e que varia de acordo com as posses do agressor e
outros fatores. Ainda, tem a possibilidade de tornar a mulher que foi abusada
economicamente submissa àquele que a abusou!
Ademais, é imprescindível apontar que esses dispositivos revogam leis
penais de maneira tácita, não citando a revogação no corpo do texto e tal artimanha
legislativa é vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro, mostrando, dessa forma, a
ilegalidade do PL 478 frente à violação da Lei Complementar nº 95, de 1998, e o
Decreto Lei nº 4.176, de 2002, que postulam diretrizes para a alteração, redação e
elaboração de projetos de atos normativos12.
3.4 Art. 23 Causar culposamente a morte de um nascituro. Pena: Detenção de
um a três anos
No Código Penal Brasileiro a figura do aborto culposo é atípica, pois, para
que algum ato ilícito seja culposamente considerado essa possibilidade precisará
estar prevista expressamente na lei, o que não é e nunca foi o caso.
Desse modo, as mulheres que sofrerem abortos espontâneos que
acontecem naturalmente em cerca de 25% dos casos de aborto, serão investigadas
para que seja apreciado se elas têm ou não ‘’culpada’’ no fato ocorrido. Portanto,
gestante que faça esforço excessivo, por exemplo, e por esse motivo venha a perder
o feto, poderá ser considerada negligente sendo responsabilizada pelo crime de
aborto culposo13. A redação desse projeto parece ignorar qualquer tipo de direito
que as mulheres grávidas têm, tornando-as meras incubadoras humanas. Não fará
diferença se a gestante tem condições econômicas para parar de trabalhar no caso
de uma gravidez mais delicada. Igualmente, não importará se a mulher teve acesso
às informações necessárias para que a gravidez não corresse nenhum tipo de risco.
12 LEONEL, Maria Júlia; JOSEPHI, Pedro César. Estatuto do nascituro: Um projeto ilegal, cuja real intenção é afastar a possibilidade de legalização do aborto. Blog de Jamildo, 07 mai. 2013. Disponível em: http://migre.me/eTbrW. Acesso em: 03/06/13. 13 ARONOVICH, Lola. Estatuto do nascituro pode calar todas as discussões sobre aborto. Escreva Lola escreva, 09 mai. 2013. Disponível em: http://migre.me/eRv7F. Acesso em: 03/06/13.
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Fica claro que não só esse dispositivo, mas a criminalização do aborto como
um todo, afetam mais cruelmente as mulheres de classe mais baixa da sociedade.
Todavia, com relação ao artigo 23, é muito mais provável que as gestante mais
pobres fiquem expostas a riscos que as outras não ficariam, tanto pela falta de
informação, dificuldade de acesso à saúde e acompanhamento pré-natal, quanto por
não poderem deixar de trabalhar mesmo que o serviço exija um grande esforço
físico, como no caso das empregadas domésticas e das catadoras de materiais
recicláveis, por exemplo.
Ademais, tal dispositivo não leva em conta que a gravidez perdida pode ter sido
desejada pela mulher, que além de sofrer o luto da perda de uma criança esperada
ainda será indiciada por um processo criminal, que a fará viver sua tragédia novamente.
Desse momento em diante, a mulher passará a carregar consigo uma ficha criminal,
deixará de ser réu primária e passará por várias dificuldades para conseguir emprego,
celebrar contratos, obter créditos, etc., fatos que pressionarão ainda mais seu estado
psicológico que já estava abalado.
O Estatuto também coloca o aborto (doloso) como crime hediondo, ou seja,
crime inafiançável que se inicia sempre com regime de prisão fechado –
ironicamente, da mesma forma que o estupro é tratado. Assim, a mulher que aborta
feto provindo de estupro é enquadrada da mesma maneira que seu estuprador.
Essa medida fere totalmente os princípios de razoabilidade e a proporcionalidade do
sistema constitucional brasileiro, sendo a grande parte dos artigos desse estatuto
incompatíveis com o direito à autonomia, à igualdade, à integridade psicofísica e o
acesso à saúde das mulheres.
3.5 Art. 28 Fazer publicamente apologia ao aborto ou de quem o praticou, ou
incitar publicamente sua prática. Pena: Detenção de seis meses a um ano e multa
O aborto, como bem sabemos, desperta as mais conflitantes opiniões e em
uma sociedade plural como a nossa, e essas divergências aparecem nos mais
diversos campos sociais. A possibilidade de as pessoas expressarem seus pontos
de vista é mais do que saudável – e inevitável – para a construção da comunidade
democrática que perseguimos.
Todavia, a descriminalização do aborto não obrigará aquelas gestantes que
não o desejam, mesmo em casos de anencefalia, estupro ou risco para a vida a mãe.
25
Não interromper a gravidez será sempre uma opção da gestante. Ainda mais
importante, a descriminalização do aborto não proíbe que crenças religiosas neguem a
sua prática. Padres e pastores, mulheres e homens, poderão convencer, no campo do
diálogo, outras pessoas a não interromperem a gravidez, prática essa, que é bastante
comum nos Estados Unidos, por exemplo14.
Em contrapartida, com a aprovação desse projeto de lei, aquelas que
desejam abortar não terão a mesma liberdade daqueles que estão do outro lado da
disputa política. Além do fato de não poderem abortar em nenhuma hipótese, as
gestantes – e qualquer outra pessoa que acredite no direito das mulheres para
decidir sobre a interrupção da própria gravidez – terão suas falas cerceadas diante
da possibilidade do encarceramento.
No entanto, como bem disse Luis Roberto Barroso em sua sustentação
perante o Supremo Tribunal Federal na ADPF 54:
Toda a crença sincera e não violenta merece respeito e consideração, a verdade não tem dono, por isso há debate de valores. O único problema de um debate de ideias é que um lado possa se valer do poder coercitivo do Estado para criminalizar a posição do outro. A tolerância e a diversidade fazem parte da vida, o papel do Estado nessa questão que envolve desacordo, não é escolher um lado, mas defender que cada um possa viver a sua convicção15.
O objetivo de artigo 28 é, em grande parte, silenciar alguns movimentos
sociais como o feminista, que é um dos grandes responsáveis pela emancipação
das mulheres nas últimas décadas e que tem pautado, desde a segunda onda do
feminismo, pela legalização e descriminalização do aborto.
4 CONCLUSÃO
A luta das mulheres pela igualdade de fato, cidadania, democratização da
sociedade, tem entrado em choque com as verdades estabelecidas pelo sistema
patriarcal. Essas verdades buscam continuar legitimando a diferença entre homens e
mulheres e até mesmo entre mulheres e mulheres, dentre essas verdades patriarcais
temos a noção de que as mulheres são ligadas à natureza, à reprodução, à vida e ao
14 BARROSO, Luis Roberto. “Aqui, lá e em todo lugar”: A dignidade da pessoa humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, no prelo. 15 BARROSO, Luis Roberto. Sustentação oral na ADPF 54. STF, Brasília, 11 abr. 2012. Disponível em: http://migre.me/eTbYC. Acesso em: 05/06/13.
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instinto materno, com a potencialidade de amar incondicionalmente16. Nessa lógica,
Simone Beauvoir, em seu livro O Segundo Sexo, nos traz o entendimento de que o
patriarcado coloca a mulher no papel de outro, que vive às sombras do ser masculino,
que é universal. A mulher, portanto, não é um ser pra si, é um ser para os outros, ela é
mãe, esposa, filha. Assim, uma mulher que não segue essa vida ligada à maternidade
que a sociedade a impõe, é vista com maus olhos, como uma mulher incompleta.
Sofrem preconceito desde aquelas que decidem, por interromper a gravidez, até
mesmo às que simplesmente não desejam ser mães.
Além disso, diante de todo o processo de construção social pautada nos
pressupostos do patriarcado, muitas vezes o discurso das mulheres são silenciados
por falta de aderência social, assim, defende Cláudia Mayorga:
Esse aspecto é de suma importância para o para o debate sobre a legalização e descriminalização do aborto, pois, as vozes das mulheres, a partir das lógicas patriarcais, não são reconhecidas como legítimas para falar em prol do direito de decidir. O direito ao aborto é, sem sombra de dúvidas, condição para a emancipação feminina, cabendo às mulheres a decisão final sobre processos que afetam não somente seus corpos, mas suas vidas17.
Por isso, um ponto inicial que precisa ser desmistificado é a simplificação da
mulher ao seu útero ou a conexão lógica entre o ser feminino e a maternidade. A
igualdade material entre homens e mulheres não poderá acontecer até que se
assente na sociedade a consciência de que as mulheres têm desejos e vontades
que podem ou não abarcar o nascimento de um filho, a sua condição de mulher não
depende disso.
Ainda, o segundo ponto a ser desmistificado é o de que a criminalização do
aborto se traduz na diminuição do mesmo como já defendeu a Organização Mundial
de Saúde, pois, o que realmente ocorre é que o número de abortos pode continuar
sendo o mesmo ou aumentar. A única diferença é que os abortos, que poderiam ser
realizados de forma segura, serão feitos clandestinamente, colocando em risco a
vida da gestante.
Digo que a criminalização total do aborto pode aumentar sua incidência,
pois, coloca as mulheres grávidas totalmente à margem da sociedade, não podendo
recorrer a nenhuma instituição que possa diminuir suas angústias. Algumas dessas
16 MAYORGA, Cláudia. A questão do aborto em tempos de cólera. Em debate, Belo Horizonte, v.3, n.2, p. 31-38, mai. 2011. 17 MAYORGA, Cláudia. A questão do aborto em tempos de cólera. Em debate, Belo Horizonte, v.3, n.2, p. 37, mai. 2011.
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angústias poderiam ser superadas por meio de acompanhamento psicológico – caso
fosse desejo da mulher – como acontece em países como a França e na Alemanha,
onde um aparato de apoio é disponibilizado para que a mulher possa fazer sua
escolha da maneira mais consciente possível. Quando o Estado simplesmente
criminaliza o aborto, ele se isenta de buscar um equilíbrio para as situações onde a
mulher deseja interromper sua gravidez, já que no final das contas a mulher não
poderá fazer uma escolha.
Ainda, temos que ter em mente que a criminalizar o aborto, estar-se-á
criminalizando de fato as mulheres pobres, já que o direito penal acaba por fazer
esse recorte de classe. A criminalização do aborto é, consequentemente, a
criminalização da pobreza e também um atestado de óbito para essas mulheres. As
mulheres de classe média e alta continuarão indo a clínicas que, apesar de
clandestinas, têm todo o suporte necessário para que o procedimento seja seguro e,
ainda mais importante, muito mais sigiloso. Mulheres pobres que mal têm acesso à
saúde básica não podem se utilizar de boas clínicas clandestinas, assim, realizam
procedimentos impróprios que arriscam a própria vida e degradam a sua dignidade.
Em caso de graves complicações no procedimento abortivo, essas mulheres serão
encaminhadas a hospitais públicos, onde os médicos facilmente identificarão a
tentativa de aborto, caso não sucumbam, serão rigorosamente punidas pela lei.
A Pesquisa Nacional do Aborto aponta que as características mais comuns das
mulheres que abortam no Brasil são a idade de 19 anos, a cor negra e com filhos. As
mulheres negras e geral têm menos apoio dos companheiros que as mulheres brancas
e 8% das mulheres entrevistadas informaram terem abortadas sozinhas, quase todas
negras, com baixa escolaridade e 4 delas com menos de 21 anos. Outro dado
importante é o de que 22% das mulheres de 35 a 39 anos residentes de áreas urbanas
já fizeram aborto18.
Por fim, é importante pontuar que nenhum movimento que defenda os
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, bem como seu poder de decidir, apoia
a interrupção da gravidez indiscriminadamente. A possibilidade de interromper a
gravidez poderá acontecer até certo limite, o mais comum deles, utilizado pela
grande maioria dos países mais desenvolvidos é que a interrupção possa acontecer
até o terceiro mês de gravidez, quando o sistema nervoso ainda não está formado.
18 COSTA, Gilberto. Mulheres negras e pobres são mais vulneráveis ao aborto com risco, mostra dossiê. Agência Brasil: Empresa de comunicação, 24 jun. 2012. Disponível em: http://migre.me/eTd4l. Acesso em: 05/05/13.
28
O papel do Estado na problemática do aborto não é criminalizá-lo e sim
preveni-lo por meio de acesso a medicamentos anticoncepcionais, democratização
da informação, acompanhamento psicológico das gestantes que o requererem, etc.
A questão do aborto, antes de mais nada, deve ser tratada como um problema de
saúde pública. É necessário encarar o índice de abortos praticados não como uma
doença moral, mas como sintoma de uma sociedade desigual, doente de
preconceitos e violências contra grupos sociais historicamente discriminados. Nessa
esteira, a Organização das Nações Unidas enviou ao Brasil no mês de março desse
ano a recomendação da revogação dos dispositivos que criminalizavam o aborto,
pois, essas questões diziam respeito à saúde pública coletiva e não ao direito penal.
Por fim, o aborto é uma questão relevante para a saúde da mulher, mas
também importa a diversos outros direitos que já foram conquistados pelas mulheres
e que foram explorados ao longo desse artigo. Direitos esses que estão calcados em
séculos de luta e dor e que precisam ser de fato totalmente implementados. Assim, o
poder das mulheres para decidir sobre o próprio corpo é justo e também necessário
para a completa emancipação feminina.
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30
O DEVER DE MITIGAÇÃO DOS PREJUÍZOS: REFLEXÕES A PARTIR DOS PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE E DA BOA-FÉ OBJETIVA
Pedro Bernardo Martins Alves Spinola Garcia1
Ryana de Medeiros Nones2
Resumo: O presente artigo tem como escopo apresentar o dever de mitigação dos prejuízos como um dever acessório de conduta emanado do princípio da boa-fé objetiva. Primeiramente, os autores trazem reflexões sobre a influência da Constituição Federal sobre o direito dos contratos e a sua contribuição para a construção do princípio da boa-fé objetiva. Posteriormente, é abordado o tema da função integradora da boa-fé objetiva e a criação dos deveres laterais de conduta. Após, o último tópico deságua nas considerações acerca do dever de mitigações dos prejuízos e a boa-fé objetiva. Vislumbra-se, pois, uma imposição dos princípios constitucionais da solidariedade e da dignidade humana nas relações jurídicas privadas como forma de harmonizar uma sociedade em que o privado não mais pode ser visto como o individual, mas antes, como uma expressão da vida em sociedade e da sua colaboração com o próximo; uma transformação claramente alavancada pelos preceitos constitucionais. Assim, constatou-se que nas relações obrigacionais há um dever do credor de mitigar seus prejuízos quando estes forem evitáveis.
Palavras-chave: Solidariedade; Boa-fé objetiva; Dever de mitigação dos prejuízos.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo foi construído sobre a premissa do princípio da
solidariedade, previsto no artigo 3° da Constituição da Federal3, e do princípio da
boa-fé objetiva, norte do direito obrigacional pátrio e positivado em diversas leis,
principalmente o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, tomados como
fundamentos para o desenvolvimento do dever de mitigação dos danos.
1 Acadêmico do 5° ano do curso de graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Pesquisador bolsista do PIBIC/Fundação Araucária. Integrante do Núcleo de Arbitragem da PUC/PR. Integrante do Grupo de Pesquisa “Mercosul – Conflito de Leis”. 2 Acadêmica do 5° ano do curso de graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Integrante do Núcleo de Estudos em Direito Civil Constitucional “Virada de Copérnico” da UFPR. 3 Artigo 3º da Constituição Federal: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;”
31
Neste contexto, almeja-se, em linhas gerais e infelizmente não conclusivas,
(através de uma revisão bibliográfica), analisar estes dois princípios como
transformadores dos deveres obrigacionais que surgem no negócio jurídico,
especificamente nos contratos, de modo a demonstrar como o “novo” arcabouço
normativo privado brasileiro, capitaneado pela Constituição Federal, o Código de
Defesa do Consumidor e o Código Civil, vem ampliando a dimensão da boa-fé objetiva
para além dos tradicionais deveres acessórios de lealdade e informação, alcançando,
inclusive, o dever de mitigação dos prejuízos.
2 A INFLUÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL SOBRE O DIREITO DOS
CONTRATOS E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O CONCEITO DE BOA-FÉ
OBJETIVA
Desde a introdução no § 242 no BGB alemão do conceito de Treu e
Glauben1 (lealdade e crença) em 1900, os ordenamentos jurídicos ocidentais
passaram gradativamente a adotar dispositivos similares em suas legislações
privadas, podendo este ser considerado o marco legislativo moderno para aplicação
da boa-fé objetiva, já que, embora já estivesse positivada no Code Civile de
Napoleão desde 1804, o instituto permanecia “inteiramente diluído pela presença
hegemônica do então dogma da autonomia da vontade”2.
Neste contexto, alguns doutrinadores brasileiros, sob forte influência do direito
alemão, passaram a discorrer sobre a boa-fé objetiva e o dever de lealdade dela
derivada, principalmente Clóvis do Couto e Silva3. Paulatinamente, doutrina e
jurisprudência passaram a aplicar a boa-fé objetiva aos contratos, independentemente
de previsão expressa em nosso Código Civil4. Tal transformação na concepção jurídica
1NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 48-49 2 Ibid., p. 45. 3 Dentre os inúmeros trabalhos do jurista gaúcho, destaca-se o artigo escrito com base na conferência ministrada na 1ª Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil, em Porto Alegre, em 18 de julho de 1979, intitulado “O princípio da boa-fé no Direito brasileiro e português”. (SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Org. Vera Maria Jacob de Fradera. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 33-58.) 4 Antes da positivação do princípio da boa-fé objetiva em nosso ordenamento pelo Código de Defesa do Consumidor, nos artigos 4°, inciso III e 51, inciso IV, e pelo Código Civil de 2002, através de numerosas disposições, destacando a prevista no artigo 422, o princípio foi trazido pela doutrina e, em certas ocasiões pela jurisprudência, como assinalado por Fernando Noronha em sua obra “O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais”: “Na verdade, no longínquo ano de 1943, o Supremo Tribunal Federal já decidia, em Sessão Plenária, que ‘a boa-fé domina a interpretação das convenções’ (RT, 157:358). O Ministro Castro Nunes disse, então, que a ‘noção de contrato vai cedendo dia-a-dia às imposições, sem
32
de contrato e de boa-fé culminou, em 1988, com a adoção expressa pela então nova
Constituição Federal ao princípio da solidariedade e da dignidade humana, como
fundamentais para a construção da República Federativa do Brasil.1
Neste sentido, Maria Celina Bodin de Moraes2 comenta a importância e
aplicabilidade deste princípio:
“A expressa referência à solidariedade, feita pelo legislador constituinte, longe de representar um vago programa político ou algum tipo de retoricismo, estabelece um princípio jurídico inovador em nosso ordenamento, a ser levado em conta não só no momento da elaboração da legislação ordinária e na execução de políticas públicas, mas também nos momentos de interpretação-aplicação do Direito, por seus operadores e demais destinatários, isto é, pelos membros de toda a sociedade.” (GRIFO NOSSO)
Em linhas gerais, a solidariedade, prevista no art. 3° da Constituição
Federal, constitui um princípio que institucionaliza no Estado brasileiro um dever
para todos os cidadãos e, como consequência, para todos os sujeitos de uma
relação jurídica agirem de forma solidária. Esta solidariedade pode ser efetivada de
várias maneiras, dentre elas pela boa-fé, que em sua concepção objetiva é
considerada um princípio, pois é um mandamento, é um dever de conduta que deve
ser observado3; e, destacando-se desse rol de deveres, a transparência, a lealdade
e a informação, que materializam a aplicação da solidariedade prevista no texto
constitucional.
Em 1990, por consequência do mandamento constitucional previsto nos “Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias” da Constituição, o legislador elaborou o
Código de Defesa do Consumidor, a primeira legislação que efetivamente trouxe a boa-
fé objetiva como um dever a ser observado pelas partes contratantes, surgindo então a
base para as transformações posteriores.
Como se percebe, embora a boa-fé objetiva seja um princípio e, ainda que
antes de sua previsão na Constituição Federal ela já tivesse sido utilizada pelos
necessidade de haver no direito positivo de cada país, como existe no suíço, texto expresso armando o juiz do poder de fazer prevalecer aquela regra, que se deve haver como implícita na interpretação e execução das convenções’. (NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 131) 1 Embora o Código Comercial brasileiro editado em 1850 trouxesse na redação do artigo 131, inciso I a previsão de que os contratos deveriam ser interpretados em conformidade com a boa-fé, esta era aplicada somente para a interpretação dos contratos, não englobando o sentido de criação de um dever para as partes contratantes, como se evidencia na moderna interpretação do princípio da boa-fé objetiva. 2 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O Princípio da Solidariedade. p. 2. Disponível em: http://www.tepedino.adv.br/wp/wp-content/uploads/2012/09/biblioteca9.pdf Acesso em: 29 mai. 2013. 3 NORONHA, Fernando. Op. Cit. p. 136.
33
nossos Tribunais, foi somente a partir da transformação constitucional de 1988 –
que, consequentemente, transformou a interpretação e aplicação de valores até
então basilares ao direito privado tais como a autonomia da vontade e a liberdade
contratual – é que se chegou ao estágio atual, em que é possível discutir-se acerca
de um “ônus de o credor minimizar seu próprio prejuízo1”.
Em síntese, nos apropriando das palavras de José de Oliveira Ascensão2,
“em toda sociedade deve haver uma solidariedade que implique que a atuação de
cada um tenha reflexos positivos na ordem global. Pressupõem-se que cada um, no
uso de sua autonomia, beneficie o conjunto”. Portanto, a merecidamente proclamada
“Constituição cidadã” foi e continua sendo fundamental para a transformação do
direito privado brasileiro, sendo o vetor não somente para a aplicação do direito, mas
também como vetor para a conduta nas relações jurídicas. Assim, consideradas
estas premissas, passaremos ao tópico seguinte.
3 A FUNÇÃO INTEGRATIVA DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E A
CRIAÇÃO DOS DEVERES LATERAIS DE CONDUTA: UMA CARACTERÍSTICA
SOLIDÁRIA.
“Fato social, virtude, vício, pragmatismo e norma jurídica são os diferentes significados do termo. Do ponto de vista jurídico, como mencionado, a solidariedade está contida no princípio geral instituído pela Constituição de 1988 para que, através dele, se alcance o objetivo da “igual dignidade social”. O princípio constitucional da solidariedade identifica-se, assim, com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna,comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados.”3
Partindo desta premissa elencada por Maria Celina Bodin de Moraes, em que a
solidariedade constitucional pode ser conceituada como um “conjunto de instrumentos
voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se
desenvolva como livre e justa”, e, considerando o panorama histórico e transformador
deste princípio no direito dos contratos, passaremos agora a nos debruçar sobre a
aplicação do princípio da boa-fé objetiva como criador de obrigações laterais de conduta,
1 FRADERA, Vera. A contribuição da CISG (Convenção de Viena sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional) para a atualização e flexibilização da noção de contrato no direito brasileiro. Revista de Arbitragem e Mediação – Ano 9 – vol. 34 – jul. – set./2012. Coordenação Arnoldo Wald. Ed. Revista dos Tribunais. p. 48 2 ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. p.15. 3 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Op. cit. p. 8.
34
para, posteriormente, concluir este trabalho integrando o fundamento constitucional da
solidariedade à esta peculiar característica do princípio da boa-fé objetiva e com o dever
de mitigação dos prejuízos pelo credor da obrigação.
Inicialmente, é pertinente relembrarmos as lições da doutrina1 acerca dos
deveres que permeiam uma relação jurídica, especialmente a de natureza obrigacional.
Em linhas gerais, podemos subdividir os deveres de prestação dos sujeitos da relação
jurídica em duas grandes categorias: os deveres principais e os deveres secundários. Os
deveres principais, como o próprio nome sugere, são os deveres essenciais e
constitutivos da obrigação, tendo como exemplo tradicional “o dever de entregar a coisa e
de pagar o preço, na compra e venda.”2 A seu turno, os deveres secundários podem se
dividir em duas espécies e, sinteticamente, se destinam à: I - assegurar a prestação
principal, são os chamados deveres secundários meramente acessórios da obrigação
principal, sendo exemplo o dever de conservar a coisa vendida; II – serem autônomos ou
coexistentes como o dever principal, nomeados como deveres secundários com
prestação autônoma, tendo como exemplo o dever de indenizar, por mora ou
cumprimento defeituoso, que acresce à prestação originária.3
Neste contexto, a relação jurídica obrigacional é atualmente entendida como
de natureza complexa, o que nas palavras de Fernando Noronha “representa algo
mais do que a mera soma dos direitos, deveres, poderes e outras faculdades
jurídicas nela englobadas”. Ou seja, superou-se a antiga concepção de relação
obrigacional simples, em que somente os deveres principais eram exigidos, em favor
de um novo modelo, que privilegia o todo da relação, podendo até mesmo ser
chamado de sistema obrigacional.4
Como consequência, compreender a relação jurídica obrigacional passou a
ter uma dimensão e amplitude diferenciada para o operador do direito, sendo,
portanto, possível encontrar a existência de inúmeros deveres de conduta chamados
de deveres acessórios, laterais ou correlatos5, e que se diferenciam dos deveres
1 A emérita jurista gaúcha Judith Martins-Costa, em obra já clássica na literatura jurídica brasileira acerca da boa-fé, traz as lições de renomados autores como Mario Júlio de Almeida Costa e João de Matos Antunes Varela para conceituar os deveres principais e deveres secundários de uma relação jurídica, tema fulcral para se compreender a função da boa-fé objetiva como criadora de deveres jurídicos. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 436-437.) 2 Ibid., p. 438. 3 Idem., p. 438. 4 NORONHA, Fernado. Op. Cit. p. 159. 5 A doutrina não é unânime quanto a nomenclatura utilizada, porém, independente da palavra utilizada, o sentido atribuído é o mesmo, sendo um dever ou obrigação derivada da boa-fé objetiva e que faz surgir em ambas os sujeitos partícipes da relação jurídica “deveres de cooperação e proteção dos recíprocos interesses” (MARTINS-COSTA, Judith. Op. Cit. p 438-439). Em relação a nomenclatura inserida no corpo do texto, adotou-se a utilizada por Fernando Noronha (NORONHA, Fernado. Op. Cit. p. 160)
35
secundários anteriormente elencados, pois tem como fundamento a necessidade de
agir em conformidade com a boa-fé. A título de exemplo para clarificar os conceitos,
trazemos à baila as lições de Fernando Noronha:
“(...) é dever secundário aquele do vendedor de entregar ao comprador os documentos necessários ao registro de transferência a propriedade, já será mero dever lateral, ou acessório de conduta, imposto pela boa-fé, o que obriga o vendedor a eventualmente dar assistência ao comprador, caso venha a ser necessário, no futuro, requerer alguma retificação nos dados constantes do registro.”
A doutrina, portanto, classifica os deveres acessórios de conduta em três
grandes espécies, os deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade.1 Em que
pese essas espécies não serem de cunho restritivo2 – ao passo que se isso ocorresse
seria uma contradição à essência do princípio da boa-fé objetiva, que almeja tutelar a
confiança e a conduta das partes – só é possível verificar quais condutas e expectativas
são tuteladas analisando-se caso a caso. Destarte, elas são suficientes para se
demonstrar que em sua essência existem muitas outras condutas que deverão ser
observadas pelas partes de uma relação jurídica, sob o risco de ter de indenizar a parte
contrária. Neste sentido, novamente nos recorremos das lições de Fernando Noronha3:
“Aquelas situações de violação de deveres gerais de conduta que interessam aqui são as que acontecem no decurso da própria relação contratual. Ora, tais violações normalmente darão à contraparte um direito de indenização; todavia, como enfatiza o Prof. Antunes Varela, podem ‘dar mesmo origem à resolução dos contratos ou a sanção análoga’”.
O autor ainda menciona que o descumprimento dos deveres de conduta
oriundos da boa-fé objetiva pode invalidar o próprio negócio jurídico, sendo hipótese
de responsabilidade pré-contratual. Todavia, pretendemos nos focar sob as relações
de longo prazo, vez que frequentemente são as que podem ser utilizadas como
exemplo para observação do dever de mitigação dos prejuízos, como se observará
com mais detalhes no próximo tópico.
1 NORONHA, Fernando. Op. Cit. p. 162. 2 Como muito bem assinala a professora Judith Martins-Costa, podem também se destacar: a) os deveres de cuidado, previdência e segurança; b) os deveres de aviso e esclarecimento; c) os deveres de informação; d) o dever de prestar contas; e) os deveres de colaboração e cooperação; f) os deveres de proteção e cuidado coma pessoa e o patrimônio da contraparte; g) os deveres de omissão e segredo. (MARTINS-COSTA, Judith. Op. Cit. p. 439). 3 NORONHA, Fernando. Op. Cit. p. 164.
36
4 O DEVER DE MITIGAÇÃO DOS PREJUÍZOS E O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
OBJETIVA
Após breves pinceladas necessárias a respeito da natureza e influência do
princípio constitucional da solidariedade na aplicação e positivação do princípio da boa-
fé objetiva, o momento é fértil para retratar o panorama nacional em relação ao dever
de mitigação dos prejuízos. Em um primeiro momento, destacaremos de forma muito
breve as origens do instituto para, em seguida, demonstrarmos como ele vem sendo
aplicado pela doutrina e tribunais nacionais e qual a sua relação com a solidariedade
constitucional e a boa-fé objetiva.
4.1 ANÁLISE HISTÓRICA
Primeiramente, é necessário destacarmos a preciosa tese desenvolvida por
Christian Sahb Batista Lopes1 para obtenção do grau de doutor em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais, que discorreu sobre “A mitigação dos
prejuízos no direito contratual”, que aborda o tema proposto neste artigo, de modo
muito mais aprofundado e detalhado, ao passo que ela foi o guia condutor das
seguintes reflexões.
Dito isso, o dever de mitigação dos prejuízos é um instituto há muito tempo
utilizado pelos países de tradição jurídica da Common Law2, como os Estados
Unidos da América e a Inglaterra3. Neste sentido, além de ter sido adotado nas
legislações domésticas, este instituto jurídico se evidenciou ainda mais quando, com
o intuito de uniformizar o direito dos contratos internacionais de compra e venda, a
Organização das Nações Unidas (ONU), através da sua comissão responsável por
1 LOPES, Christian Sahb Batista. A mitigação dos prejuízos no direito contratual (Tese de doutorado). 2011. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/BUOS-8MQG8H/tese___christian_s_b_lopes___a_mitiga__o_dos_preju_zos_no_direito__contratual.pdf?sequence=1> Acesso em: 25 mai. 2013. 2 “Many common Law systems recognize the principle that a party must mitigate its loss. Civil law systems offer no uniform approach for reducing damages because of failure of aggrieved parties to use reasonable efforts to mitigate their loss. However, civil law countries often achieve the same result as their common law counterparts by refusing to award damages if the aggrieved parties’ losses were caused by their reckless attitude, or by reducing damages in accordance with the extent of the aggrieved parties’ fault.” (KRÖLL, Stefan; MISTELIS, Loukas; VISCASILLAS, Pilar Perales. UN Convention on Contracts for the International Sale of Goods (CISG). C. H. Beck: München, 2011. p. 1033-1034.) 3 LOPES, Christian Sahb Batista. Op. Cit. p. 21-22.
37
regular o comércio internacional (UNCITRAL1), elaborou em 1980 a Convenção das
Nações Unidas sobre Compra e Venda de Mercadorias, também conhecida pela sua
sigla em inglês, CISG2. Esta Convenção adotou expressamente o dever de
mitigação dos danos em seu artigo 773.
4.2 O DEVER DE MITIGAÇÃO DOS PREJUÍZOS E SUA MANIFESTAÇÃO COMO
UM DEVER ACESSÓRIO DE CONDUTA
Deste modo, a doutrina estrangeira, tendo como baluartes Peter Schlechtriem e
Ingeborg Schwenzer4, discorre sobre o dever de mitigação dos prejuízos como sendo
uma expressão do princípio geral da boa-fé no comércio internacional.
Neste ponto, Christan Lopes realiza uma pequena digressão em sua tese
acerca da natureza jurídica do instituto, e apontou este como um ponto controverso
e que, ainda que não unânime, a doutrina dos países de common law vem
considerando o instituto como uma norma de mitigação, consistente em limitar à
reparação das perdas e danos suportados pelo credor, ao lado da previsibilidade e
incerteza5. Na sequência, sustenta ser a mitigação dos prejuízos um ônus6
decorrente da boa-fé objetiva7, tendo sempre se fundamentado sob a perspectiva da
1 Sigla em inglês para United Nations Commission on International Trade Law. 2 FELEMEGAS, John. The United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods: Article 7 and Uniform Interpretation. Disponível em: http://cisgw3.law.pace.edu/cisg/biblio/felemegas.html Acesso em: 17 nov. 2012. 3 De acordo com a redação oficial em inglês do artigo 77 da Convenção: “A party who relies on a breach of contract must take such measures as are reasonable in the circumstances to mitigate the loss, including loss of profit, resulting from the breach. If he fails to take such measures, the party in breach may claim a reduction in the damages in the amount by which the loss should have been mitigated.” Disponível em: < http://www.uncitral.org/pdf/english/texts/sales/cisg/CISG.pdf> Acesso em: 01 jun. 2013. 4 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Commentary on the UN Convention on the International Sale of Goods (CISG). 3rd edition. Oxford, University Press, 2010. p. 1042. 5 “Segundo tais doutrinadores, a norma de mitigação não impõe um verdadeiro dever, pois o devedor não dispõe de mecanismo para impor que o credor adote mecanismos razoáveis para evitar os prejuízos, A conduta do credor não é, portanto, exigível como ocorreria com um dever. Se o credor não adota a conduta conforme a norma de mitigação, a consequência será a impossibilidade de ser indenizado pelos danos que poderiam ter sido evitados.” (LOPES, Christian Sahb Batista. Op. Cit. p. 179) 6 “(...) embora a norma de mitigação imponha ao credor a observância de uma conduta, o devedor não tem direito subjetivo a que o credor aja para minimizar os prejuízos. Não se pode dizer que a mitigação é uma prestação devida pelo credor ao devedor e, portanto, este não poderá demandar que o credor adote esforços razoáveis para reduzir os danos, seja por execução específica ou pelo sucedâneo de perdas e danos.” LOPES, Christian Sahb Batista. Ibid. p. 181. 7.“(…) ao introduzir no ordenamento jurídico o comando de que o credor adote os esforços razoáveis para mitigar os danos, as despesas decorrentes de tais esforços passarão a ser consideradas como consequências do inadimplemento e, desta forma, integrarão o valor a ser ressarcido pelo devedor. É, portanto, imperativa a conclusão de existir no Brasil a norma de mitigação dos danos decorrentes do inadimplemento, extraída dos quadrantes da boa-fé objetiva prevista no artigo 422 do Código Civil, em razão da qual fica o credor impedido de ser indenizado por danos que poderia ter evitado com esforços razoáveis.” (LOPES, Christian Sahb Batista. Ibid. p. 153)
38
da análise econômica dos contratos, bem como de sua maior eficiência ao contrato
de maneira global.
Registre-se aqui que concordamos com o posicionamento do autor em relação
à importância do instituto como instrumento de redução dos custos globais do contrato
e até mesmo os custos de um eventual inadimplemento, todavia entendemos que mais
do que tornar o contrato eficiente, a mitigação dos prejuízos seria uma consequência da
própria essência da cooperação e solidariedade que emanam da ideia de contrato, qual
seja, a de acumular interesses para promover a circulação de riquezas através deste
instrumento jurídico.
Assim, embora não tenhamos a pretensão e nem dominemos os aspectos
dogmáticos a ponto de poder precisar com maestria a exata natureza jurídica do
instituto, nos limitaremos a considerá-lo como uma manifestação dos deveres
acessórios de conduta, na esteira do posicionamento do Superior Tribunal de
Justiça, em julgado paradigma a respeito do tema1:
“DIREITO CIVIL. CONTRATOS. BOA-FÉ OBJETIVA. STANDARD ÉTICO-JURÍDICO. OBSERVÂNCIA PELAS PARTES CONTRATANTES. DEVERES ANEXOS. DUTY TO MITIGATE THE LOSS. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO. INÉRCIA DO CREDOR. AGRAVAMENTO DO DANO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. RECURSO IMPROVIDO. (...) a relação obrigacional deve ser desenvolvida com o escopo de se preservarem os direitos dos contratantes na consecução dos fins avençados, sem que a atuação das partes infrinja os preceitos éticos insertos no ordenamento jurídico. Com esse entendimento, avulta-se o dever de mitigar o próprio prejuízo, ou, no direito alienígena, duty to mitigate the loss: as partes contratantes da obrigação devem tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano não seja agravado. Desse modo, a parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano, pois a sua inércia imporá gravame desnecessário e evitável ao patrimônio da outra, circunstância que infringe os deveres de cooperação e lealdade.” (GRIFO NOSSO)
Além deste precedente do STJ, outros tribunais já vêm aplicando o dever de
mitigação dos prejuízos, com destaque para um precedente do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul2, que, ao julgar procedente o apelo da ré, desmantelou o pedido de danos
1 Superior Tribunal de Justiça. REsp 758.518/PR, 3ª T., j. 17.06.2010, rel. Min Vasco della Giustina, DJe 01.07.2010. 2 “Ora, ainda que se pudesse admitir valor nominal relativo a revés material, a autora negligenciou em tomar medidas preventivas – realocação funcional de empregados, venda ou aluguel de equipamentos adquiridos e comunicação anterior com a ré – razão por que a parte ré poderia pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que poderia ter sido diminuída pela autora. Portanto, a mitigação do próprio prejuízo constitui um dever de natureza acessória – dever decantado da boa-fé objetiva – e que orquestra o agir negocial dos contratantes.” (GRIFO NOSSO) (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. ApCiv nº 7002.5267683, 5ª Cam. Civ, j. 18.02.2009, rel. Des. Umberto Sudbrack.)
39
emergentes e lucros cessantes da requerente, que alegou que a rescisão unilateral do
contrato da ré, em tempo anterior ao previsto em contrato, deveria gerar o direito a
pleitear tais indenizações. De maneira muito bem desenvolvida, o relator entendeu ter
sido regular o rompimento do contrato pela ré e que os pedidos da requerente eram
infundados, pois careciam de nexo causal, ao passo que pela regularidade da conduta da
ré, a requerente deveria ter agido de “forma razoável, dentro da realidade circundante, de
modo a mitigar o prejuízo. Ou seja, impõe-se à parte requerente o dever de provar que
tomou todas as medidas cabíveis para evitar o prejuízo experimentado.”
Em consonância com o posicionamento adotado pelos tribunais e
adentrando o teor dogmático do instituto, Christian Lopes1 comenta sob a
perspectiva do direito de origem consuetudinária, que também é pertinente ao nosso
ordenamento, que, “em matéria contratual, a reparação das perdas e danos
suportadas pelo credor comporta três limitações: imprevisibilidade, incerteza e
evitabilidade”. Assim, a mitigação dos prejuízos se enquadra dentro da limitação
concernente a evitabilidade2, como exemplifica o autor:
“(...) a limitação de evitabilidade se aplica também quando o credor poderia ter evitado os danos, mas não tomou as medidas apropriadas para tanto. (...) A indenização é calculada como se o credor tivesse mitigado os danos. Como afirmaram Corbin e Perillo, a parte prejudicada por um adimplemento contratual não pode simplesmente quedar-se inerte e permitir que os danos se acumulem.” (GRIFO NOSSO)
O escopo da regra é que a parte credora não deve ser indenizada por
prejuízos evitáveis:
“O sentido em adotar tal regra é patente. Seu objetivo é evitar o desperdício de recursos econômicos que resultaria do fato de o credor prejudicado sofrer danos que poderia ter evitado por esforços razoáveis. Ao deixar que tais danos ocorram, o credor tira do mercado um recurso econômico que tem um valor social.”3
Portanto, como anteriormente visto, para Fernando Noronha os deveres
acessórios de conduta “têm como fundamento o princípio da boa-fé e, por isso, só
1 LOPES, Christian Sahb Batista. Op. Cit. p. 20-21. 2 O próprio autor ressalta em nota de rodapé que o termo “evitabilidade” é um neologismo criado para traduzir a palavra “avoidability”. (LOPES, Christian Sahb Batista. Ibid. p. 19) 3 LOPES, Christian Sahb Batista. Ibid. p. 20-21.
40
são identificáveis em cada caso concreto – e, normalmente, só podem ser
apontados depois de haverem sido violados, provocando danos.1”
É neste contexto, enfim, que se localiza o dever de mitigação dos prejuízos, que
aqui procuramos analisar. Sob uma perspectiva sucinta da construção do dever de
mitigação, devemos considerar as raízes constitucionais do princípio da boa-fé objetiva
fundadas na solidariedade constitucional e no respeito à dignidade da pessoa humana,
que, como consequência, se materializam especificamente nas relações jurídicas
obrigacionais através dos deveres que ambas as partes da relação tem de agirem com
probidade, lealdade e de forma cooperada. Nesta evolução, em um ordenamento
permeado por tais valores, a sociedade, os operadores do direito e a própria lei não
poderiam deixar de observar em determinados casos um dever do credor em mitigar os
prejuízos evitáveis, sob pena de preclusão do seu direito ao ressarcimento de tais
prejuízos. Como arremate desta ideias, lúcidas são as palavras de Christian Lopes:
“Enfim, em uma sociedade que adota a cooperação como valor, a conduta leal e correta do credor diante do descumprimento contratual será empregar esforços razoáveis para reduzir os danos decorrentes do inadimplemento e não deixar que prejuízos ocorram.2”
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em virtude da necessária delimitação do tamanho deste artigo não se
pretendeu esgotar o tema, mas apenas apresentar observações acerca do
desenvolvimento, e por que não, modernização do princípio da boa-fé objetiva, sob o
enfoque da influência constitucional na interpretação e aplicação do princípio, que
mesmo antes de sua positivação já vinha sendo aplicado, e desta sua nova faceta que
é o dever de mitigação dos danos como um dever acessório derivado da cooperação e
lealdade que devem existir entre as partes.
Considerando estes breves apontamentos, é possível concluir, ainda que de
maneira superficial, que as relações jurídicas são e devem ser permeadas pela boa-fé
objetiva, considerando o caráter cogente da norma, ou seja, uma norma de ordem
pública3. Neste sentido, é ímpar a importância da Constituição Federal de 1988, ao
1 NORONHA, Fernando. Op. Cit. p. 162. 2 LOPES, Christian Sahb Batista. Op. Cit. p. 149. 3 A boa-fé objetiva, como princípio vinculante aos contratos, previsto no artigo 422 do Código Civil, deve ser observada em todas as fases contratuais, sob pena de incursão em ato ilícito como preceituado no artigo 187 da lei. Desta forma, a partir de
41
passo que desde sua promulgação a doutrina e a jurisprudência vêm se consolidando
no sentido de ampliar o conceito e a aplicabilidade da boa-fé objetiva. Foi a partir deste
ponto que o ordenamento jurídico pátrio conseguiu visualizar a positivação de dois
princípios que, mesmo já concebidos doutrinariamente e observados pelos tribunais,
ainda careciam de resguardo constitucional, sendo eles a solidariedade e a dignidade
da pessoa humana.
Desde então os contratos se alteraram e a autonomia privada passou a ser
condicionada, pois não mais fazia sentido acordar sem guardar condutas mínimas que
pudessem refletir-se positivamente para a sociedade, de modo que o contrato passou a
ser concebido como fenômeno jurídico com uma função social, e para isso, as partes
necessariamente deveriam agir sob certos parâmetros. Esses parâmetros, também
conhecidos como “Standards” de conduta são derivados da boa-fé objetiva e
comumente são considerados os deveres de lealdade, cooperação e informação.
Entretanto, e agora podemos caminhar para o desfecho deste trabalho, estes
parâmetros de conduta, que na verdade são deveres para as partes, não são restritos e
devem sempre ser interpretados e aplicados ao caso concreto em conformidade com o
negócio jurídico em análise.
Assim, é neste momento que surge o dever de mitigação dos danos do credor de
minimizar seu próprio prejuízo, em que o direito civil passou a impor para figuras antes
intocáveis, como o credor de uma obrigação, condutas de minimização do risco e dos
danos já produzidos pelo seu devedor. Vislumbra-se, pois, uma imposição dos princípios
constitucionais da solidariedade e da dignidade humana nas relações jurídicas privadas,
como forma de harmonizar uma sociedade em que o privado não mais pode ser visto
como o individual, mas antes, como uma expressão da vida em sociedade e da sua
colaboração com o próximo, uma transformação claramente alavancada pelos preceitos
constitucionais.
uma interpretação sistemática e teleológica da legislação, é possível observar o princípio como uma norma de ordem pública tal como prevista no parágrafo único do artigo 2.035 do Código Civil que assim elenca: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
42
REFERÊNCIAS
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LOPES, Christian Sahb Batista . A mitigação dos prejuízos no direito contratual (Tese de doutorado). 2011. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/BUOS-8MQG8H/tese___christian_s_b_lopes___a_mitiga__o_dos_preju_zos_no_direito__contratual.pdf?sequence=1> Acesso em: 25 mai. 2013.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
43
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NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. ApCiv nº 7002.5267683, 5ª Cam. Civ, j. 18.02.2009, rel. Des. Umberto Sudbrack. SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Commentary on the UN Convention on the International Sale of Goods (CISG). 3rd edition. Oxford, University Press, 2010.
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UNITED NATIONS. United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods (1980). NY: United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL), 1980.
44
O SISTEMA CODIFICADO DE RESPONSABILIDADE CIVIL:
PROBLEMAS E PERSPECTIVAS
André Luiz Arnt Ramos
1 Introdução
“A vigência de um Código Civil é fato de primordial relevância no
ordenamento jurídico de um país, provocando alterações de sentido em todos os
quadrantes do Direito, mesmo nos que têm menor vinculação com ele”1. A este fato
de singular relevância jurídica, segue-se, naturalmente, período de ampla discussão
doutrinária e jurisprudencial acerca da hermenêutica dos novos institutos2, de modo
a delinear a extensão de sua aplicabilidade.
O surgimento de uma codificação no seio daquilo que se convencionou
chamar de era das descodificações demanda, para além de discussões técnicas e
da busca de suas raízes históricas e sociológicas3, uma análise idônea da filosofia
que lhe dá sustentação, especialmente para uma boa compreensão da metamorfose
da responsabilidade civil no seio do modelo codificado e calcado em cláusulas
gerais.
A avaliação deste pano de fundo filosófico, contudo, depende de breve, ainda que
grosseira, contextualização histórica do problema que se pretende tratar.
1 REALE, Miguel; e MARTINS-COSTA, Judith (Coords.). História do novo código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.11. 2 VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafel Villar; e NASSER, Paulo Magalhães (Coords.). 10 anos do código civil: desafios e perspectivas. São Paulo: Atlas, 2012, p.xii. 3 Sobre estas, vide o magnífico trabalho de Orlando Gomes: GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
45
2.2. O sustentáculo filosófico do sistema de responsabilidade civil
codificado
Sabe-se que, com o refinamento das relações sociais propiciado pela
primazia do comércio emergente sobre os laços de interdependência, característicos
da sociedade feudal, fez-se necessária a estruturação de uma nova ordem jurídica,
que assegurasse certo grau de certeza quanto às regras do jogo, estabelecidas a
partir de um poder central4. É que o pluralismo jurídico, expresso pelos
corporativismo e integralismo religiosos medievais5, já não mais dava conta dos
anseios da nascente sociedade fundada na troca. Abandonou-se, então,
paulatinamente, a dubiedade inerente a este pluralismo, em prol dos “juízos lógicos
com pretensão a verdades científicas absolutas”6.
Formularam-se, neste cenário, as doutrinas jurídicas renascentistas, que
“procuram explicar o mundo humano tão-somente segundo exigências humanas”7, a
partir das quais se desenvolveu o pensar contratualista – já que “é da autonomia do
indivíduo que vai resultar a lei”8 –, donde adveio, grosso modo, a construção do
Estado Absoluto, que consolida o monismo jurídico exigido pela nova dinâmica
social, buscando, no livre e racional exercício da ação humana, a legitimidade de
que dependem os mandos e desmandos produzidos pela vontade do Soberano. O
Direito, então, divorcia-se da moral e da justiça concreta, para se aproximar da
certeza e da justiça abstrata. Torna-se, pois, instrumento de concretização dos
interesses do indivíduo moderno9.
Até aqui, o fenômeno jurídico revela-se dotado de generalidade, mas ainda passa
ao largo da universalidade10, que veio a se consolidar, definitivamente, com a Ilustração,
especialmente através da epistemologia de KANT. Este notável pensador subsidiou o
apaziguamento da secular querela entre racionalistas e empiristas, ao revelar que “a
única metafísica que faz jus à racionalidade humana deve ser, simultaneamente,
4 CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp.22 e 60. 5 GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Tradução de: Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.42. 6 SILVA, Ovídio A. Barista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 3ª Ed., revista. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.98. 7 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20ª Ed, 8ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2010, p.644. 8 REALE, Miguel. Filosofia do direito..., p.646. 9 VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de: Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.720. 10 “Se a razão humana é universal, se qualquer um pode fazer uso de sua razão, então o direito deve ter a forma de princípios claros, evidentes, compreensíveis por qualquer um” (LIMA LOPES, José Reinaldo de; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo; ACCA, Thiago dos Santos. Curso de história do direito. 2ª Ed., revista e ampliada. São Paulo: Método, 2009, p.190).
46
empirista e racionalista”11. O eixo central da gnosiologia kantinana consiste na sólida
afirmação de que determinados princípios fundamentais das ciências podem ser
estabelecidos a priori, a partir das formas do conhecimento humano12, “recipientes vazios
que a experiência vai preenchendo com conteúdos concretos”13. A natureza – materialiter
spectata – ou “o conjunto total dos fenômenos”14 é complexa e caótica. O sujeito do
conhecimento, a partir do sistema de leis a priori da mente – formas do espaço e do
tempo15 – a sistematiza, organizando-a segundo as formas que condicionam o perceber
humano.
Todo conhecimento humano, então, envolve a aplicação dos conceitos à
experiência. Desta assertiva, decorre o entendimento de que a percepção humana
da realidade não a pode esgotar, porquanto o objeto do conhecimento pode ter
dimensões que escapam às formas do conhecimento humano. O noumeno – a
essência – das coisas é, portanto, inatingível. Pode-se, apenas, chegar ao
conhecimento do fenômeno, ou seja, o modo com que as coisas se nos apresentam16. “Assim, o que conhecemos não é o real ou a ‘coisa em si’, mas sempre o real em
relação ao sujeito do conhecimento”17.
Estas premissas epistemológicas, consagradoras da subjetividade formal universal18, foram absorvidas pela pandectística alemã, reconhecidamente responsável pela
sistematização do direito alemão a partir da recuperação dos institutos romanos
Justinianeus e, decididamente, principal inspiração da vigente codificação civil brasileira.
Sedimentou-se, a partir dos autores pandectistas, a noção de que “cada problema jurídico
deve encontrar uma resposta certa, que irá decorrer de premissas certas, que, no caso,
são as proposições que refletem as regras do direito”19 – e essas premissas são
abarcadas pelo próprio sistema, traduzidas em formas aprioristicamente fixadas pelo
ordenamento jurídico20.
11 Tradução livre. No original: “(…) the only conceivable metaphysics that could commend itself to a reasonable being must be both empiricist and rationalist at once” (SCRUTON, Roger. A short history of modern philosophy. 2a Ed. Londres: Routledge, 2002, p.139). 12 SANTOS, Mário Ferreira dos. Teoria do conhecimento (gnosiologia e criteriologia). 3ª Ed. São Paulo: Logos, 1952, p.75. 13 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de João Vergílio G. Cutter. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.46. 14 MERCADANTE, Paulo. A coerência das incertezas: símbolos e mitos na fenomenologia histórica luso-brasileira. São Paulo: É realizações, 2001, p.178. 15 KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft. Hamburg: Felix Meiner, 1952, p.66-68 e 74-75. 16 SCRUTON, Roger. A short history of modern philosophy…, p.147. 17 FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica. São Paulo: LTr, 2001, p.62. 18 FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica..., p.61. 19 CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas..., p.66 20 Daí a valiosa crítica, introduzida no país pelo Prof. Luiz Edson Fachin, de que “Essa eleição de caminho pelo viés tradicional tem importância, posto que transmite ordem de conceitos destinada a solver, de antemão, os problemas fundamentais, e, desse modo, propõe a criar corações e mentes aptos a compreender o Direito Civil. Porém, essa via pode ser
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Os sistemas codificados inspirados pela Escola das Pandectas, então,
delineiam, conceitualmente, as categorias fundamentais a partir das quais operam –
fundamentalmente, sujeito de direito, direito subjetivo e negócio jurídico21, além de
ato ilícito – e atribuem consequências à conformação de cada uma delas no mundo
dos fatos. Assim, por exemplo, a conceituação jurídica de ato ilícito, entabulada
pelos artigos 186 e 187, do Código Civil: “aquele que, por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda
que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, sendo que “também comete ato ilícito
o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos
pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Adiante, na
parte especial (artigo 927, da vigente codificação civil), o próprio sistema atribui
consequências jurídicas à prática de atos ilícitos: “aquele que, por ato ilícito (arts.
186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
O operador do direito vê através das lentes do jurídico, aplicando, ao mundo dos
fatos, as formas conceituais afixadas pelo ordenamento – de que são exemplos os
referidos artigos 186 e 187 do Código Civil –, consolidando, ademais, consequências
sintéticas a priori – no âmbito da responsabilidade civil subjetiva, mediante o aludido
artigo 927, caput. Daí se falar que o Direito se consolida como uma “ciência
generalizante, uma ciência das normas e das verdades eternas”22.
2 A divisão entre parte geral e parte especial
“Quando o sistema de Direito Civil se erige, cria um conjunto de categorias
congruentes com aquele momento histórico e tende a colocá-las para valerem
perpetuamente”23. Este conjunto de categorias, que congloba os fundamentos do sistema
de Direito Civil, consiste na Parte Geral, que pode ser codificada – tornando-se, assim, a
parte geral mais do Código que do Direito Civil – ou não – podendo concretizar-se, tão-
somente, como a parte geral do Direito Civil.
falaciosa. De um lado, porque aprisiona a realidade aos conceitos; de outro, porque reduz o Direito civil às questões de esgrima positivista, de habilidade no decifrar de axiomas e na escolha do que está, previamente, eleito”. (FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. 3ª Ed., revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p.99). 21 CANARIS, Claus-Wilhelm. Funções da parte geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade. FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977. v. II. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p.37. 22 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica..., p.107. 23 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil..., p.67.
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A parte geral compreende as formas do pensar jurídico, “os ângulos e parâmetros
do sistema” e os “termos adequados às distintas configurações jurídicas”24. Conforma-se,
portanto, como um centro intelectual do sistema de Direito Civil25, donde brotam as
soluções abstratamente cominadas a problemas concretos.
A forma legislada, essencialmente rija, parecia ruir diante das críticas
embasadas nas alterações da realidade subjacente à codificação26. Nada obstante,
o próprio sistema parece ter se ductilizado, autoperpetuando-se através de suas
aberturas, as cláusulas gerais27, que lhe conferem operabilidade. No vigente Direito
Civil codificado, as respostas, malgrado prévias às perguntas, sujeitam-se a
mudanças, conforme os condicionantes culturais a que se submete o intérprete. As
verdades encampadas pela codificação de 2002, então, não se pretendem eternas,
mas conjunturais, adequando as exigências do Direito às da sociedade28.
Assim que, no trato sistemático da responsabilidade civil, o Código traz, ao lado
do ainda predominante modelo de responsabilidade subjetiva, cláusula de abertura à
responsabilidade objetiva, entabulada no parágrafo único do artigo 927: “haverá
obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em
lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por
sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
Destarte, o jurídico codificado mantem-se como sistema, sem prejuízo da
maleabilidade que dele exigem as mudanças ocorridas na realidade concreta. A parte
geral legislada, ao consolidar as formas a priori da racionalidade jurídica, mantém o
sistema coeso e operável, malgrado aberto às mutações percebidas pela experiência
jurídica29.
24 REALE, Miguel; e MARTINS-COSTA, Judith (Coords.). História do novo código civil..., p.85. 25 CANARIS, Claus-Wilhelm. Funções da parte geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade..., p.37. 26 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil..., p.67. 27 Cuja virtude consiste em sua aptidão a, segundo os critérios valorativos encampados por princípios eleitos pelo ordenamento jurídico, gerar “pontos de erupção de equidade”, viabilizando a concreção de uma justiça individualizadora, in concreto, ao lado da justiça generalizadora, abstratamente cominada pelo sistema de direito. A inclusão de cláusulas gerais em sistemas predominantemente imóveis representa “compromisso particularmente feliz entre os diversos postulados da ideia de Direito (...) e equilibra a ‘polaridade’ deles numa solução ponderada e ‘intermediária’” (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Tradução de: A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, pp.141-145). 28 REALE, Miguel. Filosofia do direito…, p.314. 29 “A experiência jurídica, como tudo que surge e se desenvolve no mundo histórico, está sujeita a imprevistas alterações que exigem desde logo a atenção do legislador, mas não no sistema de um código, e sim graças a leis especiais, sobretudo quando estão envolvidas tanto questões de direito quanto de ciência médica, engenharia genética, etc.” (REALE, Miguel; e MARTINS-COSTA, Judith. História do novo código civil..., p.196). Para além da lição de Reale, tem-se, a toda evidência, que os hiatos codificados são, também, supridos pela atividade criativa da doutrina e da jurisprudência.
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A contundente crítica de CANARIS se põe como verdadeira, afinal “o
conhecimento a priori tem sempre, subjacentes, quadros mentais comunicados do
exterior”30, os quais são preenchidos pela natureza histórico-cultural do direito. Neste
sentido, também segue REALE:
“O caráter problemático da experiência jurídica (...) põe a exigência de sistematização, a qual se realiza (...) em virtude de um ‘processo de historização do sistema normativo’, graças aos atos de qualificação jurídica de quantos participam daquela experiência, legisladores, juízes e operadores do direito. Através dessas atividades constitui-se a ‘totalidade autoconsciente do direito’, como conjunto de formas e estruturas despersonalizadas e objetivadas, referidas a um sujeito anônimo, sobreordenado, estando, no entanto, tal conhecimento total do direito sempre em atraso em relação aos modelos jurídicos exigidos pelas novas emergências de valores, o que faz com que ‘o sistema, como conhecimento total permaneça sempre um problema para a ação”31.
A codificação, abstrata e formal, dialoga com a realidade concreta,
complementando-se a partir de cada ruptura determinada pela emergência de novas
situações32. E é a parte geral que garante a unidade científico-sistemática do
ordenamento33.
3 As críticas e a noção de relação jurídica fundamental
O modelo codificado – especialmente o cindido entre parte geral e especial –
é objeto de críticas de diversas matizes, especialmente quanto a sua estrutura
desconexa e heterogênea e quanto a seu teor despersonalizante.
“Zitelmann acusa todo o sistema das Pandectas de se não orientar por um só
critério unitário, mas, antes, por dois critérios distintos”34, porquanto alguns setores do
ordenamento – direitos de família e sucessões – atenderiam a fenômenos da realidade
fática, concreta; enquanto outros – direito das obrigações e das coisas – estariam
cindidos em categorias jurídicas, afeitas ao mundo do direito.
30 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito..., p.XVI. 31 REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1968, p.137. 32 CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas..., p.87. 33 CANARIS, Claus-Wilhelm. Funções da parte geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade..., p.32. 34 CANARIS, Claus-Wilhelm. Funções da parte geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade..., p.26.
50
NIPPERDEY e LARENZ, por seu turno, entendiam que ideia de parte geral
repousa sobre base essencialmente heterogênea35, pelo que se imporia sua rejeição
ou adoção mitigada.
Estas críticas, pelo que se expôs, não se revelam sustentáveis. Isso por que a
heterogeneidade quanto aos objetos é essencial a qualquer disciplina normativa
organizada: “a ‘Parte Geral’ de um Código Civil e o tratamento científico-sistemático
dos fundamentos gerais do Direito Civil prosseguem fins diversos (...), por isso, têm
objetos distintos”36. Com efeito, abandonar a parte geral sob o pretexto de que
diferentes setores do ordenamento atendem a fenômenos de diferentes ordens
implicaria a pulverização dos fundamentos gerais do Direito Civil por todas as searas
da parte especial. A problemática da parte geral, longe de ser resolvida, seria,
apenas, deslocada e, quiçá, potencializada por repetições desnecessárias e
possíveis contradições37.
Para além destes posicionamentos, salienta-se a crítica atinente à
despersonalização que o direito codificado em abstrato promoveria, ao ignorar
aspectos da realidade concreta, recortando apenas aqueles que lhe interessam.
Assim: “a forma pode sufocar a substância, quando continente e conteúdo se
apresentam dissociados, e da linguagem se faz fetiche”38. A existência de um
sistema previamente significado, calcado em pretensões de cientificidade e
neutralidade, exigiria certo distanciamento da realidade social, pelo que se imporia
uma maior abertura à “força normativa que emerge dos fatos, como resultado das
demandas sociais”39. A “apreensão jurídica do sujeito insular, abstrato, atemporal e
despido de historicidade, vincado por um antropomorfismo virtual, sem conexão
direta e imediata com a realidade histórica”40 deveria, portanto, ceder espaço à
pessoa humana, em toda sua concretude, inserta numa realidade contingente e
avessa à clausuras normativas abstratas.
35 CANARIS, Claus-Wilhelm. Funções da parte geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade..., p.27. 36 CANARIS, Claus-Wilhelm. Funções da parte geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade..., p.33. 37 A este propósito, ver: MONTEIRO, Antonio Pinto. A parte geral do código, a teoria geral do direito civil e do direito privado europeu. FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977. v. II. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p.64. 38 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil..., p.138. 39 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. A importância de uma teoria (geral) do Direito Civil. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado (Coord.). Manual de teoria geral do direito civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p.153. 40 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil..., p.98.
51
A parte geral do Direito Civil, especialmente em sua modalidade legislada,
seria, nesta ótica, fator de desumanização do jurídico41, o que se critica fortemente,
porquanto “a pessoa não precede ao conceito jurídico de si próprio, ou seja, só é
pessoa quem o Direito define como tal”42.
A esta contundente crítica, contrapõe-se – apesar de também coadunar-se – a
estrutura basilar da parte geral, bastante potencializada pela elevação da dignidade
humana a princípio fundamental da República, a relação jurídica fundamental43.
Sabe-se que o Direito Civil se constrói a partir da categoria da relação jurídica;
“edifica um sujeito (que há de ser capaz), define as possibilidades de um objeto (que
deve ser lícito), governa a forma (visibilidade do nexo), elege fatos (que, por serem
constitutivos de eficácia, são jurídicos) e, enfim, procura garantir a efetividade na
satisfação dos interesses em jogo”44. A crítica personalista centra-se no fato de que o
Direito Civil despe a pessoa humana de sua concretude e a enfurna na categoria de
sujeito, que é mero elemento da relação jurídica45, ao lado dos conceitos, igualmente
abstratos, de objeto, fato e garantia.
O contraponto encarnado na aludida noção de relação jurídica fundamental
consiste no fato de que “o pressuposto básico de toda relação jurídica entre duas ou
mais pessoas é seu recíproco reconhecimento como tal, que (...) determina que
nenhum está submetido ao outro”46. Cada pessoa “titula a pretensão jurídica de respeito
de seus semelhantes e, reciprocamente, está obrigada a respeitar os demais”47; a “agir
de forma a tratar a humanidade, quer em si, quer em outrem, nunca apenas como um
meio, mas também como um fim”48.
Respeitar a si mesmo e respeitar os demais, então, são consequências de um
mesmo princípio da razão prática kantiana – que complementa a razão pura,
influenciadora da estruturação abstrata do sistema jurídico, outorgando-lhe
concretude. A razão pela qual cada pessoa deve ter sua dignidade respeitada não
se deve, portanto, às qualidades particulares de cada um. Antes, diz respeito a todos 41 CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites. 2ª Ed. Coimbra: Centelha, 1981, p.60. 42 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil..., p.102. 43 LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de etica juridica. Tradução de: Luis Díez-Picazo. Madrid: Civitas, 1993, p.56. 44 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil..., p.52. 45 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7ª Ed. revista, modificada e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.197. 46 Tradução livre. No original: “el pressupuesto básico de toda relación juridica entre dos o más personas es su recíproco reconocimento como tales, que (...) determina que ninguno está sometido al outro”. LARENZ, Karl. Derecho justo…, p.55. 47 Tradução livre. No original: “Todo hombre tiene uma pretensión jurídica al respeto de sus semejantes y reciprocamente está obligado a respetar a los demás”. LARENZ, Karl. Derecho justo…, p.56. 48 Tradução livre. No original: “Act in such a way that you always treat humanity, whether in your person or in the person of any other, never simply as a means, but always at the same time as an end”. KANT, Immanuel. Groundwork for the metaphysics of morals. Tradução de: H. J. Paton. Nova Iorque: Harper Torchbooks, 1964, p.429.
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os seres humanos, de maneira universal49. O respeito à dignidade humana, pois,
precede o reconhecimento constitucional e sua consequente elevação ao patamar
de princípio fundamental da República, mas é amplamente reforçada por esta
ocorrência, especialmente num cenário em que a constitucionalização do direito
privado está bastante em voga50.
Sujeito de direito, enquanto categoria jurídica, é um conceito, “um ente lógico
despojado de seu conteúdo material”51. Remanesce, portanto, como elemento de
configuração da relação jurídica, que é forma, mas não se despe, no diálogo entre
direito e realidade, de sua concretude. Desnivela-se, portanto, dos demais, dada a
dignidade subjacente à pessoa humana e sua conseguinte pretensão e obrigação de
respeito a si e aos demais.
4 O sistema codificado de responsabilidade civil
A acepção de relação jurídica fundamental importa à responsabilidade civil
porque esta é uma espécie de obrigação – e obrigação, como se sabe, é “relação
jurídica de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto
consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo
primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio”52
(grifou-se). Seu elemento especificador consiste no concurso de variados elementos
para sua configuração, todos aprioristicamente fixados pelo ordenamento: dano, ato
ilícito ou risco reconhecido em lei e nexo de causalidade53. Em última análise,
contudo, o dever de reparar é consequência de lesão, culposa ou não – nos casos
admitidos em lei ou abrangidos pelo aludido parágrafo único do artigo 927, do
Código Civil – ao dever de respeito recíproco encampado pela relação jurídica
fundamental.
49 SANDEL, Michael J. Justice: what’s the right thing to do?. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2009, p.125. 50 A respeito deste fenômeno, vide PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997; e MARKESINIS, Basil; e UNBERATH, Hannes. The German law of torts: a comparative treatise. Oxford: Hart Publishing, 2002, pp.28-32. 51 SANTOS, Mario Ferreira dos. Lógica e dialética: lógica, dialética e decadialética. São Paulo: Paulus, 2007, p.43. 52 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil brasileiro. v.4. São Paulo: Saraiva, 1979, p.8. 53 ALTHEIM, Roberto. Atribuição do dever de indenizar no direito brasileiro: superação da teoria tradicional da responsabilidade civil. Curitiba, 2006. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, pp.83-102.
53
Deste modo, nada obstante a alardeada crise dos pressupostos tradicionais da
responsabilidade civil54, surge dever de reparar sempre que um agir de determinado
sujeito penetrar na esfera jurídica de outrem de maneira intrusiva ou não consentida,
lesando, com isso seus interesses existenciais ou patrimoniais.
Esta ingerência indevida pode se dar de maneira culposa ou não. No primeiro
caso, fala-se em responsabilidade subjetiva, porquanto necessário perquirir, para fins
de atribuição do dever de indenizar, a condição anímica do sujeito ou a adequação de
sua conduta a um modelo abstrato de comportamento55. Na segunda hipótese, imputa-
se o dever de reparar àquele que, na exploração de atividade de risco, ainda que lícita,
gerar, a pessoa determinada, ônus maior que o suportado pela coletividade em virtude
da aludida atividade (Enunciado n. 38, da I Jornada de Direito Civil do Conselho da
Justiça Federal)56. Pouco importa, assim, o animus do sujeito lesante. Basta que se
configurem dano e nexo causal, cujas excludentes variam conforme a natureza da
atividade exercida57.
O nexo causal, diluído em inúmeras teorias explicadoras, não se presta, no
cenário atual, a suprir as aberturas sistêmicas propiciadas pela culpa objetiva –
calcada em modelos abstratos de conduta – e pelo expresso reconhecimento de
hipóteses de responsabilidade civil sem culpa. O ecletismo judicial na avaliação do
nexo de causalidade, somado à postura paternalista que marca o Poder Judiciário,
faz com que este pressuposto da responsabilidade civil apareça “não como um
elemento dogmático de caracterização precisa, mas como um espaço de
discricionariedade judicial a ser exercido em favor da conclusão ‘mais justa’ no caso
particular, quase sempre identificada com a integral reparação dos danos sofridos
pela vítima”58.
Destarte, o grande desafio que se coloca ao sistema codificado de
responsabilidade civil brasileiro é a seleção dos interesses merecedores de tutela,
de modo a abalizar, à falta de outro norte, o juízo de reparação civil.
Consoante se demonstrou, o atual sistema de responsabilidade civil opera a
partir de cláusulas gerais, ladeadas por disposições rígidas inspiradas por técnica
54 Vide SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. 55 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., pp.31-46. 56 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de (Coord.). Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2012, p.20. 57 PAULA, Carolina Bellini Arantes de. As excludentes de responsabilidade civil objetiva. São Paulo: Atlas, 2007. 58 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p.249
54
legislativa regulamentar. As primeiras, claramente predominantes, são, por
definição, vazias de conteúdo valorativo. Isto é: não trazem consigo o axioma pelo
qual devem se nortear59. O intérprete, portanto, deve avaliar o ordenamento de
maneira sistemática, a fim de identificar os valores, usualmente encarnados em
princípios, que devem nortear seu posicionamento. As disposições regulamentares,
por seu turno, têm âmbito de aplicação bastante limitado, dentro dos quais não são
substituíveis60.
A conjugação destas duas técnicas à interpretação sistemática do
ordenamento e de seus pressupostos permite o fornecimento de respostas jurídicas
adequadas às demandas sociais por segurança jurídica e por justiça concreta, sem
prejuízo da unidade do sistema.
Problemas surgem, contudo, quando dois ou mais interesses juridicamente
relevantes entram em conflito e as balizas fornecidas pelo sistema não dão conta de
determinar a prevalência de um ou de outro no caso concreto. Diante destas
dificuldades, alguns clamam por maior regulamentação, mediante estruturação de
um sistema mais rígido, malgrado o direito comparado já ter desnudado a
impropriedade desta proposta, conforme se denota da experiência alemã, na qual
doutrina e jurisprudência se afastam, cada vez mais, da tipificação dos interesses
merecedores de tutela implementada pelo BGB, ainda que mitigada por grande
reforma ocorrida em 2002. Evidentemente, soluções enrijecedoras do sistema de
responsabilidade civil não se prestam a solver o drama da ausência de soluções
prévias, além de reservarem questões concretas ao âmbito de esgrimas positivistas61.
A melhor proposta de solução, outrossim, consiste em avaliar, à luz da relação
jurídica fundamental, se houve violação do respeito recíproco que deve imperar em todas
as relações intersubjetivas. Após, para fins de aferição do dano, segue-se a metodologia
proposta por SCHREIBER, a qual suscita a superação da visão estrutural e estática da
responsabilidade civil em prol de “autêntica comparação entre o merecimento de tutela
que o ordenamento jurídico reserva, em concreto, aos interesses da vítima e do pretenso
responsável”62.
59 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito..., p.142. 60 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito..., p.134. 61 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil..., p.99. 62 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., pp.163-164.
55
4 A seleção de interesses no sistema de responsabilidade civil codificado
Com a crise dos pressupostos tradicionais da responsabilidade civil, o
procedimento de triagem e aferição do dano ressarcível se coloca como último
mecanismo de contensão de demandas frívolas que batem às portas do Judiciário.
Por isso, é urgente a necessidade pelo estabelecimento de critérios idôneos ao
desenrolar deste procedimento, especialmente diante da inconstância dos Tribunais
em sua efetivação.
O primeiro aspecto a ser levado em conta é a observância do dever de
respeito recíproco demandado pela relação jurídica fundamental – a qual configura,
afinal, o elemento central do sistema de direito civil brasileiro. Se a alegada lesão
deriva de uma afronta ilegítima, intrusiva e não consentida, à dignidade de outrem,
tem-se um forte indicativo de que se está diante de uma hipótese ensejadora de
responsabilidade civil. Se não houve, nesta primeira análise, inobservância ao dever
universal de respeito, prossegue-se à etapa seguinte, a qual consiste em “verificar
se o interesse dito lesado (...) vem protegido por alguma norma do ordenamento
jurídico”63. É que, como se sabe, “interesses genericamente considerados só podem
ser levados em conta se puderem ser reconduzidos a enunciados normativos
explícitos ou implícitos”64. Assim, se houver norma jurídica protetiva ao interesse
lesado, prossegue-se à próxima etapa. Caso contrário, não há dano ressarcível.
À mesma análise que se fez do interesse da vítima deve se submeter o
interesse do lesante. Destarte, se a conduta lesiva for vedada pelo ordenamento
jurídico, o dano gerado poderá ensejar reparação. Se, por outro lado, não houver
proibição ou o interesse do lesante for, também, protegido pelo Direito, prossegue-
se à verificação da existência de norma jurídica determinadora de prevalência entre
os interesses conflitantes65. Nesta análise, entram em cena os variados critérios
hermenêuticos de afastamento de conflitos aparentes: norma posterior prevalece
sobre norma anterior (critério cronológico); norma especial prevalece sobre norma
geral (critério da especialidade); e norma superior prevalece sobre norma inferior
(critério hierárquico). Acaso um dos interesses possa ser afastado mediante
aplicação destes critérios interpretativos, a lesão intrusiva e não consentida a 63 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p.162. 64 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.97. 65 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., pp.163-164.
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interesse de determinada pessoa pode configurar dano ressarcível, dependendo,
apenas, da existência de lesão concreta. Diferentemente, se o conflito permanecer,
segue-se a derradeira etapa: a ponderação judicial dos interesses contendentes,
“definindo a relação de prevalência ente eles, com base na leitura das circunstâncias
concretas à luz do ordenamento jurídico”66.
Este juízo de avaliação, deflagrado pela lesão ao dever de respeito recíproco
abarcado pela relação jurídica fundamental, para se tornar efetivo instrumento de
justiça e segurança, condiciona-se a releitura das funções do juízo de reparação
civil, que deve se despir de quaisquer pretensões punitivas para se manter, tanto
quanto possível, fiel à reparação do dano efetivamente suportado pela vítima em
virtude de uma conduta realmente atribuível àquele que se tem por autor do dano.
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