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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC SP
Dílson Wrasse
Análise reconstitutiva do sentido da dialética em Lev Vigotski
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2017
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC SP
Dílson Wrasse
Análise reconstitutiva do sentido da dialética em Lev Vigotski
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção de título de Doutor em
Psicologia Social, sob a orientação da
Profa. Dra. Bader Burihan Sawaia.
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2017
BANCA EXAMINADORA
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Agradecimentos
Agradeço aos/às amigos/as do Núcleo de Pesquisa Dialética de Exclusão/Inclusão
Social que me proporcionaram tantas alegrias instigantes para aprender mais.
Agradecimento especial à Elisa que sempre teve a paciência de me ouvir e me
apoiar nesta empreitada. À Flávia, pelas boas conversas.
Agradeço à Professora Bader Sawaia pela coragem e disposição – eu poderia ter
procurado mais para entender melhor.
Aos colegas do Programa de Psicologia Social e em especial ao Tiago que tão
generosa e insistentemente nos ensina a crítica crítica crítica.
Aos professores da banca: Odair Furtado, Luís do Nascimento, Daniele Nunes e
agradecimento especial à professora Maria do Carmo pelos manuscritos.
Ao filósofo Eduardo Gross que tão generosamente se dispôs a se aventurar nesta
área.
Aos meus amigos que me perguntam pelo porquê de tanto esforço para o estudo
neste momento.
A minha irmã Sônia e ao meu cunhado Walmor – vocês são especiais!
À professora Maria Mascarello (in memoriam) um agradecimento pela sua
existência. Depois de uma tese entendi a sua posição de educadora dialética. Foi
uma admiradora de Feuerbach – somente agora entendi a educação pela pedra.
As perguntas não cessam e descobri que é melhor não se ater muito a elas.
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela
bolsa concedida e que tornou possível a realização desse sonho.
Aos meus filhos – Gabriela e Frederico - que talvez entendam um dia este esforço.
Nestes tempos, muitas vezes, não estive presente como deveria.
A você que sempre foi companheira e que compreendeu silenciosamente minhas
inquietações, minhas alegrias, minhas dores e meus anseios. Aqui ofereço o que
sou. Seu nome é Regina.
A minha mãe que não entende as razões de um filho que se prende tanto às letras.
Obrigado a todas e todos!
RESUMO
Este trabalho analisa o conceito de dialética em Lev Semionovich Vigotski (1896-1934), considerando o conjunto de sua obra e os seus fundamentos gnosiológicos e epistemológicos para a construção de uma psicologia dialética.
Para isso, dividimos o trabalho em um capítulo inicial seguido de três partes: no capítulo inicial, enfatizamos especialmente o método hermenêutico a ser utilizado para análise das obras do autor, considerando que a maior parte do acervo continua na língua russa, parcialmente traduzido na língua inglesa e espanhola e uma seleção razoável na língua portuguesa.
Na primeira parte, “O estado da arte da hermenêutica vigotskiana”, apresentamos análises sobre o contexto histórico, a participação intensa do autor com as questões judaicas na Rússia, a biografia, as particularidades das obras e a política de publicização.
Na segunda parte, “As aventuras da Dialética”, discorremos sobre os principais interlocutores filosóficos do autor (Immanuel Kant, Georg W. F. Hegel, Ludwig Feuerbach, Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Ilitch Lênin) e o debate sobre a dialética na segunda metade do século XX.
Na terceira parte, apresentamos a análise aprofundada de algumas obras selecionadas e como a lógica dialética e o materialismo histórico dialético se manifestam num processo de amadurecimento especialmente no campo epistemológico.
As disputas entre as gnosiologias idealismo e materialismo qualificam o autor na consolidação de uma psicologia dialética que se dispõe a colaborar com a práxis revolucionária na construção de uma nova sociedade e de um novo ser humano.
Neste trabalho sustentamos a tese de que sem a referência das disputas gnosiológicas e sem os fundamentos do materialismo histórico dialético, Lev Semionovich Vigotski não teria elucidado as limitações metodológicas da psicologia de sua época e nem fundamentado as principais bases metodológicas para compreensão do psiquismo humano.
Palavras-chave: Psicologia Dialética. Vigotski. Materialismo Histórico Dialético
SUMMARY
The present work analyzes the concept of dialectics at Lev Semionovich Vigotski (1896-1934) with regard to the body of his work and, on the other hand, his most important theoretical influences in the field of gnoseology and the theory of knowledge, and explains the theoretical foundations for the construction of a dialectical psychology.
Therefore, we subdivide our work into an introductory chapter, followed by three parts: In the first chapter, we particularly emphasize the hermeneutic method used to analyze the works of the author, since the largest part of the collection still exist only in Russian, partly in English and Spanish, and to a lesser extent in Portuguese.
In the first part, "The State of Vigotski´s Hermeneutic Art", we present analyzes of the historical context, the biography, the characteristics of the work and the publicizing policy.
In the second part, "The Adventures of Dialectics", we discuss the most important philosophical conversation partners of the author (Immanuel Kant, Georg W. F. Hegel, Ludwig Feuerbach, Karl Marx, Friedrich Engels and Vladimir Ilich Lênin) and the discussion about dialectic in the second half of the twentieth.
The third part presents the detailed analysis of some selected works and shows how the maturation process of the dialectical logic and the historical-dialectical materialism are expressed in the field of epistemology.
The dispute between the two epistemic theories of idealism and materialism qualifies the author in the consolidation of a dialectical psychology, which, together with revolutionary practice, contributes to building a new society and a new human being.
In this work, we support the thesis that Lev Semionovich Vigotski, without referring to the epistemological dispute and without the foundations of historical dialectical materialism, would not have elucidated the methodological limits of contemporary psychology and thus did not create the most important methodological basis for the understanding of the human psyche.
Keywords: Dialectical Psychology. Vigotski. Historical-Dialectical Materialism
ZUSAMMENFASSUNG
Die vorliegende Arbeit analysiert das Konzept der Dialektik bei Lev Semionovich Vygotsky (1896-1934) im Hinblick auf sein Gesamtwerk und andererseits seine wichtigsten theoretischen Einflüsse auf dem Gebiet der Gnoseologie und der Erkenntnistheorie und erläutert darueberhinaus die theoretischen Grundlagen für die Konstruktion einer dialektischen Psychologie.
Hierzu unterteilen wir unsere Arbeit in ein einfuehrendes Kapitel, gefolgt von drei Teilen: Im ersten Kapitel heben wir besonders die hermeneutische Methode hervor, die zur Analyse der Werke des Autors verwendet wird, da immer noch der groesste Teil der Sammlung ausschliesslichin russischer Sprache vorliegt, nur teilweise auf Englisch und Spanisch und in geringerem Ausmass auf Portugiesisch.
Im ersten Teil, “Die Lage der hermeneutischen Kunst Vigotskis”, stellen wir Analysen ueber den historischen Kontext, die Biografie, die Eigenheiten des Werkes und die Publizierungspolitik.
Im zweiten Teil "Die Abenteuer der Dialektik", eroertern wir die wichtigsten philosophischen Gesprächspartner des Autors (Immanuel Kant, Georg W. F. Hegel, Luewig Feuerbach, Karl Marx, Friedrich Engels und Wladimir Iljitsch Lênin) und die Diskussion ueber die Dialektik in der zweiten Hälfte des zwanzigsten Jahrhunderts .
Der dritte Teil stellt die detaillierte Analyse einiger ausgewählter Werke vor und zeigt, wie sich der Reifeprozess der dialektischen Logik und der historisch-dialektische Materialismus im Bereich der Erkenntnistheorie ausdrueckt.
Die Auseinandersetzung mit den beiden Erkenntnistheorien Idealismus und Materialismus qualifiziert den Autor bei der Konsolidierung einer dialektischen Psychologie, die gemeinsam mit der revolutionären Praxis zum Aufbau einer neuen Gesellschaft und eines neuen Menschen beitraegt.
In dieser Arbeit unterstützen wir die These, dass Lev Semionovich Vigotski ohne Bezugnahme auf die erkenntnistheoretischen Auseinandersetzungen und ohne die Grundlagen des historisch-dialektischen Materialismus nicht die methodischen Grenzen der zeitgenoessischen Psychologie aufgeklärt haette und damit auch nicht die wichtigsten methodischen Grundlagen für das Verständnis der menschlichen Psyche geschaffen haette.
Stichworte: Dialektische Psychologie. Vygotsky. Historisch-Dialektischer Materialismus
КРАТКОЕИЗЛОЖЕНИЕ
В работе анализируется понятие диалектики в понимании Льва Семёновича Выготского (1896 – 1934), ссылаясь на его произведения и на его главные теоретические построения (понятия) в области Гносеологии и Эпистемологии, а также разъясняются теоретические основы построения диалектической психологии.
Для этого мы разделили нашу работу мы на начальную главу и три. последующих части. В начальной главе особенно подчёркивали герменевтический метод, использованный для анализа произведений автора, учитывая то, что большая часть его сочинений доступна только на русском языке, частично на английском и испанском языках и некоторые на португальском языке.
В первой части «Состояние искусства герменевтики Выготского» представляем
анализ исторического контекста, интенсивное участие автора в еврейских
вопросах в России, его биографию, особенности его произведениЙ и политики опубликования. Во второй части “Приключения Диалектики” обсуждаем главных философских собеседников автора (Иммануила Kaнта, Геогрга В. Ф. Гегеля, Людвига Фейербаха, Kарла Маркса, Фридриха Энгельса и Владимира Ильича Ленина) и дискуссию о диалектике во второй половине XX века. В третьей части глубоко анализируем несколько избранных произведениий и показываем как диалектическая логика и диалектический исторический материализм проявляются в процессе созревании Выготского, особенно вэпитемологическоЙ сфере. Споры между гносеалогией, иделизмом и материализмом консолидируют автора с диалектической психологией, которая сотрудничает с революционным праксисом в построении нового общества и нового человека.
В этой работе мы защищаем тезис, что Лев Семёнович Выготский, не ссылаясь на гносеологические споры и на основе Диалектического Материализма, не смог бы ни разъяснить методологических пределов психологии своего времени и ни обосновать главные методологические базы для понимания человеческого психизма.
Ключевые слова: Психология. Диалектика. Выготский. Диалектический материализм.
“Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vende outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”
Caetano veloso
Sócrates– Eu também sou muito dado, caro Fedro, a esta
maneira de reduzir e analisar as ideias, pois é o melhor
processo de aprender a falar e a pensar, e sempre que
me convenço de que alguém é capaz de aprender,
simultaneamente, o todo e as partes de um objeto,
decido-me a seguir esse homem como se seguisse as
pegadas de um deus” Em verdade, aos homens que
possuem este talento – se tenho ou não tenho razão ao
dizer isto, o deus o saber! – Sempre os tenho chamado
por ‘dialéticos’.
Platão, FEDRO ou da Beleza.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 23
Capítulo 1: Sobre o Método ..................................................................................... 32
PARTE I – ESTADO DA ARTE DA HERMENÊUTICA VIGOTSKIANA ..................... 46
Capítulo 2: Contexto histórico – Revolução de Outubro de 1917 ......................... 55
Capítulo 3: A questão judaica na Rússia ................................................................ 65
Capítulo 4: Vigotski e seus biógrafos ..................................................................... 80
Capitulo 5: O projeto para publicação das obras completas .............................. 101
Capítulo 6: As obras de L. S. Vigotski e o desafio hermenêutico ....................... 112
Conclusão ............................................................................................................... 127
PARTE II: AS AVENTURAS DA DIALÉTICA........................................................... 131
Capítulo 7: Dialética Transcendental..................................................................... 146
Capítulo 8: Dialética Hegeliana .............................................................................. 153
Capítulo 9: Dialética da Essência Humana ........................................................... 168
Capítulo 10: Dialética Marxiana ............................................................................. 178
Capitulo 11: Dialética da Natureza ......................................................................... 197
Capítulo 12: Dialética da Práxis ............................................................................. 209
Capítulo 13: A Dialética sob crítica ....................................................................... 217
Capítulo 14: Dialética do Esclarecimento ............................................................. 226
Capitulo 15: Dialética da Ontologia do Ser Social ................................................ 234
Capítulo 16: Analética: a superação da dialética? ............................................... 243
Conclusão ............................................................................................................... 248
PARTE III: PSICOLOGIA DIALÉTICA ..................................................................... 257
Capítulo 17: Os Referenciais teóricos e os interlocutores .................................. 262
Capítulo 18: Os primeiros escritos ........................................................................ 270
Capítulo 19: A crise da psicologia ......................................................................... 274
Capítulo 20: Método de Investigação de Vigotski ................................................ 294
Capitulo 21: Psicologia Infantil .............................................................................. 297
Capítulo 22: Desenvolvimento das funções psicológicas superiores ................ 307
Conclusão ............................................................................................................... 329
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 332
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 336
ANEXOS .................................................................................................................. 347
11
APRESENTAÇÃO
Sempre atuei na área social com formação de educadores,
especialmente, nas temáticas voltadas para metodologias e sistemas de
planificação e avaliação. Esta tarefa instrumental nos instiga incessantemente
a analisar e a conjugar o que é necessidade, possibilidade e realidade (é o
exercício constante de compreender como se dá a passagem do fenômeno à
essência e a história do desenvolvimento das formações materiais). A inserção
do trabalho social exige do profissional propostas resolutivas no âmbito das
contradições estruturadas no sistema capitalista, portanto, identificar as causas
e os efeitos para compreender como ocorrem as mudanças ou como as coisas
são como são. A falta de moradia ou moradias sem condições adequadas de
habitabilidade em razão da ausência de serviços do Estado, as políticas
educacionais incompatíveis com a realidade, violação de direitos, desemprego
– especialmente de jovens e o envolvimento no mundo do crime –, a solidão
dos idosos, o isolamento humano,... enfim, os problemas sociais que incidem
sobre a conduta dos que estão envolvidos com estas realidades na vida diária.
Estou me referindo à vida diária como a principal referência para materialização
da existência humana. O profissional que atua diretamente com as questões
sociais está envolto com os dilemas e as contradições que a sociedade
enfrenta e é instigado a investigar como os sujeitos assumem condutas,
resistem à opressão e constroem suas referências para sobreviver nestes
contextos de vida. A psicologia social é chamada incessantemente para este
debate, já que esta área do conhecimento define categorias que contribuem
para o entendimento e atuação na área social, tais como: a dialética do
singular-particular-universal, dialética da inclusão e exclusão social, a
correlação da qualidade com a quantidade, causa e efeito, necessidade e
contingência, conteúdo e forma, essência e fenômeno, possibilidade e
realidade (e outras tantas). Considero não ter sentido a psicologia social que
não se implica com a realidade concreta, mais do que isso, que não se
constitua como práxis.
Pelos desafios que eu enfrentava e enfrento, resolvi fazer o doutorado
para me ajudar a encontrar algumas respostas para perguntas difíceis voltadas
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à emancipação humana. Não acho que as respostas estejam na universidade,
mas as boas perguntas.
Na minha dissertação de mestrado, como primeiro passo, atentei-me à
relação intrínseca entre ideologia, gnoseologia, ontologia e epistemologia.
Tendemos a tratar estas separadamente, não por má vontade, mas porque a
totalidade exige um esforço a mais de reflexão. Exige a investigação não
especulativa, mas inserida na realidade, no concreto, no real. Busco respostas
que não estejam apenas no campo do fenômeno ou da aparência, mas ciente
de que estes são os pontos de partida, sobretudo, o que se revela no cotidiano.
Nós construímos nossa própria visão de mundo (Weltanschaung), mas
não o fazemos sozinhos. Conheço a criatividade coletiva, o diálogo e o sentido
mais profundo do logos hieraclitiano, da alétheia parmediana e do conatus
espinosano. O primeiro instiga a ação/reflexão dentro da cidade, o segundo a
coerência do discurso com a realidade e, o terceiro, a potência nas relações. O
sintagma perfeito da criatividade humana: logos-alétheia-conatus.
Reconhecemo-nos com a nossa visão de mundo a nós mesmos porque
a temos e a confrontamos com a dos demais e por esta mesma condição por
meio da qual conhecemos as demais visões de mundo, porque na nossa visão
de mundo em relação a nós mesmos, somos o mesmo que as demais em
relação a nós1. Construímos nossa visão de mundo nas relações e é ela que
nos orienta a tomar as decisões. Entretanto, não criamos algo do nada; do
nada, nada se cria. As gnosiologias já existentes nos cativam e nós as
cativamos. Talvez nos identifiquemos com uma ou com duas, e nos orientemos
sempre com os outros que se esforçam para definição de uma teoria social.
Assim como a ideologia, a gnoseologia se compõe de um conjunto de
abstrações e de nada serviria se não tivesse uma aplicação prática, concreta e
real. Isto exige um posicionamento sobre o lugar em que nos colocamos
(topos), um fundamento sobre nossa teoria e uma proposta para execução, um
método. Estes três aspectos também são exigidos exatamente no momento de
1É uma analogia ao que L. S. Vigotski sempre menciona como um refrão: “Temos consciência de nós mesmos porque a temos dos demais e pelo mesmo procedimento através do qual conhecemos os demais, por que nós mesmos em relação a nós mesmos somos o mesmo que os demais em relação a nós” (VIGOTSKI, L. S. A consciência como problema da psicologia do comportamento (2004, p. 82).
13
pesquisar. Ao fazer esta afirmação já me entrego quanto à minha concepção
de mundo. Pesquisas podem ser implementadas desconsiderando a dimensão
ideológica, mas o desconsiderar já é uma definição do lugar (topos) em que
nos posicionamos2.
Lev Semionovich Vigotski3 é o autor que considero o mais instigante
para debater a ideologia, gnosiologia e epistemologia por duas razões básicas.
A primeira orienta-nos para enfrentar o ecletismo teórico. São tantos os
caminhos, as posições, os confrontos que nos deparamos no dia a dia. Como
construir uma referência? Não parto do pressuposto de que Vigotski tenha um
modelo padrão, mas viveu uma situação extremamente desafiadora para se
posicionar diante das teorias existentes e sua lógica dialética não o impediu de
fugir dos principais embates teóricos. A segunda razão: a pesquisa pode
contribuir para orientar soluções para os problemas reais da sociedade. Dito de
outra forma, parece até que o pesquisador assume uma posição superior,
como se estivesse num pedestal ou como se fosse um cientista que tem
respostas para tudo. Pelo contrário, é a diminuição da distância entre
pesquisador e pesquisado e pesquisado e pesquisador. Isto significa que a
pesquisa tem um valor real a partir das demandas necessárias da sociedade.
Quero compartilhar uma experiência pessoal com o leitor para deixar
mais claro os motivos desta tese. Numa oportunidade de ir à Alemanha, no
final do ano de 2014 e início de 2015, realizei um projeto de intercâmbio no
qual pude sondar inicialmente as possibilidades de aprofundamento dos
estudos em alguma universidade na Alemanha, visando parcerias de pesquisa
ou então aproximação com um centro de pesquisa ligado à psicologia crítica.
2 É por essa razão que Aristóteles escreveu um livro sobre “tópicos”. A fala sempre é de uma posição, de um lugar. 3Conforme as diferentes referências idiomáticas o nome de Vigotski assume várias versões pelo mundo
afora - Wygotski, Vygotski, Vygotsky, Vuigotskij, Vygotskii, Vygotskij, Vigotski, Vigotsky. Pelo novo acordo ortográfico brasileiro, foram reintroduzidas em nosso alfabeto as letras “K”, “W” e “Y”, as quais haviam sido eliminadas na reforma de 1943. Por esta razão, deduzimos que o nome “ВЫГОТСКИЙ” equivalia rigorosamente à regra de transposição para o português “VIGOTSKI”. Se nossa língua tivesse letras que diferenciassem a vogal “i” breve da “i” longa (no russo ainda tem outras variações) então teríamos as letras correspondentes. Por exemplo, “Ы” corresponderia a “y” e “И” ao “i”. Para complicar, o final do nome tem dois “is” diferenciados “И” e “Й”. O novo acordo ortográfico reincorporou as letras “K”, “W” e “Y”, mas orienta, sempre que possível, usar as correspondentes de nosso vernáculo. O correto, portanto, é usar “VIGOTSKI”. Os tradutores nem sempre respeitam esta regra e assumem simplesmente transposições automáticas da grafia de outras culturas para o Brasil.
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Optei pela Alemanha pela compreensão do alemão, bem como seria
mais próximo da Rússia para acessar as obras originais de Vigotski,
assegurando viabilidade das condições prático-materiais e a possibilidade de
aproximação de dois contextos que, à época, já tiveram importante
interatividade. Estando na Alemanha, foi possível iniciar uma série de contatos
que resultaram num conjunto de perguntas relevantes para a aproximação do
propósito desta tese.
O primeiro contato fiz com um casal de amigos alemães que morou
muitos anos no Brasil e que, atualmente, mora numa pequena cidade perto de
Stuttgart chamada Backnang. Este casal tem muitos contatos com programas
de educação e de assistência social na Alemanha e nunca tinha ouvido falar
em Vigotski. Isto me instigou a pesquisar sobre a recepção das obras de
Vigotski na Alemanha. Devo informar que Vigotski falava e traduzia livros do
alemão para o russo, bem como fazia citações infindáveis de pesquisadores
alemães. Logo percebi que a produção vigotskiana em alemão se restringe
basicamente a duas obras: Pensamento e Linguagem (1934) e Psicologia da
Arte (1925). A edição russa Obras Reunidas, que foi traduzida para o espanhol
e para o inglês, não existe na língua alemã. No tempo da DDR (Deutsche
Democratiche Republik, a Alemanha Oriental, vinculada de 1949 a 1990 à
URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), alguns textos de Vigotski
chegaram a ser traduzidos para o alemão, e, por esta intermediação, chegaram
a ser conhecidos no lado ocidental. Contudo, a academia alemã mostra pouco
interesse pelas obras de Vigotski e George Mead, contemporâneo de Vigotski,
é muito mais referido em artigos científicos4. VEER & VALSINER (2009, p.8)
chamam atenção para “as notáveis semelhanças entre as ideias de Vygotsky e
alguns conceitos importantes de William Stern”5apenas para dar um exemplo.
As citações que Vigotski faz de autores alemães são surpreendentes. Por que
a Alemanha, se comparada aos Estados Unidos da América do Norte, dá
4 Jürgen Habermas, importante filósofo da Alemanha, ajudou a divulgar o pensamento de George Mead na Alemanha. Mead quase nada publicou e o que dispomos de sua teoria foi organizada e repassada pelos seus alunos. 5 William Stern (1871-1938) desenvolveu várias pesquisas recorrendo ao método experimental. Foi idealizador do teste para medição do Quociente Intelectual – QI.
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pouca importância às obras de Vigotski? O casal de amigos instigou-me: “esta
questão é importante, pois algo está velado”.
O segundo contato foi ainda mais instigante. Estive em Köln (Colônia)
visitando também um casal de amigos, sendo ele diretor de cinema e ela
funcionária de uma organização não governamental que atua com a questão
da violência contra as mulheres nos países da África Central e da Ásia. Ele fez
um documentário sobre os marxistas alemães que participaram da revolução
anarquista na Espanha antes da Segunda Guerra Mundial. O documentário é
uma análise dos marxistas ainda vivos sobre a situação da Espanha daquela
época. Este diretor havia entrevistado vários marxistas; um deles, um marxista
muito famoso na Alemanha, Robert Steigewald (1925-2016), o qual já estava
com 92 anos de idade. Tentando me ajudar, ele ofereceu a possibilidade de
intermediar um contato com este professor, com a intenção de que este
pudesse dar uma orientação sobre meus estudos na Alemanha. O contato foi
feito imediatamente por telefone, mas dado seu estado de saúde, não foi
possível conversar naquele momento. Ainda assim enviamos uma mensagem
discorrendo sobre as intenções de estudo, o objeto de pesquisa da minha tese
e a possibilidade de ele me dar uma orientação em relação aos estudos na
Alemanha. Depois de 45 dias, respondeu-nos pedindo desculpas pela demora
e orientando o brasileiro a “comer um livro” para depois poder iniciar um
diálogo. O livro indicado foi De Hegel a Hitler – História e crítica de uma
caricatura, de Domênico Losurdo6, autor italiano (muito conhecido no Brasil).
Esta sugestão me deixou um tanto impressionado e intrigado por ser uma obra
muito recente (não há tradução para o português) e por enfatizar a defesa de
Hegel frente aos ataques dos críticos que surgiram com muita força, depois do
desastre do nazismo. Acusavam Hegel de teórico do Estado nazista e traziam
para a confrontação as críticas também realizadas por Karl Popper (1902-
1994), que instigava nesta mesma direção a continuidade de Hegel a Hitler. Na
6LOSURDO, Domenico. Von Hegel zu Hitler- Geschichte und Kritik eines Zerrbildes. PapyRossa.
Deutschland. A obra mais conhecida no Brasil do autor é “A luta de classes – uma história política e
filosófica” publicada em 2015 pela editora Boitempo (Nesta obra Losurdo traz para o debate a luta de
classes partindo das análises sobre o alto índice de desemprego no início do século XXI e a concentração
de renda do sistema capitalista globalizado).
16
visão de Domênico Losurdo, esta reivindicação acaba por reconstruir a história
como mito, porque, ao contrário de Hegel, a ideologia do nazismo estava
fortemente arraigada com “o sangue e o solo”. Do outro lado, os nazistas
rejeitavam Hegel de forma categórica. Um dos exemplos mais notórios é a
declaração de Carl Schmitt (1888-1985)7, jurista alemão especialista em direito
constitucional e internacional, que havia declarado a morte de Hegel na cultura
alemã. A concepção hegeliana não se vincula ao que é defendido como eterna
estabilidade. Losurdo, nesta sua obra, tenta reabilitar Hegel como filósofo que
se insere na tradição do pensamento que busca compreender o mundo e suas
mudanças inevitáveis. Ora, por que Robert Steigewald havia recomendado este
livro para leitura? Este autor para mim era desconhecido e me instigou a
pesquisar um pouco mais sobre os seus livros publicados e logo percebi que se
tratava de um defensor da filosofia dialética e do materialismo histórico. Nesta
pesquisa, um pequeno livro me chamou muito a atenção para Losurdo: Fuga
dalla storia? Il movimento comunista tra autocritica e autofobia, no qual defende
que os comunistas sofrem de “autofobia”, que têm medo de si mesmos e de
sua própria história, como se fosse um problema patológico que deveria ser
enfrentado e urgentemente discutido. Infelizmente, não consegui mais contatos
com Robert Steigewald em razão de seu estado de saúde bastante delicado. O
cineasta amigo logo me fez um alerta: “dialética na Alemanha é assunto de
velho, de alguns velhos!” Não entendi a observação e também não pedi
qualquer esclarecimento, mas mais adiante logo compreenderia suas palavras.
A pergunta que ficou neste momento: por que recuperar Hegel e rediscutir os
aspectos históricos? Como dois marxistas tão eminentes, Losurdo e Steigewald
(como pude verificar depois), recorreram novamente a Hegel? Alguns meses
depois, quando já no Brasil, tive a informação que Steigewald fora um dos
maiores marxistas alemães que confrontaram as ideias da Escola de Frankfurt
e denunciaram o pessimismo que ela carregava8.
O terceiro contato foi em Berlim. De última hora encontrei uma amiga
que estudou psicologia na Universidade Livre de Berlim. Esta psicóloga, que
não fez carreira acadêmica, me deu algumas dicas sobre a psicologia crítica na
7Hoje mais conhecido como “jurista maldito” por ter apoiado e defendido o Estado nazista. 8Robert Steigewald veio a falecer em 30 de junho de 2016 e deixou-me a lembrança de um professor muito acessível e sempre disposto a aprofundar os estudos no materialismo histórico dialético.
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Alemanha. Ela me indicou o Prof.º Morus Markard9. Ela estava visivelmente
animada que alguém do Brasil pudesse estar interessado no tema “dialética”.
Fiz uma pesquisa sobre Markard e encontrei um artigo na famosa revista alemã
Der Spiegel, que entrevistava o referido professor, bem como tratava das
condições atuais da psicologia crítica na Universidade Livre de Berlim. O título
nada animador do artigo: Alt-Linke: Das stille Ende der Revolte (Velhos
Esquerdistas: O final tranquilo/silencioso da revolta). O subtítulo ainda mais
desanimador: Der letzte Professor geht in Pension, mit ihm sein Fach Kritische
Psychologie - an der FU Berlin wird eine Bastion der 68er abgewickelt. Und
niemand trauert, denn in der Wirtschaftskrise steht den Studenten der Sinn
nicht nach links. Ein Abschiedsbesuch (O último professor se aposenta e com
ele sua matéria psicologia crítica - na Universidade Livre de Berlim um bastião
dos anos 68 é liquidado. E ninguém está de luto, pois a crise econômica não
desperta os sentidos à esquerda dos estudantes. Uma visita de despedida)10.
Este artigo relata o desânimo dos alunos para com esta temática e também
que o Prof.º Markard Morus estava em vias de se aposentar. O curso de
Psicologia Crítica a partir do semestre seguinte não seria mais dado na
graduação. Visitei o departamento de psicologia da universidade e me
informaram que este professor havia se transferido para a Universidade de
Constanz, bem ao sul da Alemanha (divisa com a Suíça). É uma nova
universidade alemã e parece que lá ele conseguiu espaço para continuar seus
trabalhos de pesquisa. Começava a me sentir um pouco estranho e a me
9Morus Markard foi seguidor do Prof. Dr. Klaus Holzkamp (1927-1995) um dos organizadores da psicologia crítica da Universidade Livre de Berlin. A psicologia crítica surgiu em 1967 quando eclodiu o movimento estudantil em Berlim (Alemanha) que reivindicava que as ciências deveriam ter uma dedicação mais responsável com a realidade social. O professor Holzkamp (Professor Catedrático de Psicologia da Universidade de Berlim) se propõe a atuar com os estudantes marxistas e criam a Associação de Alunos Liberdade Vermelha a partir de 1969. Este debate todo foi concluído em 1970 com um programa de televisão, mas não atingiu os objetivos esperados. Foi considerado até um fracasso, isto porque ainda se baseava em iniciativas de “boa vontade”. Na visão dos participantes era necessário avançar teoricamente e surgiu aí o questionamento às concepções da psicologia social tradicional. Surge uma psicologia crítica com referenciais marxistas e centrada na epistemologia do sujeito. Em 1983 foi editado uma obra referencial: Lernen: Subjektwissenchaftliche Grundlagung (Aprender: uma abordagem epistemológica do sujeito). Esta abordagem da psicologia levou à criação da Sociedade para Investigação e a Prática da Epistemologia do Sujeito (GSFP) em parceria com a Universidade Livre de Berlim e o acesso às produções teóricas disponíveis no portal eletrônico: www. Kritische-psychologie.de. Em 1997, ainda foi realizado o “Fórum de Psicologia Crítica” com a temática: “Aprender, colóquio Holzkamp”, com a presença de Ole Dreier, Friga Hang, Wolfgang Maier, Morus Markard, Christof Ohm, Ute Osterkamp e Gisela Ulmann. As atividades da sociedade ainda estão funcionando com encontros e publicações anuais. 10 Artigo da jornalista alemã Verena Friederike Hasel em 02.07.2009. Der Spiegel.
18
perguntar se de fato este deveria ser meu objeto de pesquisa. Aquela
sensação de estranheza durou pouco pela animação da psicóloga, o café, a
cerveja, a arte e aquele ar cosmopolita de Berlim. Lembrava-me ainda de que,
em meu contexto, no Brasil, nenhum professor com orientação da psicologia
crítica está “pendurando as chuteiras”.
O próximo contato, ainda mais interessante, foi com um dos
professores de economia do Instituto dos Estudos Latino-americanos vinculado
à Universidade Livre de Berlim, considerado “o espaço” da sociologia. Um
amigo de Berlim havia agendado uma reunião com um professor livre-docente
de economia e que talvez pudesse me acompanhar num possível doutorado
sanduíche na Alemanha. Nada melhor! Na reunião, deparei-me com dois
estudantes que haviam concluído recentemente o doutorado em economia com
as respectivas temáticas: investimento em renda variável e o sistema alcooleiro
no Brasil. Havia também um professor espanhol que fazia parte do núcleo de
pesquisa. Este grupo de pesquisa se reúne uma vez por semana sempre no
mesmo horário. As temáticas passavam longe de minhas pretensões e
interesse. Logo no início da conversa, o professor livre-docente fez questão de
dizer que era muito amigo do ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique
Cardoso. Havia um assunto naquele momento pelo qual estava muito
incomodado e coincidia com minha presença. Havia recebido, há pouco tempo,
uma resposta a uma carta enviada diretamente ao Papa Francisco e
respondida por um auxiliar direto. Visivelmente irritado com uma aparente
“leviandade” do Papa que havia expressado extrema preocupação com a
desumanização causada pela visão do livre mercado no planeta (inclusive ficou
registrado em documento). A fala específica do Papa Francisco foi seguida de
uma admoestação de que as pessoas do mercado ficam mais preocupadas
com as especulações e com rendimentos nas aplicações nas bolsas de valores
do que com um pobre abandonado e morto na rua. Exemplificava melhor: “a
notícia no jornal sobre a queda de 1% na bolsa é mais preocupante do que a
notícia de um homem que morre de frio na rua”, e conclui: “esta economia é
que mata”. O professor livre-docente estava estarrecido com o posicionamento
do pontífice, e, mais ainda, com a resposta recebida. Na carta o professor se
intitulava “brasilianista” e profundo conhecedor da realidade brasileira e latino-
19
americana, com experiência de 30 anos; pontuou, no grupo, que esta fala do
Papa confundia questões que não tinham nada a ver uma com a outra. Uma,
que o livre mercado possibilitou a tranquilidade e a estabilidade do crescimento
nestes países da América do Sul e Central. Outra, se a violência existe, é
violência extrema, é uma questão específica resultado de uma sociabilidade
sem regra e de um problema que nada tem a ver com o livre mercado. O livre
mercado estável com regras é uma conquista na visão do professor estudioso
da América Latina. Sua decepção era muito grande sobre a forma como o
assunto havia sido tratado pelo Papa e pelos seus auxiliares. A reunião
prosseguiu e pediram-me que falasse de meu projeto de pesquisa. Fiz o relato
e duas reações me chamaram atenção. Primeira, a do professor espanhol, que
aos berros não se convencia das razões de um sul-americano ater-se a um
autor da Rússia. Argumentava que existe tantas barreiras que não consistia
apenas na distância de 12.000 Km. O livre-docente, ao referir-se à dialética,
lembrava que era um costumeiro jargão utilizado na “antiga DDR”. Mas afora
as provocações e os espantos das partes, ficou-me enfaticamente a pergunta
do espanhol: por que precisamos das produções de Vigotski no Brasil? Qual a
principal contribuição de Vigotski para a teoria social e para compreensão da
realidade brasileira? Dependemos ainda das sínteses das pesquisas de quase
um século atrás? A reunião não teve outro assunto exceto meu projeto.
Para concluir, relatarei um encontro que tem apenas um caráter
ilustrativo. Tenho uma amiga que é psicóloga (logoterapeuta) em Nürnberg. É
uma mulher de 76 anos e, todas as vezes que vou à Alemanha, incluo uma
visita a ela pelo prazer de boas e longas conversas. Desta vez não foi
diferente. Ao falar de minha tese, ela queria saber do que exatamente se
tratava. Falei que o tema principal é a dialética. Então, ouvi o seguinte: “meu
filho tentou várias vezes me explicar, mas nunca entendi o que é esta tal da
dialética”. Como responder, como explicar este termo ou como explicar a
concepção dialética? Não poderia explicar pelo sintagma tão costumeiro e
vazio como tese-antítese-síntese ou pelo sintagma mais elaborado
apresentado por Hegel afirmação-negação-negação-da-negação. Tive muita
dificuldade no primeiro dia para formular uma explicação que fosse clara e
objetiva. Também foi assim no segundo dia. Ao sairmos destas diversas
20
tentativas sem muito sucesso começamos a conversar sobre a realidade da
Alemanha e sobre a situação dos refugiados iraquianos e afegãos (que ainda
não eram os sírios). Ela reclamou da conivência da comunidade europeia em
facilitar a entrada de refugiados na Alemanha. Além disso, questionava a
capacidade dos fundos previdenciários para sustentar este grande número de
pessoas que chegou e que ainda estava por chegar11. Lembrei-me rapidamente
que este era o momento para trazer a questão dialética, do argumento
dialético. Destaquei que a política alemã recebia estrangeiros com facilidade
porque efetivamente consistia na própria estratégia de se manter como uma
potência econômica mundial. Tudo estava organizado e sendo permitido para
garantir este status quo. É uma contradição, pois, à primeira vista, trata-se de
uma despesa, mas analisando com mais cuidado trata-se, justamente, ao
contrário do que se constata. De um lado, a capacidade de receber refugiados
de diversas nacionalidades permite garantir o caráter de potência global – atrai
para sua geopolítica as melhores formações de outros países; e, de outro lado,
a entrada de estrangeiros possibilitará ampliar seu contingente populacional,
ampliando a massa trabalhadora – garantindo a estabilidade do fundo
previdenciário. No processo de globalização, a Alemanha mantém-se no mais
alto grau de sustentação econômica e uma das principais potências
econômicas. Ao fazer esta defesa, minha amiga ficou muito irritada com esta
conclusão (ou provocação), mas não lhe ocorrera que havíamos feito o
primeiro exercício dialético. E assim seguimos no debate observando as
contradições e tentando sempre olhar para a política atual da Alemanha
partindo do simples para o mais complexo. Ora, é possível uma teoria social
ser expressa sem ser dialética? Teria usado uma argumentação dialética ou
uma análise materialista histórico-dialética? Saí da aldeia de Altdorf (bei
Nürnberg) com a necessidade de entender se é possível simplificar a lógica
dialética ou se a simplificação consiste na sua própria anulação. Haveria uma
educação dialética?
Relatei esses encontros porque possibilitaram trazer algumas
perguntas que no percurso influenciaram o desenvolvimento da pesquisa e que
11 Para deixar mais claro: na época a guerra na Síria não tinha iniciado. Pude constatar vários conjuntos habitacionais que estavam em construção ou então moradias que estavam sendo destinadas, pelos relatos, ainda para os refugiados de guerra do Iraque.
21
serão tratadas direta ou indiretamente nessa tese. São perguntas orientadoras
que já foram suscitadas, mas aqui tentamos organizá-las com pretexto
meramente pro-vocativo.
1) A teoria social marxiana está condenada a ser uma teoria dos velhos
e herdeiros do movimento de 68? Antes, porém, desta pergunta mais atual,
elencamos três perguntas fundamentais: i) Em que se distingue a psicologia
vigotskiana de outras psicologias? ii) Qual papel desempenha Hegel na
psicologia vigotskiana? iii) e, por fim, Marx, Engels e Lênin: quais papéis
desempenham na psicologia vigotskiana?
2) Por que Vigotski tem tamanho reconhecimento no Brasil? É por
conta de uma influência das interpretações que os americanos iniciaram ou é
uma influência proveniente dos movimentos populares do Brasil da década de
1980? Como a Escola de São Paulo de Psicologia Social ainda hoje se
reconhece nestas influências?
3) A Psicologia Crítica da Universidade Livre de Berlim tem paralelo
com a Psicologia Sócio-histórica da Escola de São Paulo?
4) E, última pergunta, mas não menos importante: o que é o
materialismo histórico dialético hoje?
Algumas perguntas serão aprofundadas e outras não, devido à
necessidade de delimitação (não trataremos diretamente da pergunta 3). O
pensamento vigotskiano é uma teoria social que começa a ganhar força na
atualidade devido ao acesso mais sistemático por parte de pesquisadores
brasileiros às suas obras originais e às polêmicas em torno de sua teoria estão
longe de chegar ao fim.
Proponho-me a defender a tese de que Vigotski fundamenta suas
pesquisas adotando o materialismo histórico dialético de base marxiana.
Contudo, na história do pensamento dialético, temos12 várias referências que
12 A partir deste momento passo não mais utilizar a primeira pessoa do singular, mas a primeira pessoa do plural.
22
na modernidade aparecem em Immanuel Kant (1724-1804) e vão até os
críticos da dialética, na segunda metade de século XX. Nesta trajetória
histórica, nos orientamos pela própria pergunta de Vigotski: “Será que a
matemática, a filosofia, a dialética, as metafísicas significam o mesmo que em
outros tempos?” (VIGOTSKI, 2004, p. 406). Os conceitos estão ligados aos
fatos científicos e têm uma história. As palavras são instrumentos e como tais
também podem cair em desuso ou tornarem-se mais relevantes para uma
teoria. Neste sentido, concordamos com a afirmação de Vigotski: “toda palavra
é uma teoria” (Ibidem, p. 238); e, como um caminho alternativo para
fundamentar a tese, investigaremos como Vigotski incorporou, ao longo de sua
vida, o conceito de dialética.
23
INTRODUÇÃO
“Análise reconstitutiva” tem um significado peculiar, isto porque o
adjetivo tem vinculação com a expressão mais usual “reconstituinte”; o
dicionário nos ajuda a esclarecer: “reconstitutivo” é aquilo que “se reconstitui”,
“restabelece as forças físicas”, “torna mais rico”, ”medicamento próprio para
reestabelecer as forças de alguém”13. No nosso caso, para o título desta tese,
pretendemos, a partir de uma perspectiva imanente e objetiva, analisar os
textos de Vigotski (1896-1934) considerando o significado histórico de seu
projeto hermenêutico e, para isso, nos propomos a fazer a análise
reconstitutiva do seu sentido de dialética. Não faremos com base em outras
interpretações, mas a partir deste sentido forte mesmo, de um “medicamento
próprio para reestabelecer as forças” da dialética de Vigotski.
Os textos produzidos por Vigotski traduzem, ao longo dos anos de sua
vida, um espírito investigativo, disciplina, empenho excepcional para realização
das pesquisas na área da psicologia. A negatividade dialética de suas
produções não é explicitada, mas considerando especialmente o ensaio O
significado histórico da crise da psicologia, escrito em 1927, e o Manuscrito de
1929, verifica-se a preocupação de Vigotski com a construção de uma nova
sociedade e com o novo ser humano, e, acima de tudo, com a construção de
uma psicologia que ele denominou de “dialética” (VIGOTSKI, 2013, p. 393). O
nosso trabalho considerou o período intenso de disputas teóricas, políticas e
filosóficas, especialmente, o período de transição da direção no Secretariado
Geral do Partido Comunista da União Soviética, de Vladimir Ilitch Lênin (1918-
1922) para Josef Vissorionovitch Stalin (1922-1953). A síntese dialética de
Vigotski não convinha com o cenário político da época, que iniciava um
movimento contrário ao que fora viabilizado intensivamente no período de
Secretariado Geral de Lênin. Depois de um longo período de ostracismo14,
Vigotski passou a ser reconhecido e suas obras traduzidas para vários idiomas.
13Reconstituinte in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico. Porto Editora,
2003-2017. Disponível na Internet:<https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/reconstituinte>. 14 Em 04 de junho de 1936, o Comitê Central do Partido Comunista proibiu as publicações da área da pedologia. Mesmo que em 1956 estas proibições tenham sido revogadas, as obras de Vigotski começaram a ser divulgadas com mais força a partir da década de 1980.
24
Na atualidade, várias abordagens se utilizam da ausência da explicitação da
sua síntese dialética, para propagar concepções idealistas e
descontextualizadas da realidade social – destacando-se as tendências
equivocadas de aproximar o pensamento de Vigotski, por exemplo, com os
referenciais de Georg Mead (1863-1931), ou com concepções culturalistas,
cognitivistas 15 , ou, ainda, pragmatistas. Neste sentido, torna-se necessário
recuperar o caminho da dialética desde os filósofos clássicos, como também, e
principalmente, os filósofos da modernidade: Immanuel Kant (1724-1804),
Georg W. F. Hegel (1770-1831), Ludwig Feuerbach (1804-1872), Karl Marx
(1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895), Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924) e
Josef Vissorionovitch Stalin (1870-1924), para evidenciar os fundamentos
dialéticos vigotskianos e sua importância determinante para a Psicologia Sócio-
histórica16, que tem fundamento no materialismo histórico dialético. Além disso,
não temos como escapar da contextualização da dialética realizada por
diversos autores na década de 50/60/70 do século passado (ADORNO &
HORKHEIMER, 2006; BADIOU & ALTHUSSER, 1979; HABERMAS,
1983/2002; LEFEBVRE, 1970; LUKÁCS, 2010/2012/2015; MARCUSE, 1978;
MERLEAU-PONTY, 1980) que de certa forma interferem e contribuem na
compreensão da hermenêutica vigotskiana.
HABERMAS (2002), ao analisar as diferentes correntes filosóficas do
século XX, enfatiza “quatro motivos” que contribuíram para romper com a
tradição: “pensamento pós-metafísico, guinada linguística, modo de situar a
razão e a inversão do primado da teoria frente à prática” (HABERMAS, 2002, p.
14). O autor denomina este movimento de superação como uma verdadeira
guinada no campo do conhecimento. O pensamento pós-metafísico impôs as
premissas do “método científico”; “a filosofia da consciência foi superada pela
15 Kozulin (1990, ps. 86-87) faz menção da afinidade entre Vigotski e Mead quanto “aos enfoques de Vigotski e Mead sobre a questão da linguagem como instrumento de regulação ‘externa’ do comportamento individual”. Esta aproximação também é sustentada por L. Kohlberg, J. Yaeger e E. Hjertholm em “Private Speech, Child Development, vol. 39, 1968, pp. 691-736. Outros autores fazem a mesma defesa: Jaan Valsiner e Renè van der Veer no artigo “On the social nature of human cognition: an analysis of the shared intelectual roots of G. H. Mead and L. Vigotski - Journal for the Theory of Social Behavior, vol. 18, 1988, ps. 117-136. 16 Optamos pelo termo psicologia Sócio-Histórica dentre tantos que são criados com os fundamentos vigotskianos: sócio-cultural, sócio-interacionista, cultural histórica seguindo a premissa de Karl Marx de que “toda ciência é histórica”.
25
filosofia da linguagem”; e a razão foi desafiada a entrar na história e “na prática
do mundo da vida”; e, por fim, “a inversão do primado da teoria frente à prática”
consiste na importância das ações. Então, ressalta os pragmatistas Charles
S.Peirce (1839-1914), George Mead(1863-1931) e John Dewey (1859-1952), a
psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget (1896-1980) e a teoria da
linguagem de Vigotski como referência deste último movimento citado (Ibidem,
p. 15). Interessante observar que Habermas identifica Vigotski não no campo
da teoria do desenvolvimento, mas da linguagem. De fato, a primeira obra e a
mais conhecida de todas de Vigotski é Pensamento e Linguagem (1934) e
Habermas certamente teve acesso à edição americana resumida e estilizada e
sem os fundamentos do Materialismo Histórico Dialético do autor.
Nossa pesquisa está focada em Vigotski justamente pela sua
importância para nosso tempo, pela sua importância fundamental na psicologia,
e, especialmente, na psicologia socio-histórica. Diferentemente da visão
pragmatista, nosso autor está voltado para os estudos de uma psicologia que
se pretende, conforme ele mesmo estabelece: “síntese da tese do empirismo –
com a antítese – a reflexologia” (VIGOTSKI, 2004, p. 395). Esta afirmação fora
feita em 1927, quandoVigotski declara que “esta psicologia (...) ainda não
existe; terá de ser criada e não por uma só escola” (Ibidem, p. 417).
Além de Vigotski estar inserido “na crise da psicologia”, também
enfrentava uma crise sobre a concepção do materialismo histórico dialético na
União Soviética. De um lado o embate entre as correntes materialistas e
idealistas, e, de outro, o embate interno entre o materialismo dialético e o
histórico. Na brilhante introdução aOCapital de Marx (1983; vol. I), o estudioso
Jacob Gorender destaca que duas obras aparecerão em 1932 na União
Soviética: Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844) e A Ideologia Alemã
(1845/46). Ambas causaram grande impacto quando de sua divulgação. O
Manuscrito, conforme este estudioso marxista, demarca a assimilação de Marx
da Dialética Hegeliana e o início da elaboração ou criação de uma dialética
materialista. E, nA Ideologia Alemã há o rompimento com o pensamento
feuerbachiano e a proclamação da importância de influir na história humana de
tal forma a não se limitar “a interpretar o mundo”, mas em “transformá-lo” (Marx
& Engels, 2007, p. 535).
26
Não sabemos se Vigotski chegou a conhecer o famoso Manuscrito
Econômico-Filosófico (1844) de Karl Marx, mas, considerando as citações
diretas, é certo que tinha conhecimentodO Capital (1867), da Contribuição à
Crítica da Economia Política (1859) e do Manifesto Comunista (1848). A partir
das citações também é certo que leu Dialética da Natureza (1925) de Friedrich
Engels e as obras de Lênin, especialmente, Materialismo e Empiriocriticismo
(1908).
Nos textos de Vigotski, encontramos várias citações de Hegel e, muitas
delas, fazendo referência à Ciência da Lógica e à Fenomenologia do Espírito
(1807), que inicialmente tinha outro título: Ciência da Experiência da
Consciência. Argumenta-se que o objetivo da obra de Hegel é a “história
romanceada da consciência” que atravessa vários obstáculos para “alcançar a
universalidade e reconhecer-se como razão que é realidade e realidade que é
razão” (ABBAGNANO, 1984, Vol. IX, p. 92). Para Hegel o “ciclo integral da
fenomenologia” resume-se a uma expressão muito citada: “a consciência
infeliz”. Esta é assim configurada porque não alcançou a sua “totalidade” que
ele denomina “autoconsciência” (Ibidem, p. 85). A consciência infeliz,
alcançando a totalidade, poderia libertar-se em “autoconsciência”. O aspecto
importantíssimo da filosofia de Hegel é que a dialética não é apenas “um
método”, nem apenas “uma lei do desenvolvimento da realidade”. A dialética é
tanto um aspecto como outro, pois lida com as contradições, com as oposições
da razão e ao mesmo tempo concilia estas oposições. Portanto, a dialética de
Hegel é dominada pelas questões do mundo e da razão (Ibidem, p. 86-87). É
comum os textos de Vigotski, em praticamente todas as citações que se
referem a Hegel, trazerem um reforço de Lênin, ou então de Marx e Engels. A
partir de 1930, verificamos que nas citações o nome de Hegel passa a ficar
anônimo, o que demonstra alguns cuidados para não ser excessivamente
repetitivo (VIGOTSKI, 2012a, p. 39; 2012c, p. 71, 72).
Por outro lado, o Materialismo Histórico Dialético é a base filosófica do
marxismo e como tal busca explicações coerentes para os fenômenos da
natureza, da sociedade e do pensamento. O Materialismo Histórico Dialético
tem como categoria a matéria, a consciência e a prática social (CHEPTULIN,
2004) submetida à lei fundamental da dialética: a unidade e a luta dos
27
contrários. Vigotski cita Lênin em vários momentos, que define a Matéria
como “uma categoria filosófica para designar a realidade objetiva que é dada
ao homem nas suas sensações, que é copiada, fotografada, refletida pelas
nossas sensações, existindo independentemente delas” (TRIVINHOS, 2009, p.
51). Ou seja, a matéria é eterna e evolutiva e existe fora de nossa consciência.
A consciência é uma propriedade da matéria, a mais altamente organizada que
existe na natureza do cérebro humano. Essa peculiaridade surgiu como
resultado de um longo processo de mudança da matéria. E o trabalho e a
linguagem estão ligados à consciência de refletir sobre a realidade objetiva. O
materialismo entende a prática social como um termo muito amplo. É toda
atividade material, orientada a transformar a natureza e a vida social.
A Psicologia Sócio-Histórica tem como referência o Materialismo
Histórico Dialético, que tem como preceito que a história é feita da ação dos
seres humanos, impelidos por sua vontade, sendo esta a expressão de seus
pensamentos. A ciência é a história e o sujeito é histórico. LANE expressa de
um modo muito mais preciso:
“O indivíduo sujeito da história é constituído de suas relações sociais e é, ao mesmo tempo, passivo e ativo (determinado e determinante). Ser mais ou menos atuante como sujeito da história depende do grau de autonomia e de iniciativa que ele alcança. Assim ele é história na medida em que se insere e se define no conjunto de suas relações sociais, desempenhando atividades transformadoras destas relações; o que implica, necessariamente, atividade prática e inteligência, tão inseparáveis quanto, no nível da sociedade, são inseparáveis a infra e a superestrutura, e cuja unidade é estabelecida por um processo cujo agente exclusivo é a atividade humana em suas diferentes formas” (LANE, S. T. Consciência/alienação: a ideologia no nível individual, 1984, p. 40).
Na Introdução à Crítica da Economia Política (1859), Marx afirma que
“a produção dos indivíduos é determinada socialmente” e “o indivíduo é
resultado histórico e não é uma condição natural dada”, ou seja, numa
sociedade capitalista, as contradições são “escamoteadas” segmentando cada
etapa da produção e alienando o trabalhador da visão da totalidade produtiva.
Ao citar o “método da economia política” dentro de uma perspectiva histórico
dialética, alerta que este método não consiste em “permanecer em abstrações,
mas partir do concreto”. “O concreto é concreto porque é a síntese de muitas
28
determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no
pensamento como processo de síntese e não como ponto de partida” (MARX,
1982, p. 14). É neste contexto que Marx também faz uma importante
declaração: “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu
ser social que determina a sua consciência” (MARX, 2015a, p. 49). Aqui, “o seu
ser” identificamos com “o que somos” e “a consciência” com “o que pensamos,
o que queremos”. São as condições materiais que determinam a consciência.
Resumidamente, são estes os preceitos de Marx que subsidiarão os
pensadores e pesquisadores seguidores do Materialismo Histórico Dialético.
A filosofia moderna esteve basicamente dividida entre estas duas
correntes ou duas concepções filosóficas que tratam sobre os modos distintos
pelos quais se dão as relações entre pensamento e realidade material. De um
lado estavam os filósofos idealistas que partiam do pressuposto de que o
pensamento precede a matéria. De outro lado, estavam os materialistas, que
entendiam que a matéria precede ao pensamento. O acirramento entre estas
posições, a tensão entre estas escolas filosóficas esteve muito presente na
psicologia soviética nas primeiras décadas do século XX. Os psicólogos que
mais se identificavam com a Revolução Russa rejeitavam tanto o idealismo
quanto o reducionismo mecanicista (o materialismo vulgar ou mecanicista).
Havia consenso, entretanto, que somente o Materialismo histórico dialético
poderia prover a psicologia materialista em oposição às visões ou concepções
mecanicistas. Vigotski estava no meio destas disputas e sobressaia-se graças
ao seu vasto conhecimento filosófico17.
Nosso interesse não está voltado apenas para os fundamentos
filosóficos, mas analisar os fundamentos da dialética e sua implicação dentro
da psicologia, especialmente, numa visão hermenêutica do pensamento
vigotskiano. Nossa intenção dentro das premissas do materialismo que
17 Conforme LEONTIEV (2013), em janeiro de 1923, foi realizado o I Congresso Nacional de Psiconeurologia em Moscou sobre o tema “Psicologia e Marxismo”. Neste evento concluiu-se como teses: i) o caráter primário da matéria em relação à consciência; ii) a psique como propriedade altamente organizada da matéria; iii) sobre o caráter social da psique do ser humano. Neste congresso, Vigotski não participou, mas sim no segundo, realizado em janeiro de 1924, em Lêningrado. Era necessário fundamentar a psicologia marxista e também uma questão que continua válida até hoje: “qual o lugar da psicologia social dentro do sistema da psicologia marxista?” (LEONTIEV, 2013, ps. 421-422).
29
surgiram na modernidade é investigar como o conceito de dialética foi
incorporado na hermenêutica vigotskiana.
Esse trabalho versa sobre a dialética materialista em Vigotski. Em
razão disso, tratamos de enfocar três movimentos de análise em períodos
diferentes da história do pensamento dialético:
i) A tríade Hegel-Feuerbach-Marx/Engels 18 é a nossa referência
principal da filosofia moderna para tratar centralmente da dialética. São os
filósofos mais citados por Vigotski e merecerão nosso esforço maior para
entendimento e estudo (HEGEL, 1976, 2002, 2008, 2010, 2011, 2012;
FEUERBACH, 2007, 2008; MARX &ENGELS, 2007; MARX, 1987, 2009, 2011,
2013, 2013a, 2013b, 2015a, 2015b; ENGELS, 1975, 1977a, 1977b).
ii) Nosso interesse é o desdobramento do Materialismo Histórico
Dialético, os fundamentos da dialética no tempo de Vigotski e as produções
existentes que não poderiam ser desconsideradas para quem atuava na área
da psicologia (LÊNIN, 1977a, 1997b, 1977c, 1982; STALIN, 1945). Marx não
deixou um tratado sobre a dialética como o fez Engels, que a expôs em suas
leis na inconclusa obra Dialética da Natureza.
iii) Na segunda metade do século XX temos vários filósofos e
comentadores sobre a temática “dialética” (ADORNO & HORKHEIMER, 2006;
ALVIM & RIBEIRO, 1975; BADIO & ALTHUSSER, 1975; CHEPTULIN, 2004;
DUSSEL, 1986; HABERMAS, 1983/2002; JAY, 2008; KONDER, 1983; KOSIK,
2011), LEFEBVRE,1970; LUKÁCS, 2010, 2012, 2015; LÖWY, 2008;
MARCUSE, 1978; MERLEAU-PONTY, 1980; SARTRE, 2002; POLITZER,
1963; VÁZQUEZ, 2011) e a maioria são contestadores da ortodoxia soviética.
Estes autores são muitas vezes esquecidos para a análise, mas a assimilação
da dialética desenvolvida por Vigotski também se insere neste contexto
histórico. As obras de Vigotski vêm ao público soviético em 1982 e muitas de
suas questões que ficaram inacabadas retornam com muita força; podem ainda
18 Há autores que não fazem esta simbiose de Marx-Engels (especialmente Lukács) por considerar que, em alguns aspectos muito importantes, Engels cometeu alguns desvios. Contudo, é muito difícil dissociar esta parceria analisando o conjunto da obra.
30
ser ampliadas (e serão ampliadas), mas citamos aqui como nossas principais
referências.
Considerando estas referências e estas disputas teóricas em torno da
compreensão e das implicações na realidade social, como situar Vigotski? As
compreensões e implicações são dinâmicas e são respondidas em diferentes
lugares de maneira diferente. Evidentemente que iremos ressaltar primeiro a
hermenêutica vigotskiana dentro de seu contexto histórico e também analisar
as consequências do pensamento dialético na contemporaneidade.
MOLON (2011) chama atenção dos pesquisadores e dos estudiosos
interessados nas obras de Vigotski para a necessidade de “considerar e
contextualizar alguns pontos” especialmente aqueles que procuram
esclarecimentos sobre as bases conceituais e metodológicas.
“A procura da definição de alguns conceitos ou de alguns termos na obra vygotskiana precisa considerar e contextualizar alguns pontos, entre eles: 1) Vygotsky não deixou uma teoria pronta e acabada, e não se sabe se era intenção dele fazê-lo, tendo-se em conta a sua morte prematura; 2) seus constantes e graves problemas de saúde intensificaram sua escrita; 3) o caráter intenso e variado da sua produção mostrava seu trânsito entre diversas áreas do conhecimento, como as ciências humanas, as artes e a literatura; 4) seus interesses abrangiam diferentes campos e temáticas, como os processos de criação artística e estética, porém ele centrou-se na Psicologia; 5) discutiu as mais diversas concepções psicológicas, sendo ainda hoje revolucionária a sua maneira de conceber o fenômeno psicológico ao introduzir a mediação semiótica; 6) suas ideias foram censuradas, alguns textos foram encontrados somente muitos anos após sua morte; 7) não revisou seus escritos; sua obra enfrenta vários problemas de tradução, principalmente os textos que passaram pelo crivo da psicologia norte-americana” (Ibidem, p. 614).
Além destes pontos muito bem estabelecidos, a autora faz mais um
alerta quanto ao processo em construção da teoria de Vigotski. Exemplifica que
alguns conceitos vão sendo desenvolvidos e vão ganhando significados e
sentidos diferentes ao longo da exposição. O caráter de construção e de
desenvolvimento paulatino de seus referenciais é o que nos remete ao caminho
da análise reconstitutiva da dialética em Vigotski. Por outro lado, além da
dificuldade sobre a complexidade da obra de Vigotski e da dificuldade com o
acesso aos originais, também temos a dificuldade “ideológica”. As obras foram
31
elaboradas e sistematizadas num período bastante conturbado da Rússia e da
história da psicologia.
Recentemente, várias obras foram publicadas sobre a biografia de
Vigotski e isto se deve ao elevado interesse da comunidade acadêmica de
várias partes do mundo, bem como o recente acesso aos arquivos particulares
da família. Vigotski publicou mais de 200 títulos, o que torna um trabalho
penoso fazer as comparações e análises, já que muitos trabalhos ficaram
inconclusos. Neste sentido, para poder organizar nosso trabalho de
investigação, adotamos o método hermenêutico de profundidade de
THOMPSON (2002), que nos orientou para as análises sócio-históricas das
obras sistematizadas por Vigotski. Temos referenciais de estudos de
manuscritos antigos e considerando que as obras de Vigotski começam a
completar 100 anos é necessário analisar o contexto, as influências, a
disponibilidade de outros referenciais e as relações do autor referido com as
diversas institucionalidades. Aprofundamos os referenciais metodológicos para
o desenvolvimento desta tese, e, por esta razão, definimos um referencial
metodológico onde apresentamos e propomos o caminho que optamos para
fundamentar nossas análises (Capítulo 1).
Este trabalho segue organizado em três partes: I Parte– A vida e obra
de Vigotski (Analisamos aspectos que julgamos fundamentais na formação do
nosso autor em referência até chegarmos ao que hoje podemos chamar o
estado da arte da hermenêutica vigotskiana); II Parte– As aventuras da
Dialética (A dialética é contextualizada dentro da história considerando
especialmente os desafios impostos no século XX); e, III Parte– A concepção
de dialética de Vigotski (Análise de publicações tomando como principais
referências aquelas voltadas para orientar profissionais de campo).
Foi necessário apresentar, em certos momentos, longas citações das
obras de Kant, Hegel, Feuerbach, Marx e Engels. Naturalmente, as longas
citações tornam a exposição, talvez, cansativa, pesada e não ajudam para dar-
lhe um caráter mais simples, mas não tivemos outra alternativa para que o
raciocínio fosse mais coerente possível com os referidos autores. Nossa
preocupação é ter a devida fundamentação para poder dialogar com um autor
como Vigotski, que faz citações exageradas de diversos autores.
32
Capítulo 1: Sobre o Método
"Чтобы идти дальше, надо наметить путь".
ВЫГОТСКИЙ19
Os pesquisadores que estudam as obras de Vigotski têm adotado
como estratégia algumas obras específicas – adotam um recorte analítico para
enfrentar determinadas temáticas tais como: criatividade, imaginação,
atividade, vivência20, personalidade, interesse ou então alguma especificidade
das funções psicológicas superiores: percepção, atenção, memória, formação
de conceito e linguagem. A diversidade de publicações das quais dispomos é
muito ampla e selecionar algumas obras é um recurso necessário, mas sob
qual critério?
Nossa aproximação das obras de Vigotski tem como linha temática a
lógica dialética e o método histórico dialético e, por isso, precisamos fazer
comparações textuais e adotar estratégias de interpretação dos textos.
Optamos por um caminho não muito convencional para esta empreitada.
Adotamos o método “hermenêutico de profundidade” de John Brookshire
Thompson (THOMPSON, 2000) sem desconsiderar nossos fundamentos
teóricos. Há uma razão especial para lidarmos com apenas uma opção
metodológica; é possível dialogar sobre dois temas extremamente ou
igualmente amplos como o da dialética: ideologia e cultura? Em razão da
ideologia as obras de Vigotski foram proibidas, depois recuperadas e
adaptadas e agora comercializadas no mercado editorial que está ávido por
colocá-las para mais consumo. Aguardamos a publicação das obras completas
e estamos atentos para o método hermenêutico que será utilizado para definir
os critérios empregados. Considerando que há interesse muito grande dos
profissionais envolvidos com a área da psicologia e da educação pelos estudos
de nosso autor referencial, a hermenêutica será fundamental e deverá
19 “Para ir mais longe, é preciso um caminho” – Vigotski. 20 Palavra difícil de traduzir para o português: “perejivánie” (Переживание)”. Alguns autores preferem deixá-la no original russo, outros traduzem como vivência ou experiência vivenciada. A polêmica se estabelece porque considera-se a categoria mais importante da hermenêutica vigotskiana, por considerar a afetividade como determinante para a formação do psiquismo humano.
33
esclarecer as razões pelas quais estas obras ainda são relevantes, bem como
é uma oportunidade para apresentar como estas produções foram
consideradas durante todo o século XX.
Qual o caminho?
Perguntamos: qual o caminho mais acertado que deveríamos utilizar
para podermos, depois de quase um século, analisar as obras de Vigotski?
Poderíamos tomar como base os próprios referenciais que o autor elaborou e
implementou para fazer suas críticas literárias ou para analisar a relação entre
Pensamento e Linguagem. Os escritos de Vigotski têm valor de pesquisa
engajada em um período no qual a Rússia planejava e estruturava uma nova
sociedade, e homens e mulheres deviam esforçar-se para contribuir com este
objetivo. Nós identificamos esse esforço na própria personalidade de Vigotski,
que lutou e se dedicou à pesquisa e ao ensino até o último dia de sua vida.
Se as obras de Vigotski despertam hoje interesse muito grande é
porque ainda têm um valor significativo como teoria social capaz de
instrumentalizar profissionais da área da educação e da saúde. Evidentemente
que durante o século XX muitas questões avançaram nestas áreas, mas os
referenciais vigotskianos são ainda válidos como subsídios teóricos para
compreendermos a síntese social entre indivíduo e sociedade.
Nós queremos investigar a hermenêutica vigotskiana e isto significa
considerar dois caminhos: i) Vigotski esteve conectado profundamente ao seu
tempo. Além de sempre expor as finalidades e os seus interesses com suas
pesquisas, estas não eram realizadas sem a contextualização a partir do que
outros autores ou pesquisadores já haviam desenvolvido. É impossível
desconsiderar esta premissa ou tentar isolar o pensamento vigotskiano de
outras teorias; ii) Vigotski sofreu influências e influenciou outras teorias durante
a sua vida. Contudo, depois de sua morte prematura (faleceu com 37 anos de
idade), suas obras também sofreram várias formas de interpretação dentro da
URSS, bem como no mundo ocidental capitalista. Costuma-se estigmatizar que
o mundo da URSS se caracterizava pela ortodoxia (o que a partir da década de
30 realmente ocorreu) e o ocidente pela heterodoxia (o que não é correto na
34
perspectiva da compreensão ideológica hegemônica). Quando nos referimos à
hermenêutica vigotskiana estamos tratando deste universo que consiste nas
influências sofridas, a capacidade de influenciar outras teorias, o uso da teoria
vigotskiana nas diferentes áreas da ciência e as reinterpretações das suas
obras.
A palavra “hermenêutica” é proveniente do grego e é uma palavra
pouco usada nos dias de hoje21. Em grego, hermenêutica significa “interpretar”
e a palavra remete ao radical que leva o nome do deus Hermes, aquele que
roubou astutamente os bois que pertenciam a outro deus, Apolo. Deixou pistas,
mas estas foram intencionalmente postas para confundir a quem quisesse
desvelar o autor do desafio. As pistas, como dito, eram confusas e não
poderiam servir para incriminar Hermes. Apolo teve que buscar outros recursos
de investigação e não simplesmente seguir aquilo que lhe era tão costumeiro.
O enigma exigia sair do que era simples e adotar a criatividade na
investigação. Poderíamos afirmar que a investigação objetiva não era suficiente
para Apolo, era necessário considerar outras dimensões, e não cessou de
buscar a resposta. O resultado disto tudo é que Apolo conseguiu que Hermes
confessasse o que fez e então tiveram que fazer alguns acordos. Não vamos
aqui relatar mais detalhes desta história. Queremos destacar que a palavra
“hermenêutica” tem esta marca de sua origem mítica, ou seja, o objeto da
interpretação se oculta e, por isso, não é tarefa fácil. Exige reflexão, estudo e
não se pode ficar apenas na dimensão das opiniões. Há de se pensar um
caminho. Além disso, há outro aspecto. As pegadas sempre são os rastros
deixados por alguém e a hermenêutica é justamente saber quem as deixou, por
que estão desta forma, quais as razões de alguém estar naquele lugar que
envolveu as intenções, as ações, o contexto e a história. Para nossa pesquisa,
as pegadas são os textos escritos, os rastros são o conjunto da obra e a
hermenêutica a interpretação da interpretação.
Hermes também era conhecido pelas suas sandálias aladas e ele
precisava demarcar os terrenos para não se perder. Demarcava-os colocando
algumas estacas. Esta é uma outra característica da hermenêutica: há
21 No grego, o verbo hermeneüo significa exprimir o pensamento em palavras.
35
necessidade de uma de-marcação, de-limitação do terreno para que possamos
nos orientar. São muitos detalhes e mesmo tendo poderes de um deus, sua
capacidade tinha limites. A hermenêutica está nesta tensão entre o de-marcado
e o não-de-marcado ou entre o de-limitado e o não-de-limitado.
Aristóteles escreveu o livro Peri Hermeneias (Da interpretação) para
definir o “nome” e o “verbo”, em seguida, explicar o que se entende por
“negação”, “afirmação”, “sentença” e “proposição”. O que é algo? É a mesma
pergunta: que é o ser? Cada algo tem um nome e precisa de um verbo para
denominar a ação. Aristóteles apresenta a hermenêutica como uma gramática
e nos aponta que o texto ou o discurso é a matéria-prima para a interpretação.
A interpretação, além de exigir uma gramática, precisa de uma sintaxe – as
relações de concordância, de subordinação e de ordem e uma ordem no texto
ou no discurso. Três perguntas simples: “o que ler?” “como ler?”, e, “em que
ordem ler?” Como responder estas perguntas em se tratando da produção
literária de Vigotski?
Dois polêmicos hermeneutas materialistas: Baruch Espinosa e Karl Marx
A hermenêutica foi o recurso de interpretação da teologia para explicar
quais manuscritos poderiam ser eleitos ou não e receber a unção de sagrado.
Não era possível simplesmente aceitá-los sem estabelecer alguns critérios de
seleção.
No século XVI, na Alemanha, Martin Luther (1483-1546) estudou os
manuscritos que compõem o livro sagrado cristão e justificou exegeticamente
que alguns livros não poderiam ser considerados aptos a permanecerem no
patamar sagrado ou no cânone. Além disso, passagens de alguns livros eram
de origem duvidosa. Não vamos aqui entrar no mérito da polêmica se tinha
razão de reivindicar uma nova forma de interpretação. O que nos importa é que
a interpretação em si ganha legitimidade para confrontação, para desestabilizar
a hegemonia dominante. A interpretação está ligada ao poder e Martin Luther
expunha esta peculiaridade. Temos que lembrar que, neste momento, a
imprensa está se impondo, se estruturando e as obras que estavam sob
36
responsabilidade da igreja poderiam ser publicadas. O que poderia ser
publicado? O que poderia vir a ser de conhecimento público? A hermenêutica
teológica inaugura os tribunais de interpretação que depois também serão
referência para a área jurídica.
No século XVII surge um hermeneuta que influirá determinantemente
na forma de fazer as interpretações e as exegeses bíblicas mesmo tendo sido
o mais polêmico e execrado filósofo de sua época. Baruch Espinosa (1632-
1677) com seu Tratado Teológico-Político (1670) defendeu que a filosofia e a
religião deveriam estar separadas. A razão de ser da filosofia não poderia ser
considerada a mesma que a da teologia. O objeto de uma era a razão e de
outra era a fé. Entretanto, a Bíblia é inegavelmente uma fonte de legitimação
do poder e os textos ali são de uma época longínqua, reverenciados nos dias
de hoje. Espinosa alertava para o cuidado de se considerar no presente uma
referência do passado. Mais do que isto, que uma referência do passado
pudesse ter a mesma importância ou valor de aplicação do que fora no
passado. No capítulo VII do Tratado Teológico Político – Da interpretação da
Escritura – Espinosa faz uma contundente declaração:
“Toda a gente diz que a sagrada escritura é a palavra de deus que ensina aos homens a verdadeira beatitude ou caminho da salvação: na prática, porém, o que se verifica é completamente diferente. Não há, com efeito, nada com que o vulgo pareça estar menos preocupado do que em viver segundo os ensinamentos da sagrada escritura. É ver como andam quase todos fazendo passar por palavra de deus as suas próprias invenções e não procuram outra coisa que não seja, a pretexto da religião, coagir os outros para que pensem como eles. Boa parte, inclusive, dos teólogos está preocupada é em saber como extorquir dos livros sagrados as suas próprias fantasias e arbitrariedades, corroborando-as com a autoridade divina. Nem há mesmo nada que eles façam com menos escrúpulos e com maior temeridade que a interpretação da escritura, ou seja, da mente do espírito santo; e, se alguma coisa nessa tarefa os aflige, não é o receio de atribuir ao Espírito Santo algum erro e afastarem-se do caminho da salvação, mas sim poderem ser apanhados em erro pelos outros e, desse modo, verem a sua própria autoridade calcada aos pés dos adversários e serem alvo de escárnio (2008, p. 114).
Espinosa está instigando o exercício da interpretação e não
simplesmente uma leitura que se adeque às fantasias. Está defendendo e
estabelecendo os parâmetros para uma metodologia exegética para interpretar
37
os livros sagrados. Afirma que é necessário elaborar “a história autêntica” dos
livros e para isso sugere um método:
“Muito resumidamente, o método de interpretar a Escritura não difere em nada do método de interpretar a natureza; concorda até inteiramente com ele. Na realidade, assim como o método para interpretar a natureza consiste essencialmente em descrever a história da mesma natureza e concluir daí, com base em dados certos, as definições das coisas naturais, também para interpretar a Escritura é necessário elaborar a sua história autêntica e, depois, com base em dados e princípios certos, deduzir daí como legítima consequência o pensamento de seus autores. Desse modo, quer dizer, se nas interpretações da escritura e na discussão do seu conteúdo não se admitirem outros princípios nem outros dados além dos que se podem extrair dela mesma e da história, estaremos procedendo sem perigo de errar e podemos discutir com tanta segurança as coisas que ultrapassam a nossa compreensão como aquelas que conhecemos pela luz natural” (Ibidem, ps. 115-116).
Espinosa sugere, para fazer a interpretação adequada, entender a
história dos livros e de seus autores. Uma “história autêntica” que desvele
alguns aspectos para que se possa ter uma totalidade analítica. Ele resumiu
três aspectos para a interpretação:
1) Analisar a natureza e as propriedades da língua em que foram
escritos os livros para poder compreender os sentidos das fases
naquele contexto científico;
2) Fazer comparações das fases, reuni-las em uma unidade de sentido
e separar as ambiguidades;
3) Investigar a vida do autor do livro e analisar as versões que foram
sistematizadas ao longo do tempo (Ibidem, ps. 117-120).
Espinosa toma este capítulo evocando o método que não pode ser
considerado nada complicado pelos “filósofos argutos”. É um método simples.
Porém, não é tão simples assim aceitá-lo. A premissa “o método não se difere
em nada do método de interpretar a natureza” só é possível acatá-la se deus
não for considerado causa transitiva, ou seja, se deus não é criador de nada.
Os interesses de interpretação vão colidir com o poder de interpretação da
igreja porque não há lugar para um deus que não seja criador. Sem um deus
criador não há adoração e muito menos um povo escolhido para esta
38
adoração. Os livros sagrados, na visão da ortodoxia, devem sustentar esta
proposição, caso contrário a institucionalidade perde sentido.
Martin Luther havia criado uma hermenêutica teológica baseada na
ascese dentro do mundo, ou seja, no lugar de uma ascese fora do mundo que
designava esta realidade como passageira e submissa à autoridade da igreja e
aos seus representantes legais e interpretadores inquestionáveis, instituiu-se a
ascese dentro do mundo, que significa colocar a interpretação sob a base da
consciência individual e assim o poder de interpretação foi
desinstitucionalizado. É a célula mater para instaurar o individualismo e o
capitalismo, como bem identificou o sociólogo Max Weber ao analisar com
mais profundidade o Calvinismo. À igreja cabe o papel de promotora e não
mais de interlocutora. Baruch Espinosa radicaliza a força hermenêutica
luterana, isto porque é preciso entender ou conhecer as sagradas escrituras
assim como se conhece a natureza, porque deus é natureza.
Para finalizar, citamos também outro hermeneuta de tradição
talmúdica: Karl Marx. Talvez soe como uma ironia, mas Marx é de família
rabínica e o seu rigor de interpretação demonstra que não fugiu de sua tradição
familiar. A sua hermenêutica também parte do reconhecimento de que o
método deve se ater à natureza. Assim como a hermenêutica Espinosana
ganha radicalidade se comparada à luterana, é em Marx que a radicalidade
Espinosana ganha sua máxima expressão materialista. No segundo posfácio
de O capital, em rara explicitação, Marx expõe seu método hermenêutico:
“(...) deve-se distinguir o modo de exposição segundo sua forma do modo de investigação. A investigação tem de se apropriar da matéria em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Se isso é realizado com sucesso, e se a vida da matéria é agora refletida idealmente, o observador pode ter a impressão de se encontrar diante de uma construção a priori” (MARX, 2013, p. 90).
Marx está deixando bem claro nesta hermenêutica que o fenômeno
aparente não coincide com a essência, mas o fenômeno é o que aparece
primeiro, imediatamente. Se o fenômeno e a essência coincidissem não teria
39
sentido a própria interpretação. Então, primeiro aspecto é analisar
incansavelmente as determinações do objeto de tal forma que a essência
possa ser revelada. Contudo, há uma questão determinante que Marx não
dissocia de sua hermenêutica: o fator histórico. A materialidade não está
estática no tempo, está em movimento, portanto, as determinações sendo
históricas elas devem ser analisadas nas relações que são estabelecidas no
contexto. Há uma frase muito significativa que pode dar mais precisão ao que
estamos descrevendo e interpretando: “a produção é a universalidade, a
distribuição e a troca, a particularidade, e o consumo, a singularidade na qual o
todo se unifica” (MARX, 2011, p. 44). Esta frase mencionada por Marx sintetiza
a crítica que faz para outros pesquisadores sobre o modo de produção
capitalista, porque tomavam como real o que era considerado nada mais do
que uma ilusão do próprio capital22. Podemos considerar também que todo
esforço que Engels e Marx fizeram para interpretar a filosofia hegeliana e pós-
hegeliana foi necessária para um autoesclarecimento e um
autorreconhecimento. Se este processo não resultou na publicação no tempo
que achavam que deveria, posteriormente não tinha mais sentido:
“Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto
quanto já havíamos alcançado nosso fim principal, que era nos esclarecer”
(MARX, 2015a, p. 51). Os ratos não fizeram o serviço e os dois volumes que
foram escritos pelos autores resultaram no livro A ideologia Alemã. Uma obra
fundamental para entendermos a síntese de seu pensamento, mais do que isto,
sua trajetória; a partir desta citação, foi necessário mais tempo para fazer
interpretações especialmente de Hegel e de Feuerbach.
Julgamos suficientes os referenciais metodológicos interpretativos de
Espinosa e Marx. Contudo, para analisar as razões de um autor do passado
ganhar tanta relevância, precisamos ampliar este estudo para determinações
do presente numa sociedade de consumo.
Nesta nota sobre o método, antes de qualquer coisa, queremos definir
uma teoria hermenêutica e uma metodologia de investigação hermenêutica.
Como interpretar um autor que interpreta o mundo? Aplicamos seus próprios
22 Não mencionamos aqui a hermenêutica hegeliana, mas esta confrontação será feita mais para frente.
40
recursos teóricos e metodológicos? Se assim optarmos, conseguiremos
qualidade nas nossas investigações? Quando investigamos um autor que
produziu há mais de 80 anos tendemos a recorrer às suas obras como se
fossem objetos estacionados no tempo. Lemos os livros, nos identificamos com
muitas questões, o tomamos como referência para nossas vidas porque
oferece algum sentido às perguntas acerca do que estamos fazendo.
Analisamos suas categorias e vemos sentido em muitas questões do nosso dia
a dia. Elaboramos pesquisas e textos tomando como referência um autor ou
autores que vão se consolidando num círculo hermenêutico ao qual nós nos
associamos livremente. Escolhemos comentadores ou interpretadores que
tendem a fortalecer este círculo. Lemos os detratores para nos munir de
argumentos e nos fortalecer nas disputas que possam ocorrer com círculos
hermenêuticos contrários à visão que se defende. As obras de um autor
assumem uma forma simbólica como se fossem obras de arte. Investe-se num
plano editorial que segue regras cientificamente predeterminadas e um plano
de comunicação para colocá-las nas estantes das livrarias. Antes de chegar aí,
há um caminho longo de produção e talvez resultado de disputas para
demarcar o terreno teórico. Às vezes, não há reconhecimento do público
quando os autores ainda estão vivos. Ou, são como obras de arte mal
interpretadas numa época e ganham todo sentido em outros momentos
históricos. Outro fenômeno: as obras podem ser produzidas, mas não são
reconhecidas ou não são compatíveis com uma ideologia política, ou não são
permitidas dentro de uma cultura. Como formas simbólicas expressam a
dinâmica da cultura e em determinados momentos assumem relevância. No
nosso caso, falamos de livros, documentos, manuscritos, cartas e anotações
de reuniões. Estes ganham mais relevância quando a população começa a
reivindicar o acesso à educação e aos programas de alfabetização nem
sempre muito bem vistos pelas elites. Vale lembrar que a população
alfabetizada da Rússia, no início do século XX, compreendia 15% do total. É
apenas um exemplo, mas real naquela época como em muitos outros países.
Nossa realidade hoje é bem diferente, mas não podemos deixar de lado o
reconhecimento dos aparatos tecnológicos para comercialização de livros. Eles
existiam no passado também, mas a realidade virtual de hoje possibilita várias
41
formas de acesso. Mesmo assim, os textos continuam sendo as formas
simbólicas que fazem o papel de mediação na cultura. São artefatos ou
ferramentas de mediação da cultura.
Nós destacamos dois grandes hermeneutas não apenas pela
característica talmúdica tão semelhante e nem porque suas obras tenham sido
rechaçadas pela incompatibilidade com os preceitos religiosos e políticos, ou
então com a ideologia dominante. Espinosa e Marx têm uma forte característica
materialista que compactua que a essência envolve necessariamente a
existência, ou seja, “a natureza não pode ser concebida senão como existente”.
Esta é primeira definição da Ética de ESPINOSA (2007, Parte I, prop. 1) e se
confunde com a perspectiva marxiana, “o real é concreto porque é síntese de
múltiplas determinações” (MARX, 2015b, p. 187).
Espinosa, como já foi apresentado, nos orienta no campo exegético.
Seguimos suas orientações, mas como ele mesmo expressou, são simples.
Basta considerar a língua original, fazer comparações buscando unidade de
sentido e separar ambiguidades e identificar a visão de mundo do autor que
escreve. O autor não é um ser isolado ou um objeto que recebe a animação
mágica. Não é um átomo e nem uma tábula rasa. Marx – também nos
referimos a ele – não admitia que alguém pudesse escrever qualquer texto sem
considerar as determinações reais do mundo. Totalmente intransigente com as
concepções meramente interpretativas da realidade sem considerar a validade
prática e sem que estivessem inseridos na prática. Tanto uma abordagem de
um autor como de outro poderia ser suficiente para o nosso intento.
Não podemos apenas considerar nossos dois autores acima, porque
não são suficientes para a especificidade que pretendemos. Nenhum dos dois
talvez imaginaria os níveis aos quais chegamos na atualidade com relação aos
meios de comunicação de massa. É claro que os dois autores nos dão
recursos para fazer análises com consistência sobre a realidade de hoje. Não
estamos nos referindo a isso. Nosso trabalho parte de um acervo produzido no
início do século XX; atualmente, há um interesse muito grande de retomá-lo
devido à importância que teve para instrumentalizar profissionais na área da
42
educação e da saúde, num período de transformação da estrutura econômica e
política.
Nós sustentamos que Vigotski tem um fundamento Materialista
Histórico Dialético, mas muitos biógrafos e comentadores retiram esta
gnoseologia da teoria vigotskiana. Não partimos do nada para sustentarmos
nossa defesa, mas é preciso analisar esta pré-interpretação a partir de um
referencial que nos ajude a iluminar esta produção. Os dois hermenêutas
acima citados no ajudam nesta tarefa.
A hermenêutica de Profundidade
A temática da hermenêutica passa também a ser analisada por autores
no século XX associando à análise as transformações sociais, o estudo sobre
culturas e ideologia dentro de sociedades que estão estruturadas pela
influência dos meios de comunicação de massa. Hans-Georg Gadamer (1900-
2002), Martin Heidegger (1889-1976), Theodor Adorno (1903-1969), Max
Hockheimer (1895-1973), Herbert Marcuse (1898-1979), Walter Benjamin
(1892-1940), Paul Ricouer (1913-2005), Jürgen Habermas (1929-...), Karl
Popper (1902-1994) e os mais recentes John B. Thompson (1959-...) e Bruno
Latour (1947-...) são os mais destacados autores que se debruçaram sobre a
relação entre ideologia e cultura. Se fôssemos destacar as análises
desenvolvidas especificamente na área da Sociologia do Conhecimento esta
lista se ampliaria muito mais, mas citamos os principais.
A hermenêutica está constantemente envolta na retórica e na
gramática, porque se referencia na linguagem. GADAMER (1999), aluno de
Matin Heiddeger, considera a linguagem como “meio em que se realiza o
acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a coisa” (Ibidem, p. 560).
Temos uma situação hermenêutica no caso dos textos de Vigotski; são
compreensões entre o que está “fixado demoradamente” e um “parceiro de
conversação hermenêutica”: o intérprete. O texto passa a ser um ponto fixo que
se estabelece não como uma questão única possível, mas está implicado nas
ideias de um intérprete. O texto escrito assume um valor reconhecido que
43
quando transmitido “está aí para qualquer presente” (Ibidem, p 568). O que
está escrito aparece como livre do caráter psicológico, considera-se a forma
mais pura. Contudo, o trabalho hermenêutico está aí e tem sua incompletude,
isto porque há muito mais do escrito a ser compreendido. Tal concepção de
Gadamer é o que também Vigotski afirma, ou seja, um texto não pode ser
considerado um resultado do autor porque uma “obra criativa representa um
processo histórico contínuo, onde cada forma tem por base a precedente”
(VIGOTSKI, 2014, p. 32). A síntese de um escrito não é resultado de uma ação
individual, mas sempre “uma colaboração anônima” (Ibidem, p. 33).
Thompson destaca a necessidade, além da hermenêutica, de elencar
dois campos de estudo: a cultura e a ideologia. O conceito de cultura está
também no rol da polissemia, mas para Thompson esta tarefa é de
esclarecimento imprescindível. Desviando das concepções funcionalistas e
descritivistas da cultura encontra em Clifford Geertz (1926-2006) a sua melhor
definição:
“Cultura é o padrão de significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças (THOMPSON, 2000, p. 176).
Considera esta definição a mais ampla possível e dentro dela extrai as
“formas simbólicas” que compreende como “expressão do sujeito para
sujeito(s)”. As formas simbólicas são fatores de mediação da cultura. Por
outro lado, dentro da cultura deve-se estudar a ideologia e a função das formas
simbólicas serão melhor compreendidas:
“(...) o conceito de ideologia pode ser usado para se referir às maneiras como o sentido (significado) serve, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações de poder que são sistematicamente assimétricas – que eu chamarei de "relações de dominação", Ideologia, falando de uma maneira mais ampla, é sentido a serviço do poder. Consequentemente, o estudo da ideologia exige que investiguemos as maneiras como o sentido é construído e usado pelas formas simbólicas de vários tipos, desde as falas linguísticas cotidianas até às imagens e aos textos complexos”
(Ibidem, p. 16).
44
Na visão de Thompson, cada vez mais as formas simbólicas estão
sendo mediadas por aparatos técnicos e institucionais das indústrias da mídia.
Ao nos referirmos a obras literárias do passado e que assumem valor nos dias
atuais precisamos analisar a relação com a indústria da mídia. Por exemplo, as
obras completas de Vigotski estão sendo preparadas para serem publicadas.
Serão comercializadas pela mídia eletrônica? O que significa a disponibilização
destas obras a partir deste aparato tecnológico?
Thompson sugere uma metodologia hermenêutica que pode ter a
tarefa principal de estudar “a inter-relação entre significado e poder” que nada
mais é que a ideologia. Sugere distinguir três fases analíticas: 1) Análise sócio-
histórica; 2) Análise formal ou discursiva; 3) e a interpretação/reinterpretação.
Discordando rigorosamente das estratégias do positivismo porque “trata os
fenômenos sociais em geral e as formas simbólicas como se fossem objetos
naturais”. Ou seja, o positivismo reside em delimitar unilateralmente a
interpretação apenas no “campo objeto” e não contempla o “campo sujeito”. É
que os sujeitos estão sempre inseridos em tradições históricas e a
hermenêutica não tem como se abster do caráter sócio-histórico.
A primeira fase, portanto, sócio-histórica, deve se ater às “condições
sociais e históricas de produção, circulação e recepção das formas simbólicas”.
Esta fase é importante porque as formas simbólicas “são fenômenos sociais
contextualizados, são produzidas, circulam e são recebidas dentro de
condições sócio-históricas específicas que podem ser reconstruídas com a
ajuda de métodos empíricos, observacionais e documentários”. A segunda
fase podemos descrever como a "análise formal ou discursiva" que consiste
em estudar as formas simbólicas como construções simbólicas complexas que
apresentam uma estrutura articulada. As formas simbólicas podem exigir
formas diferentes de análise que devem se ater às dinâmicas internas, suas
características estruturais e padrões de relações. Thompson alerta para esta
fase o risco de se perder na análise quando se perde como um fim em si.
“Tomada em si mesma, a análise formal ou discursiva pode tornar-se– em
muitos casos ela se torna – um exercício abstrato, separado das condições
sócio-históricas e despreocupado com o que está expresso pelas formas
simbólicas, cuja estrutura ela procura revelar”. A terceira e última fase do
45
referencial da hermenêutica de profundidade é chamado de "interpretação" ou
“reinterpretação”. Esta fase interessa-se pela explicitação criativa do que é dito
ou representado pela forma simbólica. A partir do que foi estudado na primeira
e na segunda fase, buscará a construção sintética (Ibidem, ps. 365-377).
Para concluir, nossa referência para o estudo das obras vigotskianas
tomará como referência metodológica Espinosa, Marx e Thompson.
Entendemos a hermenêutica como o estudo do estado da arte na produção
vigotskiana. Contudo, como destacamos neste referencial metodológico, não
temos condições de considerar o conjunto da obra (isto também seria um
exagero). Selecionamos alguns títulos. Justificamos esta opção partindo do
simples para o complexo para depois fazer o caminho inverso. Nessas obras,
porém, poderíamos tratar de tantos assuntos específicos, mas destacaremos
na teoria vigotskiana o materialismo histórico dialético em geral e a dialética em
particular.
A seguir, definimos três partes o nosso trabalho. Na primeira tratamos
de analisar a vida e a obra de Vigotski; na segunda, o estudo da dialética na
história da filosofia para, no momento seguinte, localizá-la na trajetória de
Vigotski.
46
PARTE I – ESTADO DA ARTE DA HERMENÊUTICA VIGOTSKIANA
O desafio hermenêutico para o estudo das obras de Vigotski é
apresentado precisamente por GONZÁLEZ REY (2013, p. 5), a saber:
“A obra de Vigotsky representa um sistema de pensamento, com múltiplos detalhes e desdobramentos difíceis de serem apreciados sem que se acompanhem seus diferentes momentos e contextos. A própria publicação dos textos de Vigotsky na antiga União Soviética foi tardia e fragmentada, e muitos de seus originais não foram publicados até o aparecimento de suas obras escolhidas em russo na década de 1980. A todas as dificuldades anteriores somam-se os diferentes ângulos a partir dos quais o autor é lido por aqueles que mais publicam sobre ele, e as publicações derivadas dessas interpretações são as que passam a ser os textos de referência desse pensamento. A tradução de Vigotsky nos Estados Unidos foi feita do ponto de vista do pragmatismo norte-americano como filosofia de fundo, o que se evidencia pela quantidade de trabalhos voltados a estabelecer analogias entre seu pensamento e os clássicos desse movimento filosófico. Contudo, seus antecedentes filosóficos no marxismo e no pensamento de Spinoza, a influência da psicologia alemã da época sobre sua obra, e os que precederam e seus contemporâneos na época soviética, têm sido pouco estudados e mal elaborados”.
Nosso trabalho não tem a pretensão de englobar todas as obras de
Vigotski – não que não seja possível, mas tal empreitada exigiria a força de
uma linha programática de pesquisa. Nesta parte, apenas tocamos em
questões gerais que envolvem a história da época da Revolução de Outubro de
1917 (porque é um evento determinante na história da Rússia e também para a
história pessoal de Vigotski), a questão judaica, aspectos teóricos apontados
pelos biógrafos mais conhecidos, informações sobre o conjunto da obra de
Vigotski, bem como as principais referências teóricas.
O acesso hoje às obras de Vigotski é muito mais fácil, isto porque
dispomos de 31 títulos na língua portuguesa além de 54 títulos na língua
espanhola, por meio do conjunto de títulos traduzidos das Obras Reunidas do
Russo. De acordo com as pesquisas de VIGODSKAIA & LIFANOVA (1999),
47
foram catalogados 275 títulos e a maioria está disponibilizada na língua
russa23.
Quando Vigotski aceitou o trabalho no Instituto de Psicologia, em
Moscou, em 1924, foi a oportunidade única, aquela que ninguém com o perfil
de pesquisador como ele resistiria a dizer “não”. Havia equipe disponível,
campo de trabalho bem definido, interesse pelos resultados na prática, poder
de implementação de programas de alto impacto social, laboratório de
observação, dedicação exclusiva, relação com a universidade e possiblidade
de ampla publicação para orientação à distância. Vigotski casou, abraçou o
desafio e foi para Moscou. Contudo, a doença que havia contraído era o seu
grande obstáculo, mas isso não o impediu de investir na produção e de
trabalhar intensivamente. Sua formação erudita, com capacidade de acessar
publicações internacionais de fala inglesa, francesa e alemã, fez com que
pudesse dialogar e debater questões mais complexas. Sua atuação despontou
tanto que anos posteriores era membro de quatro conselhos editoriais de
revistas, foi presidente da organização VARNITSO24, deputado de um distrito
de Moscou, tornou-se chefe de laboratório psicológico, deu aula na
universidade (VEER &VALSINER, 2009, p. 203). Tudo isso, entretanto,
começou a desmoronar quando, em 1932, o laboratório foi fechado e ele não
viveu depois de 1934 para ver todas as suas obras serem proibidas de
circulação, como as de tantos outros pesquisadores.
Entendemos que o volume de produção realizado em seu nome não
poderia ser um trabalho solitário. São vários os títulos que estavam nos
arquivos da família e ficaram registrados em estenogramas, o que demonstra o
trabalho coletivo para preparar conferências (ou palestras), participar de
debates e sistematizar as sínteses e preparar publicações (artigos e livros).
Não podemos, por outro lado, negar o caráter de liderança de Vigotski e a
capacidade de organizar material sempre para publicação. Notamos,
23 Janeiro de 2017 foi lançado um portal eletrônico no Brasil onde consta a lista completa de todas as obras catalogadas pela pesquisadora LIFANOVA. Constam 275 títulos que disponibilizam quase todas as publicações na língua russa. www.ced-br.net 24 Sigla da “Associação Sindical de Trabalhadores da Ciência e Técnica para a Promoção da Edificação Socialista na URSS”.
48
entretanto, que em algum momento ocorreu um rompimento entre os
colaboradores e as obras receberam a autoria única.
No final de 1934 o livro Pensamento e Linguagem é publicado na
Rússia, mas devido ao decreto de 04 de julho de 1936, é proibido de circulação
junto com uma lista de outros livros. É novamente reeditado em 1956, em
conjunto de obras só é publicado na década de 1980. Quais os argumentos
que o establischment utilizava para condenar as obras de Vigotski? O que
tornou possível sua reedição em 1956? E a publicação das obras na década de
1980 tem qual fundamento para serem revalidadas? As obras editadas na
década de 1980 passaram por uma nova censura ou não? As cópias originais
dos diversos manuscritos encontrados nos arquivos da família de Vigotski não
são apresentados eletronicamente e, algumas vezes, quando se tem notícia de
alguém acessar os manuscritos, surgem denúncias de adulteração diretas
(TOASSA G. , 2015 b). O que chamamos atenção aqui, neste momento, é que
as obras proibidas a partir de 1936 tornam-se, na década de 80, relevantes
para publicação. A qualidade dos escritos, a densidade lógica, a
contextualização com a teoria psicológica internacional, a minuciosidade e a
seriedade da pesquisa de Vigotski eram bons instrumentos de divulgação da
própria teoria marxista para o mundo. Este era o papel da Rússia na tensão
com o mundo capitalista. Os manuscritos são fichas simbólicas a serviço do
poder e da ideologia.
GONZALEZ REY (2013) nos chama atenção para a necessidade de
criar programas de pesquisa para investigar “os antecedentes” do pensamento
marxista, espinosano, a psicologia alemã do período que viveu Vigotski e a
psicologia soviética na relação com o pensamento vigotskiano (há muito tempo
também destacada por Leontiev). Sugere fazer análise de produção, análise
formal do conteúdo para então fazer reinterpretações. Este é um trabalho que
está começando em várias universidades, mas não temos informações sobre
esta tendência na Rússia.
A teoria de Vigotski foi identificada no seu tempo e depois de diversas
formas: instrumental, psicologia cultural, psicologia sócio-cultural, psicologia
histórico-cultural, psicologia sócio-histórica, teoria des-cultural ou então teoria
49
das formas psicológicas superiores. Estas diferenças mostram duas
abordagens que se separaram ou que se intercruzam. A primeira, em razão
das diferentes concepções psicológicas em que os grupos de pesquisa estão
enraizados e como veem ou se utilizam da teoria vigotskiana; a segunda, em
razão do amplíssimo campo de investigação herdado de Vigotski e a forma
como grupos de pesquisa também dão continuidade ao que ficar inconcluso
nas suas investigações. Este caráter de incompletude do pensamento
vigotskiano se deve, como iremos sempre enfatizar, ao seu período curto de
vida. No momento de sua vida mais produtivo e mais significativo para
responder o conjunto de indagações que realizara na sua última década de
vida não conseguiu o que nós denominaríamos de “síntese”. Longe de
querermos aqui apologizar que a produção de Vigotski não se endereçava para
síntese, muito pelo contrário, dada a sua intenção sempre marcante desta
busca por uma conclusão metateórica que sentimos falta em muitos campos.
Poderíamos declarar a existência de uma escola vigotskiana? Há uma
tendência de personalização por parte da influência ocidental e, porque não
dizer, americanizada de enaltecer a figura da genialidade de Vigotski (de fato
teve muita genialidade e seus contemporâneos reconhecem sua alta
capacidade de síntese), mas seria um contrassenso estudar a vida e a obra de
Vigotski e concluir ou considerar sua genialidade como consequência de um
isolamento monástico. Vigotski foi sempre um articulador e mobilizador de
iniciativas que entrelaçavam a vida real, a teoria e a pesquisa. Ao considerar
sua produção enfatizando apenas as demandas da vida real transformamos
sua teoria num pragmatismo; ou então num idealismo estético; ou então na
área da pesquisa, um metodólogo.
Havia na década de 1920 um grupo muito coeso de pesquisa formado
pela conhecida “troika”: Vigotski (1896 – 1934), Alexander Romanovich Lúria
(1902 – 1977) e Alexei Nikolaievich Leontiev (1904-1979). Se observamos o
detalhe da diferença de idade entre estes três pesquisadores, podemos
verificar que tanto Lúria como Leontiev eram muito jovens e Vigotski já vinha de
uma experiência de trabalho educacional e, certamente, esta “troika” só se
formalizou muitos anos depois quando estes dois pesquisadores reconheceram
o que haviam desenvolvido em tão pouco tempo, no período de 1924 até 1931.
50
Em 1931 este grupo se desfez. Grupo de pesquisadores que não se constituía
apenas destes três pesquisadores, mas um conjunto significativo de
colaboradores.
Ao descreverem as fases de vida e de produção de Vigotski, vários
biógrafos não se diferem muito entre si e basicamente distinguem três fases:
antes de 1924 (a vida em Gomel e a passagem em Moscou para os seus
estudos universitários); de 1924 até 1931/32 (o trabalho centralizado de
pesquisa dentro do Instituto de Pesquisa em Moscou até os processos de
descentralização e controle); 1931/1932 a 1934 (acirramento do controle
central sobre as pesquisas e a ampliação do campo de pesquisa com
definições de novas abordagens epistemológicas).
Um dos principais biógrafos (e pioneiro) de Vigotski, Alex Kozulin, não
se preocupa em definir uma linha cronológica demarcatória, mas de evidenciar
o quanto o estudo sobre a tragédia shakespeariana, Hamlet – Príncipe da
Dinamarca, foi tão determinante para a formação acadêmica de Vigotski. O
primeiro rascunho deste ensaio já fora escrito no final do ano de 1916, quando
tinha 20 anos de idade. O ensaio sobre Hamlet culmina com o começo da
carreira de Vigotski como escritor humanista. No período de graduação
acadêmica em Moscou Vigotski tinha um mentor literário chamado Yuli
Aichenwald, que exilou-se em 1922 em função de contrariedades políticas da
época. Conforme KOZULIN (1990), este foi um duro golpe para Vigotski, pois
havia criado uma parceria formativa muito estreita e profícua. Aichenwald
escreveu um livro sobre os escritores russos que ficou muito conhecido na
época; nessa obra, criticava duramente a concepção pragmática da literatura
como instrumento de mudança social. Para Aichenwald, o autor é o centro de
uma época histórica e não uma esponja que absorve problemas sociais. Esta
ideia está relacionada com outra, da relação entre a arte e a vida, entra a
palavra e a ação. A arte cria a vida, em lugar de refleti-la. Entendemos que este
mentor foi um escritor que influenciou muito a formação crítica de Vigotski.
VEER & VALSINER (2009) preocupam-se em fazer uma
contextualização das obras de Vigotski, mas não a fazem considerando a
inserção histórico-crítica. Há preocupação em apontar os principais temas com
51
os quais Vigotski se envolveu: psicologia pedagógica, defectologia, psicanálise,
crise da psicologia e os fundamentos que eles denominam como “histórico-
cultural”. Dividem-se três fases principais da vida de Vigotski: i) os primeiros
anos em Moscou, de 1924 a 1928; ii) a teoria histórico-cultural, de 1928 a 1932;
iii) Moscou, Kharkov e Leningrado, de 1932 a 1934. Em relação ao período de
1916-1923 os autores constatam que “nenhuma publicação nesse período de
sete anos” (Ibidem, p. 21) fora verificada, o que torna uma tarefa intrigante para
os biógrafos, mas os autores também reconhecem que ainda não haviam sido
devidamente investigadas as fontes disponíveis e que alguns indícios
apontavam para uma outra situação.
GONZÁLEZ REY (2013) distingue três momentos do pensamento
vigotskiano: o primeiro compreende de 1915 e 1928; o segundo momento de
1928 a 1931; e, o terceiro, entre 1928 e 1934 (Ibidem, p. 4). No primeiro
momento, Vigotski vive a tensão na psicologia soviética entre o idealismo e o
materialismo e a gradativa transição do materialismo histórico e dialético, que
passou a ser cada vez mais “dogmático e mecanicista” a ponto de não caber
mais “a dialética como modelo de pensamento” (Ibidem, p. 7). Esta visão
dogmática, determinista e sectarista levou a psicologia soviética “pela
conversão da categoria de reflexo em princípio essencial para a representação
da psique” (Ibidem, p. 7). Conforme GONZALEZ REY, a dialética que não
deveria escapar da análise das contradições entre “as formas de realidade
dentro das quais se desenvolve a experiência de vida do sujeito” e “as formas
subjetivas que se produzem nessa experiência, questão essencial para o tema
da subjetividade, foi deixada de lado” (Ibidem, p. 7) e este caminho
gradativamente foi criando uma política de controle na URSS para definir o que
era correto ou não. O segundo momento GONZALEZ REY denomina de “giro
objetivista de Vigotski” destacando três aspectos: primeiro, em alguns de seus
trabalhos, por exemplo, “História das Funções Psíquicas Superiores”, enfatiza-
se o conceito de “assimilação” que está muito próximo à noção de “reflexo” tão
diferente ao caráter do estudo genético da origem da psique; segundo,
estabelece uma dicotomia entre “o signo como meio de influência sobre os
demais e como meio de influência sobre si mesmo” – visto desta maneira o
signo passa a ser uma “representação instrumental de sua relação com a
52
função psíquica”; terceiro, também uma dicotomia ao enfatizar a relação entre
o interno e o externo – afirma que primeiro vem o externo para depois vem o
interno – “rompe com o caráter dialético do desenvolvimento” que estava tão
fortemente presente no primeiro momento analisado. Conforme o autor, neste
momento, Vigotski está muito próximo de Alexei Leontiev e dos teóricos da
atividade” (Ibidem, ps. 85-87). Novas categorias surgem no terceiro período,
por exemplo, a categoria de “sentido” que Vigotski faz um destaque especial
em “Pensamento e Linguagem” – esta categoria integraria uma unidade
dinâmica entre afeto e cognição. Segundo GONZALEZ REY, ao reconhecer um
novo tipo de unidade do sistema psíquico rompe-se com a dicotomia do
individual e do social tão presente na psicologia (ibidem, p. 95). Em outro
momento, ao tratar da personalidade, conforme o autor, Vigotski une
“personalidade à consciência e à espiritualidade” (Ibidem, p. 97).
Del RÍO, numa entrevista concedida a uma revista (REGO & BRAGA,
2013), destaca basicamente duas fases, se assim, de maneira simples,
podemos considerar: a década literária (1914-1924) e a década psicológica
(1924-1934). Semelhante às considerações de KOZULIN (1990) não se
identifica a “década literária” como “heterogênea” ou “irrelevante”, mas
extremamente determinante para os estudos de psicologia que Vigotski irá
desenvolver na década seguinte. Para ÁLVAREZ & Del RÍO (2007) também a
pesquisa sobre a tragédia shakespeariana Hamlet – Príncipe da Dinamarca foi
um ensaio que qualificou os estudos de Vigotski.
“Vigotski encontra em Hamlet também outra coisa: o fato humano ainda é incognoscível, e um grande desafio. E saber para onde a humanidade vai é a grande incógnita da humanidade consciente, aquela pequena parte da humanidade que não pode viver sem se fazer tais perguntas. A maioria das pessoas decide não as fazer e viver o dia a dia, canalizando suas funções superiores a uma consciência, digamos, prática, operatória. Aplicar as capacidades da consciência a tempos e espaços mais amplos leva-nos a formular essas perguntas que se fazia Vigotski, e, ainda hoje, o empenho está condenado ao mistério, ao fato de que você não vai revolvê-las, mas deve chegar aonde puder. É isso o que Vigotski faz a partir de Hamlet: de um lado, ele se depara com o mistério; do outro, impõe-se o desafio de aceitar a missão de ordenar aquilo que conseguir a respeito do assunto. Então, ele está condenado a essa psicologia” (Del RÍO, cit. entrevistadoras REGO & BRAGA, 2013, p. 518).
53
YASNITSKY (2011) faz uma defesa não do exclusivismo da
personalidade de Vigotski, mas coloca-o num círculo marcado pelas fortes
inter-relações entre os pesquisadores que começa em 1924 e termina em
1941. Neste período distingue cinco fases do círculo vigotskiano: primeira fase,
1924 - 1927, considera como “pré-história” do círculo vigotskiano marcado pelo
início das atividades no Instituto de Psicologia em Moscou e pelas pesquisas
realizadas no departamento de pesquisa com crianças e adolescentes com
problemas de desenvolvimento mental e motor. Muitos alunos de graduação
são convidados neste momento para participar de programas de pesquisa, mas
ainda não se estabelece um contato estreito com os pesquisadores; segunda
fase, 1927-1931, é a que YASNITSKY denomina de “círculo Lúria-Vigotski” e
contrariando as “narrativas historiográficas” não inclui Alexei Leontiev nessa
fase, em razão das parcerias para publicações muito mais consolidadas entre
Lúria-Vigotski do que com Leontiev (Ibidem, p. 429). No final desta fase,
Vigotski começa a ser severamente criticado pela sua “teoria histórico cultural”,
mas é neste momento que tanto Lúria como Vigotski serão admitidos no curso
de medicina e isso demonstra que há um interesse de concatenar os estudos
psicológicos com a área de neurologia. Várias pesquisas são realizadas nessa
fase que reforça a parceria Lúria-Vigotski sobre vontade, atenção, pensamento
visual, transição da fala externa para interna, afasia, esquizofrenia, histeria,
etc.; na terceira fase, 1931-1934, o grupo de pesquisa se divide entre Moscou,
Kharkov e Leningrado. É quando vários colaboradores se mudam para Kharkov
(capital da Ucrânia) para coordenar pesquisas no setor de psicologia na recém-
criada Academia Psiconeurológica da Ucrânia. Este grupo de Kharkov é
liderado por Leontiev e será conhecido como escola da atividade. Nesse
período, Vigotski se aproximará do Instituto Pedagógico Estatal Herzen de
Leningrado e ali supervisionará El’Konin, M. Levina, Shif, Kornikova, Fradkina e
muitos outros pesquisadores; na quarta fase, 1934-1936, os pesquisadores
mais próximos do círculo de Vigotski ingressam em programas específicos de
pesquisa e migram para diferentes unidades de ensino. Em 1934, Lúria e
Leontiev deixam Kharkov e voltam para Moscou. Lúria, que estava mais
voltado para questões neurológicas, retorna em março de 1934; Leontiev
retorna em outubro para liderar o Departamento de Psicologia Clínica e depois
54
tornou-se professor membro do Instituto Comunista para Desenvolvimento do
Conhecimento, sem nunca desvincular-se dos pesquisadores de Kharkov
(Ibidem, p. 438); na quinta fase, 1936 - 1941, se consolida a escola “Vigotski-
Lúria-Leontiev”, na visão de YASNITSKY. Em 1936, por meio de um decreto, a
Pedologia foi proibida na URSS. Em 1937, vários artigos foram publicados
condenando “a pervertida pedologia de Vigotski”. Nessa fase, tanto Lúria como
Leontiev mantiveram-se em silêncio. Contudo, em 1936, apareceu um artigo de
Alexei Leontiev – O ensino sobre o ambiente nos trabalhos pedológicos de
Vigotski (1936-37) – no qual critica a teoria vigotskiana. Segundo YASNITSKY,
vários colaboradores de Vigotski se afastaram de Leontiev como também,
podemos deduzir, mantiveram certos cuidados nas suas pesquisas e
publicações. A partir de 1940, entretanto, Lúria e Leontiev iniciaram uma
parceria que também resultou em várias publicações e o grupo de
pesquisadores tanto de Kharkov como de Leningrado continuou recebendo
supervisão.
Para aprofundarmos nossos estudos em Vigotski, consideramos
necessário, na primeira parte, analisar os aspectos voltados para sua realidade
socio-histórica. No primeiro capítulo, abordamos a hermenêutica de
profundidade de Thompson. Em seguida, consideraremos “as condições
sociais e históricas” (Capítulo 2), as implicações formativas específicas do
autor (capítulo 3), como a obra é compreendida nos dias de hoje pelos
pesquisadores-biógrafos (capítulo 4), também as condições sociais e históricas
de produção, circulação e recepção das obras (capítulo 5), os desafios para
interpretar o cânone vigotskiano (capítulo 6), bem como as questões que
norteiam sua teoria não como um caráter monolítico, mas aberto e vivo. Isto é o
que denominamos “estado da arte da hermenêutica vigotskiana”.
55
Capítulo 2: Contexto histórico – Revolução de Outubro de 1917
O século XX realmente foi dos extremos e suas consequências estão
dentro de nós. Para muitos ainda uma marca na vida.
“(...) o Breve Século XX, ou seja, os anos que vão da eclosão da Primeira Guerra Mundial ao colapso da URSS, que, como agora podemos ver retrospectivamente, formam um período histórico coerente já encerrado. Não sabemos o que virá a seguir, nem como será o segundo milênio, embora possamos ter certeza de que ele terá sido moldado pelo Breve Século XX. Contudo, não há como duvidar seriamente de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra nova começou. Esta é a informação essencial para os historiadores do século, pois embora eles possam especular sobre o futuro à luz de sua compreensão do passado, seu trabalho não tem nada a ver com palpites em corridas de cavalos. As únicas corridas de cavalos que esses historiadores podem pretender relatar e analisar são as já ganhas ou perdidas. Seja como for, nos últimos trinta ou quarenta anos o desempenho dos adivinhos, fossem quais fossem suas qualificações profissionais como profetas, mostrou-se tão espetacularmente ruim que só governos e institutos de pesquisa econômica ainda têm, ou dizem ter, maior confiança nele. É possível mesmo que depois da Segunda Guerra Mundial esse desempenho tenha piorado” (A Era dos Extremos - O Breve Século XX – 1914-1991; p.15).
Eric Hobsbawm chama atenção para o fato de que, entre 1815 e 1914,
não houve na Europa uma guerra de grandes mobilizações que envolvesse
vários países. Embora tenha ocorrido no extremo oriente, a guerra entre o
Japão e a Rússia não envolveu outras nações e foi rapidamente resolvida com
acordo de paz solicitado por parte da Rússia. Foi uma guerra bem distante da
Europa Ocidental e a mobilização do exército russo para o extremo oriente lhe
custou muito caro e influenciou decisivamente no enfraquecimento da
monarquia. Tudo isso se alterou na Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1917,
que envolveu várias nações e obrigou a realização de várias alianças e
estratégias para protelar, entrar ou se retirar deste conflito. Nosso historiador
didaticamente estrutura este século a partir de três momentos: i) Era da
Catástrofe: início da Primeira até o final da Segunda Guerra Mundial; ii)
seguiram-se 25 anos de intenso progresso denominado de Era de Ouro,
caracterizado pelo extraordinário crescimento econômico; iii) Era de Crise –
desmantelamento da URSS e o endividamento dos países do assim
56
denominado Terceiro Mundo (HOBSBAWN, 1998, p.15). Alguns historiadores,
depois da queda do Muro de Berlim, pregaram o “fim da história”, mas, como o
próprio Hobsbawn destaca “enquanto houver raça humana haverá história”
(Ibidem, p. 16).
Nosso interesse aqui é localizar o papel da Revolução Russa e os
aspectos centrais referentes ao processo de institucionalização do socialismo
na Rússia, que inicia, como apregoado pelos fundadores do socialismo
científico Karl Marx e Friedrich Engels, com a ditatura do proletariado.
Na teoria marxiana fica claro a organização da sociedade capitalista
sobre uma base econômica e uma superestrutura política, mas os manuais não
foram suficientes para orientar a organização de um Estado Socialista. Além
dos esforços internos necessários para organização institucional foi necessário
também enfrentar as reações externas, alianças burguesas contra a ameaça
da internacionalização do movimento socialista na Europa Ocidental. A
determinante capacidade russa para reagir aos levantes contrarrevolucionários
só foi bem-sucedida porque a Europa Ocidental estava completamente
desgastada com as consequências da Primeira Guerra Mundial.
O estado socialista na Rússia iniciou de fato em 1921, depois de
resolver internamente a guerra civil, quando os levantes contrarrevolucionários
foram reprimidos e os sovietes tomaram o poder estatal, dando início à União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Para chegar numa união de repúblicas é preciso destacar rapidamente
as razões que contribuíram para sair de uma estrutura econômica agrária até
transformar-se numa economia socialista com base na planificação estatal. Até
o início do século XX, a Rússia ainda mantinha um império monárquico
absolutista e vários fatos impuseram a abdicação do imperador Nicolau II
(1868-1918) no início de 1917.
Logo instaurou-se um governo transitório de caráter social-democrata
que assumiu o desafio de elaborar uma constituição e implementar modelos
políticos da Europa Ocidental, mas este não se sustentou; em outubro de 1917,
foi deposto e a revolução bolchevique instituiu o poder definitivo dos sovietes.
Neste mesmo momento foi criado um Comitê Central que fora presidido por
Lênin.
57
Toda esta dinâmica no ano de 1917, na Rússia, é muito bem
conhecida, mas é necessário apresentar resumidamente as prerrogativas que
corroboraram para que a revolução socialista – que veio sendo forjada desde
1905, quando irrompeu o primeiro levante contra a monarquia – obtivesse
êxito:
1) A construção da cidade de São Petersburgo no século XVIII pelo
imperador Pedro (1682-1721) e projetos executados ao longo do século XVIII
pelos sucessores deixaram marcas profundas de exploração extrema na
sociedade russa, mesmo que mais tarde esta exploração tenha sido abrandada
com a temeridade das revoltas populares à moda da Revolução Francesa
(1789);
2) Durante o século XIX, a Rússia vivia o dilema diante dos
processos de modernização que não ocorriam em seu solo; se comparada com
outras regiões da Europa Ocidental, era extremamente atrasada e rural;
3) A Rússia era predominantemente agrícola com uma estrutura
ainda feudal. A abolição do servo ocorreu tardiamente, em 1860, devido à
pressão dos camponeses que reivindicaram mais autonomia. A abolição foi
aprovada, mas os camponeses foram submetidos a processos de exploração
muito piores que antes;
4) Para garantir a ampla extensão territorial, o Império Russo
precisava investir no seu exército e garantir suas fronteiras. Contudo, os
benefícios para os soldados combatentes não existiam e as compensações por
manter as fronteiras ou por guerras vencidas eram destinadas à nobreza
proprietária de terra;
5) O movimento dos trabalhadores, que ocorreu logo no início do
século XX na Rússia, especialmente coordenado na região de São
Petersburgo, foi determinante para também deixar marcas na sociedade. A
ofensiva da repressão ocorrida em 1905 contra os trabalhadores e contra o
movimento dezembrista (movimento liberal), que reivindicavam maior
participação na administração do estado, à moda da monarquia constitucional
58
das nações ocidentais, instigou os trabalhadores a usarem a mesma estratégia
de violência. Outro fato também sempre lembrado: após 1905, o imperador
havia concordado com uma série de reformas, mas, depois de apaziguado os
movimentos, instituiu um estado de terror e perseguições, o que contribuiu para
o acirramento e as confrontações internas.
Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924) foi um dos líderes mais influentes da
Revolução Russa e seu período na direção do Secretariado Geral do Partido
Comunista da União Soviética (1922-1924) foi também um dos momentos mais
intensos e ricos para a definição das instituições. Este momento durou até o
início da direção assumida por Josef Vissorionovitch Stalin (1922-1953).
Um dos livros de Lênin no qual podemos constatar sua oposição
radical e contundente ao marxismo que se transformou em social-democracia,
especialmente o da Alemanha, é O Estado e a Revolução -A Doutrina do
Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução. Este livro
foi escrito quando Lênin estava vivendo na clandestinidade (agosto/setembro
de 1917), em razão da perseguição do governo provisório que teve o apoio dos
mencheviques. Esta transição ocorreu de março até outubro, quando
definitivamente os bolcheviques tomaram o poder com a força dos sovietes que
estavam majoritariamente sob comando dos mencheviques e os socialistas
revolucionários. Neste período de autoexílio, estava Lênin preocupado com o
problema do Estado Proletário em caso da tomada do poder. Lênin
considerava as concepções marxistas da Europa Ocidental, e, especialmente
as proclamadas por Karl Kautsky (1854-1938), como deturpações da teoria
marxiana. Estas observações ele já vinha fazendo antes de 1917 e estava
refletindo e escrevendo sobre a teoria do Estado Proletário como uma
realidade objetiva e não como uma suposição especulativa. Podemos perceber
que Lênin escrevia sobre sua práxis política e suas obras derivavam de
reflexões da realidade de sua época. Eram reflexões e decisões que poderiam
ser estudadas por todos, confrontadas e debatidas abertamente. Não se
negava ao debate e fazia isto simultaneamente registrando suas reflexões
sobre a realidade política em geral e sobre as decisões em particular. Lênin era
um dirigente político revolucionário que não deixava a teoria de lado.
59
“Uma tentativa de entender Lênin deve partir, forçosamente, do reconhecimento dessa verdade que, por mais conhecida, se costuma esquecer, a saber: que Lênin é acima de tudo um dirigente político revolucionário. Sua personalidade política revolucionária se desdobra ao longo de sua vida nas mais diversas e complexas circunstâncias: no triunfo e na derrota, no avanço e na retirada, na clandestinidade e na legalidade, no interior do país e no exílio, na maré revolucionária e no refluxo. Como organizador e dirigente do partido bolchevique; como estrategista da revolução; como construtor e chefe do primeiro Estado operário, Lênin é acima de tudo um político revolucionário. Em cada momento, em cada uma de suas facetas, domina sua atividade prática objetiva, transformadora e consciente do mundo, isto é, como forma de práxis” (VÁZQUEZ, 2011, p. 177).
Estado e Revolução é um livro que combate o revisionismo como
também problematiza os próximos passos que a revolução deverá tomar
quanto à organização social. É aqui que conseguimos entender a concepção
de Estado que também fora analisada tanto por Hegel como por Marx.
“No domínio da filosofia, o revisionismo caminhava a reboque da “ciência” acadêmica burguesa. Os professores “voltavam a Kant”, e o revisionismo arrastava-se atrás dos neokantianos; os professores repetiam, pela milésima vez, as vulgaridades dos padres contra o materialismo filosófico, e os revisionistas, sorrindo condescendentemente, resmungavam (repetindo palavra por palavra o último Manual que o materialismo havia sido “refutado” há muito tempo). Os professores tratavam Hegel como um “cão morto” e, pregando eles próprios o idealismo, mas um idealismo mil vezes mais mesquinho e banal que o hegeliano, encolhiam desdenhosamente os ombros diante da dialética, e os revisionistas mergulhavam atrás deles no pântano do aviltamento filosófico da ciência, substituindo a “subtil” (e revolucionária) dialética pela “simples” (e tranquila) “evolução”; os professores ganhavam os seus ordenados do Estado acomodando os seus sistemas, tanto os idealistas como os “críticos”, à “filosofia” medieval dominante (isto é, à teologia), e os revisionistas aproximavam-se deles, esforçando-se por fazer da religião “assunto privado”, não em relação ao Estado moderno, mas em relação ao partido da classe de vanguarda (LÊNIN, 1977 c, p. 03).
Lênin condena a perspectiva dos revisionistas porque eles tendiam a
adotar um ecletismo para agradar os detentores do poder. Não se resolvia a
questão do Estado e acabava-se fazendo constantemente concessões de meio
termo. Lênin cita Marx com relação ao que fazer com o Estado: “a ideia de
Marx consiste em que a classe operária deve quebrar, demolir a ‘máquina de
Estado que encontra montada’ e não limitar-se simplesmente à sua conquista”
(Ibidem, p. 55). Assustadora a radicalidade em comparação à docilidade
social-democrata e condenava os revisionistas que faziam adaptações levando
60
ao oportunismo, que nada mais era do que fazer também uma adaptação “da
dialética ao ecletismo”, que era o que possibilitava “enganar as massas com
maior facilidade, dá uma satisfação aparente, tem pretensamente em conta
todos os aspectos do processo, todas as tendências do desenvolvimento, todas
as influências contraditórias, etc., mas, na realidade, não dá nenhuma
concepção integral e revolucionária do processo do desenvolvimento social”
(Ibidem, p. 12). Para Lênin era necessário compreender a dialética na política,
na práxis política, para compreender como se dá a “dialética interna do
parlamentarismo e da democracia burguesa” (LÊNIN, 1977c, p. 06).
Karl Marx retirou da revolução de 1848, na Alemanha, suas lições de
política e também sobre o movimento dos interesses da burguesia para
perpetuação do poder. Naquela época, os operários e os camponeses tinham a
possibilidade de tomar o poder do Estado, mas duvidavam da própria
capacidade para tamanho empreendimento revolucionário. Assim como para
Marx a revolução de 1848 foi a realidade para a teorização política, também a
Comuna de Paris (1871) a foi para Lênin, que destinou tempo apropriado para
analisar os detalhes da curta duração de um poder que não conseguiu se
sustentar, mas que foi uma experiência que tentou tomar conta do Estado e
criar uma dinâmica de organização própria da população.
“Mas por que é que o proletariado, não apenas francês, mas de todo o mundo, honra nos militantes da Comuna de Paris os seus precursores? E em que consiste a herança da Comuna?
A Comuna surgiu espontaneamente, ninguém a preparou consciente e organizadamente. A guerra malsucedida com a Alemanha, os sofrimentos durante o cerco, o desemprego entre o proletariado e a ruína da pequena burguesia; a indignação da massa contra as classes superiores e contra as autoridades, que manifestaram uma completa incapacidade, uma efervescência confusa no seio da classe operária, descontente com a sua situação e que aspirava a outro regime social; a composição reacionária da Assembleia Nacional, que fazia recear pelo destino da república – tudo isto e muito mais, se conjugou para impelir a população de Paris para a revolução de 18 de Março, que colocou inesperadamente o poder nas mãos da guarda nacional, nas mãos da classe operária e da pequena burguesia que se colocou ao seu lado” (LÊNIN, 1977a, p. 02).
Lênin analisa na Comuna de Paris o comportamento da burguesia e
sua relação com o proletariado nos momentos de crise e lhe será útil nos
momentos cruciais da Revolução Socialista na Rússia.
61
Voltando para o início do ano de 1917. Vários movimentos contra a
fome, greves e demonstrações de organização e reivindicações de
trabalhadores se alastraram em Petrogrado. Reuniram-se a estes movimentos
os soldados que cuidavam da guarnição da cidade. Sem demora também o
movimento ganhou adesão em Moscou. O exército Russo estava nas fronteiras
com todo seu contingente e o imperador não teve outra alternativa senão
abdicar. Vários centros políticos surgiram neste período para organizar o
Estado e as instituições. A primeira organização política denominava-se Dumas
de Estado, que reuniam políticos representantes das velhas classes
dominantes. Inicialmente, pensou-se numa monarquia constitucional, mas esta
ideia logo foi suprimida. Paralelamente ao poder representado pela Duma,
foram criados os sovietes em Petrogrado que reunia delegados operários muito
influenciados pelos mencheviques e pelos ideais socialistas. Os sovietes
ganharam importância pela capacidade de organização e de capilarização, mas
ainda não se julgavam capazes para coordenar uma organização estatal e
colaboraram para instituir um governo liberal provisório, visando estabelecer
um sistema democrático. Ministros foram instituídos por acordos e um
socialista assumiu a pasta: Alexander Fiodorovitch Kerensky (1881-1970), que
representava as camadas médias e intelectuais.
Em abril de 1917, Lênin retornou do exílio e imediatamente apresentou
uma proposta contundente sem desconsiderar as tensas relações que se
estabeleciam no contexto político. Com as “Teses sobre as tarefas do
proletariado na revolução atual” (mais conhecidas como Teses de abril)
proclamava o firme propósito de não apoiar o governo provisório. Lênin
também refutava as posições dos mencheviques que não investiam ou que
temiam o acirramento da revolução socialista. A posição de Lênin era diferente
das visões ou concepções socialistas dominantes na Europa, que colocavam a
revolução socialista como uma possibilidade longínqua ou intangível e que
aguardavam as contradições naturais do capitalismo.
A guerra mundial ainda continuava e a Rússia estava envolvida com
ela; buscava-se uma proposta de paz com os alemães, mas isto se arrastou
sem uma decisão final. Enquanto isso, internamente, muitos conflitos e
indefinições surgiam sem um encaminhamento. A maioria dos sovietes, por um
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momento, ficou nas mãos dos bolcheviques, mas perdeu esta condição quando
os mencheviques se alinharam com o governo. Os bolcheviques foram
reprimidos e Lev Kamenev (1883-1936), assim como Lênin, voltaram para a
clandestinidade acusados de colaborarem com os alemães.
Lênin apareceu novamente no IV Congresso do Partido Social-
Democrata como firme propósito de tomar o estado e fazer a reestruturação
total. Concluía que enquanto permanecesse apenas nas questões de
representação política não resolvia e não se enfrentava a questão que era
crucial: tomar o poder do Estado. Lênin também reconhecia que a democracia
servia aos interesses da burguesia como também servia como instrumento
para exploração das classes oprimidas. O poder do estado deveria ser tomado
pela classe trabalhadora e não dividido com qualquer outro setor da sociedade.
No final do verão de 1917, os contrarrevolucionários tentaram instaurar
uma ditadura com o intuito de esmagar definitivamente a organização dos
sovietes. A insurreição não deu certo e perdeu drasticamente credibilidade e
força de reação. Os bolcheviques retornaram fortalecidos com o apoio dos
sovietes e com o apoio de unidades militares. Lênin propunha um compromisso
para os mencheviques e socialistas revolucionários: todo poder aos sovietes.
Mas novamente os contrarrevolucionários surgem para obstaculizar o
movimento revolucionário e Lênin instiga uma posição mais à esquerda para
que os sovietes tomassem o poder imediatamente. Nas noites entre 25 e 26 de
outubro de 1917, pontos estratégicos foram ocupados em Moscou e o palácio
do governo foi tomado. Instaurou-se o primeiro passo para a implantação do
socialismo na Rússia e outros desafios surgiriam, já que experiências no
passado mostravam a dificuldade de manter o poder com a classe
trabalhadora.
Lênin assumiu a direção dos bolcheviques e imediatamente decretou a
expropriação das terras dos latifundiários, estatização dos bancos, fábricas e
empresas e o desmantelamento do exército. Com a vitória da revolução
bolchevista cabia agora organizar esta nova sociedade com instituições que
deveriam se diferir radicalmente dos sistemas econômicos capitalistas e os
sistemas políticos liberais burgueses predominantes no ocidente.
63
Até 1921, a Rússia não conseguiu estabilidade interna em razão da
guerra civil travada entre o exército vermelho (os revolucionários) e o exército
branco (os contrarrevolucionários). Após 1921, não havia mais resistência
interna e a política liberal dos mencheviques estava totalmente excluída da
revolução socialista.
A Revolução de Outubro de 1917 trouxe o problema do caminho do
poder. Os movimentos socialistas na Europa ocidental fracassaram um a um e
os marxistas revolucionários foram levados ao isolamento. Um outro aspecto
foi que, pela primeira vez, o problema da construção de uma sociedade deixou
de ser abstrato. Esta situação exigira o debate se a Rússia seguiria
movimentos da Europa Ocidental ou, então, assumiria a liderança do
movimento socialista mundial.
Vigotski viveu neste momento na Rússia, e em Moscou. Em 1917
terminou seu curso de Direito e não se tem “nenhum” registro que tenha
participado de qualquer iniciativa, debate ou que tenha sistematizado uma
reflexão política sobre este momento. Temos apenas uma informação de que
Vigotski havia escrito sistematicamente num periódico judaico (Novyj Put) e em
outro (Letopis), criticando a ditadura do proletariado e em razão destes
periódicos terem um perfil social-democrata foram fechados com a
consolidação da revolução (VEER & VALSINER, 2009, p. 21).
É certo que pelo caráter da família de Vigotski, que nesta época residia
em Gomel, Bielorússia, cidade com população majoritariamente de tradição
judaica, não havia um alinhamento com o poder monárquico. O imperador
Nicolau III foi implacável na perseguição contra os judeus na Rússia porque
também sempre desconfiava do interesse das classes ascendentes.
Em 1919, Lênin estava maravilhado com o poder do rádio e começou a
fazer discursos para ampliar seu poder de influência. Num destes momentos
proferiu o seguinte discurso sobre a situação dos judeus na Rússia:
“It is not the Jews who are the enemies of the working people. The enemies of the workers are the capitalists of all countries. Among the Jews there are working people, and they form the majority. They are our brothers, who, like us, are oppressed by capital; they are our comrades in the struggle for socialism. Among the Jews there are kulaks, exploiters and capitalists, just as there are among the
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Russians, and among people of all nations. The capitalists strive to sow and foment hatred between workers of different faiths, different nations and different races. Those who do not work are kept in power by the power and strength of capital. Rich Jews, like rich Russians, and the rich in all countries, are in alliance to oppress, crush, rob and disunite the workers.
Shame on accursed tsarism which tortured and persecuted the Jews. Shame on those who foment hatred towards the Jews, who foment hatred towards other nations.
Long live the fraternal trust and fighting alliance of the workers of all nations in the struggle to overthrow capital” (LÊNIN, V. I. Speeches on gramophone records. Recorded end of March, 1919. Lênin’s Collected Work, 4th, Moscou, 1972, Vol 29, ps. 252 and 253).25
A posição de Lênin diante da comunidade judaica constituía uma
política totalmente inversa da Europa Ocidental e da monarquia russa. Todo
debate sobre a emancipação política transformara-se coerentemente na
integração do povo judaico para a ação conjunta da política de construção da
emancipação humana. Vigotski envolveu-se neste debate intensivamente e
veremos, no próximo capítulo, como este debate, por um lado, passou a não
ter mais sentido, e, por outro lado, forçava para uma unidade política que não
permitia comunidades autônomas como até então muitas delas reivindicavam
diante da monarquia absolutista.
Diante deste turbilhão de acontecimentos políticos, aqui rapidamente
colocados, nos perguntamos: Qual é a posição política de Vigotski neste
momento crucial na Rússia?
25“Não são os judeus que são os inimigos do povo trabalhador. Os inimigos dos trabalhadores
são os capitalistas de todos os países. Entre os judeus, há pessoas trabalhadoras, e eles formam a maioria. Eles são nossos irmãos, que, como nós, são oprimidos pelo capital, pois eles são nossos companheiros na luta pelo socialismo. Entre os judeus há kulaks, exploradores e capitalistas, assim como há entre os russos, e entre os povos de todas as nações. Os capitalistas se esforçam para semear e fomentar o ódio entre trabalhadores de diferentes credos, nações e raças diferentes. Aqueles que não trabalham são mantidos no poder pelo poder e pela força do capital. Judeus ricos, como russos ricos, e os ricos em todos os países, estão em aliança para oprimir, esmagar, roubar e desunir os trabalhadores. Vergonha ao tsarismo amaldiçoado que torturou e perseguiu os judeus. Vergonha para aqueles que fomentam ódio contra os judeus, que fomentam o ódio para com outras nações. Viva a confiança fraterna e a aliança combativa dos trabalhadores de todas as nações na luta para derrubar o capital" (Nossa tradução).
65
Capítulo 3: A questão judaica na Rússia
Poucos trabalhos biográficos se atêm criteriosamente ao período que
Vigotski viveu como estudante em Moscou (1914-1917) e ao período
subsequente à Revolução Russa em Gomel (1917-1924). DEL RÍO (cit. REGO
& BRAGA, 2013, p. 517) afirma que este período deve ser conhecido como a
“década literária” de Vigotski (1914-1924). É dentro deste período que fica
evidenciado muito mais o caráter mobilizador e articulador político em defesa
do povo judaico do que um jovem engajado com os movimentos
revolucionários socialistas. Contudo, há tantas maneiras de ser revolucionário.
Se, ao mesmo tempo, definirmos também como revolucionário aquele que
contribui para mudar as estruturas da sociedade podemos apresentar
indubitavelmente Vigotski como muitos daqueles que atuaram no Instituto de
Psicologia em Moscou na década de 1920, mais precisamente, a partir de
janeiro de 1923, quando da realização do Primeiro Congresso Nacional de
Psiconeurologia.
A família de Vigodski26 era simpatizante da revolução? É improvável
que a família burguesa Vigodski se aventurasse no engajamento a um
movimento socialista pela abolição da propriedade privada e pela supressão da
divisão das classes sociais na sociedade. O pai de Vigotski exercia alta função
administrativa em bancos e estabelecimentos comerciais na cidade de Gomel
(Bielorússia) e garantia o ensino tutorial para os seus oito filhos (Vigotski era o
segundo mais velho).
A cidade de Gomel dista 240 km da capital Minsk e está a 600 km a
sudoeste de Moscou, cidade que, no final do século XVIII e início do século
XIX, já despontava como um centro comercial. Sua localização estratégica
possibilitava o amplo comércio com a Europa Ocidental. Chama-nos a atenção
a predominância da comunidade judaica na cidade que fora fundada no início
do século XVI.
Jews had lived in Gomel’ since 1537. The first All-Russian census of 1897 records Gomel’ as a predominantly Jewish city. Of its 37.355
26 Vigotski trocou o nome de família “Vigodski” para “Vigotski. Encontramos em KOZULIN (1990) a justificativa de que o jovem Lev estudou a origem de seu sobrenome no povo “Vigotovo” e decidiu substituir o “d” pelo “t”.
66
inhabitants, 20.385 (54.6%) were Jewish (KOTIK-FRIDGUT & FRIEDGUT; 2008, p. 17)27.
Em 1903, teve um episódio em Gomel que deve ter marcado
profundamente a infância de Vigotski. Surgiu um movimento para expulsar os
comerciantes judeus da cidade, mas estes conseguiram se organizar, reagir e
neutralizar a intenção dos invasores. Não era tão normal na Rússia os judeus
reagirem ou se organizarem contra os movimentos desta natureza (KOZULIN,
1990), mas como a comunidade judaica de Gomel era muito antiga e era
maioria, impunha-se contra as ameaças externas. Ao mesmo tempo em que
criava um ambiente cooperativo, tendia ao isolamento e se fragilizava diante
das vicissitudes da política externa.
No início do século XX, a cidade de Gomel continuava sendo
predominantemente judaica e com traços conservadores, mas também surgiam
movimentos liberais, movimentos mais incisivos que reivindicavam maior
participação social e até mesmo movimentos que reivindicavam a
transformação das estruturas políticas e econômicas da cidade. A busca pela
emancipação política também passava pelos conflitos internos identitários, isto
porque, de um lado, havia a formação ortodoxa do judaísmo em torno da
espera de um momento de redenção do povo escolhido, o messianismo
judaico, e, de outro, as utopias libertárias adotadas pelos mais jovens que
reivindicavam inserção e transformações estruturais na sociedade. Havia em
Gomel desde grupos ou movimentos ortodoxos – Hasidim– até socialistas
revolucionários com intenções de criar uma república socialista em Israel.
The Jewish community of Gomel’ included all trends of Jewish organization and outlook. The city was a center for the Liubavich Hasidim. There were also Zionist–Socialist Poalei Zion, urging the Jews to go to the Land of Israel to build a socialist society, and their rivals, the Jewish Marxist Social Democratic Bund, who sought to be an integral part of the revolutionary socialist movement of Russia but insisted on carrying their propaganda to Jewish workers in the Yiddish vernacular28 (Ibidem. p. 18).
27 “Judeus viviam em Gomel desde 1537. O primeiro censo geral da Rússia de 1897 registrou Gomel como uma cidade predominantemente judaica. De seus 37.355 habitantes, 20.385 (54.6%) eram judeus.” (Tradução nossa). 28 “A comunidade judaica de Gomel incluiu todas as tendências de organização judaica. A cidade era um
centro para a Liubavich Hasidim. Havia também trabalhadores sionistas socialistas exortando os judeus a irem à Terra de Israel para construir uma sociedade socialista; e seus rivais, o Movimento Marxista
67
Havia também uma organização secular não tão importante em Gomel,
mas que trazia em seu nome a herança do pensamento iluminista: Associação
Secular para Esclarecimento dos Judeus. Este movimento ganhou relevância
nos séculos XVIII e XIX com a principal reivindicação da integração dos judeus
na sociedade. Em muitos países era vedado aos judeus a participação política
como também assumirem funções no serviço público – restrições estas muito
mais fortes na Rússia, isto porque eram definidos assentamentos reservados
para os judeus, acesso limitado ao ensino fundamental e universitário e
proibição para atuação profissional fora dos assentamentos. Predominava
nestas comunidades o vernáculo “Iídiche” 29 o que lhes reforçava uma
identidade e, ao mesmo tempo, os isolava. O pai de Vigotski, Semion L’vovich
Vigosdski, foi presidente desta organização em Gomel por muito tempo; fato
pelo qual já podemos deduzir o caráter não ortodoxo da família. Em Gomel,
esta organização foi responsável por manter duas escolas privadas para judeus
(uma para moças e outra para rapazes) e lhes assegurava uma relativa
autonomia. Estas duas escolas inovavam e se diferenciavam de outras
comunidades judaicas porque não adotavam mais o “iídiche”, mas sim o russo
como língua oficial. Podemos concluir que a família Vigotdski também defendia
o acesso de todos à educação e liderava várias iniciativas para integração da
comunidade judaica.
Vigotski ingressou na Universidade Estatal de Moscou em 1914. Na
época universitária de Vigotski, havia na Rússia uma intelligentsia associada à
ideia de classe intelectual que compartilhava valores comuns e que se
constituía num grupo preocupado com as condições sociais, justiça, política, e
formação do povo. Os personagens literários eram considerados por esta
intelligentsia como tipos sociais e psicológicos ideais e o caminho das letras
era uma trajetória desejada pelos intelectuais que desembarcassem em
Moscou em busca de reconhecimento (como também em São Petersburgo).
Social Democrata Judeu, que procurava ser uma parte integrante do movimento socialista revolucionário da Rússia, mas insistiu em levar sua propaganda para trabalhadores judeus no vernáculo iídiche” (Tradução nossa). 29 Língua germânica das comunidades judaicas da Europa Central e oriental baseado na mistura entre alemão, hebraico e eslavo.
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Identifica-se Vigotski justamente como este tipo de intelectual voltado para a
crítica literária, pois prova disso são as inúmeras resenhas e artigos críticos
sobre literatura, teatro e arte que escreveu neste período (KOZULIN, 1990).
VEER & VALSINER (2009) reconhecem o período de 1914 a 1924
como um momento de pouquíssima e significativa produção e que haveria
necessidade de estudar cuidadosamente as razões pelas quais Vigotski
permanecera em relativo silêncio. Alguns autores desconfiam até de um
possível retraimento para compreender melhor os fatos que transcorriam neste
momento de revolução e guerra civil na Rússia. Tanto a afirmação de que
Vigotski tenha produzido muito pouco, quanto a que tenha se retraído por
receio de se posicionar politicamente são completamente descartadas nos dias
hoje. KOTIK-FRIDGUT & FRIEDGUT (2008), pesquisadores da Universidade
de Jerusalém, trouxeram informações detalhadas sobre a questão judaica e o
caráter crítico e mobilizador que Vigotski assumira na comunidade de Gomel.
Este trabalho específico dos pesquisadores contribuiu significativamente para
esclarecer o mistério deste período de vida de Vigotski e evidenciar o
engajamento político na defesa dos direitos do povo judaico dentro da
sociedade russa. A situação dos judeus neste período era de abandono
completo porque viviam em regiões fronteiriças disputadas constantemente
entre os países. Os pesquisadores apresentam também três razões
importantes para investigar a influência do judaísmo na vida de Vigotski: i) a
cultura judaica influenciou a sua vida e a sua identidade; ii) as biografias
simplesmente desconsideram a influência do judaísmo; iii) o total
desaparecimento do intenso caráter mobilizatório (creative activity) de Vigotski
com a causa dos judeus pós período revolucionário (Ibidem, p. 15). Os
pesquisadores analisaram mais de 80 artigos que foram publicados neste
período e questionam as razões pelas quais a maioria dos biógrafos deixa
estas informações em segundo plano ou nem mesmo dá-se ao trabalho de
considerá-las como existentes.
Entre 1916 e 1917, ainda como estudante da universidade, Vigotski
também era colaborador técnico da revista Novyi put, com circulação
especialmente entre judeus e que enfatizava os aspectos liberais da sociedade.
Os artigos que foram publicados destacam questões voltadas à tradição da
69
cultura judaica e sempre com a preocupação com a situação histórica vivida
pelos judeus no seu tempo. Alguns exemplos de temas abordados nos artigos:
i) questões bem específicas como o significado das datas comemorativas da
cultura judaica confrontando com o calendário russo; ii) um outro artigo
intitulado “linhas de luto”, no qual descreve a importância do nono mês do
calendário da cultura judaica, quando é lembrada a destruição do templo de
Jerusalém e o início da diáspora (70 d.C.) – faz-se uma analogia entre a
diáspora com a queda de Jerusalém e a situação do povo refugiado judeu
fugindo da Primeira Guerra Mundial e as sucessivas tentativas de reconstruir a
vida. A herança de uma cultura que preserva a história e faz questão de
retratar os fatos históricos como rituais para preservação da memória de um
povo; iii) além das questões políticas, também escrevia críticas literárias, por
exemplo, escreveu um artigo homenageando um escritor judeu-russo que na
sua visão teve a coragem de ir contra a tradição judaica expondo suas
questões reais de vida. E, assim, seguem-se outros tantos artigos neste
período, todos retratando a história e a cultura do povo judeu integrando com
as questões reais dentro da sociedade russa e análises literárias.
Em 1921, os direitos dos judeus são declarados iguais a de qualquer
soviético, os apelos de integração perdem sentido, já que a emancipação
política legalmente foi instituída e deixou de ser um problema legal.
Certamente, esta questão diferia completamente da Europa Ocidental e Central
e colocou as comunidades judaicas na Rússia em acirrados debates: fazer
parte ou não de uma revolução que se encaminhava para o socialismo ou
então migrar para um outro país? A luta pela emancipação humana era de
todos e não tinha sentido fazer distinções dentro da revolução e fora dela.
Evidentemente que estamos nos referindo a questões de direito e não as
questões de fato. O que queremos dizer com isto? O preconceito contra os
judeus não desaparece com um decreto, mas, inquestionavelmente, a decisão
política nesta época é muito significativa se compararmos com as políticas
antissemitas extremistas de outros países que passam para o campo da
institucionalização na década de 30.
A crítica literária é uma característica que vai cada vez mais se
consolidando na vida de Vigotski. Nasce das reflexões motivadas pela sua
70
análise crítica de Hamlet– Príncipe da Dinamarca (de Shakespeare) desde a
juventude. O caráter desta tragédia motiva uma pergunta determinante que
certamente os judeus se faziam: o que é ser um cidadão russo com tradição
judaica ou o que é ser judeu de tradição dentro da sociedade russa? O povo
judeu, na visão de Vigotski, parecia neste momento como se vivesse uma
“diáspora eterna”, sem serem considerados e nem contemplados como
cidadãos. As críticas com as quais Vigotski se debate na sua realidade é esta
visão que o lado hegemônico muitas vezes adotava do judaísmo como se fosse
uma tribo universal, ou do judaísmo como “o eixo universal da história” e a
rebate, sendo totalmente contrário a esta perspectiva, destacando “que é
justamente o contrário, o povo judeu é dependente da história universal”
(KOTIK-FRIDGUT & FRIEDGUT, 2008, p. 26). Os artigos de Vigotski não são
lamentos de uma situação de injustiça, mas uma profunda reflexão sobre as
razões do antissemitismo, portanto, não se atêm a responder as declarações
isoladas, por exemplo, do escritor Dostoievski (1821-1881), que explicitamente
expõe seu antissemitismo na teoria política, mas entender a perspectiva
contraditória das razões pelas quais o antissemitismo se torna preponderante.
É na mobilização em defesa do povo judaico que identificamos a sensibilidade
da análise sociológica de Vigotski. Relatos de um amigo da juventude de
Vigotski em Gomel nos informam sua sistemática participação num clube
criado por ele mesmo para debater temas voltados para a cultura e para a
história do povo judaico. O enfoque teórico hegeliano sobre história era o
preferencial de Vigotski, especialmente, para responder questões voltadas ao
papel dos indivíduos na história das sociedades (KOZULIN, 1990, p. 29).
Quando Vigotski começa a escrever no periódico Letopis não há mais
menções diretas ao judaísmo como acontecera na revista Novyi put. A partir de
então, as reflexões se voltaram para a inclusão real de tantas outras etnias que
se consideravam ainda estrangeiras neste país tão vasto e com tantas
diversidades. Quando são abolidas as limitações cívicas aos judeus,vemos o
entusiasmo com o qual Vigotski saudou as mudanças possíveis a partir
daquele momento. No seu artigo “Avodim Hoinu” escreve “nós éramos
escravos” e saúda o novo momento histórico:
71
But today unexpectedly and suddenly it is as though our hands had been freed. We are not yet used to walking freely, speaking freely, our consciousness has not yet digested the transformation that has taken place. As yet, the old-style soul lives on in the old body. This new day has caught us unready. (Vygotsky, 1917a, col. 8)30
Parece que o decreto surpreendeu Vigotski e as comunidades judaicas
e os debates intermináveis não teriam mais sentido entre emancipação política
ou emancipação humana. A situação criada levava necessariamente a uma
decisão política pessoal e exigia uma posição favorável ou não contra a
revolução. Exigia-se uma posição afirmativa ou negativa. “A nossa consciência
ainda não digeriu a transformação” é uma declaração que expressa a
necessidade da reflexão, mas é possível perceber desde então uma mudança
de atitude política muito mais ampla de Vigotski, não mais restrita à tradição e a
um povo.
Vigotski não menciona, como já dissemos, nenhuma experiência sua
sobre qualquer engajamento político revolucionário em Moscou na época de
estudante (1914-1917). E Moscou estava em ebulição. Terminado seus
estudos acadêmicos, em 1917, retorna imediatamente para Gomel, isto porque
sua mãe está doente e precisa de tratamento. A cidade de Gomel, após a
Revolução de Outubro, continua sendo um território de disputas entre as tropas
alemãs, o exército branco (os contrarrevolucionários) e o exército vermelho.
Mesmo com o fim da Primeira Guerra Mundial a cidade foi ocupada pelo
exército alemão, que só foi expulso em janeiro de 1919. Só então a cidade
passa a se organizar e a criar o parlamento local, comitês representativos e o
comitê central dos trabalhadores.
Depois que as tropas alemãs foram expulsas de Gomel, aí sim, vemos
Vigotski recomeçando suas atividades, agora como um profissional formado e
assumindo atividades de professor nas escolas que sua família havia fundado
e que passaram para usufruto público. Além de professor, ajudará na edição
de um jornal local e publicará vários artigos sobre arte, teatro, literatura, etc.,
30“Mas hoje inesperadamente e de repente é como se as nossas mãos tivessem sido libertadas. Nós ainda não estamos acostumados a andar livremente, falar livremente, a nossa consciência ainda não digeriu a transformação que ocorreu. Até agora, a alma do velho estilo vive no velho corpo. Este novo dia nos pegou desprevenidos” (Tradução nossa).
72
mas sua atuação se concentrará nas atividades de teatro e ele se tornará o
principal articulador para promover eventos culturais e artísticos na cidade de
Gomel. Este envolvimento também mostra que Vigotski encarou as mudanças
radicais da sociedade russa como uma oportunidade para contribuir com o
desenvolvimento de programas educacionais e artísticos. Em todo o período
que vai do verão de 1917 até o início do ano de 1924, a vida de Vigotski se
resumiu a atividades locais ou, no máximo, em atividades de articulação
cultural e artística em outras cidades próximas. Todo seu tempo estava tomado
com os processos educacionais que o novo sistema político exigia para
transformação da realidade na Rússia. O acesso universal à educação foi uma
determinação central e ao mesmo tempo uma oportunidade para desenvolver
programas educacionais, criar grupos de estudos, promover conferências e
palestras e instaurar laboratórios de observação. Todas as atividades eram
justificadas para construção de uma nova sociedade e de um novo ser
humano. Em janeiro de 1924, quando Vigotski foi proferir suas palestras no II
Congresso de Psiconeurologia, em Leningrado, já estava bem preparado para
os desafios de um trabalho coletivo e para viabilizar linhas programáticas
educacionais na União Soviética, como também problematizar e instigar novos
rumos no campo da psicologia.
Encontramos frequentemente nos textos de Vigotski citações das obras
de Baruch Espinosa (1632-1677), filósofo este com sólida formação em filosofia
clássica, profundo conhecedor das questões filosóficas de seu tempo, quando
predominou a filosofia racionalista, como também tem uma formação teológica
recebida da tradição do judaísmo na Holanda (Amsterdã). Escreveu livros que
desestabilizavam a tradição judaico-cristã e por essa razão foi expulso de sua
comunidade. O pai de Vigotski, numa de suas longas viagens, trouxe de
presente ao filho ainda jovem um exemplar da Ética de Espinosa. É um texto
difícil para um jovem, mas que foi justamente presenteado para desafiá-lo na
interpretação de uma obra “demonstrada segundo a ordem geométrica”. Não
era comum que a ortodoxia da comunidade judaica sugerisse a leitura das
obras deste controverso filósofo, pois eram proibidas, execradas; seu conteúdo
desafiava o pensamento religioso predominante judaico-cristão. A
73
contundência pode ser observada no final da primeira parte da Ética, quando
Espinosa ataca os alicerces da tradição:
“(...) todos os preconceitos que aqui me proponho a expor dependem de um único, a saber, que os homens pressupõem, em geral, que todas as coisas naturais agem, tal como eles próprios, em função de um fim, chegando até mesmo a dar como assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas tendo em vista algum fim preciso, pois dizem que deus fez todas as coisas em função do homem e fez o homem, por sua vez, para que este lhe preste culto” (ESPINOSA, 2007, p. 65)
Espinosa ataca as concepções finalistas que a tradição especulativa da
Idade Média sob o predomínio do poder da Igreja adaptou às concepções
aristotélicas. A filosofia espinosana não se fundamenta no finalismo. Contudo,
o presente que o pai trouxera a Vigotski demonstra que, mesmo pertencendo a
uma comunidade tradicional judaica, gostava de propiciar o estudo de forma
aberta e desafiadora – atitude característica de uma pessoa influenciada pelo
espírito iluminista. Pelo que parece, o estudo sobre a filosofia de Espinosa não
ficou restrita a um dos oito filhos de Seminov Vigodski, mas também à filha
Zinaida, que compartilhava com o irmão Lev “o interesse pelos escritos
filosóficos de Espinosa” (VEER & VALSINER, 2009, p. 20). Lev conviveu com
esta irmã filóloga, pois havia morado com ela nos dois últimos anos de estudos
acadêmicos em Moscou.
A produção teórica de Vigotski é muito grande e podemos perceber o
seu caráter racional e disciplinado para todo o trabalho de sistematização
desenvolvido ao longo de sua vida. A tuberculose (doença na época incurável)
contraída de seu irmão mais novo (que logo veio a falecer) e os cuidados com
os problemas de saúde do seu pai e de sua mãe não o impediram de viabilizar
o seu intenso projeto de estudos e de pesquisa. Tudo isso demonstra como
lidava com a vida e como se aproximava da compreensão espinosana de vida;
como ele mesmo menciona numa carta para um amigo: “não se deve se
espantar, nem rir, nem chorar, mas entender” (cit. Ibidem, p. 28). Este caráter
racional é a marca que acompanhará a vida inteira de Vigotski.
Espinosa apresenta, no final da segunda parte da Ética, quatro razões
pelas quais considera útil para vida a sua filosofia: 1) porque nos dá a ideia
74
clara e distinta para agir; 2) porque nos ensina como agir diante de situações
que fogem ao nosso controle; 3) porque nos instiga a entender nossos afetos;
4) porque nos remete a viver em liberdade e não na escravidão (ESPINOSA,
2007, p 155-156). Nós interpretamos que esta filosofia e estes preceitos
estavam bem presentes na vida de Vigotski, que os utilizou por toda a sua
curta vida. Ao nos aproximar de Espinosa e do debate que faz na Ética,
perguntamo-nos: Vigotski deixou de lado as tradições religiosas do judaísmo?
É difícil responder esta pergunta, mesmo que tenha se envolvido intensamente
com a situação dos judeus na URSS. A teologia materialista de Espinosa pode
tê-lo influenciado a silenciar-se sobre esse assunto e isto fica marcante num
depoimento de uma de suas filhas, quando relata uma pergunta que fez sobre
a existência ou não de deus, e sua pergunta foi devolvida com outra sobre o
que poderia ser entendido a respeito desse assunto (PRESTES, 2010).
Instigou a sua filha a continuar nas perguntas. Um pequeno exemplo da vida
diária, mas tão característico de Vigotski: instigar a curiosidade e o exercício de
ver uma situação ou um fato nas diferentes perspectivas possíveis.
Há um aspecto não mencionado pelos biógrafos de Vigotski que é a
influência talmúdica nas interpretações de textos. As tantas diferentes citações
de autores, a contextualização dos autores, as diversas citações (dizem que
eram citações de memória, o que traz alguns problemas hoje para a
organização das citações bibliográficas) são heranças da educação fortemente
marcada pela tradição talmúdica da cultura judaica. Esta formação erudita
preparou e facilitou Vigotski a se posicionar nos debates mais controversos.
“His early Jewish Enlightenment education served as the nucleus for a more complex development of personality, striving to attain a universality of humanism. The breadth of his erudition allowed him to enter as an equal into discussions with scholars speaking and writing in various languages. At the same time, throughout all of his pedagogical activity and in his writings, he preaches that humanistic social and political thought recognizes the necessity of cultural integration based on the careful safeguarding and coexistence of different cultures”(KOTIK-FRIDGUT & FRIEDGUT; 2008, p.35)31.
31 “Sua educação judaico-iluminista inicial serviu como base para o desenvolvimento de uma personalidade mais complexa, esforçando-se para alcançar a universalidade do humanismo. A amplitude da sua erudição lhe permitiu entrar em iguais condições nos debates com estudiosos falando e escrevendo em vários idiomas. Ao mesmo tempo, ao longo de toda a sua atividade pedagógica e em seus escritos, ele defendia o pensamento social e político humanista reconhecendo a necessidade de integração cultural baseada na garantia do cuidado e da coexistência de diferentes culturas”(Nossa Tradução).
75
Nos textos que dispomos de Vigotski e que consta nas Obras
Escolhidas não encontramos qualquer menção sobre a problemática do
judaísmo na Rússia. Identificamos uma única e curta passagem quase no final
do artigo “Sobre sistemas Psicológicos”, que foi escrito em 1930. Nesta
passagem, há uma referência sobre um sociólogo e economista alemão
chamado Werner Sombart (1863-1941), na qual enfatiza que a “diferença
caracterológica essencial e importante na prática na vida social” depende muito
“das relações” que se dispõe. “Às vezes constata-se que algumas pessoas têm
ótima memória, mas não a utilizam como deveria”. Isso poderia ser
compreendido também, “por exemplo, que o caráter burguês é avaro e não há
como modificar dada a natureza biológica do burguês de ser mesquinho e
acumulador”. E destaca, “os traços sociais e de classe formam-se no homem a
partir de sistemas interiorizados, que nada mais são do que os sistemas e
relações sociais entre pessoas transladados para a personalidade” (VIGOTSKI,
2004, p. 133). Vigotski acusa o sociólogo Werner Sombart como aquele que se
fundamenta no caráter meramente biológico ao tratar da personalidade do
burguês como tendo uma tendência genética a ser economicamente
pernicioso. Na época, Sombart havia publicado o livro Os judeus e a vida
econômica (1911), que relaciona a ascensão do capitalismo no norte da
Europa pela determinante presença dos judeus. O sociólogo analisa as
migrações dos judeus entre os séculos XV e XVIII, na Europa, e identifica a
capacidade organizacional de estruturarem e de estabilizarem economias
locais. Isto foi observável quando os judeus migraram das regiões do sul da
Europa (Portugal, Espanha, Itália, sul da França) e partiram para o norte. Ao
serem perseguidos pelas nações católicas foram obrigados a migrarem para o
Norte e com isso desenvolveram e dinamizaram economicamente as nações
do Norte. Sombart, diferentemente de Max Weber (1864-1920), identifica nos
judeus o espírito do capitalismo e não do protestantismo. Esta análise foi
utilizada para justificar o caráter pernicioso do judeu em si e que Vigotski trata
de condenar como uma versão estreita da formação humana. O texto Sobre
Sistemas Psicológicos fora escrito em 1930, mesmo período em que se
acentuava na Europa o antissemitismo e os fundamentos biologicistas da
psicologia. Mas há uma outra questão que a partir de 1930 se acirrou na
76
Rússia Soviética. O Instituto de Psicologia onde Vigotski trabalhava desde
1924 também era um reduto de intelectuais socialistas que puderam, no
período de Lênin, debater abertamente e publicar as questões que envolviam a
relação entre teoria, pesquisa, realidade e prática. A premissa fundamental
contra o especulativismo se fundamentava em não meramente compreender a
realidade, mas transformá-la. A partir de 1930, começou a predominar na
Rússia Soviética as políticas funestas e anti-dialéticas, por exemplo, podemos
deduzir que um burguês tem uma determinação genética avara, por analogia, o
judeu também. A resposta de Vigotski é certeira contra as perspectivas
biologicistas, positivistas e higienistas, visto que “os sistemas e as relações
sociais” devem ter uma condição fundamental na formação da personalidade
do sujeito e não o contário, de forma determinista.
Esta pequena referência de Vigotski no texto que nos referimos nos
leva a concluir que há uma preocupação em enfrentar este preconceito, mas,
mais do que isto, de combater as concepções positivistas que começam a se
tornar hegemônicas. É neste momento que reconhecemos a sua capacidade
crítica de apontar contradições. Isso só é possível pelo domínio que Vigotski
tinha da lógica dialética e da compreensão do materialismo histórico.
A partir de 1930, com mais intensidade a desconfiança poderia recair
sobre Vigotski (e também sobre muitos colegas com a mesma origem) e
duplamente, por ser judeu e por ter tido formação erudita burguesa. A dúvida
se de fato teria assumido conscientemente o materialismo como gnosiologia
também vem marcada com este preconceito, mesmo que o fundador do
Materialismo Histórico tenha tido a mesma origem e a mesma característica: o
zelo pela pesquisa, pela elaboração do texto e pelo debate aberto.
Em outro artigo de Vigotski, também raramente citado pelos
comentadores, Fascismo na Psiconeurologia (escrito em 1934), há uma crítica
severa contra a mudança radical que estava ocorrendo na Alemanha com a
psicologia. O artigo é uma resposta imediata contra as visões nacionalistas,
positivistas, arianistas e higienistas que começavam a se alinhar com a política
fascista alemã. A política fascista tomou o estado alemão pelo golpe e criou
77
objetivamente um sistema da psicologia baseado em duas premissas: “tipo
nacional” e “voluntarismo diante do líder”.
“(...) os esforços mais extensos para fundar uma psicologia fascista foram tentados por um (...) psicólogo alemão, Erich Jaensch, um cientista de renome mundial, que tem elaborado extensivamente o problema da percepção e da memória do ponto de vista da tipologia eidética e psicológica. Jaensch publicou um tratado especial intitulado A situação e a tarefa da Psicologia - sua Missão no movimento de reforma cultural alemã. Neste livro, Jaensch apresenta o sistema completo da psicologia fascista, um sistema que provavelmente determinará a direção e o destino do ramo da psicologia fascista alemã para um futuro previsível” (VYGOTSKY, 1994, p. 328).
Vigotski denuncia a tendência da psicologia alemã de imiscuir-se ao
movimento nacionalista alemão cuja tendência, na sua visão, está marcada
pela influência do idealismo objetivo burguês. Vigotski não se restringia a Erich
Jaensch, também cita os famosos psicólogos Narsiss Ach (1871-1946) e
Eduard Spranger (1882-1963), autores sucessivamente citados em seus
artigos na década de 1920. A situação da psicologia alemã nesta época,
conforme Vigotski, marca “sem precedente a degeneração extrema e intensa
do pensamento científico burguês”. O artigo ataca diretamente três questões: a
adaptação científica dos psicólogos para os fundamentos místicos: líder, terra e
sangue; a perseguição aos judeus e às políticas antissemitas; e, último, como
já dito, o pensamento idealista realista burguês.
As notas dos editores da publicação onde consta este inédito artigo
(Van der VEER & VALSINER, 1994) suscitam que Vigotski estava, neste
momento, fazendo uma crítica geral aos movimentos totalitários que surgiam
no mundo, e que serviria conscientemente a uma crítica indireta ao sistema
totalitário na Rússia Soviética que estava se iniciando com o domínio do novo
Secretário Geral Joseph Stalin. A análise dos comentadores leva-nos a suscitar
que Vigotski seria um “pesquisador camaleão”, ou seja, a crítica ao “idealismo
objetivo burguês” que ele faz de forma tão veemente consiste sempre num
“fingimento”, uma artificialidade e que resta para ele a genialidade da lógica
dialética. Podemos sim deduzir que o referido artigo é uma condenação à
política fascista e uma atitude que se adianta a qualquer tentativa maliciosa de
alinhar Vigotski ao pan-germanismo burguês, associando suas publicações
“recheadas” de autores da cultura germânica como uma adesão acrítica. Neste
78
artigo publicado no último ano de vida de Vigotski, há clareza e perspicácia de
condenar o idealismo realista, ou idealismo objetivo – o que seria isso senão
condenar a forma como o hegelianismo é utilizado pela burguesia para
sustentar-se e que se transforma em política fascista.
Para analisar a perspectiva de Vigotski da questão judaica é
necessário ir mais além das análises realizadas pelos pesquisadores até o
momento. A tendência destes é desconsiderar este aspecto e, realmente,
muitas vezes, até considerá-lo inexistente. Vigotski assimilou a sua condição
no mundo como também o fizeram Gustav Landauer (1870-1919), Martin Buber
(1878-1965), Gershom Scholem (1897-1982), Walter Benjamin (1892-1940),
Ernst Bloch (1885-1977), György Lukács (1885-1971), Franz Rosenzweig
(1886-1929), Erich From (1900-1980), Manes Sperber (1905-1984) (e muitos
outros). O que é comum entre estes autores? Vivem o movimento de libertação
dos judeus e ao mesmo tempo o movimento de libertação dos seres humanos
das amarras do capitalismo. Influenciado por esta dinâmica humanista e até
romântica, Vigotski era um cientista com sensibilidade para considerar a
pertinência existencial e subjetiva associada à necessidade epistêmica
explicativa objetiva. A questão judaica de Vigotski lhe colocou entre o dilema da
imanência e da transcendência, subjetivo e objetivo, coletivo e individual,
material e psíquico, filogenia e ontogenia. A unidade dos contrários foi um
exercício existencial e práxis que o acompanhou durante toda sua vida.
Contudo, há uma questão muito mais complexa a ser desenvolvida que é a
síntese da filosofia positiva de Espinosa e a filosofia negativa de Marx. Nós
sustentamos que esta não é uma procura isolada de Vigotski como cientista
social; é a procura do movimento político que se destacou durante toda a
década de 1920 na Rússia e seu destino, desde a Comuna de Paris (1871),
continua em aberto como um desafio para a civilização humana.
No início da década de 1920, entendemos que Vigotski se deu conta
da dialética materialista histórico dialética marxiana por meio das publicações
de Lênin que interpretou devidamente A questão judaica (1843) de Karl Marx
dentro do movimento revolucionário.
(...) O homem não se libertou da religião; obteve, isto sim, liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de
79
propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial” (MARX, 1991, p. 50).
A força do movimento socialista na Rússia não era simplesmente um
movimento liberal para se libertar politicamente das amarras e da opressão do
tsarismo absolutista. Havia uma luta muito mais ampla que os revolucionários
tentavam implementar sem ter tido referências comprovadas no passado que
tivesse realmente obtido êxito. A emancipação não consistia apenas no campo
da política e haveria de ser mais ampla:
“Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organiza suas ‘forças propres’ como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana” (Ibidem, p. 51).
Nós identificamos a partir da mobilização de Vigotski com o movimento
de defesa dos direitos do povo judeu dois aspectos: primeiro, a compreensão
da dialética materialista histórica como práxis revolucionária; segundo, a
compreensão do projeto de sociedade que estava se iniciando na Rússia sob a
direção de Lênin. Nós sustentamos que Vigotski transformou-se num
revolucionário no campo que poderia ser na compreensão do espírito de
transformação da política que estava sendo forjada na sua época. É o debate
entre a emancipação política e humana dentro do judaísmo e dentro da
sociedade russa que Vigotski forjou sua personalidade e iniciou seus estudos
primeiro na pedagogia como educador/professor e depois na psicologia como
pesquisador. Nós sustentamos e isso desenvolveremos com mais fundamentos
mais para frente: a práxis vigotskiana é de base lininiana.
80
Capítulo 4: Vigotski e seus biógrafos32
Dispomos de duas obras biográficas pioneiras para estudar o
pensamento de Vigotski: La psicología de Vygotsky – Biografía de unas ideas
(KOZULIN, 1990) e VYGOTSKY – uma síntese (VEER & VALSINER, 2009). É
muito raro um artigo não fazer referência a estes autores, mas para
compreender o que chamamos de “o estado da arte da hermenêutica
vigotskiana” também é imprescindível a análise de uma terceira obra
recentemente publicada, O pensamento de Vigotsky – Contradições,
Desdobramentos e Desenvolvimento (GONZALEZ REY,2013), que constitui
uma síntese crítica do pensamento vigotskiano, instigando os pesquisadores
nos dias de hoje a investir nas amplas indagações não respondidas por
Vigotski no final de sua vida. As três obras, lado a lado, têm suas
peculiaridades para que possamos conhecer melhor a trajetória dos trabalhos
de Vigotski, mas estas ainda continuam mais mostrando as lacunas do que
propriamente definindo uma diretriz hermenêutica. Um outro aspecto mais
direto e imprescindível de ser analisado é a influência ou a relação com o
materialismo histórico dialético – a vinculação com o marxismo. GONZALEZ
REY destaca este assunto, mas remete esta problemática para os historiadores
sem respondê-la:
“A relação de Vigotsky com o marxismo nunca foi uma relação forçada ou fingida; ao contrário, creio que Marx foi a principal fonte filosófica de seu pensamento, no qual, de forma geral, a dialética foi seu modelo orientador indiscutível. No entanto, o próprio pensamento de Marx, ao se institucionalizar, ganha significados que correspondem mais às interpretações dominantes do espaço político – institucionalização que assume, do que as ideias originais do autor em relação àquela obra. O Marx adotado pela institucionalização política soviética era um Marx “objetivista”, para quem a dialética subordinava-se ao materialismo. Somente a partir dessa interpretação é que se pode utilizar Marx para essa interpretação sociologista da psique. Terá sido Vigotsky, com seu brilhantismo, uma expressão dessa naturalização materialista hegemônica do pensamento de Marx naquele momento de hegemonia stalinista, ou será que o rumo de sua obra, naquele momento, expressa retiradas táticas forçadas pelas circunstâncias, ou ambos esses processos aparecem estreitamente unidos naquelas posições que mudaram de forma radical o rumo de seu pensamento? Esta é uma questão que deixamos e suspenso para os historiadores de sua obra; no entanto ninguém questionou
32 Em anexo apresentamos dados biográficos detalhados de Vigotski, tomando como referência os autores que aqui neste capítulo foram citados dentre outros.
81
essa ruptura que aparece em seu livro História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores (...)” (Ibidem, p. 84).
Dizemos que GONZALEZ REY é mais consequente na análise
gnosiológica de Vigotski, que não deixa de lado o marxismo, mas adota a
mesma estratégia quando deixa esta questão para os “historiadores”. Como já
mencionamos este distingue três movimentos sendo que no segundo (1928-
1931) evidencia um “giro objetivista” na produção científica vigotskiana
aproximando-se de Alexei Leontiev. O “giro objetivista” resulta, não
completamente, mas no distanciamento da dialética. GONZALEZ REY não
responde este processo de mudança e permanecemos apenas com a tarefa de
apontar onde estão as lacunas do pensamento vigotskiano, mas não o seu
fundamento teórico que lhe possibilitou chegar até onde chegou. O
apontamento, por sua vez, é a questão central desta tese, que não reside
apenas na pergunta se Vigotski é dialético ou não. Todos os autores afirmam
que é dialético, mas não destacam a gnosiologia e este é um dos maiores
motivos pelos quais Vigotski é, muitas vezes, identificado com tantas diferentes
teorias, mas não aquela que ele menciona tão claramente nas suas obras:
Materialismo Histórico Dialético.
Um grupo de comentadores soviéticos contemporâneos de Vigotski
(LEONTIEV, 2013; 2001; BEIN, E. S.; VLÁSOVA, T. A.; LÉVINA, R. E.;
MORÓZOVA, N. G.; SHIF, Zh.I, 1997; ELKONIN, 2012) foi responsável pela
divulgação e preservação do seu pensamento; chama constantemente a
atenção para a necessidade de se fazer um estudo mais aprofundado sobre a
hermenêutica vigotskiana. Julga que até o momento este trabalho não fora feito
– são comentadores que YASNITSKI (2011) se refere como sendo os mais
próximos ao Círculo de Vigotski e que a partir de 1930 tomaram rumos
diferentes, fato que os levaram a desenvolver pesquisas em campos mais
específicos.
Outro grupo de autores (ALVAREZ & Del RÍO, 1991, 2007; DANIELS,
2011; NEWMAN & HOLZMAN, 2002; YASNITSKY, 2010, 2011, 2012a, 2012b;
YASNITSKY & FERRARI 2008; VEER, 2016) se destaca nos últimos anos
tomando como referência os biógrafos pioneiros, enfatiza algo especial na
82
produção teórica vigotskiana considerando as obras disponíveis para análise.
Destacamos deste grupo o conjunto de publicações de ÁLVAREZ &Del RÍO,
editores e coordenadores da tradução das Obras Escojidas do russo para o
espanhol (seis volumes), que traz a contextualização da teoria vigotskiana nos
dias de hoje. As informações biográficas e a análise do pensamento
vigotskiano que Del RÍO nos apresenta por meio de entrevista (REGO &
BRAGA, 2013) também constituem referencial para análise. Evidenciamos
também as pesquisas de YASNITSKY (2011), especialmente, a investigação
sobre o Círculo de Vigotski e ressaltando muito mais um esforço de uma escola
de psicologia do que enaltecendo isoladamente a figura de Vigotski.
Ressaltamos ainda dois trabalhos biográficos caracterizados por
questões bem específicas, mas de grande relevância para entender a vida de
Vigotski. Entendemos que o primeiro foi devidamente enfatizado no capítulo
anterior pelos autores KOTIK-FRIDGUT & FRIEDGUT (2008), ao esclarecerem
o período que antecedera a 1924 e o seu engajamento com a questão judaica.
O segundo trabalho consiste no esforço de elaborar um inventário do cânone
vigotskiano realizado com o apoio da filha de Vigotski (Gita), que se constitui
num trabalho que possibilitou integrar os arquivos da família com os
disponíveis e acessíveis ao público (VIGODSKAIA & LIFANOVA, 1999).
Há diversas maneiras de entender o processo de criação de Vigotski
ao longo dos seus anos de pesquisa em Gomel (considerada sua terra natal),
Moscou e Leningrado (hoje São Petersburgo). Iremos citar alguns autores a
seguir para que possamos identificar qual aspecto os biógrafos mais enfatizam
no pensamento e nas obras vigotskianas. Evidentemente que partiremos dos
três autores referenciais fundamentais que citamos acima.
KOZULIN (1990) enfatiza três aspectos importantes no pensamento
vigotskiano: a prática (colocando em evidência o Significado Histórico da Crise
da Psicologia (1927), o método (defendendo a influência hegeliana), e o
movimento literário, no início do século XX, na Rússia (trazendo a estética
como estruturante para a formação do pensamento vigotskiano).
Vigotski tinha muito clara a compreensão sobre a crise da teoria
psicológica na década de 1920 e da necessidade de realizar uma crítica
epistemológica das filosofias de investigação que a própria crise revelou. A
83
crise foi desencadeada pelas demandas apresentadas por aqueles que
atuavam na prática. No início do Significado Histórico da Crise da Psicologia,
Vigotski traz até uma expressão bíblica para acentuar o que significava para a
psicologia estas demandas: “a pedra que rejeitaram os construtores, essa veio
a ser a pedra angular” (VIGOTSKI, 2004, p. 203), ou seja, até então se
desconsiderava a prática, mas esta passou a ter importância estruturante,
levando à legitimação da ciência, por meio da comprovação da relevância
social que ela garantia. No tempo pós revolução não havia alternativas, o apelo
era responder às demandas da realidade. Não bastava almejar a mudança da
sociedade – algum resultado que indicasse imediatamente a mudança deveria
mostrar que o caminho do socialismo estava certo. Foi na década de 20 que a
psicologia se fez pela primeira vez consciente dos aspectos práticos
associados com as tarefas e os problemas na área da educação, saúde
mental, jurídica... Seria errôneo, por conseguinte, conceber a psicologia como
aplicação de teorias previamente estabelecidas. KOZULIN enfatiza que
Vigotski inverteu esta relação: a prática seleciona seus próprios princípios
psicológicos e, em última instância, cria sua própria psicologia.
Para compreender os princípios que a realidade estabelece ou
demanda, KOZULIN (1990) também nos chama a atenção para a assimilação
das obras de Hegel que deixou marcas profundas em Vigotski, especialmente
no processo metodológico para resolução de problemas científicos, pois a
distinção entre objetivação e desobjetivação exigia clareza por parte do
pesquisador de sua tarefa, que não deveria consistir simplesmente em aplicar
fórmulas científicas já acabadas a uma situação determinada, mas sim, em
primeiro lugar, se tratava de definir o objeto e propriamente o método de
investigação (Ibidem, p. 29). Segundo KOZULIN, Vigotski sempre parte de um
fato objetivo, por exemplo, as amostras da fala egocêntrica infantil estudadas
por Jean Piaget (1896-1980). A fala egocêntrica constitui-se num exercício que
se inicia por um fator interpsicológico para se tornar intrapsicológico.
Desobjetivar não é esquecer a linguagem egocêntrica ou simplesmente
considerá-la como um fenômeno que desaparece sem implicação real
nenhuma. A desobjetivação revela, por um lado, que a filosofia de fato está por
detrás de qualquer ato científico e, por outro, devolve ao fato a sua condição
84
dinâmica original, de onde pode ser reinterpretada. Na essência, a
desobjetivação é a possibilidade de captar o pensamento e a vida em sua
forma dinâmica aberta antes de se converter em coisas. Segundo KOZULIN,
na filosofia de Hegel, o método dialético serve para pôr o manifesto, como o
pensamento que pode se converter em seu oposto para, na continuação,
retornar enriquecido. No curso deste estranhamento, e este retorno às
objetivações do pensamento, chegam a compreender como se fossem
momentos de seu próprio desenvolvimento e negação (Ibidem, p. 34). Mas o
que parece convincente como grande sistema filosófico não tem porque
realizar-se necessária e imediatamente quando se aplica a áreas específicas
da atividade humana. É preciso que o conhecimento reconheça as questões
mais reais, mais cotidianas.
Além da forte influência hegeliana sobre a natureza histórica do ser
humano, KOZULIN destaca que também a visão marxista alimentou a
concepção vigotskiana de que a psicologia é uma ciência do ser humano
histórico e não do ser humano abstrato ou universal. Da mesma forma, tanto
de Hegel como de Marx, a concepção do trabalho na história do ser humano foi
muito bem recebida por Vigotski. A noção de instrumento psicológico funde
suas raízes na ideia hegeliana em que o trabalho, com a transformação do
mundo das coisas, provoca a transformação da consciência humana (Ibidem,
p. 30). Contudo, não vemos a diferença tanto em um como no outro, conforme
exposto por KOZULIN. Evidentemente que tanto um como outro enfatizam a
natureza histórica do ser humano, mas no que se diferenciariam?
A principal contribuição de KOZULIN na interpretação do pensamento
vigotskiano foi localizá-lo no movimento estético literário do início do século XX.
Nos anos de estudante na Universidade de Moscou (1914-1917), para Vigotski
o mundo parecia estar dividido entre os arcaístas (conservadores) e os
inovadores (progressistas). Uma nova escola surgia, a escola de literatura
simbolista, que mais tarde também foi designada de formalista, dentre tantas
concepções. Os descobrimentos e as dúvidas dos formalistas estavam
destinados a converterem-se em uma espécie de “incubadora intelectual para
Vigotski”, pois encontrou amplas indagações na área da estética que também
eram necessárias fazê-las na psicologia. KOZULIN cita um dos líderes do
85
movimento formalista, Boris Eichenbaum (1886-1959), que definia
sucintamente seu credo da seguinte maneira: no princípio, para o formalista a
questão não é como estudar a literatura, mas sim qual é realmente o objeto de
estudo literário. Esta postura, conforme KOZULIN, era semelhante à postura de
que Vigotski adotou para estudar o comportamento das crianças ou o
conhecimento dos adultos: definia primeiro o que deveria converter-se em
objeto de investigação psicológica.
Os formalistas também ajudaram a mudar as ideias tradicionais sobre a
forma e o conteúdo na obra de arte. Tudo que o artista considera como
elementos apropriados para sua obra, sejam palavras, sons, imagens, clichês
verbais ou incluindo o desenvolvimento das ideias, constituem-se a forma. Esta
organização é o que denominamos de técnica ou artifícios. Uma das técnicas
mais importantes na prosa é o drama constituído pelas tramas das histórias de
vida e que servem como material: “O drama se define com respeito à história
da mesma maneira que o verso com respeito às palavras que o constituem, e a
melodia com respeito às notas de que consta”. Assim, a indecisão do príncipe
Hamlet não provém de sua debilidade psicológica como ser humano, mas sim,
das leis estruturais inerentes à tragédia de William Shakespeare. Porém,
mesmo que Vigotski reconhecesse a importância da técnica artística como
primeiro passo na análise de uma obra de arte, rechaçava categoricamente
considerá-la também como o último passo. Aqui, Vigotski se deparava com um
dos problemas teóricos cruciais de qualquer investigação psicológica, a saber,
o problema da identificação formal frente à identificação essencial dos
fenômenos comportamentais ou cognitivos. O ponto de partida deste problema
é que o descobrimento de uma semelhança entre os aspectos formais ou
estruturais dos fenômenos não garante sua semelhança essencial. O problema
da relação entre a forma e o material afeta o coração do conceito de
desenvolvimento cultural da mente humana. Em Vigotski, a cultura não só
proporciona um marco estrutural para organizar os impulsos naturais herdados,
mas, mais do que isto, proporciona o material mesmo da conduta humana.
KOZULIN entende que Vigotski pensava que somente mediante um
estudo da interação entre a forma e o material (conteúdo) se poderia superar a
perspectiva dualista e a melhor maneira de entender esta interação é como
86
catarse. Este termo era designado por Vigotski como descarga das emoções
que se acumulam em um espectador ou em um leitor afetado por uma obra de
arte. A purificação catártica não só descarrega a tensão como também
transforma os sentimentos humanos. No estudo da catarse, como na relação
com o indivíduo que vive a experiência, é pela propriedade objetiva da obra de
arte que se faz possível a catarse.
Seguindo os formalistas, eles definem que a reunião do material com
aqueles acontecimentos, personagens e circunstâncias humanas proporcionam
a linha argumental básica do relato. O sequenciamento e a organização do
material constituem o drama do relato. O drama é o princípio geral do texto
literário, e a composição dos elementos em um relato literário não deve deter-
se em um simples artifício técnico (Ibidem, p. 52).
Uma vez dado o primeiro passo, e identificadas provisoriamente as
características objetivas de uma obra de arte que evoca sensações estéticas,
há de produzir-se um giro até o estudo do lado subjetivo desta equação. A
forma geral proposta por Vigotski era que “a arte é uma técnica social de
sentimentos”. Esta concepção encaixa muito bem, conforme KOZULIN, com a
teoria que posteriormente desenvolveria Vigotski acerca dos símbolos que
serviriam como barreiras e transformadores dos impulsos naturais humanos. A
arte é, por conseguinte, um dos sistemas de símbolos mais complexos, que
ajuda a transformar os sentimentos originais humanos no que Vigotski
denominou “reação estética”. Conforme KOZULIN, a partir disso, é fácil ver
como este esquema provisório da experiência estética corresponde com a
teoria de Vigotski das ferramentas psicológicas, pois trouxe um paralelismo
entre as ferramentas materiais e as ferramentas psicológicas ou simbólicas que
ajudam a transformar as funções cognitivas naturais em funções culturais. Na
Psicologia da Arte (1925), a primeira obra síntese de Vigotski, sugere-se uma
analogia similar entre as ferramentas materiais e as técnicas semióticas
utilizadas pelo artista:
“A transformação de sentimentos externos a nós ocorre em virtude de um sentimento social que se objetiva, sai do exterior, se materializa e se prende nos objetos externos da arte que se converte em instrumentos da sociedade” (Ibidem, p 55 e 56).
87
A análise que Kozulin efetua tomando como referência a teoria
formalista da arte e a influência desta no pensamento vigotskiano é unilateral.
Não analisa, por exemplo, as várias resenhas realizadas por Vigotski na
juventude e nem a confrontação existente com o debate sobre a estética
marxista. Claro que na época que Kozulin escreveu esta obra não se suscitava
que havia estas resenhas, compreensível. Porém, o debate sobre estética foi
muito conflitante na década de 1920. Conforme TROTSKI (1976), em seu
artigo A escola poética formalista e o marxismo, “a escola formalista da arte era
a única teoria na Rússia que se opunha ao marxismo”. Opunha-se porque
admitia que era a forma que determinava o conteúdo, premissa não admissível
para os marxistas porque entendiam residir aí um reducionismo. Contudo,
Trotsky reconhece que os métodos formais são necessários, mas são
insuficientes. Esta análise se estenderia muito, mas o importante é reconhecer
sim que há uma análise sobre o conteúdo e a forma e a unidade destes
contrários, que é “a vivência” que alguns autores se negam a traduzir a palavra
russa equivalente: “perejivanie”. Acentuamos que Kozulin se nega a ampliar a
análise incluindo o marxismo.
É muito mais comum os biógrafos sustentarem a aproximação de
Vigotski com o hegelianismo do que com o marxismo. Evidentemente, tanto a
perspectiva marxista quanto a idealista objetiva adotam a lógica dialética e
reconhecem o real. A questão que as diferencia é utilizar o real para explicar a
ação do Espírito ou utilizar o real para a sua própria transformação. Kozulin
enfatiza o hegelianismo e seu método e simplesmente ignora o que foi
objetivamente escrito por Vigotski e sub-repticiamente coloca o marxismo
dentro das perspectivas mecanicistas ou distanciadas da dialética.
VEER & VALSINER (2009), não difere muito do que Kozulin projetou
para as obras de Vigotski e se preocupam em fazer a contextualização das
obras de Vigotski e apontar os principais temas por ele desenvolvidos ou
parcialmente desenvolvidos: psicologia pedagógica, defectologia, psicanálise,
crise da psicologia, estética e os fundamentos teóricos que eles denominam
como “histórico-cultural”. Notamos que estes biógrafos fazem várias referências
aos estudos de Alex Kozulin, que já havia escrito até então vários artigos e
livros sobre a vida e a obra de Vigotski, como também sobre a psicologia
88
soviética: Psychology in Utopia. Toward a Social History of Soviet Psychology
(1984); Georgy Chelpanov and the establishment of the Moscow institute of
psychology (1985); Vygotsky’s Psychology. A biography of Ideas (1990); e The
concept of regression and Vygotskian developmetal theory (1990). VEER &
VALSINER tomam por referência a linha de investigação de Kozulin, mas
ampliam os estudos analisando as diversas influências do conhecimento na
produção teórica de Vigotski. Os autores fazem a aproximação de Vigotski com
a base teórica tanto de Hegel (VEER & VALSINER, 2009, ps. 33, 38, 138)
como também de Espinosa (Ibidem, ps. 20, 28, 384-87). Referem-se ao
materialismo dialético apenas como um método secundário endereçando a
tarefa da defesa da gnosiologia materialista para a ortodoxia marxista ou para
os doutrinadores do partido comunista central. Por outro lado, VEER &
VALSINER enfatizam o início do interesse pela dialética de Vigotski.
“(...) a estética idealista de Vygotsky já era dialética em sua abordagem - e isto não é de surpreender, dado que seu interesse pela filosofia hegeliana remontava a seus dias de Gymnasium. Vygotsky estava descobrindo os lados opostos no mesmo todo e, nesse raciocínio dialético, sua visão de mundo desenvolvimentista foi sendo gradualmente estabelecida” (Ibidem, p. 33)
Foi a compreensão e o impacto marcante dos estudos sobre a tragédia
de Hamlet – Príncipe da Dinamarca de William Shakespeare, ainda em idade
juvenil, que fez Vigotski logo compreender os fundamentos da lógica dialética.
É a arte que joga Vigotski no debate sobre a estética e o qualifica na lógica
dialética. Seguindo a referência de Kozulin, VEER & VALSINER também
chamam a atenção de que Vigotski esforçava-se para fazer a relação da arte
com “a vida em geral” porque entendia que a mesma tinha uma função que ele
denominava de “catártica” para a vida das pessoas como um meio para novas
sínteses psicológicas ou então como possibilidade de reverter ou de superar
uma determinada condição de vida. Para a psicologia, portanto, a arte seria a
chave para compreender dinamicamente o que não se desenvolve na pessoa.
A compreensão clara de Vigotski sobre os problemas entre as
abordagens das escolas psicológicas fez dele uma referência a ponto de ser
convidado a trabalhar no Instituto de Psicologia, em Moscou, em 1924. Neste
Instituto, pôde ter contato com muitos pesquisadores e, dada sua sólida
89
formação investigativa, foi logo indicado para assumir a função diretiva no setor
de estudos sobre crianças com problemas de deficiência neurológica. Nessa
época, Vigotski critica a escola reflexológica, muito em voga então, isto porque
esta simplesmente não considerava o estudo da consciência por defenderem
que não era possível objetivar o subjetivo. Esta premissa foi contestada, pois
se a psicologia não pudesse estudar a consciência reduzir-se-ia à fisiologia.
Não desconsiderava os estudos dos reflexólogos, mas não concordava que
esta abordagem pudesse assumir “uma escola independente dentro da
psicologia” (Ibidem, p. 53) pelo seu caráter reducionista.
Em 1926, a partir dos estudos na área da educação em Gomel,
Vigotski publicou um livro de orientação para os educadores: Psicologia
Pedagógica(1924). VEER & VALSINER afirmam que neste período nosso autor
ainda tinha influências dos referenciais reflexológicos (que também poderiam
ser identificados na abordagem reactológica), por exemplo, para compreender
o comportamento humano, a reação aos estímulos poderia ser observada em
três aspectos: i) “recepção”; ii) “processamento”; e iii) a “resposta ao estímulo”
(Ibidem, p. 63). Contudo, aos poucos vemos ampliando esta referência, mas
sem sair ainda do debate sobre os reflexos, por exemplo, para compreender o
comportamento humano Vigotski sustentava que era necessário considerar (1)
reações inatas, (2) reflexos condicionados, (3) experiência histórica, (4)
experiência social, e (5) experiência duplicada. Esta última, determinante no
ser humano, consistia em estímulos internos oriundos de reações de estímulos
externos – experiência duplicada (VIGOTSKI, 2004, ps. 83-84). Ou seja, aos
poucos, Vigotski foi se diferenciando e se distanciando dos referenciais
reflexológicos e se desafiou a entender e pesquisar uma psicologia que
superasse o caráter dualista.
Quando VERR & VALSINER enfatizam o materialismo histórico
aproximam-no de Kornílov (1879-1957) e sustentam também o quanto este foi
influenciado pelas concepções da especificidade “dialética natural-filosófica” de
Friedrich Engels – que no final da segunda metade da década de 1920 era
muito difundida na União Soviética. Ou seja, notamos que os autores não
colocam Vigotski influenciado diretamente pelo materialismo histórico, mas
essencialmente Kornílov. E mais, afirmam que tanto Kornílov como Vigotski
90
buscavam a “síntese hegeliana” e que no caso de Kornílov “usou isso em luta
pela reconstrução da psicologia”, e, no caso de Vigotski, “movia-se em direção
paralela em seus esforços para compreender como os receptores de
mensagens artísticas chegam a novos sentimentos” (Ibidem, p. 138).
Imaginamos o quão surpreso ficaria Kornílov ao saber que sua busca para
definir uma psicologia marxista estivesse fundamentada na procura pela
“síntese hegeliana”. Citamos uma passagem do modo como o processo de
síntese vigotskiana é analisada pelos autores:
“(...) o próprio desenvolvimento de Vygotsky levou-o a ver diferentes tipos de unidades nos fenômenos em que estava interessado. Se, em meados da década de 1920, a unidade seria uma estrutura de reações unidas por um dominante, mais no final de sua vida ele começou a ver o significado das palavras como unidade relevante a de análise. Talvez a discussão bastante ocasional e vaga de Vygotsky sobre a “análise em unidades” que ressurgia em seus escritos e palestras de tempos em tempos seja mais bem compreendida como um recurso retórico, ou seja, um meio para atingir o fim de defender uma posição teórica dinâmica estruturalmente orientada contra os esforços para analisá-la em elementos. Assim fica mais claro o motivo pelo qual Vygotsky não prosseguiu para algum estudo produtivo dessas unidades, mas apenas enfatizou a necessidade desse estudo” (Ibidem, p. 185).
Sobre a continuidade dos estudos fica bem mais evidente nas análises
que veremos mais adiante por parte de GONZALEZ REY, mas os autores aqui
mencionam que nem isso foi plenamente alcançado. Entretanto, insistimos em
chamar a atenção para a continuidade da crítica velada ao materialismo e
como evidenciam o hegelianismo. Como poderíamos falar do marxismo sem o
materialismo histórico dialético? Este parece ser o mistério do idealismo, ou
seja, insere-se a teoria vigotskiana no humanismo real que nada mais é que o
“idealismo especulativo”, porque “no lugar do ser humano real e verdadeiro,
coloca a autoconsciência” ou “o espírito desencarnado” (MARX & ENGELS,
2009, p. 15). Não há nada que possa combater a teoria especulativa que não
seja práxis. Para sermos mais claros, a lógica dialética pode ser esclarecedora
quando aplicada na realidade, mas ao retirar-se dela institui-se como se tudo
resumisse a conceitos. Os biógrafos são capazes de identificar as influências
de Wolfgang Köhler(1866-1948), que resultaram no “método funcional da dupla
estimulação”; de Kurt Lewin(1890-1947) e seus estudos dos processos de
91
desenvolvimento, que relacionam a atividade humana com a estrutura deste
campo; de Kurt Goldstein(1878-1965), as pesquisas sobre a fala interior; de
Vladimir Vagner (1849-1934),as comparações ontogênicas com as filogênicas;
de Marx e Engels, a importância da fabricação de instrumentos na história da
humanidade; de Lévy-Bruhl (1857-1939), a crítica à ideia de que a mente
humana é igual em todas as culturas; de Thurnwald(1869-1954), sobre as
pesquisas da mente moderna em comparação com a mente pré-história; de
Ach(1871-1946) e suas pesquisas sobre o desenvolvimento de conceitos; de
Piaget (1896-1980), sobre o estudo da linguagem e do pensamento; de
Espinosa, a perspectiva monista; e tantos outros. Os biógrafos tentam fazer um
mapeamento dos autores com os quais Vigotski trabalha ou defronta-se, mas,
continuamos a insistir, não o fazem localizando uma unidade de sentido
gnosiológica na obra de Vigotski. É como se o esforço de Vigotski em encontrar
uma psicologia dialética de base marxista não constassem nas obras de forma
tão destacada como estão. Quando VEER & VALSINER (2009) analisam o
Significado histórico da crise da Psicologia (1927) reconhecem ali a tentativa de
“integrar as ideias de Marx, Engels e Lênin em seu pensamento”, mas os
autores consideram apenas a crítica às perspectivas marxistas que se
alinhavam ao materialismo mecanicista, cada vez mais distante da dialética.
Não analisam que a crítica que o próprio Vigotski faz, e não buscam entender
se por trás desta crítica há um materialismo histórico dialético diferente ao que
está se tornando hegemônico na URSS.
Na mesma direção, VERR & VALSINER também enfatizam que a
compreensão da teoria da Gestalt auxiliou Vigotski a elaborar um referencial
próprio de metodologia que eles denominam de “histórico-cultural”. Os
gestaltistas eram “antiassocionistas” e “antielementaristas” e esforçavam-se
pela busca da compreensão da totalidade e ao mesmo tempo pela busca de
um método para encontrar uma “unidade estrutural”. Este referencial foi
importante para confrontar as concepções reflexológicas que predominavam na
Rússia, àquela época, que reduziam “os fenômenos a reflexos e seus
agregados” (Ibidem, p. 183). Pela proximidade que Vigotski tinha com Kurt
Lewin (mantinham inclusive intercâmbio de pesquisadores e Vigotski o
classificava como “psicólogo estruturalista”) também puderam compartilhar
92
teorias e pesquisas realizadas cada qual na sua realidade. Kurt Lewin estudava
“a potência emociogênica” que servia para ressignificação subjetiva ou
“reorganização cognitiva” de pessoas sob estresse emocional que
estabeleciam “plano de ações”. Lewin via “a unificação dos processos afetivos
com a cognição e a ação” e tal condição estava em sintonia com a visão de
Vigotski, que encontrava na afetividade espinosana a base para fundamentar
seus estudos. Nesta observação dos autores, por sinal muito difundida e não
devidamente assimilada, acerca da influência dos gestaltistas sobre a teoria
vigotskiana, “A unidade de sentido”, “a unidade de análise” ou “a unidade
estrutural” pode até ter uma relação com o que é mais essencial do método
marxiano: “o concreto é síntese de múltiplas determinações”. Contudo, não se
localiza o desenvolvimento dentro de um processo histórico.
Os autores afirmam que Vigotski seguiu a distinção entre “evolução
biológica” e “história humana” baseando-se nas ideias de Marx e
principalmente de Engels. Engels destacava que o uso de instrumentos pelos
seres humanos os diferenciavam fundamentalmente dos animais. Diferenciam-
se por que os seres humanos são ativos e transformadores da natureza. Esta
ideia está muito presente no pensamento de Vigotski. A diferença marcante
nestes estudos é o biológico e o social e compreende-se que Vigotski não
desconsiderou o biológico, mas o desenvolvimento biológico tem uma condição
menos complexa, se assim pode ser dito, do que o desenvolvimento social e
histórico.
O laboratório Psicológico da Academia de Educação Comunista de
Moscou foi fechado em 1932, mas um pouco antes, em 1930, foi criada a
Academia Psiconeurológica Ucraniana, em Kharkov, que convidou muitos dos
pesquisadores de Moscou. Vigotski não quis ir para Kharkov e resolveu
permanecer em Moscou. É a partir deste momento que começam a surgir
conflitos. Conforme VEER & VALSINER (2009), o fechamento da Academia de
Educação também trouxe um conflito que talvez se ampliasse se Vigotski
tivesse vivido mais tempo. Em 1934, A. Leontiev escreveu um artigo que marca
seu distanciamento das ideias de Vigotski. Leontiev, citado pelos biógrafos,
defendia que “os processos de mediação baseiam-se em atividades materiais
sociais e renomeou a teoria histórico-cultural de ‘teoria histórico-social’”
93
(Ibidem, p. 316). Leontiev substituiu “a ênfase nos signos como meio de
mediação entre objetos da experiência e funções mentais pela ideia de que a
ação física (trabalho) deve fazer a mediação entre o sujeito e o mundo exterior”
(Ibidem, p. 316). Esta é, de fato, aquela a qual já nos referimos e que foi
denominada de “escola da atividade”, em Kharkov, e liderada por Leontiev.
Contudo, depois de 1941, conforme YASNITSKI (2011), Leontiev como se
aproximam da teoria vigotskiana nas tentativas de recuperação e consolidação
de uma psicologia dialética.
Analisando a perseguição que teve início a partir de 1930, com as
disputas internas na Rússia soviética, a teoria de Vigotski foi identificada como
“psicologia voltada para a cultura” e “suspeita”, citando autores que acusavam
a teoria de Vigotski como “um ecletismo (...) que uniu (...) teoria do
desenvolvimento cultural, behaviorismo e a reactologia com a psicologia da
Gestalt, que é idealista em suas origens” (cit. VEER & VALSINER, p. 331).
Os pesquisadores que estiveram próximos de Vigotski no período de
1931 a 1933 informam uma preocupação com o estudo das emoções. Várias
versões foram elaboradas, mas apenas a primeira parte ficou concluída – faltou
a parte, digamos, mais importante. E, Zenaida Vigotskaja (irmã de Vigotski),
durante a década de 30, ainda se esforçou para que este manuscrito fosse
publicado com o título: Espinosa e sua teoria do afeto – Prolegômenos para
uma psicologia do homem. Este manuscrito só veio a ser conhecido
completamente na década de 1980 com o título: A teoria das emoções -Uma
investigação histórico-psicológica (VEER & VALSINER, p. 377). Neste
manuscrito problematiza-se a afetividade como uma das questões mais
importantes da psicologia, que também fora objeto de estudos de filósofos
como Renè Descartes (1596-1650), Baruch Espinosa (1632-1617), Thomas
Hobbes (1588-1651) e John Locke (1632-1704). O manuscrito seria uma
extensa obra se tivesse sido concluída e o que dispomos é apenas da parte
que problematiza a perspectiva dualista de dois autores que estavam em
evidência para este debate: William James (1842-1910) e Carl Lange (1834-
1900). Os referidos autores postulavam que todas as emoções são
desenvolvidas a partir de reações fisiológicas a estímulos; Vigotski contestava
esta visão por ser uma teoria fundamentada essencialmente na fisiologia e não
94
contemplava ou não considerava o aspecto psicológico dos processos
emocionais. Vigotski analisava essa tendência como uma herança do
cartesianismo, dualista, tendendo a dividir os estudos em duas ciências: uma
analisando o corpo e a outra a mente. Para superar a perspectiva dualista
sugere voltar os estudos a Baruch Espinosa. A solução para Vigotski estava na
perspectiva monista espinosana, ou seja, corpo e alma não são separadas,
mas fazem parte de uma mesma substância. Descartes considerava a alma
como sendo uma “existência livre e não-determinada”. VEER & VALSINER
identificam em Vigotski uma concepção “genética desenvolvimentista” que
contraria a de Descartes, que era “dualista”. Ao propor uma solução com
referências espinosanas o trabalho não prosseguiu. Os biógrafos suscitam que
talvez Vigotski não tenha tido uma resposta coerente contra o dualismo de
Descartes (Ibidem, p. 385).
A pergunta que muitas vezes se faz em relação a Vigotski ser ou não
um marxista acabou por criar “algumas confusões” que os biógrafos VEER &
VALSINER consideram como referências “binárias”. Vigotski esteve sempre
acima disso sustentando uma “interdependência intelectual”, já que se
propunha a dialogar com pesquisadores de outros países. Os autores,
reconhecendo a contrariedade ao ecletismo, reconhecendo a interdependência
intelectual e cultural de Vigotski, não identificam uma metateoria, uma
concepção gnosiológica para Vigotski. Referem-se a ele como um autor com
alta capacidade de lidar com a lógica dialética hegeliana, mas não descrevem o
que fundamenta além da lógica. Por exemplo, ao mencionar o distanciamento
de Vigotski com “a ênfase à práxis da escola de Kharkov” leva também a
interpretações binárias. Ou seja, a escola de Kharkov identificada cegamente a
um doutrinarismo marxista e a escola vigotskiana como contrária à práxis. Os
autores claramente enfatizam na biografia de Vigotski “a síntese dialética”
como “um instrumento positivo” na busca pelas unidades de análises;
“consistente perspectiva desenvolvimentista” que não se circunscrevia à
análise ontológica, mas que analisava os fenômenos dentro de um processo de
desenvolvimento; “o método de dupla estimulação”, isto porque não
permaneceu na metodologia tradicional experimental, mas “desenvolveu um
esquema metodológico que introduz o surgimento dinâmico de estruturas
95
novas de fenômenos psicológicos”; “posição antirreducionista” para poder
compreender fenômenos psicológicos dentro de uma totalidade com ênfase na
“análise em unidades” (Ibidem, p. 430). Estes destaques constam no “epílogo”
da obra que resume a posição dos autores na relação com o biografado, ou
seja, não tiram a concepção dialética de Vigotski, mas assumem uma posição
de neutralidade que qualifica o debate sobre a inquestionável contribuição de
uma teoria que havia de se colocar de forma positiva, numa sociedade
desafiada a auto-construir-se e a resultar no surgimento de um novo homem e
de uma nova mulher.
GONZÁLEZ REY (2013), ao fazer referência sobre o ambiente
formativo de Vigotski, destaca que o Prêmio Nobel recebido em 1904 por I. P.
Pavlov (1849-1936) já nos indica o quanto a fisiologia foi uma disciplina bem
desenvolvida na Rússia. Em torno de Pavlov se construiu um círculo de
pesquisadores que depois da Revolução de Outubro de 1917 continuou com
muita força, principalmente, ao se juntar com o materialismo mecanicista,
quando tentou-se “apagar a especificidade da psique e, portanto, o
reconhecimento institucional da psicologia” (Ibidem, p. 17). Além de Pavlov,
havia outros pesquisadores renomados: Sechenov (1829-1905), V. M.
Bechterev (1857-1927). Sechenov foi aquele que reconheceu “a atividade”
como base para compreender o psiquismo humano e tal reconhecimento
influirá muito na “psicologia dialética” (Ibidem, p. 12). E Bechterev escreveu um
livro, Psicologia Objetiva, no qual não reconhecia o processo subjetivo, a
psicologia deveria ater-se rigorosamente “a manifestações objetivas”. É
justamente em relação a este ruducionismo que Vigotski irá contestar
rigorosamente.
A questão central no pensamento vigotskiano é que a mente humana
tem uma formação social, mas este social não deve ser compreendido como
supressão do indivíduo ou da singularidade. GONZÁLEZ REY deixa isso muito
claro nesta citação:
“Vigotsky defende que a psique humana é socialmente definida; portanto o estudo do indivíduo é também psicologia social, algo que até hoje a psicologia social não foi capaz de resolver, em parte por não dispor de uma definição ontológica da psique que lhe permita entender a psique individual de modo compatível com esse princípio. É interessante também destacar o modo como Vigotsky
96
compreende o social, não como algo externo, empírico, que complementa a atividade individual, mas sim, como a própria organização psíquica do indivíduo; nela está o social, ela é social; a questão aqui é definir como o social aparece nessa forma de organização que, ontologicamente, se diferencia do evento social como evento empírico de relação” (Ibidem, p. 34).
A ênfase colocada por nosso biógrafo está na compreensão sobre o
tema subjetividade e “nos processos psíquicos humanos” que são elaborados
ou definidos dentro de “uma produção simbólica-emocional sobre a experiência
vivida” e que não se resume a uma pessoa, mas amplifica-se a todos os
processos sociais (Ibidem, p. 34). Conforme GONZÁLEZ REY esta condição se
perdeu na URSS quando o estalinismo predominou:
“A falta de desenvolvimento dos aspectos do marxismo associados à subjetividade humana na filosofia marxista soviética manteve a psicologia refém de princípios associados à hegemonia do social e da atividade, impedindo que avançasse na direção de entender a especificidade qualitativa da psique em relação com esses processos. O conceito de psique manteve-se submetido a um princípio determinista mecanicista, quer fisiológico quer social, em relação ao qual a psique não se apresentava em sua especificidade, sendo compreendida somente como o resultado de alguma influência “objetiva”, na garantia de sua objetividade” (Ibidem, p. 35).
Somente na década de 1980, conforme o autor, diversos autores
soviéticos retomam os estudos não apenas de Vigotski, mas de tantos outros
no período em que foram reprimidos e até perseguidos para retornar as
pesquisas que ficaram em aberto.
GONZALEZ REY considera a influência do marxismo “decisiva” para
Vigotski porque possibilitou impor um “pensamento claramente dialético”
(ibidem, p. 37), mas aqui, de forma inversa aos outros biógrafos citados acima,
defende a dialética do marxismo e não do idealismo. O que fica muito
destacado na obra de GONZALEZ REY e todos os outros é que a produção de
Vigotski não teve o seu momento de síntese.
“(...) Vigotsky não conseguiu viver o suficiente para desenvolver as consequências de uma ideia que sempre esteve entre suas inquietações e que nunca concretizou: o sistema psicológico complexo de integração das funções afetivas e cognitivas na
97
consciência, que continuava a ser sua referência preferida para indicar o sistema da psique” (Ibidem, p. 99).
VEER & YASNITSKY (2011) apresentam um esboço das influências
teóricas de Vigotski e como elas se integram num sistema que eles denominam
de “abordagem histórico-cultural”:
“Para Vigotski, se podemos nos permitir um ligeiro exagero, teve a ideia de internalização de G. Hegel e Janet (1); o princípio da análise genética de Marx e Blonsky (2), ele encontrou a ideia de uma abordagem unitária nas obras da Gestalt (3); a concepção de sinal como meio ou ferramenta pode ser atribuída a Potebnia (4); a categoria de comunicação foi já dito por Hegel (5); e, a ideia de intelectualização das funções psicológicas pode ser encontrada nas obras de Espinosa (6). Esta não é uma lista completa das obras de Vigotski e não está exatamente na forma como ele conectou todas essas noções separadas em um sistema integrado na sua abordagem histórico-cultural para o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores”.
Este resumo “ligeiro” demonstra o que temos observado na tendência
das leituras e análises do pensamento por parte dos biógrafos: retratam-se as
influências, mas não uma referência gnosiológica principal.
Em um artigo que VEER (2016) escreveu analisando o início da
formação filosófica de Vigotski e a influência do pensamento espinosano, ele
aponta três pensamentos centrais de Espinosa que foram determinantes no
pensamento de Vigotski: o intelectualismo (entendemos aqui sua tendência
cognitivista), o monismo (ou determinismo) e ouso das ferramentas intelectuais.
Tanto Espinosa quanto Vigotski sustentam “o desenvolvimento como processo
de controle gradativo dos processos psicológicos pelo intelecto”. Para VEER há
diferenças entre uma visão e outra sobre este processo de intelectualização.
Espinosa considera, por exemplo, a compreensão das emoções como uma
condição suficiente para o controle por si só; Vigotski reforça muito mais o
papel da fala no desenvolvimento das emoções que estruturam as funções
psicológicas superiores, e isso significa a mesma coisa que dizer da
importância dos aspectos culturais (Ibidem, p. 92).
Na mesma linha que os outros autores, Del RÍO também identifica as
orientações de Vigotski: “uma psicologia com forte orientação materialista e
98
hegeliana, e outra com forte raiz literária trágica” Este profundo conhecedor da
obra de Espinosa define o que é cada uma das orientações teóricas de
Vigotski. A primeira refere-se a “compreender e explicar a determinação
histórica e sociocultural da conduta a partir da tradição social e coletiva do
humano” e a segunda a “compreender e explicar a determinação histórica e
sociocultural da conduta pessoal a partir da tradição filosófica e moral da
autodeterminação, no rastro de Espinosa” (cit. REGO & BRAGA, 2013, p. 517).
Del RÍO, tradutor das obras originais russas de Vigotski para o espanhol, tem a
perspicácia de inverter completamente o que os outros biógrafos tendem a
desconsiderar ou a ficar nas circunlocuções. Seria muito diferente se afirmasse
que a orientação fundamental de Vigotski fosse “idealista e marxiana”, mas
esta é a definição ou afirmação mais vergonhosa, e, portanto, melhor é tratar
das influências teóricas em geral. ALVAREZ & Del RÍO (1991) estudam
profundamente a influência da arte na psicologia vigotskiana colocando duas
obras referenciais: a Ética de Espinosa (1677) e Hamlet de Shakespeare
(1603). “Para combinar a procura crítica da ciência e a busca ineludível do
sentido da existência” estas duas obras lançam Vigotski na discussão sobre “o
drama da psicologia e a psicologia do drama” (cit. REGO & BRAGA, 2013, p.
517). Concordamos com Del RÍO quanto a não ser possível retirar Vigotski do
contexto social em que viveu e com todas as contradições da sociedade russa.
“Ele era prisioneiro” destas circunstâncias que não foram outras. “Ele era
voluntariamente prisioneiro”, pois poderia ter escolhido uma outra realidade
para viver mesmo que saibamos que a direção para o ocidente tornava-se cada
vez mais difícil por ser de origem judaica. Contundentemente, Del RÍO afirma
que Vigotski era “revolucionário convicto que acreditava no pensamento
histórico e no pensamento dialético” e “não se deixava arrastar pela
regularidade marxista da linha única” (Ibidem, p. 534). Entendemos que as
análises de Del RÍO enfrentam de fato as contradições do pensamento
vigotskiano, mas, principalmente, não omitem a realidade e as determinações
políticas da URSS.
Na União Soviética, Vigotski tinha reconhecimento muito grande do seu
trabalho na área da psicologia e muitos também o reconheciam como um
pesquisador preocupado com as questões de método e que a partir das leis
99
gerais marxistas conseguiu criar uma aplicação concreta. A pergunta principal
de seu tempo era “como se poderia construir a psicologia marxista partindo das
teses gerais do materialismo dialético?” Para LEONTIEV, Vigotski respondeu
essa pergunta recorrendo “aos princípios gerais que constam no Capital de
Karl Marx e que a partir dali desenvolveu a metodologia de uma ciência
concreta” (LEONTIEV, 2014, p. 427). É certo que Vigotski realmente tenha
recorrido constantemente aos referenciais marxianos, mas Engels teve uma
influência significativa com sua Dialética da Natureza. Supõe-se que Vigotski
esteja associado somente à teoria histórico-cultural, mas ele foi muito além
disso. Para compreender as concepções psicológicas que Vigotski concebeu é
preciso entender o esforço que fez para desenvolver princípios metodológicas
de base marxista para aplicação aos problemas concretos (IAROSHEVSKI &
GURGUENIDZE, 2013, p. 451).
Vigotski partia das teorias que existiam no seu tempo e isto é marcante
em todas as suas obras, em todos os seus textos. Sempre começa
confrontando as teorias existentes, uma a uma, e, a partir delas, vai fazendo as
contraposições e mostrando as interpretações equivocadas, fundamentando-se
num materialismo que desvela as contradições com todas as suas facetas.
Para LÚRIA, Vigotski compreendia claramente o que Marx havia sustentado:
“conhecemos somente única ciência, a ciência da história”; ou seja, recorria
sempre às etapas reais do pensamento na formação da pessoa (2001, p. 453).
Vigotski criou uma psicologia científica fundamentada no materialismo
histórico dialético para atuar junto a crianças com comprometimento físico e
mental e crianças e adolescentes com dificuldade devido a problemas sociais e
cognitivos – ele lidava com as crianças e adolescentes considerados “difíceis” e
até hoje sua teoria é ainda muito influente na Rússia (BEIN, E. S.; VLÁSOVA,
T. A.; LÉVINA, R. E.; MORÓZOVA, N. G.; SHIF, Zh.I, 1997, p. 365).
Um dos seus mais conhecidos alunos e que foi um dos responsáveis
pela edição das Obras Reunidas, publicadas em 1982 na URSS, apresenta
uma definição mais detalhada sobre o referencial teórico e metodológico de
Vigotski.
100
“Vigotski ha sido ante todo um especialista em el campo de la psicología general, um metodólogo de la psicología. Su vocación científica consistía em la construcción de un sistema para la psicología, cuya base sería el materialismo dialéctico e histórico. Lo histórico y lo sistémico son los princípios básicos de enfoque de Vigotski de la investigación de la realidad psicológica, y particularmente de la conciencia como su forma específicamente humana. Vigotski dominaba el marxismo, su método, em el curso de sus propias investigaciones teóricas y experimentales, ya que utilizaba a menudo los trabajos de los clásicos de marxismo-Lêninismo. Precisamente por esta razón el materialismo histórico y la dialéctica están tan orgánicamente unidos em los trabajos de Vigotski” (ELKONIN, 2012, 387).
Os comentadores soviéticos são enfáticos quanto ao referencial teórico
de Vigotski. Poderíamos supor que esta unanimidade pudesse ser arranjada
por coação ideológica. Um conjunto de publicações foi reunida em 1982,
quando a URSS vivia um processo de expansão de sua influência no mundo.
As obras de Vigotski e de outros autores teriam sido usadas para divulgar uma
concepção progressista da sociedade soviética? Esta é uma questão
embaraçosa, mas ela existe. Contudo, se algum leitor se referir apenas a uma
ou duas obras pode-se até chegar a conclusões rápidas sobre a verdadeira
teoria de Vigotski. No conjunto da obra, é completamente equivocado
menosprezar o papel tão determinante do materialismo histórico dialético de
Vigotski.
101
Capitulo 5: O projeto para publicação das obras completas
Em 1982 foi publicado em Moscou os primeiros volumes de um projeto
editorial denominado Obras Reunidas - “СОБРАНИЕ СОЧИНЕНИЙ”33 com
vários textos de Vigotski que compreende 6 volumes, 54 títulos escritos no
período de 1924 a 1934. Foi um trabalho conjunto de recuperação dos textos
de Vigotski; a maior parte estava guardada em arquivos da família em forma de
manuscritos. A edição russa dos volumes ocorreu no período de 1982 a 1984
(Vol.1, 1982; Vol. 2, 1982; Vol. 3, 1983; Vol. 4, 1984; Vol.5, 1983; Vol. 6, 1984).
Rapidamente este conjunto de textos foi traduzido para o inglês bem como
para o espanhol, este último consiste em nosso principal acesso (traduzido
com o título “Obras Escojidas”).
O lançamento das Obras Reunidas significou um marco editorial tanto
para dentro da URSS como para fora. Internamente, foram recuperados os
referenciais teóricos para qualificar as metodologias de pesquisa, bem como
orientar profissionais na área da educação e da psicologia, na atuação com
crianças com comprometimento físico, motor ou neurológico – Vigotski, mesmo
com a proibição de circulação de suas obras no período stalinista, não deixou
posteriormente de ser lembrado e referenciado.
Para publicação das Obras Reunidas na Rússia Soviética é necessário
analisar a composição do conselho de redação que envolveu os colegas de
Vigotski, no período de atuação no Instituto de Psicologia como também a
colaboração da filha de Vigotski: G. L. Vigodskaia. O conselho de redação34
russo, quando publicou o primeiro volume das Obras Reunidas, emitiu uma
nota de esclarecimento bastante curta destacando a dificuldade de sistematizar
e organizar a produção vigotskiana. Para o estudo hermenêutico é
imprescindível destacar nesta nota as justificativas para definir quais obras
deveriam ser selecionadas e publicadas:
33Preferimos a tradução literal Obras Reunidas (СОБРАНИЕ СОЧИНЕНИЙ - sobranie sochinenii) e não “escolhidas” como da tradução espanhola. 34Composto pelo Diretor A. V. Zaporózhets e V.V.Davydov, D.B. Elkon in, M.G. Iaroshevski, V. S. Jelemiéndik, A. N. Leóntiev, A. R. Lúria, A. V. Petrovski, A. A. Smirnov, T. A. Vlásova e G.L. Vygotskaia.
102
“Como é lógico, num primeiro momento do trabalho, colocou-se como problema quais obras selecionar e quais seriam os critérios de tal seleção, problema que fez surgir outros em cadeia. O primeiro concernia à identificação das obras de L. S. Vigotski, parte das quais só existia em forma manuscrita. Esse problema foi delegado a uma comissão especial de peritos, criada pelo conselho de redação e adjunta ao mesmo, presidida pelo membro correspondente da Academia de Ciências Pedagógica da URSS, professor. D. B. Elkonin. A comissão estudou toda a herança manuscrita de Vigotski, identificou suas obras e estabeleceu o texto definitivo dos manuscritos que foram reconhecidos como pertencentes a sua pena. Em seguida, quando se conseguiu estabelecer com precisão os limites da herança científica do autor (o que terminou com as inúmeras conjeturas que circulavam sobre a criação de Vigotski, com a tergiversação e a utilização descuidada de seus materiais manuscritos), foi possível iniciar a seleção das obras para a presente edição e a confecção dos volumes” (VIGOTSKI, 2004, ps. 421-22).
O conselho de redação expressou também a decisão de não
intervenção nos textos. Alguns trechos percebemos que se repetem nas
conferências, nos artigos e nos livros, mas os editores russos foram claros em
afirmar que não fariam intervenções mesmo que isso tornasse repetitivo ao
leitor. Este zelo não confere com a posição dos comentadores das obras de
Vigotski no ocidente, pois muitos afirmam existir supressões de nomes e de
alteração dos textos. Citamos diretamente a observação do conselho editorial
realizada no primeiro volume das Obras Reunidas:
“Em primeiro lugar, nos trabalhos de Vigotski abundam as repetições quase textuais, mas mesmo assim não consideramos conveniente reduzi-los nem, em geral, revisá-los. Em segundo lugar, em sua obra dedicada à psicologia científica, que abrange um período de quase dez anos (1924-1934), é bem difícil destacar períodos suficientemente definidos em termos cronológicos. Partindo dessas limitações, abordamos a confecção dos volumes escolhendo o material de forma a oferecer, dentro do possível, uma ideia completa da obra de Vigotski, embora não tenham sido incluídos todos os seus trabalhos. Na organização de cada tomo, seguimos um duplo princípio: o cronológico e o do conteúdo, ao passo que na estruturação da obra de Vigotski nos seis tomos resultantes não partimos do princípio cronológico (ressaltar períodos de tempo acabados), mas do conteúdo (desatar determinadas linhas de conteúdo lógico). Cada volume responde, pois, a uma linha semântica concreta, mas dentro dele o material foi organizado, em geral, segundo o princípio cronológico” (VIGOTSKI, 2004, p. 422).
A organização dos seis volumes respondeu ao que o conselho de
redação denominou de “linha semântica”, a saber: volume I, Método; volume II,
Psicologia Geral; volume III, Desenvolvimento da Consciência; volume IV,
103
Pedologia do Adolescente e Psicologia Infantil; volume V, Defectologia; e,
volume VI, Estética (arte).
A edição russa das Obras Reunidas foi traduzida para o inglês e quase
que simultaneamente surgiu a edição espanhola, denominada Obras Escojidas,
no período de 1991 a 2001 (Vol.1, 1991; Vol. 2, 2001; Vol. 3, 1995; Vol. 4,
1996; Vol. 5, 1997; e, Vol. 6 não foi ainda publicada). No primeiro volume, os
diretores espanhóis fazem a apresentação do projeto editorial, bem como dão
explicações sobre a dificuldade de fazer a tradução dada a diferença cultural
linguística e pelo próprio estilo de escrita de Vigotski.
La maneira de escrebir de Vygotski, como es habitual em él, apressurada em muchos casos, condensada casi siempre, plagada de referencias implícitas, no facilita demasiado su interpretación a la hora de transcribir su pensamento: los silencios, lo no explícito, es lo más difícil de traducir. La labor se hace especialmente árdua em aquellos textos em los que Vygotski, como es habitual em él, realiza um ejercicio de oposición dialéctica com el autor o los autores a los que va citando, lo que Bajtin llamaría ‘ventrilocuización’, esto es, poner em las propias palavras el pensamento” (ALVAREZ, 1991, p. XXIV).
A citação acima é trecho da apresentação das Obras Escojidas e
destaca, muitas vezes, que a exposição de Vigotski se parece com uma atitude
de “ventriloquização”35; é uma observação desarrazoada por parte do editorial
espanhol. É verdade que nos textos de Vigotski há sempre um constante
diálogo com vários autores, pois a média de citações é muito alta36. Contudo, a
medida que vamos analisando obra por obra, percebemos que as citações e
problematizações são sempre realizadas com os mesmos autores, o que
facilita a interpretação dos textos e não dificulta. Quando essa leitura não é
realizada considerando os autores citados torna-se de fato muito difícil
compreender a totalidade do texto escrito. Vamos a um exemplo: cita-se com
muita frequência Eduard Spranger (1982-1963), filósofo e psicólogo alemão
35 Não tem palavra equivalente no português, mas o ventríloquo é aquele que fala pelo outro. 36 Apenas como exemplificação: na conferência “Desarrollo de las funciones psíquicas superiores em la
edad de transición” (OBRAS ESCOJIDAS, Vol. 4, p. 48-116), são citados 33 autores: PASHKÓVSKAYA, E.,
MESSER, A., MARX, Karl, GALTON, F.STUMPF, K.MEUMANN, E.UZNADZE, D.AMENT, W.PIAGET, Jean
ROUSSEAU, J., CLEPARÉDE, E.TEM, I., RIBOT, T., LIONTIEV, A. N., SHEIN, A., JOVSKAYA, G., GRAUKOB, G.,
JAENSCH, E., KROH, K., DEUCHLER, G., LAU, E., WERNER, H., WERTHEIMER, M., PIAGET, I., ROSSELLÓ, R.,
BERNS, K., VOGEL, M., ROLOFF, H., SCHÜSLER, G., MONCHAMP, E., MORITZ, E., ENG, H., MÜLLER, G.
104
que se desafiou a trabalhar integralmente filosofia, psicologia e ciência
pedagógica. Em 1921, publicou o livro Lebensformen (Formas de Vida), que
distinguia na formação da personalidade as formas teorética, econômica,
estética, social e religiosa. Sua investigação era enfatizada a descobrir a
singularidade dos atos humanos e os fenômenos psíquicos baseando-se na
análise de sentido, ou seja, investigando as necessidades humanas
considerando unidades de análises coerentes com o comportamento humano.
Era radicalmente contra a psicologia empirista e estruturalista, pois entendia
que a psicologia não poderia explicar fenômenos psíquicos pela fisiologia e,
muito menos, pela decomposição destes fenômenos em unidades de
elementos para serem somados. Defendia que eram necessárias para análise
categorias capazes de darem conta de captar fenômenos singulares
conectados com os valores sociais. Mais tarde, este autor foi severamente
criticado por Vigotski por ter submetido a psicologia ao regime fascista
(VYGOTSKY, 1994). Portanto, não acompanhar todo processo de aproximação
deste autor até a sua relação com o fascismo significa não ter a compreensão
da totalidade do texto e compromete a interpretação. Dado o volume tão
grande de citações, a verificação torna-se um exercício tão lento e minucioso,
que pouquíssimos se aventuram a fazer esta análise longitudinal da evolução
do pensamento na relação com alguns autores específicos, principalmente,
autores alemães que, no início do século XX, implementaram vários
laboratórios experimentais e publicaram vários livros que se tornaram
referenciais na psicologia.
No Brasil, a Editora Martins Fontes publicou, em 1996, parcialmente, o
primeiro volume das Obras Reunidas – a primeira e a terceira parte – sob o
título Teoria e Método em Psicologia e constam os seguintes textos: Os
métodos de investigação reflexológicos e psicológicos (1924), Psicologia geral
e experimental (prólogo ao livro de A. F. Lazurski) (1924), A consciência como
problema da psicologia do comportamento (1925), Sobre o artigo de K. Koffka
“A introspecção e o método da psicologia” (1926), O método instrumental em
psicologia (1930), Sobre os sistemas psicológicos (1930), A psique, a
consciência, o inconsciente (1930), Desenvolvimento da memória (prefácio ao
livro de A. N. Leontiev) (1931), O problema da consciência (sem data), A
105
psicologia e a teoria da localização das funções psíquicas (1934) e O
significado histórico da crise da psicologia (1927). Esta edição incompleta no
Brasil dificulta o acesso direto bem como cria uma dinâmica que se baseia nas
interpretações das interpretações. As iniciativas de tradução dos outros textos
ocorrem mais por iniciativas isoladas e não há uma proposta editorial
sustentando um programa para publicação das obras completas.
Na década de 1980, tinha-se a informação de que Vigotski havia
publicado aproximadamente 180 títulos (LEONTIEV, 2013)37 baseando-se em
estudos realizados por um de seus alunos (ELKONIN, 1982). Entretanto, nesta
lista ainda não estavam inclusos todos os documentos e outros manuscritos do
arquivo particular de posse da família. A junção de vários arquivos (públicos e
privados) propiciará a edição das obras completas. Zoia Prestes é uma das
pesquisadoras no Brasil que trouxe informações atualizadas sobre as tentativas
de organização e publicação das obras de Vigotski.
“Na União Soviética, os livros editados e lançados, principalmente após a morte de Vigotski, reúnem artigos, textos e aulas proferidas ou discursos em eventos científicos, mas não são livros organizados pelo autor. Daniil Borissovitch Elkonin, aluno e colaborador de Vigotski, empreendeu, à sua época, uma tentativa de organizar a bibliografia das obras do professor, indicando e relacionando cerca de 180 trabalhos. Mas, até hoje, o levantamento apresentado em anexo à biografia escrita por Guita Vigodskaia e Tamara Lifanova (1996) é o mais completo e sistematizado, relacionando 274 títulos. Provavelmente, um dos motivos de divergências entre as duas listas é que na segunda estão indicados até mesmo artigos e textos que ainda permanecem em forma de manuscritos e estão guardados nos arquivos da família ou foram publicados apenas uma vez, à época de Vigotski. Essas divergências nas informações a respeito da produção teórica do pensador também trazem à tona a questão sobre o quanto sua obra ainda precisa ser conhecida. Quem sabe, com a publicação de sua Obra Completa, que está sendo preparada pela família há alguns anos, essas divergências poderão se dissipar. Há, segundo sua neta, Elena Kravtsova, manuscritos que jamais foram publicados e o primeiro volume em russo da coleção deve sair até o final de 2014” (PRESTES, 2014, p.8).
Como Vigotski conseguiu produzir tanto em tão pouco tempo? É
provável que tivesse sempre à disposição bons colaboradores e talento para
37Leontiev menciona neste artigo, citando El’konin, que Vigotski produziu 180 trabalhos dos
quais 135 haviam sido publicados e 45 ainda não.
106
coordenar e mobilizar os pesquisadores. Não significa que os grupos de
pesquisa formados tenham tido estabilidade nos seus trabalhos. Além das
diversas universidades criadas para sustentar os planos quinquenais de
desenvolvimento, a universalização do acesso à educação, tanto básica quanto
acadêmica, exigia professores em diversos e também distantes lugares da
União Soviética. As divergências políticas muito próximas ao poder central
(Moscou) levavam também os pesquisadores a buscarem condições que
propiciassem mais segurança e estabilidade, que relativizassem o controle
direto.
YASNITSKY (2011) combate aquela imagem do herói e do gênio que
se faz de Vigotski alertando que é resultado de um trabalho colaborativo de
vários pesquisadores e também resultado de um desafio posto por uma época
“sui generis” na URSS. É evidente que há uma característica especial de
síntese de Vigotski, de organização e sistematicidade de sua produção literária
científica, mas a tendência de colocá-lo como um herói ou como um gênio fora
de um contexto histórico é mais comum e quando isso ocorre as adequações
são todas possíveis.
Os principais colaboradores de Vigotski no Instituto de Psicologia em
Moscou foram Lídia Boznovich (1908-1981), Roza Levina (1908-1989), Natalya
Morozova (1906-1989), Lydia Slavina (1906-1988) e Alexander Zapovozhetz
(1905-1981). Incluímos também nesta equipe Danii Borisovich Elkonin (1904-
1884), mas este estava em Leningrado e veio a ser um colaborador mais tarde.
A lista de colaboradores é ainda bem maior, citamos apenas os principais38.
Além destes, temos dois pesquisadores que viveram muito mais tempo que
Vigotski e que foram responsáveis, na posterioridade, por reconhecer, divulgar
e ampliar o legado de suas pesquisas: Alexander Lúria (1902-1977) e Alexis N.
Leontiev (1903-1979). Lúria foi mais próximo de Vigotski enquanto que
Leontiev sempre mantinha certo distanciamento, mas, depois da morte de
Vigotski, estabeleceu parceria com Lúria e ambos continuaram vários
38 A rede de pesquisadores que envolvia Vygotsky, além dos citados, tinha também a colaboração dos seguintes pesquisadores: Sergei Eisenstein, Nikolai Bernstein, Leonid Zankov, Ivan Solov’ev, Vera Schmidt, Roza Averbukh, Leonid Sakharov, Boris Varshava, Vladimir Kogan, Mark Lebedinskii, Yuliya Kotelova, Vladimir Asnin, Nataliya, Birenbaum, Blyuma Zeigarnik, Nikolai Samukhin, Rakhil’ Boskis, Mariia Pevzner, Zhozefina Shif, Liya Geshelina, M.A. Levina, K.I. Veresotskaia, M.B. Eidinova, Esfir’ Bejn, Filipp Bassin e Piotr Galperin (YASNITSKY, 2010, p. 6).
107
programas de pesquisa. Esta rede de pesquisadores orientada para contribuir
para a solução dos problemas sociais e com o desafio de construir uma
psicologia de base marxista conseguiu desenvolver muitos programas de
pesquisa com volume considerado de publicações.
A primeira dificuldade referente à organização (catalogação) das obras
de Vigotski já está superada (iniciado por EL’KONIN e depois finalizado por
VIGOSTSKAIA & LIFANOVA), mas ainda são muitos os obstáculos colocados
que exigem a comparação das publicações em fases diferentes. Outro passo
seria comparar suas publicações com as de Lúria e Leontiev e outros que nós
aqui não nos ativemos, por se tratar de um programa de investigação que
exigiria esforço de muitas frentes de pesquisa.
A lista completa das obras de Vigotski foi publicada em 1995 por
VIGODSKAIA &LIFANOVA (1999) no Jornal de Psicologia da Rússia39, ainda
de pouco conhecimento do público brasileiro, mas já é uma pequena iniciativa
de disponibilizar as obras ao público em geral. Este trabalho, além da relação
dos títulos, a disponibilização das obras em russo e as informações mais
detalhadas sobre a vida de Vigotski, foi importante para auxiliar nas pesquisas
mais aprofundadas e confrontar com as principais análises realizadas até o
momento. É evidente que este inventário possibilita responder perguntas
básicas: quantas obras foram produzidas? Quantas foram publicadas e
quantas ainda continuam em forma de manuscrito? Em que ano foram
redigidas e publicadas? Atualmente, essas perguntas são possíveis de serem
respondidas porque o acervo está organizado e escriturado. Em razão da
elaboração deste inventário está sendo possível definir as diretrizes para
publicação das Obras Completas.
Com a lista completa dos escritos de Vigotski foi possível definir um
programa de publicação das Obras Completas considerando todas as etapas
de sistematização. Ainda não temos informações atuais sobre o cronograma de
lançamento, mas o primeiro volume havia sido previsto para final de 2014 e até
o momento isso não ocorreu. Até agora, a única informação de que dispomos
sobre a edição das Obras Completas refere-se ao trabalho da professora e
39VIGODSKAIA, G. L.; LIFANOVA, T. M. “His life”. School Psychology International, 5 (16), pp. 105-116 [Disponível na internet: http://webpages.charter.net/schmolze1/vygotsky/gita.html].
108
pesquisadora Ekaterina Zaverchneva, que apontou várias divergências no texto
da publicação ocorrida na Rússia, em 1982: O Sentido Histórico da Crise da
Psicologia (1927).
“Algumas tentativas de reconstituição dos textos originais estão sendo empreendidas na Rússia. A professora e pesquisadora Ekaterina Zaverchneva teve a oportunidade de trabalhar com os arquivos que estão em poder da família de Vigotski. A sistematização apresentada por ela propõe a publicação dos 15 volumes das Obras completas do pensador e foi elaborada com base no material que já foi publicado e no que está nos arquivos da família. Porém, o trabalho de reconstituição dos textos originais demanda tempo, paciência e dedicação. Zaverchneva apresentou o resultado de um trabalho realizado com o famoso O sentido histórico da crise na psicologia, indicando os trechos que foram suprimidos, as palavras que foram trocadas e/ou retiradas, devolvendo também os sobrenomes citados pelo autor, mas que estavam proibidos (PRESTES, Z. R. 2014, p. 11).
Há uma grande expectativa para o lançamento deste projeto editorial
que deve considerar dois aspectos importantes e necessários: i) que se
consiga chegar mais perto do original e apontar as divergências ocorridas no
decorrer das publicações já realizadas; ii) que se publique tudo o que foi
produzido por Vigotski incluindo cartas, artigos de jornais e produção literária.
Se estes dois aspectos não forem considerados conclusivamente, corre-se o
risco de descrédito no decorrer do tempo. Os constantes comentários sobre
subtrações textuais em razão da censura, no decorrer das publicações das
obras de Vigotski, devem ser agora enfrentadas e explicitadas numa edição
completa. Chamamos atenção para a seriedade exigida para este trabalho
devido à expectativa de que os arquivos venham a ser disponibilizados para
público em geral. Espera-se que os problemas com as divergências textuais
sejam definitivamente explicitadas, caso contrário, estas divergências tendem a
se ampliar em direção a debates técnicos sem fim sobre parágrafos, nomes,
alterações, etc. Num artigo publicado por VEER & YASNITSKY (2011)
Vygotsky in English: What still needs to be done(Vigotski em Inglês: o que
ainda precisa ser feito) chama atenção na história hermenêutica vigotskiana a
necessidade de distinguir as produções de Vigotski em quatro categorias:
manuscritos, artigos, palestras e livros. Na visão deste crítico mistura-se estas
categorias sem respeitar a originalidade ou então sem considerar devidamente
as razões pelas quais se faz estas intervenções nos trabalhos de Vigotski.
109
Além disso, há problemas com supressões e adulterações. Tudo isso só será
resolvido com pleno acesso aos textos de Vigotski, fato que, até agora, não
ocorre de forma transparente e aberta. Num outro artigo, YASNITSKY (2012b)
defende, ou melhor, “conclama”, que os pesquisadores envolvidos com as
traduções e o pensamento vigotskiano apoiem a tradução completa das obras
de Vigotski. Argumenta três questões para este esforço: primeiro, as Obras
Reunidas deixaram vários textos de fora e não é possível deixá-los da forma
como estão, incompletos; segundo, uma das obras mais lidas de Vigotski é
Pensamento e Linguagem, mas tem vários problemas de edição. As três
edições russas – 1934, 1956 e 1982 – diferem-se muito entre si; terceiro, há
muitas críticas das obras reunidas relacionadas a adulterações no processo de
compilação dos textos.
VEER & YASNITSKY (2011) também apresentam os problemas com a
edição do livro mais conhecido de Vigotski: Pensamento e Linguagem. Os
autores identificam e elencam a estrutura de organização do livro durante os
anos de pesquisa de Vigotski. Na Tabela 1: Composição de Pensamento e
Linguagem de Vigotski, podemos verificar como cada capítulo foi elaborado, as
respectivas páginas, bem como o período da edição. Podemos notar, por
exemplo, no capítulo 6, a participação de um de seus colaboradores no texto.
Não estamos condenando que determinados textos sejam compilados desta
maneira, mas há necessidade de apresentar as fontes claramente. Como
podemos verificar, esta obra tem inserções de publicações realizadas
anteriormente a 1934 e várias alterações entre o que foi publicado antes e o
que foi publicado posteriormente foram revistas. Este seria o primeiro trabalho
de comparação. Há muitas diferenças entre as três publicações russas, e, só
aí, teríamos um belo trabalho exegético. Os autores que analisam
especificamente a publicação de Pensamento e Linguagem sugerem que as
traduções mais confiáveis são aquelas que se baseiam na edição publicada em
1934.
110
Tabela 1: A composição de Pensamento e Linguagem de Vigotski40
Capítulo
Páginas
Data da redação
Fonte
Prefácio
1 a 3
Primavera 1934
cap. 1
4 a 15
Primavera 1934
Cap. 2
16 a 66
Depois de 1932
Vigotski (1932)
Cap. 3
67 a75
Antes de 1929
Vigotski (1929 a)
Cap. 4
76 a 102
Antes 1929
Vigotski (1929 b)
Cap. 5
103 a 162
Antes de 1931
Vigotski (1931)
Cap. 6
163 a 176
Fevereiro de 1934
Shif (1935)
177 a 255
Primavera 1934
256 a 259
Fevereiro de 1934
Shif (1935)
Cap. 7
260 ao fim
Primavera de 1934
Alterações (e adulterações) em textos de Vigotski foram também
apontados por vários outros autores (KOZULIN, 1990; TOASSA, 2015a; 2015b;
GONZÁLEZ REY, 2013; PRESTES & TUNES, 2012; VEER, 2016; VEER &
YASNITSKY, 2011; VEER & VALSINER, 2009; YASNITSKY, 2010; 2011;
2012b) reforçando a necessidade de reanálise, mas, mais do que isso, exigindo
maior transparência e permitindo o acesso dos pesquisadores aos manuscritos,
ao acervo. Ou seja, YASNITSKY (2012b) recomenda começar tudo de novo.
40Tabela reproduzida e comentada do artigo de VEER & YASNITSKY (2011) Vygotsky in English: What
still needs to be done (ps. 475-493).
111
Pode-se começar tudo de novo, mas não é possível ignorar os esforços
até agora desenvolvidos para a publicação das Obras Reunidas. Depois da
morte de Vigotski, as obras passam a ser disputadas por perspectivas
filosóficas diferentes.
Guardada as devidas diferenças de cada época e a diferença do
conteúdo, nós temos hoje, de um lado, a psicologia cognitiva que adota uma
postura pragmática ao assimilar as pesquisas de Vigotski e, ao mesmo tempo,
tenta expiá-la do marxismo; de outro lado, temos análises buscando
contextualizá-las dentro das concepções marxistas, mas temem analisar a
totalidade da obra. Dito de outra forma: temos a impressão que, de um lado,
teme-se descobrir um materialismo histórico dialético radical e, por outro, teme-
se descobrir um caráter idealista. Como demarcar um caminho para analisar a
produção teórica de Vigotski? Nós julgamos que esta é uma questão central
que não pode simplesmente ser tratada veladamente.
O desafio para estabelecer o diálogo entre Marx e Espinosa é
defendido por muitos autores importantes nas últimas décadas. Devido às
consequências do que se costumou denominar como Socialismo Real, os
debates buscam aproximar ou criar um marxismo espinosano. Os autores tais
como L. Althusser (1918-1990), G. Deleuze (1925-1995), F. Guattari (1930-
1992) e mais recentemente A. Negri (1933- ...) fazem críticas ao teleologismo
que ainda se vê muito presente em algumas correntes marxistas. A
aproximação da concepção de Espinosa é vista como uma alternativa para um
pensamento que se opõe ao finalismo e ao determinismo. O finalismo é uma
herança religiosa, mística. No início do século XX, Vigotski já propunha
indiretamente fazer esta aproximação com as concepções espinosanas, mas
devido às condições da época não havia espaço para ampliar este debate,
tanto no campo da psicologia como no campo da filosofia política. É por esta
razão que as obras de Vigotski têm uma importância fundamental ainda nos
dias de hoje, pois intentou encontrar uma unidade de análise constitutiva entre
cognição e afetividade. Para os estudos do psiquismo humano trata-se hoje de
um dos maiores desafios.
112
Capítulo 6: As obras de L. S. Vigotski e o desafio hermenêutico
Quando a teoria marxista tornava-se mais preocupada com o
progresso e com a supressão às concepções divergentes internas também foi
o momento de condenações das obras de Vigotski. Em 1956, num período de
reposição das forças hegemônicas na URSS, ressurge Pensamento e
Linguagem, que havia sido publicado em 1934. Aproveitou-se o momento para
sua reedição, mas sem desconsiderar as críticas que foram feitas em 1934.
Neste sentido, a edição foi reconsiderada com várias alterações para atender a
ortodoxia marxista. Esta edição de 1956 chegou aos Estados Unidos e também
foi adequada aos preceitos antimarxistas porque, em plena Guerra Fria e com
todos os embates no Leste Europeu, não se admitiria um livro com
fundamentos marxistas em território estadunidense. Essa peculiaridade
comparativa, muitas vezes, não é observada na história hermenêutica
vigotskiana: a censura controlada e visível da URSS e a censura não
controlada e invisível nos EUA. E, desde então, a teoria vigotskiana nos
Estados Unidos carrega a sua dubiedade, isto porque intencionando superar as
obras de Vigotski e alienando-se de seu próprio conteúdo original, ressurge
para impor-se na história. Ressurge com autores atuais destacando o caráter
revolucionário da teoria vigotskiana (NEWMAN & HOLZMAN, 2002) e fazendo
exercício de ater-se aos textos sem intervenções. Mais do que isso, os autores
buscam compreender o dilema da relação indivíduo e o social.
E, para o lado soviético? O que significava recuperar as obras de
Vigotski para a política estatal da URSS? E com que avidez as obras se
espalharam para tantos países? Qual é o desafio que esse autor nos coloca
para os dias de hoje? Quais são as diferenças regionais sobre o uso dos
referenciais teóricos vigotskianos? A receptividade do pensamento vigotskiano
nos Estados Unidos transformou-se numa concepção pragmatista, mas
também serviu de impulso para recuperar o conjunto de textos publicados e
não publicados de Vigotski. A história hermenêutica vigotskiana passa por suas
obras e a forma como cada época as interpreta. A história é feita de seres
humanos reais e forjada nas relações sociais, mas cada época tem suas
113
determinações do poder e da ideologia. Um texto, um artigo, um manuscrito
são instrumentos simbólicos do interesse hegemônico ou não.
Mesmo que os escritos de Vigotski tenham sido proibidos de
circulação, durante muito tempo seu pensamento manteve-se vivo em várias
áreas na URSS. Foi por essa razão que os colaboradores de Vigotski, na
década de 1970, investiram num grande projeto de publicação que veio a
público no início da década de 1980, ainda com as marcas da hegemonia
soviética de sua época.
Três obras, quer queira ou não, foram responsáveis pela divulgação do
pensamento vigotskiano. Pensamento e Linguagem chegou aos Estados
Unidos, foi traduzido e publicado uma edição estilizada “adaptada para o
público estadunidense”, em 1962. Depois se seguiram outras publicações
gradativamente: Psicologia da Arte em 1971 e Formação Social da Mente em
1978 (outra versão estilizada aos padrões estadunidenses). Em 1986,
Pensamento e Linguagem é novamente reeditado, mas logo em seguida
aparece também os seis volumes das Obras Reunidas traduzidas do russo
para o inglês. Com as traduções também apareceram pesquisadores das obras
de Vigotski num tempo muito curto, entre o final de 1980 e final da década de
1990. Sete publicações importantes apareceram: 1) The muffled deity of Soviet
psychology (A divindade abafada da Psicologia Soviética) de D. Joravsky
(1989); 2) Vygotsky’s psychology: a biography of ideas (Psicologia de Vigotski:
uma biografia de ideias) de A. Kozulin (1990); 3) Vygotsky and education:
instructional implications and applications of socio-cultural psychology (Vigotski
e educação: implicações instrumentais e aplicações da psicologia
sociocultural), livro organizado por L. Moll (1990); 4) The construction zone:
working for cognitive change in school (A zona de construção: trabalhando para
a mudança cognitiva na escola) de D. Newman, Griffin & Cole (1989); 5)
Rousing minds to life: teaching, learning and schooling in social context
(Despertar as mentes para a vida: ensino, aprendizagem e escolarização no
contexto social) de Tharp, R. G. & Gallimore, R. (1988). 6) Developmental
psychology in the Soviet Union (Psicologia do Desenvolvimento na União
Soviética) de J. Valsiner (1988); e, 7) Understanding Vygotsky - A quest for
synthesis (Compreendendo Vigotski: uma questão de síntese) de Van der Veer
114
& Valsiner (1991). Destas publicações percebemos a preocupação em
desvendar o pensamento vigotskiano e também com questões voltadas para o
desempenho escolar ou o desenvolvimento cognitivo. NEWMAN & HOLZMAN
(2002) justificam que o intenso interesse pelas obras de Vigotski nos Estados
Unidos se deu no final da década de oitenta e no decorrer da década de
noventa para responder aos “graves problemas sociais” que se vivia na época.
“A psicologia mais socialmente baseada e socialmente relevante poder
contribuir para aliviar, se não eliminar, os males e a injustiça sociais” (Ibidem, p.
19). As obras de Vigotski são lidas, interpretadas e consideradas para
atividades práticas a partir das concepções de método.
No final da década de 1970, um filósofo britânico chamou atenção para
os trabalhos de Vigotski e que também contribuiu para ampliação do interesse
pelas publicações vigotskianas.
“The beginning of the cult of Vygotsky, which is also referred to as the “Vygotsky boom” (Cole, 2004; Garai and Kocski, 1995), dates back to 1978 when the book Mind in Society (1978) came out under Vygotsky’s name, and noted British and American philosopher Stephen Toulmin published his programmatic book review titled “The Mozart of Psychology” (Toulmin, 1978), where he referred to Lev Vygotsky as the Mozart of psychology, and to his right-hand man and co-worker, Alexander Romanovich Lúria, as Beethoven. Whereas the second part of this comparison was eventually largely forgotten, the association between the genius of Mozart and that of Vygotsky seems to have survived and remains one of the commonplaces of contemporary historiography (or rather “mythology”, as some claim) of Soviet psychology. After the publication of Mind in Society, the celebrated notion of the “zone of proximal development” became perhaps the best-known concept associated with Vygotsky worldwide” (YASNITSKY, 2010, p. 3)41.
41“O início do culto a Vygotsky, também conhecido como "Vygotsky boom" (Cole, 2004, Garai e
Kocski, 1995), começou em 1978, quando o livro Mind in Society (1978) saiu com o nome de Vygotsky e quando o filósofo britânico e americano Stephen Toulmin publicou sua revista programática intitulada "O Mozart da Psicologia" (Toulmin, 1978), onde ele se referiu a Lev Vygotsky como o Mozart da psicologia e o seu braço direito e colega de trabalho, Alexander Romanovich Lúria, como Beethoven. Enquanto que a segunda parte desta comparação foi definitivamente esquecida, a associação entre o gênio de Mozart e a de Vygotsky parece ter sobrevivido e continua a ser um dos lugares-comuns da historiografia contemporânea (ou melhor, "mitologia", como dizem alguns) da psicologia soviética. Após a publicação de Mind in Society, a célebre noção de "zona de desenvolvimento proximal" tornou-se talvez o conceito mais conhecido associado a Vygotsky em todo o mundo” (Nossa tradução).
115
As primeiras obras de Vigotski que chegaram ao Brasil vieram pela
influência estadunidense, ou seja, as obras com texto reduzido e estilizado.
Mind and Society, em 1978 – traduzido no Brasil com o título Função Social da
Mente – serviu para divulgar rapidamente o pensamento vigotskiano e acabou
sendo referência para muitos psicólogos e pedagogos. Mind and Society,
entretanto, do ponto de vista hermenêutico, é um livro insatisfatório porque
foram inseridas várias fontes adicionais, por exemplo, textos de alunos ou
colaboradores diretos de Vigotski. Não é possível dizer hoje que este texto
pertença a Vigotski, porque não há clareza quanto à origem dos excertos, quais
partes foram deixadas de lado, onde começa o texto do autor e onde começa
dos outros. É uma miscelânea que não podemos considerar como um texto
original (VEER & YASNITSKY, 2011, p. 480). Depois foi publicado Psicologia
da Arte em 1999, Psicologia Pedagógica em 2001; Pensamento e Linguagem
foi traduzido diretamente do russo para o português por Paulo Bezerra com o
título: A construção do pensamento e da linguagem – publicado pela Editora
Martins Fontes, também em 2001. Em 2014, uma obra inédita foi traduzida
direto do russo: Imaginação e criatividade na Infância, traduzido por João
Pedro Fróis e, mais uma vez, publicado pela Editora Martins Fontes.
Em 1984 foi publicado Psicologia Social – o homem em movimento,
livro organizado por Sílvia T. M. Lane e Wanderley Codo, obra que representa
o fundamento e o marco inicial para o desenvolvimento de pesquisas sobre o
desafio de desenvolver uma psicologia brasileira como um movimento de
resistência e crítica ao modelo de dependência. Neste livro organizado por
LANE & CODO, Vigotski é um dos autores referenciais junto com A. Leontiev.
Contudo, o acesso às obras não é realizado pelas traduções estadunidenses,
mas pela influência das obras traduzidas pelos argentinos. Pensamiento y
lenguaje fora traduzido e publicado em 1973, em Buenos Aires, e vemos a
influência de Lane considerando também as produções de A. Leontiev, pois
Actividad, Consciencia y Personalidad havia sido publicado em 1978. LANE
interpretava que a ciência não era neutra e que pactos macroeconômicos
determinavam não só a dependência econômica, mas também a dependência
do conhecimento. Desenvolver uma psicologia latino-americana perpassava
pela necessidade de acessar diretamente as publicações originais de Vigotski.
116
A repressão ocorrida no Brasil na década de 1970 não permitia acesso livre às
publicações, mas na Argentina vemos que nesta década ainda havia algumas
alternativas para recepcionar as obras de Vigotski. Num artigo recente
publicado em 2014, Protagonistas de la recepción pioneira de la obra de
Vigotsky em nuestro país: entrevista al professor Francisco Berdichevsky
(SULLE, 2014), temos um relato da proximidade que os professores
universitários argentinos conseguiram manter com Leontiev e, mas sem
dissociar do pensamento vigotskiano.
“Yo fui reincorporado en la Universidad de Buenos Aires, al igual que Gervasio Paz, Mimi Langer y muchos otros, que éramos docentes, y luego de la noche de los bastones largos nos echaron… Luego en la época de Cámpora, nos reincorporaron. Y en los años 70, cuando viajo a la URSS como invitado, era otra vez recién docente expulsado de la UBA, otra vez… Ya estaba Ivanissevich. En esa época, en la URSS, Leontiev estaba escribiendo Actividad, Conciencia y Personalidad, él mismo me dio los capítulos para leer, y yo lo traduje, -irmando con un seudónimo, como Mansilla - y con el permiso de Leontiev lo hice publicar aquí (…) Después de la apertura en la URSS, fueron elegidos por unanimidad Leontiev decano y Vicedecano Lúria… Yo con ellos me entendía en francés, porque Lúria hablaba el francés de corrido, como gran parte de la intelectualidad rusa”…“yo llego, y me levanto esa mañana, y veo que me espera Leontiev, a las once de la mañana… Y ahí yo me pregunto: ¿Qué hago yo aquí, con este capo mundial? A las once lo conozco y a los diez minutos ya estábamos hablando normalmente, y al otro día ya me invitó a su casa. Estuvimos estudiando mucho, acerca del problema de que no había una sola orientación, sino varias orientaciones, que interactúan entre sí. Hicimos un intercambio interesante con el enfoque de él de la personalidad. Esas cuestiones están en trabajos y presentaciones en congresos de la época, donde yo hablo de Vigotsky, de Leontiev, ya que siempre me referí a esa escuela… y tanto Leontiev como Lúria todo el tiempo se referían a Vigotsky, las referencias a Vigotsky estaba siempre. Y en el año 78 me invitan otra vez a la URSS, pero no pude ir, porque estaba detenido en la Unidad 9 de la Plata” (SULLEN, 2014, p. .90).
Em 1984, havia um movimento na Argentina organizado para estudar
com maior profundidade as obras de Vigotski e outros psicólogos que eram
identificados muito mais como psicologia soviética. Em 1984, foi realizado um
seminário em Buenos Aires para discutir sobre a Psicologia Soviética.
“En 1984 se dictó en la casa universitaria Aníbal Ponce de Buenos
Aires, el curso “Una aproximación epistemológica a la Psicología” a
cargo de Juan Azcoaga, Mario Golder; Alicia Sirkin y Abel García
Barceló. En el seminario fueron trabajadas, predominantemente, las
teorías de la Psicología soviética y de marxistas europeos como
Lucien Sève y se abordaron aportes de Vigotsky, Lúria, Leontiev,
Galperín, Elkonin y Zinchenko entre otros representantes de la
117
academia soviética. Algunos de los seminarios del curso fueron
“Proyecciones del lenguaje interior y teoría del conocimiento” (a cargo
de Juan Azcoaga, dictado el 1/10/1984) (Ibidem, p. 90).
O movimento da psicologia na Argentina, portanto, tinha uma base da
década de 1970 e que contribuiu para que as traduções diretas do russo para o
castelhano fossem realizadas; assim também se conseguiu manter um certo
nível de relação com os integrantes da psicologia soviética. Esta relação
propiciou reconhecer a psicologia soviética não como dissensões, por exemplo,
psicologia da atividade de Leontiev e psicologia das mediações de Vigotski. A
partir da década de 1990, a Argentina foi também contemplada indiretamente
quando as Obras Reunidas começaram a ser editadas na Espanha. Sobre a
diferença entre a recepção da psicologia argentina e a da brasileira é um
campo de pesquisa para ser viabilizado, dado as condições histórico políticas
semelhantes e em função da demanda social também muito parecida entre os
dois países.
Na década de 1970, o Brasil vivia o pior período de repressão da
ditadura militar e não era possível fazer publicações de livros oriundos da
URSS. Na Argentina, houve oscilações que permitiram a entrada de obras
oriundas da URSS e foi por essa razão que o pensamento vigotskiano havia
chegado à Argentina sem os referenciais estadunidenses, diferentemente do
que ocorreu no Brasil.
No Brasil, destacamos três autores atuais que desenvolveram e que
ainda desenvolvem vários programas de pesquisa sobre a psicologia
Vigotskiana: SAWAIA (2007, 2010), GONZÁLEZ REY (2013) e PINO.
Os estudos de SAWAIA42 se aproximam das investigações também
realizadas por ÁLVAREZ & del RÍO (2007) na Espanha ao sustentar a
influência teórica de Vigotski a partir de quatro perspectivas: primeira, a
influência histórica de Hegel contraposta por Marx; segunda, a concepção
ontológica marxiana onde o ser humano é determinado pela história, mas
também a determina; terceira, a influência instigante da literatura ou da arte
42 Bader Burihan Sawaia coordena o Núcleo de estudos sobre a dialética da inclusão e exclusão social na PUC SP.
118
(estética) por propiciar a permanente relação com a realidade objetiva e
permitir enxergar as potencialidades humanas; quarta, o fundamento da
filosofia espinosana que considera a afetividade não como um “império dentro
do império”, mas como inerente ao ser humano. Poderíamos afirmar que quatro
obras são norteadoras para a hermenêutica vigotskiana a partir das análises de
SAWAIA: A Ética de Espinosa, Hamlet de Shakespeare, Fenomenologia do
Espírito de Hegel e O Capital de Marx. Elencamos resumidamente os principais
destaques que SAWAIA identifica na teoria espinosana:
1) É antirreducionista porque rompe com a lógica que alimentou o
dualismo clássico da Psicologia como a mente/corpo e razão/emoção
(SAWAIA, 2007, p. 83).
2) É dialética por considerar “o processo de constituição do
psiquismo na materialidade histórica de cada sociedade não implicando perda
de criatividade” (Ibidem, p. 86).
3) É libertadora porque é “expressão da atividade revolucionária” – “
permite ao ser humano libertar-se das leis da natureza e das determinações
sociais” (Ibidem, p. 87).
4) Aplica o método dialético para “compreender os processos de
transformação interna, subterrâneos, mas que têm caráter social, defendendo o
pressuposto de que a vida psíquica é o lugar de luta entre impulsos
contraditórios” (Ibidem, p. 13).
5) Influenciado pelo pensamento espinosano que entende como
“atividade revolucionária prático–crítica”, que se fundamenta no “desejo de
expansão da potência do corpo de agir e da mente de pensar, desejo de
libertar-se das forças criadoras dessa potência” (SAWAIA & MAHEIRE, 2014,
p. 14).
6) É antipositivista porque permite “à psicologia trabalhar com duas
categorias de realidade aparentemente irredutíveis: subjetividade e
objetividade, como unidade de contrários” (Ibidem, p. 1).
7) É monista porque os fenômenos são analisados em sua totalidade
e as partes como constitutivas dele (SAWAIA & SILVA, p. 347).
119
8) A ênfase na “positividade da imaginação e emoção” – “enlace
emocional” acentuando que “todo o sentimento é pensado em imagens”
SAWAIA & SILVA (Ibidem, p. 352).
Os destaques das pesquisas realizadas por GONZÁLEZ REY não
diferem das de SAWAIA por concordarem que no final da vida de Vigotski ele
“recupera o tema unidade do cognitivo e do afetivo, e da significação e
irredutibilidade das emoções nas atividades humanas” (2013). Para
GONZALEZ REY a vida curta de Vigotski o impediu de concluir os estudos
sobre duas categorias que introduz a partir da unidade de análise “do cognitivo
e do afetivo”: “sentido” e “situação social”. Pelo fato de não conseguir concluir
estes estudos podemos perceber que não alcançou a elaboração de “um
sistema integrador da cognição e do afeto” (Ibidem, p. 104).
PINO (2000) sustenta que a psicologia vigotskiana se fundamenta e se
estrutura no materialismo histórico dialético e toma a noção de trabalho para
Marx que envolve “três elementos simples”: atividade do ser humano, objeto
sobre o qual ele age e “o meio (instrumento) pelo qual age” (Ibidem, p. 37).
Fica claro para este autor que está no trabalho a especificidade humana e que
a mediação de instrumentos é o que também fundamenta a relação ser
humano e natureza. O trabalho “constitui a condição de humanização do ser
humano e natureza, traduzindo a ‘verdade’, ao mesmo tempo da natureza, pela
ciência, e do homem, pela consciência da sua liberdade” (Ibidem, p. 38). Faz a
defesa de que esta noção do trabalho teve influência em Vigotski, como
também a relação entre filogênese e ontogênese, pois busca a síntese entre
ser humano e sociedade. São duas linhas que podem ser consideradas
diferentes, mas estão imbricadas uma na outra. Poder-se-ia dizer que tanto o
cultural como o natural estão imbricadas uma na outra, como linhas regidas por
leis próprias.
PINO (2000) chama atenção que o processo histórico tem dois
sentidos para Vigotski: um geral e outro restrito. O primeiro, a história “significa
abordagem geral das coisas” como aplicada por Hegel e Marx. Contudo, Marx
inverte o sentido idealista de Hegel em materialista – que passou a ser
chamada materialismo dialético. O autor afirma então que o materialismo
120
dialético se baseia numa “totalidade concreta” e que para entendê-la é
necessário distinguir que a natureza pode ter um sentido ontológico (é a
realidade em si) e dialético (é a realidade para si). O segundo, o sentido
restrito, ou seja, a história é história do ser humano. Por exemplo, o modo de
produção não é dado, é criado pelos seres humanos e sustentado por eles. Se
o trabalho é uma questão fundamental e se o modo de produção determina as
condições sociais, então, as relações determinam o modo de ser do ser
humano.
Vigotski atuou em muitas frentes de pesquisa e apresentamos na
Figura 1 as principais áreas que atuou na sua curta carreira de pesquisador:
psicologia (a definição da consciência como sistema na relação entre uma
representação cognitiva-emocional de uma representação como sistema de
funções), pedologia (define as funções psíquicas superiores tendo origem no
social e o processo de desenvolvimento, fundamentando-se primeiro como um
fenômeno interpsicológico para alcançar o fenômeno intrapsicológico) e
neurologia (os estudos da desintegração dos sistemas psicológicos
superiores). Podemos ver áreas de intersecção (A, B e C) na figura, pois
consideramos que cada uma destas corresponde a um campo de pesquisa
com diversos colaboradores. No centro há um espaço que identificamos como
o lugar das obras sínteses, cuja maior parte permaneceu em forma de
manuscritos. Entendemos que após a morte de Vigotski e, simultaneamente, o
fechamento do setor de pedologia, os grupos de pesquisa foram
desmantelados, o que contribuiu, como já dissemos, para a propagação do
caráter independente de Vigotski.
Para que possamos compreender melhor a trajetória das obras de
Vigotski elencamos duas etapas básicas: a primeira consiste na etapa em
Vigotski estava vivo e pôde exigir um estilo de editoração e decidir ou não
pelas publicações expostas no Quadro 1: A fase literária (1914 – 1924) e
psicológica (1924 – 1934) de Vigotski, que apresenta resumidamente estas
informações em duas fases distintas e respectivamente em períodos diferentes.
121
Figura 1: Áreas de atuação de Vigotski
Emprestamos a distinção das fases literária e psicológica de Del RÍO
(cit. REGO & BRAGA, 2013, p. 527) que define um primeiro momento (1914-
1917) envolvido nos debates sobre arte, literatura e estética. O encontro com
Hamlet significa encontrar-se com o trágico – “o desafio de compreender a vida
humana como algo visto a partir da consciência, que é consciência da morte”
(Ibidem, p. 518). A psicologia tende a ver somente a vida, mas não entender a
consciência da morte, o incognoscível. Os textos, artigos e livros desta fase
levam esta marca. Primeiro, como “Psicologia do Drama” – compreender o
sentido da vida para o ser humano. Hamlet é a personagem que incorpora
estas perguntas existenciais em busca de sentido. Mais do que isso, como
viver seu personagem. O segundo momento (1917-1924) trata-se, a partir de
suas bases literárias, envolver-se num debate maior que denominamos
“inserção no debate sobre estética”.
No primeiro momento, há uma preocupação com uma obra que se
intitulará Psicologia da Arte e que somente em 1925 será concluída como tese
de doutorado. No segundo momento, são publicados vários artigos que se
misturam no estudo da arte como no estudo sobre a literatura. Qual a razão do
Psicologia da Arte não ter sido publicado na década de 1920 por Vigotski?
PSICOLOGIA
NEUROLOGIAPEDOLOGIA
A C
B
122
PRESTES & TUNES (2012) sustentam a versão de que Vigotski não estava
satisfeito com o método de análise utilizado. Esta obra só foi publicada na
União Soviética em 1965. Nesta obra, consta em anexo uma relação de 87
títulos que Vigotski escreveu na área de crítica literária. No Brasil, a Psicologia
da Arte foi publicada pela editora Martins Fontes, com tradução de Paulo
Bezerra, em 2001.
A Fase Psicológica também compreende dois períodos. Se antes
inseria-se no debate sobre o drama na psicologia e a estética, agora enfrenta o
grande debate na área da psicologia que se constitui um “drama da psicologia”
(1924-1931): psicologia objetiva versus psicologia subjetiva, psicologia com
consciência versus psicologia sem consciência, psicologia reflexológica versus
psicologia mentalista. Vigotski enfrentou este dilema na psicologia postulando
uma psicologia dialética. Este período inicia em 1924 com vários artigos, como
também inicia-se com a publicação de Psicologia Pedagógica. Na introdução
de Psicologia Pedagógica consta um prefácio elaborado por A. N. Leontiev, no
qual revê o nome da psicologia vigotskiana, ou seja, trocou teoria histórico-
cultural por histórico-social. Em 1934, na revista Sovetskaia psirronevrologia,
volume nº 6, afirma que a teoria vigotskiana deveria ser definida como sócio-
histórica (PRESTES & TUNES, 2012, p. 334). Os comentadores das Obras
Completas de 1982, sem exceção, denominam como teoria sócio-histórica.
Muitos artigos são publicados até 1931, quando, então tem início o
segundo período (1931-1934), ao qual denominamos de “o drama na psicologia”.
É o retorno para a primeira fase, mas significa a síntese de suas análises
quando recupera a unidade cognitivo-afetivo, bem como as emoções estão
concebidas nas atividades. Esse último momento, como já dissemos
anteriormente, está marcado pelas obras sínteses: Psicologia do ator criativo
(1936), Pensamento e Linguagem (1934), Teoria das emoções (1933) e História
do desenvolvimento das funções psíquicas superiores (1931).
123
Quadro 1: A fase literária (1914 – 1924) e psicológica (1924 – 1934) de
Vigotski
FASES
PERÍODO NOME CARACTERÍSTICAS
LIT
ER
ÁR
IA
1914-1917
A Psicologia do Drama
Nos anos de formação acadêmica, Vigotski esteve envolvido nos debates sobre as obras de William Shakespeare (comemoração 300 anos de sua morte em 1916). Os estudos aprofundados sobre uma das obras mais famosas de Shakespeare, Hamlet, instigaram Vigotski a entrar no mundo da literatura, teatro estética. O resultado destas reflexões é Psicologia da Arte, tese de doutorado de 1925. O debate em torno da questão judaica e literatura motivam Vigotski a escrever artigos nas revistas: Letopis, Novii Mir e Novaia Jizn.
1917-1924
Inserção no debate
sobre estética
Publica resenhas teatrais e articula as atividades culturais locais. Participa ativamente dos programas educacionais para serem desenvolvidos na cidade de Gomel.
PS
ICO
LÓ
GIC
A
1924-1931
O Drama da
Psicologia
Desde a participação de Vigotski no II Congresso Nacional de Psiconeurologia realizado em Leningrado, no início do ano de 1924 (6 de janeiro), passando pela experiência no Instituto de Psicologia de Moscou até suas atividades de ensino no Instituto Herzen, em Leningrado, há sempre a manifestação de uma crise na psicologia que deveria ser resolvida. A superação da crise deveria vir com uma nova psicologia que superasse a dicotomia objetividade versus subjetividade. Esta trajetória pode ser analisada em escritos de Vigotski: Os métodos de investigação reflexológico e psicológico (1924), Psicologia Pedagógica (1926), O significado histórico da crise da psicologia (1927) e Manuscrito de 1929. Contudo, em 1931, conclui uma obra síntese que o instigará para várias outras áreas: História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores.
1932-1934
O Drama na
Psicologia
O fechamento do setor de pedologia do Instituto de Psicologia de Moscou, em 1932, não interrompeu os estudos de Vigotski. Neste momento retoma seus estudos sobre a arte e sobre a filosofia espinosana. Não consegue concluir suas obras sínteses deste período: Psicologia da criação do ator (1932), Tratado sobre as emoções – Investigação histórico-psicológica (1933), Pensamento e Linguagem (1934).
124
Tratamos até o momento como as obras de Vigotski foram elaboradas
ou até mesmo algumas foram publicadas em vida, mas também temos que
analisar como as obras foram consideradas depois de sua morte. No Quadro 2:
O destino dos escritos de Vigotski depois de sua morte, elencamos três fases
distintas: censura, recuperação e crítica. Acerca da primeira, já enfatizamos
sobre os processos de proibição das obras de Vigotski, fato que significa
também a suspenção de circulação das obras da área da pedologia; a
segunda, depois de longa data de ostracismo, num movimento interno de
recuperação das obras de Vigotski, publica-se Pensamento e Linguagem, obra
que consegue romper as barreiras da fronteira da URSS e chegar aos EUA.
No artigo de VIGODSKAIA &LIFANOVA (1999) aparece uma pergunta
provocativa sobre a política de publicação das obras de Vigotski:
“Por que a grande parte das obras de Vigotski ficou sem ser publicada na União Soviética mesmo no período entre a década de 1960 até o início dos anos de 1980?” (Ibidem, p. 10).
É intrigante que as autoras apresentem esta pergunta sem arriscar
nenhuma análise histórica sabendo do interesse internacional sobre o acervo
vigotskiano. Evidentemente, não estamos desconsiderando os relatos já
realizados por diversos autores russos sobre a vida e a obra de Vigotski, mas
não temos um trabalho completo que possa informar qual a importância hoje
para a Rússia, por exemplo, da produção de Vigotski.
A fase de censura tem dois momentos. Primeiro, destacamos “a
consolidação da Psicologia Dialética”, que pode ser entendida como um
momento de responder à ortodoxia marxista e a escola da atividade ganha
relevância. No momento seguinte, há um “silêncio” sobre as obras de Vigotski.
Depois da fase de recuperação das obras que significa a publicação
das Obras Reunidas, entramos na “análise crítica” das obras de Vigotski.
Estudos são realizados por vários pesquisadores num processo ainda
inconcluso para considerar as principais referências de Vigotski.
125
Quadro 2: O destino dos escritos de Vigotski depois de sua morte
FASES PERÍODO NOME CARACTERÍSTICAS
CE
NS
UR
A
1934-1941
A consolidação da Psicologia
Dialética
A partir de 1936, as obras de Vigotski são proibidas de circulação como muitas outras obras de outros autores ligados aos estudos da pedologia. Contudo, é neste período que se consolida a aproximação de Lúria e Leontiev. Mais tarde, isso vai significar a recuperação do legado de Vigotski no cenário das pesquisas, tanto na Rússia Soviética como em outros países do ocidente.
1941-1956
Silêncio
Depois de um longo período de ostracismo, uma obra é recuperada e reeditada na Rússia Soviética: Pensamento e Linguagem. Contudo, esta edição sofre alguns ajustes e supressões por parte da censura soviética.
RE
CU
PE
RA
ÇÃ
O
1956-1984
O primeiro sinal de
recuperação
Em 1962, Pensamento e Linguagem é publicado nos EUA e ganha notoriedade devida, mas é uma publicação também com ajustes e supressões da censura livre americana. Mais tarde é lançada A Formação Social da Mente (1978), também uma edição estilizada do pensamento vigotskiano, mas com a mesma atitude de ajustes da edição de Pensamento e Linguagem. No início da década de 1980, a URSS lança um conjunto de títulos (muitos inéditos) do cânone vigotskiano. Foram reunidos 54 títulos em seis volumes.
CR
ÍTIC
A
1984-1991
Recuperação do acervo
Obras reunidas (edição russa) é traduzida para o inglês e para o espanhol, possibilitando o acesso mais amplo do lado ocidental.
1991- ... Disseminação
e análise crítica
Por causa do interesse crescente pelas obras de Vigotski, definiu-se um projeto para publicação de 275 títulos até agora catalogados. O projeto é de 15 volumes, mas até o momento nenhum exemplar foi editado.
Para uma análise investigativa das obras de Vigotski, sugerimos não
começar pelas obras sínteses, mas optar por um caminho mais simples. Não
126
significa que os assuntos tratados sejam simples, mas partir das “conferências”
que Vigotski preparava para orientar educadores – as temáticas “psicologia
infantil”, “pedologia do adolescente” – constituem a área principal de pesquisa
junto com a “defectologia”. Estas conferências não são palestras de início de
carreira. Entre as obras sínteses e as conferências, julgamos O Significado
Histórico da Crise da Psicologia como uma obra que marca a reposição
epistemológica na carreira de Vigotski. É uma análise crítica da psicologia que
está em crise e que não se restringe a um problema de definição local. A crise
da psicologia é enquanto ciência. Clama pela criação de uma psicologia geral
para que não se fragmente ainda mais.
O Significado Histórico da Crise da Psicologia é uma obra central e
marca a transição e o início da maturação da teoria vigotskiana. As pesquisas
sobre ensino e aprendizagem já acompanhavam Vigotski desde sua atuação
como professor na cidade de Gomel. Suas pesquisas estavam conectadas com
questões reais da educação da URSS e que demandavam, de fato, estudos
para orientação dos educadores: crianças abandonadas, adolescentes difíceis,
crianças deficientes etc.
127
Conclusão
Os estudos sobre as obras de Vigotski geralmente permanecem nas
questões de método, que tomam como referência principal os seguintes textos:
Os métodos de investigação reflexológicos e psicológicos (1926), Psicologia
geral e experimental (Prólogo ao livro de A. F. Lazurski - 1925), A Consciência
como problema da psicologia do comportamento (1925), O método
instrumental em psicologia (1930), Sobre os sistemas psicológicos(1930) e O
significado histórico da crise da psicologia, uma investigação metodológica
(1927). E, se eventualmente não são estes os textos referenciais, estudam-se o
Método de investigação, que consta na História do desenvolvimento das
funções psíquicas superiores (1931) ou então O problema e o método de
investigação, primeiro capítulo do Pensamento e Linguagem (1934). Esta
estratégia de estudos é muito frequente para se aproximar do pensamento
vigotskiano, mas, muitas vezes, leva ao desestímulo quase que completo para
o estudo. A leitura é cansativa em razão do estilo dos escritos e pelas citações
exageradas de autores sem os devidos aprofundamentos. Não estamos
afirmando com isso que os textos de Vigotski não têm a profundidade
necessária, pelo contrário, são densos e pertinentes sobre o estudo do
psiquismo humano. Aqueles que desejam o aprofundamento da teoria
vigotskiana são levados a destinar um tempo muito maior de análise textual
devido à necessidade de verificação das citações para conseguir acompanhar
a trajetória da exposição. O Significado Histórico da Crise da Psicologia, por
exemplo, começa com a frase enigmática e bíblica: “a pedra que rejeitaram os
construtores, essa veio a ser a pedra angular”. E tem mesmo sentido a partir da
décima quarta parte, quando for retomado o que Vigotski coloca logo no início
do texto, sobre a importância daqueles que estão na prática, para pesquisas
que têm importância aos que realmente estão fazendo. O texto poderia
começar com os últimos capítulos. Contudo, é necessário ter muita paciência
para estudar as obras de Vigotski. O significado histórico da crise da psicologia
é um manuscrito que foi descoberto só em 1960 e publicado em 1982.
Portanto, o texto nem estava preparado para publicação. Vigotski era muito
criterioso para fazer as publicações. Afirmam que várias publicações poderiam
em vida serem publicadas, mas devido ao seu grau de exigência não chegaram
128
ao estágio final de editoração e também porque não havia chegado naquilo que
GONZALES REY chamou de unidade cognitivo-afetiva. Ao que temos acesso
são muitos manuscritos que foram reunidos por um conselho editorial para
divulgação de suas obras. Isso é ainda muito recente. É melhor que fiquemos
como estão do que fazer como fizeram com a obra Pensamento e Linguagem.
Ao tentarem mudar o estilo, aproveitaram para logo também alterarem
grosseiramente a fonte gnosiológica do autor. De materialista histórico dialético
passou a pragmatista.
A hermenêutica de profundidade nos orientou a tomar cuidado com a
escolha das obras para análise. Pensamos em partir das obras mais famosas:
Psicologia Pedagógica, Pensamento e Linguagem, Psicologia da Arte ou então
História do Desenvolvimento das Funções Psíquicas Superiores, mas
resolvemos deixá-las num segundo plano. Tomamos esta decisão pelo caráter
mesmo do processo de editoração destas obras que não foram possíveis de
serem devidamente acompanhadas a contento pelo autor. Ocaso mais
emblemático é Pensamento e Linguagem, já que foram compilados vários
capítulos numa obra e os capítulos foram elaborados em épocas diferentes.
Depois de analisarmos vários artigos, verificamos que as conferências
que constavam nos textos reunidos sob o título Pedologia do Adolescente e O
Problema da Psicologia Infantil – todos os textos disponibilizados no Volume IV
das Obras Escojidas – possibilitariam melhor condições de estudo e de análise.
São textos com a marca da síntese entre as pesquisas realizadas no Instituto
de Psicologia e as demandas colocadas pela realidade, e foram sistematizados
para orientar quem está na prática. Com a experiência deste caminho de
investigação e análise passamos a recomendá-lo, visto que nos fornece as
questões fundamentais do pensamento vigotskiano. Assim, o caminho
percorrido é de baixo para cima, para depois retornar de cima para baixo. Esta
é uma orientação para o caso específico das produções de Vigotski em razão
da peculiaridade da disposição de suas obras ao público; não significa que seja
uma orientação linear, rígida e determinista. É uma alternativa para
compreender, inclusive, a força do método proposto para realização das
pesquisas, pois, como já dito, partes de questões bem reais da vivência de
crianças e adolescentes. Na verdade, não recomendamos os modelos de
129
estudo das obras de Vigotski que começam, geralmente, com as questões de
método ou, então, que se direciona imediatamente para o estudo da obra O
significado histórico da crise da psicologia. O que é surpreendente nas obras
que recomendamos é o estilo, ou seja, a linguagem direta. Entendemos que
esta recomendação vai nos possibilitar chegar mais rapidamente às questões
polêmicas da hermenêutica vigotskiana, cujos esclarecimentos são
fundamentais na atualidade: o reflexo, a consciência, atividade de pensar e de
falar, signos e instrumentos.
Nós adotamos o método hermenêutico de profundidade; é o primeiro
passo que foi considerado para as análises das obras, levando em conta “as
condições sociais e históricas” em que foram elaboradas e publicadas. É por
isso que se optou por analisar as obras de Vigotski dentro de três fases
distintas: a primeira é a fase de aproximação com as temáticas da psicologia; a
segunda, as questões de método; e, a terceira, as obras no tempo de
maturação. É evidente que com a morte prematura de Vigotski (37 anos de
idade), muitas questões ficaram em aberto. A análise sobre esta localização
histórica de suas obras nós apresentamos nessa primeira parte do trabalho.
Contudo, para analisar o conjunto das obras também tivemos que fazer um
exercício exegético minucioso do discurso, contemplando análise formal e
discursiva. Trata-se de avaliar o texto em si e os hermeneutas aos quais
fizemos referência nos ajudaram nesta empreitada. Por fim, a última e terceira
parte desse trabalho está conectada com a segunda parte. Vigotski dialoga
constantemente com Kant, Hegel, Feuerbach, Marx, Engels e Lênin. Exceto
Kant, a todos os outros autores ele faz citações bibliográficas e as faz para
expor os textos desses autores, para fundamentar sua abordagem teórica. A
crítica veemente é contra Kant e, às vezes, com todas as sutilezas necessárias
para camuflá-lo, também a Hegel. A crítica contra Hegel sempre vem
acompanhada com o camarada Lênin. Não é o autor que faz a análise, os
elogios e as críticas, mas Lênin. Portanto, a segunda parte deste trabalho pode
ser entendida como uma ponte para compreender as críticas e a análise de
Vigotski. Sem a compreensão sobre a dialética destes autores fica muito difícil
entender as citações que Vigotski efetua nos seus textos, na exposição de sua
teoria. O que significa que as obras de Vigotski devem ser contextualizadas
130
considerando seus interlocutores diretos. É marcante em sua sistematização
que os autores citados acima ganham relevância de texto dos próprios autores,
mas não é o caso dos outros autores ligados diretamente com a temática da
psicologia. São citados, mas não são devidamente explicitados. A lista neste
sentido é muito ampla de autores que frequentemente são citados por Vigotski:
PIAGET, MEUMANN, CLEPARÉDE, TEM, RIBOT, SHEIN, JAENSCH, KROH,
GRAKOB, AMENT, SHÜSLER, SPRANGER, FREUD, STUMPF, BÜHLER,
KOFFER, MORITZ, BERNS, VOGEL, GALTON, JOVSKAIA, RUBINSTEIN,
LEWIN, KOHLER...
Para entender a análise da hermenêutica vigotskiana, usamos uma
metáfora para expressar melhor o que almejamos. Para isso precisamos de
uma imagem de qualquer objeto que se possa colocar de avesso. Esse objeto,
quando o vemos, vemos na sua aparência. Para saber como foi feito é
necessário colocá-lo do avesso. Então, quando vemos os detalhes, podemos
tornar a colocar de avesso para que tenha a sua devida utilidade, para que se
preserve a função do objeto, e, assim temos a noção total do objeto. Contudo,
ao fazermos isso, o objeto não é o mesmo quando o vimos pela primeira vez, e
nem nós somos o que éramos quando vimos o objeto pela primeira vez. É o
que o cantor sabiamente afirmou “avesso do avesso do avesso do avesso”. É
isso que faremos na terceira parte para analisarmos a hermenêutica
vigotskiana e para entender o seu sentido de dialética. Por isso, é fundamental
analisarmos a trajetória dos autores modernos sobre a dialética e compreender
a especificidade gnosiológica vigotskiana; é a parte que nos ateremos a seguir.
131
PARTE II: AS AVENTURAS DA DIALÉTICA
O termo “as aventuras da dialética” é uma pro-vocação e um desafio
que nos remete evidentemente ao livro de Maurice Merleau-Ponty com o
mesmo título (MERLEAU-PONTY, 2006). Pro-vocação irônica, isto porque,
além de analisarmos a dialética e suas consequências práticas na segunda
metade do século XX, há uma necessidade de localização deste debate na
história da filosofia e seus reflexos na psicologia. Por outro lado, é desafiador
porque nos remete a analisar também a coerência ou não do materialismo
dialético na história – especialmente quanto ao sonho de construir uma nova
sociedade e um novo ser humano que rompa com as amarras do modo de
produção capitalista e com a ideologia burguesa. O título do livro que aqui
repetimos tem por objetivo recuperar esse debate, por vezes até esquecido,
que tem muitas facetas e muitos meandros divergentes, mais divergentes do
que convergentes. Discorreremos sobre a dialética na modernidade e
desembocaremos na “analética” latino-americana da Filosofia da Libertação de
Enrique Dussel.
É muito comum ouvir de defensores da Psicologia Socio-Histórica a
referência basilar ao materialismo histórico dialético. Mas o que é o
materialismo histórico dialético? A síntese está exposta no próprio nome desta
gnosiologia e para tal é necessário destrinchar seu significado separadamente:
“materialismo”, “história” e “dialética”. E se fôssemos comparar com o
idealismo? Esse campo de estudos torna-se muito amplo, mas sem o qual é
impossível conhecer a teoria vigotskiana. Não temos como simplesmente
menosprezar ou desconsiderar essa base. Para enfrentar esta questão ampla
partimos dos autores que Vigotski constantemente cita em seus escritos e
confrontaremos com a concepção dialética do próprio Vigotski. Os autores que
Vigotski cita são aqueles que tradicionalmente a filosofia marxista cita e se
defronta: Kant, Hegel, Marx & Engels e Lênin. Contudo, para uma análise mais
contemporânea também trouxemos para o debate os filósofos da segunda
metade de século XX que receberam a filosofia marxista como um desafio
prático transformador.
Evidentemente que fazemos escolhas já orientadas por alguns autores
referenciais que estudaram ou que tiveram a dialética como objeto de análise
132
(DUSSEL, 1986; KOSIK, 2011; LEFEBVRE, 1970; LLANOS,1988; MARCUSE,
1969; FERNANDES, 2012; PIETTRE, 1963; POLITZER, 2007). Estes autores,
além de auxiliarem no esclarecimento e divulgação das concepções com
fundamento na dialética e no materialismo, também trazem os desafios desta
concepção para os dias de hoje. Na América Latina, tivemos vários autores que
debateram esta temática junto com os movimentos sociais e que resultaram na
consolidação da filosofia, da teologia e da psicologia da libertação, bem como
da educação libertadora. A dialética ganha evidência quando ela fundamenta
teorias sociais e isto de fato surge com muita força a partir da filosofia
hegeliana (MARCUSE, 1969), ou seja, a disputa entre conservação e
transformação é mediada pela história.
Evidenciaremos como esteve Vigotski arraigado ao materialismo
histórico dialético e como a pesquisa fundamentou a sua teoria. Analisaremos a
história gnosiológica vigotskiana no período mais produtivo da vida do autor,
que se vincula aos momentos mais marcantes da história da civilização.
Vigotski não deixou de enfrentar as acirradas disputas de sua época, que se
polarizavam entre o idealismo e o materialismo. Tanto uma gnosiologia quanto
a outra assumem características diferentes em contextos diferentes. Mais
importante é o impacto na psicologia que deveria rapidamente fundamentar-se
e mostrar sua importância num ambiente cada vez mais propenso a
permanecer no âmbito da psicologia objetivista e a desaparecer. De fato, foi o
que ocorreu na URSS após a década de 1930, e colocou em suspenso o
debate em torno da relação indivíduo e sociedade, e, principalmente, a relação
entre o serviço do negativo (movimento imprescindível para a crítica do modo
de produção capitalista com sua ideologia burguesa) e o serviço, se assim
podemos afirmar, do positivo (movimento que se sintetiza como superação do
que deveria ter sido ultrapassado, mas sem deixar de reconhecer que
intrinsicamente esteve num determinado momento histórico carregado do
serviço do negativo).
Para que possamos nos referir ao materialismo histórico dialético que
Vigotski tanto apregoa como sendo sua referência teórica principal, poderíamos
partir imediatamente para as obras de Lênin, seu contemporâneo. Lênin foi um
estudioso cuidadoso das obras de Hegel, Marx e Engels. Vigotski, quando traz
133
as questões filosóficas, se ampara nesses autores. Raríssimas vezes
encontramos citações bibliográficas que não sejam desses autores. Na década
de 1930 é muito mais comum e mais intenso. De um lado, Lênin aparece como
uma autoridade que deve ser evocada; mas, por outro lado, identifica-se com
um propósito de uma época e é fiel às implicações de reestruturação
necessárias para superação do modo de produção capitalista. Todas as áreas
científicas deveriam estar a serviço da reestruturação política, econômica e
cultural da URSS. A dialética tem o seu caráter crítico inerente, mas que pode
facilmente cair também no campo da especulação. Neste tempo de Lênin, a
dialética assume um caráter muito mais contundente, isto porque deveria
necessariamente trazer um impacto real de mudança. A população deveria
perceber que as reestruturações estavam sendo realizadas para transformar
radicalmente suas condições de vida. Para entender Lênin temos que voltar a
Marx, mas sem Hegel é quase impossível, e, se retornamos a Hegel, temos
que situar as suas disputas com Kant. E, se Kant é um referencial de estudo
para entender Hegel, temos que analisar como a dialética foi considerada no
período clássico. Estes autores são referências constantes nos textos de
Vigotski e, por esta razão, temos que investigar como são analisados e citados
e que importância assumem na hermenêutica vigotskiana.
Essa tese não está no campo exclusivo da filosofia, mas sem ela nossa
análise fica incompleta. Essa tese está no campo da psicologia social que
permite transitar entre a filosofia e a sociologia porque se atém especialmente
à dialética do singular-particular-geral, que foi, desde a filosofia clássica, um
desafio: o geral existe de forma autônoma e independente do singular ou é o
singular que possui existência real? Vigotski defendeu a criação de uma
psicologia social que ele denominou de “psicologia dialética”, e que essa tarefa
exigia das diversas correntes fazer um esforço para fundamentar o que
também ele constantemente cita no Significado Histórico da Crise da Psicologia
(1927): uma psicologia geral. Essa tarefa não deveria reduzir-se a uma escola,
mas um esforço conjunto que definisse parâmetros referenciais que
legitimassem a psicologia como ciência. Nos dias de hoje, com o debate sobre
a diversidade e o pluralismo, soa até estranho esse apelo. Primeiro, porque se
compreende que a diversidade enriquece e não diminui a qualidade de uma
134
ciência; segundo, é questionado o endeusamento da ciência que domina a
natureza e não mede as consequências de suas intenções. São questões que
levantam muitos debates na atualidade. Se simplesmente relevarmos este
debate correremos o risco de vulgarizar a ciência; se abandonarmos os
preceitos da razão, também correremos o risco de adotarmos o irracionalismo
como premissa estruturante. No final da vida, Vigotski pôde ver os rumos da
psicologia única na Alemanha Nazista. A preocupação de Vigotski na Rússia
soviética, no meio das disputas entre a psicologia objetivista e subjetivista, era
encontrar uma centralidade coerente de uma psicologia dialética que
considerasse a práxis revolucionária e a sociedade em transformação. Em
1930, a Rússia continuava com índices de analfabetismo considerados
inadmissíveis para uma revolução socialista, que deveria universalizar o
acesso e preparar a massa proletária a tomar o lugar do senhor.
Nossa investigação sobre o sentido da dialética em Vigotski, torna
imprescindível fazer o caminho que parte dos referenciais clássicos para
chegar em Kant, que é ainda um filósofo que demarca o que é possível
conhecer, até chegar na polêmica entre idealismo e materialismo.
Na atualidade, podemos acessar diversas obras ou fragmentos
originais de pensadores clássicos da Grécia Antiga. Ao nos depararmos com
as obras, por exemplo, de Platão (427-347) – majoritariamente em forma de
diálogos – percebemos o estilo e o valor que se dá ao falar bem. Para falar
bem é preciso um método capaz de auxiliar na elaboração do discurso, mas
muito mais do que isto, é importantíssimo na cultura política grega sustentar
um diálogo (argumentos) diante de outras pessoas. Da raiz da palavra
“dialogar” nasce a expressão dialética. O diálogo tem uma forma e um logos; o
“expressar bem” é fundamental na cultura grega – da palavra logos surgirá a
expressão “lógica” – o “expressar bem” deve ter um sentido real que seja útil
para a cidade – polis.
Aristóteles (384 – 322) é conhecido como aquele filósofo que criou a
“lógica formal” em razão de que tudo tem um conteúdo e uma forma, tudo tem
uma matéria e uma essência (forma). Este é um aspecto da protodialética. Há
outra, tão importante quanto, que é o estudo do ser, e o ser está em movimento
e repouso na visão aristotélica. Alguma coisa é porque está em movimento e
135
também chega ao repouso. Da negação ao repouso surge o movimento. Há um
princípio da negação do ser que o faz ser o que é. Aristóteles inferiu que a
substância é matéria e forma. Matéria é potência e a forma é ato – não é
possível separar uma dimensão da outra –, a potência é em ato. A potência
está na matéria e o ato está na forma. Este é o aspecto central da ontologia
aristotélica na versão de que a substância é potência em ato (matéria em
forma). Aristóteles foi a síntese entre Heráclito (535-475) e Parmênides (530-
460). Para Heráclito tudo era devir (ou vir-a-ser) e para Parmênides o devir era
completa ilusão. Nós sustentamos que é necessário assimilar a ontologia e a
lógica aristotélica para compreender a dialética hegeliana e, por consequência,
a dialética marxiana.
Nós concordamos com a tese de Herbert Marcuse de que a teoria
social foi uma nova perspectiva trazida pela filosofia de Hegel (MARCUSE,
1969). Ao considerar a natureza humana e sua história como a realização do
espírito absoluto, o idealismo hegeliano não desconsiderou o real, mas foi
assimilado na sua dialética. A alegoria mais forte que Hegel usou para explicar
sua filosofia é a relação entre o senhor e o escravo, que ele descreveu na
Fenomenologia do Espírito. A relação de dominação só fora antes
explicitamente tratada antes por J. J. Rousseau (1712-1778), influenciando
muito os debates na Revolução Francesa. O idealismo hegeliano não pode ser
desvinculado da Revolução Francesa e toda a teoria do estado como a síntese
e encarnação do Espírito Absoluto.
Nessa parte, envolvemos mais dois pensadores. O primeiro é Ludwig
Feuerbach, aluno de Hegel em Berlim, que com sua análise dialética cria o
inverso do idealismo hegeliano – no lugar do Espírito Absoluto, o ser humano,
real e concreto. O ser humano se aliena projetando tudo o que tem de melhor
para um ser que está fora da realidade, contituindo-se um ser impotente e
miserável, submisso e alheio à realidade. O segundo pensador, Karl Marx,
assimila tanto a dialética de Feuerbach como a de Hegel. Não negará
completamente os dois. Contra Feuerbach dirá que este não considera a noção
de trabalho como acertadamente Hegel havia abordado e que ficou tão bem
expressa na relação alegórica entre o senhor e o escravo. Contra Hegel
utilizará a crítica de Feuerbach, que não considerou o mundo dos seres
136
humanos como concreto e real, o que lhe valeu a caricatura que se tornou
conhecida e repetida: a de um pensador que está analisando a realidade de
cabeça para baixo. O que é determinante em Marx é a defesa de que a
realidade pode ser compreendida e transformada. O mundo não precisa mais
de interpretações especulativas que se reduzem ao mundo das ideias, mas
precisa ser transformado. Nas análises sociológicas de Marx, deparamo-nos
com sua crítica contra a sociedade burguesa e o modo de produção capitalista.
O capitalismo foi instituído por uma nova classe social que teve ascensão
concomitante com a Revolução Industrial. A revolução burguesa forjou a
revolução industrial destruindo os resquícios da sociedade feudal na Europa, e,
enquanto forjou esta destruição, a crítica burguesa foi implacável contra a
sociedade e a estrutura feudal. No momento em que conquistou o seu lugar
predominante e hegemônico, a crítica desapareceu. MARX percebe este
movimento da burguesia e, a partir desta crítica, sustenta, junto com ENGELS,
sua teoria revolucionária destacando que a transformação social deveria ser
assumida por um novo sujeito político: a classe proletária (MARX & ENGELS,
2009)
Para instituir uma nova sociedade deveria se pensar também num novo
ser humano – um ser humano dentro de uma sociedade que não havia
referência histórica em que pudesse se basear. Qual a estrutura política mais
adequada para o socialismo? Inicialmente, a estrutura produtiva deveria ser
semelhante à capitalista? Haveria moeda? Os agricultores dentro da estrutura
coletivizada produziriam excedentes? E a estrutura jurídica? Como
implementar políticas sociais? E a educação? Todos deveriam ser
alfabetizados? Todos deveriam ir à escola? Todos deveriam trabalhar? A partir
de qual idade deve-se começar a trabalhar? Quantas horas se deve trabalhar
por dia? E a arte? Quais deveriam ser as teorias? As metodologias? Qual
deveria ser o princípio da produção artística? Enfim, não havia uma só questão
que não fosse desafiadora para ser implementada na nova sociedade. É no
campo da práxis que a dialética ganha sua notoriedade e seu estatuto.
Quando a dialética perde sua condição na práxis transforma-se em
dialética mecanicista (ou vulgar), que reivindica o status do cientificismo das
137
ciências naturais e perde o princípio da negação tão requerido e tão caro nas
análises marxianas.
O socialismo soviético significa a melhor resposta que a civilização deu
para a transformação da sociedade capitalista? Esta era e continua sendo uma
questão muito discutida em função do retraimento da URSS e o papel que
exercia no movimento socialista internacional. Depois da Primeira Guerra
Mundial a Europa ainda estava sob impacto da guerra e havia a preocupação
com as outras que poderiam surgir. A Europa continuou sendo palco de
tensões depois da Segunda Guerra Mundial. A disputa armamentista tornou-se
muito acirrada e instaurava-se, assim, a chamada guerra fria, entre um lado
liderado pelos Estados Unidos e outro lado liderado pela Rússia Soviética. O
filósofo Walter Benjamin, que morreu fugindo da guerra em 1940, utiliza uma
imagem metafórica de um anjo que está de costas para o futuro e vendo a
poeira que se ergue do passado contra o presente (a obra de Angelus Novus,
de Paul Klee). A visão é estarrecedora, mas, ao mesmo tempo, há de ter uma
solução para enfrentar esse passado. No passado está a redenção – como que
esperando que a história não seja mais contada por aqueles que venceram. A
crítica de Walter Benjamin é violenta também contra o marxismo vulgar, o
marxismo do progresso, o marxismo da ciência, o marxismo que só enxerga o
futuro como algo determinado a acontecer. O que os diferencia da política que
combatem? Walter Benjamin não vê no socialismo soviético a alternativa para
a humanidade como muitos veem. György Lukacs (1885-1971) tem uma
perspectiva diferente. Em 1921 escrevera História e Consciência de Classe que
critica o materialismo vulgar da social democracia alemã. Lukács condena o
materialismo vulgar pela falta de compreensão da dialética na história
(LUKÁCS, 2010; 2015). Mas nós temos quatro outros autores que são críticos
da dialética marxista e que depois da Segunda Guerra Mundial tornam-se
referência: Herbert Marcuse (1898-1979), Merleau-Ponty (1908-1961), Jean
Paul Sartre (1905-1980) e Karl Popper (1902-1994). Marcuse é um crítico do
sistema capitalista bem ao modo da escola de Frankfurt, mas diferente quando
reivindica a participação na política. Enquanto a escola de Frankfurt se
resguardava numa visão pessimista (coordenada por Adorno & Horkheimer)
demarcando a racionalidade instrumental e o triunfo do positivismo, haveria
138
pouco a se esperar ou pelo quê lutar (HORKHEIMER, 2007). Sartre será a
figura inicialmente mais ortodoxa do que os próprios marxistas do Partido
Francês. Escreveu A crítica da Dialética (1960), que ora critica o imobilismo da
esquerda, ora critica seus traços conservadores. Merleau-Ponty vem para
confrontar a visão sartreana da dialética; em 1955, publicou a obra Les
Aventures de la dialectique, que consiste numa crítica sobre o caminho do
marxismo que havia sido adotado desde a Revolução de Outubro de 1917, na
Rússia, até os dilemas da atuação do Partido Comunista Francês. É uma obra
que marca também o rompimento com o Marxismo (MERLEAU-PONTY, 2006).
E, por fim, figura mais conhecida contra a perspectiva do historicismo e da
dialética, Karl Popper, autor de A Miséria do historicismo (1957), criticando
qualquer ciência que pudesse ter como base a história.
Como dissemos inicialmente, essa não é uma tese sobre filosofia, mas
sobre psicologia social. E como tal podemos ser questionados pelo teor tão
intenso da filosofia permeando este trabalho. Mas, como poderíamos nos
abster da dialética e das concepções materialistas histórico-dialéticas sem
recorrer à filosofia? Vigotski jamais se absteve. Não considerou a filosofia como
um fim em si, pelo contrário, o estudo sobre filosofia o tornou mais atento às
diferentes concepções. Em razão de não fugir a esse desafio, se posicionou e
sistematizou tantos textos.
Vigotski conviveu com vários pesquisadores cujo principal objetivo era
encontrar a síntese entre a teoria e a prática. Quando inicia o Significado
Histórico da Crise da Psicologia apresenta uma frase que tem muito sentido
para justamente opor-se às teorias especulativas fortemente reforçadas pela
filosofia burguesa: “a pedra que foi rechaçada será aquela que será usada
como pedra fundamental”. Ou seja, a práxis sempre havia sido rechaçada para
reinar a filosofia especulativa de perspectiva finalista. Podemos notar que
Vigotski faz aqui um papel de intermediação diante de tantos profissionais que
se perguntam, talvez até com medo, acerca do que poderia ser realizado,
daquele momento em diante, de restruturação política e educacional. O que
seria o certo? Partir do real e das questões que precisam ser resolvidas e que
tenham sentido na vida real. Os escritos de Vigotski nascem de uma realidade
bem concreta, de uma questão cotidiana, o que os tornam tão válidos,
139
inclusive, para os dias de hoje. Notamos que Vigotski não se voltou tanto para
o campo das ciências sociais, mas para a antropologia social. Podemos
encontrar contrariedades para esta afirmação, mas são poucos textos
referenciais, exceto “a transformação socialista do Homem” (VIGOTSKI, 2004)
que aborda indiretamente as questões sociais de forma mais ampla.
Encontramos algumas passagens quando Vigotski se aventura para o campo
da antropologia, uma perspectiva eurocêntrica, e, por essa razão, as
expedições e pesquisas na Ásia Central foram tão criticadas pelo poder central
(muitas vezes, percebemos que os biógrafos silenciam sobre isso no lugar de
fazer a crítica, mesmo de uma posição que não combinava com as concepções
socialistas). Contudo, Vigotski não considera, ao mencionar os estudos sobre
os sistemas psicológicos, haver diferença no aspecto biológico contrariando
muitas correntes da sua época. Assim como Marx e Engels defenderam uma
teoria própria de economia política da classe trabalhadora contra a perspectiva
burguesa, assim Vigotski e outros colegas sentiram-se desafiados a criar uma
própria psicologia que não se basearia na concepção especulativa; é por essa
razão que a psicologia de base materialista histórico-dialética passou a ser um
programa de pesquisa para sustentar as condições de uma nova sociedade.
O processo que a Rússia viveu de dissolução de uma sociedade
burguesa e a criação de uma sociedade que deveria se estruturar sem classes
e com a propriedade privada abolida exigiam uma prática social e política que
respondesse qualitativa e quantitativamente com resultados de transformação
social. O fato de Vigotski apenas ter enfrentado o início da dissolução de uma
concepção que ficou marcada na década de 1920, na URSS, constitui-se a
dificuldade de viabilizar uma concepção transformadora. Misturaram-se
interesses voltados para o partido e para a burocracia para assegurar o que até
aquele momento havia sido conquistado. Vigotski apreendeu uma forma de
fazer pesquisa que foi também a marca de Marx, Engels e Lênin, porque havia
de se transformar a psicologia num tipo de pesquisa histórica revolucionária,
em sua forma e conteúdo. Em sua forma porque se refere ao real e no
conteúdo porque o desvelamento do real traz um novo conceito, uma nova
palavra que se diferencia do que existia até então. Portando, Vigotski não se
constitui apenas como um pensador divergente, mas estabelece um padrão de
140
trabalho científico que aprofunda cada vez mais o significado de suas
descobertas teóricas na psicologia. Entender o Significado Histórico da Crise
da Psicologia consistia não mais voltar-se ao combate à teoria burguesa, esta
estava dominada, talvez não vencida, mas dominada até então. Criar uma
teoria psicológica era o desafio emergente para compreender a condição real
na qual vivem as crianças em situação difícil, jovens no período de transição,
pessoas portadoras de dificuldades físicas e intelectuais, etc. A pesquisa
vigotskiana é interessada porque não exclui o sujeito-pesquisador do âmbito da
história. Eliminou-se, de um golpe, a condição histórica como um aspecto
estático, ou seja, é o rompimento radical com a perspectiva de uma história que
se consagra no passado como um conjunto de documentos reunidos. A
pesquisa vigotskiana quer compreender o significado histórico da psicologia e
suplantar as concepções predominantes, de um lado o empirismo, e, de outro
lado as concepções teóricas ou especulativas (mentalistas, na linguagem da
psicologia). Suplantar a dicotomia entre o objetivo e o subjetivo. Vigotski
projetou a pesquisa histórica sobre a formação do desenvolvimento das
funções psicológicas superiores partindo do presente, analisando o
comportamento de crianças e adolescentes na realidade em si. A história é
processo, mas, no campo da pesquisa, seria mais correto afirmarmos que a
história é o presente em processo. Importante destacar que a história é por um
lado psicologia, e sociologia por outro, mas esta síntese, até hoje, não foi
inteiramente compreendida e aceita.
Em determinado momento das pesquisas, Vigotski enfatiza a não
necessidade de acumular dados e mais dados, mas sim era necessário
encontrar um método que pudesse compreender o comportamento humano
não cindido na sua objetividade e subjetividade. Vigotski reconhece que O
Capital de Karl Marx (e Friedrich Engels) contém a chave da interpretação
histórica da civilização industrial moderna, do modo de produção capitalista e
da condição necessária para superar o estado de alienação. Era justamente
este o grande desafio posto à psicologia e somente no final de sua vida
encontrou algumas respostas para tantas perguntas, para se criar uma
referência para a psicologia. Com frequência, Vigotski dizia que tal como a
economia encontrou a mercadoria como unidade explicativa do modo de
141
produção capitalista, assim também a psicologia deveria encontrar esta chave.
Chave é a palavra constante de Vigotski, como sempre, em busca de uma
unidade de análise capaz de desvelar a realidade (ou o concreto).
Semelhantemente ao que foi proposto por Marx, ou seja, ater-se sobre
os fatos, análise causal e os efeitos históricos interdependentes analisando a
dinâmica de um determinado objeto em estudo. Esta contribuição de Marx
favoreceu o estudo sobre a dinâmica das civilizações principalmente nos
momentos de mudança dos modos de produção. Vigotski também observou
essa dinâmica e, por esta razão, compreendeu isso não no aspecto
sociológico, mas psicológico. Para compreender o comportamento humano
dentro de uma totalidade dever-se-ia considerar uma fórmula: experiência
histórica, a experiência social e a experiência duplicada (VIGOTSKI, 2004, p
66). A experiência histórica “baseia-se na utilização muito ampla da experiência
das gerações anteriores, ou seja, de uma experiência que não se transmite de
pais para filhos através do nascimento”; a experiência social é constituída com
outras pessoas, na relação com outras pessoas que se fecham na experiência
particular; e a experiência duplicada, exemplificada como “movimento das
mãos e nas modificações do material, o trabalho repete o que antes havia sido
realizado na mente do trabalhador, como modelo semelhante a esses mesmos
movimentos e a esse mesmo material” (Ibidem, p. 65). Para essa experiência
duplicada, Vigotski se ampara na citação conhecida de Marx, na qual ele afirma
que antes “de um operário executar a construção, projeta-a em seu cérebro”. É
diferente da abelha que não consegue “um resultado que já tinha existência
ideal”; é típica e exclusiva no ser humano. Como já é tão presente nos textos e
ensaios de Vigotski, utilizando-se do potencial da crítica marxista que carrega
inerentemente a explicitação de uma crítica à civilização moderna em geral, e à
sociedade capitalista em particular, seria completamente equivocado, ao mudar
o modo de produção capitalista, adotar a contraposição do que fora superado.
Contudo, esta é uma questão justamente que envolve o debate sobre a
concepção materialista histórico-dialética na segunda metade do século XX: o
desaparecimento da negação da negação, ou seja, o desaparecimento do
papel da negatividade. Sem a negatividade não há o serviço da dialética. O
materialismo histórico dialético estaria condenado a assemelhar-se ao que
142
condenava a um modelo involutivo. Por outro lado, o materialismo histórico
dialético é a superação do idealismo objetivo (e se falamos de idealismo
objetivo é porque sua antítese é o idealismo subjetivo, que chega à aberração
de colocar em dúvida a própria existência da matéria). No modo de produção
capitalista, para a burguesia se impor enquanto classe revolucionária, teve que
recorrer à crítica enquanto lutava pelo poder e se impunha como uma nova
ordem civilizatória. A burguesia é uma classe, e para fazer a revolução
instrumentalizou-se da crítica, mas quando obteve o poder afastou-se daquilo
que é aparente, a dominação de classe. A ideologia burguesa é chave para
compreender a dominação e a exploração da classe detentora dos meios de
produção e contra ela o movimento dos trabalhadores deve se ater, combater e
destruir. Em um movimento de transformação social, não se espera que os
trabalhadores, como aqueles explorados, no momento de alcançar o poder,
reproduzam o que destruíram. A dialética passa a ser um instrumento para não
permanecer na mesmice. A transformação não nasce da consciência, nasce da
ação revolucionária. Mas é preciso entender que a burguesia apontou um
radicalismo transformador, o humanismo, quando deixou de voltar-se à mística
e se centrou no que é real e o materialismo filosófico foram os aspectos pelos
quais Marx e Engels fundiram com a ciência, a dialética materialista e as
concepções comunistas com base nos movimentos dos operários. Este é o
cerne da questão para nos perguntarmos sobre a hermenêutica vigotskiana. Na
década de 1920, alguns anos depois da Revolução de Outubro, o processo
revolucionário não se detinha apenas a uma revolução ao modelo da Comuna
de Paris (1871), mas exigia a institucionalização de um processo revolucionário
que se transformava numa revolução social. A sociedade inteira foi incumbida e
conclamada para esta nova institucionalização. Uma classe social que se
incumbia de organizar o poder e as instituições tinha muita autonomia. Ela se
estendia aos cientistas sociais, aos artistas, aos educadores e aos
trabalhadores. Seria completamente inadmissível compreender este processo
senão como criativo, essencialmente criativo. A ciência deveria contribuir e
alargar as possibilidades de compreensão da realidade social e humana para
que a consciência histórica fosse uma compreensão real, para a construção de
uma nova sociedade e para um novo ser humano, como também para que a
143
ação coletiva histórica fosse reforçada como coletiva mesmo e não
fragmentada, isolada. A fragmentação e o isolacionismo das forças eram
estratégias da revolução burguesa, era o que consistia na ideologia burguesa
para conceber o engano da impotência humana para qualquer transformação
social. Referimo-nos que “os anos promissores” no campo da pesquisa e
publicações de Vigotski foi o período de 1924 até 1934 como uma condição
somente pessoal deste autor. Este período consiste na ampliação da revolução
social da Rússia Soviética. O apelo ao cientista social era fundamentar o que a
prática social demandava.
Em um dos primeiros manuscritos de Karl Marx, os Manuscritos de
Paris ou os Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), podemos verificar a
importância dada ao estudo empírico sobre a economia. É impressionante que
neste estudo há um domínio de um método histórico e social que compreende
o objeto e sua natureza, “como totalidade histórico-social concreta” contrário ao
método hipotético-dedutivo que “facilitava a construção arbitrária e negligente
de tipos ideais; ignorava as condições reais de manifestações dos fatos,
relações e processos econômicos; excluía os aspectos dinâmicos da órbita da
interpretação causa” (FERNANDES, 2012, p. 39). Ao nos depararmos com os
manuscritos, não podemos perceber ainda uma unidade de análise como
veremos mais adiante com O Capital, mas, a partir do método, podemos
verificar o conjunto de categorias que vão surgindo desta investigação:
trabalho, alienação, objetivação, exteriorização, generidade, totalidade,
aparência, essência etc. Marx analisa as contradições quando o trabalhador
cria o produto e este toma o seu lugar (reificação) e o trabalho como exterior ao
trabalhador não lhe pertence (alienação). Mais do que isto, o trabalhador perde
a noção em dupla direção: a noção de si mesmo e a noção de generidade. A
psicologia aqui tem um papel fundamental porque estuda o comportamento
humano e, como tal, a análise crítica que Marx faz coloca as questões centrais
do cotidiano, o que hoje distinguimos com maior clareza ser a relação entre o
trabalho concreto e trabalho abstrato. O trabalho como uma condição social
preponderante na relação entre o ser humano e a natureza e para a
constituição do psiquismo humano. A premissa do trabalho abstrato é
escamotear a contradição e o valor do trabalho concreto para romper com as
144
contradições do modo de produção capitalista. Para desvelar esta realidade é
necessário um método. Contudo, “o movimento dialético do pensamento
corresponde ao movimento dialético da realidade”, mas isso não significa que o
primeiro é uma fotografia do segundo. Se fosse meramente um processo
passivo não se obteria na investigação as categorias que “são elaboradas
dialeticamente” e que “retêm as contradições em seu processo de
manifestação real e de desenvolvimento histórico” (Ibidem, p. 27).
Diferentemente de Feuerbach, Marx emprega uma nova modalidade de
aplicação da dialética na investigação empírica e na explicação do homem e da
sociedade, em seu movimento de vir-a-ser histórico (Ibidem, p. 37).
A concepção de Vigotski é dialética, mas também materialista histórico-
dialética por considerar a psicologia como uma ciência histórica. Contudo,
consideramos que a concepção ontológica e epistemológica de Vigotski se
fundamenta numa época e, ao analisarmos as concepções deixadas por Lênin,
Vigotski assimilou essa época, viveu essa época com todos os desafios que a
práxis estabelecia no momento revolucionário; é mais acertado afirmar que sua
gnosiologia se fundamenta e se estrutura, mesmo com todo o fundamento de
base marxista-engeliana, em Lênin, portanto, ela é leninista. Quando Lênin
destaca três eixos gnosiológicas: 1) “as coisas existem independentemente da
nossa consciência”; 2) “não há nem pode haver absolutamente nenhuma
diferença de princípio entre o fenômeno e a coisa em si”; 3) “na teoria do
conhecimento, como em todos os outros domínios da ciência deve-se
raciocinar dialeticamente, isto é, não supor o nosso conhecimento acabado e
imutável, mas analisar de que modo da ignorância nasce o conhecimento”
(LÊNIN, 1982, p. 77). Por isso, não basta afirmar que a base gnosiológica é
materialista histórico-dialética tomando como referência a teoria marxista; há
de se destacar que é fruto de uma época que não conseguiu
hegemonicamente se manter. Ela foi vencida por um marxismo que renunciava
com frequência a mediação. Ao analisarmos Feuerbach e sua defesa da
natureza como primeira, e a ideia como segundo, e daí deduzia a lógica da
natureza, compreendemos a contrariedade de Marx, que não considerava esta
perspectiva tão simples assim. Não deduzimos a lógica da natureza, mas sim
das formas históricas da confrontação com ela. Notemos que o momento
145
mediador não foi tão valorizado por Feuerbach, que não considerou
devidamente o trabalho social. Quando a sociedade socialista soviética
começou a dar os primeiros passos para a burocratização (isso foi no início de
de1930) não suportaria a concepção Leninista de Vigotski. A renúncia da
mediação foi determinante em todas as dimensões da ciência. A fórmula que
consta na Ideologia Alemã de que o ser determina a consciência e não o
inverso tornou-se, predominantemente, neste contexto, apenas um cálculo. O
ser pode ser traído pela consciência para que a natureza e a razão apareçam
natural. De maneira parecida, isso vale também para o conceito de
objetividade. O conhecimento é forjado do puro jogo de conceitos pelo fato de
que se suplanta, de novo, na sua relação necessária com a atividade da
espécie. Alcança uma dimensão real, prática. Se dissolve a relação dualista de
pensamento e ser, consciência e natureza. O conceito de trabalho suplanta o
conceito que trabalha. Essa crítica que virá com toda força depois da Segunda
Guerra Mundial não foi vivenciada por Vigotski.
Vigotski desenvolveu uma nova psicologia humana a partir da crítica da
visão kantiana e marxista. A primeira separou o sujeito do objeto e a segunda
tendia para permanecer numa perspectiva objetivista. NEWMAN & HOLZMAN
fazem um apontamento muito significativo sobre o caráter da psicologia
vigotskiana:
“Com Vigotski, tal como Marx, é extremamente tentador tomar as descobertas substantivas como o mais importante, já que elas são pragmaticamente úteis e avassaladoras. Mas fazer isso, acreditamos, é minimizar e, de fato, distorcer a contribuição de Vigotski (e de Marx). Por mais rico que seja o conteúdo de suas descobertas, o valor de seu trabalho reside em seu método – em que os resultados do método e o método mesmo são inseparáveis. Sendo assim, ficar claro que para se beneficiar plenamente do trabalho de Vigotski, os psicólogos contemporâneos teriam de continuar uma tradição cientificamente revolucionária. Em outras palavras, simplesmente aplicar Vigotski não é vigotskiano” (NEWMAN & HOLZMAN, 2002, p. 29)
Concordamos que a perspectiva de Vigotski quanto ao
desenvolvimento é dinâmica e não estática, mas não se resume a uma questão
tão somente metodológica, há fundamentalmente uma gnosiologia que o
sustenta para procurar um método ou definir as diretrizes metodológicas.
146
Capítulo 7: Dialética Transcendental
Se Kant denomina a sua dialética de transcendental e a justifica como
uma síntese entre a ontologia e a epistemologia é porque faz uma oposição à
dialética imanente. Veremos neste capítulo como se fundamenta esta dialética
e como Vigotski não concorda com a existência de categorias do pensamento e
a mente como uma fonte de juízos de tipos e naturezas.
O método desenvolvido pelos filósofos antigos para compreender e
apreender as consequências das hipóteses contrárias entre si (tomando
especialmente como referência os Tópicos e a Metafísica de Aristóteles) foi
revista no século XVIII por Kant. Na sua Crítica da Razão Pura (1770), declara
que se pode reconhecer que “a lógica, desde remotos tempos, seguiu a via
segura, pelo fato de, desde Aristóteles43, não ter dado um passo atrás” (KANT,
1989, p.15 B VIII). A lógica é apenas uma ciência que “expõe minuciosamente
e demonstra rigorosamente as regras formais de todo o pensamento” (Ibidem,
p. 16 B X), é uma formalidade que não pode ser descartada, mas ao ser
utilizada como única referência, sua tendência é permanecer “somente em si” e
não “tratar dos objetos”. Conclui-se então que a lógica é uma “antecâmara das
ciências” porque não chega aos objetos. Pode-se chegar ao objeto de duas
maneiras: “ou pela simples determinação do objeto e de seu conceito ou então
realizando-o” (Ibidem, 16, p. 16, B IX). O primeiro refere-se ao “conhecimento
teórico” e o segundo ao “conhecimento prático” da razão. É preciso, porém,
identificar neste momento o que é o conhecimento puro ou a razão pura que
leva o nome de sua principal obra. No conhecimento precisamos identificar “a
parte pura”, isto é, “aquela em que a razão determina totalmente a priori o seu
objeto” sem qualquer influência de outras fontes. Para Kant “a matemática e a
física são os dois conhecimentos teóricos da razão que devem determinar a
43
No mundo antigo, o paradigma da verdade é a natureza. Desde os pré-socráticos – compreendiam a natureza para
investigar o modelo da política. Não pela questão científica da natureza. Aristóteles dizia que a metafísica é ciência
primeira porque trata do ser ou das questões essenciais do ser humano. O ser é a questão de maior abstração. Tal
lógica é rica em extensão, mas pobre em compreensão. No século XVII, especialmente os empiristas tiram a natureza
como finalidade e desorganizam tudo. Não é mais a natureza, mas o eu cognoscente, epistêmico que começa a ser a
medida das coisas. É clareza e distinção como critério. O que faz Kant é diferente. Ele colocou o homem regulando o
objeto.
147
priori o seu objeto, a primeira de uma maneira totalmente pura e a segunda,
pelo menos, parcialmente pura” (Ibidem, p. 16-17, BXI).
Kant faz uma mudança radical na filosofia ao tornar a razão
independente e faz isso elevando-a como uma ciência.
“(...) a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios que determinam os seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e de que necessita” (Ibidem, 18, B13).
A compreensão deste caminho fez com que a Física entrasse no
campo da ciência no século XVI, mas a metafísica, a mais antiga das ciências,
“está longe de alcançar” um caminho seguro e, até então, “o seu método tem
sido um mero tateio e, o que é pior, um tateio apenas entre simples conceitos”
(Ibidem, p. 19 B XV). Então, traz um referencial determinante que altera
totalmente o status quo do conhecimento:
“Até hoje admitia-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça algo sobre eles antes de nos serem dados” (Ibidem, p. 19-20, XV - XVII).
Poderíamos entender que a Crítica da Razão Pura tivesse utilidade
apenas negativa, ou seja, apenas para delimitar a razão a não “ultrapassar os
limites da experiência”. De fato, ela é negativa num primeiro instante, mas ao
delimitar negativamente há a possibilidade de ultrapassar justamente os limites,
e, em síntese, sua razão é positiva, pois ao demonstrar sua limitação,
estabelece as prerrogativas para sua ampliação.
Kant pergunta: “de onde vem nosso conhecimento?” O nosso
conhecimento é proveniente de duas fontes das quais, a primeira, consiste na
recepção dos objetos, e a segunda é poder conhecer estes objetos
recepcionados. Na primeira, o objeto nos é dado; pela segunda o objeto é
148
pensado. Da primeira surge a intuição e, na segunda, precisamos de conceitos
que constituem elementos fundamentais do conhecimento. Não pode haver
conhecimento sem conceitos. Melhor dizendo, não é possível o conhecimento
se constituir sem conceitos e sem intuição, uma vez que não há conceito sem
correspondência à intuição e nem intuição sem conceito. Esses elementos
podem, de um lado, serem “empíricos”, e, por outro lado, serem “puros”.
Empírico quando a sensação está num dos elementos; puros quando nenhuma
sensação está na representação do objeto. “A sensação pode-se chamar
matéria do conhecimento sensível” (Ibidem, p. B 51 – 57). Então, o que é uma
intuição pura e um conceito puro? A intuição pura é a forma pura do que foi
intuído; o conceito puro é a forma do pensamento de um objeto. “Apenas as
intuições ou conceitos puros são possíveis a priori, os empíricos só a posteriori”
(Ibidem, p. 78 B 75 A 51).
Para deixar claro que no espírito recebe-se a representação dos
objetos, portanto, como é afetado no espírito trata-se da sensibilidade. É a
sensação, matéria do sensível; por outro lado, o entendimento é a capacidade
de “produzir representações”. A sensibilidade recebe representações, o
entendimento produz representações. A este último poder-se-ia ainda
acrescentar a produção da representação sensível. A intuição sempre será
sensível e o entendimento sempre será a capacidade de pensar. Sem intuição
não temos objeto e sem a capacidade de pensar nenhum objeto seria pensado.
E Kant faz uma distinção que refletirá na criação da gnosiologia tendo esta
condição que, de um lado, tem-se a estética que trata das “regras da
sensibilidade”; de outro lado, temos a lógica, referente às “regras do
entendimento”.
A lógica pode ser também distinguida em duas perspectivas: geral e
particular. A lógica de uso geral consiste nas regras do pensamento para
compreender a diversidade de objetos; a particular consiste nas regras do
pensamento para compreender determinadas espécies de objetos. Dentro da
lógica geral, Kant também distingue duas: lógica pura e lógica aplicada. A
lógica pura abstrai-se “de todas as condições empíricas” e “ocupa-se de
princípios puros a priori” (Ibidem, p. 90 A 53). A lógica aplicada refere-se às
“regras do uso do entendimento nas condições empíricas subjetivas que a
149
psicologia nos ensina” (Ibidem, p 90 A 53). A lógica geral pura pode se
constituir numa ciência na vida de Kant, que se atém à “simples forma do
pensamento” (Ibidem, p. 90 A 53) e não tem referência “nos princípios
empíricos e nem deve buscar referência na psicologia”. A lógica geral “é uma
doutrina demonstrada e tudo nela tem de ser certo inteiramente a priori”
(Ibidem, p. 91 A 54). A lógica geral não se atém ao objeto, porque “considera
apenas a forma lógica na relação dos conhecimentos entre si” (Ibidem, p. 91 B
80 A 56) e a lógica transcendental atém-se somente ao conhecimento que
“certas representações” são possíveis a priori. As representações aqui tais
como intuições ou conceitos.
Kant sugere mais uma distinção. A lógica geral que se ocupa do
“trabalho formal do entendimento e da razão e apresenta-os como princípios de
todos à apreciação lógica do nosso conhecimento” denomina “lógica analítica”
(Ibidem, p. 94 B 85). Primeiramente, ela assume um caráter negativo, pois
primeiro precisa avaliar as regras para depois descobrir que “em relação ao
objeto contém uma verdade positiva” (Ibidem, p. 94 B 85). Contudo, há uma
tentação de “dar a todos os conhecimentos a forma do entendimento” segundo
um organon que não passam de afirmações e, mesmo que objetivas, são
ilusórias. Esta Kant denomina de dialética. Esta é uma herança dos gregos (da
filosofia clássica) que consistia como uma arte do bem falar e argumentar, mas
consistia também, insiste Kant, numa “lógica da aparência”, “uma arte sofística
de dar um verniz de verdade à ignorância” (Ibidem, p. 95 B 86). A dialética não
passa de um “oco palavreado”. A dialética “não é de modo algum” condizente
“com a dignidade da filosofia” (Ibidem, p. 95 B 86).
O conhecimento nos é dado pela intuição e sem ele não é possível o
conhecimento. A lógica analítica “é uma lógica da verdade” (Ibidem, p. 96 B
86), porque nenhum conhecimento pode contradizê-lo sem que perca, ao
mesmo tempo, todo o conteúdo, isto é, toda a relação a qualquer objeto, e,
portanto, toda a verdade. A dialética é o uso de entendimento puro sem
critérios; é o uso do entendimento ilimitadamente aos objetos. Contudo, a
lógica transcendental, como segunda parte, deverá ser uma crítica à dialética –
à dialética da aparência dialética. Ou seja, Kant, configura a “Dialética
150
Transcendental” como crítica para “desmascarar a falsa aparência” da dialética
ou das “ilusões sofísticas” (Ibidem, 96 B 86).
Kant confunde dialética com sofística, mas podemos verificar que dá
uma interpretação para a dialética transcendental como uma dialética da
dialética, ou seja, o exercício de sair das aparências. Quando a dialética se
apresenta como lógica da aparência tem o sentido de negar-se a si mesma – é
negativa e não positiva como a dialética sofística. A dialética transcendental é
sua positividade na sua própria negatividade, o que em Hegel, veremos, será
diferente, isto porque será obtida o positivo pela negação.
A dialética transcendental tem a tarefa de descobrir as aparências para
que não caiamos na negação.
“A dialética transcendental deverá, pois, contentar-se com descobrir a
aparência de juízos transcendentes, evitando ao mesmo tempo que essa aparência nos engane; mas nunca alcançará que essa aparência desapareça (como a aparência lógica) e deixe de ser aparência. Pois trata-se de uma ilusão natural e inevitável, assente, aliás, em princípios subjetivos, que apresenta como objetivos, enquanto a dialética lógica, para resolver os paralogismos, apenas tem de descobrir um erro na aplicação dos princípios, ou uma aparência artificial na sua imitação. Há, pois, uma dialética da razão pura natural e inevitável; não me refiro à dialética em que um principiante se enreda por falta de conhecimentos, ou àquela que qualquer sofista engenhosamente imaginou para confundir gente sensata, mas à que está inseparavelmente ligada à razão humana e que, descoberta embora a ilusão, não deixará de lhe apresentar miragens e lançá-la incessantemente em erros momentâneos, que terão de ser constantemente eliminados” (Ibidem, p. 297-298 B 355 A 209).
É marcante que Kant critica a dialética sofística, mas não retira sua
importância como uma possibilidade crítica pela falsa crítica sofística. O que se
pretende saber não tem validade de conhecimento na dialética sofística porque
é vazio. Esta é a crítica de Kant, mas não é possível simplesmente colocá-la de
lado. É preciso colocá-la no caminho correto.
Quando Vigotski faz menção a Kant, verificamos que não a faz
diretamente, ou seja, em todos os momentos busca apoio das análises e
posições de Lênin (VYGOTSKY, 2012b, p. 110; 2014a, p. 61). A característica
destas referências consiste em dois movimentos: primeiro, utiliza as análises
de Lênin que mencionam o caráter superior da filosofia hegeliana comparada
151
com a filosofia kantiana; segundo, não explica com suas próprias palavras, mas
se legitima a partir de Lênin (uma autoridade). A crítica a Kant feita por Lênin
acompanhada pela crítica de Vigotski. As categorias kantianas são colocadas
aprioristicamente, são reificadas e deduzidas. Vigotski cita Lênin; este afirma
que as abstrações científicas refletem a natureza e “el caminho dialéctico del
conocimiento de la verdade, del conocimiento de la realidad objetiva, passa de
la contemplación directa al pensamiento abstracto y de él a la práctica”
(VYGOTSKI, 2012b, p.110). Não se nega a abstração, mas não se permanece
nela. Lênin, por sua vez, ainda traz o sentido da práxis e que não é possível
apartar o concreto do abstrato.
NEWMAN & HOLZMAN (2002) defendem que Piaget, ao tratar das
“origens e o desenvolvimento da inteligência”, baseia-se “nas categorias
sintéticas a priori de Kant”. O reconhecimento de Piaget é justamente o
contrário, ou seja, “que as categorias do conhecimento são construídas” e não
são colocadas aprioristicamente. Contudo, sustentam os autores, Piaget
considera a construção do conhecimento independente do mundo.
A perspectiva kantiana e piagetiana não confere com a de Lênin e a
vigotskiana. As categorias não são colocadas aprioristicamente, mas são
definidas a partir do concreto e isso não significa, repetimos, negar a
abstração. Hegel confrontará a filosofia kantiana e irá defender duas questões:
o concreto não é separado do abstrato e é necessário analisar a condição
dialética, isto significa considerar a história.
Muitas vezes identificamos a concepção piagetiana e vigotskiana ligada
à concepção hegeliana. Mas isso não tem fundamento. Primeiro, destacamos a
relação de Piaget com Kant e sobre a relação da teoria vigotskiana se
aproximar com a hegeliana veremos com mais detalhes no próximo capítulo. É
verdade que tanto Piaget como Vigotski consideram fundamental a interação e
a contradição, mas para esclarecer estas diferenças é necessário entender o
que é contradição e o quanto difere de oposição. Sem dúvida, dialética é a
unidade indissolúvel dos contrários, é o serviço do negativo, como
reiteradamente afirmamos. A contradição de base marxiana não se refere a
superação de dois contrários em uma unidade superior; é antes a inversão da
152
dominância de um sobre outro, até que se alcance a extinção de um e a
emancipação de outro. Nesta perspectiva, não se assemelha com a dialética
hegeliana como uma trajetória circular e eterna. Na perspectiva marxiana há
necessariamente uma condição de transformação que tem história e que está
em aberto.
Piaget utiliza o termo “contradição” como uma ação que será realizada
em contraposição a uma outra ação. Uma impede que a outra se realize.
Contudo, esta é a diferença que queríamos destacar – não é contradição, mas
apenas como oposição. Não há serviço do negativo, mas dois movimentos
distintos e opostos. A dialética piagetiana, portanto, não se baseia no
movimento, mas na oposição entre equilíbrio e desequilíbrio.
No segundo capítulo de Pensamento e Linguagem, O problema da
linguagem e o pensamento da criança na teoria de Piaget (VYGOSTSKI,
2014a) identifica-se que o método piagetiano é clínico (Ibidem, p. 29), acumula
dados e, em comparação com a psicologia tradicional, inova ao considerar o
que J.J. Rousseau já dizia: “a criança não é um adulto em miniatura” e muito
menos “la mente del adulto reducida” (ibidem, p. 30). Piaget se fundamenta
empiricamente e evidencia o caráter do desenvolvimento. Piaget tenta fugir do
dualismo tão característico da psicologia “encerrándose en el estrecho círculo
de los hechos empíricos, aparte de los cuales no quiere saber nada” (Ibidem, p.
31). Vigotski acusa Piaget de “no presta suficiente atención al contexto social”
(Ibidem, p. 76) porque justamente não pretende fazer generalizações.
Quando Vigotski trata do desenvolvimento do psiquismo também
considera a explicação genético causal, tal como é proposto por Piaget, mas
vai mais além; por exemplo, quando trata do desenvolvimento das funções
psicológicas superiores, considera não genético, mas apropriado num processo
histórico e acumulado ou determinado pelas relações sociais entre seres
humanos. Esta contradição do genético é o que na dialética denominamos de
negação da negação. O que se sucede, o que se supera não desaparece, mas
ascende como algo novo.
153
Capítulo 8: Dialética Hegeliana
Como vimos no capítulo sobre os biógrafos de Vigotski, é muito comum
identificar a concepção vigotskiana tendo como fundamento a filosofia
hegeliana, que tem qualitativamente três categorias estruturantes: totalidade,
contradição e a mediação. Estas categorias são também inerentes à
concepção psicológica vigotskiana. Vamos nos ater neste capítulo
especificamente a esse aspecto. Partimos identificando como tese a filosofia
idealista de Hegel, a antítese, a filosofia sensualista de Feuerbach, para
chegarmos à síntese da filosofia marxista. Num processo histórico filosófico,
nega-se a filosofia idealista, mas como superá-la? O estudo da filosofia
hegeliana é imprescindível e são inúmeras alusões que Vigotski faz a este
filósofo nos seus escritos. Nossa tese reconstitui o sentido de dialética de
Vigotski e ao suscitarmos que sua teoria está ou em Hegel ou em Marx é já um
ponto comum o reconhecimento da sua adoção à lógica e ao método dialético.
A filosofia de Georg W. F. Hegel (1770-1831) é considerada por Karl
Marx como a síntese da filosofia burguesa. É esta filosofia que realizou na
modernidade a ambição da totalidade. Se admitirmos que a totalidade é o
maior interesse da filosofia, de fato o sistema de filosofia criado por Hegel teve
um alcance muito maior do que qualquer outra tentativa anterior. A repercussão
de sua filosofia está muito presente até nos dias atuais, especialmente no
campo das teorias sociais (MARCUSE, 1969).
GADAMER (2000) afirma que “a dialética de Hegel é uma fonte
constante de irritação”, porque está entre “a decepção lógica e o entusiasmo
especulativo” (Ibidem, p. 10). Para este autor, há três elementos essenciais na
dialética de Hegel e que resumem muito bem o seu sentido: i) “o pensar em
algo em si mesmo, para si mesmo”; ii) “enquanto tal o pensamento é um
conjunto necessário de determinações contraditórias”; iii) “a unidade das
determinações contraditórias, enquanto estas são superadas em uma unidade,
tem natureza própria por si mesma” (Ibidem, p. 11).
Para Hegel, o que é verdadeiro é idêntico ao seu conceito, tem dupla
função. Primeiro, é apreensão verdadeira do objeto pelo pensamento; e,
segundo, é referente à realização efetiva da existência concreta. Assim, não
154
são meros conceitos (como lógica formal), mas sim modos de ser
compreendidos pelo pensamento. Vamos a um exemplo que é dado por Hegel
na Fenomenologia do Espírito. Se afirmarmos “este homem é um escravo”
evidentemente que o homem será o sujeito e o predicado será que ele é
escravo. Contudo, sendo escravo, continua sendo homem e essencialmente
livre em relação ao predicado. A emissão do juízo não pode ser compreendida
como uma atribuição do predicado a um sujeito imutável, mas dentro de um
processo real. A realidade então aparece como uma realidade dinâmica que só
pode ser compreendida dentro de uma totalidade das relações contraditórias
existentes. Se a realidade existe da forma como é, é em razão de que aquele
estágio alcançou sua existência no modo de verdade. Logo, diferentemente
dos empiristas, a razão não está ligada a um fato ou a um dado, mas sim, a
uma tarefa para efetivamente se realizar. É, no entanto, no processo de
superação da negatividade que o objeto se torna realidade, pois o nascimento
da verdade requer a morte do ser. Para que deixemos isso mais claro
compreendemos que todas as formas são atingidas pelo movimento da razão
que as revoga e altera, até que correspondam aos seus próprios conceitos.
Este movimento da razão correspondidas em conceitos é refletido pelo
pensamento no processo de mediação44 (HEGEL, 2002).
O primeiro título que Hegel dera à sua Fenomenologia do Espírito foi
Ciência experiência da consciência, ressaltando a importância de uma lógica
que oriente “as figuras do sujeito ou da consciência” que estão no mundo
objetivo. Essas figuras têm dois aspectos: primeiro, é histórico porque a
experiência é desenvolvida e reconhecida na cultura como existente e
referendada pela razão; segundo, é dialética, visto que não se trata de história
meramente que relata fatos sequencialmente, mas que congrega
reciprocamente a “certeza do sujeito com a verdade do objeto”. Para superar o
idealismo subjetivo Hegel utiliza a dialética “como movimento da razão que tem
como único interesse suprimir as oposições cristalizadas” (MARCUSE, 1969, p.
79). Contrariamente a este idealismo subjetivo que podemos identificar em
Kant, que trata as oposições isoladamente e são até inconciliáveis, na dialética
hegeliana a reflexão é o instrumento dos opostos, mas eleva-se enquanto
44 Grifo nosso.
155
razão. Aqui, a reflexão toma o seu lugar e passa a ser mediadora das
contradições. No início da Fenomenologia do Espírito, Hegel destaca que sua
obra irá se ater ao “devir do saber”. Sobre este aspecto do devir, Kant não se
atém porque o “sujeito e o fenômeno são rigorosamente anistóricos” (VAZ;
2002, p. 14). A filosofia kantiana tem sua importância pelo caminho percorrido –
o entendimento é a certeza sensível do que é agora. É exatamente neste ponto
que a Fenomenologia do Espírito tem o seu valor de superação, razão pela
qual Hegel sustenta o fenômeno não no objeto, mas no saber mesmo do
sujeito. Há um processo e não uma cisão.
VAZ também afirma que na Fenomenologia do Espírito aparecem dois
itinerários a serem considerados: primeiro, consiste que a formação do sujeito
se efetua dialeticamente a partir da experiência da consciência na história. A
Fenomenologia do Espírito como obra, por exemplo, só poderia ter surgido
naquele tempo em razão do surgimento de uma revolução filosófica com Kant
(o sujeito responde unicamente à razão) e a Revolução Francesa, que é uma
revolução acima de tudo política (o cidadão é responsável pelas suas
decisões); o segundo, “o imperativo teórico e prático de igualar o racional e o
real” (Ibidem, p. 16) – esta identidade só ocorre porque é um processo de
reconhecimento da razão que se estabelece historicamente.
Para Hegel, a filosofia que reside essencialmente na universalidade, na
qual, é claro, não há como não estar incluso o particular e o singular – isto
significa que é na própria filosofia que a aparência “no fim e nos resultados se
expressa a Coisa mesma” (HEGEL, 2002, § 1, p. 25). Se não fosse assim não
se expressaria o essencial, mas o inessencial. Por exemplo, se por anatomia
entendemos a área do conhecimento que estuda as partes do corpo – sem
considerar o particular não há como tomar posse da essência. Alguns falam da
impossibilidade das generalizações, mas para a filosofia, como Hegel defende,
seria inconcebível, pois, seria impossível “apreender o verdadeiro” (Ibidem, § 1,
p. 25). Quando retratam generalizações desta forma é porque há dificuldade de
lidar com a diversidade e com a contradição. Atitude comum é refletir como
algo determinante se prendendo ao que ora é falso, ora verdadeiro, dito de
outra forma, refletindo a Coisa mesma rejeitando-a ou aprovando-a. Hegel cita
156
muitos exemplos da natureza para explicar melhor a contradição e, ao mesmo
tempo, uma outra categoria para ele muito importante: a totalidade45.
“O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta: do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-ai da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor; essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. É essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo. Mas a contradição de um sistema filosófico não costuma conceber-se desse modo; além disso, a consciência que apreende essa contradição não sabe geralmente libertá-la, ou mantê-la livre – de sua unilateralidade; nem sabe conhecer no que aparece sob a forma de luta e contradição contra si mesmo, momentos mutuamente necessários” (Ibidem, § 2, p. 26).
Hegel afirma que a Fenomenologia do Espírito tem como meta “o saber
efetivo” e não aquilo que se chama “amor ao saber”. Isto significa elevar a
filosofia à condição de ciência. Ao afirmar que “a verdade só no conceito tem
elemento de sua existência” (Ibidem, § 6, p.28) significa que está em oposição
direta à escola empirista inglesa. O esforço é fazer com que os homens voltem
“a dirigir seu olhar para as estrelas e não se contentem com pó e água como os
vermes” (Ibidem, § 8, p. 29). Mesmo sabendo da extensão deste conteúdo,
Hegel está fundamentando que há um novo tempo, mas mais importante é
como este presente se apresenta:
(...) nosso tempo é um tempo de nascimento e trânsito para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de se representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, ese entrega à tarefa de sua transformação. Certamente, o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um movimento para a frente. Na criança, depois de longo período de nutrição tranquila, a primeira respiração – um salto qualitativo – interrompe o lento processo do puro crescimento quantitativo e a criança está nascida. Do mesmo modo, o espírito que se forma lentamente, tranquilamente, em direção à sua nova figura, vai desmanchando tijolo por tijolo o edifício de seu mundo anterior. Seu abalo se revela apenas por sintomas isolados; a frivolidade e o tédio que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido são os sinais precursores de algo diverso que se avizinha. Esse desmoronar-se gradual, que não alterava a fisionomia do todo, é interrompido pelo sol nascente, que revela num clarão a imagem do mundo novo” (Ibidem, § 11, p. 31).
45 Grifo nosso.
157
Neste novo mundo o que aparece primeiro é o conceito, mas isso não
se dá no começo. O começo é como um edifício que tem só alicerces – o
conceito é o edifício. A consciência sente falta do aprimoramento do conteúdo
– a consciência fica rememorando “o ser aí anterior”.
“Sem tal aprimoramento carece a ciência da indelebilidade universal; e tem a aparência de ser uma posse esotérica de uns tantos indivíduos. Digo “posse esotérica” porque só é dada no seu conceito, ou só no seu interior; e ‘uns tantos indivíduos’, pois seu aparecimento, sem difusão, torna singular seu ser-aí. Só o que é perfeitamente determinado é ao mesmo tempo exotérico; conceitua, é capaz de ser ensinado a todos e de ser a propriedade de todos”. (Ibidem, § 13, p. 32)
Uma ciência que começa não chega tão logo à perfeição da forma, isso
leva tempo. Fica exposta à resistência de uma ciência anterior, mas se fosse
diferente, não se instituiria dentro do processo de formação cultural. Há sempre
oposição para legitimação de uma corrente científica. No momento em que
Hegel escreve sua Fenomenologia do Espírito há o que ele chama de “nó
górdio” a ser desatado em função de duas correntes que não chegaram a um
consenso.
“Uma corrente insiste na riqueza dos materiais e na inteligibilidade; a outra despreza, no mínimo, essa inteligibilidade e se arroga a
racionalidade imediata e a divindade (Ibidem, § 14, p. 32).
Uma corrente pode ser até justa, mas se não conseguir legitimidade
dentro da cultura, vamos dizer assim, científica, significa que não atendeu ao
que fora colocado pelo tempo. Quando se utiliza de um método que considera
o conteúdo apenas para ser classificado e fica evidente uma preocupação
somente com a peculiaridade ou a curiosidade que este conteúdo possa trazer;
não é uma preocupação de fato com o novo, mas sempre com aquilo com que
foi adquirido para sofrer a classificação. Ou seja, submete-se a classificação à
ideia absoluta parecendo uma ciência que está já realizada. É uma fórmula
desenvolvida e baseada na repetição e no acúmulo. Não significa que a ideia
não seja verdadeira, mas “fica sempre no seu começo”, ou então, “trata de um
formalismo (...) que atinge apenas a diferença de conteúdo” (Ibidem. § 15, p.
33). Hegel combate e confronta o método especulativo (método que muitas
158
vezes também denomina de metafísico) que não desaparecerá como se fosse
num passo de mágica. Ainda persistirá, mas é um método que estabelece
“obstáculos para o conhecimento filosófico”. Não se trata de uma confrontação
do que se instituiu pelo método especulativo e com o reforço das filosofias do
seu tempo, mas vem da própria noção de substância de Aristóteles. Para Hegel
é importante entender no sistema filosófico, onde tudo decorre, o que é a
substância. O verdadeiro não se manifesta “como substância, mas também,
precisamente, como sujeito” (Ibidem. § 17, p. 34). Então, podemos nos
perguntar: o que é substância para Hegel? Ele responde: “é o ser, que na
verdade é sujeito”
“(...) que é na verdade efetivo, mas só na medida em que é movimento do por-se-a-si-mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se outro. Como sujeito, é negatividade pura e simples, e justamente por isso é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto. Só essa igualdade registrando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser-Outro, é que são o verdadeiro; e não uma unidade originária enquanto tal, ou uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim” (Ibidem. § 18, p. 35).
Ser efetivo (Wirklich) aqui tem sentido de “movimento do por-se-a-si-
mesmo” ou “mediação consigo mesmo do tornar-se outro”. O sujeito é aquele
capaz da reflexão e faz a reflexão deste movimento de reconhecimento do
outro para chegar à sua meta, atualização constante e este é o seu fim.
“O verdadeiro é o todo” (Das Wahre ist). Mas, o que é o todo?
Responde sucintamente: “o todo é somente a essência que se implementa
através de seu desenvolvimento” (Ibidem, § 20, pág. 36). Por essa razão afirma
que o absoluto é resultado, mas este só se apresenta no fim. Só no fim que é
verdade. Mas então o que é essência? É o ser. O que é ser? É sujeito. O que é
sujeito? É o vir-a-ser-a-si-mesmo. É o efetivo que se desenvolve, que é
movimento. Por exemplo, se falamos: o animal. Na sua imediatez nada pode
ser expresso para o que é animal. Contudo, esta palavra pede mais outra e isto
significa que pede a mediação para tornar-se Outro. Pede a sua negatividade.
Tal condição pode causar horror a muitos. Para Hegel este horror surge pela
159
“ignorância a respeito da natureza da mediação e do próprio conhecimento
absoluto” (Ibidem, § 21, p. 36), pois a mediação não é outra coisa senão:
“(...)a igualdade-consigo-mesmo semovente, ou a reflexão sobre a si mesmo, o momento do Eu para-si-essente, a negatividade pura ou reduzida à sua pura abstração, o simples vir-a-ser” (Ibidem, § 21, pág. 36)
O retorno do ser que é o retorno a sua simplicidade – é o retorno a sua
imediatez. Nesse processo de ser, que é também sujeito ou o vir-a-ser, a
Reflexão não pode ser desconsiderada ou excluída. Hegel dá um exemplo. Se
tomarmos o embrião do ser humano, ele é simplesmente “em si”, contudo, não
é “para si”. Aqui entendemos que para a reflexão ele utiliza o termo razão,
“desenvolvida – que se fez a si mesma o que é em si – é homem para si; só
essa é a sua efetividade” (§ 21, ps.36-37). Mas é esse resultado como
movimento de algo repousado sem deixar de lado a negação que, ali na
negação, houve um abandono, mas que depois se reconcilia com ela mesma.
O que diferencia este movimento é que a razão age para um fim como
nas concepções aristotélicas. Hegel parece não procrastinar Aristóteles. O
pensamento filosófico da época de Hegel, a razão submetida a uma causa
externa, significava “a exaltação de uma natureza acima do pensamento”.
Significava submeter-se – muito fácil resvalar para o campo da tradição e das
meras justificativas espirituais. O fim imóvel de Aristóteles é a mesma coisa
que o sujeito. Hegel defende que ali há uma negatividade pura.
Para Hegel o espírito é aquele que se sabe, que se se desenvolve
como espírito tal como a ciência. “A ciência é a efetividade do espírito, o reino
que ele para si mesmo constrói em seu próprio elemento” (Ibidem, § 25, p. 39).
A ciência reivindica da “conciência-de-si” que possa viver nela mesma, ou seja,
o indivíduo deve saber da sua certeza imediata como um “ser incondicionado”.
Temos que entender a relação entre a ciência e a cons-ciência.
Para que possamos compreender a noção dialética hegeliana
evidenciamos uma das metáforas mais conhecidas de Hegel: “o senhor e o
escravo” – trata-se da mais importante parábola da filosofia ocidental (VAZ H.
L., 2016). Entraremos na própria parábola do senhor e do escravo. Reflitamos
160
apreendendo a ideia posta de Hegel. A parábola é apresentada nos parágrafos
178 a 196 da Filosofia do Espírito (HEGEL, 2002, p. 442). A primeira definição
é muito importante: “A consciência-de-si” é “em si” e “para si” quando e porque
é em si e para si uma Outra; quer dizer, se e como algo conhecido” (Ibidem, p.
442). Se sofremos juntos por que não lutamos juntos? Não é possível que a
consciência-de-si possa ser o que é (em si e para si) sem o reconhecimento de
outra consciência. Nessa tríade há uma dialética, mas antes de esclarecê-la,
vamos distinguir suas partes. O que é consciência-de-si? E consciência para
si? Nos parágrafos anteriores citados da Fenomenologia do Espírito, Hegel
trata destas questões sob o título: “A verdade da certeza de si mesmo”. Hegel
mergulhou na cultura humana para refletir sobre esta cultura que tem,
conforme nosso comentador, uma face dialética “(...) porque a sucessão de
figuras de experiência não obedece à ordem cronológica" (Ibidem, p. 10); não
efetua a separação entre fenômeno e o conhecimento absoluto, dito de outra
forma, da coisa em si. Hegel articula a relação entre o sujeito, que entende, e a
verdade do objeto e coloca a experiência no saber do sujeito. Isso está em
processo contínuo. Em primeiro lugar define-se o “conceito como movimento
do saber” “e o objeto, o saber como unidade tranquila ou como Eu”. Ou seja, o
sujeito é o saber e o predicado o Eu.
“O em-si é a consciência, mas ela é igualmente aquilo para o qual é um Outro (o Em-si): é para a consciência que o em-si do objeto e seu ser-para-um-outro são o mesmo. O Eu é o conteúdo da relação e a relação mesma; defronta um outro e ao mesmo tempo o ultrapassa; e este Outro, para ele, é apenas ele próprio”.
Hegel sugere o método dialético para sua lógica que “não é nada
distinto de seu objeto e conteúdo em si, a dialética que ele tem nele mesmo
que o move para frente” (Ibidem, p. 34). A dialética não fora agregada à lógica
porque se entendia sua finalidade equivocada e em Hegel ganha maior
importância.
Na filosofia hegeliana a pergunta é o que precede: o mediado ou o
imediato? Para Hegel, ambos os inícios são refutáveis. O princípio é menos um
início subjetivo do que um início objetivo, entretanto, o princípio mesmo é “um
conteúdo de algum modo determinado” (Ibidem, 49) tal como, de fato, é um
161
objeto: mesa, cadeira, lápis, etc., da mesma forma a determinação do conteúdo
está na subjetividade – no pensar. Para Hegel é “inobservado” por onde se
inicia, se pelo mediado ou pelo imediato; o problema é método para esta
análise. Na história da filosofia constatamos constantemente esta disputa e
Hegel enfatiza:
“(...) não existe nada, nem no céu, nem na natureza ou no espírito, ou seja, lá onde for, que não contenha imediatamente a imediatidade bem como a mediação, de modo que essas duas determinações se mostram como inseridas e inseparáveis e aquela oposição como algo nulo. Mas do que concerne à discussão científica, em todo enunciado lógico surgem as determinações da imediatidade e da mediação e, portanto, a discussão de sua oposição e sua verdade. Na medida em que essa oposição, na relação com o pensamento, o saber, o conhecimento, alcança a configuração mais concreta do saber imediato e mediado, a natureza do conhecimento em geral é tanto considerada no interior da ciência da lógica bem como recai em sua forma ulterior concreta na ciência do espírito e na fenomenologia do mesmo. Mas, querer saber antes da ciência algo claro sobre o conhecimento significa exigir que ela seja discutida fora da ciência; fora da ciência isso pelo menos não se deixa efetuar de modo cientifico, do qual propriamente aqui se trata (Ibidem, p. 50).
É no lógico que começa e ocorre no pensamento que “é livre por si
mesmo”. Ora, se assim inicia, se assim podemos suscitar um início é o que
Hegel denomina de “saber puro”. Na Fenomenologia do Espírito, obra que trata
da ciência da consciência, pode-se verificar que “a consciência tem como
resultado o conceito da ciência”, que nada mais é que o “saber puro”. Este
saber puro é certeza e é subjetividade que não está “em oposição ao objeto,
mas o tornou algo interior, o sabe como a si mesmo” e que é abandonado
porque está “em oposição ao objeto, é aniquilado, alienou essa subjetividade e
é a unidade com sua alienação” (Ibidem, p. 51-52). O ser, portanto, se inicia
“por meio da mediação” que é ao mesmo tempo a superação de si mesmo”
(Ibidem, p. 52). Contudo, o ser puro é início porque se fosse mediação não
seria ele próprio – é mediado.
O ser é tudo e é a entidade mais universal, isto porque não tem como
determiná-lo. A pergunta tão recorrente “que é ser?” busca compreender o que
existe e porque existe. O conceito de ser precisa do que é distinto entre um ser
determinado e um ser-como-tal. É a linguagem que tem condições de
diferenciar um ser de um ser determinado. Quando afirmamos “a rosa é
162
vermelha”, este “é” não mostra ou não designa nada que é real – não tem
como ser um sujeito. “Cada coisa é, mas ser não é uma coisa” (MARCUSE,
1969, p. 128). Ora, se não é alguma coisa então é nada. Portanto, nesta
tentativa de apreender o ser encontramos o nada. O conceito de ser não pode
reduzir-se a nada, mas ser e nada são idênticos. Para Hegel, tudo tem esta
pertinência de ser ao mesmo tempo ser e nada.
“Cada coisa só é na medida em que, a todo momento do seu ser, algo que ainda não é vem a ser, e algo que agora é, passa a não ser. As coisas só são enquanto surgem e desaparecem, ou, o ser deve ser concebido como vir-a-ser. Assim a pertinência do ser e do nada manifesta-se na estrutura de tudo que existe e deve ser guardada em cada categoria lógica. Esta unidade do ser e do nada, que é a verdade original, é, definitivamente, a base e o lamento de tudo o que se segue assim, além do próprio vir a ser, todas as ideias e determinações lógicas. ... e, em resumo, todos os conceitos filosóficos, são exemplos desta unidade” (Ibidem, p. 128).
Esta definição do ser e do nada vai totalmente contra a lógica formal
que predetermina as categorias. A lógica formal aceita o mundo como está e
estabelece algumas regras para poder orientar sua teoria. A lógica dialética
que Hegel aponta, ao contrário, o que é dado não é perene, é mudança
constante, além disso, não se fixa ao que se define pelo exterior, mas o que o
próprio conteúdo manifesta. Deixemos claro que Hegel não está contra as
categorias, mas como definir uma categoria no momento do ser. Hegel passa a
analisar uma das categorias mais tradicionais: a qualidade. Um ente (coisa)
está sempre determinado, é sempre determinado e a qualidade consiste em
um aspecto. Toda qualidade, diz Hegel, é uma negação porque exclui outros
que não o são. Existe uma função de outro e esta é uma totalidade, o ser
verificado ou observador. Esta escrivaninha à nossa frente não é ser-por-si,
mas ser-por-outro. Não há como separá-los. Aqui se revela que a filosofia,
diferente do tradicional, está vinculada com a realidade concreta. A existência
se processa por uma dupla negação. Primeira, nega o outro em que se
transforma; e a segunda é como esta negação primeira é assimilada,
encarnada em si mesma.
163
A essência apresenta a unidade do ser que é sua identidade construída
ou definida no vir-a-ser. O que quer dizer isto? A unidade contém o seu oposto,
ou seja, sua diferença que na relação constitui-se esta unidade. Todas as
coisas têm inerentemente a contradição, a ponto de poder-se afirmar que todas
as coisas são autocontraditórias, opostas a si mesmas. A contradição é o pilar
do todo movimento. A lógica de Hegel, podemos também deduzir assim,
progride como um princípio ontológico universal que o existente se transforma
no oposto de si, construindo ou definindo a identidade do seu ser na superação
das oposições. Mas esta concepção vem contra o próprio idealismo, vem
contra seus próprios princípios. O materialismo histórico dialético desenvolveu
aquela sua hermenêutica crítica que consiste em afirmar que a negatividade é
a essência da coisa, a contradição é o motor do processo. Mas para Hegel a
contradição não é um fim – a contradição dissolve-se na realidade.
Para compreender a totalidade, Hegel propõe o método dialético que
deve deduzir as determinações concretas para assimilar o desenvolvimento do
real. Estas tantas determinações não podem ficar de fora porque é preciso
aprender a história objetiva do próprio real. Na filosofia dialética, não somos
nós que elencamos os conceitos na sua dimensão subjetiva, nós apenas
reproduzimos. A lógica dialética hegeliana associa ou até identifica a forma e o
conteúdo do pensamento. Ou seja, o conceito é tanto uma forma lógica como é
também realidade existente. É no conceito que se atinge a identidade do
sujeito e do objeto como também do pensamento e da realidade.
Na Ciência da Lógica, Hegel ataca a filosofia especulativa não só na
sua perspectiva epistemológica, mas também ontológica. Na perspectiva
epistemológica, Hegel não aceita esta separação entre pensamento e
realidade. O pensamento é realidade assim como já mencionamos que razão
se identifica com a realidade. Na perspectiva ontológica, o ser se configura
numa dualidade que equivale à submissão ao mundo como ele é e a não
assunção enquanto pensamento para a tarefa de atuar na realidade em
harmonia com a verdade. A dualidade consiste na separação do ser e
pensamento onde o pensamento submete-se ao senso comum. As categorias
da lógica tradicional, portanto, são falsas em razão de não estarem
preocupadas com a realidade em si. O senso comum é participar desta
164
falsidade e é a lógica dialética que tem a força para desvelar esta falsidade,
porque tem o seu caráter que Hegel chama de negativo – negar as categorias
estáticas, nega-se o falso do mundo considerado estático, nega-se o falso do
mundo considerado verdadeiro por esta lógica (HEGEL, 1976).
Até aqui chegamos, de forma muito resumida, à exposição sobre a
filosofia hegeliana. No capítulo 4, quando nos referimos aos biógrafos de
Vigotski, destacamos como muitas vezes estes colocam na sua teoria maior
influência em Hegel do que em Marx. Este é um fundamento que nos interessa
e também é fundamental nesta nossa tese, que é a relação intrínseca entre o
idealismo e o materialismo. Ao analisarmos os escritos de Vigotski chama-nos
atenção uma característica marcante. Poderíamos aqui enumerar texto por
texto, mas consideramos desnecessário fazê-lo, dada esta característica ser
tão marcante. Vigotski tem domínio sobre a teoria hegeliana, mas quando a
trata não cita diretamente as obras de Hegel. Faz um caminho pouco usual nos
seus textos. Todas as vezes que cita Hegel, faz com apoio e imediata conexão
com três outros autores: Marx, Engels e Lênin. Estas citações se acentuam
depois de 1930. Por que Vigotski utiliza esta estratégia de redação? A partir de
1930 torna muito mais difícil sustentar uma produção científica como fora nos
tempos de Lênin, mas o que fazer com a teoria marxiana sem Hegel? Vigotski
não abre mão de adotar a reflexão aberta e de acordo com as diretrizes
estabelecidas nos escritos de Lênin, cujas obras completas já tinham sido
publicadas em 1930. Por outro lado, alguns interpretadores de Vigotski tendem
a considerar esta referência das autoridades marxistas (Marx, Engels e Lênin)
como um controle repressivo. Contudo, os três autores (deveríamos
acrescentar também Trotsky)46 são referências para a teoria vigotskiana e isso
é verificável nos seus textos. Gostaríamos de citar três trechos para tornar mais
evidente a quê nos referimos:
Primeiro, no texto História do Desenvolvimento das Funções Psíquicas
Superiores, capítulo 5: Gêneses das funções psíquicas superiores, ao explicar
que a linguagem exerce função central nas relações sociais e no
46 Em 1933, Leon Trotsky foi deportado e escreveu três livros importantes: Autobiografia (1930), História da Revolução Russa (1930-1932), Revolução permanente (1930) e A revolução traída (1936). Há relatos que Vigotski citou as obras de Trotsky, mas na edição das Obras Reunidas foram todas suprimidas (TOASSA, 2015a, 2015b).
165
comportamento cultural da personalidade, afirma que “todo o desenvolvimento
cultural da criança passa por três etapas principais que, seguindo Hegel,
podemos descrever do seguinte modo” (VYGOTSKI, 2012 c). Vigotski então
exemplifica, “a história do desenvolvimento do gesto indicativo” considera como
primeira etapa o gesto da criança “em si”, ou seja, é meramente um movimento
fracassado para um objeto apontando para o que se quer conseguir. Contudo,
quando a mãe atende, se comunica, faz o exercício de também apontar,
conversar, produz-se uma reação: “o gesto indicativo se converte em gesto
para o outro”. As funções do movimento, portanto, vão se modificando.
Primeiro, aponta ao objeto; segundo, dirige-se à outra pessoa; e, terceiro,
estabelece-se uma relação. No final, o gesto com todo o movimento define-se
como um “gesto para si” (Ibidem, p. 148-149). Então, Vigotski passa a citar
uma frase que é muito comum em seus textos para sintetizar “a consciência
para si”: “passamos a ser nós mesmos através dos outros”. Esse texto é de
1931, mas em 1925, no texto A consciência como problema da psicologia do
comportamento e, em outro, Os métodos de investigação reflexológicos e
psicológicos (1924), afirma de forma mais completa: “temos consciência de nós
mesmos porque a temos dos demais e pelo mesmo procedimento através do
qual conhecemos os demais, porque nós mesmos em relação a nós mesmos
somos o mesmo que os demais em relação a nós” (VIGOTSKI, 2014, p. 82;
Vigotski, 2013 k, p. 18). Esta noção confere, sim, com a perspectiva hegeliana,
mas também com Marx, para quem a formação da personalidade se dá nas
relações sociais. Vigotski aproveita esta tese para fundamentar outra: “a
natureza psíquica do ser humano vem a ser um conjunto de relações sociais
transladadas ao interior e convertidas em funções da personalidade em forma
de sua estrutura” (VYGOTSKI, 2012c, p. 151). Do ponto vista psicológico e na
história do desenvolvimento das funções psicológicas superiores há uma
mudança do plano de ação ao plano verbal na idade de transição, mas de
forma alguma a tese de Marx é contestada como fundamento estruturante.
O segundo texto é também constantemente ressaltado por Vigotski e
se sustenta numa citação de Lênin:
“(...) cuando Hegel intenta – as veces incluso con esfuerzo – reducir la actividad racional del hombre a una categoria lógica, al decir que esa atividade es ‘silogismo’, que el sujeto desemperna el papel de un
166
certo “membro’ em la ‘figura’ lógica del ‘silogismo’, etc., NO SE TRATA TAN SOLO DE UMA LICENCIA LITERARIA, DE UM JUEGO, POR ELE CONTRARIO, ENCIERRA UMA IDEA PROFUNDA AUTENTICAMENTE MATERIALISTA. DEBEMOS DARLE LA VUELTA: LA ACTIVIDAD PRÁCTICA DEL HOMBRE TUVO QUE HACER REPETIR A SU CONCIENCIA DIFERENTES FIGURAS LÓGICAS MILES DE MILLONES DE VECES PARA QUE ESAS FIGURAS ADQUIEREN EL VALOR DE AXIOMAS ...” (Ibidem, p. 73)47.
Essa citação que Vigotski faz referindo-se a Lênin tem duas questões
para serem esclarecidas. A primeira é que há concordância para o fato de
Hegel não levar esta análise ao campo prático, ou melhor, à práxis; segundo,
Vigotski não entende aqui, e o texto nem leva para esta compreensão, que tal
fenômeno das imagens na consciência não se trata de uma cópia passiva, é
um processo. Contudo, não podemos negar o referencial lógico hegeliano que
precisa ser, conforme Lênin, invertido na perspectiva da práxis. Contudo, aqui
temos que fazer uma observação mais cuidadosa, isto porque Vigotski
distancia-se de Lênin em determinado momento e se aproxima de Hegel em
outro. Mesmo que na sequência afirme que a linguagem costuma não ser
analisada como deveria, ou seja, na idade de transição a linguagem assume
novas formas. A atividade prática do ser humano é duplamente mediada: por
um lado, é mediada pelas ferramentas em sentido literal da palavra, e, por
outro lado, mediada pelas ferramentas em sentido figurado, pelas ferramentas
do pensamento, mediada com auxílio das palavras (Ibidem, p. 165). Notemos
que a atividade também passa a ser o pensamento. Isto, na época de Vigotski,
era completamente inadmissível, pois acabava sendo uma aproximação com
Hegel. Então, voltamos a Kant, isto porque este afirmava não haver
conhecimento sem conceito, assim como não há como separar o objeto do
conceito, afirmava Hegel; e nem poderia subsistir o conceito sem a práxis,
conforme Lênin. O pensamento como atividade na perspectiva vigotskiana não
retira o caráter da ação, pelo contrário, reforça-a.
Terceiro texto: para compreender o método de investigação é proposto
por Vigotski três teses: (1) As semelhanças entre signos e ferramentas que são
atividades mediadoras (o que tem em comum entre signo e ferrramenta é que
exercem uma função mediadora e pode-se considerar, neste sentido, “a
47 Este texto exatamente igual também consta em Desarrollo de las funciones psíquicas superiores em la edade transición (VYGOTSKI, 2012c, p. 162). Grifo do autor.
167
mesma categoria”. O emprego de ferramentas e de signos estão subordinados
à atividade cuja categoria mediação é fundamental na sua filosofia, a “atividade
mediadora” permite que os objetos atuem reciprocamente. Vigotski, neste
sentido, aproxima também Marx na compreensão que ele dá para as
ferramentas que leva o ser humano a atuar sobre coisas em função de um
objetivo).
(2) As diferenças entre signo e ferramentas (Há, portanto, uma
diferença “essencialíssima” entre ferramentas e signos. Por meio das
ferramentas o ser humano atua na natureza – “está dirigido para fora, isto
porque forja as mudanças no objeto. Por sua vez, o signo não modifica nada no
“objeto da operação psicológica” – é um meio para atividades no interior do ser
humano que é dirigido “a dominar o próprio ser humano”. Comparativamente,
ambas atividades são diferentes).
(3) A relação psicológica real entre uma e outra atividade (O emprego
das ferramentas dos signos tem o nexo real no desenvolvimento filo-
ontogenético, ou seja, no campo filogenético é possível averiguar os vestígios
deixados pelos seres humanos e no campo ontogenético é possível “observar
experimentalmente” (VYGOTSKI, 2012b, ps. 93-94).
Vigotski tinha pleno domínio da filosofia hegeliana e esse fato podemos
observar nas diversas citações que faz considerando as três categorias que
analisamos: totalidade, mediação e contradição. Assim como Marx, Engels e
Lênin eram estudiosos da filosofia hegeliana, também Vigotski foi. Se tirarmos
ou ignorarmos as citações destes autores citados vamos, sim, nos deparar com
um Vigotski idealista, mas não é isso que vemos nos seus textos. Contudo,
para que possamos aprofundar ainda mais este debate precisamos nos ater ao
grande debate e confrontação que havia na época de Vigotski: Idealismo X
Materialismo.
168
Capítulo 9: Dialética da Essência Humana
Para que possamos analisar a perspectiva materialista da filosofia que
se consolida no marxismo é necessário que investiguemos os referenciais de
Fuerbach.
Ludwig Feuerbach (1804-1872) publicou quase que simultaneamente
quatro obras: Crítica da Filosofia Hegeliana (1839), Essência do Cristianismo
(1841), as Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia (1842) e os Princípios
da Filosofia do Futuro (1843). Feuerbach começa criticando a concepção
hegeliana (foi aluno de Hegel na Universidade de Berlim) e apresenta os
fundamentos contraditórios do cristianismo; elabora uma base teórica
provisória; para finalizar, elabora uma obra para indicar o caminho para uma
nova filosofia, uma verdadeira filosofia. Se a crítica é essencialmente uma
crítica da religião é neste campo que Feuerbach permanece, destacando que a
realização da religião exigia a negação dela mesma. Isto significa negar o
caráter transcendente e assumir seu caráter imanente, encarnado nas
questões “terrenas”. Quando propõe uma filosofia do futuro reconhece também
que a filosofia alcançou estágio de maturidade pronto para sustentar as
transformações necessárias e reais, pronta para suportar a sua própria
negação. Lhanos (1988) afirma que “a negação da religião começara com a
transformação hegeliana da teologia em lógica; e se completa com a
transformação, feita por Feuerbach, da lógica em antropologia” (Ibidem, p.
148).
Hoje, Ludwig Feuerbach não é muito lembrado e, quando lembrado, é
em razão da crítica realizada por Marx48 e Engels49. Inicialmente, as obras de
Feuerbach foram importantes para o pensamento de Marx, que o fez
compreender o materialismo e utilizar esta crítica contra o idealismo objetivo
hegeliano. Os sucessores de Hegel se perguntam sobre a realização da
filosofia e pela efetividade da essência humana. A filosofia terá sua negação?
O ser humano conseguirá realizar a sua essência humana? O trabalho
negativo anuncia que a filosofia será superada e a essência humana será
48 Karl Marx escreveu as teses sobre Feuerbach. 49 F. Engels escreveu Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.
169
sempre perseguida na história. Estas questões marcam o pós-hegelianismo.
Duas tendências nascem a partir do sistema hegeliano:
“(...) a primeira, representada por Feuerbach e Kierkegaard, apreende o indivíduo isolado; a segunda, representada por Marx, apreende as origens do indivíduo no processo de trabalho social e mostra como este processo é a base da libertação do homem” (MARCUSE, 1969, p. 243).
Feuerbach concorda com Hegel que a humanidade atingiu a
maturidade – há maturidade para instituir práticas coletivas que se
fundamentam na razão e na liberdade. Eis o motivo pelo qual é possível pensar
numa filosofia do futuro. “A negação da religião começará com a transformação
da teoria em lógica; e se completa com a transformação, feita por Feuerbach,
da lógica em antropologia” (Ibidem, p. 248). A antropologia é uma filosofia que
visa à emancipação concreta do homem, para tanto evidenciando as condições
e qualidades de uma existência humana efetivamente livre. O erro de Hegel foi
ter se arraigado ao idealismo no momento que poderia buscar uma alternativa
materialista que significaria fazer análises não reduzidas à crítica
simplesmente, mas, ao que Feuerbach denomina de genético-crítica, ou seja,
compreender o objeto, investigar a sua origem e as razões de persistir na
existência. Não se trata de buscar explicações no céu como faz Hegel, mas
buscá-las na Terra. A análise genética é o que hoje consideramos como real,
como concreto.
Feuerbach foi aquele que enfrentou a cultura cristã em todos os seus
aspectos e que recuperou a filosofia espinosana na sua perspectiva
materialista. Na primeira parte da Ética de Espinosa50 (mais precisamente no
apêndice), nos deparamos com suas explicações mais livres, ou seja, não
estão dentro da explicação lógica geométrica. É neste texto que se revela a
crítica de Espinosa contra a teologia finalista e as filosofias que permanecem
sob esta ortodoxia. Todas as justificativas de explicar a razão pelas causas
exteriores, transcendentes, são condenadas. Sua teologia é materialista,
reconhece Feuerbach, porque considera a substância imanente. Consideramos
a base feuerbachiana muito próxima de Espinosa, isto porque há rejeição
determinante às formas religiosas de base sobrenatural que, em última análise,
50 ESPINOSA, Baruch. Ética. Autêntica Editora, São Paulo/SP. 3ª Edição. 2007 (Apêndice: págs. 63-75)
170
é supersticiosa51. Ambos enfrentaram a força da cultura judaico-cristã, ambos
tiveram o mesmo fim – Feuerbach afastado definitivamente de qualquer
pretensão para atividade acadêmica quando da repercussão do livro Essência
do Cristianismo; Espinosa afastado da convivência social de sua comunidade
em razão de propagar ideias contrárias à ortodoxia judaico-cristã.
Nas Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia temos duas
passagens explícitas que Feuerbach mostra ser um opositor de Hegel. Sua
crítica é em função da dialética hegeliana ao justificar na reconciliação do
Espírito Absoluto com a realidade, mas mais radicalmente, manter a alienação
do ser humano ao colocar o espírito absoluto no lugar da realidade humana. A
filosofia hegeliana continua fortemente vinculada à teologia a ponto de
Feuerbach afirmar categoricamente: “Quem não abandonar a filosofia
hegeliana, não abandona a teologia” (FEUERBACH 2008b, p. 15). Ao mesmo
tempo reconhecer que “a filosofia hegeliana é o último lugar de refúgio, o último
suporte racional da teologia” (Ibidem, p. 15). A negação da teologia chegou no
seu último estágio e para o lugar dela proclama uma filosofia que considere o
ser humano concreto e real. Quais seriam os estágios até se chegar na filosofia
hegeliana? “Espinosa é o verdadeiro criador da moderna filosofia especulativa;
Schelling (1775-1854) é o seu restaurador e Hegel levou-a ao pleno
desenvolvimento” (Ibidem, p. 01). Em Espinosa a substância infinita é a
natureza – a substância tem infinitos atributos, pode-se dizer ainda que “tudo é
infinito”. Para Schelling o finito subsiste como finito para se adequar ao infinito
e se unir ao infinito que é lançado em direção ao infinito sem nunca conseguir
alcançá-lo. Para Hegel, ao contrário, o infinito deve anular o finito,
reconhecendo e realizando a sua própria infinitude (ABBAGNANO, 1991, p. 81,
v. IV).
O debate em torno da relação entre o infinito e o finito é uma das
questões centrais no idealismo alemão. É um debate que já vem do século XVII
e está claramente exposto na Ética de Espinosa. Na primeira parte, ao se
referir a Deus como natureza. Nas definições iniciais, Espinosa primeiro define
o finito como “aquela coisa que pode ser limitada por outra da mesma
51 Superstição entendida por Espinosa é não conhecer Deus, o ser humano e nem conhecer o conhecer.
171
natureza” 52 , por exemplo, modos (pensamento e extensão) – que são
singulares e são atributos divinos. O que é deus para Espinosa? “Compreende
um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância eterna e infinita”53. No
cristianismo deus não é natureza, mas é criador. Como criador, não permanece
nos efeitos do que cria. A base da filosofia espinosana combate a filosofia
platônica (o real como abstração) e a filosofia advinda do cristianismo com a
ideia da substância única. Também combate a concepção de Renè Descartes
de uma substância dividida e a concepção que se deve controlar a natureza –
no lugar do controle instiga conhecer a natureza.
O ser humano é um ser natural, real e sensível. Portanto, não pode ser
considerado só pensamento – sua totalidade é o corpo. Mas aqui a noção de
corpo trata da concepção monista e não a tradição dualista que vem desde
Platão, passa por Descartes e se refugia no sistema filosófico de Hegel; trata-
se de conceber o corpo na sua unidade indissociável, ou melhor, o corpo
constitui-se consciência e matéria. Citamos um trecho deveras extenso, mas
vale a pena sua precisão sobre esta questão:
A unidade do pensamento e do ser só tem sentido e verdade, se o homem se conceber como o princípio, o sujeito desta unidade. Só um ser real conhece coisas reais; só onde o pensar não se toma como sujeito para si mesmo, mas predicado de um ser real, é que o pensamento não está também separado do ser. A unidade do pensar e do ser não é, pois, uma unidade formal de modo que ao pensar em si e para si se acrescente o ser como uma determinidade; depende somente do objeto, do conteúdo do pensamento. Daí se segue o imperativo categórico seguinte: não queiras ser filósofo na discriminação quanto ao homem; sê apenas um homem que pensa; não penses como pensador, isto é, numa faculdade arrancada à totalidade do ser humano real e para si isolada; pensa como ser vivo e real, exposto às vagas vivificantes e refrescantes do oceano do mundo; pensa na existência, no mundo como membro do mundo, e não no vazio da abstração como uma mônada isolada, como monarca absoluto, como um deus indiferente e exterior ao mundo – podes, depois, estar certo de que os teus pensamentos são unidades de ser e de pensar (FEUERBACH, 2008, p. 69).
Os comentadores de Feuerbach, que geralmente são de base
marxista, seguem as interpretações de F. Engels (ENGELS, 1977). A crítica,
com fundamento, é a de que Feuerbach não teria contemplado na sua filosofia
52 Espinosa, Ética, I Parte, definição 2. 53 Ibidem, I Parte, definição, 6.
172
a condição humana nas suas determinações reais. De fato, não se atém às
determinações sociais a partir da perspectiva de uma sociedade industrial e
toda sua estrutura social e política. Entendemos que a crítica marxista
reconhece esta impossibilidade, pois as filosofias se desenvolvem sob
determinadas condições de cada época. Entretanto, guardada as diferenças de
cada época, Espinosa primeiro e Feuerbach em segundo momento, têm suas
filosofias demandadas pela realidade da época, ou seja, caracterizada pelo
predomínio das instituições religiosas. Claro que Feuerbach está num momento
onde já deveria levar em consideração as consequências da Revolução
Francesa na Europa Ocidental. Para que possamos sustentar esta
argumentação precisamos continuar na citação:
Como é que o pensamento, enquanto atividade de um ser real, não deverá captar as coisas e os seres reais? Só quando se separa o pensamento do homem e se fixa para si mesmo é que surgem as questões penosas, estéreis e, deste ponto de vista, insolúveis: como é que o pensamento acede ao ser e ao objeto? Com efeito, fixado para si mesmo, isto é, posto fora do homem, o pensar encontra-se fora de toda a conexão e relação com o mundo. Elevas-te ao objeto só quando te baixas, até fazeres de ti próprio um objeto de outro. Só pensas porque os teus próprios pensamentos podem ser pensados, e eles só são verdadeiros se superar em aprovada objetividade, se o outro, fora de ti, para o qual eles são objeto, também os reconhecer. Vês só enquanto tu próprio és um ser visível, só sentes, enquanto és igualmente um ser tangível. O mundo encontra-se aberto só para uma cabeça aberta, e as aberturas da cabeça são unicamente os sentidos. Mas o pensamento isolado para si mesmo, em si fechado, o pensamento sem sentidos, sem o homem, fora do homem, é o sujeito absoluto, que não pode nem deve ser o objeto para outrem e, por isso mesmo, não obstante todos os seus esforços, não encontra agora nem nunca uma passagem para o objeto, para o ser; como também uma cabeça, que está separada do tronco, é incapaz de encontrar uma passagem para a apreensão de um objeto, porque lhe faltam os meios de apreensão (FEUERBACH, p. 69-70, § 51).
Feuerbach destaca que “o método da crítica reformadora da filosofia
especulativa em geral” não tem qualquer diferença do método aplicado “da
filosofia da religião”. O que propõe enquanto método para superar a filosofia
especulativa? “Fazer sempre do predicado o sujeito e fazer do sujeito o objeto
e princípio, ou seja, é preciso apenas “inverter a filosofia especulativa de
maneira a termos a verdade desvelada, a verdade pura e nua” (FEUERBACH,
2008b, p. 02). É esta a ruptura que Feuerbach opera na relação com a filosofia
especulativa e a filosofia hegeliana. Para Hegel, para deixar isto bem claro: “o
173
pensamento é o ser; – o pensamento é o sujeito, o ser é o predicado”
(FEUERBACH, 2008a, p. 15).
Para entendermos melhor a relação entre sujeito e predicado devemos
entender primeiro o que o nosso autor define como consciência. Pergunta ele:
“qual a diferença essencial entre o homem e o animal?”. Sempre se responde
que é a consciência. Os animais também têm percepções e sensações que
determinam que também tenham o seu grau de consciência. Mas no sentido
rigoroso há de se ter uma explicação melhor. Para Feuerbach consiste em que
a consciência somente existe “quando para um ser, é objeto o seu gênero, a
sua quididade”. (FEUERBACH, 2007, p. 35). O animal tem esta noção de si
mesmo, mas não a tem como gênero. Esta é uma característica essencial do
ser humano. Como se consegue desenvolver esta noção de gênero? O ser
humano consegue se colocar ao mesmo tempo no lugar de “eu e tu” porque
esta noção é gênero. Contudo, o ser humano nada mais é do que objeto e
toma consciência através do objeto. “A consciência do objeto é a consciência
que o homem tem de si mesmo” (Ibidem, p. 38) e, por essa razão, Feuerbach
considera que a consciência é “ser-objeto-de-si-mesmo”.
O ser, com que a filosofia começa, não se pode separar da consciência nem a consciência se pode separar do ser. Assim como a realidade da sensação é a qualidade e, inversamente, a sensação é a realidade da qualidade, assim também o ser é a realidade da consciência, mas, inversamente, a consciência é a realidade do ser–só a consciência é o ser efetivamente real. A unidade real de espírito e natureza é tão-só a consciência (FEUERBACH, 2008b).
A filosofia para Feuerbach inicia com o ser, mas um ser concreto e não
abstrato. A nova filosofia que é proposta por Feuerbach é uma filosofia da
natureza no seu sentido imanente iniciado por Espinosa. Portanto, não é uma
filosofia que se baseia na natureza como algo inferior, cópia, simulacro (como
Platão), nem reduzido ao eu cogito (Descartes) ou eu entendimento (Kant) e
nem abstrato (Hegel). A natureza assume relevância enquanto assume
importância no homem em si e dentro de sua realidade. A inversão que
Feuerbach faz da filosofia hegeliana coloca-se na tradição materialista em
razão de colocar no centro o ser humano e sua organização social. Hegel
construiu sua teoria sobre a relação do Senhor e do Escravo, por exemplo, sem
174
considerar a condição real de exploração em que vivia a sociedade. Sim, tratou
na sua filosofia do aspecto da dominação, mas não tratou das condições reais
de exploração.
E a dialética de Feuerbach é idealista ou materialista? Ele responde
dizendo que não é uma nem outra. Mais importante é reconduzir a essência do
ser humano “à sociedade, ao ser social, comunitas”. Contudo, veremos mais
adiante que a filosofia feuerbachiana tentou converter a teologia hegeliana em
uma antropologia.
Mas a questão que nos interessa aqui e que é destacada por
Feuerbach é que o ser humano projeta em seus deuses os seus sentimentos
mais elevados, ou seja, o que tem de melhor existe em Deus. Deus é tudo o
que o ser humano gostaria de ser, mas não é. Deus torna-se o receptáculo de
todas as coisas boas do ser humano. O ser humano não consegue conceber
um mundo iniciado, há sempre uma finalidade. Contudo, quando estabelece
um criador e remete todas as finalidades a este, não consegue responder de
onde veio este deus.
Abstrair significa pôr a essência da natureza fora da natureza, a essência do homem fora do homem, a essência do pensamento fora do ato de pensar. Ao fundar todo o seu sistema nestes atos de abstração, a filosofia hegeliana alienou o homem de si mesmo. Sem dúvida, identifica de novo o que separa; mas apenas de um modo que comporta novamente a separação e a mediação. À filosofia hegeliana falta a unidade imediata, a certeza imediata, a verdade imediata (Feuerbach, 2008 a, p. 05).
Para Feuerbach a religião é uma forma infantil da humanidade, mas um
dia o ser humano descobrirá que adorou sua própria essência. A religião
deverá ser substituída por uma moral que valorize a vida comunitária.
O homem singular por si não possui em si a essência do homem nem enquanto ser moral, nem enquanto ser pensante. A essência do homem está contida apenas na comunidade, na unidade do homem com o homem – uma unidade que, porém, se funda apenas na realidade da distinção do eu e do tu (FEUERBACH, 2008, 73).
É na vida comunitária que se dá o diálogo e é ali que se institui a
dialética, a verdadeira dialética.
175
“A verdadeira dialética não é um monólogo do pensador solitário consigo mesmo, é um diálogo entre eu e tu” (Ibidem, p. 73, parágrafo 62, princípios).
A trajetória do pensamento filosófico de Feuerbach é do idealismo para
o materialismo, é gradativa esta aproximação até deflagrar-se uma ruptura total
com o sistema idealista de Hegel. A perspectiva de Feuerbach, diz ele mesmo,
é materialista – “é base em que descansa o edifício do ser e do saber do
homem, mas não é para mim o que é para o filósofo, para o naturalista no
sentido estrito, o que é forçosamente tem que ser e, além disso, sob o ponto de
vista de sua profissão, isto é, o edifício mesmo” (cit. LLANOS, 1988, p. 105).
Engels aqui faz uma crítica, veremos mais adiante em detalhes, que
Feuerbach não considera que o materialismo também é uma gnosiologia que
tem suas fases de desenvolvimento. Feuerbach aqui não percebe que a
materialidade, da mesma forma, também se reveste de história. Ainda está
preso ao materialismo do século XVIII, que era mecanicista, que não consegue
conceber o mundo em desenvolvimento histórico. A referência deste
materialismo em Feuerbach consistia na compreensão de que o movimento
estava na natureza, mas num movimento circular perfeito, logo nunca se movia
do lugar.
Para Feuerbach, a filosofia hegeliana consiste no ápice da filosofia
idealista. Nada mais restaria para frente, exceto estudar o sistema filosófico
hegeliano. A crítica materialista de Feuerbach é a crítica mais consistente antes
de Marx. Mas a sua crítica é baseada nos preceitos hegelianos, ainda tem
traços da filosofia idealista. Hegel não conseguia se desprender das ideias
religiosas e Feuerbach não conseguia se desprender das ideias metafísicas.
Contudo, a crítica mais contundente, e esta partirá de Marx, é de não ter
percebido a inovação da filosofia hegeliana. Não se deveria tratar Hegel como
um “cachorro morto”. Feuerbach não contempla a dialética hegeliana porque
não lhe passa na cabeça convertê-la em dialética materialista. A compreensão
da materialidade era ainda compreendida como um materialismo metafisico.
Em Hegel, e isso é o que chamamos de inovador, há uma interação dialética
176
com os fenômenos da natureza e o esforço de entender suas contradições.
Hegel não se abstém do mundo, há objetividade, há história.
Onde Feuerbach irá fundamentar sua filosofia antropológica? A
impressão que se tem é a de que cai no essencialismo platônico, porque cairá
na abstração quando reivindica o amor universal. Ao mesmo tempo em que
reconhece a concreticidade do ser humano, não o reconhece dentro de uma
história. Considera, dito de outra forma, fora da história e fora de suas
determinações reais. Feuerbach efetuara a crítica da imutabilidade idealista,
mas ele também o é quando vê a situação humana como imutável. A filosofia
antropológica de Feuerbach é uma religião aperfeiçoada, sem precisar da
intermediação dos deuses, agora pode-se fazê-la diretamente entre os seres
humanos que estabelecerão uma religião de fraternidade. É neste sentido que
este filósofo acaba perdendo sua riqueza e se torna, diante de Hegel, menor.
Feuerbach enfatiza que a base de materialismo deveria ser sustentada
pela percepção, a sensibilidade (Sinnlichkeit) e a sensação (Empfindung). O
objeto só é possível de ser dado porque passa pelos sentidos. O verdadeiro é
expresso pelos sentidos. Aqui temos a principal discordância de Marx porque
só os sentidos, fazendo o trabalho de assimilação sem considerar a história e o
movimento capaz de sempre mudar o conteúdo. Feuerbach desconsidera
completamente a importância do trabalho que fora considerado por Hegel. É
pelo trabalho que se pode analisar as relações, as mediações e conseguir a
análise a partir de uma totalidade. Feuerbach não! O ser humano era visto
isoladamente – o materialismo perceptivo, se podemos assim chamar, só lhe
possibilitava ver o homem sem as contradições da vida social.
Mesmo Feuerbach tendo compreendido “o núcleo racional da dialética”
como um todo não percebeu o aspecto positivo que a filosofia hegeliana
carregava como também não se atrevia a aplicá-la no materialismo. Não
compreendia basicamente as contradições nos fenômenos da natureza
(LLANOS, 1988, p. 108) e defendia tanto uma filosofia do real como do homem
real e concreto, mas não aplicava a dialética, por exemplo, para compreender o
ser humano no processo histórico ou nas suas condições reais da sua vida
social. Engels, veremos isto com mais atenção no próximo capítulo, afirma que
177
Feuerbach pretendia aperfeiçoar a filosofia antropológica como religião,
pretendia acabar com a religião. É claro que Feuerbach é um realista, defende
esta perspectiva no pensamento – mesmo assim – não expressa o que o
homem vive na realidade. Engels dirá que Feuerbach é o último representante
da filosofia clássica alemã.
A filosofia feuerbachiana resgatou a perspectiva do ser humano real e
concreto. Vigotski também se atém a observar o ser humano nas suas
condições reais e concretas, mas é interessante verificar que no último
capítudo de Pensamento e Linguagem ao tratar de um tema tão inconcluso na
teoria de Vigotski, a consciência, apresenta uma citação curta, mas significativa
de Feuerbach:
“La palabra representa en la conciencia, en términos de Feuerbach, lo que es absolutamente imposible para una persona y possible para dos” (Ibidem, p. 346).
Para Vigotski o pensamento e a linguagem são a chave para
compreender a consciência e que se estabelece essencialmente nas relações
humanas. Poderia aludir um outro texto, mas aqui Vigotski não traz o caráter
essencialista de Feuerbach, mas resgata o materialismo antropológico como
MARX & ENGELS fizeram.
Feuerbach permanece hegeliano porque reconhece a unidade da
natureza e não nega os estágios discretos dentro desta unidade. Afirma ainda
que o ser humano se distingue de outros animais só pela consciência; o ser
humano é um animal, mas dotado de consciência. Este é denominado de
materialismo antropológico que foi assumido por MARX & ENGELS com apoio
da lógica ontológica de Hegel – no pensamento de que as mudanças
qualitativas não essenciais podem transformar-se em mudanças qualitativas
essenciais. A citação leva-nos também a concluir que Vigotski está utilizando
uma expressão de Feuerbach para fortalecer a relação da consciência, do
pensamento e da linguagem fundamentada nas relações sociais históricas.
178
Capítulo 10: Dialética Marxiana
Para NEWMAN & HOLZMAN (2002) Vigotski foi “um metodólogo
marxista” preocupado em “descobrir o que é a psicologia” considerando as
diferentes abordagens existentes em sua época (Ibidem, p. 23). Se antes de
Marx a filosofia predominante era o idealismo é com ele que a filosofia também
ganha uma nova perspectiva para entender a realidade: o materialismo
histórico dialético.
O materialismo é considerado pouco sério e quando aparece cria
alvoroço. Para depreciá-lo afirma-se ser uma degradação humana porque se
sustenta na afirmação de que o ser humano se reduz à mera imanência,
matéria, natureza e corporeidade. É de se perguntar se o materialismo tem
uma função histórica, um potencial crítico ou um aspecto reprimido da
ilustração. Ouvimos com frequência que o materialista é aquele que tem
interesses cegos ou que utiliza técnicas para o bem próprio sem pensar em
mais ninguém. O idealista, pelo contrário, é identificado como aquele que está
voltado para ideias positivas sobre o futuro. O próprio termo materialismo leva-
nos a um termo bastante controverso: matéria. Alguns tendiam a explicar que o
todo é matéria e movimento. Outra explicação para matéria é tudo que está
fora da consciência em movimento e que a consciência é a matéria mais
evoluída. São afirmações polêmicas, mas a verdade é que o materialismo é a
negação da própria filosofia. Este aspecto nos remete ao materialismo “vulgar”
que não pode desejar-se pelo mero fracasso do pensamento, pois tem algo
inextinguivelmente vulgar no ser humano mesmo: necessidades cotidianas,
enfermidades, velhice e morte, coisas todas absurdas. É neste campo de
absurdidade que também nasce a indignação.
Temos que considerar a problemática do social e do histórico do
materialismo. ALVIM & RIBEIRO (1975) sustentam que o materialismo do
século XVIII nasceu dentro do movimento da ilustração, quando surgiram
várias matrizes em defesa de uma nova classe social: a burguesia. Neste
movimento, por exemplo, a felicidade não é considerada como mera
interioridade, mas como sensível e material.
179
Ao que se refere ao materialismo moderno, partindo de Hobbes (1588-
1679) e Locke (1632-1704), desenvolveu um grande papel na pré-histórica da
Revolução Francesa, pois apoiava-se no conceito de matéria e movimento sem
mais a influência filosófica aristotélica. Também foi sob a influência da física
que o movimento passou a significar mudança de lugar quantitativamente
determinado. Reduziu-se ao quantitativo toda riqueza qualitativa do mundo
objetivo, ou seja, a realidade e a quantificação se identificavam. O materialismo
influenciado pela ilustração significa estar a serviço do interesse de uma classe
e foi uma concepção que inovou os métodos de observação e explicação da
natureza.
Quando a burguesia ascendeu ao poder tornou-se conservadora e
carrega, desde então, a dubiedade. Quando lhe interessa cientificamente é
materialista, quando lhe interessa politicamente é idealista (é por essa razão
que a ideologia é sempre ideologia burguesa na visão de Marx & Engels). É
necessário deixar claro que a emancipação de toda uma classe estava
necessariamente unida com a repulsa do pensamento puramente conceitual,
como era dominado pelos escolásticos. Aqui está a origem do empirismo, cuja
atitude e preocupação predominante é a regulação do pensamento. O novo
pensamento burguês é prático.
A maioria dos materialistas nivelou a diferença qualitativa entre o
trabalho conceitual e a percepção sensível, mas outros materialistas
historicamente posteriores, como Marx & Engels, impugnaram isso. Havia de
se chegar a um certo ponto no qual o materialismo deveria explicar como a
matéria chega a pensar. Claro, algumas frases absurdas foram ditas pelos
materialistas tais como, por exemplo, “o pensamento se relaciona com o
cérebro como a bílis com o fígado...”.
A questão fundamental para os materialistas é explicar o que é
natureza. É mais fácil começar afirmando o que não pode reduzir-se como
significado: necessidades sensíveis, a generalização de que tudo é natureza, é
tudo que está fora de nós e que nos condiciona de fora para dentro ou o
gemido da criatura oprimida. Temos dificuldade de dar uma explicação sobre a
180
natureza e isso se deve ao que fora muito acentuado pela Escola de Frankfurt,
ou seja, podemos entender, primeiro, que a natureza é vista como limitante
para nós, e, segundo, um desejo de querer libertar a natureza como objeto de
nossa vontade insaciável. São, portanto, duas interpretações sobre a natureza.
Contudo, há um entrelaçamento da espécie com a natureza que, uma vez
deixada no seu curso livre, pode também ser muito ameaçadora para a
civilização. O materialismo histórico dialético encara o idealismo e a concepção
burguesa que entende o mundo objetivo só como uma forma baixa do objeto
observável e dominável, com o qual adota uma atitude contemplativa a respeito
do mundo. Na concepção materialista marxiana assume-se a atividade
humana, a práxis, as lutas sociais como riqueza histórica. O materialismo
histórico dialético se posiciona mais além do dado e o ser humano é poder da
natureza que se contrapõe a outras forças materiais naturais. O aspecto
decisivo em Marx é que ele antecipa idealmente o que depois engendra
realmente. A matéria só existe em suas formas qualitativamente diferentes e
não aparece a matéria como substrato unitário e indiferenciado no que os
homens estiveram imersos passivamente – e a dialética tampouco está
encerrada no objeto como um sarcófago; ela só é real na medida em que os
seres humanos – seres corpóreos, pacientes e combativos – entram como
sujeitos no fundo material do ser.
Natureza e história em Marx não se identificam e tampouco estão
justapostas sem mediação alguma. Por um lado, Marx contesta as hipostasias
do antigo materialismo e supera de vez a determinação da natureza em Hegel,
reduzida à “exterioridade”, mas sem rechaçar por completo ambas as teorias.
Marx foi um estudioso da dialética hegeliana e contrapôs-se
radicalmente a ela sem desconsiderar sua lógica e seu método. Marx não faz
muitas referências sobre o método dialético, encontramos explicitamente uma
obra sobre esta temática escrita pelo seu companheiro de luta, Engels:
Dialética da Natureza.
No segundo posfácio d’O Capital, temos uma breve análise sobre as
críticas recebidas e provenientes de diferentes lugares onde esta obra foi
181
publicada; Marx faz sua defesa e ao mesmo tempo expõe os parâmetros do
Método Dialético, destaca que O Capital “foi pouco compreendido” e faz um
balanço das argumentações de seus críticos: i) “trata-se de metafísica”,
enfatiza Eugen De Roberty, discípulo de Auguste Compte; ii) “é método
dedutivo de toda escola inglesa”, acusa o Sr. Sieber; iii) “é método analítico”,
diz Sr. M. Block; iv) “sofística hegeliana”, identificam os resenhistas alemães;
v) “método de investigação estritamente realista”, nomeia um jornal de São
Petersburgo (MARX, 2013, p. 88). Mas um economista russo, Ilarión
Ignátievich Kaufmann, professor da Universidade de São Petersburgo que
melhor compreendeu o método na visão de Marx, resume-o num trecho o que
se tornou nos dias de hoje uma referência estruturante para nossas
pesquisas:
“(...) dever-se-ia distinguir o método de exposição segundo sua forma do modo de investigação. A investigação tem de se apropriar da matéria em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real” (Ibidem, p. 90).
O método dialético fundamentado por Marx é o oposto de Hegel porque
o ideal não é mais uma mística, mas “o ideal é material, transposto e
traduzido na cabeça do homem” (Ibidem, p. 90). Contudo, todo O Capital é a
aplicação do Método Dialético e quando encontramos a exposição da primeira
parte sobre a mercadoria e as outras partes como investigação do modo de
produção capitalista, identificamos “a mercadoria” como aquela unidade de
síntese que só pode ser encontrada diante de um processo detalhado de
análise, verificação do seu processo de desenvolvimento e seus nexos
internos54.
54KOSIK traz a concepção de método dialético (fazendo referência ao exposto por Karl Marx no
segundo posfácio d’O Capital) destacando, primeiro, o método de investigação que tem “três
graus” a serem considerados: i) detalhada apropriação da matéria, pleno domínio do material
igualmente com seus detalhes históricos; ii) análise do desenvolvimento de cada forma
material; iii) verificação das determinações da unidade das várias formas de desenvolvimento;
segundo, o método de exposição é apresentação do “desenvolvimento da coisa como
transformação necessária do abstrato em concreto” (KOSIK, 2011; Pág. 39).
182
Marx também retrata explicitamente sobre o método dialético na
terceira parte de sua Introdução à Crítica da Economia Política – “O Método
da Economia Política”. Cita os economistas do século XVII que sempre
tendiam a iniciar por “uma totalidade viva”, ou seja, faziam questão de fazer
relações desde o mais simples até chegar às mais complexas (do inferior ao
superior). “Este é um método científico correto” afirma Marx. E segue:
“(...) o concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um processo de síntese, um resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e, portanto, igualmente o ponto de partida da observação imediata e da representação. O primeiro passo reduziu a plenitude da apresentação a uma determinação abstrata; pelo segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento” (Ibidem, p. 187).
O acesso ao concreto se dá pela mediação do abstrato, ou seja, para
se chegar ao concreto é preciso considerar muitos aspectos que explicam a
realidade, e, este caminho, só o pensamento pode fazer. José Paulo Neto,
numa palestra, tenta resumir a teoria marxiana partindo de uma definição
resumidíssima: “é a reprodução ideal do movimento do objeto real”. Sim,
entendemos que esta é uma definição feliz. Reprodução da ideia não como um
espelho, como uma cópia, mas como exercício de encontrar as determinações
e as relações do objeto real. E é a partir destas determinações que é possível
encontrar as categorias, ou seja, não são definidas aprioristicamente. É uma
perspectiva realista que está bem demarcada na epistemologia marxiana.
O livro Miséria da Filosofia é uma resposta à Filosofia da Miséria de
Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), que destaca a total falta de
compreensão, na visão de Marx, da dialética hegeliana. O que nos interessa
aqui é compreender como Marx utiliza o método absoluto hegeliano contra
seus opositores. Em nenhuma outra obra de Marx o método dialético é tão
longamente apresentado. Numa passagem, de forma mais ampla e até irônica,
Marx critica o método dialético empreendido por Proudhon e faz a seguinte
declaração:
183
“Se o inglês transforma os homens em chapéus, o alemão transforma os chapéus em ideias. O inglês é Ricardo, rico banqueiro e distinto economista; o alemão é Hegel, simples professor de filosofia da Universidade de Berlim”(MARX, 2003, p.93).
Marx constata na Inglaterra o avanço inicial da industrialização e a
ampla disponibilidade de mão de obra para o trabalho nas indústrias. No início, o
capitalismo apresenta-se de forma muito desorganizada e com o surgimento da
pobreza extrema. Os trabalhadores produzem chapéus e os chapéus assumem
maior importância do que os próprios trabalhadores. O trabalho vira mercadoria. O
trabalhador vira objeto, cujo valor está abaixo da mercadoria. É este o sentido da
primeira frase. Por outro lado, a filosofia alemã nem sequer se preocupa com o
real, a realidade humana é assimilada não para fazer alguma diferença no mundo,
mas para alimentar o pensamento abstrato sobre a realidade. Os economistas,
num determinado momento, denunciam as contradições do modo de produção
capitalista, mas denunciam enquanto ainda um processo de desestabilização das
relações de classe e, quando isto é definido, a crítica irá desaparecer por parte
dos teóricos burgueses. A resposta de Marx para Proudhon tem este sentido e
expõe sete observações:
i) Marx acusa Proudhon de simplesmente considerar as categorias apenas
como expressão teórica ou como razão pura sem contextualização com
as relações reais em geral, e como o movimento histórico das relações
de produção em particular. Não compreendeu o movimento dialético da
tradição grega tese-antítese-síntese, ou então, não estabelece o objeto
para opor-se e nem sujeito para composição e dá “cambalhotas” para
tentar garantir “posição-oposição-composição” (Ibidem, p. 95). Isto na
filosofia hegeliana está colocada de outra forma: afirmação, negação,
negação-negação. O método que Proudhon não conhece o método
absoluto de Hegel. Este é claramente explicitado por Max, vejamos:
“Que é então método absoluto? A abstração do movimento. Que é abstração do movimento? O movimento no estado abstrato. Que é o movimento no estado abstrato? A fórmula puramente lógica do movimento ou o movimento da razão pura. Em que consiste o movimento da razão pura? Em se pôr, em se opor, em se compor, em se formular como tese, antítese, síntese, ou então, em afirmar, em se negar, em negar a sua negação.
184
Como faz a razão para se afirmar, para se apresentar como categoria determinada? É essa a tarefa própria da razão e dos seus apologistas. Mas, uma vez que conseguiu afirmar-se como tese, essa tese, esse pensamento, oposto a si mesmo, desdobra-se em dois pensamentos contraditórios, o positivo e o negativo, o sim e o não. A luta de classes reúne dois elementos antagônicos, encerrados na antítese, constitui o movimento dialético. Tornando-se o sim em não, o não tornando-se sim, o sim tornando-se ao mesmo tempo sim e não, o não tornando-se ao mesmo tempo não e sim, os contrários equilibram-se, neutralizam-se, paralisam-se. A fusão desses dois pensamentos contraditórios constitui um pensamento novo, que é a sua síntese. Esse pensamento novo desenvolve-se ainda em dois pensamentos contraditórios, que se fundem por sua vez numa nova síntese. Deste trabalho de geração nasce um grupo de pensamentos. Esse grupo de pensamentos segue o mesmo movimento dialético de uma categoria simples, e tem por antítese um grupo contraditório. Desses dois grupos de pensamentos nasce um novo grupo de pensamentos, que é a síntese. Da mesma maneira que do movimento dialético das categorias simples nasce o grupo, do movimento dialético dos grupos nasce a série, e do movimento dialético das séries nasce todo o sistema” (Ibidem, p. 96-97).
A partir deste método absoluto de Hegel se pretende “construir o
mundo pelo movimento do pensamento” e não tem implicações na realidade,
por mais que a partir dela se refira para construir seu sistema filosófico.
ii) Proudhon só enxerga a impessoalidade da humanidade. Vê o que o ser
humano é capaz, mas numa perspectiva determinista e não relaciona
que os seres humanos são responsáveis pela produção. As categorias
surgem ou são apreendidas conhecendo o real – “são produtos
históricos e transitórios” na visão de Marx. O que tem de imutável é só a
certeza de que o movimento existe;
iii) Sobre as relações de produção, Proudhon não diferencia na história
como são engendradas, ou seja, não conclui a análise dialética e
simplesmente permanece em dois movimentos iniciais: tese e antítese;
iv) Não analisa os aspectos contraditórios do sistema econômico, mas
considera que tudo tem dois lados: o bom e o mau;
v) Não há dialética em Proudhon e não chega perto da dialética hegeliana.
Não analisa internamente o modo de produção capitalista e suas
185
contradições. Constata os problemas, analisa-os, mas não faz análise
histórica, ou melhor, não contextualiza historicamente levando em conta
a produção e as relações de produção. Os seres humanos são sujeitos
de sua própria história, são “autores do seu próprio drama”, mas
Proudhon abstém-se de analisar os seres humanos nas suas condições
materiais e as causas destas relações de produção que estabelece as
condições materiais numa sociedade que alcança os modos de
produção capitalista;
vi) O que Proudhon desenvolve para compreender a realidade não alcança
a síntese “a antítese é um antídoto”, “a tese torna-se hipótese” (Ibidem,
105);
vii) O cerne equivocado da análise de Proudhon nasce na “escola
filantrópica” que “é a escola humanitária aperfeiçoada” (Ibidem, p. 110).
“A escola filantrópica é a escola humanitária aperfeiçoada. Nega a necessidade do antagonismo; quer transformar todos os homens em burgueses; quer realizar a teoria na medida em que esta se distingue da prática, e não encerra antagonismo. Não é necessário dizer que, na teoria, é fácil abstrair das contradições que a cada instante se encontram na realidade. Essa teoria transformar-se-ia então na realidade idealizada. Os filantropos querem, portanto, conservar as categorias que exprimem as relações burguesas, sem o antagonismo que as constitui e que não pode ser separado delas. Pensam que combatem seriamente a prática burguesa e são mais burgueses que os outros” (Ibidem, 110-111).
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (MARX, 2009) ou então
conhecidos como Manuscritos de Paris, MARX analisa o trabalho na sociedade
moderna, que se constitui como alienação do ser humano. Observa,
especificamente, o modo de produção capitalista e como consequência a
divisão social do trabalho. O interesse do ser humano não é realizado pelo
trabalho, o trabalho transformou-se em mercadoria. Tudo está submetido às
leis da mercadoria e a finalidade do trabalho social é determinada por elas.
Ora, nestas condições, o ser humano fica subordinado às relações materiais de
produção.
186
Qual é o sentido da vida com esta natureza de trabalho? É com esta
pergunta que o marxismo abandona os preceitos dos economistas nacionais.
Não são os seres humanos que estão conduzindo suas vidas, são conduzidos!
O modo de produção capitalista caracteriza-se pela divisão social do trabalho e
por produtos utilitários (valor de uso) que se transformam em mercadoria (valor
de troca). São assim transformados em mercadoria porque são produtos de
trabalho de pessoas isoladas – independentes. O contato entre as produções
independentes somente ocorre no momento da troca, ou seja, no momento
inicial da produção ela é independente e só por meio da troca dos produtos
aparece diretamente o caráter social. Isto significa que o trabalho não aparece
como relações sociais, mas só se efetiva enquanto relações materiais.
A teoria marxista, portanto, não reside – como a economia fez no
tempo de Marx (e continua fazendo isto até hoje porque esta é a essência do
modo de produção capitalista) – em apenas permanecer na naturalização das
relações de trabalho como coisas, mas como relações existenciais entre
pessoas. As relações econômicas só aparecem como objetivas enquanto
produção de mercadorias, e, quando se investiga mais atentamente o real,
pode-se verificar que sua objetividade é meramente aparente e que o modo de
produção capitalista não é uma consequência do acaso, é produto dos seres
humanos reais e concretos. A investigação leva à conclusão que o modo de
produção capitalista também nega completamente a generidade humana.
Quatro questões são determinantes nestes manuscritos e que
podemos assim declarar resumidamente: i) O trabalhador produz um objeto,
mas este toma o seu lugar; ii) O trabalho é exterior ao trabalhador e, por isso,
não pertence ao seu ser, pertence a outro; iii) O trabalhador está alienado do
seu ser genérico – quer dizer que o trabalhador está alienado do outro; iv) O
trabalhador está alienado de si mesmo – de sua própria essência humana
(MARX, 2009, ps. 81-83).
Aqui tocamos nas origens da dialética marxista. A prática social do ser
humano incorpora a negatividade; por exemplo, não se pode negar como fato o
salário, mas é preciso entender que significa uma restrição ao trabalho livre; ou
então, a propriedade privada é inegavelmente um fato, mas é a negação da
187
propriedade coletiva. Marx entende que a negação do modo de produção
capitalista é a alienação e a negação da alienação a abolição do trabalho
alienado. O fim em si não é a abolição da propriedade privada, mas a abolição
da alienação.
N’A Ideologia Alemã encontramos um fragmento (I. Feuerbach
Fragmento 2 – De junho a meados de julho de 1846), talvez um dos mais
importantes nessa obra porque resumidamente traz três temas pertinentes na
filosofia marxista: ideologia, história e método (MARX & ENGELS, p. 207).
Marx defende que são os seres humanos produtores de suas
representações, de suas ideias, mas seres humanos que são reais e ativos e
não imaginados. “A consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser
consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real” (Ibidem, p. 94)
e, no caso da ideologia, os homens não podem ser outras coisas senão o que
lhes aparece nas relações materiais. Evidentemente que para o investigador
das questões sociais não se pode partir do que supostamente se imagina, mas
deve-se partir do homem “’de carne e osso” e “a partir de seus processos de
vida real”. Portanto, “é totalmente contrário da filosofia alemã, que desce do
céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu” ou então, dito de forma mais precisa:
“não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência” (MARX, 2015 b, p. 49).
Analisar as questões sociais não significa estar “isento de
pressupostos”, mas são pressupostos reais de seres humanos que estão
determinados por relações e que podem ser “empiricamente observáveis em
determinadas condições”. Considerado desta forma, a história não é a
justaposição de “fatos mortos” como fazem os “empiristas abstratos” ou então
uma “ação imaginária” como fazem os idealistas. Separar os fatos da vida real
é simplesmente cair em abstrações sem sentido.
“Ali onde termina a especulação, na vida real, começa também, portanto, a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens. As frases sobre a consciência acabam e o saber real tem de tomar o seu lugar” (Ibidem, p. 95).
188
Em O Capital de Marx, a dialética é movimento de sua análise, ou seja,
está presente do início ao fim. Como já nos referimos, no segundo posfácio,
Marx explicita o método dialético, um dos poucos momentos que o faz
diretamente. Sem a compreensão da dialética que está n’O Capital, suas leis,
suas categorias tornam-se incompreensíveis. Logo no primeiro capítulo d’O
Capital, Marx trata da mercadoria e é neste momento, depois de tanta
investigação, que faz a exposição.
Marx faz a seguinte citação: “A riqueza das sociedades onde reina o
modo de produção capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de
mercadorias’ ” (MARX, O Capital - Crítica da Economia do Capital, 2013), ou
seja, como se fossem isoladas, independentes, ou como não tivessem relação
alguma. Ele continua: a mercadoria tem duas características básicas: i) “a
utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso” (Ibidem, 114) que poderemos
ainda expressar de outra maneira, é a capacidade de satisfazer necessidades;
ii) e, o valor de troca, capacidade de comprar outras mercadorias. A
mercadoria, entendemos então, é a unidade entre o valor de uso e o valor de
troca (M=Vu/Vt).
Não vamos neste momento investigar o valor de uso, mas precisamos
analisar mais de perto o significado do valor de troca na mercadoria. Marx
afirma que “o valor de troca aparece inicialmente como a relação quantitativa, a
proporção na qual valores de uso de um tipo são trocados por valores de uso
de outro tipo” (Ibidem, p. 114). Portanto, uma mercadoria não tem um valor de
troca, tem vários valores de troca. Como poderíamos representar isso? Da
seguinte forma: 1kg de trigo = 1Kg graxa, 10 m seda, 5 gr ouro.
Podemos afirmar então que uma mercadoria tem tantos valores assim
como existem mercadorias. Esta característica quantitativa é factível de muitas
mudanças que dependem do lugar e do tempo. O valor de troca tem um grau
de variabilidade, ou seja, 1 Kg de trigo não equivale somente para 1 Kg de
graxa, mas 10 m de seda ou 5 gr de ouro. Então, além da variabilidade, o valor
de troca também tem uma característica relativa, isto porque depende de
muitos fatores para se determinar. Ora, se o valor de troca tem este grau de
variabilidade, Marx supõe, num primeiro momento, o seu caráter casual. Na
189
investigação, Marx apresenta a primeira síntese: “o valor de troca parece algo
acidental e puramente relativo, um valor de troca intrínseco, imanente à
mercadoria; portanto, uma contradictio in adjeto [contradição nos próprios
termos]” (Ibidem, p. 114). Isto quer dizer que parece contrassenso que no
interior da mercadoria possamos encontrar algum valor. Se o valor de troca tem
este caráter relativo não há como encontrá-lo numa mercadoria, mas nas
relações entre as mercadorias. Além disso, se o valor de troca fosse casual,
não haveria necessidade de se fazer uma investigação. O que Marx chama de
“contradictio in adjecto” não é uma percepção imediata, um nível aparencial,
uma percepção fenomênica que está apenas no nível inicial de investigação,
mas os fundamentos necessários para revelar o objeto.
A aparente casualidade percebida no valor de troca está fundamentada
na variabilidade especialmente no tempo e no espaço. Entretanto, uma
alternativa seria, num primeiro momento, considerar não no tempo e no
espaço, para verificar se esta casualidade é superada, ou se é possível
encontrar uma explicação científica. Marx busca uma regularidade no valor de
troca. Apresentamos anteriormente, com as determinações do tempo e do
espaço, que uma mercadoria não tem um valor de troca, mas vários valores de
troca (1 Kg de trigo = 1Kg graxa, 10 m seda, 5 gr ouro). No lugar de um valor
de troca colocamos outro e o resultado é o mesmo e concluímos que não há
casualidade entre os valores de troca, mas que são determinados (1 Kg de
graxa = 1 Kg de trigo, 10 m seda, 5 gr ouro).
No mercado, estes valores de troca são todos iguais, ou melhor, os
valores de trocas que são diferentes entre si são iguais. Aqui, Marx encontrou
na investigação a regularidade que precisava para considerar ou para iniciar de
fato a investigação científica. O que determina que todas as quantidades
apresentadas tenham o mesmo valor de troca de 1 Kg de trigo? Há alguma
coisa no interior do 1 Kg de trigo responsável por esta determinação. Para
Marx, é o valor. O valor de troca é o que expressa uma mercadoria, apresenta-
se com suas características fenomênicas do conteúdo da mercadoria.
Encontramos aqui a aplicação do método dialético de Marx com todas as suas
qualidades, começando pelo mais simples e indo para questões mais
complexas. Aqui, entendemos claramente que a teoria marxiana se constitui na
190
reprodução ideal do movimento do objeto real. É a partir do objeto real,
observando e analisando suas determinações, que se pode também
compreender que “o concreto é concreto porque é síntese de múltiplas
determinações”.
Marx sempre estava se referindo ao “valor de troca” como uma
característica quantitativa, mas ele identifica “valor” como uma característica
qualitativa. Esta qualidade consiste em intercambiar as mercadorias entre elas.
O valor não aparece, o que aparece é o valor de troca, que é o fenômeno, o
que aparece imediatamente. O valor é algo não naturalizado, porque a
possibilidade de igualar 1 Kg de trigo a 10 m de seda só se efetiva pela
propriedade-valor. É a sociedade mercantilista que estabelece o valor das
coisas. Dissemos sociedade mercantilista porque assim se estruturava
socialmente, mas não significa que seja uma característica eterna. Estamos
nos referindo às bases históricas no período de Marx. O valor tem uma
qualidade histórica-social. O valor é como se fosse uma marca no valor de uso,
é invisível, mas determinantemente presente. Compreendemos assim que valor
não tem uma notoriedade física, mas é real. É real e histórica.
Como a sociedade, que, insistimos e destacamos, está dentro de uma
determinação histórica, coloca esta marca “valor”? Ao estabelecer que 1 kg de
farinha é igual a 1 kg de graxa significa que o trabalho utilizado para cada valor
de uso é igual. Claro que para a produção de 1 kg de farinha e 1 kg de graxa
exigem-se técnicas produtivas diferentes. É o mercado que estabelece esta
igualdade e subtrai estas diferenças. Da mesma forma que foi defendido por
Marx a unidade do valor de uso e do valor de troca na mercadoria, a unidade
do trabalho concreto e do trabalho abstrato é o trabalho mercantil (Trabalho
humano = Tc – trabalho concreto/Ta Trabalho abstrato). É trabalho concreto
porque produz algo e se caracteriza pelas propriedades específicas (valor de
uso). É trabalho abstrato porque é trabalho humano independentemente de
suas diferenças (produz valor). Devemos enfatizar que para Marx o trabalho
abstrato é real e não simples pensamento.
CARONE (1984) resume bem o método que Marx utiliza para desvelar
o concreto partindo do que é aparente, fenomênico:
191
“(...) a distinção entre método de pesquisa e método de exposição, ficou-nos claro que sem pesquisa empírica não há exposição teórica, dado que a exposição não é e não pode ser mera construção a priori. É preciso, agora, acrescentar: a pesquisa empírica não é autossuficiente, do ponto de vista da dialética de Marx. Os dados empíricos, por mais rigorosamente que sejam coletados, permanecem presos às ilusões e inversões ideológicas das representações imediatas dos objetos sociais. Eles necessitam, portanto, ser interpretados e convertidos pela mediação teórica, ou seja, os dados imediatos devem ser mediatizados pela teoria.
O método de exposição ou método dialético, embora teórico e racional, não tem qualquer postulado de ordem idealista, na medida em que tem a pesquisa empírica como exigência básica, mas tampouco advoga o princípio empirista da auto-inteligibilidade” (Ibidem, p. 26-27).
É a partir da análise da mercadoria que Marx aprendeu as suas
categorias fundamentais: singular-particular-universal, conteúdo e forma,
trabalho concreto e trabalho abstrato, essência e aparência, riqueza e
mercadoria, valor de uso – valor de troca – valor. Já citamos uma passagem no
início do primeiro capítulo de O Capital quando Marx afirma que no senso
comum a riqueza é compreendida como “um imenso acúmulo de mercadorias”.
A riqueza tem sua história, suas condições peculiares de uma época. Marx está
claramente analisando a sociedade mercantilista no modo de produção
capitalista. Logo, a riqueza é uma categoria, uma categoria geral e a
mercadoria uma categoria particular do capitalismo. Marx, portanto, considera a
riqueza capitalista (Rc) ou a mercadoria (M) unidades contraditórias do valor de
uso (Vu) e valor (V). A riqueza é construída por valores de uso em qualquer
sociedade e em qualquer momento histórico. O valor de uso constitui-se
sempre como conteúdo independentemente da forma social e histórica. Então,
podemos considerar também que a unidade do valor de uso – que é o
conteúdo (C) – e do valor – que é a forma – é a mercadoria.
Da mesma forma podemos identificar que o trabalho mercantil (TM),
que é próprio de uma determinada época do capitalismo, é a unidade
contraditória entre trabalho concreto (TC), que é conteúdo, e o trabalho
abstrato (TA), que é a forma.
No primeiro momento, nós apresentamos que o valor de troca tem uma
característica fenomênica ou aparente que pode nos levar a concluir que o
192
valor se constitui como mera casualidade e relatividade. O valor enquanto tal
não se apresenta imediatamente como o valor de troca e somente na análise
pode-se verificar que o valor é o que se constitui como essência, e o valor de
troca como aparência. Concluímos assim que, na aparência, a mercadoria é
unidade de valor de uso e valor de troca; na essência, a mercadoria é a
unidade do valor de uso e o valor.
Esta última distinção é fundamental, pois pode causar muitos
equívocos. Na perspectiva da aparência podemos identificar a relação de
oposição tendo como unidade a mercadoria. O que precisamos é irmos mais
adiante, irmos ao concreto, na essência, para identificar que a mercadoria é a
unidade do valor de uso e valor. É o valor com suas características sociais e
históricas (propriedades) que se torna determinante na análise. Sem a
dialética, não seria possível chegar às conclusões referentes ao objeto real.
Qual a diferença entre a dialética marxista e a dialética hegeliana? A
concepção dialética da realidade de Marx está motivada pela mesma questão
que Hegel aborda: o caráter negativo da realidade. A negatividade é o motor
das contradições e que possibilita ao mundo progredir. Cada singularidade é
envolvida dentro deste processo de contradições, portanto, pode ser analisada
dentre uma totalidade. Marx analisou a economia capitalista e enfatiza que ela
se perpetua diminuindo o trabalho concreto. Afasta-se assim o ser humano de
suas necessidades concretas e as relações entre elas se dão como relações
entre coisas. Para analisar esta realidade deve-se partir do abstrato, abstrato é
a mediação para se poder atingir o conteúdo do real.
Mencionamos que tanto nas concepções dialéticas de Marx como de
Hegel a verdade está na totalidade negativa. Contudo, para cada um, a
dialética é diferente. Para Hegel, a totalidade é a da razão que se identifica
com a realidade histórica. A história se molda pelo pensamento na perspectiva
hegeliana. Há uma questão real inescapável para quem de fato pretende
conhecer o real, a realidade que é a negatividade das relações de classe. O
método dialético necessariamente também é método histórico, pois há várias
formas sociais e históricas de como se constituem as classes sociais em
diferentes modos de produção. Para tal, é preciso diferenciar a base na
193
histórica dialética. A negatividade existe, é um estado em uma condição, mas é
a superação pela negação que se torna positivo para novamente constituir-se
em negatividade.
Marx chama de pré-história da humanidade tudo que esteja enraizado
na estrutura de classe e no momento de sua abolição tem início uma nova
história. MARCUSE (1969) afirma que a categoria necessidade é fundamental
na teoria marxiana, mas deve-se ter o cuidado para não cair no determinismo e
nem considerar “os saltos” de uma condição para outra como um passe de
mágica.
“O conceito que liga definitivamente a dialética de Marx à história da sociedade de classes é o conceito de necessidade. As leis dialéticas são leis necessárias; as várias formas de sociedades de classes necessariamente morrem por força de suas contradições internas. As leis do capitalismo trabalham com “férrea necessidade em direção a resultados inevitáveis”. Esta necessidade, porém, não se aplica à transformação positiva da sociedade capitalista. É verdade que Marx admitia que os mesmos mecanismos que produzem a concentração e centralização do capital, também produzem “a socialização do trabalho”. “A produção capitalista gera, com a inexorabilidade de uma lei da Natureza, sua própria negação’, isto é, gera propriedade baseada ‘na cooperação e na posse comum da terra e dos meios de produção” (Ibidem, p. 289).
As contradições do capitalismo levam à superação delas mesmas para
alcançar o socialismo, porque é uma necessidade, mas não sem o pleno
desenvolvimento do indivíduo. A transformação desta sociedade ocorrerá na
Rússia, não nas premissas previstas, e veremos como ela se efetuou e as
novas contradições que surgem a partir do socialismo quando da abolição das
classes sociais, da propriedade privada e do dinheiro.
Fartamente discorremos, na primeira parte dessa tese, acerca do
contexto sócio-histórico da Rússia soviética no tempo de Vigotski. O acesso
que teve às obras de Marx foi restrito, pois estas não estavam tão disponíveis
quanto nos dias de hoje. Muitos apontam que teve acesso ao Manuscritos
Econômico-Filosóficos, já que fora publicado pela primeira vez e 1932 na
Rússia, mas nenhuma citação encontramos em sua obra que possa sustentar
esta hipótese.
194
Dois textos encontrados recentemente nos dão a dimensão da busca
de Vigotski por uma unidade de análise que pudesse sintetizar o psiquismo
humano e uma psicologia dialética como se referia: O significado histórico da
crise da psicologia (1927) e o Manuscrito de 1929. Diante de Hegel, Vigotski
sustentava que seu idealismo “pendia sobre a cabeça do materialismo”, ou
seja, ao “separar a verdade metodológica (dialética) da falsidade real” pode-se
concluir que Hegel “caminhava rumo à verdade mancando” (VIGOTSKI, 2003,
p. 267). Até esse momento podemos ver como Vigotski não tem sua definição
metodológica ou gnosiológico clara, mas é a partir desses escritos que
podemos constatar como foi sua busca. Vigotski buscava o que ele mencionou
no texto do Significado histórico da crise da psicologia (1927): “a mercadoria da
psicologia”. No final de sua vida, em alguns fragmentos podemos constatar que
havia desenvolvido essa síntese ao identificar a vivência (termo similar em
português) como sua categoria basilar.
Logo no início do Manuscrito de 1929, Vigotski afirma que a história
pode ser entendida de duas maneiras: primeira, como “uma abordagem
dialética geral das coisas”; segunda, como “história humana” – e complementa
– “a primeira história é dialética; a segunda é materialismo histórico”
(VIGOTSKI, 2000). É com este manuscrito que se coloca em discussão a
diferença básica entre a concepção de materialismo de Marx & Engels (nós
ampliamos esta diferença para outros autores) e outras concepções
materialistas da época de Vigotski. O fundamental estabelecido por Vigotski é
compreender se o materialismo tem o seu caráter histórico ou não; por
exemplo, nesta perspectiva, a concepção de Feuerbach não tem sentido para a
sua época. Logo, é o caráter histórico que define o materialismo e é o caráter
materialista que define a dialética de MARX & ENGELS e como também
premissa que fundamenta a psicologia dialética de Vigotski. Ou seja, sem a
clareza desta diferenciação e desta síntese sua teoria torna-se muito frágil.
No Significado histórico da crise da psicologia (1927) há uma definição
importante na qual Vigotski retoma novamente Marx: “a única ciência é
história”. Sendo assim, podemos concluir que toda ciência é necessariamente
histórica. Contudo, dentro de uma perspectiva materialista isto se refere a
considerar que a história é produto da atividade humana e que não tem um
195
caráter especulativo ou que tenha simplesmente um caráter natural das coisas.
A ciência está ligada às condições materiais produtivas de cada época.
Uma referência também sempre importante e nos últimos anos
destacada pelos comentadores do pensamento Vigotski é a noção de Homo
Duplex que também consta no Manuscrito de 1929. Esta noção é muito
frequente na teoria de Vigotski, mas sem esta denominação. Significa que toda
relação social que o ser humano desenvolve nada mais é que a relação social
entre um eu e um outro, ou seja, sua internalização implica em dois numa
unidade, onde o outro ou os outros se nos apresentam como um “não eu”, um
estranho. A subjetividade que encontramos naquilo que sempre é enfocado por
Vigotski, as funções psicológicas, encontra-se na subjetividade humana a
forma de drama (VIGOTSKI, 2000). A psicologia é entendida como drama
exatamente nesta condição ou nessa compreensão de Homo Duplex. É aqui
que está a categoria síntese e unificadora, “a mercadoria” de Marx, para a
psicologia: a vivência (no Brasil, está se colocando literalmente a palavra russa
“perejivanie” para designar seu caráter amplificado).
Na parte que Vigotski trata sobre a Pedologia do Adolescente e
desenvolve o artigo sobre a formação de conceitos na idade de transição. Há
uma diferenciação entre lógica formal e lógica dialética. Afirma que “a
representação formal deforma profundamente a verdadeira natureza do
conceito” (VYGOTSKI, 2012b). Defende que o verdadeiro conceito deve refletir
uma “coisa objetiva na sua complexidade”. Quando se conhece o objeto com
todos os seus nexos e relações é porque alcançamos um conhecimento
totalizante do conceito. Seguindo os preceitos da lógica dialética, o conceito
não reside apenas no universal, mas também no singular e no particular. Eis a
razão da importância das mediações para poder compreender os nexos e
relações que se revelam nas definições do objeto.
“Es mui acertada la comparación que hace Marx entre el papel de la abstración y la fuerza del microscopio. En uma investigación realmente científica tenemos la possibilidade, gracias al concepto, de penetrar a través de la apariencia externa de los fenómenos, a través de la forma de sus manifestaciones, de conocer los ocultos nexos y relaciones que subyacen en la base de los mismos; penetramos em su esencia a semejanza de como se descubre com la ayuda del microscopio la variada y compeja vida, la compleja estrutura interna
196
de la célula que, oculta a nuestros ojos, encierra una gota de agua (Ibidem, p. 78).
Na perspectiva marxista e defendida por Vigotski, o fenômeno e a
essência não coincidem. Se assim fosse, não haveria necessidade da ciência.
Uma outra questão que também Vigotski se referencia em Marx: “a consciência
e a vinculação com a linguagem”. Toma cuidado de não utilizar a teoria
marxiana de forma forçada para confirmar esta vinculação. A concepção
teórica de Marx amplia a visão para pesquisa, isto porque o aspecto da
consciência, quando qualifica a linguagem como “consciência prática”, “como
consciência que existe para outras pessoas e, por conseguinte, para si mesmo”
é esta mesma consciência que é forjada na história e que nasce junto com a
linguagem (2012i).
A teoria marxiana inseriu Vigotski no debate sobre as visões objetivistas
e subjetivistas e na polêmica destas concepções dualistas entre o indivíduo e
sociedade (ou entre o indivíduo e o coletivo), o biológico e o cultural, a emoção
e a razão e a objetividade e a subjetividade. O debate em torno da consciência
continua ainda a ser muito debatido. Vigotski defende a noção essencial da
consciência como inserida no campo da reflexão não é um refletir exato da
realidade como uma cópia passiva. A experiência é determinante para a
reflexão. Neste sentido, a relação entre cérebro e consciência significa que há
uma superação do biológico sem nunca poder dissociar-se dele. A consciência
é a capacidade de refletir sobre a realidade, ou melhor, sobre a atividade. É por
essa razão que Vigotski distingue no comportamento três dimensões da
experiência: a histórica, a social e a duplicada. É a experiência que determina
a consciência e não o inverso. Estas dimensões são determinantes para
diferenciar o ser humano do animal. A teoria sócio-histórica vigotskiana se
fundamenta na natureza social da consciência o que explica os processos
psicológicos superiores. Portanto, a consciência constitui-se na capacidade que
o ser humano tem de refletir, melhor dizendo, a atividade reflete-se no ser
humano e este toma consciência da própria atividade. É por isso que para Marx
como também essencialmente para Vigotski a “consciência é atividade de ser”.
197
Capitulo 11: Dialética da Natureza
Vimos no capítulo anterior a impossibilidade de separar a teoria
materialista histórico-dialética marxiana da engeliana. A síntese é o próprio
materialismo histórico dialético, mas há comentadores que acentuam as
diferenças ou então acentuam a influência de uma ciência da natureza
defendida por Engels como determinista e que não estaria mais ligada à teoria
marxiana. Vigotski não faz esta diferenciação em momento algum. Os escritos
de Engels reforçam a teoria materialista histórico-dialética. Vigotski leu
Dialética da Natureza de Engels, publicada em 1925 na Rússia soviética, que
teve grande influência nos seus trabalhos de pesquisa. É nesta obra que
Engels define três leis da dialética.
“É, portanto, da história da natureza e da história das sociedades humanas que são abstraídas as leis da dialética. Elas são senão as leis mais gerais destas duas fases do desenvolvimento histórico assim como do próprio pensamento. Reduzem-se essencialmente às três leis seguintes: - a lei da passagem da quantidade à qualidade e inversamente; - a lei da interpenetração dos contrários; a lei da negação da negação (ENGELS, 1975, p. 49).
Logo mais adiante a esta citação, Engels continua afirmando que estas
leis não são diferentes da concepção hegeliana, mas o erro de Hegel é que
não parte “da natureza e da história”. A preocupação de Engels era também
dar o caráter científico para o materialismo e para tal baseava-se nas ciências
naturais. Dois personagens políticos interpretaram também as leis da dialética
e de forma não muito diferente: Lênin e Stalin. Ambos expuseram seus
pensamentos quanto à dialética e não se distanciaram da Dialética da Natureza
de Engels 55 .São contemporâneos de Vigotski e com papel preponderante
também na produção de conhecimento. Este é um assunto sobre o qual os
comentadores não são unânimes, isto porque de um lado Engels está atacando
o misticismo (a superstição na ciência) como Francis Bacon também o fez56;
55Dialética da Natureza foi editado na Rússia pela primeira vez em 1925 e comentadores consideram que foi esta obra de Engels que influenciou os estudos de Vigotski sobre a origem da consciência humana. 56Bacon defendia no seu Novum Organum (1630) que a ciência está submetida a ídolos que “ocupam o intelecto humano” e “obstruem” o caminho para a verdade. Afirma que são quatro os gêneros dos ídolos que fazem esta obstrução na mente humana, a saber: “Ídolos da Tribo”; “Ídolos da Caverna”;
198
por outro lado, a preocupação de estabelecer regras extraídas somente das
ciências da natureza, na perspectiva de alguns comentadores, levava mais a
uma doutrina para a análise dos fenômenos quantificáveis do que o da
transformação da sociedade57.
“Para o materialismo, a única realidade é a natureza” disse Engels
(ENGELS, 1977b, p. 87), bem como esta natureza tem uma história (idem, pág.
108). Podemos então afirmar que o materialismo dialético tem como
pressuposto básico a natureza, o pensamento e a história e que estes se
desenvolvem num constante processo de transformação, mesmo quando em
determinadas situações as coisas tenham uma aparência imóvel.
Portanto, se o materialismo dialético tem como pressuposto básico a
natureza e a história em constante processo de transformação das coisas que
muitas vezes aparecem como estáticas, também é necessário considerar que a
filosofia materialista dialética acaba “com o caráter definitivo de todos os
resultados do pensamento e da ação do homem”. Esta é, conforme Engels,
uma premissa herdada de Hegel:
“Em Hegel, a verdade que a filosofia procurava conhecer já não era uma coleção de teses dogmáticas fixas que, uma vez descobertas, bastaria guardar de memória; agora a verdade residia no próprio processo do conhecimento, através do longo desenvolvimento histórico da ciência, que sobe, dos degraus inferiores, até os mais elevados do conhecimento, sem, porém, alcançar jamais com o descobrimento de uma pretensa verdade absoluta, um nível em que já não se possa continuar avançando, em que nada mais reste senão cruzar os braços e contemplar a verdade absoluta conquistada. E isso não se passava apenas no terreno da filosofia, mas nos demais ramos do conhecimento e do domínio da atividade prática. Da mesma forma que o conhecimento, também a história nunca poderá encontrar seu coroamento definitivo num estágio ideal e perfeito da humanidade; uma sociedade perfeita, um estado perfeito, são coisas
“Ídolos do Foro” e “Ídolos do Teatro” (Aforisma XXXIX). Nos seus primeiros aforismos deixa claro sobre os parâmetros da investigação. O primeiro aforismo: “O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais” é um alerta para a delimitação do conhecimento e também uma crítica aos métodos metafísicos que se utilizam apenas da mente. É preciso instrumentos, métodos; e no aforismo terceiro, afirma também que “a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece”. As ciências até então, conforme Bacon, não fomentavam a descoberta, mas a repetição. Não instigavam para novas descobertas (Aforismo VIII). E qual a razão de não progredir nas descobertas? Ataca Bacon: “Admira-se e exalta-se de modo falso os poderes da mente humana, não lhe buscamos auxílios adequados” (Aforismo (IX). Tudo que está desde então instituído na ciência é uma “inutilidade” (Aforismo XI, XII, XIII). Mas é na indução a esperança para o caráter útil da ciência (Aforismo XIV).
57 Esta crítica foi destaque especialmente por parte de György Lukács.
199
que só podem existir na imaginação. Pelo contrário, todas as etapas históricas que se sucedem nada mais são que outras tantas fases transitórias no processo de desenvolvimento infinito da sociedade humana, do inferior para o superior. Todas as fases são necessárias, e, portanto, legítimas para a época, para as condições que origina; uma vez, porém, que sugerem condições novas e superiores, amadurecidas pouco em seu próprio seio, elas caducam e perdem sua razão de ser e devem ceder lugar a uma etapa mais alta, a qual, por uma vez também terá um dia de envelhecer e perecer” (Ibidem, p. 83).
Engels não se considerava no mesmo patamar de conhecimento de
Marx, mas foi aquele que, após sua morte, assumiu o seu acervo, e mais,
concluiu as obras que estavam para ser concluídas e que demandaram muito
tempo de pesquisa. O segundo e o terceiro livros de O Capital foram escritos
por Engels e até hoje muito trabalho dão aos exegetas para verificar o que é de
um ou supostamente o que é de outro. Em função da prioridade da conclusão
de O Capital para sua edição, Engels deixou para segundo plano um tratado
sobre dialética - a Dialética da Natureza está incompleta. Em outros textos
podemos analisar sua compreensão e aplicação da dialética. Sua aplicação
esteve marcada nas análises históricas do desenvolvimento do pensamento ou
da sociedade, mas quando foi tratar especificamente do tema, refugiou-se nas
ciências naturais.
De forma determinista faremos referência a alguns textos de Engels
neste momento para tentarmos entender a peculiaridade de seu pensamento –
de sua produção teórica – respeitando a sequência cronológica, a saber: i) Do
socialismo utópico ao socialismo científico (escrito em 1877 e publicado pela
primeira vez em francês, em 1880); ii) Dialética da Natureza (escrito entre 1872
e 1882 e permaneceu em manuscritos – é uma obra inacabada); iii) Ludwig
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (escrito em 1886 e publicado no
mesmo ano na revista Neue Zeit).
Engels sustentava que o primeiro filósofo a compreender a dialética foi
Aristóteles até culminar em Hegel. O idealismo objetivo propiciou o surgimento
do materialismo, mas este já existia desde os gregos até chegar ao
materialismo do século XVIII na França.
“Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos inatos, espontâneos, e a cabeça mais universal de todos eles – Aristóteles –
200
chegara já a estudar as formas mais substanciais do pensamento dialético. Em troca, a nova filosofia, embora tendo um ou outro brilhante defensor da dialética (como, por exemplo, Descartes e Espinosa) caía cada vez mais, sob a influência, principalmente, dos ingleses, na chamada maneira metafísica de pensar, que também dominou quase totalmente entre os franceses do século XVIII” (Ibidem, p. 39).
Engels também enfatiza que desde os gregos havia a preocupação de
estudar o movimento das coisas e foi Heráclito o primeiro a admitir que todas
as coisas fluem, não são estáticas. Mas como estudar o movimento das
coisas? Para poder entrar nos detalhes das coisas era necessário investigá-las
isoladamente. Os gregos faziam isto, mas sem considerá-las primariamente.
Conforme Engels, as separações e acumulação de materiais eram realizadas
de forma que poderia se fazer comparações e até mesmo as devidas
classificações. As ciências exatas naturais não eram adotadas pelos gregos e
só vieram a ganhar sentido na metade do século XV na Europa. Os objetos
naturais foram submetidos aos estudos e à pesquisa interna. Eram analisados
os processos isoladamente e não se conservam dentro de uma análise do
todo. Os métodos que foram transportados de Bacon e Locke para a filosofia
culminaram no “método metafisico de especulação” (Ibidem, p. 39).
“Para o metafísico, as coisas e suas imagens no pensamento, os
conceitos, são objetos de investigação isolados, fixos, rígidos, focalizados um após o outro, de per si, como algo dado e perene. Pensa só em antítese, sem meio-termo possível; para ele, das duas uma: sim, sim; não, não; o que for além disso, sobra. Para ele, uma coisa existe ou não existe; um objeto não pode ser ao mesmo tempo o que é ou outro diferente. O positivo e o negativo se excluem em absoluto. A causa e o efeito revestem também, a seus olhos, a forma de uma rígida antítese” (Ibidem, p. 39).
É o método dialético que tem condições de considerar as antíteses não
isoladamente, mas na sua dinâmica.
“A natureza é a pedra de toque da dialética, e as modernas ciências naturais nos oferecem para essa prova um acervo de dados extraordinariamente copiosos e enriquecidos cada dia que passa, demonstrando com isso que a natureza se move, em última instância, pelos caminhos dialéticos e não pelas veredas metafísicas, que não se move na eterna monotonia de um ciclo constantemente repetido, mas percorre uma verdadeira história” (Ibidem, p. 40).
201
É a filosofia alemã moderna que tem o mérito de ter colocado a
dialética e de ter possibilitado conceber o mundo da natureza e da história
como um processo. O idealismo tem o mérito de ter realizado este processo, o
idealismo hegeliano, o idealismo objetivo. O idealismo levou ao surgimento do
materialismo, mas, inicialmente, o materialismo mecanicista. Considerando no
campo social, o materialismo mecanicista ainda estava preso ao naturalismo
sem conseguir constatar as contradições. É com Marx que o materialismo
ganha caráter dialético capaz de desvelar as contradições do modo de
produção capitalista. Engels então enfatiza não somente aqui, mas
constantemente que “o materialismo se converte em uma ciência” (Ibidem, p.
44).
Para Engels, o filósofo materialista Feuerbach marca o definitivo
rompimento com toda a filosofia clássica alemã. Os alemães fizeram uma
revolução filosófica, mas há muita diferença comparada com a revolução
política que a França fez, pois esta enfrentou os poderes constituídos que
ainda sustentavam os últimos resquícios do poder da Idade Média. Os alemães
preferiam filosofar a fazer a revolução.
Assim, quando Hegel surgiu com sua tese tão conhecida “tudo que é
racional é real e tudo que é real é racional” atraiu tantos “governos míopes”. E
para Engels o passivismo da Alemanha justificava tudo que existia como uma
vontade geral. Mas para Hegel não é tão simples assim essa tese, comenta
Engels, que pudesse justificar tudo o que existe pelos governos e pelos seus
súditos. Na doutrina de Hegel, “o atributo da realidade corresponde apenas ao
que, além de existir, é necessário”. O que é necessário para Hegel deve se
manifestar como real, ou seja, os “prussianos tinham o governo que mereciam”.
A realidade para Hegel não se constitui absolutamente num atributo
inerente a uma situação social ou política imutável. Por exemplo, na Revolução
Francesa, o irreal passou a ser a Monarquia e o real a Revolução. Então, num
processo de desenvolvimento, o real passou a ser irreal, perdeu sua
necessidade. Sim, a tese a partir da qual “tudo que é real é racional” como
fundamental traz simultaneamente outra: “tudo o que existe merece perecer”. E
para Hegel este é o caráter revolucionário, pois aquilo que poderia ser
202
considerado como definitivo foi relativizado. Neste sentido, com Hegel, a
filosofia não tem mais aquele “caráter dogmático fixo” agora residia “no
processo de desenvolvimento histórico”. Desse modo, aquilo que poderia ser
conquistado era o que poderia ser definido como uma verdade absoluta e nada
poderia ser feito senão contemplar esta verdade. Não só no campo da filosofia,
mas em outros ramos do conhecimento. Ou seja, poderíamos concluir que o
pensamento de Hegel não admitia que se pudesse chegar a algo perfeito
mesmo que o movimento fosse do inferior para o superior. Não há como
chegar no valor absoluto, absoluto é o movimento. O sistema filosófico de
Hegel inicia pelo fim quando o espírito se exterioriza e retorna novamente. Há
um fim na história e se estabelece a contradição do sistema de Hegel, pois
tudo continuará no ponto de vista teórico. Engels então aponta que o sistema
de Hegel é revolucionário por um lado, mas ao mesmo tempo a solução final
torna-se totalmente dócil e justificadora da realidade, portanto, conservadora.
Engels cita a obra de Hegel, Fenomenologia do Espírito, onde há a
preocupação em “demonstrar a existência de um fio condutor do
desenvolvimento”. O sistema criado, como qualquer sistema filosófico,
pretende “superar as contradições”. Superadas estas contradições é possível
então chegar à verdade absoluta, analisa Engels, e que tal deve ser assim sem
que se possa fazer algo.
A concepção hegeliana tomou conta de uma época e dois campos logo
assimilaram o sistema hegeliano: a política e a religião; o seu sistema filosófico
poderia ser aplicado por dois lados extremos: a conservação ou a revolução.
Sem demora os seguidores de Hegel dividiram-se em ala direita e esquerda.
Então surgiu a obra de Feuerbach: “A Essência do Cristianismo”. O
materialismo, comemora Engels, com o pensamento feuerchiano “é restaurado
no seu trono” e todas as criaturas fantásticas foram simplesmente
consideradas como imaginação dos seres humanos. Marx foi um dentre tantos
que se identificou com a concepção feuerbachiana. Mas esta obra de
Feuerbach enaltecia a essência do amor que passou a ser a referência para o
socialismo e isto passou a ser “uma praga” na Alemanha. Feuerbach, com isto,
colocou-se ao lado do sistema de Hegel, justifica Engels.
203
Engels defende que a grande questão da filosofia moderna é a relação
entre pensamento e o ser. Desde os tempos remotos, os seres humanos,
intrigados com os sonhos, buscaram explicar que o pensamento não era uma
função do corpo, mas da alma. Esta morava no corpo durante a vida e depois
da morte abandonava-o para viver em outro lugar. Surgiu também a ideia da
imortalidade da alma e muitas fábulas foram criadas, pois não se sabia o que
se poderia dizer sobre a alma depois da morte. Engels explica que esta
abstração também levou a pensar a existência de muitos deuses, mas logo isto
se direcionou para um deus exclusivo e o surgimento das religiões
monoteístas. Impunha-se então uma pergunta: Qual a relação entre espírito ou
natureza (ser ou pensamento)?
Mas esta pergunta levou imediatamente a outra sobre a sua primazia: o
espírito ou a natureza? Duas escolas dividiram-se: uma escola denominada de
idealista, considerando “o caráter primordial do espírito em relação à natureza”;
a outra escola, denominada de materialista, “a natureza constituía-se em
elemento primordial”!
Na relação pensamento e o ser há uma questão a mais a ser
considerada: “Nosso pensamento de fato tem capacidade de conhecer o
mundo?” A maioria dos filósofos respondia que havia identidade entre
pensamento e o ser, e, para Hegel, comenta Engels, esta resposta é dada por
si mesma, isto por que o ser humano “conhece do mundo real e seu conteúdo
conceitual, aquilo que faz do mundo uma realização progressiva da Ideia
Absoluta, antes do mundo e independente dele”. Conforme outro importante
princípio hegeliano, a filosofia deve imediatamente ser aplicada ao mundo
prático. Por outro lado, há um outro grupo de filósofos que nega a possibilidade
de conhecer o mundo que Engels identifica, os famosos filósofos Kant e Hume.
A refutação contundente, segundo Engels, para romper com estas
“manias” filosóficas, “é a prática”. De acordo com Engels, no longo período de
“Descartes a Hegel” e de “Hobbes a Feuerbach” predominava o que ele chama
de “pensamento puro”. Feuerbach é um hegeliano que parte do idealismo para
o materialismo e não admitiu mais nenhuma categoria preexistente. Feuerbach
foi muito profundo na análise do cristianismo, mas fez pouquíssimas menções
204
sobre a sociologia ou a teoria social. Não conseguiu sair “do reino das
abstrações”, acusa Engels, mas o seu mérito foi trazer de volta o mundo real –
a natureza e a história – em comparação com a teoria hegeliana. Somente
assim foi possível aplicar esta linha filosófica, conforme Engels, “a todos os
domínios possíveis do conhecimento”.
Os que prolongaram a filosofia hegeliana foram David Strauss (1808-
1874), Marx Stirner (1806-1856), Bruno Bauer (1809-1882) e Ludwig
Feuerbach (1804-1872). Foi este último que fez a crítica mais contundente
contra a filosofia hegeliana, mas, conforme Engels, parou no meio do caminho,
porque “era por baixo materialista e por cima idealista”. Empanturrou-se com
uma “balofa religião do amor”. Mas uma outra filosofia surgiu que, na opinião
de Engels, deu fruto e que está associada ao nome de Karl Marx.
Esta corrente inaugurada por Marx considerava que a filosofia
hegeliana tinha seu lado revolucionário e, além disso, não se poderia deixá-la
simplesmente de lado como o fez Feuerbach. A filosofia hegeliana enfrentou o
método metafísico e este foi seu mérito. Mas enquanto método, conforme
Engels, não tinha nenhum sentido, “era inútil”. Por quê? “Por que em Hegel a
dialética é o autodesenvolvimento do conceito”. Para Engels, este exercício
conceitual não passava de um vai e vem sem fim e sugere colocarmos as
análises na perspectiva materialista e olharmos para os objetos reais. Marx
enfatizou isto de outro modo para mais fácil compreensão utilizando uma
metáfora. A filosofia alemã descia do céu para terra, mas o que se propunha
numa perspectiva materialista é justamente o contrário, o método se propunha
a ir da terra para o céu. Mas o aspecto fundamental aqui, para reforçar esta
compreensão de Engels, é que “a vida determina consciência” e não o inverso
(MARX, 2007, p. 94).
Nesta mesma direção, Engels propunha um método que não seria
aplicado apenas no campo da ciência da natureza, mas também defende sua
aplicação na história da sociedade. A história para ele sempre “orientava-se
sob o império da necessidade, para um objetivo ideal, fixado antecipadamente”.
Engels defende que “a história do desenvolvimento da sociedade é diferente da
história do desenvolvimento da natureza”. Histórica é a história da ação do ser
205
humano, pois se excluirmos a ação humana – o que poderia ser dito? Todos os
fenômenos na natureza, mesmo que ocorram por acaso, há uma explicação
porque são “regidos por leis”. Da mesma forma, se aplicado este princípio na
história da sociedade teremos que estabelecer leis para entender a realidade,
mas “leis gerais imanentes”. Mesmo que se tenham os fins, Engels chama
atenção para a dificuldade de realização destes fins. Há muitos desejos na
sociedade, mas “as consequências são diversas” daquelas que são propostas.
Desta forma, “os acontecimentos históricos” também são compreendidos pelo
“acaso”. Mas ali onde reina o acaso há “leis imanentes ocultas” que precisam
ser desvendadas, insiste Engels. O importante é perguntar quais forças
propulsoras agem por de trás desses objetivos e “quais as causas históricas
que, na consciência dos homens, se transformam nesses objetivos”. Não é
possível, portanto, analisar a história sob o ponto de vista singular, mas
analisar no seu conjunto e analisar as transformações históricas.
A dialética da Natureza é uma obra incompleta e nem chegou a ser
preparada para impressão. Engels trabalhou nela durante o período de 1872 a
1882 e só veio a ser publicada em 1925 na URSS (sob coordenação de
Riazanov). O fato de Engels ter se empenhado nesta obra durante quase uma
década, sem ter conseguido terminá-la, demonstra a sua grande preocupação
com a sistematização para esclarecer a aplicação do Método Dialético. Não
havia nenhuma obra de Marx que tivesse diretamente tratado deste assunto.
A concepção de ciência para Engels parece que não estava
direcionada apenas para a análise das transformações sociais. Via-se na
dialética a ciência das leis gerais da transformação, não só vinculada ao
pensamento ou à sociedade, mas também ao mundo exterior. Esta perspectiva
de Engels nós podemos ver também na obra de Lênin, Materialismo e
Empiriocriticismo, onde se reforça a utilidade da dialética para entender a
natureza, ou seja, poderia ser aplicado na física, na astronomia, na geologia,
na química e na biologia. É na parte com o título Natureza Geral da Dialética
como Ciência que encontramos resumidamente as leis da dialética que Engels
enumera e que são referências até nos dias de hoje:
206
“As leis da dialética são, por conseguinte, extraídas da história da Natureza, assim como da história da sociedade humana. Não são elas outras senão as leis mais gerais de ambas essas fases do desenvolvimento histórico, bem como do pensamento humano. Reduzem-se elas, principalmente, a três: 1) A lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa; 2) A lei da interpenetração dos contrários; 3) A lei da negação da negação” (ENGELS, 1979, p. 34).
Estas leis foram extraídas da lógica de Hegel, mas como Engels
comenta, foram aplicadas equivocadamente por ele, pois não se
fundamentavam na observação, mas como produção do pensamento. Engels
conseguiu apresentar, e parece incompleto ainda, a primeira lei: “Lei da
transformação da quantidade em qualidade e vice-versa”, e no manuscrito
deixado por Engels, não temos o prosseguimento da análise. Na análise sobre
esta lei permanecem os exemplos voltados para ciência natural. Nos
apontamentos de Engels que datam de 1873 e 1882 encontramos o título
Dialética e Ciência. Queremos destacar três passagens: i) existem duas
tendências filosóficas: a metafísica (que lida com as categorias físicas; e a
dialética (lida com categorias fluidas desenvolvidas por Aristóteles e Hegel).
Tratar as categorias estáticas tais como – antecedente e consequente, causa e
efeito, identidade e diferença, essência e aparência – não se sustentam. Estas
categorias são provas de que os polos não são isolados, mas um está presente
no outro. Isto em Hegel aparece de forma “mística” em razão de admitir que
aparecem as categorias antes mesmo de sua existência e a dialética do mundo
real é um reflexo, o que não é correto, o cérebro é reflexo do movimento do
mundo real (Ibidem, p. 127). ii) A maior parte dos pesquisadores ainda
permanece na concepção de que a identidade e a diferença são inconciliáveis
e não conseguem considerar os polos interagindo. É o sentido ainda metafísico
presente nas pesquisas, pois se considera tudo permanente. A ciência da
natureza refuta esta ideia. iii) A lógica de Hegel explica a contraposição com a
“velha lógica” que só tem formalidade, não faz conexões do que é enumerado e
pode chegar a tantas conclusões. A lógica dialética procura fazer as conexões
e subordiná-las entre si “desenvolvendo as formas superiores a partir das mais
inferiores” (Ibidem, p. 182). Cita um exemplo: o atrito produz calor, mas até o
ser humano chegar a esta conclusão não foi de forma imediata. Foi necessária
uma série de acúmulos. Ou seja, o primeiro julgamento que podemos
207
considerar como singular é de que um procedimento isolado produz calor; o
segundo julgamento da ordem particular é de que uma forma específica de
movimento mecânico produz calor; por fim, a lei de que um movimento se
transformou em outro passa a ser de ordem universal. É neste sentido que um
exemplo simples na sua origem ganha complexidade e é possível de se fixar
como uma lei, uma lei universal (Ibidem, ps. 182-183).
Podemos então concluir que as determinações do objeto real são
compreendidas, subordinando o superior ao inferior, ou seja, do mais simples
para o mais complexo, no que poderá se configurar nas possibilidades de
generalização.
Três tipos de citações Vigotski faz constantemente a Engels em seus
escritos:
1) não há como negar “as raízes genéticas” do pensamento e da
linguagem nos animais até chegar no intelecto e na linguagem dos seres
humanos e tornando-se cada vez mais distintos. Esta base “evolucionista” é
enfatizada na história do desenvolvimento das funções psicológicas superiores
que está em relação às funções psicológicas elementares (VIGOSTKI, 2014 a,
p. 113);
2) as ciências naturais exigem um método de pesquisa que deve partir
das hipóteses. Quando se torna impossível a plausibilidade de explicações
sobre velhas hipóteses é necessário elencar novas num campo, quase sempre,
limitado de dados e observações. A acumulação de dados possibilita elaborar
novas leis. Não é possível aguardar que os dados sejam obtidos
espontaneamente – esta atitude não favorece a criação de novas leis
(VIGOTGSKI, 2012);
3) o emprego de ferramentas é uma atividade especificamente humana
e por essa razão é possível transformar a natureza. Ao usar os instrumentos, o
ser humano deixa de se submeter à natureza no seu aspecto apenas exterior
para assumir uma postura de governo sobre o que faz (VYGOTSKI, 2014 a, ps.
61, 85, 86, 93-94, 119).
208
A Dialética da Natureza suscitou muitas críticas, as resumimos
rapidamente em duas. Primeira, a ênfase de Engels em transpor as mesmas
regras de análise da ciência natural para análise da história e da sociedade;
segunda, a criação de leis, e, posteriormente as categorias. Ao fazer a defesa
por uma ciência baseada nas ciências da natureza há uma necessidade de
combater o caráter místico do idealismo, mas o rigor das leis possibilitou uma
vertente que se enraizou no fundamentalismo e que rapidamente caiu no
materialismo denominado de mecanicista. Com a definição de leis da dialética,
tende-se a estabelecê-las como referências determinantes.
Mas as polêmicas não param por aí. A questão fundamental é que
Engels refugia-se na ciência natural, na ciência da natureza para explicar os
rumos da sociedade socialista. Nós entendemos que não é a mesma forma
adotada por Marx, que raramente explicitou o método dialético. Nos raros
momentos em que escreveu sobre isso, referiu-se como um caminho para
fundamentar uma teoria social. Entendemos que a teoria engeliana teve um
predomínio no período stalinista da Rússia soviética. Logo no início da
Revolução Socialista e no momento de implementação do socialismo na
Rússia soviética também era notório esta referência em Lênin, mas logo foi
superada por uma perspectiva da práxis. Este caminho que Lênin percorreu
com sua teoria também foi um caminho de Vigotski. No início, foi influenciado
pela hegemonia das concepções objetivistas, reflexológicas, mas podemos
verificar que no final de sua vida Vigotski começou a buscar muito mais a
referência de Lênin tardio.
209
Capítulo 12: Dialética da Práxis
Vladimir Ilitch Lênin foi um profundo estudioso das obras de Hegel,
Feuerbach, Marx & Engels. Em 1914, redigiu uma nota biográfica de Marx e
uma exposição sobre o marxismo para o Dicionário Enciclopédico Granata, que
era muito famoso na Rússia. Este artigo foi concluído quando residia em
Berna/Suíça e seu teor é muito preciso com detalhes sobre a vida de Marx.
Nossa preocupação aqui não se aterá à nota biográfica, mas à interpretação
que Lênin faz de Marx neste período de vida, sua interpretação sobre o
marxismo.
Lênin afirma que Marx foi “materialista” e “partidário de Ludwig
Feuerbach”; o único aspecto ao qual não concordava era a sua “falta de
coerência e de universalidade do seu materialismo”. A filosofia de Marx &
Engels é fundamentada na materialidade:
"A unidade do mundo não consiste no seu ser... A unidade real do mundo consiste na sua materialidade e esta última está provada... por um longo e laborioso desenvolvimento da filosofia e das ciências naturais... O movimento é o modo de existência da matéria. Nunca e em parte alguma houve nem poderá haver matéria sem movimento... Matéria sem movimento é impensável do mesmo modo que movimento sem matéria... Mas, se se pergunta, depois disso, o que são o pensamento e a consciência, e donde provêm, conclui-se que são produtos do cérebro humano e que o próprio homem é um produto da natureza, o qual se desenvolveu no seu ambiente e com ele; daí se compreende por si só que os produtos do cérebro humano que, em última análise, são igualmente produtos da natureza, não estão em contradição, mas sim em correspondência com a restante conexão da natureza” (LÉNINE V. I., KARL MARX - Breve esboço biográfico seguido de um esboço do Marxismo (1914), 1977 b)58
Este materialismo, contudo, não poderia ser comparado com o de
Feuerbach e nem com de outros materialistas identificados por Marx e Engels
como “materialistas vulgares”. Lênin identificava três características:
1 - que este materialismo era "essencialmente mecanicista" e não tomava em conta os progressos mais recentes da química e da biologia (atualmente conviria acrescentar ainda a teoria eléctrica da matéria);
2 - que o velho materialismo não tinha um caráter histórico nem dialético (sendo pelo contrário metafísico, no sentido de antidialético)
58 Cit. LÊNIN da obra de Marx & Engels – Anti-Dühring.
210
e não aplicava a concepção do desenvolvimento de forma consequente e sob todos os seus aspectos;
3 - que concebia a "essência humana" como uma abstração e não como o "conjunto de todas as relações sociais" (concretamente determinadas pela história), não fazendo assim mais do que "interpretar" o mundo, enquanto aquilo de que se tratava era de o "transformar", ou, por outras palavras, não compreendia a importância da "atividade revolucionária prática" (LÊNIN, 1977b).
Para Lênin, Marx adaptou e desenvolveu a filosofia de Hegel e salvou a
dialética do descalabro do idealismo. A dialética é tanto o que é compreendido
em Marx como em Hegel, pois a teoria do conhecimento “deve considerar o
seu objeto historicamente, estudando e generalizando a origem e o
desenvolvimento do conhecimento, a passagem do não conhecimento ao
conhecimento” (Ibidem, p. 33). Para Lênin, esta descoberta da concepção
materialista da história nos fenômenos sociais
“(...) eliminou um dos defeitos principais das teorias anteriores, pois
analisava-se a atividade histórica dos homens “sem investigar a origem, sem apreender as leis objetivas que presidem ao desenvolvimento do sistema das relações sociais e sem descobrir as raízes dessas relações no grau de desenvolvimento da produção material” (Ibidem).
Para Lênin, o materialismo dialético é a única filosofia verdadeira das
ciências da natureza e, no capítulo II, quando trata da “teoria do conhecimento
do empiriocriticismo e do materialismo dialético”, cita Engels que coloca como
uma das principais questões da filosofia “a questão da relação do pensamento
com o ser, do espírito com a natureza”. Esta questão divide duas grandes
filosofias, de um lado os materialistas e de outro os idealistas. Mas o desafio
fundamental é outro que Engels aponta em duas perguntas: “que relação existe
entre os nossos pensamentos acerca do mundo que nos rodeia e este próprio
mundo? Podemos nós, nas nossas representações e conceitos sobre o mundo
real, formar um reflexo correto da realidade?” (LÊNIN, 1982, p. 75). Os
idealistas e os materialistas defendem a possibilidade de conhecer o mundo,
mas há filósofos que contestam esta possibilidade, por exemplo, os mais
conhecidos: Hume (1711-1776) e Kant. Lênin afirma que estes nem deveriam
figurar como modernos e que para refutar suas teorias só há uma alternativa: a
práxis (Ibidem, p. 76). No momento que se pode provar que um dado
211
fenômeno é produzido por nós mesmos, podendo ser criado a partir de suas
próprias condições e que possam servir aos nossos fins, “acaba-se com a
coisa em si inapreensível” como insistem Hume e Kant. Se esta definição não
tem validade então caímos no relativismo, pois podemos suscitar que tudo o
que é desconhecido é uma coisa em si, totalmente descabido.
Lênin chega então a três “importantes conclusões gnosiológicas”: 1)
“as coisas existem independentemente da nossa consciência”; 2) “não há nem
pode haver absolutamente nenhuma diferença de princípio entre o fenômeno e
a coisa em si”; 3) “na teoria do conhecimento, como em todos os outros
domínios da ciência deve-se raciocinar dialeticamente, isto é, não supor o
nosso conhecimento acabado e imutável, mas analisar de que modo da
ignorância nasce o conhecimento” (Ibidem, p. 77-78). Por mais que soe como
uma ortodoxia esta afirmação de Lênin sobre a dialética: a dialética é para ser
aplicada em todos os domínios da ciência – estamos aqui entendendo que está
se baseando na Dialética da Natureza de Engels para que seja possível aplicar
a dialética como se aplica nas ciências naturais. Deixando esta questão
doutrinal de Lênin de lado e enfatizando que a dialética deve partir de um não
saber para um saber, do simples para o complexo, está considerando que a
ciência não tem limites ou então que não se deve colocar restrições a priori
para a pesquisa. Esta é uma característica fundamental que irá marcar a
década de 20 na URSS sem precedentes. Mas esta condição irá mudar.
Queremos nos estender um pouco mais nos estudos sobre a dialética
em Lênin. Em seus “cadernos filosóficos” (1914-1916) podemos analisar mais
de perto sua concepção dialética. Lênin está confrontando inicialmente aqueles
que usam o marxismo mais para confundir do que para esclarecer. Estes são
os empiriocriticistas – são aqueles que sustentam que a revolução se dará pelo
parlamento. Entre esta discussão ou outras, Lênin está defendendo a filosofia
marxista que está atenta à realidade e está “a serviço de um objetivo político
imediato”. Para finalizar esta parte, iremos nos ater a duas passagens que
constam nos “cadernos filosóficos”. A primeira é extraída da página 349 da
212
Ciência da Lógica de Hegel59. Temos que transcrever o texto extraído por Lênin
da Ciência da Lógica para uma análise mais minuciosa.
“(...) assim, o conhecimento avança de conteúdo em conteúdo. Em primeiro lugar, esta progressão é determinada pelo fato de começar por determinações simples, e por as seguintes se tornarem continuamente mais ricas e mais concretas. De fato, o resultado contém o seu princípio, e o seu movimento enriqueceu-o com uma nova determinação. O universal constitui o fundamento; é por isso que não convém encarar a progressão como uma certa passagem de uma coisa à outra. No método absoluto, o conceito conserva-se no seu outro, o universal na sua fragmentação, no juízo e na realidade; ele eleva toda a massa do seu conteúdo adquirido a cada grau da determinação seguinte e, em virtude da sua progressão dialética, não só nada deixa para trás, como arrasta tudo o que adquiriu, enriquece-se e condensa-se em si próprio” (ALVIM & RIBEIRO, 1975)60.
Fazemos a mesma pergunta de Lênin: “Não considero clara esta
distinção; o absoluto não será igual ao concreto?” (Ibidem, p. 99). O que “é” é
concreto para Hegel? Lênin chega a mencionar que Engels estava certo
quando escreveu: “o sistema de Hegel é um materialismo às avessas”. Na
última anotação do caderno sobre a Ciência da Lógica, surpreende-se ao
constatar que “a obra mais idealista de Hegel há menos idealismo, e mais
materialismo”. “É contraditório” afirma ele, “mas é um fato!” (Ibidem, p. 103).
Na segunda passagem de seus Cadernos Filosóficos Lênin sistematiza
16 elementos da dialética. São eles:
1. “Objetividade da análise (a coisa em si mesma); 2. Todo o conjunto das relações múltiplas desta coisa com outras; 3. O desenvolvimento desta coisa, o seu movimento próprio; 4. As tendências internas contraditórias nesta coisa; 5. A coisa como unidade dos contraditórios; 6. O desenvolvimento destas contradições; 7. A unidade da análise e da síntese”;
A dialética poderia se definir como “unidade dos contraditórios” para
captar “o núcleo da dialética”. Contudo, para entender este núcleo é necessário
“explicações e desenvolvimento” que passaremos a destacar:
8. “As relações de cada coisa são não só múltiplas, mas universais; 9. Não só a unidade dos contraditórios, mas as transições de cada determinação;
59 Na edição russa a qual Lênin se refere. 60 ALVIM & RIBEIRO (1975) organizaram textos de Marx, Engels, Lênin e Mao-Tsé-Tung num livro que intitularam: Antologia sobre o materialismo dialético. Os organizadores do livro citam os referidos autores em textos que analisam o materialismo dialético. A presente citação de Hegel foi extraída da pág. 100-101.
213
10. Processo infinito de descobertas; 11. Processo infinito de aprofundamento do fenômeno à essência menos profunda
à essência mais profunda; 12. Da coexistência à causalidade e de uma forma conexão e de interdependência
a uma outra; 13. Repetição na fase superior de certos traços da inferior; 14. Aparente retorno do antigo; 15. Luta do conteúdo com a forma e inversamente; 16. Passagem da quantidade à qualidade e vice-versa” (Ibidem, p. 92-93).
Para que não fique a análise dialética com esta complexidade de dados
para serem considerados, identificamos outra passagem bem mais elaborada
para entendermos sua concepção da dialética.
“A lógica dialética exige que cheguemos mais longe. Para conhecer realmente um objeto, é preciso apanhar e estudar todos os seus aspectos, todas as suas ligações e ‘mediações’. Nós não o conseguimos jamais completamente, mas a necessidade de considerar todos os aspectos nos protege de erros e de lapsos. Eis um primeiro ponto. Segundo, a lógica dialética exige que se considere um objeto em seu desenvolvimento, seu ‘movimento próprio’ (como o diz às vezes Hegel), sua transformação. (...) Terceiro: toda a prática do homem deve entrar na ‘definição’ completa do objeto, a um tempo como critério da verdade e como determinante prático da ligação do objeto com que é necessário ao homem. Quarto: a lógica dialética ensina que ‘não há verdade abstrata’, que ‘a verdade é sempre concreta’” (cit. FERNANDES, 2012, p. 246)61.
Em razão do que aconteceu com a política soviética após a morte de
Lênin, muitos de seus textos foram controlados pela hegemonia stalinista.
Então, por um longo período, subestimou-se o caráter sempre desafiador e
aberto de Lênin. Citamos um autor que analisa esta condição e suas
peculiaridades:
“Buscam subestimar seu aporte teórico, ou esfumá-lo ao reduzir a figura de Lênin à de um homem de ação. É a posição daqueles que pretendem que a teoria, e em particular a filosofia, permaneça “pura”, não contaminada pela política. As intervenções teóricas de Lênin são apresentadas como incursões estranhas ao seu próprio campo de atividade: a política ou, em outros casos, sem nexo interno, vivo com ela. Mas, então, por que esse político prático, revolucionário, teoriza? Apenas – argumenta-se – para justificar uma prática; apenas pragmaticamente. O pragmatismo foi imputado a Lênin de forma infundada a partir dos campos hostis ao marxismo. No entanto, não se reparou suficientemente que uma caracterização semelhante foi feita por quem desempenhou um papel decisivo na codificação das ideias de Lênin como leninismo. Referimo-nos, por certo, a Stalin. Sem dúvida, não foi ele quem viu, em 1924, pouco depois da morte de Lênin, “no sentido prático norte-americano” um dos dois traços – o outro era o impulso revolucionário – característico do estilo leninista? Folga dizer que este ‘sentido prático norte-americano’ é o que
61 LENIN, V. Oeuvres. Vol. 32 (dezembro de 1920/agosto de 1921, p. 94).
214
encontra expressão na filosofia burguesa mais distintiva dos Estados Unidos, o pragmatismo, e que nada tem a ver com as ‘teses sobre Feuerbach’ nas quais esse conceito sórdido de prática é expressamente rejeitado” (VAZQUEZ, 2011, p. 178-179).
Para compreendermos a mudança da política soviética basta analisarmos
a obra Sobre o Materialismo Dialético e Histórico, de Josef Stalin, publicada em
1938. O livro tem o estilo de um manual ou de um material doutrinário de
propaganda. Qual a diferença entre materialismo dialético e histórico na versão
stalinista? O materialismo dialético é assim chamado “porque o seu modo de
abordar os fenômenos da natureza, seu método de estudar esses fenômenos e
de concebê-los, é dialético, e sua interpretação dos fenômenos da natureza,
seu modo de focalizá-los, sua teoria é materialista” (STALIN, 1945, p. 01). Já o
materialismo histórico “é a aplicação dos princípios do materialismo dialético ao
estudo da vida social, aos fenômenos da vida da sociedade, ao estudo desta e
de sua história” (Ibidem, p. 01). ALTHUSSER (2013) declara que este texto de
Stalin “não tem nada de marxismo”, mas concorda com Stalin em retirar da
dialética “a negação da negação” “para salvar a teoria dialética marxiana do
ridículo” 62. Como seria uma dialética sem a negatividade? Não concordamos
com esta interpretação porque a retirada da negatividade é retirar o sentido da
dialética, o serviço do negativo é o que torna possível considerar a unidade dos
contrários. Muitos comentadores recorrem a Althusser para explicar a distinção
entre o materialismo histórico e o dialético, mas não se atentam para esta
questão específica que desqualifica a força da dialética.
O grande debate sobre a teoria marxiana é a relação entre Marx e
Hegel. Qual é a influência de Hegel sobre Marx? Lênin, ao ler a Ciência da
Lógica, de Hegel, percebeu sua importância a ponto de afirmar que Marx seria
incompreensível sem este pré-estudo. Não foi esta a perspectiva de Stalin que
desfigurou a dialética justificando-a sem considerar as mediações para
compreender esta realidade.
Vigotski tem uma mesma atitude na relação com a ciência que teve
Lênin e por isso não o retiramos da condição de uma época. Assim como
muitos foram perseguidos e até assassinados por adotarem uma compreensão
62 MARX, Karl. O Capital, 2013 (Advertência aos leitores do Livro I D’Capital).
215
mais aberta do materialismo histórico dialético no período de Stalin, também
Vigotski, no final de sua vida, estava enfrentando problemas com suas
concepções teóricas no campo da psicologia. Lênin enfrenta na sua práxis um
fenômeno constante que poderíamos denominar “indeterminação”, pois se
impunha na dinâmica social a tendência ou para o espontaneísmo ou então
tendências fechadas, deterministas e burocráticas. A política era sempre um
campo aberto e a tendência para predeterminações era um risco que se
identificava com os preceitos deterministas. Nós não temos como subtrair de
Lênin toda sua base materialista com fundamento histórico dialético e, da
mesma forma, se o fizermos com Vigotski transformaremos sua teoria não
numa perspectiva da práxis, mas meramente pragmática. É por essa razão que
defendemos que a gnosiologia de Vigotski é materialista histórico-dialética,
mas, mais do que isso, ela é fruto das condições sociais de um tempo sem a
qual não chegaria na sua síntese teórica. Contudo, o que faremos com esta
teoria hoje, em condições bem diferentes de sua época, é algo muito diverso,
mas as premissas estabelecidas são desafiadoras na psicologia em particular –
e dentro dos dilemas atuais da civilização em geral.
Pode-se recorrer a Marx para compreender a relação entre política e
história que se vincula à dialética como caminho, que está vinculada a um jogo
aberto que lida com as tensões, conflitos, limites, obstáculos para encontrar um
fim – síntese entre o pensamento e o mundo. Encontramos esta reflexão em As
Aventuras da Dialética de Merleau-Ponty, cujo título nos remete às dimensões
do inesperado, indeterminado – que exige de um ser humano a atitude ativa e
capacidade para se posicionar no mundo e sair do estado de confortabilidade,
ou melhor, de espectador. Nesta perspectiva podemos inserir Lênin nesta
dinâmica por toda história de liderança do Partido Comunista e por ter
empreendido coletivamente as mudanças, e, por isso, entendia que o ser
humano deveria fazer história e não ficar na posição de contemplação, o que
significa participar na reconstrução das estruturas institucionais em prol de um
futuro novo. É a mais esta razão que congregamos Vigotski, que estava muito
conectado ao seu tempo, não no campo da política, mas da psicologia. Embora
não seja possível fazer esta dissociação, é a política que determina a
psicologia e não o inverso. Da mesma forma, não é a economia que determina
216
a política, mas o contrário. A teoria vigotskiana foi construída no campo aberto
da dialética e torna-se totalmente anacrônica em um ambiente no qual não se
garanta o compromisso mesmo da dialética. Citemos um exemplo, muitas
vezes utilizado como uma prática diagnóstica para o simples processo de
desenvolvimento cognitivo. A Zona de Desenvolvimento Proximal é uma
alternativa para atuar entre a dimensão real do saber e a dimensão do que não
se sabe. Como definir o que está num campo e noutro? É o que chamamos da
necessidade de por-se entre as contrariedades. Outro exemplo, como definir as
idades na relação com a formação das funções psicológicas superiores sem
considerar o que é possível em determinados momentos da vida de uma
criança ou de um adolescente em ambiente escolar? Definir estaticamente
estágios compromete ou anula a possibilidade de encontrar as determinações
do concreto. Impede a atuação da dialética. É por essas razões que definimos
que o materialismo histórico dialético de Vigotski está enraizado na perspectiva
revolucionária de base leniniana, isto porque é a prática social que determina
quais os problemas devem ser colocados como prioridade nas pesquisas.
Evidentemente que não é possível ignorarmos o que MARX & ENGELS
produziram, mas a articulação política de ambos nunca foi possível encontrar
uma situação favorável para transformar a realidade. Isso foi possível na
Rússia soviética.
Vigotski procurava por meio do método marxiano (e mais elaborado por
Lênin) um caminho para encontrar “a verdadeira ciência da psicologia”, uma
psicologia materialista histórica. Julgava que a obra maior de Marx
representava a síntese do uso materialismo dialético enquanto ciência mais
geral. O materialismo histórico representa a aplicação do materialismo dialético
para análise crítica da economia política. Por outro lado, haveria de ter um
materialismo psicológico que pudesse constituir-se como teoria filosófico-
metodológica de nível intermediário, capaz de fazer a mediação entre o que é
abstrato no materialismo dialético e as questões concretas com as quais a
psicologia se ocupa. É a partir desta mediação que é possível extrair um
conjunto de categorias a partir do concreto, por isso a psicologia dialética de
Vigotski poderia ser chamada também de psicologia concreta.
217
Capítulo 13: A Dialética sob crítica
Depois da Segunda Guerra Mundial, a promessa de um sujeito político
carregar exclusivamente a tarefa da transformação social começou a ser
relativizada pelos resultados da organização social e política do bloco da
URSS. Não significa que os debates diminuíram em torno da emancipação
humana, mas ainda havia um espírito apreensivo para entender as causas da
guerra.
No último quartel do século XX as obras de Vigotski começam a ser
divulgadas no ocidente e depois da queda do muro de Berlin (1989) com mais
intensidade. Qual a importância que tem a teoria de Vigotski em contextos
totalmente diferentes do qual fora criada? E o que significa a teoria vigotskiana
hoje na Rússia? A psicologia vigotskiana, no final do século XX, insere-se no
âmbito da psicologia crítica. O que nos chama atenção é que neste período os
marxistas começaram a sair dos referenciais ortodoxos e a enfrentar as
questões mesmas em suas realidades locais ou regionais. Como já havíamos
nos referido anteriormente, no início do século XX, algumas escolas marxistas
abandonaram os fundamentos revolucionários, o que coincidia no abandono da
dialética.
O capitalismo tem os processos de produção fundamentados na
crescente concentração dos expropriadores em razão da crescente
concentração do capital. Esta é sua natureza intrínseca e para transformar este
sistema somente um sujeito histórico seria capaz de se libertar do jugo das leis
que regulam e legitimam a exploração. Este sujeito histórico só poderia ser a
classe proletária. Os revisionistas, pelo contrário, investem e acreditam nas
“leis naturais” para criar as condições adequadas para o salto natural de um
sistema político e econômico para outro. Influenciados pela teoria positivista
que também sustentava a evolução natural da humanidade até alcançar a
sociedade positiva, que seria comandada pelos empresários ou industriais.
Evidente que os revisionistas não almejavam uma sociedade nesta
perspectiva, mas ao negar-se a fazer as análises sobre a origem da exploração
se assemelhou à teoria positivista. Uma parte dos marxistas não concordava
com este desvio revisionista e o considerava antidialético, além disso, tornava-
218
se um problema para mobilização internacional dos trabalhadores. Sem a
dialética a teoria crítica assume a neutralidade e a passividade mobilizatória, e
sua teoria passa a ser uma sociologia positivista à moda socialista utópicos.
A teoria e a prática marxista (ou práxis) sem a dialética tornam-se
vazias. O método dialético é que possibilita esclarecer ou elucidar os interesses
oportunistas. Como vimos anteriormente, Lênin foi o maior combatente das
teorias revisionistas e considerava o método dialético a marca do marxismo
revolucionário. Sobre esta questão já tratamos, como já dito, anteriormente,
mas aqui é necessário destacar novamente que Lênin defende “a
predominância absoluta da política sobre a economia”, ou seja, interpretamos
que nada adianta fazer alterações ou transformações infraestruturais sem
colocar a prevalência da superestrutura com suas dimensões políticas e
culturais. O risco de colocar na prevalência uma situação inversa é o risco de
cair no burocratismo. Este foi o debate no qual a dialética esteve envolvida
depois, ou até um pouco antes, da Segunda Guerra Mundial.
O materialismo histórico, ou a ciência histórica, e o materialismo
dialético, ou filosofia marxista. Mas aqui temos um aspecto bastante polêmico
na história do marxismo, isto porque a tradição marxista tem reforçada esta
diferenciação. Contudo, alguns marxistas condenaram esta diferenciação
“reduzindo o marxismo histórico a materialismo dialético, ou de modo inverso, o
materialismo dialético em materialismo histórico”. BADIOU & ALTHUSSER, que
enfrentam esta polêmica na obra Materialismo Histórico e Materialismo
Dialético, afirmam que tal interpretação reside no fato de que a filosofia
marxista não deu a devida “amplitude e do rigor de O Capital” (BADIOU &
ALTHUSSER, 1979; pág. 33). Para os autores “o materialismo histórico tem por
objeto os modos de produção que surgiram e que surgirão na história. Estuda
sua estrutura, sua constituição e as formas de transição que permitem a
passagem de um modo de produção para outro” (Idem, pág. 34). Aqui os
autores estão se fundamentando no que se chama “ciência da totalidade
orgânica” defendida por Marx, ou seja, a formação social está dependente de
um modo de produção determinado. A totalidade está inerente à perspectiva a
ser considerada enquanto existência de uma estrutura econômica
(infraestrutura), uma superestrutura jurídica e uma superestrutura ideológica ou
219
cultural. O materialismo histórico tem esta base que estuda a natureza desta
totalidade orgânica e suas articulações. E, se tomarmos como referência o
Capital de Marx, veremos que justamente era esta a sua intenção, mas é uma
obra incompleta – pois não conseguiu tratar sobre o direito, o Estado e a
ideologia do modo de produção capitalista. É necessário, portanto, recorrer às
outras obras publicadas ou deixadas para se fazer a devida interpretação desta
totalidade orgânica. BADIOU & ALTHUSSSER chamam atenção quanto à
intenção de considerar o Materialismo Histórico e simplesmente descartar o
Materialismo Dialético. O risco de cair num historicismo é muito grande e cair
no idealismo hegeliano ao se considerar a ciência marxista uma “expressão do
seu tempo” e não um “conhecimento do seu tempo (Idem; 37). Com isto Marx
criou uma ciência, uma ciência da história, que assume um caráter especial de
“prática científica”.
Seguindo as interpretações de BADIOU & ALTHUSSER, estes alertam
para dificuldade de desenvolver um trabalho de “investigação da filosofia
marxista” considerando que recentemente as obras mais filosóficas foram
descobertas e começaram a ser analisadas pelos marxistas. Os autores
destacam que Marx faz declarações sobre “a negação da filosofia” (Idem; pág.
40). Ou seja, até Feuerbach, a filosofia era mera especulação e que a filosofia
deveria passar deste estado de especulação para um estado mesmo de
“prática concreta”. Sendo assim o materialismo dialético desapareceria e se
confundiria com o materialismo histórico. Mais do que isto, os autores também
destacam que nas obras de Marx é apenas no segundo posfácio dO Capital
que encontraremos uma exposição mais explícita sobre a dialética. As obras de
outros marxistas (Engels e Lenin) são consideradas muito mais como “medidas
defensivas urgentes” e que ficam devendo para a monumental obra de Marx.
Os autores afirmam ainda que com os estudos sobre O Capital é possível
chegar à seguinte conclusão que transcrevemos aqui:
“O Materialismo dialético é uma disciplina teórica distinta do materialismo histórico. A distinção entre estas duas disciplinas repousa na distinção que existe entre seus objetos.
O objeto do materialismo histórico está constituído pelos modos de produção, sua organização, seu funcionamento e suas transformações.
220
O objeto do materialismo dialético está constituído pelo que Engels chama “a história do pensamento”, ou o que Lenin denomina “a história da passagem da ignorância ao conhecimento”. Podemos ser mais precisos para designar este objeto como a história da produção de conhecimento enquanto conhecimento, definição que abrange e resume outras possíveis definições: a diferença histórica entre ciência e ideologia, a teoria da história da cientificidade, etc. (Idem, pág. 43).
Para deixar claro sobre a diferença de objeto que distingue estas duas
“disciplinas” os autores esclarecem mais uma vez:
“(...) no materialismo histórico, se refere à teoria da produção do ‘efeito do conhecimento’ por uma prática teórica dada. Se certos termos são comuns em ambas disciplinas, a diferença das práticas intervém nelas diferentemente sob a forma de combinações distintas e como resposta a questões distintas. Logo, o objeto do materialismo dialético é, sem dúvida alguma, diferente do objeto do materialismo histórico” (Ibidem, pág. 44).
Ainda não fica totalmente claro a abordagem que compete ao
Materialismo Dialético e, para isto, seguindo os autores em destaque que
abordam esta diferenciação, é necessário compreender a noção de teoria e
método.
“A teoria, que contém o sistema conceitual teórico no qual se pensa o objeto” e o “método que expressa a relação que mantém a teoria com seu objeto na sua aplicação ao mesmo” (Ibidem, pág. 45).
É necessário fazer esta distinção para não cair no caráter
“metodologista” ou então no empirismo simplesmente. E para concluir esta
distinção é necessário identificar como BADIOU & ALTHUSSER correspondem
a teoria e o método no materialismo dialético. Eles enfatizam que o
materialismo é uma teoria e que a dialética é um método. Contudo, cada um
dos termos está ligado ao outro. Por fim, é necessário deixar claro os princípios
do materialismo, ou seja: “1. A primazia do real sobre seu conhecimento, ou
primazia do ser sobre seu pensamento. 2. A distinção entre o real (o ser) e seu
conhecimento” (Idem; pág. 46). O materialismo dialético só pode produzir
conhecimento, portanto, considerando a história.
MARCUSE escreveu uma obra magnífica, Estado e Revolução (que é
uma de nossas referências principais) para analisar o sistema filosófico
221
hegeliano e defende a tese de que é a partir deste sistema filosófico que a
teoria social ganha importância e abrangência. Hegel analisa como o estado e
a sociedade haviam se transformado e como havia se legitimado. Marcuse
(1969) cita:
“Hegel foi o último a interpretar o mundo como razão, a sujeitar a natureza e a história aos critérios do pensamento e da liberdade. Ao mesmo tempo, ele identificou a ordem política e social efetuada pelos homens com a base sobre que se devia realizar a razão. Seu sistema trouxera a filosofia ao limiar da negação da filosofia, constituindo por isso o único elo entre as formas velhas e nova da teoria crítica, entre a filosofia e a teoria social”. (Ibidem, p. 232)
“O método, porém, que funciona neste sistema, tinha alcance muito mais amplo do que os conceitos que produziu. Pela dialética a história fora incorporada ao próprio conteúdo da razão. Hegel demonstrara que os poderes materiais e intelectuais da humanidade haviam se desenvolvido o bastante para convocar a prática social e política e realizar a razão” (Ibidem, p. 232)
Como uma primeira aproximação ao problema, podemos dizer que no sistema de Hegel todas as categorias acabam por se aplicar à ordem existente, enquanto que no sistema de Marx elas se referem à negação desta ordem. Elas visam a uma nova ordem da sociedade. Elas se dirigem essencialmente a uma verdade que está para vir através da abolição da sociedade civil. A teoria de Marx é uma “crítica”, no sentido que todos seus conceitos são uma acusação à totalidade da ordem existente” (Ibidem, p. 236).
Sob estas questões já apontamos detalhadamente nos capítulos
anteriores, mas aqui nos atemos ao que Marcuse analisa na sua obra: Três
detalhes importantes, pequenos, mas importantes: 1) é uma obra com a
seguinte dedicatória: “para Max Horkheimer e o instituto de Psicologia Social”.
Marcuse é um dos membros do Instituto de Psicologia Social (mais conhecido
como Escola de Frankfurt) com todos os problemas de reação com seus
diretores – sua origem teórica encontra-se nesta escola; 2) este livro foi escrito
em 1941 e está se posicionando sobre como o hegelianismo foi utilizado neste
período; 3) escreveu um epílogo em 1954 especialmente para este livro. É
sobre ele que aqui iremos nos ater com mais atenção.
“A derrota do Fascismo e do Nacional-Socialismo não deteve a inclinação para o totalitarismo. A liberdade está em retirada – tanto no domínio do pensamento como no da sociedade. Nem a razão hegeliana, nem a razão marxista se aproximaram da realização; nem o desenvolvimento do Espírito, nem o da Revolução tomaram a forma visada pela teoria dialética. E, contudo, os desvios eram inerentes à estrutura mesma que essa teoria havia revelado – eles não vieram de fora; nem de modo inesperado” (Ibidem, p. 401).
222
Está Marcuse constatando desvios dentro da concepção dialética? A
efetivação da razão e a liberdade não se realiza tanto numa perspectiva da
razão hegeliana como marxiana. Por que o homem é escravizado pela sua
própria produtividade? Por que adia sua satisfação? Por que não consegue se
libertar de estruturas de dominação? Conforme Marcuse, “o triunfo do Espírito
abandonava o Estado à realidade” – ou seja, o que havia se realizado no
histórico era o possível de se realizar, mas esta não consistia na “realização
final da razão” (Ibidem, p. 401). Esta permanecia numa possibilidade, numa
abstração onde “Nous” e “Theos” coincidiam. Para Marcuse a filosofia ocidental
resignava-se nesta busca pela Razão e Liberdade na divindade, ou seja, “a
divinização do Espírito implica reconhecimento da sua derrota na realidade”
(Ibidem, 401). Hegel foi o filósofo que se consistiu no último esforço para
relacionar o Espírito com a realidade, mas isso depois se tornou muito difícil, a
negatividade para Hegel é a força inerente para compreender a realidade como
também de alterar a realidade. É o trabalho da negatividade a rejeição do
positivo assim que este se interpõe para barrá-lo. Enquanto a liberdade não for
real, a razão é negação. E, se o poder da razão, em seu aspecto negativo, for
destruído? A lei positiva se instaura e desenvolve toda sua força de realização.
Podemos ver isso no progresso industrial na civilização – e sua teoria
positivista (que não é fortuito assim se denominar!) que se constitui no aparato
teórico para sustentar a eficiência dos controles para reprimir (senão liquidar) a
força do negativo. “A contradição foi absorvida pela afirmação do positivo”
(Ibidem, p. 402), enfatiza Marcuse. Qual seria a função do Espírito hoje, senão
“liquidar o poder da negatividade?”. Será que a “Razão identificou-se com a
realidade?”. Será que nestas condições o Espírito se realizou e não voltou mais
pela efetivação da positividade?
E a razão marxiana? Teria conseguido êxito? Marx cria que a sociedade
capitalista havia se desenvolvido de tal forma que poderia realizar a Razão e a
liberdade, mas deveria negá-la. Nega a sociedade capitalista para alcançar a
Razão e a Liberdade. O socialismo seria a resposta para que pudesse se
garantir o básico para todos os seres humanos e a base vinha do capitalismo –
no acirramento de suas contradições até chegar ao ápice de sua realização e
trazer os elementos para a transformação – não sem a revolução. Mas esta
223
transformação, não visão de Marx, se efetivaria com o papel preponderante e
hegemônico da classe proletária. Ou seja, a realização da liberdade. Em um
sentido estrito, comenta Marcuse, “a libertação pressupõe a liberdade: a
primeira só pode ser estabelecida se empreendida e sustentada por indivíduos
livres – livres das necessidades e dos interesses que pertencem à dominação e
à repressão” (Ibidem, p. 403). Mas como enfrentar os interesses? Há aqueles
que não reconhecerão estes preceitos libertários. Levar a dominação e a
repressão à nova sociedade seria inevitável para justamente ter que distinguir
os interesses “verdadeiros” dos “imediatos”. Neste caso, a libertação das
amarras da dominação para obtenção da liberdade tenderia a ser gerenciada
por critérios e os indivíduos transformados em objetos.
Há uma diferença do capitalismo analisado por Marx e aquele que
sobreveio mais tarde. O capitalismo no tempo de Marx era um capitalismo livre
em processo de organização – até alcançar um modelo de “capitalismo
dirigido”. Não significa que Marx não tenha percebido o processo de
transcrição, mas na efetivação deste capitalismo esperava-se a ampliação das
contradições inevitáveis. A solução revolucionária era um desfecho não natural,
mas enfaticamente uma necessidade e não mais uma contingência. Mas o que
nós assistimos na virada do século XIX para o início do século XX foi a
organização cada vez mais eficiente do capitalismo e “a força negativa do
proletariado foi sendo progressivamente reduzida” (Ibidem, p. 404). Os
trabalhadores cada vez mais foram assimilados pela força produtiva
estabelecida. A melhoria das condições de vida havia melhorado e estas
estavam em situações bem diferentes daquelas ampla e minuciosamente
descritas por Karl Marx n’O Capital. Mas a ampliação possibilitou a ampliação
também da exploração para outras partes o que resultou em guerras para
demarcar as regiões disputadas para comercialização de produtos. O
progresso tecnológico ganhou amplitude muito maior do que no século XIX e
na mesma direção as necessidades e as satisfações – aumentando com isso a
repressão e a condição de objetos na sociedade como fora tão bem explicitada
nos manuscritos Econômico-Filosóficos de Karl Marx. A crítica foi suprimida, a
ideologia burguesa torna-se triunfante “e o desenvolvimento da consciência
torna-se uma prerrogativa perigosa de marginais” (Ibidem, p. 405).
224
A produção e distribuição de mercadorias propiciaram um grau elevado
de organização administrativa e a burocracia onde predomina a neutralidade da
responsabilidade dentro do sistema tão bem enunciado por Max Weber ao
enfatizar os elevados processos de racionalização e burocratização como se o
ser humano se restringisse cada vez mais dentro de uma “jaula de ferro”.
O crescimento da produtividade do trabalho propiciou a produção em
massa, o consumo em massa e a manipulação em massa. Esta dinâmica
propiciou também a concentração econômica 63 que, associada ao avanço
tecnológico, tornou mais difícil a viabilização das estratégias revolucionárias e
porque não dizer obsoletas.
Ironicamente, a sociedade soviética contribuiu para que o ocidente se
unificasse enquanto sistema capitalista e isolasse as possibilidades de
expansão da revolução bolchevique. Por outro lado, a União Soviética utilizou
ou reproduziu a repressão e perdeu a condição de superação. Competiu com o
mundo ocidental viabilizando programas de industrialização para atingir o
progresso tecnológico.
Marcuse entende que expressões tais como “cultura popular” ou
“democracia de massa” não passam de eufemismos criados pela sociedade
industrial. Esta sociedade “conseguiu controlar sua própria dialética, com base
na sua própria atividade” (Ibidem, p. 407). Tanto o idealismo dialético como o
materialismo dialético não conseguiram dar conta de uma nova razão e nova
libertação. A libertação do indivíduo está ainda no campo da utopia, escreveu
Herbert Marcuse, no epílogo da obra Estado e Revolução (1941). Epílogo este
somente redigido em 1954, quando da sua reedição.
63 No capítulo 24 (A assim chamada acumulação primitiva), Livro I, O Capital, Karl Marx analisa a acumulação primitiva baseada inicialmente na propriedade privada individual e sua negação à propriedade privada capitalista. A acumulação é uma característica inerente do modo de produção capitalista expresso desta forma: “Com a diminuição constante do número de magnatas do capital, cada vez mais numerosa, é instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital se converte num entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um grau em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. O entrave é arrebentado. Soa a hora derradeira da propriedade privada capitalista, e os expropriadores são expropriados”. (MARX, O Capital - Crítica da Economia do Capital, 2013). Pág. 832.
225
Vivemos no século XXI com desafios diferentes da época de Vigotski,
mas os desafios tanto da área da psicologia como da educação continuam
ainda muito presentes. Como podemos entender que as relações sociais são
determinantes na formação de um sujeito? Submetidos hoje a um volume
grande de instrumentos, ferramentas, artefatos – que ficam no campo das
mediações – e que são instrumentos de comunicação de massa. Os meios
produtivos se alteraram drasticamente no início do século XXI colocando novos
desafios para libertação e emancipação humana. A teoria vigotskiana não
instiga somente compreender o psiquismo humano a partir das relações
sociais, mas continua dentro da psicologia dialética, já que não conseguiu
concluir sua teoria, o apelo para fundamentar uma unidade de análise que
possibilite potencializar o ser humano na ação. Emprestando os fundamentos
tão importantes de Espinosa e sempre referenciados como um recurso da
razão para compreensão das dimensões do psiquismo humano “padece quem
não age” e a “alegria” está ligada à ação e quem não poder agir está ligado ao
“padecimento”. É por esse sentido que a teoria vigotskiana vai se aproximando,
fora de seu contexto histórico, com a filosofia espinosana.
226
Capítulo 14: Dialética do Esclarecimento
Quando os contratualistas do século XVII iniciaram os estudos sobre
a natureza humana (HOBBES, LOCKE, ESPINOSA e mais tarde ROUSSEAU)
a grande questão residia na relação entre natureza e cultura. Sempre foi
polêmico este estudo que trata desta passagem do estado natural para o
estado Cultural. Nos escritos de Vigotski, influenciado também pelos estudos
antropológicos, é um debate central. Um estudo necessário é definir em
Vigotski seu entendimento sobre natureza e cultura, mas, antes disso,
colocaremos uma obra de grande repercussão na última metade do século XX,
que tratou deste assunto e que continua sendo referência para os debates.
Karl Popper (1902-1994) posicionou-se contra a vertente do
historicismo escrevendo o que poderia ser chamado de uma tréplica ao
exposto por Proudhon na Filosofia da Miséria e confrontado por Marx na
Miséria da Filosofia até chegar nas suas conclusões sobre A miséria do
historicismo. Popper afirma que o “historicismo é um método pobre – método
que não produz fruto algum” e “por força estritamente lógica é-nos impossível
predizer o futuro curso da História” (POPPER, p. 5). A refutação ao historicismo
ele resume em “cinco enunciados”: 1) o conhecimento humano tem um
crescimento constante; 2) não é possível “predizer” como o conhecimento
científico será expandido; 3) “não é possível prever o futuro curso da história
humana”; 4) não há como ter uma base sustentável com a predição histórica;
5) os métodos historicistas são um equívoco e tendem a aniquilar-se. As
reformas que ocorreram na área das ciências sociais levaram ao
desenvolvimento de métodos apropriados para que seja possível analisar a
realidade social. No campo da psicologia despontou-se os estudos de Wundt
que instituiu a reforma ampla nesta área com aplicação de métodos objetivos e
foram muito influenciados pelas “escolas positivistas”. Na verdade, Popper está
fazendo críticas às abordagens positivistas que tem como “principal objetivo, o
fazer predição histórica, admitindo que esse objetivo será atingível pela
descoberta dos ritmos ou dos padrões, das leis ou das tendências subjacentes
à evolução da História. Estes métodos são influenciados pelo emprego de
“metodologia naturalista”. Denomina Popper estes historicistas como aqueles
227
que defendem certas “uniformidades sociais” e acusa Marx como sendo um
dos principais representantes ao afirmar a tão famosa frase de que os filósofos
se limitam a interpretar o mundo, mas deveriam transformá-lo. Quando as
ciências sociais baseiam-se suas análises em predições sobre eventos
previstos tende a influenciar no “observador previsor”. Ou seja, Popper defende
uma ciência neutra que o pesquisador é imparcial, um observador – o que de
fato é totalmente contrária à corrente marxista. Contudo, Popper está
enfatizando as predições, as previsões sobre o futuro e numa perspectiva
positivista do futuro o marxismo e positivismo almejam um futuro positivo. No
marxismo o comunismo é para todos e no positivismo a sociedade positiva
depende dos indivíduos altamente capazes para alcançar o grau mais elevado
de harmonia. A Escola de Frankfurt também fará muitas críticas ao modelo
positivista, mas não concordará com Popper quanto à visão da neutralidade da
ciência.
No prefácio da segunda edição de Dialética do Esclarecimento
(ADORNO & HORKHEIMER; 1985), em 1969, já haviam decorridos mais de
vinte anos da publicação da primeira edição nos Estados Unidos. São tempos
bem diferentes de uma edição para outra. O livro foi escrito no final dos anos
40 nos Estados Unidos, no período de exílio. Na primeira edição (1947), os
autores alemães perguntavam-se por quais razões “a humanidade, em vez de
entrar em um estado verdadeiramente humano, [estavam] se afundando em
uma nova espécie de barbárie” (Ibidem, p.11). Os autores reconhecem que
havia, naquele momento, uma “confiança excessiva” na capacidade humana de
superar a condição de alienação, mas o que se via era o fracasso das teorias e
as formas pelas quais sobressaiam “as atividades científicas modernas”
marcadas pelas grandes inovações tecnológicas. Os autores escolheram como
única alternativa estabelecerem suas reflexões no campo da sociologia, da
psicologia e da teoria do conhecimento. No prefácio da segunda edição, então
na Alemanha, há uma citação que apresenta uma preocupação diferente da
anterior. É o momento dos acirramentos da guerra fria.
“No período da grande divisão política em dois blocos colossais, objetivamente compelidos a colidirem um com o outro, o horror continuou. Os conflitos no Terceiro Mundo, o crescimento renovado do totalitarismo não são meros incidentes históricos, assim como tampouco o foi, segundo a Dialética, o fascismo em sua época. O
228
pensamento crítico, que não se detém nem mesmo diante do progresso, exige hoje que se tome partido pelos últimos resíduos de liberdade, pelas tendências ainda existentes a uma humanidade real, ainda que pareçam impotentes em face da grande marcha da
história” (Ibidem; p. 9).
No pós-guerra, a confiança fora recolocada no seu devido lugar e
pôde-se analisar o que a civilização burguesa seria capaz a partir de então.
Qual é o sentido da ciência nesta civilização burguesa? O que se viu na
Primeira Guerra Mundial deixou perplexos nossos autores a ponto de
declararem que a humanidade com seus especialistas levou “à autodestruição
do esclarecimento”, e, consequentemente, negava-se ao pensamento “o último
vestígio de inocência em face dos costumes de uma época” (Ibidem; p. 11). Os
costumes de uma época são construídos sobre os alicerces da opinião pública
que transforma o “pensamento em mercadoria”. Isto na visão dos autores é
uma depravação que precisa ser desnudada pela recusa “da lealdade às
convenções linguísticas e conceituais em vigor”.
Com estas críticas, o Instituto de Pesquisa Social com seus principais
representantes e com sede na Alemanha, em Frankfurt, ganhou notoriedade
após a guerra como um reduto de crítica ao marxismo ortodoxo, embora
continuasse a representar um baluarte em defesa do projeto da “união da teoria
crítica com a prática revolucionária” (JAY, pag. 317). Este projeto na década de
60, entretanto, assumira gradativamente um projeto diferente do que havia sido
proposto ou definido na fundação do instituto. Quando terminou a Segunda
Guerra Mundial, Horkheimer e Adorno continuaram exilados nos Estados
Unidos da América e avaliavam a mudança da realidade social que exigia ou
demandava nova postura teórica.
A redação da Dialética do Esclarecimento já estava nas
preocupações de Horkheimer no início de 1942 e sua publicação só ocorreu
em 1947, mas só veio mesmo a ter ressonância no final da década de 1960. A
crítica desenvolvida pelos autores tornou-se mais radical e quanto mais radical
se propunha, menos havia possibilidade de ser acompanhada por uma práxis
radical.
229
A experiência socialista na URSS, para os autores, era desanimadora,
associada ainda ao pessimismo com a classe trabalhadora constituir-se
naquele sonhado papel de sujeito de transformação social, como sujeito
histórico. A classe trabalhadora agora estava integrada à cultura de massa e
aos padrões de bem-estar social. O marxismo ortodoxo defendia que a classe
trabalhadora deveria enfrentar a civilização burguesa, mas esta estava
subjugada de forma muita mais perversa do que antes, se assim é possível de
se expressar e de fazer comparações, estava em situação pior ao período
anterior das guerras mundiais. Saindo desta polaridade analítica de lutas de
classes, mas sem desconsiderá-la, os autores deslocaram as análises
clássicas marxistas para a relação entre o ser humano e a natureza.
Com a derrocada do fascismo, o capitalismo de Estado aparece mais
violento e as mediações típicas da sociedade burguesa dão lugar para “a
vingança da natureza pela crueldade e exploração que o homem ocidental lhe
impusera durante gerações” (Ibidem, p. 321).
Quando Horkheimer assumiu a direção do Instituto de Pesquisa
Social em Frankfurt, antes da II Grande Guerra, havia inaugurado sua gestão
com uma palestra: As origens da filosofia burguesa da história. Já naquele
momento ensaiava as análises sobre a relação entre a perspectiva
renascentista da ciência e da tecnologia com a comunidade política. Como é
sabido, o período Renascentista é reconhecidamente o período de grandes
descobertas científicas que sobrevieram com o objetivo determinante de
conhecer e controlar a natureza. Um exemplo sobre a relação citada é a
produção de Nicolau Maquiavel, umas das primeiras obras políticas, escrita na
modernidade, expõe a natureza do domínio do homem sobre o homem. Ao
defender o papel do príncipe e as diferentes formas de governo defendia o
papel da nobreza para constituição de uma ordem pública. Horkheimer opunha-
se a Maquiavel não sob a perspectiva de que o ser humano não pudesse ser
esclarecido sobre esta separação entre o ser humano e a natureza, mas em
razão da irreversibilidade da natureza de conciliar-se com o ser humano.
Dentro do preceito hegeliano de história, a civilização modificava a civilização e
a própria definição dela se modificava e a história e a natureza se
reconciliavam e não se opunham. Contudo, no século XVII, identificava-se o
230
ser humano à natureza e colocava-se ao mesmo tempo o ser humano como
objeto da mesma forma como também a natureza havia sido objetivada pela
ciência da época. Relembremos as referências de Renè Descartes (1596-1650)
que considerava o ser humano uma máquina.
Os autores recorrem à Giambattista Vico (1668-1744) que havia
coordenado a metafísica cartesiana. O ser humano deveria ser compreendido
como aquele que faz história, de outra forma, faz e é feito história. Para os
autores, Vico havia com isto se adiantado ao que o marxismo adotaria com
maior radicalidade: a atividade é a chave para entender o desenvolvimento da
história. Vico não considerava o ser humano e a natureza a mesma coisa.
Fazia a distinção, mas não sobrepunha um ao outro. Horkheimer cita Vico para
criticar veementemente a perspectiva cartesiana ao fazer a separação entre
sujeito e objeto. Para Adorno & Horkheimer, a absolutização desta separação
tinha o interesse de fazer o conhecimento servir ao status quo burguês. Esta
condição foi interrompida por Hegel. O Iluminismo assumiu este caráter e os
autores defendem a necessidade de estudar com mais profundidade a sua
herança. Este estudo não significava recorrer à estrutura material da
sociedade. Ora, partindo desta referência, Marx foi incluso na tradição
iluminista porque enfatizava, na visão dos autores, a centralidade do trabalho.
Isto reduziria o ser humano a um ser laboral e o planeta numa gigantesca
oficina.
O pessimista sociólogo alemão foi referência instigante para os
autores da Dialética do Esclarecimento, isto porque prognosticava, diferente do
otimista Marx, o desencantamento do mundo. A obra dos autores parte desta
síntese de Max Weber, pois trata da racionalização do mundo e os processos
de burocratização. A visão pessimista de Weber consistia na resignação ao
que de fato acontecia no estágio pós-guerra do capitalismo. Adorno &
Horkheimer ainda vislumbravam a possibilidade de interromper esta posição
que Max Weber tão emblematicamente sustentava com a identificação ao
capitalismo como “destruição criadora”. Os autores ainda sustentavam que a
razão como baluarte para conciliar as contradições deste mundo que cindia o
ser o humano e a natureza. A origem está no Iluminismo porque este
movimento da maioridade, assim identificado por Kant, almejava superar as
231
concepções mitológicas por aquelas que se orientariam pela razão, mas
conforme Adorno & Horkheimer “foram vítimas de um novo mito”. Esta é a
temática central da Dialética do Esclarecimento. No Iluminismo havia a crença
que deus controlava o mundo e os seres humanos se colocavam inferiores na
análise dos objetos. O que ocorrerá? Espiritualizou-se os objetos e o
capitalismo objetivou o espírito. “O animismo espiritualizou os objetos”, ou seja,
foi estabelecida a conexão entre o interior e o exterior mesmo não tendo
consciência desta conexão. “O industrialismo”, pelo contrário, “objetivou o
espírito”. O pensamento esclarecido considerava o mundo como aquela
concepção de Leibniz, qual seja, um conjunto de mônadas que a partir de si
criava a sua própria representação do mundo.
A filosofia hegeliana ainda preservou “a sensibilidade primitiva” e a
relação entre o sujeito e objeto, mas considerava as mediações. O conceito
para Hegel deveria ser compreendido a partir da compreensão morfológica. Em
alemão conceito é “begriff” (apreender). O sentido é o movimento da apreensão
do conteúdo que tanto poderia ser negativo como positivo. A epistemologia do
Iluminismo substituiu conceitos por fórmulas, fórmulas matemáticas. Para
Adorno & Horkheimer “a repetição estágica do tempo mítico fora preservado”
(p. 236) frustrando a possiblidade dinâmica do desenvolvimento histórico. Os
autores viam um defeito desastroso: a dominação iluminista da natureza sobre
as interações dos homens (p. 236). Os autores entendiam que esta força do
Iluminismo de dominar a natureza também era consequente para elevar a
dominação entre os homens. É a manipulação instrumental que se estabelece
e é levada para as relações humanas. Esta condição consistia numa
oportunidade para o surgimento de estados autoritários modernos.
Todas as mudanças desencadeadas pelo pensamento iluminista
refletiam excepcionalmente na linguagem. Para Adorno & Horkheimer, a
verdadeira filosofia deveria adequar o nome às coisas. Considerando que os
seres humanos não se encontram livres, portanto, não lhes cabe neste
momento as soluções, mas a negação. Os iluministas eliminavam a negação
na linguagem. Fizeram substituindo os conceitos pelas fórmulas. O ser humano
inventou nomes compatíveis com o domínio da natureza. Com a eliminação da
232
negação, com a impossibilidade de expressar a negação passou a ser a
expressão instrumental das forças dominantes da sociedade.
Adorno e Horkheimer expõem na Dialética do Esclarecimento o
desenvolvimento do espírito iluminista analisando a indústria cultural e o
antissemitismo e concluem em tom pessimista que o ser humano alienou-se à
natureza dando a impressão de uma condição humana irreversível. Rejeitam
as perspectivas otimistas do cristianismo, idealismo e materialismo histórico,
porque se propõem a negar o existente do que propriamente a efetivação da
transformação da realidade.
Os autores são mais enfáticos quanto ao papel da filosofia, cada vez
mais instrumentalizadora, incapaz de promover qualquer mudança social. Em
Eclipse de Razão Horkheimer faz um alerta:
“A própria teoria filosófica não pode determinar se deve predominar no futuro a tendência barbarizante ou a visão humanística. Contudo, ao fazer justiça aquelas imagens e ideias que em determinadas épocas dominaram a realidade exercendo o papel de absolutas – por exemplo, a ideia de indivíduo tal como predominou na época burguesa – e que foram abandonadas no curso da História, a filosofia pode funcionar como um corretivo da História, por assim dizer. Assim, os estágios ideológicos do passado não seriam identificados simplesmente à estupidez e à fraude tal como o veredicto estabelecido contra o pensamento medieval pelo Iluminismo Francês. As explicações sociológicas e psicológicas das crenças antigas seriam distintas da condenação e supressão filosóficas das mesmas. Despojadas do poder que tinham em sua situação na época, serviriam para lançar alguma luz sobre o rumo atual da humanidade. Assumindo esta função, a filosofia seria a memória e a consciência da espécie humana, e deste modo ajudaria a evitar que a marcha da humanidade se assemelhasse à circulação sem sentido da hora de recreio de um manicômio” (pag. 191. Horkheimer. Elipse da Razão).
A escola de Frankfurt, em 1940, não fora explícita quanto aos
métodos para modificar a sociedade. Era óbvio que havia necessidade de
reconciliação com a natureza, mas sob quais programas ou em quais
condições? A Escola de Frankfurt não queria trazer em evidência a Dialética da
Natureza de Engels. Os autores defendiam que não se tratava de definir se a
natureza era boa ou má, até porque a reconciliação total, no sentido de uma
identidade completa, só poderia resultar no retorno a um “estado de impotência
mediada” (JAY, p. 333).
233
“A teoria crítica continuava a enfatizar a não-identidade de um modo que impedia a redução do sujeito ao objeto, e vice-versa. Nesse ponto, seus criadores diferiam de Benjamin e de Ernest Bloch, cuja filosofia da esperança falava da ressurreição de um sujeito natural de uma forma que parecia obliterar a distinção entre sujeito e objeto. A utopia da reconciliação não seria preservada na unidade do objeto e da percepção, mas sim na oposição reflexiva entre eles, afirmaram Horkheimer e Adorno. Em outro ponto, deixaram claro que a memória da natureza, e não a natureza em si, era inimiga da dominação” (Ibidem, p. 333).
Com a leitura dos textos de Vigotski podemos nos atentar à sua
preocupação em mostrar que no ser humano existe reciprocamente
continuidade e ruptura entre o biológico e o cultural. Continuidade porque o
cultural não tem como dissociar-se do biológico; e biológico porque transforma-
se em cultural. Isto não significa que o biológico desaparece, pois sem este não
haveria cultura. Mas o que é cultura para Vigotski? Ele responde muito
suscintamente: cultura é o produto das relações sociais e da atividade social
dos seres humanos. Com isso está destacando duas questões fundamentais:
primeiro, “cultura” é produção humana; segundo, a produção do primeiro
define-se como relações sociais e atividade sociais.
A noção de cultura de Vigotski não foi aceita pela ortodoxia marxista no
início da década de 20. Além do cultural haveria também necessidade de
definir o que é social. Dificilmente encontraremos contrariedades quanto a esta
condição da passagem do biológico para o cultural nos dias de hoje, e com o
reconhecimento da natureza humana, em que Vigotski estabelece a relação
entre as funções psicológicas inferiores (ou elementares) e as funções
psicológicas superiores. O ser humano é obra da cultura e não da natureza e
se a cultura é resultado do ser humano podemos concluir que o que é humano
é da própria criação do ser humano. Por outro lado, se há a especificidade
humana como sua obra, como negar que não seja um resultado da natureza?
Quando Vigotski trata dos instrumentos ou das ferramentas como mediação da
cultura podemos também nos perguntar: até que ponto estas ferramentas são
necessárias? Eis um paradoxo que a Escola de Frankfurt trouxe de forma muito
pessimista para a civilização: a própria natureza se apresenta vingativa contra
o desejo da supremacia humana.
234
Capitulo 15: Dialética da Ontologia do Ser Social
Marx deu à dialética sua base real, colocou “em pé”, como também
retirou a crítica da economia política da rigidez fetichista e da estreiteza
abstrata da qual a economia estava sujeita (MÉSZAROS, 2013, p. 62). É sob
esta base que a teoria vigotskiana foi construída que exigia constantemente se
perguntar “o que é ser?” E “quem é o ser?”. Questões estruturantes para a
psicologia e fundamentais para a psicologia dialética. Contudo, estas duas
perguntas não foram explicitamente respondidas por Vigotski, mas isso se deve
ao anti-marxismo que surgiu dentro da própria revolução socialista. György
Lukács lucidamente trata da questão da ontologia do ser social que pode ser,
sua teoria, complemento e reforço para teoria vigotskiana. Nos escritos de
Vigotski é muito comum encontrarmos as reflexões sobre a relação entre
necessidade e liberdade – categorias fundamentais para serem esclarecidas e
elucidadas dentro da psicologia dialética.
A dialética marxista foi um tema sempre presente nas obras de Lukács
e a sua obra mais marcante foi História e Consciência de Classe – Estudos
sobre a dialética marxista, publicada em 1920. Nesta obra Lukács esclarece o
que era o materialismo histórico e o que passou a ser. Escrito logo após a
Revolução de Outubro e motivado com as possibilidades de engajamento
social e mobilização revolucionária envolve-se com o movimento socialista.
História e Consciência de Classe representa o baluarte que veio para distinguir
e colocar definitivamente o movimento da Social Democracia na sua residência
“reformista”. Mas a preocupação de Lukács muito maior é o fortalecimento da
substancialidade do materialismo. O materialismo era um “método científico
para compreender os acontecimentos do passado”, mas permitia também
“visualizar as forças motrizes mais profundas da história”. Esta era uma
condição que transformava a história como ciência e tornava compreensível a
frase de Marx: “nós conhecemos uma única ciência, a ciência da história”.
Lukács, desde que iniciou seus estudos sobre literatura, tinha aversão às
concepções individualistas e sobre esta condição conseguir trazer a forma mais
presente para teoria marxiana a noção de totalidade.
235
“O ponto de vista da totalidade não determina, todavia, somente o objeto, determina também o sujeito do conhecimento. A ciência burguesa – de maneira consciente ou inconsciente, ingênua ou sublimada – considera os fenômenos sociais sempre do ponto de vista do indivíduo. E o ponto de vista do indivíduo não pode levar a nenhuma totalidade, quando muito pode levar a aspectos de um domínio parcial, mas na maioria das vezes somente a algo fragmentário: a “fatos” desconexos ou a leis parciais abstratas. A totalidade só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem de pensar o objeto como totalidade. Somente as classes representam esse ponto de vista da totalidade como sujeito na sociedade moderna” (LUKÁCS, 2012, p. 107).
A totalidade sem mediações para Lukács é como “liberdade sem
igualdade”. Totalidade e mediação são duas categorias fundamentais para o
pensamento lukacsiano. As mediações são de tantas maneiras, são totalidades
parciais que estão em interação numa dinâmica geral. Dois extremos podem
ser considerados: i) culto à totalidade como imediaticidade – aqui se constitui a
completa negação das mediações que podem só resultar no mito, como o
exemplo do nazismo; ii) culto da imediaticidade e negação da totalidade –
produz desorientação – nestas condições é fácil aceitar o que é inumano.
Numa passagem que Lukács escreveu no livro chamado As tarefas da
filosofia marxista na nova democracia podemos entender bem a relação entre
totalidade e mediação:
“A concepção materialista dialética da totalidade significa, em primeiro lugar, a unidade concreta das contradições interagentes (...); em segundo lugar, relatividade sistemática de toda totalidade tanto para cima quanto para baixo que significa que toda totalidade é constituída de totalidades subordinadas a ela, e também que a totalidade em questão, é, ao mesmo tempo, sobredeterminada pelas totalidades de complexidade maior; e, em terceiro lugar, a relatividade histórica de toda totalidade, isto é, o caráter de totalidade é mutável, desintegra-se, é limitada a um período histórico concreto e determinado” (cit. MESZÁROS, 2013, p. 58).
A constante preocupação de Lukács com a dialética se deve à sua
contrariedade com a defesa do movimento operário do materialismo
mecanicista; a incompletude das obras de Marx; e, portanto, era necessário
retornar a elas para compreender as questões da dialética e em razão de que a
humanidade corria e corre riscos de autodestruição e a dialética tem a potência
236
de denunciar o irracionalismo. Para tanto, depois de ter escrito uma obra
monumental voltada para “estética” e a tendo concluída em 1960, começa
outra obra, mas que não consegue concluir como gostaria: Para uma ontologia
do ser social. Em 1970 conclui, mas não se satisfaz e começa a escrever
Prolegômenos para uma ontologia do Ser Social. Na ontologia, Lukács critica o
neopositivismo, no qual o autor identifica o reino da manipulação. Há uma
perspectiva de homogeneização cada vez mais explícita da vida social,
submetidas aos imperativas do cálculo e da quantificação – opõe-se contra a
captura do ser humano, contra o confisco do ser humano à manipulação.
Lukács, por outro lado, sabia do extremo empobrecimento do pensamento
marxista na época, principalmente aquele fundamentado na época de Stalin na
União Soviética. A ontologia é um esforço de releitura e a densidade e a
substancialidade do pensamento marxista.
O conceito de necessidade foi ponto de partida na Ontologia. Sua
crítica é endereçada a Engels como aquele que interpretou uma perspectiva
logicizante e necessitarista da história. Esta perspectiva foi muito defendida na
II Segunda Internacional e no período stalinista ganhou proporções fora de
controle. Lukács preocupa-se em distinguir o pensamento ontológico de Marx
da interpretação de Engels que para ele estava muito impregnada de logicismo
hegeliano. Acusa Engels como responsável pela deformação máxima que
alcançou o stalinismo.
O texto integral de Para uma Ontologia do Ser Social só apareceu em
1981 e na versão alemã que contém também os Prolegômenos para uma
Ontologia do Ser Social.
Nossa referência é Prolegômenos para uma Ontologia do Ser Social,
que é uma tentativa para expor “em temas mais claros e sintéticos o seu
programa de reconstrução da Ontologia” (TERTULIAN, 2010, p. 386). Foi
concebido para servir de introdução ao texto da Ontologia, mas não alterou
substancialmente o conteúdo anterior.
Lukács vê em Engels aquele que cometeu uma “distorção da relação
entre universal e particular” ou entre necessidade e casualidade. Subestimou a
força da casualidade e elevou “a força impessoal, ou a de um deus
237
abscônditus” que nada mais é reminiscência da filosofia hegeliana (Ibidem, p.
389).
Antes de Lukács, um filósofo já fizera oposição direta à ontologia de
Hegel, foi Nicolai Hartmann (1882-1950). Contrapõe-se a Hegel em razão deste
privilegiar o papel da “universal lógica” e “minimizar o peso dos indivíduos e de
suas ações regulares”. Lukacs reprova Engels pela mesma razão, por ter
justamente enfatizado em demasia o universal, fato que o aproxima de Hegel.
Nicolai Hartmann institui a categoria da “necessidade subordinada à
realidade e às determinações inscritas no coração dos fenômenos” (Ibidem, p.
390). Lukács compreende muito bem esta relação entre realidade e
necessidade. Por exemplo, se uma situação reúne certas condições, então, aí,
pode derivar “um caráter necessário e irreversível”.
Na Ontologia do Ser Social, no capítulo dedicado à análise da
concepção histórica em Marx, Lukács insiste em criticar Engels por não ter
esclarecido adequadamente esta questão. Cita uma passagem de Engels em
“Para crítica da economia política” ao afirmar que o método adequado de tratar
a matéria “nada mais é do que o fato histórico, apenas despojado da forma
histórica e dos elementos ocasionais perturbadores”. Como é possível
despojar-se da forma histórica? Engels, como também Hegel, privilegia a
categoria necessidade em demasia e Lukacs tira esta evidência e traz a
categoria “causalidade”. Não que não dê o devido valor à categoria
necessidade, mas não a coloca de tal forma que não haja espaço para aquilo
que não está previsto. Não basta, entretanto, apenas a casualidade, é também
necessário trazer à luz a categoria “possibilidade”. Assim, atacava diretamente
o materialismo mecanicista, o materialismo distorcido como também atacava o
hiperracionalismo.
O ataque de Lukács era direcionado ao neopositivismo que resolviam
os problemas ontológicos recorrendo à metafísica. Com a Ontologia do Ser
Social restabelece-se “a autonomia ontológica do real, a sua totalidade
intensiva e a sua irredutibilidade à pura manipulação” (Ibidem. p. 391-392). Por
outro lado, Lukács também analisa as tendências do marxismo dogmático por
ter enfatizado a categoria necessidade; para enfrentar esta concepção
238
enraizada no marxismo propôs as chamadas categorias modais: “necessidade,
possibilidade e causalidade”.
Lukács recupera constantemente o pensamento de Hartmann quando
este se perguntava como seria possível uma ontologia crítica. Buscava esta
resposta em razão da condição humana que se submetia ao confisco da
manipulação; esta preocupação era condizente com as concepções marxianas,
cujas categorias deveriam ser entendidas como “princípios do ser” e não como
“essências do ser”. Hartmann também criticava Kant porque para ele as
categorias assumiram simplesmente “as determinações do intelecto” – a crítica
se asseverava contra os neokantianos que proclamaram “a supressão da coisa
em si”.
Um outro ponto que Lukacs concordava com Nicolai Hartmann era
referente às categorias “teleologia” e “causalidade”. Estas duas categorias são
estruturantes para a compreensão da vida social. No livro de Lukács, O jovem
Hegel, destaca-se o modo como Hegel confrontou as concepções de Hobbes e
Espinosa. Hegel identificou no trabalho, conforme Lukács, o fundamento para a
vida social. É aqui que Hartmann também fundamenta sua crítica. O nexo final
necessariamente é dependente do nexo causal, ou seja, “a posição teleológica
não se realiza a não ser utilizando as cadeias causais” (Ibidem, p. 394).
Lukács coloca no “pôr teleológica” a fonte do fenômeno da vida social e
com isso destaca que na vida da natureza “é dominação pela causalidade
espontânea” enquanto na vida social é constituída através de “atos finalísticos
dos indivíduos” (Ibidem, p. 394).
As posições teleológicas são duplamente condicionadas: i)
autocondicionadas em razão de que a consciência é que põe, “que age
impulsionada pelas necessidades e pelos projetos individuais”; ii)
heterocondicionadas pelas condições objetivas do real. E estas duas posições
teleológicas são de dois tipos: i) aquelas que têm como objeto a natureza em
si; ii) aquelas que têm como objeto a consciência dos outros. Considerando
esta dinâmica complexa das posições teleológicas exclui-se “a concepção
retilínea e monolítica do progresso histórico” (Ibidem, p. 395).
239
Devemos distinguir as ações que são realizadas no contexto ao qual
estamos inseridos sob imperativo da coação e as ações que realizamos em
situações contextuais, que possibilitam margem de escolha e de decisões.
Lukács pergunta como poderíamos conceber a relação entre causalidade e
teleologia no interior da vida social? Responde: “os processos sociais ocorrem
porque há atos teleológicas de indivíduos, se pode afirmar que a totalização
destes atos “tem um caráter meramente casual” (Ibidem, p. 396).
A posição de Lukacs novamente se aproxima com a de Nicolai
Hartmann que argumenta que as posições teleológicas dos indivíduos nunca
chegam a exercer coerção absoluta, e isto porque elas só existem quando
põem em movimento alguma cadeia causal, até porque nossas ações nunca
são inteiramente iguais às intenções. Isso ampliado corrobora com esta
perspectiva, portanto, tem caráter causal e não teleológico.
Esta é uma tese geral. Pode-se também distinguir ações diferentes.
Duas, para exemplificar: 1) ações que os indivíduos são conduzidos a agir sob
“imperativo de reprodução econômica que são realizadas para não assumir o
fracasso diante dos outros que também reproduzem esta condição”; 2) ações
que estejam mais distantes da “atividade econômica imediata” – as incertezas
estão mais neste segundo tipo de ações.
As ações que são exigidas pelos imperativos do crescimento
econômico não significam que as personalidades irão se desenvolver
harmoniosamente. Lukács procura justamente no interior da personalidade “os
efeitos do desenvolvimento desigual dos vários complexos sociais” (Ibidem, p.
397).
Lukács enfatiza a análise hegeliana sobre a “consciência infeliz”,
aspecto que é retratado desde a antiguidade tardia. É uma questão que
também os epicuristas e estoicos se ativeram a buscar uma solução. A
dissolução da polis jogou os indivíduos numa existência privada, “sem apoio
para o sentido imanente de sua vida”. É sobre esta consciência cindida que
Hegel se atém no seu sistema filosófico e deixa evidente a separação entre os
planos inessencial e essencial da consciência, que também pode ser melhor
compreensível, entre autoconsciência transformável e intransformável.
240
Uma identidade inessencial está submetida a uma vida cotidiana pela
pura particularidade, ou seja, projeta-se a sua essência no irreal, num ser
abstrato, localizado na transcendência. A consciência infeliz está entre a
vontade de liberta-se da procura da essencialidade irreal. É sob esta condição
que aparece a necessidade religiosa que consagra a fuga da “existência
terrestre”. Para sair deste dualismo, Lukács afirma que é preciso des-cobrir, na
imanência da vida cotidiana, as mediações completas que permitem quebrar as
reificações estranhantes e realizar, na efetividade histórica, uma existência
estranhada (Ibidem, p. 399).
A ontologia preconizada por Lukács concebe o ser como interação de
“complexos heterogêneos” em perpétuo movimento de devir caracterizado por
uma mistura de continuidade e descontinuidade que possibilita criar o novo e o
que chama de “irreversibilidade”. Aquilo que já foi conquistado torna-se
irreversível dentro desta oposição continuidade e descontinuidade. A
processualidade do ser implica uma gênese e um devir também de categorias.
Não à moda Kant de gênese de categorias apriori, mas produto da
historicidade do ser. Por exemplo, “a teleologia é uma categoria
eminentemente histórica que se constitui naquela ação de projeção sobre as
coisas e possibilitando cadeias causais objetivas “introduzindo o nexo final”.
Lukács então defende que este processo teleológico coincide com emersão do
trabalho, uma vez que a natureza em si inorgânica e orgânica não conhece
finalismo, mas apenas causalidade.
O fato de que Vigotski não tenha deixado evidente a concepção
ontológica não quer dizer que sua psicologia esteja isenta de fundamentação
ontológica. Vigotski defende a natureza histórica do ser humano destacando a
importância do trabalho como meio que transforma o ser humano biológico em
cultural/social.
Em várias passagens encontramos Vigotski enfrentando o assunto da
relação entre a liberdade e a necessidade. Na maioria das vezes busca
respaldo em MARX & ENGELS. Localizamos uma passagem que se
assemelha muito com todas as outras que consta no texto Desenvolvimento
241
das funções psíquicas superiores na idade de transição (capítulo 11)64. Citando
Engels que afirma que foi Hegel aquele que tratou sobre a relação entre
liberdade e necessidade de forma mais correta, isto porque sustentava que “a
liberdade é o conhecimento da necessidade”. A partir de então Vigotski faz,
como sempre em casos com estes, uma citação de MARX & ENGELS que
podemos resumi-la da seguinte forma: a liberdade não é a independências das
leis naturais, mas sim conhecer estas leis e coloca-las a serviço do ser
humano. Mas conhecer as leis naturais não se reduz apenas aos aspectos
exteriores ao ser humano, mas também as leis que dirigem “a existência
corporal e espiritual do próprio ser humano”. E, nesta citação de Engels
conclui: “são duas classes de leis que podemos separar o máximo em nossa
imaginação, mas não na realidade” (Ibidem, p. 199). São duas classes de leis,
ou seja, uma interna e outra externa.
Vigotski utiliza esta passagem citada de Engels para sustentar seu
pensamento conclusivo deste capítulo para compreender a relação entre “livre
arbítrio” e “pensamento em conceitos”. Somente, sustenta ela, por meio do
conceito se pode elevar ao conhecimento da realidade, pois passa “do nível da
vivência para o nível do entendimento das leis. É estranho aqui para um
profundo conhecedor da obra de Espinosa sustentar “o livre arbítrio” como uma
condição que o ser humano se potencializa com ele mesmo e para ele mesmo.
Contudo, aqui Vigotski está sustentando a importância da razão, do
entendimento na relação entre necessidade e liberdade. Mas, voltando a
questão dos conceitos, que neste capítulo é a questão central, Vigotski afirma
que “a necessidade se converte em liberdade através do conceito”. Afirmação
contundente ao desbancar a atividade e que pode criar muitas confusões se
não for devidamente analisada e considerada. Não é possível considerar
necessidade e liberdade como reciprocamente excludentes – a necessidade
não pode ser liberdade, e, a liberdade, não tem a necessidade, mas sim a tem
como superada. Sem o conceito não há como conhecer a necessidade, logo
não há como se alcançar a liberdade. “Unicamente no conceito, e através dele,
adquire o ser humano uma atitude livre ao objeto e a si mesmo” (Ibidem, p.
2000.
64 OBRAS ESCOJIDAS – Vol. IV, ps. 117 a 203.
242
Como podemos constatar, Vigotski não enfatizava a categoria
necessidade, mas liberdade que supera necessidade. Neste sentido,
entendemos que a categoria “possibilidade” da qual se refere Lukács está em
sintonia com o entendimento de Vigotski ao tratar do processo de formação de
conceitos dos adolescentes. Quando para o adolescente começa o mundo
aparecer em lugar do entorno da criança há uma superação: não é mais
criança, mas carrega a sua superação. Do mundo da necessidade para o
mundo da liberdade exige a formação categorial dos conceitos. É o que Hegel
definia, afirma Vigotski, primeiro como a coisa em si para depois na superação
tornar-se no processo uma coisa para si.
Lukacs condena a perspectiva que se baseia ou que enfatiza a
necessidade e coloca Engels na mira de suas contundentes críticas. Ao elencar
a categoria possibilidade, casualidade e causalidade está condenando o
referencial determinista do marxismo e, ao mesmo tempo, recuperando o
sentido mais profundo da dialética materialista. Até o final da vida, Vigotski
também estava ainda para este rumo da crítica.
Tanto Lukács quanto Vigotski começaram seus estudos pela arte,
estudando o drama e ambos assumem uma visão crítica dentro da revolução
proletária. A pergunta inicial que colocamos “que é ser?” leva-nos para o
entendimento substantivo, que no caso de Vigotski, sempre manifestou
contrariedade às concepções dualistas ou atomistas. O ser é a substância
única. Quanto a segunda pergunta “quem é o ser?” Vigotski afirmaria que é
aquele que busca compreender as leis da natureza por meio do entendimento.
As duas respostas se aproximam significativamente da filosofia espinosana
também de base materialista.
243
Capítulo 16: Analética: a superação da dialética?
Na década de 1980, no final da ditadura militar no Brasil, muitas
concepções tornaram-se conhecidas nas áreas da psicologia, educação,
sociologia e filosofia. O processo de mudança do sistema político propiciou a
diversidade de abordagens críticas para cooperar com as mudanças sociais
que estavam ocorrendo. Em 1984, LANE escreveu um artigo trazendo como
referência principal Leontiev e Vigotski para seu artigo Linguagem, pensamento
e representações sociais onde estes autores concebiam “o ser humano como
manifestação de uma totalidade histórico-social” (LANE, 1984, p. 33). As
abordagens de Leontiev e de Vigotski embasavam uma teoria completamente
diferente que predominava no Brasil sob influência estadunidense de base
pragmatista. Era o momento considerado de libertação dos sistemas políticos
repressores e pela busca de referenciais teóricos que contribuíssem na
compreensão dos problemas sociais que assolavam grande parte da
população. Dentro de tantas manifestações que surgiram em tantos campos,
enfatizamos aqui a filosofia da libertação, tendo como principal representante
Enrique Dussel. Aqui também poderíamos citar o educador Paulo Freire (1921-
1997) com sua obra Pedagogia do Oprimido, mas consideramos para o
objetivo deste trabalho mais conveniente sempre nos orientar com os
representantes principais dos diferentes movimentos filosóficos que tratam
diretamente do tema da dialética.
Dussel resume a dialética europeia como aquela que visa compreender
o ser como uma ontologia da “identidade e da totalidade” que “pensa o outro”,
sugere um “momento antropológico” que não nega a identidade e a totalidade,
mas que se institui como uma “dialética pedagógica da libertação” (DUSSEL,
1986, p 190).
No processo de reconhecimento do outro nos reconhecemos, mas a
superação desta relação de reconhecimento é colonizador-colonizado. Nossa
filosofia latino-americana se estabelece nesta relação e nós entendemos que
por esta razão Dussel declara que nós temos uma “pré-história da filosofia
latino-americana” e ela tem nome: pensamento europeu de Kant, Hegel e
Heidegger. Partem estes do mundo deles, e o nosso seria, nesta relação,
244
considerado “inautêntico”. Como partir de nosso mundo? Não tornando
exclusivista o pensamento europeu, mas compreender a relação para superá-
la. O que é o outro para o filósofo europeu? Seria um índio, um africano ou um
asiático? Refere-se “absolutamente outro” sem distinção. Esta dialética é
insuficiente, é preciso ir “mais além, mais acima, vem de um nível mais alto – o
ana-lético”. “O método dialético é o caminho que a totalidade realiza em si
mesma: dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes” (Ibidem, p 196).
O método dialético, seguindo Dussel, está dentro de uma condição que
reconhece só o em si e parte do reconhecimento do outro para poder servir
livremente; este servir é de uma ação justa e livre.
A dialética é a superação de uma condição humana dentro da dimensão
da dominação e a ana-lética estabelece-se nesta relação entre dominação e
colonizador – a superação desta condição irreversivelmente passa pela
dialética e a nega na superação.
“A passagem da totalidade a um novo momento de si mesma é sempre dia-lética; tinha, porém, razão Feuerbach ao dizer que ‘a verdadeira dialética’ (há, pois, uma falsa) parte do diálogo do outro e não do “pensador solitário consigo mesmo. A verdadeira dia-lética tem um ponto de apoio ana-lético (é um movimento ana-dia-lético); enquanto a falsa, a dominadora e imoral dialética é simplesmente um movimento conquistador: dia-lético” (Ibidem, p. 196-197).
A filosofia da libertação “é uma crítica do Deus e do gênero humano”.
Ela é ateísta enquanto a identificação com o Deus burguês, e libertadora
enquanto gênero humano que ganha sua generidade e não a perde como ser
criativo que faz, mas o objeto do seu fazer não toma o seu lugar e nem lhe é
estranho.
Para entender o movimento do método analético que Dussel apresenta é
imprescindível fazer a distinção e reconhecer a relação entre ôntico e
ontológico, o que foi muito utilizado por Kant e Heidegger. O ôntico sempre diz
respeito ao ente, ao fenômeno, ao imanente, aquilo que os sentidos mostram
(explicamos, não nos referindo a esta terminologia na dialética transcendental
de Kant, quando um objeto é recebido, dado ou intuído – é o campo do ente,
245
do ôntico). O ôntico é o que todo mundo vê. Ontológico diz respeito ao ser, ao
que está por trás do fenomênico. Quando fazemos uma reflexão ontológica,
somos convidados a sair da reflexão do senso comum.
Dussel faz frequente referência a Heidegger quanto a esta distinção e
este último tem uma passagem mais elaborada que define a diferença entre
ôntico e ontológico:
“Ontológico significa levar a cabo a reunião do ente com a sua entidade. Ontológica é aquela essência que, segundo a sua natureza, se encontra em esta história desde o momento em que a suporta segundo o desocultamento do ente de cada momento. De acordo com isto, podemos dizer que a consciência é consciência ôntica na sua representação imediata do ente. Para ela, o ente é o objeto. Mas a representação do objeto representa, de maneira impensada, o objeto enquanto objeto. Já reuniu o objeto na sua objetividade e por isso é consciência ontológica. Mas como não pensa a objetividade como tal e sem embargo, já a representa, a consciência natural é ontológica, e sem embargo, ainda não o é. Dizemos que a consciência ôntica é pré-ontológica. Enquanto tal, a consciência natural ôntico-pre-ontológica é, em estado latente, a diferença entre o onticamente verdadeiro e a verdade ontológica” (HEIDEGGER, Martin. Ciminos del Bosque, 2010, p. 134).
Então, feita a diferença, podemos seguir para o método proposto por
Dussel (DUSSEL, 1986), do movimento ana-lético.
“Em primeiro lugar, o discurso filosófico parte da cotidianidade ôntica e dirige-se dia-lética e ontologicamente para o fundamento” (Ibidem. p. 197).
A este movimento podemos novamente chamar Kant ao mencionar as
fontes do conhecimento exposto na Crítica da Razão Pura, em que um objeto é
dado e ao mesmo tempo pensado. Não há intuição sem conceito e nem
conceito sem intuição que, de um lado, são puros e, de outro, empíricos, o
primeiro é a priori e o segundo ocorre a posteriori. Contudo, Heidegger vai
mais além, o ôntico parte do cotidiano, do imediato e do imanente e se
direciona para a ontológico para alcançar o fundamento.
Em segundo lugar, de-monstra cientificamente (epistemática, apo-diticamente) os entes como possibilidades existenciais. É a filosofia como ciência, relação fundante do ontológico sobre o ôntico (Ibidem. p. 197).
246
O ontológico não se restringe ao pensar ou ao falar, pois recorre à
demonstração para explicar que o ente existe. É científico por que de-monstra
sua constituição, ou seja, volta ao ente para revelá-lo.
“Em terceiro lugar, entre os entes há um que é irredutível a uma de-dução ou de-monstração a partir do fundamento: o “rosto” ôntico do outro que, em sua visibilidade, permanece presente como trans-ontológico ao outro como outro é ana-lética: discurso negativo a partir da totalidade, porque pensa a impossibilidade de pensar o outro positivamente partindo da própria totalidade; discurso positivo da totalidade, quando pensa a possibilidade de interpretar a revelação do outro a partir do outro” (Ibidem, 197-198).
Um dos entes, o ser humano, é irredutível ao fundamento. Este
reconhece a totalidade ontológica do outro como outro e que se estabelece a
analética que está na condição primeira do discurso negativo porque não
consegue reconhecer o outro positivamente.
“A revelação do outro (...) é um quarto movimento, porque a negatividade do outro primeiro questionou o nível ontológico que, agora é criado, com base num novo âmbito. O discurso se faz ético e o nível fundamental ontológico descobre-se como não originário, como aberto a partir do ético que se revela depois como o que era antes” (Ibidem, p. 198).
A superação de uma condição de negatividade ganha caráter ontológico
novo, ou seja, a presentidade positiva permanece no reconhecimento do
negativo que passa então ase estabelecer.
Em quinto lugar, o próprio nível ôntico das possibilidades fica julgado e relançado a partir de um fundamento eticamente estabelecido, e estas possibilidades como práxis analética transpassam a ordem ontológica e se adiantam como “serviço” na justiça (Ibidem, p. 198).
O ôntico não fica subjugado ao que Kant estabelecera na relação sujeito
e objeto, separados, mas fica marcado por uma relação ética e aqui recupera-
se o caráter do servir como uma atividade envolvida com a ética e a justiça.
Ao chegar neste método, como superação da dia-lética, Dussel se
pergunta: “A filosofia latino-americana não seria um momento novo e analógico
da história da filosofia humana?”.
247
Analógico para Dussel vem de “análogo” e fundamenta seu sentido
também numa palavra hebraica, “Dabar”, que significa “dizer, falar, dialogar e
revelar”. Diferente do grego “logos” – que significa “coletar”, “reunir”, “definir”
(ibidem, p. 199).
A teoria vigotskiana contribuiu ao longo destes anos todos como um
poderoso instrumento contra o positivismo, onde predominava de duas
premissas uma: “o ser humano ou era socialmente determinado ou era causa
de si mesmo” (LANE, 1984, p. 12). É a psicologia como ciência que poderia
fazer a intersecção entre a história do indivíduo e história da sociedade. Na
perspectiva de Dussel, a teoria vigotskiana está dentro da perspectiva europeia
que busca centralidade e legitimação. Basta nos referir aos estudos que
Vigotski fez com os processos de desenvolvimento de aldeias longínquas do
centro político e econômico russo. Foram acusadas de preconceituosas porque
consideravam os aldeões não incapazes, mas inferiores para serem incluídos à
política socialista da época. A teoria vigotskiana é de caráter eurocêntrica, mas
sua concepção não deixa de enfatizar a emancipação humana como um
processo de alcançar a liberdade vencendo as leis naturais como enfatizamos
no capítulo anterior.
Uma outra questão sempre recorrente na teoria vigotskiana: há uma
negatividade em sua teoria? Se nos perguntamos por isso estamos reforçando
imediatamente que há uma positividade. É aqui que o debate entre Dussel e
Vigotski se identifica, pois a “presentidade positiva” é reconhecida com a
negatividade que se estabelecia como uma ordem social superada. Qual é a
negatividade que se estabelecia para um e outro autor? A realidade em que
vivem. No caso, a realidade social de Dussel é muito mais complexa daquela
que Vigotski viveu no período da Revolução Russa. A negatividade da teoria
vigotskiana é a velha psicologia que não viu a superação e até hoje continua
estabelecendo vários desafios teóricos e metodológicos.
248
Conclusão
O enfoque heraclitiano é objetivo, reconhecendo o mundo em contínuo
movimento, ou seja, na materialidade do conteúdo em processo encontra a
unidade dos opostos. Heráclito realmente é o criador da dialética em razão de
três questões fundamentais: i) defendia que tudo se estrutura, se fundamenta
em opostos; ii) os opostos são idênticos; iii) a guerra é o que fundamenta a
criação. É a definição mais efetiva, clara, daquilo que mais tarde se defenderá
no marxismo como “contradição: unidade e luta dos contrários”. Esta ideia de
Heráclito tornar-se-á muito estranha para o mundo grego como para a era
medieval cristã, pois a estabilidade deveria predominar sobre o que é instável,
incerto e dinâmico.
Em Parmênides não há dialética, mas há sustentação para uma lógica
formal que não deveria se fundamentar pela dúvida ou pela contradição. Tanto
Platão como Aristóteles sofreram influência de Parmênides, mas cada um deu
uma resposta diferente para esta questão. Instituíram-se duas sínteses que se
afirmaram e que se estabeleceram na tradição. De um lado o idealismo
(Parmênides, Pitágoras e Platão), e, de outro lado, o materialismo (Heráclito,
Demócrito e Anaxágoras).
O platonismo esvaziou da dialética o conteúdo material e a força
dinâmica tão presente em Heráclito. Podemos em síntese destacar dois
momentos da dialética platônica: i) uma dialética ascendente, ou seja, eleva as
ideias até chegar à ideia que se identifica com o sumo Bem. Parte, portanto, do
múltiplo até chegar ao uno com finalidade de encontrar o princípio do princípio;
ii) uma dialética descendente, ou seja, a partir dos princípios reconstruir,
concebe ideias sem recorrer às experiências. Nesta lógica, a dialética assume
também um caráter formal, estável, sem lugar para o de-vir das coisas. Erige-
se uma filosofia baseada no pensamento separado do real como uma ideologia
que privilegia um grupo muito restrito de pessoas, de preferência, filósofos.
A doutrina metafísica de Platão encontra na sua própria época um
opositor à altura e que não aceitou totalmente as suas concepções. Erradicado
num idealismo também, mas de tendência realista, Aristóteles inaugura uma
dialética baseada na oposição entre a matéria e a forma. São opostos, mas
inseparáveis (diferente do que Platão propunha). Não foi só esta dialética que
249
Aristóteles nos deixou, mas também a dialética do singular-particular-universal.
Para ele a forma é universal e a matéria particular. A forma é a ideia, a ideia
universal. Não podemos, entretanto, confundir o particular com o
individual/singular. Tendemos a considerar como sinônimos, mas é necessário
destacar que o individual é composto de matéria e forma/do particular e do
universal. O material sempre está em mudança, ou melhor, é forjado a mudar e
a forma é aquela que tende a mudar. Podemos dizer de outra maneira: a forma
tem as qualidades das coisas e a matéria tem condições de suportar aquelas
qualidades. É a forma que dá qualidade para a matéria e esta é sem traços, é
indefinida.
O desafio maior a que Aristóteles se propõe é explicar o movimento e
não pode fazê-lo sem deixar claro a oposição entre potencialidade e
atualidade. Nesta antítese, Aristóteles consegue dar conta do movimento ao
sustentar que não há diferença entre o “não-ser” e o “ser” A potencialidade
toma o lugar de não-ser para a atualização. Não significa um salto do nada
para algo. Identificamos em Hegel a noção de consciência “em si” e “para si”,
esta noção tem origem na filosofia de Aristóteles.
Hegel foi influenciado por alguns filósofos com os quais buscou melhor
entendimento e que acreditamos o influenciaram para a definição de seu
sistema filosófico. Primeiro foi Espinosa com dois princípios: a negação e o
infinito. Para Espinosa, toda determinação era uma negação. Isto até soa como
um contrassenso considerando que a filosofia de Espinosa se fundamenta
numa perspectiva positiva. A negação da qual estamos nos referindo surge da
noção de Espinosa sobre duas proposições: finito e liberdade. “Diz-se finita em
seu gênero aquela coisa que pode ser limitada por outra da mesma natureza”
(ESPINOSA, 2007, p. 107). Determinar alguma coisa é limitá-la. Por exemplo, o
bom significa separá-lo do mal. Ora, afirmar que alguma coisa é significa negar,
ao mesmo tempo, o que ela não é. Outro princípio é a liberdade que Espinosa
afirma que “é livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua
natureza e que por si só é determinada a agir” (Ibidem.p.103). Poder agir e
não-poder. É novamente uma condição determinante que Espinosa destaca
positivamente. Hegel não segue esta mesma direção de Espinosa, inverte-a.
Para Espinosa, afirmar é negar. Para Hegel, o contrário, negar é afirmar. Para
250
Hegel a força está na negação, é na negação que está o processo de toda
criação. A negação é inerente ao positivo e para que algo seja é preciso o
serviço do negativo. Dissemos que dois princípios espinosanos influenciaram
Hegel. O primeiro foi a negação, mas também o princípio do infinito teve
impacto muito grande no seu sistema filosófico. A compreensão de infinito em
Espinosa refere-se ao ilimitado e poderíamos deduzir que o infinito então seria
indeterminado. Contudo, partindo da primeira proposição da Ética - “causa sui
compreendo aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja
natureza não pode ser concebido senão como existente” (Ibidem. p. 13) – não
podemos concordar que seja indeterminado. A causa sui constitui-se na
substância única “que existe em si mesmo” sem o externo. Dizemos para isso
que é causa imanente. Hegel adotará este princípio para fundamentar a própria
história no seu sistema filosófico.
O segundo filósofo a influenciar Hegel é Kant, que definiu o tempo e o
espaço como elementos da sensação e que são universais e necessários.
Qualquer elemento da sensação é produto de nossa mente. Então, as coisas
em si estão separadas de nossa mente e não são reais. O que é real? Sua
aparência, ou então, o fenômeno. Esta ideia será duramente questionada por
Hegel que não parte para compreender uma causa, mas qual a razão das
coisas. Como as coisas são como são e por que acontecem na história da
forma como são. Portanto, o mais importante, ou a categoria mais importante é
o ser, o conceito de ser. O ser é pressuposto para todas as categorias. Definido
isto, qual seria o método para investigar? Aqui estamos no cerne da questão.
Hegel descobriu que não somente a identidade possibilita a correta
investigação, mas a diferença. A diferença faz parte da identidade. Neste
sentido, chegou à primeira tríade de categorias: o ser, o nada e o devir. O ser
pelo ser é nada. O ser pelo ser é vazio. Então, o ser e o nada equivalem.
Portanto, deduz-se o nada do ser. Este caminho do nada ao ser é o que
denominamos devir. Esta é a assimilação completa já trabalhada em Heráclito,
mas em Heráclito não havia a história contemplada. Mas voltamos à tríade das
categorias que são somente desveladas pelo método dialético. Pela lógica
formal, era inadmissível a identidade e a diferença fazerem parte da mesma
proposição, mas tal lacuna fica resolvida com a terceira categoria que é o devir.
251
O devir assume a unidade dos contrários. Muitas vezes chama-se esta tríade
de tese, antítese e síntese. É claro que a razão não pode residir na
contradição, a contradição entre a tese e a antítese deve desembocar numa
síntese.
É muito comum no vocabulário da lógica hegeliana o termo “abstrato” e
“concreto”. O ser e o nada são termos abstratos, mas o devir, a síntese, a
unidade entre o primeiro e segundo termo é o concreto. Outros dois termos é
“imediação” e “mediação”. O termo imediação qualifica a tese; antítese e
síntese estão no campo da mediação. Este movimento, entretanto, quando
alcança a síntese tem a mediação e a imediação nele mesmo. A síntese da
tríade elimina e preserva as diferenças da tese e da antítese.
É a partir das obras de Marx e Engels que teremos os termos
reforçados do materialismo. Hegel afirmava (como também Kant) que haveria
categorias anteriores ao mundo que com Feuerbach esta prescrição cairá por
terra. Contudo, Feuerbach não consegue assumir o materialismo porque sua
referência do materialismo é a referência mecanicista que não concebia o
mundo como processo, como matéria sujeita ao desenvolvimento histórico. O
princípio antropológico de Feuerbach é mais consequente de que Hegel, isto
porque não separa corpo e espírito (o que é muito parecido com a visão
monista de Espinosa). Contudo, este ser humano como corpóreo e sensível
não está considerado nas determinações materiais e sociais. Como Engels
suscitou, Feuerbach foi o último representante da filosofia clássica alemã.
São poucas as referências diretas de Marx sobre a dialética, mas há
uma razão muito simples. A dialética é método e se inspira formalmente na
perspectiva hegeliana, mas radicalmente diferente quanto ao conteúdo ou
então quanto à noção de realidade. Marx não apresenta a formalidade, como o
faz Engels, da dialética, pois parte do que já havia sido prescrito dentro da
tradição filosófica Hegel-Feuerbach. A crítica desferida por Marx contra Hegel é
de que este caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensar, o que
poderia denominar-se “idealidade pura”. E, na mesma direção, a crítica
desferida por Marx contra Feuerbach é que este assume um materialismo que
apenas capta o objeto, a realidade, o sensível, mas ainda sob forma metafísica,
ou seja, ainda como contemplação e não como atividade humana. Mesmo que
252
Feuerbach tenha insistentemente se voltado ao real o fez considerando não
como realizado pelo trabalho. Portanto, para Marx é fundamental o método
dialético para conhecer adequadamente o real. E como se faz isto? Marx
afirma que o conhecimento está condicionado à realidade do trabalho e à
materialidade que pode ser analisada a partir de determinações do real. É
destas determinações que acedem as categorias que nada mais são que
categorias que expressam o que é o real, o que é a realidade mesma. Não
passam de representações abstratas que nos permitem fazer a reprodução do
concreto pelo caminho do pensamento. Este é o método correto, este é o
método dialético. Mais uma questão fundamental no método: ao analisar as
determinações do objeto real, os encadeamentos, as relações, pode-se dizer
que há uma “totalidade concreta”, então também pode-se dizer que “o concreto
é concreto porque é síntese de múltiplas determinações, portanto, é unidade do
diverso”. A totalidade concreta real que é o objeto é a unidade e é pelo
abstrato, mediado pelo abstrato que se chega ao concreto.
A dialética marxiana não foi bem compreendida no final do século XIX
e início do século XX, mas foi retomada determinantemente por Lênin na
Rússia. Lênin retomou a base filosófica marxiana que fora revista ou
naturalizada. O método dialético, como uma totalidade dentro da qual a
negação é também a destruição do que existe, era levado muito a sério por
Lênin. A análise dialética possibilitava para a prática revolucionária as
orientações adequadas e não compreendê-la adequadamente poderia levar a
graves erros políticos. A concepção dialética não pode ser confundida com
naturalização e, muito menos, compreender os aspectos econômicos como
naturais. Mais do que isto, a dialética não deveria ser utilizada com a finalidade
econômica porque isto levaria também a não compreender a totalidade
requerida. Sua defesa não era econômica, mas política. A política deveria
prevalecer sobre o econômico e não subordiná-la. Contudo, Lênin não defendia
uma nova dialética, mas a dialética compreendida como práxis política. Mas
esta práxis teve um resultado. O mundo não ficou na mera interpretação ideal,
houve o desafio de mudar o modo de produção capitalista para um outro.
Todos os fatores que estavam ligados à crítica tiveram que inserir-se na
dimensão da dialética criativa. Havia necessidade de pensar o positivo no lugar
253
da crítica. Sobreviveu a crítica negativa? Não sobreviveu e é neste aspecto que
a dialética começou a ser questionada.
No pós-guerra surge um filósofo que ficou mais conhecido pela sua
abordagem existencialista e pelo engajamento social. Sartre aceita
especialmente as críticas efetuadas por Marx contra Hegel. O que nos
interessa é a questão da dialética e como ela será revista neste período.
Referimo-nos anteriormente, com ênfase, à importância tanto para Hegel como
para Marx da categoria totalidade. A dialética prescinde do entendimento do
processo de totalização como a compreensão de um momento histórico, de
uma forma. Sartre defende que a totalidade não tem uma forma acabada, é
sempre aberta, está sempre suspensa. “É totalidade intotalizada”. Para Sartre,
a dialética deve ser compreendida como práxis histórica, mas que nunca
consegue chegar a uma meta cumprida, reivindicando que o movimento do ser
é idêntico do saber. Sartre critica a posição de Engels como uma dialética da
natureza e reconhece a dialética somente como práxis. Para Sartre, o que se
justifica na vida humana e no mundo é a prática, e chama atenção para que a
dialética não seja remetida como se fosse uma lei divina, metafísica, ou seja, a
dialética deve partir da realidade dos indivíduos. A dialética repousa, portanto,
nas práxis de indivíduos. Sartre opta não por uma totalidade fechada, mas uma
totalidade nunca totalizada, totalizando-se. O ser humano deseja estar na
totalidade, mas se frustra quando não participa da totalidade ou quando não
consegue reconhecê-la. O inverso também deve ser mencionado, quando o ser
humano reconhece que alcançou a totalidade e aí permanece cristalizado nas
suas crenças (SARTRE, 2002).
Lukács também insiste na crítica a Engels por ter enfatizado (como
Hegel também o fez) a categoria necessidade e apresenta duas categorias
alternativas para enfrentar as críticas em que o marxismo se transformou com
as consequências na URSS. Haveria de se colocar mais evidência não na
necessidade, mas na categoria possibilidade de tal forma que pudesse trazer a
reflexão no campo das possibilidades.
Nos referimos à dialética e aos seus filósofos. Todos eles europeus.
Nossas análises desembocaram num autor latino-americano que trouxe a
perspectiva ampliada da dialética: Enrique Dussel. Pergunta difícil para se
254
chegar a uma conclusão: é uma abordagem idealista ou materialista? Vamos a
uma citação emblemática:
“O filósofo para ser o futuro mestre deve começar por ser o discípulo atual do futuro discípulo. Tudo depende disso. Por isso, essa pedagógica analética (não somente dialética da totalidade ontológica) é da libertação. A libertação é a condição para o mestre ser mestre. Se é um escravo da totalidade fechada, nada pode realmente interpretar. O que lhe permite libertar-se da totalidade para ser a si mesmo é a palavra analética ou magistral do discípulo (seu filho, seu povo, seus alunos: o pobre). Esta palavra analógica abre-lhe a porta da libertação; mostra-lhe qual deve ser seu compromisso pela libertação prática do outro. O filósofo que se compromete com a libertação concreta do outro acede ao mundo novo, onde com-preender o novo momento do ser, a partir do qual ele se liberta como sofista e nasce como filósofo novo, ad-mirado daquilo que venturosamente se desdobra ante seus olhos, histórica e cotidianamente. O mito da caverna de Platão pretendeu dizer isso, mas disse justamente o contrário. O essencial não é o ver, nem é a luz: o real é o amor de justiça e o outro como mistério, como mestre. O supremo não é a contemplação, mas o face-a-face dos que se amam a partir daquele que ama primeiro” (DUSSEL, 1986, 210).
O que difere este pensamento das concepções de amor de
Feuerbach? Não se trata de um autor igualmente “por baixo materialista e por
cima idealista?” Não significa que não se considera o real e o concreto, mas há
uma defesa subjacente ou inerente do cristianismo colonizador culpabilizado
para superar a destruição do povo ameríndio. Sim, precisamos de uma
analética que não se baseia na teoria dialética colonizador-colonizado-
colonizador. Também esta concepção libertadora é “uma balofa religião do
amor”.
Essa parte foi desenvolvida considerando basicamente o que sucedeu
com a dialética, em específico antes da Segunda Guerra Mundial e, em geral,
com o materialismo histórico dialético, antes e depois desse período. Até o
início o final do século XIX, a psicologia era uma área da filosofia e essa
condição ainda persistiu até muito tempo depois. Contudo, no início do século
XX, a psicologia assume um estatuto de ciência e muitas correntes surgem
influenciadas, de um lado, pelo empirismo ou pelo dualismo cartesiano que
considerava “o corpo como uma máquina” e, de outro, pela defesa da
consciência como um fenômeno sem base histórica. Em 1921, Pavel P. Blonski
(1884-1941) escreveu dois livros na URSS: Reforma da Ciência e Ensaio de
255
uma psicologia científica, nos quais iniciou a estruturar a psicologia dentro de
bases marxistas. É neste meio que está Vigotski.
Os filósofos modernos abordados nessa parte influenciaram muito
Vigotski em sua produção científica. É por essa razão que autores ou
comentadores das obras de Vigotski acentuam uma vez o vínculo com as
concepções de Kant, outra vez com as de Hegel, Marx, Engels ou, raramente,
com Lênin. É curioso que dois principais comentadores, e até poderíamos
chamar de herdeiros diretos da produção científica de Vigotski, não se atêm em
detalhes a esta questão: Lúria e Leontiev. Podemos entender que os textos de
ambos aos quais nos referimos foram redigidos num momento histórico ainda
bastante acirrado, e a preocupação é garantir que as obras de Vigotski sejam
recuperadas e preservadas para estudos e pesquisas. É muito difícil deixar de
lado as considerações sobre a formação dos conceitos em Kant, mas esta
formação se resumia no sujeito e foi reforçada mais tarde por Hegel. Da
mesma forma, como separar Marx de Hegel? Deparamo-nos frequentemente
com declarações de que o “jovem Marx” era ainda hegeliano. É Lênin a
personalidade mais emblemática, compreendemos que Vigotski também tenha
seguido os mesmos passos com o aprofundamento dos estudos em Engels
para depois, com os aprofundamentos dos estudos em Hegel, aproximar-se
com mais profundidade no entendimento da teoria marxiana. Evidentemente
que temos que considerar duas personalidades em campos bem diferentes de
atuação, mas, enquanto referencial teórico, tenderam a se aproximar das
teorias engelianas inicialmente, para depois se libertarem desta perspectiva
que tanto Marx como Lukács consideram equivocadas em Engels, que se
resume em considerar com mais ênfase o reino da necessidade. É por essa
razão que consideramos que o materialismo histórico dialético de Vigotski tem
suas raízes teóricas dentro das concepções leninianas, para depois confrontá-
las com o seu já conhecido Hegel, que tanto estudara no tempo da juventude
em Gomel.
Chama-nos a atenção a declaração de Leontiev ao fazer uma
apresentação resumida da teoria vigotskiana:
“Através da hipótese do caráter mediado dos processos psíquicos por meio de ‘instrumentos’ peculiares, Vigotski procurava introduzir na
256
ciência psicológica as diretrizes da metodologia dialética marxista, não de modo declarativo65, mas materializado em um método. Esta é a principal característica de toda a obra de L. S. Vigotski e é precisamente dela que decorre seu êxito” (LEONTIEV, 2013, p. 444).
Na visão de Leontiev, o que identifica Vigotski é “o método”. O seu
“êxito” está nisso, mas fica subentendido que no campo das diretrizes há um
silêncio por parte de Vigotski. Se comparado com os escritos de Blonsky,
constataremos o contrário; há uma clareza das diretrizes, mas talvez nem tanto
de “método”. Este tipo de declaração leva ao que NEWMAN & HOLZMAN
(2002) evidenciaram em Vigotski: a distinção entre “psicólogo e/ou
metodólogo”, ou seja, significa, em primeiro lugar, que a psicologia tem “seu
objeto estabelecido”; em segundo lugar, pode-se estabelecer parâmetros
metodológicos para compreender a realidade em que se vive e assim contribuir
para resolver as dificuldades ou os problemas da contemporaneidade (Ibidem,
p. 22). A questão que nós problematizamos aqui é a tendência de dicotomizar
Vigotski, ou então, a tendência de fazer o que Leontiev apontou: enfatiza-se o
lado do metodólogo de base materialista histórico-dialética sem lhe dar o
devido crédito quanto a suas bases gnosiológicas. De fato, “a dialética interna”
é um traço característico no método de Vigotski e que fundamenta sua
“psicologia dialética”, mas quando relativizamos o caráter gnosiológico, abrimos
infinitas possibilidades identitárias.
Encerramos aqui, também, a segunda etapa da “análise formal ou
discursiva” do método hermenêutico de profundidade, pois analisamos os
autores citados constantemente nas obras de Vigotski. Depois tentamos inserir
a teoria vigotskiana no contexto das polêmicas após a Segunda Guerra
Mundial. Para que possamos seguir no próximo passo é necessário adentrar
nas obras mesmas de Vigotski, ou seja, partir das questões de suas pesquisas.
Como não é possível contemplar tudo que Vigotski escreveu, destacaremos
dois campos de estudo: a psicologia da infância e da adolescência. Contudo,
não possível fazer isso sem antes localizar Vigotski dentro do movimento da
psicologia. Portanto, como constantemente destaca, a crise da psicologia.
65 Grifo nosso.
257
PARTE III: PSICOLOGIA DIALÉTICA
Vigotski foi aquele que estudou a dialética intensivamente a ponto de
podermos afirmar que a dialética estava em Vigotski e não Vigotski na dialética.
Toda a teoria de Vigotski sem a dialética é morta; a lógica dialética, a prática
dialética e a análise dialética são inerentes a Vigotski, mas será um dialeta
idealista ou materialista? Esta pergunta já nos coloca a um passo mais adiante,
isto porque, não se trata de perguntar se é ou não dialético, porque é muito
difícil um texto de Vigotski não conter uma referência da unidade dos
contrários, a unidade de síntese dialética. Podemos verificar isso desde os
primeiros textos de 1924, quando poucas citações se relacionavam ao
marxismo. Entretanto, vimos anteriormente nesse trabalho que tanto a dialética
idealista quanto a materialista assumem peculiaridades em seus
desenvolvimentos. Haveria algum momento na produção de Vigotski em que
ele teria se voltado mais para uma do que para outra? Nosso autor em
referência está conectado totalmente com seu tempo e a brevidade de sua vida
nos furtou dos embates teóricos mais importantes. Se recorremos às
produções deste autor na atualidade é porque este embate e debate não estão
ainda concluídos. Esta tese se coloca dentro deste debate e no intuito de
explicitar como o autor se posicionou no campo das diversas teorias filosóficas.
Todos eles exímios dialetas seguidos de muitos debatedores e detratores que
surgiram na segunda metade do século XX. Na área da Psicologia Social,
estes referenciais se ampliam no momento em que a psicologia deixa de ser
filosofia para ser propriamente uma ciência que não pode simplesmente se
abster da realidade, do real, do mundo objetivo. Como bem nos situou
MARCUSE (1969), as teorias sociais ganham preponderância a partir de Hegel
e se radicalizam em Marx porque há uma implicação necessariamente com a
realidade. Portanto, esta não é uma especificidade dos materialistas e por eles
inaugurada. Esta iniciou com os empiristas, passou pelos sistemas filosóficos
de Kant e Hegel e terminou em Engels com suas leis da dialética. A análise
reconstitutiva do sentido da dialética em Vigotski não se encerra no exercício
da lógica, mas há que inseri-la no debate gnosiológico e, neste sentido,
constantemente nos envolvemos com as diferenças e similitudes entre Hegel e
258
Marx. A tese hegeliana do espírito absoluto, a antítese feubachiana do ser
humano real e a síntese marxiana do ser humano concreto e histórico podem
ser consideradas independentemente, mas são na verdade indissociáveis. A
teoria marxiana não poderia chegar à síntese sem esta trajetória.
Como já dito, nos propusemos a investigar a influência do idealismo e do
materialismo dialético nos trabalhos de pesquisa desenvolvidos por Vigotski.
Queremos elucidar a genética da teoria vigotskiana considerando a dialética
hegeliana, o materialismo dialético marxiano-engeliano e o materialismo
histórico leniniano. Este movimento referencial como uma tríade não é por
acaso. Há farta literatura sobre estas distinções. Contudo, não é possível tratá-
las historicamente como momentos estanques, isolá-los como fatos históricos
do passado. Ao nos defrontarmos com as principais biografias de Vigotski, nos
deparamos com considerações que não são unânimes. De um lado, temos
perspectivas bem ortodoxas que afirmam categoricamente que a teoria
vigotskiana está indiscutivelmente referendada no materialismo histórico
dialético, e, por outro lado, encontramos perspectivas heterodoxas que tentam
“arrancar” todas as referências do materialismo histórico dialético. Esta
dicotomia referencial era muito acentuada no período da Guerra Fria, mas na
atualidade as diferenças interpretativas se tornaram mais complexas e mais
diversas.
Se levarmos em consideração que durante a vida nossas concepções
vão se alterando na medida em que vamos acumulando experiências, e vamos
confrontando nossas concepções com a vida prática, percebemos o quão
dinâmico é nossa formação gnosiológica. Nosso autor em evidência, quanto a
isto, tem um caráter muito especial devido à imensa produção de ensaios e
artigos elaborados durante o período histórico que viveu caracterizado pelas
transformações da estrutura política e econômica na Rússia. Sua extensa
produção também se deve à sua posição estratégica de coordenação de vários
grupos de pesquisa na área da pedagogia, em Moscou, de 1924 a 1934,
período marcado também pela pós-revolução e institucionalização da
sociedade socialista. A tarefa da educação e da psicologia era considerada
estratégica, porque a maioria da sociedade russa era analfabeta e havia a
diretriz central de alterar radicalmente esta condição. A educação poderia
259
ajudar na criação do novo ser humano e na qualificação da participação política
(para decidir os novos rumos da sociedade), bem como capacitar o trabalhador
para sustentar alternativas de produção coletiva. Era um momento oportuno
para inovações, e, ao mesmo tempo, de disputas acirradas para garantir a
legitimidade de condução de qualquer processo que viesse contribuir para as
transformações necessárias. Vigotski vivia neste momento de tensão e de
disputa para definir uma psicologia geral.
O método histórico dialético de Vigotski é imanente, analítico e sintético
no que se refere ao processo histórico. Assinala sempre uma forma, por
exemplo, imaginação. Mostra a estrutura (a relação entre reprodução e
combinação) e seu funcionamento (associação e dissociação). Ao passar pelo
conteúdo, o que se mantem não é o criativo, mas sem o qual não alcança a
criatividade, portanto, a análise é realizada considerando a história. Mas isso
apenas como um exercício de abstração, pois o é que é criativo hoje
certamente não será amanhã, isto é, passa a denominar como uma
reprodução.
Em muitas passagens dos textos de Vigotski é abordada a diferença
entre a lógica formal e lógica dialética, chamando-nos a atenção para o
processo mesmo da dialética. Se por ventura congelássemos o movimento a
dialética perderia completamente o sentido. Lefebvre menciona que o
“pensamento dialético”, quando “se transforma em linguagem dialética, que
recobre e oculta não somente os conflitos e contradições no real, mas também
sua própria contradição entre si mesmo e o real”, o “pensamento se transforma
no seu contrário”, ou seja, uma “ideologia” (LEFEBVRE, 1970, p. 27). Aqui o
autor está se referindo ao período de Stalin e o que fizeram com o poder da
dialética. Aquela força que deveria ser a combatedora se transforma em força a
ser combatida. Se a dialética de Vigotski fosse diferente, se fosse estabelecida
como “totalidade fechada”, não teria sido proibida no final de sua vida.
O método dialético não pode ser compreendido como se fosse
meramente um fenômeno intelectual ou especulativo, mas é cultural.
Analisarmos a demanda posta a Vigotski em seus trabalhos que traduz que
havia uma conquista no seu contexto e até mesmo na sua época do
260
reconhecimento da importância da dialética. Seria reducionismo exacerbado
desconsiderar as questões históricas. Citando novamente Lefebvre – o método
dialético – “veio a pôr ordem, a desobstaculizar e organizar a consciência do
mundo e do ser humano” (Ibidem, p. 51).
O conhecimento é uma condição humana com a qual comumente se
distingue “o que se cohece” e “quem conhece”. De um lado está o objeto e de
outro o sujeito. Contudo, não há como dissociá-los. Ambos fazem parte de um
todo e afirmamos que se trata de uma interação dialética. O conhecimento tem
um aspecto prático (o conhecimento começa com algo que se faz), social (nos
relacionamos e desta relação dependemos para aprimorar nosso
conhecimento) e histórico (conhecimento tem uma condição por se encontrar
onde está). Vigotski é um profundo conhecedor das teorias estéticas e este
conhecimento o possibilitou inicialmente a diferenciar a arte literária e a
diferenciação, dentre tantas, da forma e do conteúdo. É a partir desta
diferenciação que também distingue a lógica dialética da lógica formal e, mais,
um de seus principais trabalhos, a relação entre pensamento e linguagem.
Podemos entender a forma como uma gramática com a função de codificar
uma língua e todos as convencionalidades da escrita. Se nos atemos apenas à
forma, caímos no que se costuma dizer formalismo gramatical. Não basta
escrever dentro das regras gramaticais, mas é necessário ter conteúdo – é
necessário ter o que dizer. Portanto, o conteúdo supera a forma, mas não a
anula. É como a relação entre sujeito e objeto – sem um não haverá o outro.
Não estamos aqui definindo uma identidade, mas considerando uma relação
indissociável. Na mesma direção, a lógica formal é uma lógica da abstração,
porque precisa do conteúdo para se manifestar. Portanto, é sempre incompleta.
Após reduzir-se à forma, o pensamento a supera. São a estas interações que
podemos denominar dialética. Além destas relações citadas, a relação entre o
pensamento e a linguagem não é um processo simples. O que se pode obter
desta relação sempre é conflituoso, pois conseguir assimilar o conteúdo da
vida prática e colocar dentro das formalidades linguísticas é constantemente a
tentativa de superação do conteúdo sobre a forma.
O período histórico em que Vigotski viveu abalou o mundo, isto porque,
pela primeira vez, de forma mais consequente que na Revolução Francesa,
261
inverteu-se a condição do poder. Vigotski é também resultado desta
transformação social. Há referenciais teóricos fundamentais para os quais
Vigotski também busca recursos para dialogar com sua equipe de trabalho. O
capítulo 17 consiste na exposição das conclusões sobre o sentido da dialética
para Vigotski.
No capítulo 18, nos ateremos aos escritos iniciais mais direcionados à
crítica aos modelos existentes para construção de uma psicologia dialética.
Esta não era uma tarefa exclusiva de Vigotski, mas de um grupo significativo
que posteriormente passou a ser conhecido como Psicologia Soviética. No
capítulo 19 apresentamos um manuscrito que foi descoberto nos arquivos da
família e que merece uma atenção especial pelos detalhes apontados acerca
da crise da psicologia. Esta crise havia sido apontada desde início dos
trabalhos de Vigotski, mas neste manuscrito ele consegue delimitar o
problema. Também dispomos de um outro Manuscrito elaborado um pouco
mais tarde do que o anterior, chamado Manuscrito de 1929. Os comentadores
argumentam que este, um rascunho, é um esboço de difícil compreensão, mas
que significa o marco para um salto qualitativo para novos fundamentos
teóricos e referenciais de pesquisa. No capítulo 20, apresentamos um resumo
que demarca a nova fase de Vigotski ao definir uma proposta metodológica.
No capítulo 21, conforme já havíamos anunciado na primeira parte deste
trabalho, começamos nossas análises sobre a psicologia infantil. Centramos
nossos estudos no problema da idade, ou seja, no estudo sobre as idades e as
crises que as crianças passam no seu desenvolvimento. Por fim, capítulo 22,
no qual nos ativemos com mais atenção sobre um conjunto de textos da
Pedologia do Adolescente. Investigamos especialmente a questão da crise da
idade de transição que Vigotski considera a principal na formação do psiquismo
humano. É o estudo da história das funções psicológicas superiores e que
abrange as principais categorias analíticas, como também aponta para a
qualidade de sua pesquisa e algumas lacunas.
262
Capítulo 17: Os Referenciais teóricos e os interlocutores
Muitos dos textos de Vigotski foram estenografados ou então estavam
guardados em forma de manuscritos e sempre paira uma dúvida se estes
textos que foram tornados públicos na década de 80, na URSS, são de fato a
reprodução fidedigna dos originais. A maioria dos títulos do acervo está
praticamente toda fotocopiada na versão russa e um projeto editorial está em
andamento, como já mencionado na primeira parte deste trabalho, para uma
edição completa contendo inclusive as correspondências e pequenos textos
analíticos sobre literatura.
Pelos textos disponíveis de Vigotski na língua espanhola e portuguesa
podemos ter fartas informações sobre como foi assimilada a dialética no
decorrer de sua vida. A lógica dialética tem esta condição de qualificar as obras
mesmo que estejam num tempo histórico tão distante do nosso. Isto também
significa que avançamos pouco na psicologia dialética, por necessitarmos de
referências de tempos tão longínquos.
Para analisarmos a concepção de dialética de Vigotski devemos
considerar, primeiramente, que ele é dialético, usa a dialética e essa
capacidade não veio com o estudo do marxismo, mas com o estudo de Hegel.
Esta informação os historiadores apresentavam apontando o período em que
Vigotski organizava grupos de estudos na sua cidade, Gomel, quando ainda
era jovem. Mas nós temos uma obra emblemática para destacarmos a dialética
de Vigotski devido ao tempo longo que se ateve a uma obra escrita com
fundamentos da lógica dialética: Hamlet, Príncipe da Dinamarca. A análise que
ele estabelece entre o que é dito e não dito, e entre o aparente e o camuflado,
nesta peça de teatro, torno-o um fascinado pela lógica dialética desde a
juventude. Não apenas a relação de Hamlet consigo mesmo, mas esta relação
indissociável entre o social e o individual, ou então, sob outra perspectiva, o
texto e subtexto ou sentido e significado. A análise da obra desafia a
objetividade dentro da subjetividade que a lógica formal não dá conta. Este
exercício acompanhou Vigotski desde o tempo de escola e o acompanhou na
faculdade, no doutorado (ou mestrado) e voltou no final da vida com muito mais
força para, inclusive, rever seus preceitos epistemológicos. A noção de drama
263
que consta no Manuscrito de 1929 é apontado pelos comentadores como a
grande virada epistemológica de Vigotski, que iniciava a saída das concepções
sistêmicas, das localizações das funções psicológicas e iniciava a estudar as
relações sociais e as implicações na formação do sujeito social.
Nós apresentamos na Parte II a concepção dialética dos principais
interlocutores de Vigotski. Não apresentamos em detalhes a dialética de Stalin
porque virou mais objeto de panfletário. Contudo, não devemos esquecer as
aventuras da dialética que desembocou num projeto de sociedade mais voltada
para ideia de progresso do que propriamente para um projeto de emancipação
humana. A que se deve o desvio? Autores chegaram a anunciar como
problema a própria dialética que se constitui muito mais para negar o que está
do que implantar o que deve ser implantado. A concepção da negação da
negação foi rechaçada pelo período stalinista, abençoada por Althusser,
chegou até onde deveria ir. Há necessidade de deixar claro que existe uma
lógica e esta pode ser distinguida entre a formal e a dialética. A lógica formal
não se aplica à realidade e, portanto, nega a história como ciência.
Diferentemente da lógica dialética, na qual a história é imprescindível e
indissociável da condição humana.
No tempo de Vigotski, o embate principal estava entre o idealismo e o
materialismo. Não precisamos distinguir os tipos de idealismo, porque o
referencial, como bem apontou Marx, foi a filosofia de Hegel, que alcançou o
sistema mais completo e sofisticado que se poderia chegar. Este idealismo não
nega a história, mas não a considera como ciência. Por outro lado, temos
materialismos diferentes, que reconhecem a história de formas diferentes.
Assim como alguns comentaristas entendem que há diferença entre o
materialismo de Marx e Engels, da mesma forma, ambos se julgam
materialistas e certamente terão divergências em alguns momentos sobre
aspectos da história. Afirmamos que a história define o materialismo de um e
de outro, e, portanto, a dialética é determinada pela história. Não se pergunta
quem é mais materialista, se Lênin ou Vigotski? Importa saber como atuam na
história, como compreendem e como aplicam as mudanças na realidade
compreendendo a história.
264
Vigotski se ampara nas concepções de Marx quando afirma que
“conhecemos tão somente uma única ciência, a ciência da história”. Afirmar
isso exige que definamos o que é história. Sob a perspectiva sociológica Marx
afirma que são os seres humanos quem fazem história, mas não a fazem
segundo a sua livre vontade66; estão inseridos numa história mais ampla que
não se reduz ao passado como algo estático. Todo passado com suas
tradições oprime “o cérebro dos vivos” e recebemos como um apelo para a
transformação da realidade. É importante, entretanto, esclarecer que atividade
não está dissociada da teoria e é melhor falarmos da práxis. A ciência é, neste
sentido, resultado da práxis. Mas o que é a teoria? É fazer o que pensamos. E
o que é atividade? É pensar o que fazemos. E, Lênin, na sua frase tão
conhecida, deixa isso muito evidente – “sem teoria não há revolução” – sem a
práxis não há alteração objetiva da realidade.
Só resta então dizer o que é ciência. Entendemos que a ciência é a
natureza de pensar e intervir na natureza. Quem faz a história é o ser humano
e o ser humano torna-se histórico porque é capaz de reconhecer-se a si
mesmo como reconhecer a história de sua própria generidade. A natureza não
faz história, mas o ser humano, a partir de sua evolução biológica, transformou-
se quando tornou-se “um animal que fabrica instrumentos”, como Marx havia
mencionado e reforçado por Engels quando analisa “o papel desempenhado
pelo trabalho na transição do macaco para o homem”. Vigotski é conhecedor
profundo da obra de Engels A Dialética da Natureza, conforme constatamos
nas frequentes citações realizadas em seus textos. Este conhecimento
contribuiu para elaborar um método para conhecer o comportamento humano
que resulta em dois intrincados processos que são síntese da relação dialética
entre a ontogênese e a filogênese e que correspondem a dois atos: atos
inferiores naturais que estão inseridos na evolução biológica humana e
compartilhados com animais; atos instrumentais artificiais que evoluíram
enquanto história humana. Esta relação dialética possibilitou que Vigotski
desvendasse este processo no psiquismo humano que combina processos
naturais e artificiais. Uma referência bem conhecida quando se estuda a
memória. A ligação de dois estímulos é estabelecida pelo processo direto de
66 Dezoito Brumário, cap. I, Karl Marx.
265
reflexo condicionado – que constitui a memória natural, a memória dos animais.
A ligação de dois estímulos estabelecida por um processo que tem um
instrumento (recurso mnemotécnico) como auxílio consiste na memória
artificial, a memória essencialmente humana. Assim como dispomos dos
instrumentos que é um fator externo do ser humano ao usar ferramentas,
também há uma outra relação dialética entre as ferramentas, instrumentos e
signos. A partir dessa base, como nos referimos nos textos analisados
anteriormente, pode-se fazer uma série de pesquisas sobre as funções
psicológicas superiores na relação com as funções primitivas. As pesquisas
sobre esta relação se avolumam em Vigotski sobre os temas mais específicos:
percepção, atenção, formação de conceitos, interesse, memória, linguagem,
pensamento, vontade, consciência e personalidade.
Nos textos analisados sobre a Pedologia do Adolescente verificamos
que em vários momentos Vigotski traz as citações de Hegel através de Lênin
para compreender a lógica dialética em si. A lógica pela lógica é apenas um
exercício mental no qual nós fazemos questão de apontar as condenações
críticas de Kant. Em vários trechos dos textos, nos deparamos com a crítica de
Vigotski a Kant; o faz reduzindo toda a filosofia antes de Hegel como filosofia
da especulação. Kant sugere que o conhecimento deveria regular os objetos e
Vigotski não concordava com essa perspectiva. Se o concreto é síntese de
múltiplas determinações, temos que partir do concreto. Não é ponto de
chegada, é ponto de partida. Esta definição é a base da epistemologia
marxiana e dela Engels e Lênin também não abrem mão. Kant se pergunta: de
onde vem o nosso conhecimento? Ele responde: de duas fontes. A primeira
consiste em recepcionar os objetos; e a segunda é poder conhecer os objetos
recepcionados. Contudo, Kant tem um papel importante na filosofia, isto porque
estabeleceu regras rigorosas para depois intentar descobrir a relação com o
objeto em busca de uma verdade positiva. Kant utiliza-se de uma dialética
inversa daquela que Hegel inaugurará. A dialética transcendental kantiana é
positividade na negatividade. Em Hegel, pelo contrário, o positivo se obtém
pelo negativo. A questão fundamental na perspectiva kantiana é que as
categorias são definidas a priori e isso é completamente inadmissível para
Hegel, Marx, Engels e Lênin.
266
O materialismo dialético não é apenas uma teoria, uma gnosiologia
como temos sempre mencionado, mas também tem seu caráter epistemológico
em geral e de método em particular. Na exposição da parte dois apresentamos
detalhadamente o método tanto de Marx como também de Lênin. A
apresentação feita por Marx sobre o método é muito passageira em suas
obras. A preocupação de Marx não era essencialmente epistemológica, mas
ontológica, mas o que fazer quando se está no meio de uma revolução
implementando mudanças estruturais? Lênin expôs muito claramente o caráter
epistemológico com síntese da teoria e da prática. O método exposto nos seus
Cadernos Filosóficos é uma das melhores definições como também prima pelo
detalhe. É um método que nos permite conhecer a realidade, conhecer o real,
como nos fala intensivamente Feurbach, mas este não considerou a história e
nem a dimensão humana do trabalho. E este é ponto central da importância do
método. Conhecer a realidade e considerá-la apenas como realidade e não
transformá-la é apenas especulação. O contrário também é problemático,
aplicar métodos sem teoria cai no mesmo cadafalso metafísico. Considerando
os detalhes apresentados pelo método de Vigotski, sustentamos a tese de que
sua principal base foi o método de Lênin que está exposto nos “Cadernos
Filosóficos”. Ao considerar os detalhes da exposição leniniana e da vigotskiana
vemos a plena sintonia:
“(...) objetividade da análise, todo o conjunto das relações múltiplas desta coisa com outras, o desenvolvimento desta coisa e o seu movimento próprio, as tendências internas contraditórias nesta coisa, a coisa como unidade dos contraditórios, o desenvolvimento destas contradições e a unidade da análise” (LÊNIN, 1977, p. 92-93).
É um equívoco afirmar que Vigotski compreendeu a “unidade de
análise” porque compreendeu o desafio de totalidade dos gestaltistas. Seu
conhecimento sobre a dialética lhe conferia capacidade de dominar muito bem
a relação entre contradição, totalidade e mediação dentro do que se costuma
chamar como escola de psicologia: “psicologia soviética”.
Então, a pergunta clássica quando se discute o sentido da dialética em
Vigotski é: “ele é idealista ou materialista?” A pergunta nos possibilita
responder em duas direções. Uma é simplista e a outra é mais complexa. Seria
267
muito simples localizar nos textos as tantas vezes que Vigotski apresenta as
citações contra Hegel com o apoio de seus interlocutores. Retirar esta condição
do texto é desconfigurar e deslegitimar a teoria vigotskiana, exceto se
entendermos que as obras de um autor não devem ser entendidas como
expressão profunda e rigorosa de seu pensamento. O que foi feito com o livro
Pensamento e Linguagem quando foi editado nos EUA é “desconfiguração”.
Nada vai impedir, entretanto, que cognitivistas e pragmatistas (e outros mais)
se apossem das teorias e metodologias vigotskianas. Afirmar que Vigotski não
é materialista histórico dialético é não considerar, repetimos, o texto em si. A
segunda resposta, mais complexa, coloca o debate dentro de uma discussão
muito mais ampla da dialética que foi tão polemizada na segunda metade do
século XX, com a Escola de Frankfurt e com as teorias da Ontologia do Ser
Social de Lukács. A dialética como um referencial criativo ligado ao
materialismo histórico e como um referencial para práxis foi contestada e
defendida como questões relevantes para refletir sobre o caminho ou destino
da civilização humana. É neste período que a teoria vigotskiana ganha
relevância, pois tornou-se umas das raras referências que se manteve às
premissas marxianas e leninianas.
A dialética no tempo de Stalin tem todas as leis que a ortodoxia
pudesse elencar desde que não se debruçasse sobre “a negação da negação”.
Althusser, por exemplo, fez o mesmo com a dialética – suprimiu a negatividade
e defendeu Stalin. O trabalho do negativo é o fundamento do marxismo e da
crítica e este é um ponto frágil na teoria vigotskiana. Esta questão é tão ampla,
tão polêmica, que nas condições em que viveu Vigotski são críticas que
poderiam não ter sentido para o seu momento. Qual seria a negatividade
depois da abolição da propriedade privada, do lucro, dos contratos e do
dinheiro? E, quanto a Lênin, como se comportou com esta questão? É muito
claro para Lênin que a negatividade consistia em lutar contra o capitalismo. E,
comparando com Vigotski, esta é uma fragilidade, uma lacuna por não ter esta
explicitação da negatividade. A negatividade, portanto, olhando no campo da
psicologia, foi confrontar a ontologia da perspectiva da psicologia empiricista,
experimentalista e objetivista que o ser humano se reduzia ao reflexo chegando
ao extremo de não haver diferença entre animais e seres humanos.
268
Por que as obras de Vigotski foram proibidas na URSS em 1936? Não
foi em razão da identificação com o idealismo, mas sim por não admitir na
teoria marxiana e leniniana desconsiderar o embate teórico aberto (marca
registrada na época do secretariado de Lênin). Não basta somente conhecer as
leis da relação entre quantidade e qualidade e da contradição sem considerar
as possibilidades de superação. Portanto, Vigotski é sim materialista na
expressão daquilo que Marx havia defendido como crítica da crítica e que foi
tão bem relatada na “Sagrada Família”. A massa é acrítica e os críticos podem
entender e saber o que é melhor para ela. Marx é radicalmente contra esta
concepção que governa já sabendo da condição menor ou impotente do ser
humano. O ser humano, na perspectiva genérica, tem capacidade de
transformar a realidade e não há porque destinar a responsabilidade para que
o outro decida, mas assumir a sua capacidade real de transformar o mundo e
se transformar (MARX & ENGELS, 2009). A crítica marxiana que consta na
obra que Vigotski não conheceu (Sagrada Família) é a mesma crítica radical de
Vigotski, qual seja, a capacidade e potencialidades humanas são capazes de
transformarem o mundo nas condições nas quais se apresenta.
Alguns autores fazem críticas sobre a noção de reflexo de Lênin e que
por sinal são muito próximas das de Vigotski (GONZÁLEZ REY, 2013). A
maneira como Lênin ressalta a condição do objeto e o reflexo na mente
humana é uma forma radical contra as superstições humanas. É a inversão da
lógica. No seu livro Materialismo e Empiriocriticismo é muito mais a apologia
crítica contra a filosofia especulativa e idealistas que tendem a não considerar
a realidade concreta. A noção de reflexo é também uma tendência que envolve
o outro debate: a necessidade e liberdade. Lukács (2010; 2015) contraria a
perspectiva de considerar as variáveis da necessidade como determinantes.
Por exemplo, o socialismo é uma necessidade irreversível, mas os
determinismos de elevar a necessidade a este grau o aproxima à teoria do
positivismo, no seu avesso. Tanto o reflexo como o determinismo da
necessidade levam a menos liberdade humana.
Há uma frase muito presente e constante nos textos de Vigotski que
nós vemos desde o primeiro texto analisado e publicado em 1924:
269
“(...) temos consciência de nós mesmos porque a temos dos demais e pelo mesmo mecanismo, porque somos em relação a nós mesmos o mesmo que os demais em relação a nós. Reconhecemo-nos a nós mesmos somente na medida em que somos outros para nós mesmos, isto é, desde que sejamos capazes de perceber de novo os reflexos próprios como excitantes” VIGOTSKI, 2004, p. 18).
O que os outros são para que possamos ser o que somos pode
reduzir-se apenas a uma noção de reflexo. Esta noção leniana de que o mundo
exterior é refletido pela mente humana, mesmo que se entenda que não é uma
questão automática ou osmótica, é determinista. Esta visão, esta concepção de
ser humano no final da vida de Vigotski vai desaparecendo quando afirma no
Manuscrito de 1929 que “a dinâmica da personalidade é o drama” (VIGOTSKI,
2000).
A dialética vigotskiana alcançou grande impacto a ponto de ressuscitá-
lo com todas as publicações mesmo que tenha sido calado por longos 50 anos.
Ao fazer a transposição das questões do tempo de Vigotski para os dias de
hoje é preciso ser muito criterioso e cuidadoso. O que é inadmissível é retirar a
base ontológica de Vigotski e subtrair de seus textos o que justifica esta opção.
Atitudes como essas falseiam o pensamento do autor como também torna
flexível para interesses dos mais variados.
270
Capítulo 18: Os primeiros escritos
Como é sabido, Vigotski participou do II Congresso de Neurologia, no
início do ano de 1924, e nos chama atenção os títulos das palestras que ele
apresentou neste evento: i) Método de investigação reflexológica e psicológica;
ii) Como temos que ensinar psicologia hoje; e, Resultados de um levantamento
sobre o estado de espírito dos alunos nas últimas aulas das escolas de Gomel
em 1923. Não se dispõe dos textos das últimas duas palestras, talvez porque
tenham sido extraviados. Independentemente de não termos o registo destas
palestras, os títulos nos remetem às preocupações de Vigotski no campo do
ensino, para questões reais. Diante de tantos campos de estudo, a decisão de
Vigotski participar especificamente deste congresso demonstra interesse na
organização do ensino da cidade de onde provém e também a intenção de
querer participar deste programa educacional para todos. O único registro da
participação no congresso é o texto que chega até nós sobre as disputas
teóricas e metodológicas, que se resumem em psicologia objetiva e psicologia
subjetiva. Neste escrito, distinto de todos os outros, não há explicitação de
Vigotski acerca do materialismo histórico dialético. Não há também nenhuma
menção sobre a lógica formal, lógica dialética,... enfim, às questões tão
recorrentes e definidas como diretrizes no primeiro congresso. Contudo, já
podemos observar o domínio perspicaz da lógica dialética quando lança uma
afirmação tão arrebatadora: “Ser materialista em fisiologia não é difícil. Mas
provem como sê-lo em psicologia e se não o conseguirem, continuem a ser
idealistas” (VYGOTSKI, 2013 k, p. 19). O debate proposto por Vigotski é sobre
metodologia e ataca a reflexologia. Com isso se pergunta se os reflexologistas
“podem omitir a psique?” “Pavlov diz que sim” (Ibidem, p. 19).
Em 1924, Vigotski também escreveu um prólogo para o livro de A. F.
Lazurski. Esse texto foi elaborado cuidadosamente respeitando a carreira do
psicólogo russo. Verificamos que ele está já consciente de uma tarefa: “revisar
os fundamentos e princípios da psicologia à luz do materialismo dialético “e a
definir parâmetros metodológicos para investigação científica. A fisiologia
utiliza-se de métodos das ciências naturais exatas que alcançaram
indubitavelmente conhecimentos precisos sobre as atividades nervosas
271
superiores. Aponta a crise que existe na psicologia que precisa enfrentar
objetivamente a subjetividade, resolver o problema da consciência. Denuncia
que a psicologia desta época não se apresentava como uma psicologia geral e
estava fragmentada. A crise na psicologia consiste também no fato de que
cada corrente vai se arrumando com a solução dos problemas e, no caso da
psicologia empírica, não passa de uma concepção idealista porque permanece
somente na experiência com que julga ser objetiva (VIGOTSKI, 2004, p. 42).
Vigotski menciona no final do prólogo que “não se deve esquecer nem
por um minuto que cada vocábulo da psicologia empírica é um odre velho que
se encherá de vinho novo” (Ibidem. p. 53). A psicologia empírica precisa ser
superada e a tarefa parece ser muito clara para nosso autor.
Notemos que há uma diferença sensível para o texto da palestra
apresentado no congresso e este prólogo. Há mais cuidado, há preocupação
em colocar o materialismo dialético em pauta.
Em 1925, Vigotski publicou A consciência como problema da psicologia
do comportamento, no qual apresenta a dificuldade da literatura até então tratar
da natureza psicológica da consciência. Fazemos questão aqui de enumerar os
problemas mais importantes e relacionados pelo autor:
i) A psicologia não enfrenta “os problemas complexos” e declara não
existir “uma única lei psicológica” que formule os possíveis nexos
entre os fenômenos e que diferenciem o comportamento animal do
comportamento humano;
ii) Não se considera a consciência, portanto, depara-se com uma
psicologia sem consciência;
iii) “A psique e o comportamento são interpretados como dois
fenômenos distintos”. Ou seja, a psique é tratada como um
fenômeno subjetivo e o comportamento como um fenômeno
objetivo;
iv) Considera-se “os processos subjetivos totalmente supérfluos ou
secundários na natureza”;
v) Conclui-se que o “comportamento é uma soma de reflexos”
(VIGOTSKI, 2004, p. 56-60).
272
Vigotski defendia que o conceito de reflexo eram “conceitos abstratos”
e que seria muito mais conveniente “estudar o mecanismo, a composição e a
estrutura do comportamento”. E, conclui:
“A psicologia cientifica não deve ignorar os fatos da consciência, mas materializá-los, transcrevê-los para um idioma objetivo que existe na realidade e desmascarar e enterrar para sempre as ficções, fantasmagorias e similares. Sem isso é impossível qualquer trabalho de ensino, de crítica e de investigação” (Ibidem. p. 63).
Em 1930, foi publicada a palestra “Sobre os sistemas psicológicos”
(VIGOTSKI, 2004), na qual apresenta as funções psicológicas superiores e as
primitivas. As funções psicológicas superiores são percepções, pensamentos,
memória, signos, emoções, linguagem (e formação de conceitos). Fazendo
referência como se desenvolve a linguagem nas crianças, Vigotski defende que
a linguagem, primeiro, aparece de “forma coletiva” e depois pessoal. Afirma
contundentemente: “qualquer processo evolutivo é inicialmente social, coletivo
e inter psicológico”.
O desenvolvimento psicológico para Vigotski não poderia ser pensado
como um processo abstrato, descontextualizado, universal: o funcionamento no
que se referem às funções psicológicas superiores, tipicamente humanas,
deveriam basear-se fortemente nos modos culturalmente construídos de
ordenar o real.
Os sistemas simbólicos e, particularmente, a linguagem, exercem um
papel fundamental na comunicação entre os sujeitos e no estabelecimento de
significados compartilhados que permite interpretações dos objetos, eventos e
situações do mundo real.
O surgimento do pensamento verbal e da língua como sistema de
signos é crucial no desenvolvimento da espécie humana, momento mesmo que
o biológico se transforma no histórico e em que emerge a centralidade da
mediação semiótica na construção do psiquismo humano. O surgimento da
língua é atribuído, por Vigotski, à necessidade de intercâmbio dos indivíduos
durante o trabalho, atividade especificamente humana.
273
É no texto “Sobre sistemas psicológicos” que Vigotski irá se referir sobre
o método de investigação e o método de exposição de Marx e apresentado no
segundo posfácio de O Capital. Isto comprova que Vigotski tinha consciência
sobre o método como também se preocupava que as publicações se
orientassem pela matriz metodológica marxiana.
Enfatizamos aqui os escritos de Vigotski que ainda não acentuam
objetivamente a crise da psicologia. É claro que em 1924 o problema da
consciência consiste na questão central para diagnosticar esta crise.
Colocamos o texto Sobre sistemas psicológicos ainda sobre uma base inicial. A
partir de 1930, especialmente nos textos sobre “defectologia” será sempre uma
referência que conflui na crise da psicologia.
274
Capítulo 19: A crise da psicologia
Em 1927, Vigotski escreve O significado histórico da crise da psicologia
(VIGOSTKI, 2013), que retrata as diferentes correntes existentes na psicologia
naquele momento. Uma grande corrente era influenciada pelas ciências
naturais, pelo positivismo e, a outra, pelas ciências mentais. Dentro da primeira
tendência, para tornar-se uma ciência respeitada, a psicologia deveria provar
seus resultados, explicar processos elementares e quantificar fenômenos
observáveis. Era denominada a psicologia experimental, pois com a
quantificação dos fenômenos, os processos poderiam ser subdivididos em
partes menores para serem mais bem observados. A segunda tendência era
influenciada pela ciência mental, que descrevia as propriedades dos processos
psicológicos superiores, tomando o homem como mente, consciência e
espírito. Esta segunda tendência aproxima a psicologia da filosofia das ciências
humanas, com uma abordagem descritiva, subjetiva e dirigida a fenômenos
globais sem preocupação com a análise desses fenômenos em componentes
mais simples.
Enquanto a psicologia do tipo experimental deixava de abordar as
funções psicológicas mais complexas do ser humano, a psicologia mentalista
não chegava a produzir descrições desses processos complexos em termos
aceitáveis pela ciência.
É neste contexto que surge e o desafio de uma ontologia e uma
epistemologia fundamentadas no materialismo histórico dialético. A abordagem
proposta por Vigotski e seus colaboradores buscava uma síntese para a
psicologia, o ser humano enquanto corpo e mente, enquanto biológico e
cultural, enquanto membro de uma espécie animal e participante de um
processo histórico.
Dentre todos os escritos de Vigotski dos quais dispomos nos dias de
hoje, chama-nos atenção O significado histórico da crise da psicologia – uma
investigação metodológica (1927), pois se utiliza de muitas expressões
diferentes sobre a dialética: “materialismo dialético”, “dialética subjetiva”,
“dialética objetiva”, “Dialética da psicologia”, “Dialética da Ciência Natural”,
275
“Dialética da Natureza”, “Dialética do homem”, “Dialética das ideias”, “Dialética
dos fatos”, “antidialética”, “lógica dialética”, “unidade dialética”, “princípios
dialéticos”, “análise dialética”, “concepção dialética”, “pensamento dialético”. É
citada 59 vezes a palavra “dialética”, o que demonstra, se comparado com os
outros ensaios, uma preocupação muito grande em fundamentar uma
psicologia a partir de uma concepção dialética, sem querer atribuir que a
solução da crise na qual a psicologia se encontrava fosse um privilégio apenas
de uma corrente psicológica.
Vigotski concluiu os manuscritos Significado Histórico da Crise da
Psicologia em 1927 e, na Europa Ocidental, simultaneamente, surgiam textos
sobre este mesmo tema. K. Bühler (1879-1963), psicólogo austríaco, muito
citado por Vigotski, um ano depois editou o livro Crise da Psicologia. Os
manuscritos de Vigotski ficaram muitos anos desconhecidos do público
soviético e foram descobertos em 1960. Somente em 1982 foram publicados
pela primeira vez na Rússia e passaram a ser estudados como uma de suas
principais obras.
A crise da psicologia consistia no surgimento de várias escolas que não
conseguiam definir algo em comum que pudesse estruturar uma psicologia
com princípios generalizadores e que sustentasse uma psicologia geral. Desde
1924, que Vigotski vinha apresentando as dificuldades de várias correntes da
psicologia para tratar, por exemplo, da consciência. A maioria dos escritos pós-
1927 fazem constantemente referência à crise da psicologia e os manuscritos
encontrados, depois de tanto tempo, constituem uma referência central tanto
no aspecto epistemológico como ontológico da hermenêutica vigotskiana.
Logo na primeira parte de seu Manuscrito, destaca que “mais vozes”
estão se juntando para reivindicar uma psicologia geral. Esta reivindicação não
parte dos filósofos nem dos psicólogos teóricos, mas daqueles que lidam com
as questões reais, concretas, os psicólogos práticos (psicólogos da psicologia
aplicada, psiquiatras, psicotécnicos). A psicologia como ciência estava
acumulando cada vez mais e mais informações (dados) e, conforme Vigotski,
não levaria a lugar algum. A psicologia naquela época estava numa
encruzilhada, era preciso definir um “método”. (VIGOTSKI, 2004, p. 259).
276
Vigotski avalia a crise da psicologia no início do século XX como sendo
um problema da sua atualidade e seu manuscrito é uma crítica metateórica das
perspectivas da psicologia existente. A primeira tarefa a ser empreendida
deveria ser encontrar um lugar para o próprio programa da psicologia. A
segunda, Vigotski estava convicto da impossibilidade de fazer avançar a
psicologia como ciência propositiva sem antes definir sua posição
epistemológica na relação com seu objeto de estudo que pudesse fazer frente
aos seus rivais poderosos, a filosofia e a fisiologia (KOZULIN, 1999, p. 88).
Vigotski apresentava dois enfoques metodológicos alternativos: o enfoque de
cima para baixo e o enfoque debaixo para cima. O de cima para baixo deveria
passar pela explicação do reflexo para explicar a totalidade do comportamento
humano; de baixo para cima, a explicação das funções psicológicas superiores,
portanto mais complexas, até as primitivas. Isto delinearia um caminho até
alcançar os fundamentos para uma psicologia geral futura que não escaparia
de efetuar a crítica metapsicológica das escolas de psicologia existentes, cada
uma pretendendo possuir um sistema explicativo próprio, e que reivindicavam
ser a base da psicologia geral.
Vigotski não concorda que a psicologia geral pudesse ser assumida
pela psicologia teórica (mentalista). Esta é uma disciplina particular tal como
psicologia animal ou então a psicopatologia. Claro que a psicologia até adotava
um papel diretivo, mas tinha limites. Bastava uma alteração numa disciplina
que logo modificavam-se os pontos de partida. Por exemplo, a psicopatologia
conservava o conceito central no inconsciente (são os sistemas S. Freud, A.
Adler, E. Kretschmer). Esta alteração poderia ser vista na própria
psicopatologia, até porque, quando este conceito central perdia sua
determinação, percebia-se que se recorria ao que era revelado nas
“manifestações extremas da patologia”. Isto significa partir da patologia à
normalidade e não o inverso, ou seja, do conceito para o real. “A chave da
psicologia está na patologia”. A natureza interna da patologia está nos fatos
que determinam “a natureza do conhecimento científico sobre esses fatos”
(VIGOTSKI, 2004, p. 260).
277
Vigotski identificava dois sistemas (aqui a definição é subentendida
como o campo de orientações), um que partia da pessoa normal como
referência e considerava a pessoa patológica como uma variante, e outro,
partia da pessoa patológica como referência e da pessoa normal como
variante. Vigotski se perguntava como a psicologia geral poderia resolver esta
questão. Esta é sua pergunta inicial.
Além dos dois sistemas acima mencionados havia um terceiro que era
aquele que se baseava na psicologia animal. Vigotski identifica aqui os
behavioristas estadunidenses e os reflexologistas russos. Estes partiam do
reflexo condicionado que é tomado como princípio central. Como era um ramo
da psicologia que se apresentava como protagonista na elaboração de
conceitos fundamentais é ela que se considerava, por mérito, a base – a ela
destinaria o papel da psicologia geral, portanto, por ter esta condição objetiva
do psíquico, era capaz de orientar outras disciplinas da psicologia.
O ponto de vista de I. P. Pavlov sobre o papel da psicologia animal
afirma que os psicólogos que partem do pressuposto da comparação são
aqueles que se apropriam dos conceitos da psicologia animal e pensam na
aplicação, e, por esta razão, “determina a tarefa dos psicólogos”. Ou seja, a
psicologia animal estabelece a infraestrutura e a psicologia a superestrutura
(Ibidem, p. 261). Vigotski até concorda que muitas categorias foram extraídas
da psicologia animal para explicar o comportamento humano, mas não são
suficientes. Da mesma forma, a psicologia subjetiva parte do ser humano como
chave da psicologia dos animais, mas não conseguia inverter este pensamento
porque fazia por analogia. O psiquismo animal “interpretando suas
manifestações por analogia a nós mesmos” (Ibidem, p. 261).
É neste momento que Vigotski traz o método histórico dialético de base
marxiana. Cita a conhecida frase de Marx: “a anatomia do homem é a chave
para a anatomia do macaco”. Conforme Marx, só é possível conhecer alguns
aspectos do desenvolvimento superior nas espécies inferiores em razão de que
uma forma superior já é conhecida.
Há uma referência longa às obras de Marx para fundamentar a
perspectiva vogotskiana referindo-se especificamente às análises sociológicas.
Assim como a economia burguesa constitui-se como uma “organização
278
histórica de produção mais desenvolvida e multiforme”, dando-nos a chave
para compreendermos as economias menos desenvolvidas, assim vale para a
psicologia, como bem aplicou Vigotski.
Vigotski analisa a necessidade de as psicologias saírem de seus
domínios. As mudanças ocorrem e devem ser “explicadas tomando uma
metodologia científica sobre uma base histórica”. Estas mudanças podem ser
explicadas considerando três aspectos: i) “o substrato sócio-cultural de uma
época”, como questões atuais e concretas; ii) “as leis e condições gerais do
conhecimento científico” que possam realmente desvelar o concreto e não
simplesmente reunir informações e descrevê-las – explicá-las constitui-se o
fundamental; iii) “com as exigências objetivas que a natureza dos fenômenos
objetos de estudo coloca o conhecimento científico no estágio atual da
investigação”. Ou seja, a realidade objetiva estabelece as exigências e fora
disso não é imprescindível para aquela época (Ibidem, p. 119). Os três
aspectos citados instigam que devemos sempre buscar “a participação dos
fatos objetivos que a ciência estuda”. A ciência tem essa tarefa.
Analisando a evolução de sistemas psicológicos tais como a
reflexologia, a psicanálise, o personalismo e a psicologia da Gestalt, Vigotski
mostrou que em seu desenvolvimento existia um padrão uniforme que
transcorria, desde seu descobrimento inicial, a sua transformação em visões de
mundo que abarcavam o todo.
Pode-se apresentar uma base esquemática com uma linha de
desenvolvimento das ideações explicativas baseadas em estágios. Trata-se de
um processo evolutivo que parte de uma descoberta específica até chegar no
que ele denomina de um estágio de formação ideológica. Detalharemos este
esquema para que possamos ter claro também a noção de ideologia que se
aproxima da concepção de uma “weltanschaung” – a noção de visão de
totalidade. São cinco estágios: primeiro, parte-se de uma descoberta real que
tem capacidade de modificar uma ideia habitual; segundo, a relevância da
descoberta está no reconhecimento e com isso na propagação da influência
destas ideias; terceiro, a ideia é assimilada, reconhecida e passa a assumir um
caráter de disciplina capaz de entrar num nível de confrontação; quarto,
desprende-se dos próprios conceitos iniciais que a ideia possibilitou e
279
consegue entrar no estágio de explicação. O quinto, a ideia encontra-se em
toda parte transformando-se em uma ideologia; é o estágio que consiste na
máxima generalização como também de negação.
Num determinado momento se pergunta: “Por que uma ideia deixa de
existir?” Cita uma lei de Engels na qual as ideias se concentram em torno de
dois polos: o idealismo e o materialismo. O que está oculto é desmascarado na
“luta de classes das ideias”. O que não tem mais sentido “desaparece” (Ibidem,
p. 222). Se aparecem é porque se destacam e são descobertas concretas, mas
“tudo isso depende de fatores externos à história da ciência e que a
determinam” (Ibidem. p. 223).
Vigotski identifica na sua época quatro conjuntos de ideias que
alcançaram valoração social devido às descobertas que fizeram. Dada esta
perspectiva vigotskiana, qualquer referência sobre os estágios citados acima,
tem relevância. Os quatro conjuntos de ideais são: Psicanálise (as neuroses
são fenômenos psicológicos determinados pelo inconsciente e o fato de que a
sexualidade é reprimida por não considerá-la ainda aceitável. A psicanálise se
transforma em ideologia e a psicologia, metapsicologia; seu principal
representante é Sigmund Freud); reflexologia (experiência com a salivação
dos cachorros pode verificar a determinação. Outros fenômenos foram
verificados enquanto reflexo e aí surgiu a psicologia animal. Tudo então
passava pelo reflexo. Seus principais representantes são I. P. Pavlov e
Bekhterev); Gestalt (surge pelo estudo dos processos perceptivos da forma e
Vigotski ironicamente afirma: “disse Deus: ‘que seja Gestalt’ e tudo se
transformou em Gestalt” (Ibidem; p. 226)); personalismo (o conceito de
individualidade é predominante e também todas as coisas passam a ser
individualidades, ou partes das individualidades isoladas). Quando estes quatro
conjuntos de ideias devem se referir a categorias baseadas em leis universais
passam a significar a mesma coisa. A psicanálise não consegue explicar as
neuroses histéricas se não for pelo princípio da sexualidade inconsciente, a
reflexologia não envolve a totalidade, a Gestalt procura explicar tudo e não
explica nada e o personalismo não se fundamenta no desenvolvimento da
história. Todas estas abordagens, conforme Vigotski, têm a preocupação de
280
encontrar um princípio geral, mas o que realmente fazem é adotar qualquer
ideia, mesmo que seja falsa (Ibidem. p. 228).
Os estágios apresentados por Vigotski para a constituição de uma
ciência foram retomados na segunda metade do século XX e dois metodólogos
(Thomas Kuhn (1922-1996) e Paul Feyerabend (1924-1994) nos chamam
atenção para esta análise. Primeiro, os estágios propostos vão de encontro às
concepções defendidas por Thomas Kuhn (1922-1996) quando publicou sua
obra Estrutura das Revoluções Científicas e criticou a visão de ciência proposta
tanto pelos positivistas lógicos como pelos racionalistas críticos popperianos67,
demonstrando que o estudo da história da ciência dá-se por uns caminhos
diferentes ao que fora proposto por estas escolas. A pergunta de Kuhn era “por
que os cientistas mantêm teorias apesar das discrepâncias, e, tendo aderido a
elas, por que abandonam?” A resposta para esta pergunta se aproxima ao que
Vigotski propôs. As pesquisas não são orientadas apenas por teorias, no
sentido tradicional deste termo, mas são influenciadas por algo mais amplo que
envolvem leis, modelos, analogias, valores, regras, formulações de problemas.
Enfim, são soluções concretas de problemas que determinam ou orientam os
pesquisadores. Outro metodólogo foi Feyerabend, que defendia que as
pesquisas são empreendimentos anárquicos e não acreditava em regras para
valorização das teorias científicas. É claro que este último não combina com
Vigotski. Contudo, citamos este debate que ocorreu com muita intensidade nas
décadas de 1960 e 1970 como reação ao positivismo lógico. O debate proposto
na década de 1920 por Vigotski estava enfrentando a questão central no
campo epistemológico. Tudo poderia justificar tudo, como o caos reconhecido
por Feyerabend, ou então cada um se fechando nos seus paradigmas como
defendido por Kuhn. Para KOZULIN (1990), o que Vigotski apresentava como
alternativa na década de 20 e o que criticava nas abordagens reflexológicas e
behavioristas foi o que realmente se converteu quando a ciência do
comportamento se fundamentou no positivismo.
O reconhecimento dos fatos psicológicos carregados de teoria permitiu a
Vigotski pôr em evidência as limitações de base estritamente empírica. Em
primeiro lugar, Vigotski ressaltou o fato de que historicamente a definição da
67
281
psicologia como disciplina empírica aparece de forma negativa, mais que
positiva. O empirismo definia sua psicologia sem alma, quer dizer,
negativamente, como algo que não está baseado num fundamento metafísico.
Nos anos vinte, quando as escolas psicológicas pretendiam pertencer à
corrente empírica, a noção de empirismo se converteu em algo vazio de
conteúdo e enganoso. Obscurecia dramaticamente os diferentes postulados no
empírico no quais as escolas rivais embasavam sua atividade psicológica.
Vigotski assinalava que a psicanálise ao menos reconhecia abertamente seu
componente metapsicológico, as demais escolas se negavam a indagar os
seus fundamentos metapsicológicos, não empíricos. O uso da lógica empirista
e a negativa a reflexionar sobre sua própria posição teórica conduziu a
psicologia a uma situação absurda, quando deveria ter sido definida como uma
ciência natural de fenômenos não naturais. A psicologia empirista pretendia
esconder-se detrás dos fatos, mas cada fato delatava sua base e seu contexto
teórico.
O problema das múltiplas psicologias se resolveu na admissão de todos
aqueles fatos que não encaixavam no esquema do positivismo lógico. Mas,
como acertadamente predisse Vigotski, o culto aos fatos empíricos não liberou
ao neocomportamentalismo a necessidade de desenvolver suas próprias
regras relativas à interpretação dos fatos. Boa parte do trabalho desenvolvido
pelos psicólogos norte-americanos durante os anos 30 e 40 teve mais a ver
com procedimentos científicos de decisão com condutas reais. A estreita
afinidade entre a metodologia neocomportamental e o positivismo lógico fez
com que as transições dos problemas puramente comportamentais às
generalizações filosóficas parecessem bastante naturais. E isso é o que
precisamente Vigotski se referia: o fato empírico sempre é só um ponto de
partida; o princípio geral escondido por trás deste fato poderá inevitavelmente
ser manifesto quando a noção científica se desenvolve passando de seu
princípio empírico a seu final filosófico. A análise detalhada deste processo é
um dos temas centrais da crise da psicologia.
A ideia de Vigotski era que se a psicologia tinha algo a aprender de Marx,
teria que escrever seu próprio O Capital, no mesmo sentido em que O Capital
serviu de metateoria da economia do século XIX. Durante o resto de sua vida,
282
Vigotski buscou este novo enfoque metateórico que deveria fundamentar
cientificamente a psicologia, mas não a custa da naturalização da consciência
humana, e com o uso do método marxista não degenerar numa psicologia
marxista ou torná-la mera adaptação.
Se nem o empirismo ateórico nem a psicologia marxista poderiam
proporcionar uma saída à crise, então de onde ela viria? Vigotski respondia:
“pela crise mesma”. Para ele, se deveria retificar a valoração da crise,
passando a considerá-la como um fenômeno positivo no lugar de negativo.
Para compreender a crise como um avanço positivo havia de se descobrir
primeiro a contradição básica – no sentido hegeliano e criativo do termo – que
fundamentasse todos os sintomas da crise.
Segundo Vigotski, atrás da aparente disputa em torno da teoria
psicológica geral dos anos vinte havia duas forças principais: a epistemologia e
a prática. Para compreender a crise era necessário realizar uma crítica
epistemológica das filosofias de investigação fundamentais reveladas pela
crise, e o problema crítico desenvolvido na crise de Vigotski era um primeiro
passo nesta direção. Mas também havia que ter em conta a segunda força
principal – a prática; foi nos anos vinte que a psicologia se fez, pela primeira
vez, totalmente consciente dos aspectos práticos associados às tarefas e
problemas industriais, forenses, educativos e de saúde mental. Vigotski cria
que este encontro com os problemas práticos forçaria a psicologia a revisar
seus próprios princípios seguindo as linhas ditadas pelas exigências da prática.
O horizonte prático ampliaria os horizontes da psicologia e a obrigaria a
encontrar uma nova visão para a grande riqueza dos conhecimentos
psicológicos práticos acumulados durante séculos por diversas áreas da
ciência. Em todas essas áreas da ciência, a tarefa de organizar e controlar a
conduta humana era de capital importância e tinham dado lugar à acumulação
de uma grande quantidade de princípios psicológicos. Haveria que usar
procedimentos analíticos para extrair e identificar esses princípios. Segundo
Vigotski, qualquer situação prática, desde o trabalho no setor produtivo até a
redação de um poema, poderia usar-se como um experimento cultural cujo
cenário são a mente e o comportamento humano. O que em um experimento
real se consegue controlando estímulos e respostas, em um experimento
283
cultural desse tipo se conseguiria mediante procedimentos teóricos de análise
e síntese. Seria errôneo, por conseguinte, conceber a psicologia prática como
aplicação de teorias previamente estabelecidas. Haveria que inverter esta
relação: a prática selecionaria seus próprios princípios psicológicos e, em
última instância, criaria sua própria psicologia.
Os componentes prático e epistemológico da crise não deveriam
considerar-se problemas independentes; ambos têm um centro comum: a
filosofia da prática. Vigotski estava convencido de que, ao buscar um método
geral de investigação psicológica, acabaríamos por chegar inevitavelmente ao
problema da prática: “método significa caminho; e o entendemos como meio de
conhecimento; mas um caminho está determinado em todos os seus pontos
pelo destino a que conduz. Por isso, a prática (como meta) reorganiza a
metodologia da ciência em sua totalidade”. O “princípio explicativo”, afirma
Vigotski, exige que saiamos dos limites de uma determinada ciência, ou seja,
devemos analisá-lo não como se fossem estáticos, mas em movimento,
compreendendo o seu caráter de totalidade. A categoria totalidade é
fundamental para compreender uma categoria na sua particularidade e como
se relaciona com outras categorias. A compreensão das categorias leva a
princípios gerais que ele denomina como “essencialmente princípios filosóficos”
(VIGOTSKI, 2004, p. 229).
Qualquer ciência deve chegar num determinado momento e ter clareza
no que consiste em si sua teoria, propor métodos e analisar os fenômenos ou
atos e fundamentar seus próprios conceitos. Vigotski defende duas teses que
estão relacionadas com a ideia e o fato. A primeira refere-se ao conceito.
Qualquer conceito, por mais abstrato que seja, tem seu grau de realidade. A
segunda, contrariamente, todo fato, por mais empírico que seja, não deixa de
ter a abstração. É por essa razão que é possível distinguir “fato real” e “fato
científico” e não os considerar como coincidentes. Sim, a base de qualquer
conceito científico é constituída por fatos, “mas se a ciência só descobrisse
fatos, sem ampliar com isso os limites dos conceitos, nada descobriria de novo;
permaneceria estancada, se limitaria a encontrar a cada vez novos exemplares
dos mesmos conceitos. Todo novo grão de um fato já é uma ampliação do
284
conceito” (Ibidem. p. 239). Dito de outra forma, qualquer descoberta da ciência
é uma crítica ao conceito
“Os conceitos são instrumentos da ciência, meios, procedimentos
auxiliares, mas o fim desta, seu objeto, são os fatos” (p. 237). Se os conceitos
são instrumentos eles tendem a se desgastar e cair em desuso. Neste sentido,
os fatos conhecidos podem ser aumentados, mas não o número de conceitos.
Os conceitos nascem nas ciências particulares e a ciência geral estuda estes
conceitos (Ibidem, p. 239), por isso que Vigotski defende que a diferença entre
uma ciência e outra é uma questão de grau (ou quantitativas) e não de
natureza.
“(...) a relação entre a ciência geral e a ciência particular é a mesma que a existente entre a teoria dessa ciência particular e uma série de leis particulares suas. Ou seja, trata-se de uma diferença em função do grau de generalização dos fenômenos a estudar. A ciência geral surge da necessidade de continuar o trabalho das ciências particulares ali onde estas últimas se detêm” (Ibidem, p. 244).
Vigotski cita o suíço Ludwig Binswanger (1881-1966) como
representante desta abordagem idealista kantiana que escrevera um livro com
a mesma problemática que está sendo por ele enfrentada: Introdução ao
problema da Psicologia Geral, que foi publicado em 1922. Neste livro, aponta
suas divergências contra o materialismo na psicologia, especialmente, o
materialismo fundamentado por Sigmund Freud (1856-1939). Binswanger foi
influenciado pelo filósofo Edmund Husserl (1859-1938), que também era muito
citado e criticado por Vigotski. O elemento mais importante apontado por
Biswanger, herdado de Husserl, foi a noção de intencionalidade, que define a
forma essencial dos processos mentais. Uma definição simples dirá que a
principal característica da consciência é a de ser, sempre, intencional. A
consciência sempre é consciência de alguma coisa: a análise intencional e
descritiva da consciência definirá as relações essenciais entre atos mentais e
mundo externo. Portanto, o objetivo era gerar, com
métodos empíricos (apoiando-se na introspecção pura), um critério-chave que
pudesse caracterizar os fenômenos psíquicos em oposição aos fenômenos
285
físicos, distinção cujo objetivo fora legitimar uma ciência psicológica nova, livre
de preconceitos. O método fenomenológico praticado por Binswanger apoiava-
se, portanto, na experiência subjetiva pessoal. Para tanto, era necessário
aproximar-se do paciente tentando manter em suspenso os próprios
pressupostos, buscando mais compreender e descrever os dados da
experiência imediata do que explicar o fenômeno. Vigotski é totalmente contra
esta concepção fenomenológica de Biswanger (que depois irá se aproximar
com a filosofia de Heidegger – tornar-se-ão inclusive amigos) porque é a
recuperação da lógica kantiana reservada apenas ao entendimento, sem
consideração às determinações do fenômeno ou da realidade. É retorno, em
última instância, ao idealismo subjetivo.
Vigotski distingue claramente as abordagens que adotam uma
concepção idealista, ou melhor, uma gnosiologia idealista com uma lógica
formal das ciências. Para estes, os conceitos estão separados dos objetos
reais sem possibilidade de relacioná-los. O saber já tem o conhecimento a
priori, já conhecido. Aplica-se nas ciências, por exemplo, a psicologia, biologia,
física, como é próprio na concepção kantiana. São concepções que admitem
que são os métodos que determinam a realidade, da mesma forma para Kant,
que compreendia “que a razão ditava as leis da natureza” (Ibidem, p. 246). Por
ter leis aprioristas já supõe conhecer a realidade e é possível aplicar “a crítica
da razão científica” em diversas ciências, como a psicologia. São os métodos
que determinam a realidade. Não consideram relevante conhecer as
determinações históricas porque se orientam pela estrutura lógica formal dos
conceitos. Aqui, podemos concluir que a ciência, na perspectiva idealista, está
determinada não pela realidade e nem pela história, mas sim, pelos conceitos
da estrutura lógico formal.
A ciência geral não se sustenta sob a concepção da gnosiologia
idealista com uma lógica formal. Uma perspectiva realista-objetiva, “materialista
em gnosiologia e dialética na lógica” fragiliza por completo a gnosiologia
idealista subjetiva. O materialismo é uma nova abordagem que possibilita
compreender a realidade a partir dela mesma e não a partir dos conceitos
apriorísticos.
286
“Esse novo enfoque nos indica que a realidade determina nossa experiência: que a realidade determina o objeto da ciência e de seu método, e que é totalmente impossível estudar os conceitos de qualquer ciência prescindindo das realidades representadas por esses conceitos” (Ibidem, p. 246).
Na perspectiva realista objetiva que tem a gnosiologia materialista e a
lógica dialética parte-se da premissa que a realidade determina nossa
experiência. “É totalmente impossível estudar os conceitos de qualquer ciência
prescindindo das realidades representadas por esses conceitos” (Ibidem. p.
246). Conforme Vigotski, Engels defendia que a metodologia das ciências é
reflexo da metodologia da realidade. Há necessidade de se fazer a distinção
entre a dialética subjetiva e a dialética objetiva da natureza. A dialética
subjetiva é o pensamento dialético e os processos do conhecimento são
reflexos da dialética objetiva. Como investigar a dialética subjetiva? Usando a
dialética objetiva, ou seja, a dialética da natureza. A dialética, citando Engels,
“se concebe com as leis mais gerais do devir” (Ibidem. p. 246). Se a dialética é
a lei mais geral é mister associá-la como uma lógica da psicologia. A crise da
psicologia se dá justamente por não se colocar devidamente a relação entre a
dialética objetiva e subjetiva. É premente instituir uma psicologia geral com
fundamentos conceituais para, o que é mais complicado, buscar alternativas
em outras disciplinas particulares. Vigotski cita a reflexologia que constrói seu
sistema com fundamentos das ciências naturais e, por isso, protesta caso haja
intenção de transpor as leis das ciências naturais para a psicologia. O inverso é
também recorrente, ou seja, a resistência da psicologia subjetiva de aceitar os
fundamentos das ciências naturais, sob arguição de pouca utilidade. As
ciências naturais também podem se cobrir com o véu retrógado (Ibidem, p.
274).
Estamos ainda em torno da questão que Vigotski coloca como
fundamental e estruturante para discutir o significado histórico da psicologia,
qual seja: por que é necessária uma psicologia geral? O momento histórico que
Vigotski está vivendo impõe determinantemente uma psicologia que não esteja
fundamentada numa não-psicologia – uma psicologia subjetiva baseada na
filosofia especulativa que se nega a reconhecer e atuar na realidade. Para a
definição desta ciência geral há de se basear nas ciências particulares que
“tendem a sair dos seus limites” e “a lutar por uma medida comum, para uma
287
escala maior”. Diferentemente para a filosofia que vive a “tendência oposta”, ou
seja, “para se aproximar da ciência, é preciso estreitar, reduzir a escala,
concretizar teses” (Ibidem. p. 390). Vigotski expressa uma metáfora muito
pertinente que demonstra o problema para a ciência geral: “não se pode medir
a estatura de uma pessoa em quilômetros, para isso são necessários
centímetros”.
A dificuldade de compreender o problema de que tanto a filosofia como
a ciência particular direcionam-se ou carecem de metodologia para alcançar
uma ciência geral é, até aquele momento, alheia à psicologia marxista. Esta
situação fragiliza a “psicologia marxista”. Faltava metodologia que “é a
alavanca por meio da qual a filosofia dirige a ciência”. Todas as tentativas,
alertava Vigotski, só acentuariam “as construções escolásticas ou verbalistas”
(Ibidem. p. 392). Vigotski sustenta que é necessário fazer o que Engels havia
dito: “não impor à natureza os princípios dialéticos, mas derivá-los dela”. Não
consiste simplesmente de aplicar o materialismo dialético à psicologia, à
história ou à sociologia. Este princípio vai contra aqueles que se adaptam à
teoria do marxismo sem considerar a realidade. Para Vigotski é mais complexo
do que este determinismo acrítico. Assim como para a sociologia é necessária
uma “teoria especial” intermediária, que é o materialismo histórico – “para que
se esclareça o valor concreto das leis abstratas do materialismo dialético para
grupo de fenômenos de que se ocupa” –, também para a psicologia vale a
mesma referência.
“A dialética” contempla “a natureza, o pensamento, a história”. É a
dialética que assume o caráter “universal máximo”. “Essa teoria do marxismo
psicológico ou dialético da psicologia é o que eu considero psicologia geral”
(Ibidem. p. 393). Portanto, a noção aqui de uma psicologia geral não deveria
ser compreendida como uma “centralização do conhecimento”, mas como uma
centralidade que legitima uma determinada ciência.
Vigotski demonstra conhecimento do método dialético que Marx expôs
n’O Capital. Como já dissemos, são poucas as passagens nos escritos de Marx
onde consta o método dialético. O Capital é método dialético mais completo na
relação interdependente entre exposição e investigação. Vigotski, a partir
dessa referência, afirma que para criar teorias intermediárias “é necessário”
288
desvendar “a essência dos fenômenos”. Entendemos o que Marx expôs no
segundo posfácio d’O Capital: o concreto é concreto porque é síntese de
múltiplas determinações. Conforme Vigotski, Marx só conseguiu escrever O
Capital porque justamente utilizou “princípios gerais da dialética e sentencia: “a
psicologia precisa de seu O Capital” (Ibidem, p. 393). Precisa tanto encontrar
sua unidade de análise estruturante como também definir um método.
“O que é preciso não são opiniões exatas, mas um método: e não o materialismo dialético, mas o materialismo histórico. O capital deve nos ensinar muito, porque a verdadeira psicologia social começa depois de O capital. (...) tem toda razão quando chama de estrutura escolástica a própria ideia de uma psicologia marxista como síntese da tese – o empirismo – com a antítese – a reflexologia (ibidem, p. 395)”.
No caminho que abordamos no campo da filosofia, cuja trajetória
expositiva veio desde Hegel, passou por Feuerbach e chegou a Marx também
poderemos fazer detalhadamente dentro da trajetória da psicologia com
autores que partiram da base do empirismo, passando pela reflexologia até
chegar numa psicologia que preferimos enfatizar como psicologia dialética.
Contudo, ao afirmarmos “psicologia dialética” podemos dar a entender apenas
como lógica dialética que pode ser tanto idealista e materialista. É evidente que
Vigotski está se referindo ao materialismo a partir do que já foi aqui exposto. É
por essa razão que alguns autores atuais preferem mencionar a “dialética do
concreto” e “psicologia concreta”.
Na época, Vigotski afirmava que qualquer definição ou reconhecimento
de uma psicologia que se autodenominasse como psicologia marxista seriam
equivocados. Não havia ainda uma definição que pudesse receber esta
denominação (por isso, nossa observação acima quanto à discordância da
síntese do empirismo e da reflexologia com a psicologia marxista). Havia
necessidade de compreender a “tarefa histórica” para defini-la como tal. O que
se publicara até aquele momento com a intenção de se autodenominar como
psicologia marxista concluída e definida era falta de seriedade científica. Por
outro lado, a psicologia que se remete aos métodos do marxismo que se
apresentava como psicologia social é, na visão de Vigotski, “o projeto de
síntese entre o marxismo com a psicologia individual na luta de classes”. Mas
289
Vigotski também cai numa ortodoxia própria, exigida por sua época, ao afirmar
que a psicologia marxista como “a única psicologia verdadeira com ciência;
outra psicologia afora ela, não pode existir” (Ibidem. p. 415). É a concepção
engeliana da necessidade do socialismo científico que, quer queira ou não, é a
necessidade que vai se impor como uma determinação a partir das
contradições que inevitavelmente irão ocorrer. Contudo, “a nova psicologia não
é tarefa só de uma escola” (Ibidem. p. 417), defendia Vigotski. Fazendo essas
ressalvas sobre o determinismo da época de Vigotski não invalida a questão
fundamental de uma psicologia que não se fundamente em concepções
dualistas.
A sociedade russa, criando sua estrutura social, política e econômica
sob bases ainda não vividas na história da modernidade, tinha força para
considerar o que era assim denominado de pré-história. A nova sociedade
exigia logo um novo ser humano e, com isso, a psicologia encontra um lugar
fundamental.
“Na futura sociedade, a psicologia será, na verdade, a ciência do homem novo. Sem ela, a perspectiva do marxismo e da história da ciência seria incompleta. No entanto, essa ciência do homem novo será também psicologia. Para isso já hoje manteremos suas rédeas em nossas mãos. Não é preciso dizer que essa psicologia se parecerá tão pouco com a atual como, conforme Espinosa, a constelação do Cão se parece ao cachorro, animal. Labrador (Ética, teorema 17, Escólio) ” (Ibidem. p. 417).
Vigotski está apontando o significado da crise da psicologia e, quando
utiliza este sujeito, “o significado”, está nos dizendo no próprio termo com o
qual ele tanto trabalhou numa de suas obras mais conhecidas, Pensamento e
Linguagem. O significado da crise é uma manifestação geral que muitos
apontam, mas poucas alternativas são apresentadas para sair do estado de
impotência e encontrar, não um caminho obrigatoriamente que seja comum,
mas uma psicologia geral, uma psicologia que no seu entendimento é uma
psicologia dialética. O sentido que Vigotski dá à dialética nós podemos
acompanhar ao longo de sua ampla produção científica, que sempre esteve
muito conectada com a realidade social.
290
Ao apresentar o significado histórico da crise está fazendo um exercício
de analisar as três correntes filosóficas de sua época. Estas correntes
filosóficas estão fundamentadas historicamente e cada qual se utiliza da
dialética com gnosiologias diferentes.
Encontramos no texto três vertentes gnosiológicas. A primeira é a
vertente realista, aquela que sustenta o primado do objeto e, portanto, entende
que a representação que fazemos das coisas está subordinada aos objetos em
si mesmos, ou as coisas em si mesmas, apreendidas pelos sentidos e depois
registradas pelo intelecto de tal modo que o ponto de partida para o
conhecimento é o objeto ou as coisas mesmas. É essa vertente gnosiológica
que Vigotski denomina de gnosiologia materialista. Seus autores referenciais
com os quais dialoga são Feuerbach, Marx, Engels e Lênin (e Espinosa).
A segunda vertente é o idealismo e o idealismo atém-se, pelo contrário,
à primazia do sujeito, da mente, das ideias que constituem um ponto de partida
para a reconstituição de um acordo entre as coisas e a mente, entre objetos e
sujeitos, uma correspondência que se estabelece a partir de uma análise das
ideias que nos faz chegar até certa conformidade entre as ideias e as coisas.
Aqui percebemos que em dado momento Vigotski coloca Kant nesta
abordagem, mas em seguida o conecta com Edmund Husserl. O principal
representante com quem Vigotski dialoga nesta vertente gnosiológica é Hegel.
São duas tendências gnosiológicas que Vigotski coloca em oposição
(não é só Vigotski que coloca em oposição – este é o grande confronto teórico
de sua época), mas também temos que identificar uma terceira vertente como
uma abordagem que tentou sempre se deslocar desta disputa entre o idealismo
e o materialismo. Estamos falando da fenomenologia. São longas as citações e
confrontos de Vigotski contra os fenomenólogos, acusando-os de negarem a
história.
Esta terceira vertente tem como principal representante Edmund
Husserl (1859-1938) e é contra este que Vigotski direciona suas críticas mais
veementes. Husserl procurou uma solução na teoria do conhecimento de meio
termo, que aconteceu no século XVIII, e buscou na filosofia de Kant seu
fundamento para superar este impasse entre o Realismo e o Idealismo,
291
redistribuindo as funções do conhecimento e tentando entender qual é o
contributo que o próprio objeto, as próprias coisas dão ao conhecimento e qual
a contribuição que o sujeito ou a mente fornece ao processo de conhecimento.
Portanto, Kant redistribuiu as funções do conhecimento entre sujeito e objeto
deixando assim de privilegiar um ou outro conforme se fazia antes. Esta
solução, aparentemente consistente, institui um meio termo entre o sujeito e as
coisas, e, principalmente, ela configura o conhecimento como um trabalho
conjunto entre as apreensões sensíveis das coisas mesmas e o nosso intelecto
que formaliza ou fornece uma estrutura formal para esta apreensão,
resultando, assim, uma síntese destas duas instâncias que seria então o
próprio conhecimento.
O resultado mais importante vinculado a esta concepção do
conhecimento como síntese entre o elemento objetivo e subjetivo é a
concepção da relatividade do conhecimento e isto se explica sendo o
conhecimento algo que, ao menos formalmente, se estrutura pelo sujeito, por
mecanismos lógicos presentes na mente. O conhecimento se constitui de
forma relativa ao sujeito, tem a ver com o sujeito, e não poderia se constituir
sem a contribuição fundamental do sujeito; a isso Kant chamou de fenômeno
ou a realidade. Não como ela poderia ser em si mesma, nós não sabemos
como ela seria em si, mas tal como aparece a nós, ao sujeito do conhecimento,
uma vez que ela aparece formalmente condicionada por certas estruturas
lógicas da nossa própria mente. Esta estrutura subjetiva que Kant descreve
como sendo funções lógicas do conhecimento, ele chama de elementos
transcendentais do conhecimento, ou seja, são aqueles elementos que estão
antes da experiência; independente da nossa experiência de mundo,
condicionam esta experiência e dão seus fatores de organização. Deriva
principalmente através desta noção o fato de nós podermos reconstruir esta
relação entre sujeito e objeto em termos de uma correlação. Ou seja, não
existe objeto que não esteja comprometido com o sujeito que o conhece ou que
o representa. Por quê? Por que esta representação consiste, sobretudo, no
modo pelo qual estas coisas aparecem a nós de acordo com certas condições
que são nossas, da nossa mente ou subjetivas. Temos, de um lado, o sujeito
do conhecimento, que é apenas uma consciência que apreende o fenômeno,
292
ou seja, apreende a realidade como ela própria se constitui. Por outro lado,
temos o objeto, que é nada mais do que este fenômeno aprendido pela
consciência. O que é apreender o objeto ou fenômeno como mecanismo de
conhecimento? Isto depende do modo como entendemos a constituição desta
relação. Se nós concebermos esta apreensão como uma assimilação das
coisas pelo sujeito que as percebe, como se estas coisas se transferissem do
mundo para nós ou para nossa mente, o resultado, se levado até a sua
extrema coerência ou ao seu limite, seria simplesmente o desaparecimento do
objeto ou a sua incorporação total pelo sujeito. Foi Husserl quem detectou nas
teorias do conhecimento que foram criadas a partir de Kant que havia, na visão
dele, um certo desequilíbrio na relação entre sujeito e objeto ou a relação entre
a consciência e as coisas. De tal modo, as coisas acabariam perdendo a sua
realidade, a sua autonomia, neste processo de apreensão. Daí o propósito de
Husserl se constituiu no grande lema de sua época e tornou-se então o lema
da fenomenologia: “é necessário voltar às coisas mesmas”. Portanto, há que
considerar, há que se voltar à importância das coisas para construção do
conhecimento. E esta necessidade de voltar às próprias coisas Husserl a vê a
partir de uma espécie de contaminação das coisas pelo sujeito, quer dizer,
como se o sujeito tivesse um poder sobre as coisas que, no processo de
assimilação, as coisas se adaptariam por tal modo à consciência ou ao sujeito,
que elas não permaneceriam com qualquer realidade própria. Quer dizer que o
sujeito projeta vários componentes, quer de ordem lógica, quer de ordem
psicológica mesmo, social, de seus hábitos, costumes, etc. e toda esta
projeção que nós fazemos no mundo para depois apreendermos um mundo ou
as coisas, contamina o mundo, contamina as coisas de tal modo que nós
acabamos recolhendo do mundo ou das coisas apenas aquilo que lá nós
colocamos. De tal forma que a realidade própria das coisas, na sua
objetividade, acaba ficando muito comprometida com este estilo de
conhecimento, de modo que Husserl vai tentar colocar um estilo de
pensamento em que nossa relação com as coisas se torne mais autêntica,
mais verdadeira, que nós possamos, portanto, recuperar a realidade do mundo
ou a realidade das coisas. Ora, para que isso possa acontecer separa-se,
cuidadosamente, a consciência, como sujeitos de conhecimento, desta carga
293
naturalista que costuma estar depositada nela, depois desta separação, pode-
se rearticular o modo pela qual a consciência se vincula às coisas.
Vigotski critica esta terceira vertente gnosiológica quando ela se
fundamenta numa psicologia, uma psicologia descritiva porque faz uma
diferença radical entre a natureza física e a existência psíquica e cita uma frase
de Husserl que entende “a esfera psíquica” não tendo diferença “entre
fenômeno e existência” (Ibidem, p. 377). No materialismo, não se apaga esta
diferença entre “pensamento e realidade”. Para contra-atacar Husserl utiliza-se
de uma citação de Feuerbach e faz uma declaração contundente:
“Comprometo-me a demonstrar diante de todos os filósofos que vocês quiserem – tanto idealistas quanto materialistas – que nisso consiste a essência das divergências entre o idealismo e o materialismo em psicologia, e que somente as fórmulas de Husserl e Feuerbach constituem a solução consequente do problema nos dois sentidos possíveis; que a primeira é a fórmula da fenomenologia e a segunda a da psicologia materialista. E me comprometo, partindo dessa comparação, a cortar a psicologia ainda quente, seccionando-a exatamente em dois corpos estranhos unidos por engano; só isso corresponde à situação objetiva das coisas e todas as discrepâncias, todas as divergências, toda a confusão devem-se unicamente à errônea e pouco clara formulação do problema gnosiológico” (Ibidem. p. 378).
Há um problema que Vigotski identifica: é que, no marxismo, a
gnosiologia no campo da psicologia não havia ainda sido formulada e era
necessário enfrentar as afirmações que não tinham fundamento, tal como “a
relação entre o sujeito e o objeto constitui um problema da consciência (...)”.
Para o idealismo, esta afirmação, esta diferença não existe. Isto precisa ficar
claro, pois temos que optar entre as duas uma: “ou a psique nos é apresentada
diretamente pela introspecção, neste caso nos colocamos ao lado de Husserl;
ou é necessário distinguir nela sujeito e objeto, realidade e pensamento, e
neste caso estamos do lado de Feuerbach” (Ibidem. p. 381). Para reforçar a
visão materialista neste contexto, Vigotski ainda cita Lênin, para quem “o
conceito de matéria... não significa gnosiologicamente nada mais que: uma
realidade que existe independentemente da consciência humana e está
refletida por ela”. Se tanto um aspecto como outro coincidisse, se a essência e
fenômeno coincidissem, se a essência e a forma coincidissem, cita Marx, “toda
ciência seria desnecessária”.
294
Capítulo 20: Método de Investigação de Vigotski
Antes de discorremos mais detalhadamente sobre o conteúdo dos
artigos e fazermos um estudo detalhado das abordagens de Vigotski,
chamamos atenção para a constante identificação dos soviéticos de que o
método utilizado por Vigotski é o “método genético experimental”. Este método
vai contra a estratégia que reside nos cortes, proporcionando uma ideia das
mudanças qualitativas, mas que não nos permite conhecer a fundo o
desenvolvimento dos mecanismos internos que governam as etapas de um
desenvolvimento ao outro. Na história do desenvolvimento das funções
psicológicas superiores este método é explicitado em detalhes (Método de
Investigação).
Para Vigotski, a questão de método é fundamental, isto porque até
então os métodos são especulativos, ou então, consideram o objeto
passivamente. “O método... é ao mesmo tempo premissa e produto, ferramenta
e resultado da investigação” e “o método deve ser adequado ao objeto que se
estuda” (VYGOTSKI, 2013, p. 47). As correntes da época reconheciam o
método de estímulo-reação como o único possível para estudar o
comportamento humano e não se contestava esta base. Contudo, acerca da
“psicologia subjetiva empírica” devem ser feitos alguns esclarecimentos. Havia
a compreensão de que o método objetivo não poderia ser aplicado pela
psicologia subjetiva empírica como se o experimento tivesse totalmente
diferenças que não pudessem ser compatíveis. Esta distinção tem origem nas
correntes que se baseiam nas ciências naturais que compreendem a prática
experimental para o caráter apenas reativo da vida psíquica.
Vigotski define o seu método citando longas passagens da Dialética da
Natureza. A primeira citação destaca a existência de um enfoque “naturalista
da psicologia humana” em razão de que, citando Engels diretamente, “a
natureza [que] influi exclusivamente sobre o homem, são as condições
históricas que condicionam em toda parte seu desenvolvimento histórico”
(Ibidem, p. 61). A segunda passagem enfatiza a necessidade de se levantar
hipóteses e a partir destas deve-se observar novos fatos que antes eram
295
considerados impossíveis de serem considerados. Então, deve-se recorrer a
explicações de um novo tipo definindo um número limitado de fatos e
observações até que o novo material de observação possa ser depurado,
quando será possível uma determinada lei “com toda sua pureza” (Ibidem. p.
63). E, por fim, Vigotski chama atenção que para muitos interpretar o histórico é
identificar-se com o passado. Pelo contrário, estudar a história é estudar as
formas presentes, isto porque “estudar algo historicamente significa estudá-lo
em movimento. Esta é a exigência fundamental do método dialético” (Ibidem. p.
67).
O método de investigação de Vigotski se sustenta com três teses, a
saber:
primeira, refere-se à semelhança e o ponto de contato entre ambas
formas de atividades. Tanto a atividade que emprega ferramentas como a que
emprega signos são subordinadas logicamente a um conceito mais geral que a
atividade mediadora. A atividade mediadora aqui podemos supor como a
unidade de análise. Vigotski afirma que Hegel tinha razão ao atribuir que o
conceito de mediação é a propriedade mais característica da razão;
segunda, a diferença entre o signo e a ferramenta, é que “por meio da
ferramenta o homem influi sobre o objeto de sua atividade, ou seja, a
ferramenta está dirigida de fora: deve provocar um nos outros mudanças no
objeto”. O signo não modifica o objeto de sua atividade da operação
psicológica, “é um meio para sua atividade interior, dirigida a dominar o próprio
ser humano, está direcionada para dentro” (Ibidem. p. 94);
terceira, o domínio da natureza e o domínio do comportamento estão
reciprocamente relacionados, ou seja, o ser humano transformando, a natureza
se transforma.
Vigotski definiu um método que teria plenas condições para analisar,
pesquisar as funções psicológicas superiores. O uso de instrumentos e de
signos é histórico e são criados em diferentes culturas. Os instrumentos
aperfeiçoam as formas de lidar com a natureza e os signos proporcionam
dominar os próprios processos psicológicos e, com isso, melhora-se o
296
desempenho. Portanto, a história humana tem esta condição. Por um lado, os
instrumentos vão sendo aperfeiçoados e, por outro, os signos, aperfeiçoando-
se a história do próprio ser humano sobre si mesmo. Esta concepção, de um
lado, justifica os instrumentos, por exemplo, tecnológicos e, por outro, aumenta
a capacidade humana na relação com estes instrumentos. É esta a concepção
que a Escola de Frankfurt vai condenar depois da Segunda Guerra Mundial,
porque ela serve adequadamente para a visão de “progresso”.
297
Capitulo 21: Psicologia Infantil
Nós consideramos o manuscrito O significado histórico da crise da
psicologia como uma obra de orientação metodológica, síntese para o
amadurecimento de várias linhas de pesquisa que Vigotski irá coordenar.
Iremos a partir de agora analisar o resultado da pesquisa com a necessidade
de conexão com profissionais que atuam na área da educação e da saúde.
Foram encontrados nos arquivos da família dois conjuntos de material
das Obras Escolhidas, editados pela primeira vez na URSS, em 1982. O
primeiro conjunto de capítulos que deveria compor um livro sobre psicologia
infantil, no qual Vigotski estrava trabalhando no período de 1932 a 1934, mas
que não conseguiu concluir, compreende artigos com os seguintes títulos: O
problema das idades e O primeiro ano. O segundo conjunto de trabalhos são
estenogramas de conferências dadas por Vigotski no Instituto Pedagógico A. I.
Herzen, entre 1933-1934: Crise do primeiro ano de vida, A infância pequena, A
crise dos três anos e a Crise dos sete anos. Acrescentamos também alguns
textos sobre criação e imaginação que fazem parte deste momento.
Até então, Vigotski sempre utilizava as concepções de Lênin para
explicar ou fundamentar a relação entre o mundo objetivo e subjetivo. Nestes
artigos sobre psicologia infantil, não constatamos esta presença de constante
respaldo. Gostaríamos de enfatizar duas questões ao analisarmos esta
coletânea de textos da psicologia infantil, olhando de fora para dentro. Primeira,
a relação que Vigotski começa a estabelecer e dialogar com seus costumeiros
interlocutores parece se diferenciar de outros momentos. Segunda, a
expressão explícita “dialética” passa a dar lugar a uma expressão implícita. A
dialética está assimilada. Os textos que estamos nos referindo de Vigotski
ganham uma certa liberdade de expressão muito contrastante às informações
que dispomos neste período soviético de perseguições e ortodoxia.
Dentro dos textos podemos perceber também duas significativas
mudanças. Primeira, ao tratar das questões sobre as bases que estruturam o
298
desenvolvimento da infância pequena há uma questão fundamental que é
apresentada: “a unidade da percepção afetiva”. Para Vigotski cada força
atraente de cada coisa tem sua carga afetiva e é fonte “oculta de atração da
criança”. A unidade sensitiva-motora é típica nesta idade e consiste não na
condição de reflexo primário, mas sim, de uma relação estabelecida por meio
do afeto. É este o caráter justamente afetivo da percepção que origina tal
unidade. Tomar consciência em tenra idade equivale a perceber e elaborar o
percebido com ajuda da atenção, da memória e do pensamento. Estas funções
não funcionam separadamente, mas sim integradas e submetidas à percepção.
A unidade da percepção afetiva para entender esta integração, esta
interrelação, é o que vai se definir como “unidade de análise” (VYGOTSKI,
1996, p. 344). A segunda mudança trata-se das citações de Karl Marx e
podemos verificar isso em três citações: i) No texto “Crise do primeiro ano”, que
é um tanto longo, mas precisamos expô-lo dada a sua pertinência:
“Creo que el desarrollo del niño, analizado desde el punto de vista de las etapas em el desarrollo de la personalidade, desde el punto de vista de las relaciones del niño com el entorno, desde el punto de vista de la atividade fundamental em cada etapa, está vinculado estrechamente com la história del desarrollo de la conciencia infantil. Si quisiera responder formalmente a esta pregunta, citaría la conocida frase de Karl Marx de que ‘la conciencia es la relación com el medio’68. Este totalmente certo que la relación de la personalidade com el medio determina del modo más imediato la estructura de su conciencia; creo, por tanto, que el estudio de las etapas de la edad, de sus formaciones nuevas, desde el punto de vista de la conciencia, nos acerca logicamente a la solución de dicho problem. Hacerlo oferece sustanciales ventajas porque la ciência moderna no sabe todavia estudiar los hechos que carcterizan la conciencia y no quiero cometer el error – al hablar de la relación com el medio, la conciencia, el linguaje – de reducirlo todo al linguaje. Debo partir tanto desde arriba como desde abajo, de sintomas com la dentición, el andar, el linguaje infantil, debo interesarme por los actores principales y secundários de esse drama. Creo que el estúdio de los cambios en la conciencia del niño y el estúdio de su linguaje son, teoricamente, los temas centrales para compreender todos los demás cambios. Comprender la edad teóricamente significa encontrar el cambio en la personalidad del niño en su totalidade, dentro del cual todos sus elementos queden esclarecidos, unos em calidad de premisas, otros como momentos determinados, etc” (VYGOSTKI, 1996b, p. 338).
Esta citação é muito importante de ser evidenciada porque aqui
devemos considerar duas questões: i) A consciência é a relação com o meio
68 Grifo nosso.
299
como bem disse Marx, porque somos nossas relações; ii) a relação com o
meio, a consciência e a linguagem é um fato, mas não se deve somente
permanecer no estudo da linguagem como se tudo se reduzisse a ela. Há
vários outros aspectos que devem ser considerados para compreender a
totalidade.
Criação e imaginação
Vigotski define a “atividade criativa” como o que suscita o novo, que
pode ser tanto uma “representação de um objeto do mundo exterior”, quanto
“uma construção da mente ou do sentimento característico do ser humano”
(VIGOTSKI, 2014, p. 1). Define também dois tipos de ação para caracterizar a
atividade criativa: o primeiro tipo é o reprodutivo que está muito ligado aos
recursos obtidos com a memória, portanto, são ações que remetem ao
passado e que se conservam ao se repetir algo já existente. Podemos dizer
que a reprodução consiste na tendência de adaptação e conservação. A
atividade no âmbito reprodutivo não cria nada de novo. Contudo, se o ser
humano se mantivesse apenas nestas condições de conservação e reprodução
não daria o salto qualitativo cultural proporcionado pela visão de futuro ou pela
visão antecipatória sobre o que se pretende fazer. O segundo tipo de ação é a
combinatória ou criadora que instiga para o futuro e possibilita criar algo novo
ou uma imagem nova a partir da base do que é existente. Isso também se
reflete na complexidade plástica do cérebro humano que não se organiza
apenas na dinâmica de conservação, mas desenvolve inerentemente a
capacidade de combinação e criação entre o que se conserva e o que se
adequa a imagem de futuro. A reprodução que é em si só pode alcançar a
criação para si se tiver como mediação a imaginação – fantasia.
É comum designar a imaginação como não tendo nenhum “valor
prático” ou como algo “irreal”, mas, pelo contrário, Vigotski defende que esta
tem uma posição determinante para todas as áreas, especialmente, para a
criação artística. Ou seja, os contrários reprodução-conservação-adaptação e
combinação-transformação-criação podemos concluir que a imaginação exerce
a unidade dos contrários, portanto, não são semelhantes e nem indissociados.
300
A imaginação para Vigotski é “um processo de composição” que
carrega “percepções internas e externas que são fundamento da nossa
experiência” (Ibidem, p. 25). Uma criança, por exemplo, vai gradativamente
acumulando material até que toma domínio ou governo sobre si mesmo. As
“percepções internas e externas” auxiliam a criança na construção de suas
fantasias que no início são desenvolvidas intensivamente nas brincadeiras ou
nos jogos. Este processo que Vigotski chama de “composição” é muito intenso
na fase infantil, mas não podemos desconsiderar a mediaticidade que assume
a imaginação no processo criativo. Vigotski concorda com Ribot69 ao afirmar
que “todas as formas da representação criativa contém em si elementos
afetivos” (Ibidem, p. 18).
Num primeiro momento, portanto, transcorre o caráter dissociativo que
“num processo de comparação” são perdidas ou esquecidas na memória.
Alguns aspectos são “subestimados” outros “sobrestimados” de elementos
isolados. Segundo o momento inverte-se para um caráter associativo, ou seja,
as partes isoladas ou independentes são assimiladas, é a “combinação de
imagens isoladas em um sistema” (Ibidem, p. 29). Conclui-se este ciclo de
atividade (dissociativa e associativa) quando “a imaginação se cristalizar em
imagens exteriores” (Ibidem, p. 30). É por essa razão que o ato criativo não é
anônimo, mas é um componente social” (Ibidem, p. 33). Desse modo, reafirma-
se a unidade entre a dissociação e associação como sendo a imaginação.
Identificamos em dois artigos escritos por Vigotski o exercício
constante de evitar a perspectiva dualista dos fenômenos psicológicos. Nas
duas situações, ao colocar a relação entre reprodução e combinação e a
associação e a dissociação, destaca-se a unidade de análise.
69 Muitos autores apontam a influência da teoria das emoções (afetividade) de Espinosa à teoria de Vigotski. Nas citações relacionadas nos textos de Vigotski verificamos a ênfase dada à razão como determinante para controlar as emoções. Não como um “império dentro de um império”, mas inerente à substância única (o corpo) e inerente ao ser humano. Nos textos de 1931, verificamos várias citações que Vigotski faz das teorias de Théodore-Armand Ribot (1839-1916). Cita muitas vezes Ribot, mas sem identificar quais das obras está se referindo. Verificamos que muitas obras deste autor devem ter influenciado nos estudos de Vigotski, por exemplo: Psicologia das Emoções (1887) Psicologia da Atenção (1888), A lógica do sentimento (1900), Problema da psicologia afetiva (1910), As ideias modernas sobre a infância (1911). Os autores que sustentam a influência da teoria da afetividade de Espinosa quase sempre não citam estes estudos, mas partem diretamente a Espinosa.
301
Estes artigos demonstram plena sintonia com o método estabelecido
por Lênin e que apresentamos os detalhes no capítulo 12. Dentre todos os
elementos expostos por Lênin sobre a dialética verificamos que Vigotski
acentua constantemente em seus textos quatro deles: 1) “A coisa como
unidade dos contraditórios” (atividade criativa: interna e externa); 2) “O
desenvolvimento [histórico] destas contradições” (associação e dissociação); 3)
“A unidade da análise e da síntese” (Imaginação); e, 4) “A repetição na fase
superior de certos traços da inferior” (Adaptação e Combinação). Foi
necessário reconsiderar o método proposto por MARX & ENGELS para uma
realidade que respondesse questões mais específicas da ciência. Lênin
efetuou isso considerando as transformações necessárias e sem poder ter
referência exceto algumas diretrizes deixadas pela experiência da Comuna de
Paris (1871). É por essa razão que sustentamos a base materialista histórico
dialética de Vigotski em bases leninianas.
O problema da idade
A periodização continua sendo um debate necessário para a
atualidade, não pela sua formalidade, mas pela necessidade de compreender a
psicologia infantil.
No tempo de Vigotski, três correntes teóricas predominavam sobre o
problema da periodização. A primeira defendia o princípio biogenético que
propunha “a existência de um paralelismo rigoroso entre o desenvolvimento da
humanidade e o desenvolvimento da criança” (VYGOTSKI, 2012f, p. 251).
Divide-se a infância em períodos isolados tal como idade pré-escolar, idade
escolar, etc. A segunda corrente elegeu alguns indícios para dividir os
períodos, por exemplo, partindo pela troca de dentição. Divide-se, assim,
infância sem dentes, dentes de leite e os dentes permanentes. A terceira
corrente, a periodização da infância é feita considerando o desenvolvimento
sexual ou então fatores psicológicos tais como atividade lúdica, período dos
jogos, período de maturação do adolescente, etc.
302
Vigotski considera três defeitos nestas correntes teóricas: primeiro, os
esquemas são subjetivos e buscam um aspecto objetivo de referência;
segundo, definem um aspecto para valer para todos; terceiro, baseiam-se em
um critério externo e não interno. Se a característica interna e externa
coincidisse não se precisaria nem se valer da investigação – seria supérflua70.
O que impede que se consiga tratar deste assunto da periodização sem que
seja meramente descritiva? A resposta está na ausência de um método
adequado, pois os até então utilizados são “antidialéticos” e “dualistas” (Ibidem,
p. 255).
Onde buscar princípios para fundamentar a periodização? Vigotski
responde a esta questão colocando como central “as mudanças internas do
próprio desenvolvimento” (Ibidem, p. 254). Pode-se destacar basicamente
duas concepções de todas as teorias do desenvolvimento infantil: 1) não surge
nada de novo no desenvolvimento; 2) permanentemente surge algo novo; a
primeira consiste na concepção de que a criança tem todas as suas condições
internas de desenvolvimento; a segunda, a criança vai se desenvolvendo de
acordo com a unidade entre o social e o pessoal (Ibidem, p. 254).
Em algumas idades percebe-se que o desenvolvimento é lento e mais
estável, em outras, surgem crises como se fossem “o término de prolongados
processos de desenvolvimento latente” (Ibidem, p. 255). Não é possível negar
estas peculiaridades no desenvolvimento infantil. Vigotski destaca que até
aquele com “espírito menos dialético reconhece estas características”. Nas
crises são identificadas peculiaridades: difíceis de serem definidas quanto ao
começo e fim; as crianças vivem momentos difíceis; caráter negativo de
desenvolvimento. As crises de três, sete, treze anos são todas consideradas
negativas.
Vigotski utiliza um recurso de lógica dialética para entender as crises
de desenvolvimento infantil como o surgimento do novo significando o
desaparecimento do velho. Contudo, destaca Vigotski, as idades críticas
podem ser consideradas dentro de uma estrutura de formação; pré-crítica,
70 Vigotski cita Marx: se a essência e fenômeno coincidissem a ciência seria desnecessária.
303
crítica e pós-crítica (Ibidem, p. 260). Sugere finalmente uma proposta de
periodização, a saber:
“Crisis postnatal; Primer año (dos meses-un año); Crisis de un año; Infancia temprana (un año-tres años); crisis de tres años; edad preescolar (tres años-siete años); crisis de siete años; Edad escolar (ocho años-doce años); crisis de trece años; puberdad (catorce años-dieciocho años); crisis de los diecisiete años (Ibidem. p. 254).
Cada período que Vigotski sugere não pode ser considerado como uma
etapa isolada, mas está integrada. Especialmente por que precisa a conexão
com a situação social.
“La situación social del desarrollo, específica para cada edad, determina, regula estrictamente todo el modo de vida del niño o su existência social. De aqui la segunda cuestión a la que nos enfrentamos em el estúdio de la dinâmica de una edad, es decir, la cuestión del origen o la génesis de sus nuevas formaciones centrales de la edad dada. Uma vez conocida la situación social de desarrollo existente al princpio de uma edad, determinada por las relaciones entre el niño y el médio, debemos esclarecer seguidamente como surgen y se desarrollan em dicha situación social las nuevas formaciones propias de la edad dada. Esas nuevas formaciones, que caracterizan em primer lugar la reestructuración de la personalidad consciente del niño, no son uma premissa, sino el resultado o el produto del desarrollo de la edad. Los câmbios em la consciência del niño se deben a uma forma determinada de su existência social, própria de la edad dada. Por ello las nuevas formaciones maduran siempre a finales de uma edad y no al comienzo” (Ibidem, p. 254)
É a realidade a verdadeira instância de desenvolvimento – a perspectiva
que se estabelece é que o social se transforma no individual; é possível
determinar uma lei:
“Llegamos, por tanto, al esclarecimiento de la ley fundamental de la dinámica de las edades. Según dicha ley, las fuerzas que mueven el desarollo del niño en una u otra edad, acaban por negar y destruir la propia base de desarrollo de toda edad, determinado, con la necesidad interna, el fin de situación social del desarollo, el fin de la etapa dada del desarrollo y el passo siguiente, o al superior período de edad” (Ibidem, p. 265).
Para Vigotski “a chave para todas as questões práticas” é o problema da
idade porque incorre na necessidade de se diagnosticar qual o nível real de
desenvolvimento. Como se define um determinado nível? É uma questão
social! A definição de idade está diretamente relacionada com o nível real de
304
desenvolvimento. Não se define pela idade simplesmente cronológica. Assim
seria fácil. E, para saber em que nível uma criança está no desenvolvimento, é
preciso fazer um “diagnóstico de desenvolvimento”.
“Estabelecer el nivel real de deasrrollo es uma tarea esencial e indispensable para la solución de todas las cuestiones prácticas relacionadas com la educación y el aprendizage del niño, com el control del curso normal de su desarrollo físico y mental o el diagnóstico de unas u otras alteraciones em el desarrollo que perturban la trayectoria normal y confieren a todo el proceso carácter atípico, anormal y, a veces, patológico. Por tanto, la determinación del nivel real de desarrollo alcanzado es la tarea principal y básica del diagnóstico del desarrollo” (Ibidem, 265-266).
A segunda etapa de um diagnóstico é verificar ou constatar os
processos de desenvolvimento que não estão maduros, aos quais ele
denominou de Zona de Desenvolvimento Próxima (ZDP). Vigotski define que
tudo o que a criança não consegue fazer sozinha e que precisa de ajuda do
professor ou de outra criança é um processo de “imitação” (Ibidem, p. 268). O
desenvolvimento real é o que já está assimilado, a imitação é um processo
intermediário onde identificamos a ZDP, que se constitui como em vias de
maturação. É por essa razão que não é possível padronizar os processos de
desenvolvimento considerando que uma criança pode ter um desenvolvimento
mais adiantado que o outro, mas, nesta dinâmica, aquele que está mais
adiantado serve para ajudar o outro menos adiantado.
“El valor teórico de ese principio diagnóstico radica en que nos permite penetrar en las conexiones internas dinámico-causales y genéticas que condicionan el proceso del desarrollo mental. Hemos dicho ya que el medio social origina todas las propriedades especificamente humanas de la personalidad que el niño va adquiriendo; es la fuente del desarrollo social del niño que se realiza en el proceso de la interacción real de las formas ‘ideales’ y efectivas” (Ibidem, p. 270).
A investigação para definição do nível real de desenvolvimento em
comparação com o ZDP é denominada por Vigotski de “diagnóstico normativo
da idade”, que tem como propósito desvelar o que ainda não está assimilado
na relação com aquilo que não está assimilado pela criança. Isto é o que se
chama de análise interna, que contrapõe as descrições ou as teorias que aqui
305
inicialmente foram postas e contestadas, por adotarem simplesmente
descrições do processo de desenvolvimento infantil.
Vigotski acentua que um diagnóstico deve explicar e também oferecer
prognósticos. Faz uma comparação, por exemplo: se uma criança é levada ao
psicólogo onde a queixa é a dificuldade de aprendizagem, memória e atraso no
desenvolvimento e este simplesmente diagnostica que é retardamento mental,
isso nada, mas nada contribui para criança, pois é exatamente como um
paciente que procura um médico e este confirma, por exemplo, que tem tosse.
Sem a análise, sem a pesquisa, não se consegue estabelecer a validade
prática para o desenvolvimento infantil. O diagnóstico é uma alternativa para
orientação da prática.
Uma coisa é fazer diagnóstico com crianças, por exemplo, em idade
escolar que normalmente estão desenvolvendo suas atividades de
aprendizagem, outra coisa é trabalhar com crianças em situação difícil. Vigotski
escreveu, em 1931, um artigo sobre esta questão: “Diagnóstico del desarrollo y
clínica paidológica de la infancia difícil” (VYGOTSKI, 2012g) onde consta o
processo para definição de um diagnóstico com cinco níveis a serem
considerados, bem como critica os métodos existentes que se caracterizavam
pelo negativismo. Diferentemente do texto anterior, este foi publicado na União
Soviética, em 1936, em forma de folhetos.
Os cinco níveis compreendem no seguinte: 1. Deve-se reunir o maior
número de fenômenos psíquicos bem como não se deve deixar de lado a
colaboração da área da neurologia; 2. Analisar as causas dos sintomas, mas
capazes de revelar o “processo dinâmico determinado”; 3. Identificar no
conjunto de variáveis típicas e reduzi-las a uma determinada situação típica
para identificar e definir “um tipo de personalidade infantil”; 4. Identificar
aquelas causas que realmente estão voltadas para o fenômeno estudado; 5.
Elaborar uma “prognose”, ou seja, tendo-se viabilizada a análise interna e seus
processos de desenvolvimento capaz então de predizer o que poderá
acontecer com o desenvolvimento futuro de uma criança (Ibidem, 330-337).
306
“El pedagogo debe saber, cuando recebe una prescripción, contra qué cosa tiene que luchar em el desarrollo del niño, a qué recursos debe apelar para ello y qué efecto se espera de esos recursos. Únicamente, conociendo todo esto, podrá valorar el resultado de su influencia. De lo cotrario, por su indeterminación, la prescripción pedagógica competirá, todavia durante mucho tempo com la prognosis paidológica” (Ibidem, p. 337).
Os diagnósticos propostos por Vigotski e a periodização são
radicalmente opostos e diferentes aos que são propostos por Piaget. A
aplicação da lógica dialética é um método capaz de identificar dinamicamente a
situação das crianças, mas não dentro de uma perspectiva desenvolvimentista
ou etapista.
307
Capítulo 22: Desenvolvimento das funções psicológicas superiores
O volume IV das Obras Escolhidas foi publicado em 1982 na URSS e
começou a ser distribuído só recentemente, em 2012. Conforme os
comentadores desta edição, Vigotski publicou diversos manuais para centros
de ensino à distância, entre os anos de 1930 a 1931. Os diversos artigos que
fazem parte desta edição foram fundamentais para o levantamento de
questões a serem desenvolvidas no início da elaboração de obras sínteses, por
exemplo, Pensamento e Linguagem. Não devemos esquecer que, nessa
época, Vigotski é diretor de laboratório e está pesquisando vários casos que
envolvem crianças e adolescentes. Na segunda metade da década de 1920,
surge a preocupação dos educadores com a formação de adolescentes. O
material é escasso ou então com muitas referências estrangeiras. Estes artigos
foram publicados como manuais para orientação de educadores que atuavam
diretamente com adolescentes. É no início de 1930 que identificamos a
preocupação constante de Vigotski com a idade de transição e dispomos para
análise aquilo que será base para elaboração de uma de suas obras mais
completas, o Histórico das Funções Psicológicas Superiores. Estamos
considerando cinco artigos para esta análise, a saber: Desenvolvimento do
interesse na idade de transição, O desenvolvimento do pensamento do
adolescente e A formação de conceitos, desenvolvimento das funções
psíquicas na idade de transição, imaginação e criatividade do adolescente e
Dinâmica e estrutura da personalidade do adolescente. Cinco temas
importantíssimos que foram estudados e sistematizados para a formação dos
educadores e que se constituem nas funções psicológicas superiores:
interesse, pensamento, formação de conceitos, imaginação e personalidade.
Entre 1928 e 1931, Vigotski publicou diversos manuais para orientação
do ensino à distância e entre 1930-1931 publicou Pedologia do Adolescente,
considerado um dos melhores trabalhos de Vigotski. Os textos são claros,
precisos e didáticos como devem ser para educadores que estão longe do
centro educacional de Moscou. Pode ser estranho que partamos destes textos,
mas consideramos estes textos o fundamento da teoria vigotskiana. É bom
308
lembrar que a pedologia é um interesse muito presente em sua carreira, que
iniciou em Gomel, na atuação com as escolas locais. Neste trabalho com cinco
capítulos consta o que é central na pedologia do adolescente: o interesse,
desenvolvimento do pensamento e a formação de conceitos, desenvolvimento
das funções psíquicas superiores em idade de transição, imaginação e
criatividade e Dinâmica e Estrutura da personalidade do adolescente.
1. Desenvolvimento do interesse na idade de transição
Vigotski, novamente, busca encontrar “a chave” para compreender a
psicologia das idades, o desenvolvimento psicológico do adolescente. Identifica
uma “estrutura” formada pela relação entre “atrações” e “aspirações” que vão
se modificando em diferentes etapas da vida de uma criança até chegar na
idade de transição. É por essa razão que os psicólogos que estudam “o
desenvolvimento das funções” e “os processos psicológicos” em seus aspectos
formais sem considerar as “forças motrizes” são o que Vigotski denomina de
“antigenético”, ou seja, não consideram a história do desenvolvimento. As
“atrações” são identificadas como “hábitos” de uma criança até confluir
definitivamente na idade de transição. A compreensão sobre esta relação
possibilita diferenciar a percepção da criança de um adulto, caso contrário a
análise se resume a não fazer diferença ou então considerar a criança como
um adulto em miniatura. Estudar o comportamento da criança, portanto, requer
partir do que é real e concreto e não fazer suposições isolando elementos sem
que tenham uma história de desenvolvimento. A passagem da atração para o
interesse trata-se de uma síntese complexa e real (VIGOTSKI, 2012a, p. 43).
No desenvolvimento de atividades educacionais para adolescentes
ouvia-se com muita frequência a queixa dos educadores sobre o desinteresse
dos adolescentes. Alguns mudavam drasticamente de comportamento se
comparados aos anos escolares anteriores. Mas esta queixa não advinha
somente de educadores; era muito comum ouvir as reclamações por parte dos
pais dos adolescentes. Este desinteresse é característico do período de
309
transição (e continua sendo uma das questões mais discutidas nos dias de
hoje, nas escolas e nas famílias) e que coincide com a maturação sexual.
Vigotski afirma que o problema do interesse no período de transição é “a chave
para entender todo o desenvolvimento psicológico do adolescente” (Ibidem, p.
11).
Existem forças que Vigotski chama de “motrizes”, responsáveis pela
mudança de comportamento. Para analisar nestas forças as funções e os
processos psicológicos, não basta simplesmente partir pelo aspecto formal ou
então isoladamente, é preciso mesmo analisar as suas relações ou suas
conexões.
Vigotski identifica uma corrente da psicologia que estuda o interesse
das crianças como uma questão tão somente subjetiva, mentalista, um
fenômeno puramente intelectual. E, por outro lado, há também uma outra
corrente que simplesmente explica o interesse sobre uma base biológica.
Assim, a natureza do interesse teria uma natureza objetiva ou subjetiva. Qual
seria afinal seu caráter? Vigotski afirma que esta questão poderia ser
respondida pela dialética hegeliana, supondo o caminho certeiro para alcançar
a resposta que não estava no reconhecimento de um aspecto de interesse,
subjetivo ou objetivo, mas sim no “reconhecimento da unidade complexa e
indivisível de ambas as partes” (Ibidem, p 19-20). Vigotski segue citando o que
Hegel havia dito: Se alguém realiza uma atividade em relação a algum objeto,
este não só se interessa pelo objeto, mas também está incitado por ele. De
acordo com as aspirações e necessidades, o interesse é uma tendência que
incita a atividade” (Ibidem, p. 20). A necessidade existe e os objetos e
processos que estão fora de nós nos levam a agir. Por exemplo, um dia bonito
nos instiga a passear, um chocolate nos provoca o desejo de comê-lo, etc. Os
objetos nos rodeiam e o tempo inteiro estão nos incitando para ação. Portanto,
a psicologia tendia a ver o interesse como uma questão subjetiva ou objetiva,
mas o que precisamente deveria ser considerado é o caráter da dupla
natureza: subjetiva e objetiva71. Mas a resposta sobre o caráter do interesse
assim respondida por Hegel, e que Vigotski associava a esta interpretação,
71 Kurt Lewin (1890-1947) com sua teoria de campo não explica a origem das forças propulsivas das coisas e nem por que os objetos se modificam.
310
também aos psicólogos adeptos da corrente estruturalista, tal como Kurt Lewin,
não era suficiente; para ele, tinha um defeito porque não tratam as questões
psicológicas na história.
O caráter incitador das coisas pode nos levar a diferentes formas e nos
remete a um papel ativo e não passivo. Este papel ativo tem vários modos de
se manifestar com relação ao interesse. A teoria estruturalista sobre o interesse
não captava a distinção da diferença entre interesses e necessidades
instintivas. Ou seja, “não toma em consideração a natureza histórico-social dos
interesses humanos” (Ibidem, p. 21). Somente o ser humano no seu processo
de desenvolvimento histórico consegue criar novas forças motrizes
engendrando novas necessidades e são elas próprias que experimentam uma
profunda mudança no desenvolvimento histórico do ser humano.
A teoria estruturalista não reconhece o interesse como um processo de
desenvolvimento histórico, mas como uma categoria natural. Coloca o
interesse como um processo orgânico, de amadurecimento biológico e de
crescimento. Vigotski afirma que os estruturalistas acabam desconsiderando
que as necessidades e interesses constituem-se mais aspectos socioculturais
do que biológicos. Simplifica assim a relação entre o biológico e o complexo
processo de formação superior (Ibidem, p. 21).
Vigotski cita um longo parágrafo de Engels que fala sobre a atração
humana para reforçar seu ponto de vista de que, na idade de transição, não é
possível restringir-se ao biológico. O texto de Engels retrata o significado do
amor sexual do seu tempo com o que era na Idade Média. As necessidades
também têm a forma histórica que torna algo relevante no presente e que não
era no passado. Os interesses e necessidades devem, portanto, serem
estudados na relação entre o filo-ontogenético. É no período de transição que
se pode fazer esta distinção do onto-filogenético, e analisar a relação das
necessidades biológicas e culturais. Os interesses, afirma Vigotski, constituem
um estado especificamente humano que diferencia o homem dos animais”
(Ibidem, p. 22).
No período de transição, se não for diferenciado a mudança do
comportamento, não se entenderá a condição em que vive o adolescente. A
311
questão fundamental é saber distinguir os motivos que impulsionam o
pensamento assim como os mecanismos dos processos intelectuais. Sem este
entendimento, também não se explica o estágio mais crítico pelo qual, muitas
vezes, passa o adolescente e que resulta na queda do rendimento escolar. Não
há uma diminuição da capacidade intelectual, mas o que ocorre é uma
mudança de hábito que não condiz mais com o que era em idade escolar.
Podemos então concluir que o interesse na fase de transição consiste na
síntese entre “as necessidades biológicas do organismo e suas necessidades
culturais superiores” (Ibidem, p 24). As funções psicológicas superiores são
compreendidas com toda sua complexidade na fase de transição, por que o
comportamento do adolescente começa a funcionar em um mundo interno e
externo completamente diferente do que era. Isto não significa que não
existiam, mas passam a funcionar de outra forma. Para esta fase, Vigotski usa
uma metáfora para compreender melhor: “a lagarta em crisálida e a crisálida
em borboleta”. Associando à ideia hegeliana de que tudo que nasce merece
perecer. Vigotski afirma: “toda evolución es, al mismo tiempo involución”
(Ibidem, p .25).
Aludindo ao interesse do adolescente, conclui-se, da mesma forma, que
velhas formas desaparecem para dar lugar a novas. Não significa, entretanto,
perder os velhos hábitos adquiridos na infância, mas transformá-los. Os
psicólogos tendem a não considerar o aspecto teórico para entender a idade de
transição. Assim, não veem diferença entre a criança e o adolescente,
permanecem analisando os mesmos mecanismos sem considerar o processo
histórico de formação das funções psíquicas superiores. Não se trata de
enfocar a personalidade do adolescente como um objeto estático, mas como
um processo dinâmico.
Haveria diferença entre o tempo de duração do período de transição do
jovem trabalhador e de um jovem burguês? Não fica claro se Vigotski
concorda, mas aponta uma diferença básica. A primeira fase de transição do
adolescente trabalhador tem igual duração de um adolescente burguês, mas,
às vezes, devido à necessidade do adolescente trabalhador inserir-se no
mercado de trabalho mais cedo, na segunda fase de desenvolvimento o
interesse é mais reduzido, mais inibido.
312
Como a nova fase é considerada uma involução pode-se também
considerá-la como negativa; a tendência negativa na personalidade do
adolescente é muito comentada por vários pesquisadores, e acompanhada,
muitas vezes também, pelo desinteresse em relação às atividades escolares. A
razão deste desinteresse reside na ausência de estabilidade dos interesses. O
caráter negativo está associado à maturação sexual também caracterizado
pelo isolamento, atitude hostil, inquietude, etc.
Vigotski concorda que seja uma etapa de negativismo, mas é um
segundo negativismo, pois o primeiro acontece ao redor de três anos de idade
da criança. Em razão desta similitude é que alguns autores tendem apenas a
reafirmar uma etapa para outra sem fazer as devidas diferenciações.
O que é mais comum, como já mencionado anteriormente, é o baixo
rendimento escolar dos adolescentes, em torno da idade de 14 e 15 anos.
Alguns autores afirmam que não se trata também de descenso escolar, mas
até na capacidade de trabalho (talvez aqui mais indicado afirmar nos dias de
hoje: pouca iniciativa!). A maioria dos investigadores permanece reconhecendo
unanimemente a existência da fase negativa.
A atividade laboral é uma das questões centrais no socialismo e, para a
preocupação dos professores e das professoras, por volta dos 16 anos, os
jovens trabalhadores demonstram negativismo ao trabalho. Para alguns
pesquisadores é uma fase passageira e que dura pouco tempo. Alguns
pesquisadores também analisam as diferenças entre meninos e meninas. Nas
meninas, a fase negativa é observada entre os 11 anos e 8 meses até os 13
anos. O fenômeno ocorre neste período e dura 8 a 9 meses. O menino ocorre
mais tarde, entre 14 e 16 anos, sem muita diferença das características
apontadas para as meninas.
Como dito, há uma preocupação com a questão do trabalho e com a
questão do negativismo da fase de transição dos adolescentes. Vigotski cita
uma pesquisa realizada sobre o adolescente soviético. Foram investigados
vários grupos escolares e foram acompanhados 274 alunos na idade entre 11 e
meio aos 16 anos, quando se concluiu o que já fora dito acima, a característica
negativista. O inovador na pesquisa chamou muita atenção: o negativismo ora
313
se demonstrava intenso na escola ou então no ambiente familiar. Ou seja, se a
característica se tornava exacerbada na escola não o era na família e se era na
família não o era na escola. Contudo, a maioria dos casos se confirmava o
negativismo na escola. Os investigadores tendem a considerar o adolescente
um negativista em potencial. Vigotski cita um pesquisador especial
(Zagorovski), que desenvolveu pesquisa apontando que 20% dos pesquisados
que coincidiam ser filhos de trabalhadores careciam da fase negativista.
Zagorovski argumenta a perspectiva de tratar o adolescente com ”fórmulas
puramente biológicas” e que o problema do negativismo nas escolas é devido à
ausência de uma pedagogia direcionada para o adolescente. A educação é
realizada como se fosse para crianças de idade escolar, como para crianças
menores, fato que cria um ambiente completamente adverso para o processo
de aprendizagem. Portanto, o que se reforça é o negativismo da reação da
intervenção pedagógica errada e não uma proposta que seja “a favor do
otimismo pedagógico”. Da mesma forma conclui Vigotski:
“A nuestro juicio, la mayoría de los investigadores al señalar correctamente los sintomas que caracterizan el inicio de la maduración sexual cuando describen la fase negativa, simplifican extremadamente el problema, debido a lo cual surge um panorama contractorio de las diversas formas em que se manifiesta el período negativo em distintas condiciones de médio social y educativo” (Ibidem, p. 36).
Vigotski então resume. Não se pode assinalar esta fase como uma
questão meramente biológica. Da mesma forma, não se pode assinalar como
sendo um problema apenas do ambiente social. “O adolescente é um ser
biológico, natural, mas também histórico, social” (Ibidem, p. 36). Nesta etapa, o
adolescente tem sua maturação sexual e sua maturação social da
personalidade. Não deveria ser visto como uma fase homogênea e
caracterizada pela educação padronizada. O interesse é um fator determinante
na formação do adolescente e deveria ser trabalhado de forma criativa e
positiva. A fase de transição poderia ser tomada no seu conjunto, a fase
preparatória (maturação sexual) para entrar numa fase de negação (os
referenciais infantis são negados), para alcançar uma fase positiva (afirmação
de novos comportamentos e consolidação de suas funções psicológicas
intrapsicológicas em relação ao que era antes interpsicológicas). O processo
314
de negação e afirmação são momentos internos e imprescindíveis também
para a formação do interesse dos adolescentes. Portanto, podemos dizer que
entre “as atrações” e “as aspirações”, o interesse é uma unidade de análise de
mediação capaz de compreender esta estrutura do desenvolvimento
psicológico, do desenvolvimento nas idades de transição.
2. O desenvolvimento do pensamento e a formação de
conceitos
Esta parte sobre o desenvolvimento e a formação dos conceitos do
adolescente foi escrita em 1931 e é a mais importante aqui a ser abordada.
Esta foi contemplada mais tarde no famoso livro compilado por Vigotski:
Pensamento e Linguagem 72 , mas sua especificidade está marcada pela
preocupação com o ensino e o desenvolvimento.
Na época, nos estudos sobre o desenvolvimento do pensamento na
idade de transição, predominava a concepção de que o pensamento do
adolescente não tinha nada de novo se comparado com o pensamento de uma
criança de três anos de idade. O próprio termo desenvolvimento, nesta
concepção, era equivocado porque o avançar da idade simplesmente
ocasionava maior acumulação quantitativa. O que se reconhecia apenas é que,
na fase de puberdade, o que se tornava mais evidente era a separação do
pensamento abstrato do pensamento visual-direto. Nos adolescentes, o
pensamento estava mais livre da base sensorial e menos concreto como na
fase infantil. Portanto, não se trata de uma alteração nova das operações
intelectuais.
Para Vigotski, esta opinião é “profundamente falsa” (VYGOTSKI,
2012b, p.49) porque apenas considerava centralmente as questões
emocionais. Era a visão tradicional que entendia ser a idade infantil
caracterizada primeiro pelas funções da percepção, memória, intelecto e
atenção e o adolescente caracterizado pelas emoções.
72 O texto na edição espanhola está dividido em 40 partes. Do número 5 – 24 consta como quinto capítulo de Pensamento e Linguagem.
315
Vigotski identifica as concepções dualistas e metafísicas da psicologia
que fazem a ruptura entre a evolução das formas e o conteúdo do pensamento.
Isto ocorre porque não encontram a unidade dialética. Os idealistas se calam
diante do tema acerca do desenvolvimento do pensamento na idade de
transição. São capazes de explicar como se alteram os conteúdos do
pensamento do adolescente, mas não explicam e não se preocupam com “as
funções intelectuais, as formas de pensamento, a estrutura e composição de
suas operações intelectuais” (Ibidem, p. 51). Todas estas são consideradas
eternas. Vigotski sugere uma metáfora para esta abordagem tradicional e
idealista sobre a forma e conteúdo do pensamento como um recipiente e o
líquido; o líquido pode se alterar o tempo inteiro, mas a forma está ali estática,
imutável e invariável. Admite-se que na adolescência se passa ao pensamento
lógico-formal, mas é mudança de conteúdo meramente e o que precisa
também ser analisado é a mudança da forma. A velha psicologia não trata
destas relações, mas se encerra no conteúdo.
As funções psíquicas superiores são produto do desenvolvimento
histórico da humanidade, mas também tem sua peculiaridade no
desenvolvimento da ontogenia. Claro que há uma dependência entre os
processos de desenvolvimento orgânico, biológico e das funções psicológicas
superiores e isto significa que há uma relação de dependência, mas,
definitivamente, não pode ser considerada como identidade.
“Em efecto, toda investigación realmente profunda nos enseña a reconocer la unidad e indisolubilidaddd de la forma y el contenido, de la estrutura y la función nos enseña que cada passo nuevo em el desarrollo del contenido del pensamento está inseparablemente unido también com la adquisición de nuevos mecanismos de concucta, com el passo a uma etapa superior de operaciones intelectuales” (VYGOTSKI, 2012, p. 54)
Vigotski aponta defeitos metodológicos nas teorias tradicionais, porque,
de um lado, reconhecem as mudanças que ocorrem no conteúdo do
pensamento do adolescente, mas, por outro lado, negam as evoluções
intelectuais – não conseguem correlacionar as mudanças que ocorrem de
conteúdo com a forma do pensamento e confundem as funções psíquicas
elementares com as superiores. A forma e o conteúdo são tratados
316
distintamente e podem ser verificados nas seguintes suposições: quando se
fala de conteúdo do pensamento e de suas mudanças, refere-se ao caráter
histórico sempre em processo e também como resultado do processo de
desenvolvimento cultural; quando se fala das formas de pensamento, refere-se
ao caráter orgânico e adequado ao biológico. Vigotski menciona o “abismo”
existente; afirma que é necessário um método para identificar uma unidade
dialética na dinâmica entre forma e conteúdo do pensamento. A unidade pode
ser a formação de conceitos que “es la clave de todo el problema del desarrollo
del pensamiento” (Ibidem, p.58). Este fenômeno da formação de conceitos é
marcante na idade de transição, na verdade, pouco visível para os
pesquisadores porque se constitui de mudanças internas. Chamaria a atenção
caso estas mudanças não ocorressem internamente; isto significaria que sua
tese poderia ser descartada, e, mais do que isto, caso o método não abarcasse
a unidade dialética entre o conteúdo e a forma do pensamento não seria
possível efetuar uma análise correta.
Vigotski efetivamente utiliza o método dialético destacando que “en
realidad la forma y el contenido del pensamiento son dos momentos de un solo
proceso integral, relacionados interiormente por un nexo esencial, no fortuito”
(Ibidem, p. 59). Surgem novas “atividades intelectuais e conteúdo novo de
pensamento” típico do período de transição por qual passa o adolescente.
Vigotski critica radicalmente as teorias e seus autores que sustentam
que as mudanças já ocorridas com três anos de idade sejam definitivas e não
incorrem em alterações no período de transição. Para chegar às suas
conclusões Vigotski utilizou o método que ele denomina de “método dos cortes
genéticos” (Ibidem, p. 61), que é diferente de um método que considera as
etapas da idade como objetos estáticos ou em repouso e não em processo ou
em movimento. Estudar adotando o método dos cortes genéticos significa
identificar um aspecto e analisar suas determinações. Esta é uma abordagem
que se identifica com o método dialético aplicado ao real, ao concreto.
Os novos conteúdos não são incorporados necessariamente pelo
adolescente, mas experimentam um complexo processo de desenvolvimento; é
por esta ampliação do conhecimento que o adolescente participa da vida
cultural. O jovem participa da produção da vida cultural. O jovem começa a
317
participar “da produção social” e vai assimilando “a ideologia social”. Contudo,
Vigotski concorda que a “psicologia de classe” não é compreendida
imediatamente pelos adolescentes, mas “la historia del joven es la historia del
desarrollo intenso y de la formación de la psicologia e ideologia de clases”
(Ibidem, p. 65). Vigotski contesta as correntes soviéticas para as quais a
psicologia de classe se estabelece por via da imitação. Ela se dá num processo
de colaboração com o mundo a partir de atividades de interesse.
Na sociedade soviética, a preocupação estava também com a
formação do pensamento dialético do jovem na relação com o trabalho. Pavel
Blonski (1884-1941) era psicólogo e pedagogo de referência na União
Soviética; além da intenção de criar uma psicologia de base marxista,
coordenava a implementação de escolas de trabalho. Identificava-se na fase de
transição “a insuficiência da dialética do adolescente” e avaliava-se que a
causa estava no caráter instável que vive o adolescente. Vigotski defendia que
a maturação do pensamento dialético atingia pleno desenvolvimento no
momento de transição que tem como questão chave a formação de conceitos.
3. Desenvolvimento das funções psíquicas superiores na idade
de transição
A história do desenvolvimento psíquico na idade de transição está
constituída pelo ascenso das funções de sínteses superiores. Estas sínteses
são independentes. Vigotski afirma que a história do desenvolvimento das
funções psíquicas superiores do adolescente é estritamente hierárquica, ou
seja, as funções psicológicas não podem ser vistas como um tronco onde
crescem vários galhos, por exemplo, as principais funções psicológicas como
atenção, percepção, memória, vontade e pensamento não se desenvolvem
paralelamente.
“No processo de desenvolvimento todas essas funções constituem um complexo sistema hierárquico de onde a função central ou reatora é o desenvolvimento do pensamento, a função da formação de conceitos. Todas as outras funções se unem a essa formação nova, integram com ela uma síntese complexa, se intelectualizam, se reorganizam sobre a base do pensamento em conceitos” (VYGOTSKI, 2012c, p. 119).
318
O desenvolvimento do pensamento está integrado à formação de
conceitos. Isso fica mais fácil de ser compreendido se tratarmos de uma função
psicológica, por exemplo, a memória. Considerando que se parte de uma
atividade inferior para superior, é possível, como processo de continuação, pois
uma memória elementar ou mecânica passa para memória lógica; é possível
porque “ambas procedem de uma mesma linha genética” (Ibidem. p. 119). Este
artigo é extremamente relevante porque Vigotski analisa especificamente cada
função psicológica superior. Discorreremos cada função psicológica conforme
se segue:
a) Percepção
É função psicológica que aparece na história do desenvolvimento
psíquico da criança. “A criança começa a perceber antes de saber dirigir a
atenção, memória, pensar”, portanto, é a função mais elementar. Na idade de
transição também se produzem mudanças que se verificam na percepção do
adolescente. A questão da memória, entretanto, é muito mais complexa; na
época, Vigotski identificava várias explicações sobre o desenvolvimento da
memória que não trataremos aqui, mas que eram totalmente desencontradas.
Para análise da história das funções psicológicas superiores, devemos
começar pela percepção de porque esta se desenvolve primeiro na criança.
Antes de saber dirigir a atenção, memorizar e pensar, a criança começa a
perceber. É a função mais elementar e os processos de seu desenvolvimento
são pouco visíveis na observação direta. Vigotski contesta as abordagens que
consideram esta função como existente no bebê e que seu funcionamento
permanece igual na vida adulta – não se desenvolve. A percepção do bebê, na
vida real, é muito diferente se comparada à de um adulto, assim como ocorre
com a memória ou o pensamento. Entre o bebê e o adulto, Vigotski argumenta
que há estágios que devem ser considerados e há grandes mudanças que são
observadas. A maior mudança, a mudança mais complexa ocorre na idade de
transição. É possível perceber desde mudanças primárias até mais complexas.
319
A percepção da magnitude dos objetos considerando formas e cores. São
percepções casuais, mas que vão se complexificando com a fusão dos
processos da percepção com a memória. Vigotski dá o exemplo de um lápis
que é afastado e aproximado dos nossos olhos. Este processo de distinção do
tamanho exige que a memória ateste o que é real, mas só é possível com essa
fusão com a percepção. Poderíamos afirmar, quando focamos nosso olhar para
um objeto e não o percebemos simplesmente, mas o recordamos. A síntese
inicial, percepção e memória, é um processo complexo, mas é na idade de
transição que a percepção se une ao pensamento, à linguagem.
“Nestes últimos tempos se tem estudado a complexa influência do processo de linguagem sobre a percepção visual-direta da criança. Resultou que os processos de desenvolvimento da linguagem e do pensamento verbal reelaboram de maneira muito complexa a percepção visual-direta da criança, a estrutura sobre uma nova base; durante a idade de transição, em particular, juntamente com a formação de conceitos se modificam as velhas proporções, a antiga correlação dos momentos visuais-direto e não visual-indireto, concretos e abstratos na esfera da percepção” (Ibidem. p. 121).
Em razão do pensamento, os objetos isolados, que são percebidos,
podem ser relacionados entre si, se regulam, adquirem sentido, passado e
futuro. Por outro lado, a linguagem possibilita compreender o percebido,
permite analisar a realidade e passar da função elementar para superior. “A
percepção desenvolvida pelo adulto recobre a realidade com uma malha de
categorias lógicas”, mas é resultado da mudança que ocorre das funções
psicológicas na idade de transição.
A percepção está muito relacionada com a visão. O que Vigotski nos
chama atenção é que a percepção é um processo de desenvolvimento que vai
gradativamente fazendo a regulação e a correção de todo o conjunto de
impressões externas e internas. Conforme a idade, a criança vai percebendo
as qualidades, relações e ações e estas percepções se desenvolvem no
domínio da linguagem. As percepções fazem esta conexão entre o anterior e
interno. A percepção na relação com a linguagem tem um sentido diferente
para uma criança e para um adolescente.
Vigotski conclui afirmando que a criança, com ajuda das palavras,
conhece as coisas e só com ajuda dos conceitos chega ao conhecimento real e
320
racional do objeto. O conhecimento sem considerar a percepção ordenada e a
linguagem é impossível. “A palavra singulariza o objeto do processo integral de
adaptação (...) e o converte em objeto do conhecimento” (Ibidem. p. 26).
b) Memória
Muitos pesquisadores, na época de Vigotski, defendiam que a memória
alcançava seu ápice na idade de 12 anos. Para Vigotski, os pesquisadores se
preocupavam com descrições genéricas. Não mencionavam a transformação
que ocorre no período de transição. É no período de transição que ocorre uma
transformação que identifica como “memória superior” ou “memória lógica” –
“se forma a base da síntese do intelecto e a memória” (Ibidem. p. 127).
É graças ao estudo comparativo que se pode verificar a relação entre
memória e pensamento. Contudo, as psicologias do desenvolvimento da época
não entenderam as alterações nas diversas idades que são produzidas, isto
porque as funções psicológicas eram tomadas isolada e independentemente,
uma ao lado da outra. As funções psíquicas eram consideradas como
trajetórias paralelas e com elementos relativamente independentes.
Vigotski considera que o intelecto de uma criança tem profunda
dependência da sua memória. O pensamento da criança está unido às
recordações. Sem intelecto, ela se apoia principalmente na memória. A
correlação é feita através das imagens e a faculdade intelectual não tem uma
significação unívoca, porque, neste processo interfuncional, irá sofrer a
transformação na idade de transição. Portanto, é uma forma dinâmica este
processo e não estática e a conclusão é que as mudanças das funções
psicológicas superiores se devem à “evolução dos nexos interfuncionais”.
c) Atenção
É outra função psicológica sobre a qual Vigotski denuncia haver
poucas pesquisas. O processo da atenção na idade de transição não é menos
importante e essencial que a percepção e a memória. Como mencionado
321
anteriormente, nas descrições analíticas das funções psicológicas superiores,
cada uma delas deve ser considerada dentro de um processo de formação e
de uma síntese superior que interage com uma série de funções mais
elementares. O surgimento de uma nova e complexa comunicação, nova e
complexa estrutura, regulada pelas suas próprias leis especiais, consiste em
um problema a ser considerado pelos pesquisadores. Na formação psicológica,
atenção deve ser considerada dentro desta dinâmica e a maneira mais
adequada é considerá-la nas relações com outras funções psicológicas. Para
Vigotski, a atenção tem uma diferença essencial se comparada com outras
funções. As mudanças não se atêm à estrutura da função elementar, nem
tampouco a aparição de novas propriedades. As mudanças ocorrem nas
relações desta função com as outras. A atenção voluntária é a atenção que
depende do pensamento. É o pensamento que determina o ponto máximo do
desenvolvimento da atenção. Quando, portanto, falamos de atenção voluntária
a distinguimos da involuntária, do natural. Conforme Vigotski “a atenção
voluntária é, ao mesmo tempo, a consequência e a causa da civilização”
(ibidem. p. 138). Em outra passagem, depois de concordar que “o trabalho é
atenção voluntária” tem parentesco psicológico. Assim como existe a
necessidade de trabalhar, a atenção voluntária se converte num fator primordial
de nossa forma de luta pela vida. O trabalho é indissociável da atenção
voluntária e se caracteriza por uma condição de vida mais elevada do ser
humano. Vigotski insiste que o desenvolvimento da atenção está ligado com
outras funções, mas, sobretudo, na sua relação com o pensamento. Associa o
desenvolvimento da atenção na fase de transição com a formação de
conceitos. É o que Vigotski chama de vínculo, a saber:
“(...) por uma parte, a atenção, quando alcança um certo grau de desenvolvimento, constitui, ao igual que em outras funções intelectuais, uma premissa indispensável para o desenvolvimento do pensamento em conceitos e, por outro lado, o passo ao pensamento em conceitos significa que a atenção chega a um estágio superior, que passa a uma forma nova, superior e complexa de atenção voluntária interna” (ibidem. p. 139).
Vigotski propõe um resumo acerca das investigações realizadas sobre
a atenção. O pensamento de uma criança se diferencia por uma atenção
322
organizada primitivamente. Sua atenção é dirigida de fora; ela atrai e recusa os
objetos. Diferentemente no adolescente, onde as formas superiores de atenção
são consequências do amadurecimento do pensamento, na mesma etapa de
desenvolvimento da formação de conceitos. De forma geral, poder-se-ia
sustentar que os estágios primeiros correspondem ao domínio externo das
próprias funções psíquicas – memória e atenção – e, o segundo domínio
interno, deste mesmo processo. É isso que diferencia a criança e o
adolescente.
d) Atividade prática, pensamento prático e intelecto ativo
O problema para analisar a função superior, o pensamento, reside em
não considerar o verdadeiro curso do desenvolvimento histórico do
pensamento. A velha psicologia, partindo da auto-observação, considerava o
intelecto prático uma ação racional prática, como continuação dos processos
do pensamento interno. Partia-se da premissa: primeiro o pensamento, depois
a ação! Esta forma de entendimento relegava a atividade racional como um
aspecto que surgia na idade de transição e Vigotski concorda que, de fato, é na
idade de transição que se dá uma transformação.
Vigotski analisa a linguagem não como um produto acessório da
atividade infantil, nem como uma função paralela à ação. A linguagem e ação
são indissociáveis e esta indissociabilidade tem decisiva importância para a
ação como para a linguagem. A primeira relação objetiva que se forma entre
linguagem e pensamento é que a linguagem se converte em um meio do
pensamento, porque reflete a ação intelectual prática que transcorre
objetivamente. A criança vai gradativamente tomando consciência dessa
aproximação que Vigotski denomina de “aproximação sincrética da linguagem
e do pensamento” (Ibidem. p. 157).
Destaca-se dois momentos dentro da história do desenvolvimento das
funções psicológicas superiores, mas especialmente voltado para o
pensamento. Primeiro, esta “aproximação sincrética da linguagem e do
pensamento” da criança não é obra da criança “é construído com ajuda de
323
operações lógicas”. A criança não cria uma outra forma de conduta prática
valendo-se da linguagem. Vigotski defende que acontece justamente o
contrário, ou seja, é a própria linguagem que adquire formas lógicas e se
intelectualiza pelo mero fato de refletir e acompanhar as operações práticas
intelectuais da criança. Assim, o pensamento verbal é objetivo para depois ser
subjetivo. Primeiro surge “em si” para depois “para si”.
Quando a linguagem e a ação se aproximam é com a ajuda da criança
que começa a determinar as suas reações e com a verbalização ampliam-se as
possibilidades. Os dois momentos que ora foram mencionados possibilitam
distinguir que a criança primeiro age, e depois pensa; e o adulto primeiro pensa
e depois age.
A tenra infância, portanto, “se caracteriza pela união sincrética da
linguagem social da criança com sua ação. “União sincrética” é o termo que
Vigotski utiliza para descrever o “nó genético” que estabelece pela primeira vez
uma conexão, ainda que no início seja confuso e indeterminado, entre o
pensamento verbal e o prático.
Na idade pré-escolar, a linguagem da criança já adquire uma forma
nova, a linguagem se converteu em linguagem “para si” e este período “se
caracteriza pela união sincrética da linguagem egocêntrica e ação prática
(Ibidem. p. 162). O pensamento verbal ainda é pouco frequente para
comprimento das tarefas e também continua não tendo aquele caráter de
planificação.
Na idade escolar continua estando em poder do sincretismo verbal,
mas a linguagem interna não domina todas as operações práticas.
Somente na idade de transição, no momento em que surge o
pensamento verbal em conceitos “é possível resolver a tarefa verbalmente e
realizá-la na prática: Atividade está submetida a um plano... a uma vontade que
determina como uma lei o modo e o caráter da ação” (Ibidem. p. 162).
O caminho do pensamento se abre através da linguagem
gradativamente e é na idade de transição que há uma transformação. Quando
o adolescente domina seu pensamento em conceitos aparecem as formas
324
superiores; entre pensamento e ação se distinguem complexas sínteses. É
neste momento, depois de um longo caminho, que chegamos a questões
cruciais na teoria de Vigotski. Em nenhum momento há citações nestes
trabalhos a Marx e Engels, que são sempre costumeiras. Aqui temos um
diálogo que é estabelecido com Lênin e Hegel.
Vamos às questões do texto para que possamos analisar
adequadamente seu ponto de vista. Nestes textos nem tão trabalhados ou
debatidos, ou não tão famosos. Para Vigotski, a síntese que se chega na idade
de transição em razão de alcançar “o pensamento verbal em conceitos” pode
ser comparada ao “plano filogenético”, ao retratarmos o desenvolvimento do
pensamento humano. Foi Hegel, conforme Vigotski, que se propôs a analisar a
atividade prática do ser humano e o emprego de ferramentas como uma
dedução lógica desta realidade. Então, passa a fazer longas citações das
anotações que Lênin fez ao ler A Lógica de Hegel, enfatizando “as categorias
lógicas” e “a prática humana”. As duas citações são do mesmo teor.
Hegel, citado por Lênin, esforça-se “para fazer coincidir a atividade
humana com categorias lógicas” A atividade passa a ser sempre conclusão.
Esta posição de Hegel deve ser colocada no sentido de que as atividades
humanas devem ser repetidas tantas e tantas vezes até que adquirem
“significado de axiomas”. Este é o aspecto filogenético que Vigotski analisa no
aspecto ontogenético.
A ação forma na linguagem juízos, converte a linguagem em processo
umbilical” e isso pode ser observado nas pesquisas com crianças. A criança
pensa na ação, pois também ao utilizar ferramentas e ao mesmo tempo a
linguagem, não só modifica o pensamento por meio da linguagem, mas novas
formas são utilizadas na medida em que várias consequências, ações são
realizadas – neste sentido, muda a linguagem, estrutura de acordo com o
princípio intelectual. Para Vigotski, o que Lênin tratou do ponto de vista
filogenético referenda-se a linguagem na determinação da consciência às
figuras lógicas, às categorias que são repetidas tantas vezes na prática
humana.
325
A psicologia, até então, ao tratar a importância da linguagem para o
pensamento, considerava a linguagem como uma “massa amorfa”. A
linguagem cumpre diversas funções pelo influxo do intelecto prático que forja
no intelecto uma cópia que somente na idade de transição inicia a dirigir por si
mesmo o pensamento. A ação prática é que tem a força para intelectualizar a
linguagem e é nestes termos que entendemos como se transforma o intelecto
prático verbal.
As investigações das quais Vigotski referia-se tratam de verificar como
se chega ao intelecto por meio da linguagem. Neste sentido, para a linguagem
converter-se no caminho desde o intelecto precisa experimentar para si mesmo
a influência formadora do intelecto. O processo de aparição da função
planificadora da linguagem, que antes era reflexa, não é mais que um caso
particular da lei geral da formação dos processos reguladores e da atribuição
de sentido a partir dos processos da percepção.
O reflexo com ajuda da linguagem (a cópia verbal das próprias ações),
os surgimentos das fórmulas da linguagem para ações sucessivas constituem o
fundamento para o desenvolvimento da autoconsciência e dos reguladores dos
mecanismos volitivos superiores. Os mecanismos reguladores do organismo se
baseiam no princípio da autopercepção dos próprios movimentos.
Há uma compreensão sobre reflexo muito importante. Segundo
Vigotski, se estudarmos o reflexo, sem considerá-lo em movimento, apenas
destacando uma ou então outra, por exemplo, a linguagem ou a consciência,
reflete. Em alguns processos reflete objetivamente, neste caso, a linguagem
não pode cumprir nenhuma função essencial, isto porque o reflexo passa a ser
um espelho, não podendo modificar o objeto refletido. Porém, se tomarmos em
movimento ou em desenvolvimento, veremos que, pelo reflexo, os nexos
objetivos e, em particular, o autorreflexo da prática humana no pensamento
verbal do ser humano surge sua autoconsciência e sua possibilidade de dirigir
conscientemente suas ações. Vigotski cita uma frase de Lênin: “a consciência,
em geral, reflete a existência” (Ibidem. p. 164). Esta é uma tese geral de todo
materialismo. Continuando na citação de Vigotski a Lênin: “ao domínio da
natureza que se revela na prática da humanidade, é o resultado do reflexo
326
objetivamente fiel dos fenômenos e processo da natureza na mente humana, e
demonstra que esse reflexo (no marco prático) é uma verdade objetiva,
absoluta, eterna” (Ibidem. p. 164).
Vigotski justifica quais as razões de enfatizar com tantos detalhes o
desenvolvimento da atividade prática e cita três momentos:
i) Assim como o próprio Piaget demonstrou, toda idade escolar se
caracteriza pelo que a criança transpõe, desde o plano de ação
ao plano do pensamento verbal, as operações que haviam sido
dominadas anteriormente;
ii) A atividade prática da criança e do adolescente se mediatizam
cada vez mais graças à linguagem e ao que introduzem da
linguagem no processo da atividade prática;
iii) É a estreita conexão existente entre os “nós genéticos” do
pensamento e da atividade prática que se desenvolvem e se
substituem reciprocamente e o desenvolvimento da atividade
laboral do adolescente, que vai amadurecendo para chegar a
dominar as formas superiores do trabalho humano.
No final deste artigo, Vigotski retorna com as anotações que Lênin
efetua sobre a Ciência da Lógica de Hegel. É uma longa citação que faz
referência à formação de conceitos. Lênin reconhece que Hegel analisou com
maior profundidade que Kant e outros, com mais determinação, o reflexo da
dinâmica do mundo objetivo na dinâmica dos conceitos. Da mesma forma que
o valor, a simples troca isolada de uma mercadoria por outra, não está
desvinculado de todas as contradições do capitalismo. A mais simples
generalização, por exemplo, formação de conceitos, significa que o ser humano
vai conhecendo cada vez mais as profundas e objetivas conexões do mundo. É
neste aspecto que Lênin enfatiza que é necessário analisar a lógica de Hegel,
que a formação de conceitos abstratos já inclui a ideia, “a consciência das leis
que regulam as conexões objetivas do mundo”. Para Lênin, isto é absurdo, mas
não é absurdo o estudo da lógica de Hegel para compreender que a formação
327
de conceitos é completamente diferente, inversa a que Hegel propõe. Sua
lógica nos serve para invertê-la.
Para Vigotski, “o conceito nos proporciona o primeiro conhecimento da
realidade no verdadeiro sentido dessa palavra, pois pressupõe a regularidade
de fenômenos que se conhece” (Ibidem, p. 198). A regularidade dos
fenômenos acontece no mundo real, não é uma abstração. É por essa razão
que a criança, quando se depara com o conceito, passa de um nível para outro,
passa do nível da vivência ao nível do conhecimento. É por meio do
pensamento em conceitos que definitivamente a personalidade e a concepção
de mundo se desenvolvem na criança.
Vigotski destaca a contribuição que Piaget traz ao defender a tese de
que “a diferença entre o pensamento e o mundo exterior não é algo inato na
criança, é algo que se desenvolve e se constrói” (Ibidem, p. 199). Podemos
observar que a criança, no início de seu desenvolvimento, não faz diferença
entre seu movimento e os movimentos do mundo circundante. Seus
movimentos são os movimentos produzidos pelo mundo. E nos estágios
seguintes de desenvolvimento, vamos percebendo que a criança vai
elaborando novas formas de relação com o mundo. O pensamento é esta
contribuição relacional que se forma, por um lado, pelo “desenvolvimento da
consciência de sua personalidade e de sua unidade, e, por outro lado, pelo
desenvolvimento da consciência da realidade e sua unidade” (Ibidem. p. 199).
Em outras palavras, o pensamento da criança é síntese “da personalidade e
concepção de mundo”. Contudo esta síntese não é possível, esta é a tese
vigotskiana, senão gradativamente até a formação de conceitos, “sem
pensamento em conceitos é impossível a consciência do ser humano” (Ibidem.
p. 199).
Com base numa citação de Engels, Vigotski também traz a relação
entre necessidade e liberdade. Engels concordava com Hegel ao ter exposto
corretamente a relação entre necessidade e liberdade por meio da afirmação,
“a necessidade é cega só porque não é compreendida”. A liberdade não pode
ser compreendida como independente das leis naturais, mas a liberdade está
em conhecê-las para fazê-las atuar “de modo planificado para fins
328
determinados”. Engels destaca que isso não vale somente para leis da
natureza exterior, mas também para natureza do próprio ser humano no
aspecto da existência corporal e espiritual.
Baseado nesta definição de Engels, Vigotski conclui que “só o conceito
eleva o conhecimento da realidade”, que possibilita passar das leis da vivência
para as do conhecimento. “A necessidade se converte em liberdade através do
conceito”. (Ibidem. p. 200).
Vigotski está dialogando com Engels e Hegel sobre a relação entre
liberdade e necessidade. Hegel “expressa brilhantemente” que não se deve
considerar reciprocamente excludente a necessidade e a liberdade. A
necessidade não era ainda liberdade, mas a liberdade não tem como
desconsiderar que tem na sua premissa a necessidade que a tem como
superado. E, novamente, Vigotski emenda “sem a função da formação de
conceitos não há conhecimento nem da necessidade e nem da liberdade. É
somente no conceito e através dele que o ser humano assume uma entidade
livre frente ao objeto e o si mesmo.”
Engels afirma que o produto indisponível para o desenvolvimento
histórico é a liberdade, pois no “domínio de nós mesmos e da natureza externa
está baseado o conhecimento das necessidades naturais”. O abandono de um
estado animal para uma condição humana consistia em que cada passo dado
era um ato para liberdade.
Para melhor entender a diferença entre uma criança e um adolescente
Vigotski recorre à tese de Hegel, ou seja, “a coisa em si” e “a coisa para si”.
Todas as coisas existem em si no começo, mas no processo de
desenvolvimento vão se transformando em “coisa para si”. Sem fazer citação
do texto, Vigotski continua citando Hegel: “o ser humano é em si uma criança
cuja tarefa não consiste em permanecer no abstrato e no incompleto ‘em si’,
mas sim em ser também para si, quer dizer, converter-se em um ser livre e
racional” (Ibidem. p. 200). Acriança em si transforma-se em adolescente ser
para si e esta é a questão central para analisar a crise de transição.
329
Conclusão
Vigotski tinha amplo conhecimento sobre a psicologia geral e sobre as
diferentes gnosiologias de sua época. Expomos longamente nesta terceira
parte uma fundamentação das concepções de Husserl com as quais sempre
debatia para acusá-la de não considerar os fatores históricos da ciência. Isso
não significa desconsideração pela concepção fenomenológica e Husserl se
debatia para sair também das concepções dualistas. A base que Vigotski tinha
sobre o marxismo-leninismo o qualificou como um especialista em metodologia
em razão de ter organicamente unido o materialismo histórico e dialético em
seus trabalhos de pesquisa.
Vigotski é muito reconhecido no campo da educação e mais
especificamente também reconhecido como um psicólogo da infância. De fato,
se analisarmos tantos textos veremos que o foco é a infância ou a
adolescência. A sua preocupação foi desenvolver investigações sobre a
história do surgimento e desenvolvimento das formas superiores que
caracterizam o ser humano, a atividade da consciência e a descrição das
funções. Vigotski desenvolveu um método que os comentadores russos
identificam como “genético experimental” porque justificam a constante
intenção de encontrar, por meio dos processos investigativos, as leis do
processo do surgimento e desenvolvimento das funções psicológicas. Notamos
nas produções de Vigotski não só o seu caráter analítico, mas a referência
centrada na pesquisa. Mais do que isso, havia um apelo prático trazido pelos
professores que atuavam com crianças e adolescentes na Rússia. Não
podemos esquecer o privilégio de Vigotski de ser chefe do laboratório de
pesquisa do Instituto de Pesquisa em Moscou. Assim como era um privilégio
poder contar com um grupo amplo de colaboradores-pesquisadores havia
também subliminarmente exigências que justificassem todo o investimento da
pesquisa. Ou seja, haveria de ter um resultado concreto na realidade que
estava se transformando na Rússia Soviética. A publicação que analisamos e
detalhamos nesta parte tem, sim, um apelo prático. Em 1931, foi emitido um
decreto para mudança do ensino primário e secundário na Rússia e o maior
desafio continuava sendo, depois de dez anos da Revolução de Outubro, a
330
extinção do analfabetismo. Vigotski não estava diretamente ligado ao campo da
educação, mas sim, era responsável pela coordenação dos estudos sobre os
aspectos que afetavam crianças que tinham problemas de desenvolvimento em
razão de diferentes patologias. O termo traduzido do russo para nós parece tão
descabido, “defectologia” como também outro termo “pedologia” (no Brasil
preferimos “pedagogia”).
A preocupação de Vigotski estava centrada nas leis fundamentais do
desenvolvimento psíquico da criança, ou seja, identificar “as forças motrizes” e
“o desenvolvimento da consciência” como “da personalidade”. Destacamos que
Vigotski identificava as “funções psíquicas” como uma determinação social
antes de ser interior, intrapsíquico. As relações sociais têm um caráter
determinante na formação da personalidade, mas não se deveria dissociar
também do caráter biológico. O social é a superação do biológico, mas sem o
qual não se chega ao social.
Vigotski não concluiu seu trabalho sobre o desenvolvimento psíquico e
tentou fazer isso apressadamente nos últimos anos de sua vida. Depois de
quase 100 anos das obras de Vigotski, continua o interesse pelas suas
produções. Não apenas por um aspecto histórico, mas podemos considerar
que elaborou os “prolegômenos” da teoria do desenvolvimento psicológico.
O que Vigotski denomina de “pedologia do adolescente” é também um
estudo sobre o desenvolvimento psíquico do adolescente. Foi escrito em forma
de manual e não há informações sobre as razões de assim ter procedido. É
neste período que estava preparando o texto “História do desenvolvimento das
funções psíquicas superiores” como também “Ferramenta e signo no
desenvolvimento da criança” e que não foram publicados em vida. Talvez aí
Vigotski já receava fazer estas publicações por temer represálias mais duras
daquelas que já começava a receber. Das funções tais como atenção,
percepção, memória e intelecto prático foram destacados o caráter da
mediação. Nos seus estudos sobre o processo de mediação Vigotski enfatiza
constantemente que as funções psicológicas isoladas não têm história e que o
desenvolvimento de cada função está dentro de um todo e como uma função
isolada localiza-se neste sistema. Para analisar o sistema psicológico, Vigotski
investigou três patologias: histeria, afasia e a esquizofrenia. Aqui os estudos se
331
fixam na unidade entre o histórico e o sistêmico no processo de
desenvolvimento psíquico.
ELKONIN (2012) afirma que Vigotski trabalhava tendo como referência
“um esquema de análise” que se constitui um método de análise aplicado para
as investigações da psicologia infantil:
“a) determinarel período crítico que inicia la etapa evolutiva, su principal nueva formación; b) investigar el análisis de surgimento y formación de la nueva situación social, de sus contradicciones internas;c) examinar la génesis de la principal nueva formación; yd) analisar la propia nueva formación compuesta por las premisas de la desintegración de la situación social, típica pea esta etapa evolutiva” (Ibidem, p. 406).
Elkonin faz referência a um processo evolutivo que entendemos num
processo de desenvolvimento, por exemplo, da criança, pois está se
investigando as crises que ocorrem em diferentes períodos da vida da criança.
É através deste esquema/método que se consolida a pesquisa de Vigotski na
psicologia infantil. Continuamos sustentando que este referencial que Vigotski
utiliza para fundamentar tanto a psicologia infantil como da adolescência é uma
marca das pesquisas que de certa forma envolvem a própria consolidação da
psicologia soviética. Tanto a lógica dialética confrontada com a lógica formal
como também os fundamentos do materialismo histórico dialético estruturam a
teoria vigotskiana.
No sentido hermenêutico de profundidade, concluímos a etapa de
reinterpretação a partir dos textos diretos de Vigotski. A reinterpretação
consiste neste processo de análise reconstitutiva do sentido da dialética em
Vigotski. Contudo, esta análise consiste mais do que enaltecer o caráter da
lógica dialética de Vigotski, mas inseri-lo no que os seus próprios textos
claramente estabelecem: sua relação com o materialismo histórico dialético. O
caráter interpretativo, portanto, reconhece que as obras do autor correspondem
e coincidem com as inquietações de sua própria vida. As obras literárias se
confundem com a vida de qualquer autor. O problema não é a concepção de
Vigotski, mas os intérpretes. Mesmo que tenhamos na primeira parte nos
delongado com esta questão, nos referenciamos somente nas obras de
Vigotski.
332
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A data de 1989 não é uma data convencional e muito menos qualquer
data. A queda do muro de Berlim marca o fim do socialismo. Apenas alguns
anos depois, vimos Mikhail Gorbachev declarar oficialmente em rede de
televisão o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
LATOUR (2005), no livro Jamais Fomos Modernos, afirma que o ano de 1989
marca um novo momento histórico. Ele afirma que esta data marca o “triunfo do
liberalismo, do capitalismo, das democracias ocidentais sobre as vãs
esperanças do marxismo” e que isto era um “comunicado glorioso daqueles
que escaparam por pouco do Lêninismo” e ironicamente destaca “estranha
dialética esta que ressuscita o explorador e enterra o coveiro após haver
ensinado ao mundo como fazer uma guerra civil em grande escala”. Este livro
foi escrito em 1994, pouco depois da queda do muro de Berlim. Para destacá-lo
um pouco mais apresentamos duas de suas questões. Primeira, afirma que “o
recalcado retorna e retorna em dobro: o povo explorado, em nome do qual a
vanguarda do proletariado reinava, volta a ser um povo”; e “as elites com seus
longos dentes, que pareciam ser desnecessárias, voltam com toda força para
retomar, nos bancos, nos comércios e nas fábricas seu antigo trabalho de
exploração”. Finaliza, “o ocidente liberal não se contém de tanta alegria”. “Ele
ganhou a guerra fria” (Ibidem, p. 13-14). A modernidade é uma promessa que
critica o passado, é uma crítica das heranças da tradição. Como fazer esta
superação? Então, para completar, Latour nos apresenta paradoxos da
modernidade que estão muito presentes nos dias de hoje. São dois. O primeiro
é o seguinte: de um lado, constatamos que “a natureza não é uma construção
nossa: ela é transcendente e nos ultrapassa” e, de outro lado, “a sociedade é
uma construção nossa: ela é imanente à nossa ação”. De um lado,
constatamos nossa fraqueza diante da natureza, e de outro lado, nos
colocamos como responsáveis pela construção da sociedade. Contudo, vamos
ao segundo paradoxo apresentado pelo autor. De um lado “nós construímos
artificialmente a natureza no laboratório: ela é imanente”; mas, por outro lado,
“não construímos a sociedade, ela é transcendente e nos ultrapassa
infinitamente” (Ibidem. p. 37). Invertem-se as condições quanto ao paradoxo
333
anterior. Não nos colocamos como frágeis diante da natureza e buscamos
todos os recursos em laboratórios para descobrir suas leis porque a
consideramos imanente e possível de ser conhecida e dominada. Por outro
lado, considera-se a impossibilidade de construir uma sociedade, de considerá-
la possível de entendimento e de estudo e domínio.
Estes dois paradoxos citados por Latour remetem-nos ao início do
século XX. Remetem-nos para o momento de uma sociedade que conseguiu
construir uma hegemonia social, tomar o poder, dirigir um estado e viabilizar
um projeto político de construir uma nova sociedade, ao mesmo tempo,
tomando como referência o domínio da natureza, poder transformar a
sociedade.
Criar uma psicologia que se diferenciasse das “velhas psicologias” era
uma tarefa tão importante e do tamanho do desafio de criar uma nova
sociedade. O projeto de construção de uma psicologia dialética não era tarefa
de um pesquisador apenas. O trabalho de equipe resultou hoje no que nós
conhecemos como uma escola incumbida de pesquisar e trabalhar com as
questões reais. O reconhecimento dado hoje a Vigotski se deve a sua
capacidade de sistematizar em tempo real. É a pesquisa práxis – a unidade da
teoria e da prática.
A atitude de Vigotski é muito semelhante a de Lênin, que em outra área
foi identificado como aquele que promovia a práxis política. Lênin tinha a
atitude de refletir sobre a prática e assim se abria para a crítica. A realidade
revolucionária possibilitava pessoas com esta natureza.
Neste trabalho não havia interesse de analisar com profundidade estas
diferenças entre Lênin e Vigotski – especialmente no campo epistemológico – o
que pode ser ainda um campo de estudo, de investigação.
Outro campo de estudo, pouco explorado neste trabalho, é a relação
de Vigotski com os psicólogos da Alemanha, Áustria e Suíça (os países de
língua alemã). Este seria um trabalho que exigiria muito tempo de estudo, e
enquanto não se efetua, não se consegue estabelecer concretamente o diálogo
que Vigotski fez com tanta intensidade.
Aqui neste trabalho nos preocupamos com o diálogo nas cercanias do
marxismo e, portanto, na atualidade, exigiria ampliar o debate com outras
334
correntes filosóficas atuais. O debate em torno das categorias necessidade e
liberdade remete a Lukács e estabelecer a relação com Vigotski integraria
ontologia e epistemologia. É outro campo de pesquisa em aberto e tocamos de
maneira muito rápida.
Por fim, Vigotski enfatizou no “Significado Histórico da Crise da
Psicologia” (1927) aquela dúvida se deveria a psicologia ser denominada de
marxista ou não. Às vezes, dizia que sim e outras vezes questionava para que
não entrasse neste debate. Era melhor ser reconhecido como marxista pelos
outros. Precisamos hoje de uma psicologia geral? Trabalhamos com a
diversidade e a pluralidade e talvez Vigotski responderia a esta pergunta
destacando a dialética e a história como fatores necessários para análise das
realidades sociais.
Sustentamos que Vigotski esteve dentro do movimento materialista e
isso tem muitas resistências para aceitação, especialmente, em razão da
influência da assimilação deturpada de muitos autores estadunidendenses. De
forma geral estamos inseridos numa hegemonia gnosiológica positivista e esse
é o aspecto central da polêmica com Vigotski. Qual seria a negatividade da
teoria vogotskiana? Nós respondemos que é a negação das teorias objetivistas
e subjetivistas. Ao negar as duas concepções, nega-as apresentando uma
síntese de uma psicologia dialética. Ora, entramos no campo das
confrontações entre Hegel e Marx. O retorno dos marxistas à leitura de Hegel
constitui ainda uma busca para as perguntas que apresentamos como
paradoxos expostos por Latour.
No capítulo no qual retratamos a dialética da práxis trabalhada por
Lênin enfatizou-se “a unidade do mundo”, o real, a materialidade. Para analisar
o real é imprescindível conhecer o processo histórico dos seres humanos, isto
significa investigar a origem e as leis objetivas que são conhecidas no processo
que se dá nas relações sociais. São as definições de Lênin que se alinham
com os referenciais de Vigotski. A referência é de uma época e Lênin foi um
dentre tantos que assumiram o caráter de sistematizar as manifestações do
real no campo da política. Vigotski, com as mesmas características, no campo
da psicologia.
335
Utilizamos uma metáfora para expressar melhor. A dialética marxiana é
o alicerce da hermenêutica vigotskiana e a dialética da práxis e Lênin são a
estrutura. A teoria vigotskiana sem o referencial do materialismo histórico
dialético transforma-se numa concepção positivista; sem o materialismo
histórico dialético a teoria vigotskiana não alcançaria o impacto que, até hoje,
nos desafia a continuar as investigações no campo da psicologia social.
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347
ANEXOS
348
CRONOLOGIA RESUMIDA DE LEV SEMIONOVICH VIGOTSKI73
1896
Lev Semionovich Vigotski é o segundo filho de Semion Ivovitch (1869-1931) e Cecília
Moiseevna (1874-1935), família de oito filhos. Nasceu em 05 de novembro, em Orsha,
Bielorússia.
1897
A família muda-se para Gomel.
O pai de Vigotski, Semion Lvovitch, dirige o departamento de um dos bancos em
Gomel que era uma cidade com maioria formada pela população de judeus.
1909
Em 05 de novembro de 1909 Vigotski fez seu bar mitzvah que é um ritual da tradição
judaica que marca sua assunção para vida adulta
1911
Vigotski entra pela primeira vez em uma escola, pois até então estudara sempre com
tutores particulares.
1913
No final do ano conclui o curso secundário.
1914
Inicia na Universidade Imperial de Moscou o curso de Medicina, mas resolve
imediatamente mudar para o curso de Direito.
Ingressa também na Faculdade de História e Filosofia da Universidade Popular de
Shanyavskii.
Na mesma época, interessa-se por literatura e escreve resenhas de livros dos
escritores-simbolistas russos Andrei Bieli, Viatcheslav Ivanov, Dmitri Merejkovski.
73 Para elaboração deste resumo cronológico consideramos as publicações KOZULIN (1990);
PRESTES (2014), PRESTES & TUNES (2011; 2012); VEER & VALSINER (2009). YASNITSKY (2010,
2011, 2012a, 2012b; YASNITSKY & FERRARI (2008).
349
1916
Vigotski começa a publicar, nas revistas Letopis, Novii Mir e Novaia Jizn, vários artigos
e resenhas, dedicados à crítica literária (até 1922). Alguns trabalhos foram sobre o
romance de Andrei Belii (Peterburg), sobre o livro de Viatcheslav Ivanov (Borozdi e
meji), sobre a peça de D.Merejkovski (Budet radost), sobre o poema de I.S.Turguenev.
A primeira versão da monografia, A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, de
Shakespeare, foi escrita durante as férias de 1915 e a segunda em 1916.
1917
Permanece alguns meses em Kiev em 1917, em plena Guerra Civil, pois resolveu
acompanhar o irmão (doente de tuberculose) e a mãe em viagem à Crimeia para
tratamento.
1918
Tem a primeira crise de tuberculose. Achando que morreria, pediu ao seu amigo
Dobkin para que garantisse a publicação de seus manuscritos.
1919
Em janeiro, Gomel é libertada da ocupação Alemã.
De 1919 até 1921 assume o cargo de diretor do subdepartamento teatro do
Departamento de Instrução do povo. Torna-se um articulador das atividades artísticas
da cidade, especialmente com teatro.
1920
Recebe a confirmação que contraiu tuberculose, doença na época considerada sem
cura.
Morre seu irmão mais novo vítima de tuberculose e um ano depois outro irmão
também falece vítima de Tifo.
Muda seu sobrenome Vigodski para Vigotski.
1922
Publica muitas resenhas teatrais nas páginas dos jornais em Gomel. Exerce o papel
de crítico literário.
Em 30 de dezembro foi fundada a URSS (União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas).
350
1923
Propõe criar um gabinete de psicologia experimental na Escola Técnica da ciência de
Pedagogia. Nesta escola dá aula de psicologia e lógica.
1924
Participa do II Congresso de Psiconeurologia realizado em Lêningrado.
Convidado por Kornilov a trabalhar no Instituto de Psicologia experimental em Moscou.
Apresenta trabalhos em conferências científicas, tais como: Sobre a natureza
psicológica da consciência, O novo artigo de I. P. Pavlov, Estudos das reações
dominantes, A consciência como problema da psicologia do comportamento, Sobre a
nova escola psicológica de Berlim, entre outros.
Em julho, por recomendação do organizador do Instituto Experimental de Defectologia,
I. I. Daniuchevski, Vigotski foi conduzido ao cargo de diretor do subdepartamento de
educação das crianças com deficiências físicas e retardo mental no Departamento de
Proteção Social e Jurídica de Menores.
Em outubro também é nomeado ao cargo de professor do Instituto de Pedologia e
Defectologia de Moscou para lecionar Introdução à Psicologia. Na mesma época,
começa a lecionar Psicologia na Academia de Educação Comunista (mais tarde,
Instituto Krupskaia);
Inicia também um trabalho de prático de Psicologia Experimental nos Cursos
Superiores de Ciência e Pedagogia;
Acontece o II Congresso sobre a Proteção Social e Jurídica dos menores de idade,
Vigotski apresenta relatório: Sobre a situação atual e as tarefas na área de educação
para as crianças com deficiências físicas.
Elabora trabalhos escritos: Sobre a psicologia e a pedagogia da deficiência infantil e
Os princípios de educação de crianças com deficiências físicas.
Publica, o trabalho: Sobre a psicologia e a pedagogia da deficiência infantil.
No Instituto de Psicologia, aproxima-se de A. N. Leontiev e A. R. Lúria.
Casa-se com Rosa Smerrova.
No final do ano muda-se com sua mulher e vai morar temporariamente no porão do
Instituto de Psicologia Experimental de Moscou (antes conhecido como Instituto de
Psicologia).
Morre Lênin
.
1925
A família de Vigotski (pais e irmãos) mudam-se de Gomel para Moscou durante o
verão (junho, julho e agosto) e reside, por algum tempo, no mesmo quarto.
Escreve “Psicologia da Arte”.
351
Inicia a organização do Laboratório de Psicologia para Crianças deficientes.
Dá aulas na Primeira Universidade de Moscou (na Faculdade de Ciências Sociais,
orienta a atividade prática na Psicologia);
Escreve artigo Consciência como problema da psicologia do comportamento para o
livro Psicologia e Marxismo.
Aprovado, como representante da URSS, para participar da Conferência Internacional
sobre a Instrução de pessoas surdas-mudas em Londres.
Eleito, juntamente com P. P. Blonski e K. N. Kornilov, como membro da Comissão
Metodológica de Psicologia do Conselho Científico Estatal.
De novembro 1925 até maio de 1926 fica internado numa clínica para tratar dos seus
problemas de saúde.
Escreve Consciência como problema da Psicologia do comportamento.
Defende a dissertação Psicologia da Arte e recebe o título de professor independente.
Escreve o prefácio do livro de Sigmund Freud Além do princípio do prazer.
Dialética da natureza de F. Engels é publicada pela primeira vez na Rússia.
Nasce sua primeira filha em Gomel: Gita.
1926
Foi publicado o livro Psicologia Pedagógica.
Escreve o prefácio do livro de Thorndike Os princípios da instrução com base na
psicologia.
Publica anotações sobre o artigo de Koffka.
Em junho, é declarado inválido devido seus graves problemas de saúde.
1927
Termina o texto O sentido histórico da crise na psicologia, O defeito e a
supercompensação e escreve o prefácio do livro de Leontiev, Desenvolvimento da
Memória que foi publicado somente em 1931.
1928
Escreve sobre a questão da dinâmica do caráter infantil, O método instrumental na
pedologia, O problema do desenvolvimento cultural da criança, Pedologia da idade
escolar.
Estuda A. A. Potiebnia e sua conhecida obra Psicologia e Linguagem.
Apoia o grupo que defendia a reactologia.
352
1929
Escreve o artigo As raízes genéticas do pensamento e da fala.
Na primavera fez uma conferência na Universidade Estatal na Ásia Média em
Tashkent
1930
Logo no início do ano, é oferecida a Vigotski, Lúria, Leontiev e Lebedinski a
organização do Departamento de Psicologia da Academia de Psiconeurologia da
Ucrânia, em Kharkov.
Escreve vários artigos sobre Pedologia do Adolescente.
Passa por sérias dificuldades financeiras em razão do fechamento e reestruturação de
vários institutos de pesquisa. Por falta de recursos as publicações não são efetivadas.
Nasce sua segunda filha em Moscou: Asya.
1931
Escreve O coletivo com o fator de desenvolvimento da criança anormal.
Em novembro, é nomeado para o cargo de diretor da cátedra de psicologia genética
do Instituto Estatal de formação de quadros do Comissariado do Povo para Saúde da
Ucrânia.
Bananiev inaugura a era na Psicologia soviética de “combinação” dos trabalhos da
Psicologia com a ideologia do regime totalitário.
Junto com Lúria iniciam um estudo sem precedentes sobre as mudanças sociais
rápidas ocorridas na sociedade tradicional da Ásia Central durante sua modernização
após a revolução bolchevique e como estas mudanças afetaram o desenvolvimento
cognitivo de sua população. É realizada uma expedição, mas sem a presença de
Vigotski.
Escreve A história do desenvolvimento das funções psíquicas superiores e O
instrumento e o signo no desenvolvimento da criança.
Ingressa na faculdade de medicina do Instituto de Psiconeurologia de Kharkov.
Em novembro recebe a primeira visita de Kurt Lewin como consequência de muitas
trocas de correspondências.
1932
Publicação do artigo Sobre o problema da psicologia da esquizofrenia.
Segunda expedição de pesquisa para Ásia Central no verão de 1932 com a presença
de Koffka. Esta pesquisa supervisionada por Vigotski e Lúria começa a receber duras
críticas do poder central e o resultado da pesquisa só veio ao conhecimento em 1970.
353
1933
Encontro com Kurt Lewin.
Em 26 de novembro é contratado oficialmente como chefe do Departamento de
Psicologia Clínica de Moscou do recém-reorganizado Instituto de Medicina
Experimental da URSS. É a partir deste momento que retoma com todo ímpeto uma
série de publicações.
Em dezembro, apresenta o relatório Sobre a questão da dinâmica do desenvolvimento
mental da criança normal e da criança anormal.
1934
No início do ano inicia um projeto promissor para elaboração de uma coleção de
Desenvolvimento Mental das crianças no processo educativo.
Os últimos trabalhos de Vigotski são: Os problemas de desenvolvimento e de
desintegração das funções psíquicas superiores e Psicologia e estudo sobre a
localização das funções psíquicas.
Em maio é autorizado ao repouso restrito em sua residência.
Trabalha no Pensamento e Linguagem até poucos dias antes de morrer.
Falece 11 de junho no sanatório. Sepultado em 13 de junho de 1934 no cemitério
Novodevich'e, um cemitério nacional de prestígio para os políticos, líderes militares,
artistas e cientistas. Além disso, o seu cérebro foi armazenado no "Panteão dos
Cérebros" do Instituto de Pesquisas Cerebrais de Moscou.
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