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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
DO ESCONDIDO
Santo Agostinho e os limites da esttica
Ana Rita de Almeida Arajo Francisco Ferreira
DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA
ESTTICA E FILOSOFIA DA ARTE
2012
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
DO ESCONDIDO
Santo Agostinho e os limites da esttica
Tese orientada pela Professora Doutora Maria Leonor Lamas Xavier
e pelo Professor Doutor Carlos Joo Correia
Ana Rita de Almeida Arajo Francisco Ferreira
DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA
ESTTICA E FILOSOFIA DA ARTE
2012
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Esta tese foi realizada com o apoio da Fundao para a Cincia e Tecnologia e da Fundao Calouste Gulbenkian
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Resumo
O tema desta dissertao a esttica agostiniana e a abordagem que proponho
parte do problema da secundarizao deste autor na rea da esttica, com base nas
crticas ausncia de sistema, ao carcter esparso das consideraes sobre a beleza e ao
no desenvolvimento de uma filosofia da arte. Essa marginalizao, a meu ver,
sintomtica no de uma limitao do pensamento esttico de Santo Agostinho, mas de
uma viso aprisionada no tempo da esttica enquanto disciplina, enquanto ramo
autnomo da filosofia, institucionalmente reconhecido. Nesta senda, procedo a uma
anlise dos eixos tericos que no pensamento agostiniano estruturam a sua
mundividncia esttica e que no apenas se enquadram numa perspectiva alargada deste
ramo disciplinar como contribuem para clarificar as suas valncias. A viso tradicional
do universo da anlise conceptual esttica assim problematizada atravs de uma
revisitao esttica agostiniana, para l das consideraes acerca da arte e da mera
teofania atravs do belo.
Pelo conceito de numerus, Santo Agostinho demonstra subscrever uma
concepo racional da apreciao esttica que todavia no lhe predetermina um carcter
objectivo. O seu neoplatonismo cristo permite-lhe perspectivar a relao sensvel como
uma propedutica para o reconhecimento da inteligibilidade divina que ordena o criado
e, portanto, para o alcance contemplativo do Criador - Beleza to antiga e to nova. O
aperfeioamento da sensibilidade, enquanto modo de relao e de valorao,
traduzvel na justeza do ordo amoris, cujo carcter criterioso ancora a liberdade
individual s leis da verdade eterna, revelando quer um paralelismo entre as esteses e o
conhecimento intelectual, quer um enlace entre a esfera da aco humana e os juzos das
percepes sensveis; ou por outras palavras, entre a tica e a esttica.
No seio do pensamento agostiniano, a transversalidade da esttica e o tipo de
estamento a que a experincia sensvel deve predispor parecem tornar mais prximo das
actuais correntes estticas o filsofo africano do que os filsofos iluministas aos quais
devemos o desenvolvimento da rea disciplinar em questo.
Palavras-chave
Belo, Esttica, Filosofia, Numerus, Santo Agostinho.
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Rsum
Le thme de la prsente dissertation est lesthtique augustinienne et langle
dapproche que je propose a pour point de dpart le problme de la mise au second plan de
cet auteur dans le domaine de lesthtique, en prenant appui sur les critiques de labsence de
systme et du non dveloppement dune philosophie de lart. Cette marginalisation est,
selon moi, symptomatique non pas dune limitation de la pense esthtique de Saint
Augustin, mais dune vision prisonnire de lhistoire de lesthtique en tant que
discipline, en tant que branche autonome de la philosophie, institutionnellement
reconnue. En empruntant cette voie, je procde une analyse des axes thoriques qui
dans la pense augustinienne structurent sa vision esthtique du monde et qui nentrent
pas seulement dans le cadre dune perspective largie de cette branche disciplinaire,
mais qui contribuent galement clarifier leurs validits. La vision traditionnelle de
lunivers de lanalyse conceptuelle esthtique est ainsi problmatise en revisitant
lesthtique augustinienne, par-del les considrations autour de lart et dune simple
thophanie travers le beau.
Par le concept de numerus, Saint Augustin rvle son adhsion une conception
rationnelle de lapprciation esthtique qui ne lui confre pas, toutefois, un caractre
objectif. Son noplatonisme chrtien lui permet denvisager la relation sensible comme
propdeutique pour la reconnaissance de lintelligibilit divine qui ordonne le cr et, par
consquent, pour aboutir la contemplation du Crateur Beaut si ancienne et si nouvelle.
Le perfectionnement de la sensibilit, en tant que mode de relation et de valorisation, se
traduit par la justesse de lordo amoris, dont le caractre pertinent ancre la libert
individuelle dans les lois de la vrit intrieure, rvlant tantt un paralllisme entre les
esthtismes et le savoir intellectuel, tantt un lien entre la sphre de laction humaine et les
jugements des perceptions sensibles ; ou, en dautres mots, entre lthique et lesthtique.
Au sein de la pense augustinienne, la transversalit de lesthtique et le mode
existentiel auquel lexprience sensible doit prdisposer semblent rapprocher davantage
des actuels courants esthtiques le philosophe africain que les philosophes des Lumires
auxquels nous devons le dveloppement du champ disciplinaire dont il est ici question.
Mots-cls
Beau, Esthtique, Philosophie, Numerus, Saint Augustin
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NDICE GERAL
Agradecimentos ..................................................................................................................................... 15
Abreviaturas ........................................................................................................................................... 19
Introduo ............................................................................................................................................... 23
Parte I
A esttica de Santo Agostinho
1. Os corpos e os sentidos
1.1 Materia/ moles e forma/ species ....................................................................................... 37
1.2 Os fundamentos antropolgicos da esttica agostiniana ............................................... 51
1.3 A alma e os sentidos corpreos ........................................................................................ 62
1.4 O sentido interior e a memria ......................................................................................... 77
2. O potencial cognoscitivo da experincia esttica
2.1 Os fundamentos gnosiolgicos da atitude esttica ........................................................ 97
2.1.1 O papel da razo na percepo sensvel ................................................................. 97
2.1.2 A propedutica do olhar e a aprendizagem da razo com vista beata vita ... 113
2.2 Uma esttica expressa em termos matemticos ........................................................... 126
2. 2. 1 Numerus, pondus e mensura ................................................................................ 126
2. 2. 2 Unidade, multiplicidade e ordem ....................................................................... 145
3. Gradaes de ser, de beleza e dos efeitos da percepo do belo
3.1 Do pulchrum/ aptum ao par conceptual uti/ frui .......................................................... 157
3.2 Na raia do erotismo da philocalia philosophia ...................................................... 169
3.3 Atitude esttica como processo relacional, introspectivo e intencional ................... 180
4. A relao entre beleza e verdade
4.1 Aco perceptiva e juzo racional .................................................................................. 193
4.2 A verdade como critrio do juzo esttico .................................................................... 204
4.3 Imagem, signo e alegoria ................................................................................................. 215
Parte II
O lugar da esttica agostiniana na esttica contempornea
1. Ter Santo Agostinho uma filosofia da arte?
1.1 As trs acepes da palavra arte: artes, ars e ars ............................................ 235
1.2 Santo Agostinho e as artes como hoje as entendemos ................................................ 247
2. Um sistema esttico agostiniano?
2.1 Por que razo se deve falar, sem medo, numa esttica agostiniana? ......................... 263
2.2 Sistematicidade e esttica agostiniana ........................................................................... 273
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3. De que modo Santo Agostinho nos leva a repensar a esttica?
3.1 O que foi e o que a esttica? ........................................................................................ 285
3.2 Repensando a esttica a partir de Santo Agostinho ...................................................... 303
3.2.1 O potencial cognoscitivo da experincia esttica................................................ 309
3.2.2 Emoes estticas .................................................................................................... 314
3.2.3 A questo do valor e a afinidade entre os domnios esttico e tico ................ 320
Concluso .............................................................................................................................................. 325
Bibliografia
I. Obras de Santo Agostinho ..................................................................................................... 339
II. Textos antigos referidos ....................................................................................................... 343
III. Bibliografia especfica ........................................................................................................ 345
IV. Outros estudos sobre Santo Agostinho ............................................................................. 353
V. Bibliografia geral .................................................................................................................. 361
ndices
ndice onomstico ...................................................................................................................... 371
ndice temtico ........................................................................................................................... 375
ndice de obras de Santo Agostinho ........................................................................................ 381
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AGRADECIMENTOS
A originalidade pressuposta numa tese de doutoramento no significa que seja
fruto de um trabalho autnomo e isolado do seu autor. A aparente auto-suficincia por
detrs do meu projecto de investigao doutoral nutriu-se do acompanhamento que
ambos os meus orientadores foram dedicando ao que escrevi, das conversas informais
que mantive com outros Professores, das opinies e incentivos dos colegas e da
compreenso e suporte que a estrutura familiar sempre me proporcionou. Seria
indelicado e mesmo injusto no agradecer a todas as pessoas que fizeram parte desta
fase do meu percurso acadmico e que, a seu modo, contriburam para os contedos da
minha tese. A responsabilidade pelas incorreces e incompletude cabe-me
exclusivamente, mas o mrito por aquilo que de novo e de interessante esta tese trouxer
ultrapassa-me, havendo que reconhecer o papel de cada amigo ou mentor.
Desde logo, tenho de expressar a mais profunda gratido Professora Doutora
Maria Leonor Xavier, que meticulosamente seguiu o desenvolvimento de cada
subcaptulo da dissertao, sugerindo novas abordagens, apontando incongruncias ou
imprecises, norteando leituras e sempre evidenciando um justo equilbrio entre as
palavras de estmulo e as de crtica. A preocupao que teve em integrar a minha
contribuio acadmica para l do mbito da tese foi de grande importncia e permitiu-
-me crescer como investigadora. sobretudo o seu exemplo de seriedade, competncia
e dedicao profissional que reterei como meta a atingir.
Ao Professor Doutor Carlos Joo Correia agradeo a preocupao e o interesse
com que sempre segue o percurso dos seus orientandos. A constante disponibilidade e
generosidade demonstradas ao longo destes anos de trabalho ultrapassaram o tradicional
acompanhamento de um orientador, permitindo-me beneficiar de uma rara combinao
entre a exigncia em termos cientficos e a rectitude em termos humanos. O bom-
-humor, a pacincia e a confiana com que foi respondendo s minhas solicitaes,
tornaram bastante mais fcil o meu percurso.
No posso deixar de referir o quanto beneficiei da erudio do Professor Doutor
Costa Macedo, da viso alargada da esttica que as aulas da Professora Doutora Adriana
Verssimo Serro me proporcionaram e da elegncia filosfica com que a Professora
Doutora Maria Lusa Ribeiro Ferreira sempre estrutura as suas apresentaes. Ao
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Professor Doutor Leonel Ribeiro dos Santos, Filipa Seabra, Carla Simes e D.
Filomena da Piedade agradeo o caloroso acolhimento com que brindam todos os
alunos e investigadores de Filosofia, atendendo s nossas necessidades e facilitando ao
mximo o nosso trabalho, pela agilizao de processos paralelos que sempre influem na
pesquisa, pela logstica e pela disponibilizao de materiais e espaos que criam o
ambiente propcio investigao.
O aspecto mais positivo destes anos que dediquei ao projecto de doutoramento,
foi a amizade que estabeleci com vrios dos meus colegas investigadores. Pude sempre
partilhar com eles as minhas dvidas, beneficiei sempre do seu interesse pelo meu
trabalho, pude contar com as suas palavras de incentivo, com a sugesto de livros e
artigos, com a disponibilidade para resolverem os meus problemas burocrticos na
secretaria da FLUL e pude contar com a companhia deles em momentos de lazer, que s
vieram beneficiar a escrita da tese. Assim, no posso deixar de agradecer Teresa
Quirino, ao Tiago Mesquita Carvalho, Ana Nolasco, Ana Cravo, Filipa Afonso,
Ins Bolinhas, ao Francisco Ribeiro Soares e sua esposa Isabel.
Para alm destes amigos feitos no mbito do doutoramento, outros houve, de
longa data, que tambm contriburam directamente para que pudesse levar a bom porto
o meu projecto de investigao. Qualquer agradecimento ser sempre insuficiente face
ao apoio e boa vontade da Ilda e da Ana Salom, que tantas vezes me acolheram nas
deslocaes a Lisboa, ou s atenes da Cristina de Melo, sempre a par das novidades
editoriais acerca de Santo Agostinho e cujo entusiasmo e confiana face ao meu
trabalho frequentemente suplantavam o meu prprio empenho. Sandra Loureno, o
meu bem-haja pela constncia da sua amizade e pelos afagos ao ego que tantas vezes
me proporcionou.
O facto de deixar a famlia para o fim em nada reflecte um decrscimo na ordem
de importncia que atribuo ao seu papel no meu percurso. Aos meus pais e irmo
agradeo a fora, o carinho e a estabilidade necessrios para suplantar os momentos de
dificuldade que surgiram durante a redaco da tese. minha cadela Fidlia, agradeo a
companhia que fez durante as muitas horas que passou debaixo da minha secretria e os
passeios que me obrigou a dar, juntamente com o Castanho e com o Rufias, propiciando
um saudvel distanciamento do computador. Por ltimo, agradeo ao meu companheiro,
Paulo, pela compreenso e pacincia que sempre demonstrou todas as vezes que roubei
o tempo que lhe deveria ser dedicado, a favor desta dissertao.
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ABREVIATURAS
Conf. Confessionum
Contra Acad. Contra Academicos
Contra ep. fund. Contra epistulam Manichaei quam vocant fundamenti
Contra Faust. Contra Faustum
Contra Jul. Contra Julianum
Contra Jul. op. imp. Contra Julianum opus imperfectum
De an. et orig. De anima et ejus origine
De bono con. De bono conjugali
De civ. Dei De civitate Dei
De corr. grat. De correptione et gratia
De div. quaest. 83 De diversis quaestionibus octoginta tribus
De doct. christ. De doctrina christiana
De fide et op. De fide et operibus
De grat. et lib. arb. De gratia et libero arbitrio
De Gen. ad litt. De Genesi ad litteram
De Gen. ad litt. imp. De Genesi ad litteram imperfectus liber
De Gen. cont. Man. De Genesi contra Manichaeos
De Imm. An. De immortalitate animae
De lib. arb. De libero arbitrio
De Mag. De Magistro
De mus. De musica
De nat. boni De natura boni
De quant. an. De quantitate animae
De ord. De ordine
De Trin. De Trinitate
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De vera relig. De vera religione
En. Psa. Enarrationes in Psalmos
Ep. Epistulae
In Iohan. ep. Parthos In Iohannis epistulam ad Parthos tractatus
In Iohan. Evang. tract. In Iohannis evangelium tractatus
Quaest. Hept. Quaestionum in Heptateuchum
Retr. Retractationum
Sol. Soliloquiorum
Plotino
En. Enadas
Outra
REAug. Revue d' Etudes Augustiniennes et Patristiques
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INTRODUO
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A abordagem esttica agostiniana implica, ao nvel dos conceitos, um triplo
transporte: em primeiro lugar entre lnguas, j que os textos a analisar esto em Latim;
em segundo lugar, entre tempos, visto terem sido escritos h dezassete sculos e, por
fim, entre ramos filosficos, uma vez que, no tempo de Santo Agostinho, a esttica no
constitua ainda um ramo autnomo da filosofia e aquilo que podemos considerar como
sendo o seu pensamento esttico encontra-se disseminado entre as outras problemticas
filosficas que desenvolve. Este triplo transporte torna necessria uma perspectivao
filolgica prvia sobre a relao da linguagem com o tempo e com os contextos, de
forma a justificar a pertinncia da leitura contempornea sobre a esttica agostiniana
que propomos.
Para alm de ser uma disciplina, a esttica tambm um conceito, e um conceito
, em primeiro lugar, um nome que usamos para designar os fenmenos e os objectos
que integram as nossas vivncias. Um conceito pois uma delimitao, uma fronteira
que estabelecemos face a um determinado ncleo de representaes mentais.
importante salientar que essa delimitao sinuosa, no estvel nem definitiva.
Inevitavelmente, as fronteiras entre conceitos interpenetram-se, partilhando espaos
proxmicos alargados por vezes, no sabemos mesmo onde situar essas fronteiras,
reconhecendo apenas a dinmica que estabelecem com outros conceitos circunjacentes.
Este o caso da esttica. S no sculo XVIII, com Baumgarten se deu nome ao ncleo
constitudo pelas consideraes acerca do sentimento do belo e ao qual foi feito um
casamento imediato com outro ncleo o da arte. Esse casamento, ainda que tenha
ampliado de forma bastante legtima o territrio da esttica, tem constitudo, a nosso
ver, uma priso para a disciplina, tamanha tem sido a confuso entre a abrangncia dos
limites da esttica e os da filosofia da arte.
Na verdade, a histria da esttica, tem sido dominada pela questo das fronteiras
que delimitam o seu campo de estudo. Sendo uma disciplina recente e em maturao,
muitos dos universos que no passado no eram abarcados pelo domnio da esttica
vem-se hoje no seu fulcro. No futuro, essa abrangncia ser ainda maior. Associar o
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reformular das fronteiras da esttica ao constante reformular das fronteiras da arte uma
viso simplista e redutora do fenmeno. A esttica tem vindo a ganhar terrenos que
fazem parte da tica, da ontologia, da epistemologia com a diferena, relativamente a
estes ramos filosficos, de no ter ainda o seu objecto claramente definido. Mas no
por se desconhecer a linha de demarcao do campo e do objecto de estudo da esttica
que se torna impossvel reflectir sobre os fenmenos estticos e sobre as possibilidades
e limites de um discurso que os descreva (e que tambm a constitui como disciplina).
Para abordar a esttica agostiniana no nos podemos reportar a um quadro
conceptual esttico do sculo IV, porque tal quadro inexistente h portanto que
delimitar, dentro das temticas de base do pensamento agostiniano, os ncleos de
abordagem que podero encontrar lugar num quadro conceptual esttico
contemporneo. Nas diferentes obras de Santo Agostinho, possvel encontrar
passagens esparsas sobre a relao entre a philosophia e a philocalia, passagens sobre as
faculdades sensitivas, sobre os critrios daquilo que, por outras palavras, o juzo
esttico, sobre a sua intencionalidade, sobre o valor cognoscitivo do belo e mesmo sobre
as implicaes ticas da fruio. Nos escritos agostinianos tambm possvel encontrar
pistas quanto subjectividade da experincia esttica e sobre o seu carcter relacional.
Claro que a transposio dos conceitos agostinianos para um quadro conceptual esttico
contemporneo no pode ser feita arbitrariamente. Tal questo impe voltar aos
transportes referidos no incio deste texto impe, portanto, a questo da traduo,
enquanto exerccio de deslocao do pensamento.
Para a filosofia, a questo da traduo no poder ser um assunto perifrico e h
que assumir a necessidade de problematizar as tradies de recepo de textos antigos.
O caso agostiniano flagrante. Actualmente, face maioria das tradues e dos estudos
que dispomos sobre os textos de Santo Agostinho, tendemos a consider-los
conservadores, quando, na verdade, no seu contexto de origem, tais escritos eram quase
subversivos. A sobriedade da linguagem que hoje parece revestir as suas obras
corresponde pouco ao tom crepuscular e violento do latim agostiniano um latim que j
no obedece aos cnones gramaticais dos clssicos pelos quais Santo Agostinho foi
influenciado (Ccero, Virglio) e que tornava os seus escritos semanticamente
inovadores e estilisticamente muito complexos. O idiolecto agostiniano irnico,
angustiado, por vezes sensual e por vezes ofensivo. Os muitos sculos de recepo dos
seus textos foram polindo tais asperezas e o seu carcter audacioso perdeu-se. O que
est em causa no apenas o estilo literrio, pois do mesmo modo que no existem
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contedos transmissveis sem expresso que os veicule, tambm no existe expresso
que no veicule contedos. Havendo perda de expresso, h perda de contedos.
Os conceitos abordados nos textos antigos chegam aos nossos dias com perdas
nem sempre bvias relativamente ao contexto de origem. Os conceitos evoluem por
heterogenia e o seu percurso histrico vai implicando diferentes circunscries e
interseces de valor, significao e inteno. O ideal seria que os conceitos dos textos
antigos chegassem at ns acompanhados pela respectiva estrutura diacrnica
acompanhados por todas as especificidades do percurso histrico do seu emprego. As
alteraes que os conceitos vo sofrendo coincidem, muitas vezes, com as mudanas de
episteme. As associaes conceptuais numa cultura, ou numa lngua, rumam em
diferentes direces noutra. A grande questo que a recepo dos textos antigos
sempre indirecta, requerendo a mediao de um lance hermenutico. O que recebemos
tem que fazer sentido no nosso contexto de recepo, sem perder o sentido intencionado
pelo contexto de origem.
O prprio Santo Agostinho deixou algumas coordenadas em relao a estas
questes pois, pela exegese, tambm ele se confrontou com a necessidade de interpretar
textos que no lhe eram coevos e que no podiam, ou no deviam, ser interpretados
literalmente. Em De Doctrina Christiana, tal como j havia enunciado em De Magistro,
afirma que a linguagem um sistema de sinais. Muitos dos sinais presentes nos textos
tm sentidos ambguos ou desconhecidos (ignotis aut ambiguis signis),1 porque so
metafricos (signa translata),2 mas todos so significantes. Ao abordar a interpretao
dos sinais metafricos, Santo Agostinho no s admite a possibilidade de significados
mltiplos, como sugere que pode ser impossvel determinar a inteno original que os
determinou e admite a possibilidade de futuras exegeses poderem extrair significados
legtimos para alm das intenes originais. No De doctrina christiana, Santo
Agostinho reconhece ainda o carcter convencional das palavras e antecipa as
comunidades sociolingusticas, ao referir que a diferenciao das diversas lnguas
humanas resulta de diferentes convenes (instituta hominum).3
1 De doct. christ. II, 10, 15.
2 Ibid.
3 De doct. christ. II, 24, 37 - II, 25, 40.
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A abordagem esttica agostiniana, que se prope nesta dissertao parte de um
problema: a secundarizao deste autor na rea da esttica, com base em trs crticas
principais: a) a ausncia de sistema; b) o no confinamento das suas consideraes
estticas e c) a ausncia de uma filosofia da arte. Essa marginalizao, a nosso ver,
sintomtica no de uma limitao do pensamento esttico de Santo Agostinho, mas de
uma viso aprisionada no tempo da esttica enquanto disciplina, enquanto ramo
autnomo da filosofia, institucionalmente reconhecido. Assim, esta proposta tem um
carcter bfido: por um lado, intenta a reabilitao de um pensamento esttico medieval
e, por outro lado, problematiza o universo contemporneo da anlise conceptual
esttica.
A reabilitao da esttica agostiniana no passa pela tentativa de lhe reconstituir
o tal sistema esttico, pelo menos no na acepo tradicional dos termos, mas passa sim
por reequacionar as valncias do campo de estudos delimitado pela esttica e pela
demonstrao, atravs de uma leitura contempornea do pensamento esttico
agostiniano, de que a marginalidade imputada no corresponde adequao das
especificidades de tal pensamento disciplina em questo.
O estudo da esttica medieval sobretudo dominado pela figura de S. Toms de
Aquino, muito graas ao contributo de Umberto Eco que, na dcada de 50 do sculo
passado, lhe consagrou a sua tese de doutoramento.4 Nessa obra seminal, Eco afirmava
ser seu intento explorar cada conceito luz das respectivas circunstncias histricas,
situando os textos no seu tempo original, pois s assim poderia aceder sua verdade.
A nossa preocupao em reconhecer um ncleo terico, perfeitamente delimitvel
apesar do seu carcter esparso, no seio da obra agostiniana em tudo paralela ao
propsito de Eco, relativamente a S. Toms, porm, em termos metodolgicos, no
poderamos ser mais discordantes. Obviamente no descartamos o enquadramento
histrico dos conceitos, ou daquilo que encerrado pelos conceitos, mesmo antes destes
serem formados coisa alis frequente quando se lida com a esttica , mas assumimos
especificamente o Presente como contexto de ancoragem desse trabalho de
interpretao.
4 Umberto Eco, Il Problema Esttico in Tommaso dAquino, 2 ed., Milano, Bompiani, 1998.
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Hannah Arendt entende por interpretar o acto de tornar explcito aquilo que
Santo Agostinho apenas diz implicitamente.5 precisamente assim que nos lanamos
sem medo numa estruturao de ncleos de anlise que congregam vrias temticas
desenvolvidas por Santo Agostinho a propsito de questes que mesmo estando no
contexto original directamente associadas a outros modos de abordagem filosfica ,
definem pela forma como se articulam um mbito de indubitvel pertinncia esttica.
a acepo contempornea e alargada da esttica que temos em mente nessa anlise e
estruturao do pensamento agostiniano. O respeito pelo contexto de origem, ao qual
no deixmos de atender, salvaguarda-nos das sobre-interpretaes, mas poder tambm
frustrar as expectativas de uma leitura radicalmente inovadora acerca da esttica
agostiniana. Para um investigador familiarizado com o pensamento do filsofo africano
no haver primeira vista uma originalidade to evidente nos contedos, ainda que a
nossa anlise siga trilhos menos convencionais e d relevncia inusual a tpicos que
qualquer outro enquadramento filosfico relegaria para segundo plano ou a um total
esquecimento. sobretudo no modo como feita a articulao desses tpicos que reside
a originalidade do nosso contributo.
Ao propormos os diversos ncleos de abordagem que constituem a primeira
parte desta tese, tnhamos j presentes as bases nas quais assenta a nossa perspectiva
esttica e que apontam para um alargamento do mbito tradicionalmente associado a
este ramo disciplinar filosfico. A intuio de que o pensamento esttico agostiniano
mereceria um maior reconhecimento e uma anlise mais alargada do que aquela que lhe
tem sido consagrada pelos poucos investigadores que se dedicam a este mbito do seu
pensamento conduziu, por um lado, percepo das possibilidades dessa ampliao das
valncias do ramo disciplinar esttico; por outro lado, a prpria anteviso de uma nova
abrangncia relativamente esttica fautorizou o modo como reunimos e interpretmos
as consideraes agostinianas acerca dos assuntos que consideramos poderem filiar-se
no mbito esttico.
A interdependncia da perspectiva acerca do alargamento da esttica enquanto
rea disciplinar e da perspectiva acerca da esttica de Santo Agostinho fez com que
hesitssemos entre iniciar esta tese com a problematizao relativa ao universo
contemporneo da anlise conceptual esttica e entre inici-la directamente com a
abordagem daquilo que entendemos ser o pensamento esttico agostiniano. A escolha
5 Hannah Arendt, O conceito de amor em Santo Agostinho, Alberto Pereira Dinis (trad.), Lisboa, Instituto
Piaget, 1997, p. 9.
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recaiu sobre esta segunda opo, no apenas porque consideramos ser a que reside o
verdadeiro fulcro deste projecto doutoral, mas tambm por entendermos que a trama de
questes e temticas implicadas no universo da esttica de Santo Agostinho poderia
propiciar novas pistas para o sobrepujar da acepo tradicionalmente atribuda
esttica. De uma anlise mais convencional em torno da beleza e da sensibilidade vimos
derivar uma constelao de outros assuntos directamente implicados em tal ncleo de
abordagem, cuja relevncia destoava da mera subsuno teoria do belo, indiciando
antes um estatuto paralelo ao papel da beleza, mas ainda pertinente no mbito esttico.
A complexidade e riqueza da esttica agostiniana aponta direces e contribui para
justificar a actual tendncia de alargamento da esfera contempornea da esttica.
Assim, a primeira parte deste estudo concerne integralmente estruturao das
principais linhas do pensamento esttico de Santo Agostinho. No primeiro captulo so
abordadas as temticas da criao e da relao sensvel face ao criado. A teoria do belo
marca aqui presena incontornvel, no apenas no que toca sua formulao como
transcendental, mas igualmente no que respeita s implicaes de um formalismo de
origem estica que, aparentemente, contrasta com a matriz neoplatnica subjacente
reflexo agostiniana. Partindo da anlise de conceitos centrais como forma e species, a
teoria do belo acaba por se ver enleada a temticas como o nihil ou como o mal, das
quais ressalta a distncia entre Criador e criatura. A esttica agostiniana parece ir no
sentido de contrariar tal distncia, revelando pontos de contacto entre finitude e infinitude.
A relao corpo/ alma e a forma como se processa a percepo sensvel so
desenvolvidas neste primeiro captulo j que se constituem como alicerces de qualquer
experincia esttica. O papel do sentido interior e da memria estabelecem a
transio entre tal dimenso e a esfera racional que, contrariamente quilo que
comummente se assume, no constitui um plo oposto da sensibilidade, mas uma
condio sine qua non da experincia esttica. Tal complementaridade pode ser
compreendida na esttica agostiniana atravs de dicotomias como a de homem
exterior/ homem interior ou ratio superior/ ratio inferior, bem como atravs da
articulao entre os diferentes tipos de viso (corporal, espiritual e intelectual) ou
entre os diversos tipos de luz (luz fsica, luz da alma e luz da inteligncia), que se
constituem como condio da visualidade e que introduzem a teoria agostiniana da
iluminao divina. O segundo captulo desenvolve, portanto, tais temticas
explorando tambm a relevncia do conceito de numerus para a esttica de Santo
Agostinho e as trades que permitem relacionar as caractersticas das criaturas com
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as perfeies do Criador. As relaes entre as pessoas divinas na essncia una de
Deus abrem caminho s dinmicas que a multiplicidade pode configurar,
determinando qualidades estticas exprimidas em conceitos como modulatio,
proportio, coaptatio, congruentia, convenientia, consonantia, rythmus, integritas,
aequalitas e ordo.
O terceiro captulo clarifica os dois pontos de vista agostinianos a partir dos
quais as categorias estticas podem ser consideradas: a) um ponto de vista autnomo,
que concerne convenincia do todo, graas adaptao das partes (e que do domnio
do pulchrum) e b) um ponto de vista relativo o da convenincia das partes em relao
ao todo (do domnio do aptum). O pulchrum e o aptum no so redundantes, eles
marcam uma gradao na suposio das categorias estticas que se reflecte na
qualificao do real e que torna indissocivel o mbito esttico do mbito tico. Assim,
vrias hierarquias se delineiam na filosofia agostiniana de ser, de beleza, de elevao
da alma, de actividades humanas hierarquias estas cuja descrio converge para a
ideia da indissociabilidade entre o belo e o bem.
A legitimidade dos liames afectivos que o homem estabelece com aquilo que o
rodeia problematizada luz do ordo amoris, tambm ele uma estrutura de natureza
gradativa, qual no alheia a questo uti/ frui. A relao entre a beleza e o amor
equacionada por Santo Agostinho segundo o prisma do conhecimento, levando-o a
constatar a equivalncia entre philosophia e philocalia. O questionamento da beleza
conduz percepo da inteligibilidade e, em ltima instncia, ao reconhecimento de
Deus, pela via da interioridade, na qual a f no Mediador se assume como caracterstica
central e distintiva do neoplatonismo agostiniano.
No quarto captulo, a inseparabilidade da esttica em relao tica na
perspectiva do Bispo de Hipona reiterada atravs da anlise do processo de judicao.
O juzo esttico com efeito uma avaliao acerca da adequao de uma resposta
natural da sensibilidade em relao ao contexto e sua determinao final. A utilizao
do conceito desinteresse no sentido kantiano parece no encontrar adequao na
perspectiva agostiniana, j que o juzo implica uma reflexo acerca da lex numerorum e
o prazer inscreve-se nas especificidades do ordo amoris.
O acto judicativo esttico no apenas indissocivel do critrio do bem como do
da verdade, pelo que a moldura propiciada por Cristo, quer como Mestre interior, quer
como Verbo incarnado permite reconhecer na experincia esttica uma dimenso
reveladora e at mesmo salvfica. A prpria beatitudo pode ser considerada de um
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32
ponto de vista esttico e o seu alcance est dependente de uma estratgia de
conformao da imagem de Deus existente no homem ao seu modelo. A abordagem
que Santo Agostinho consagra ao tema da imagem e das implicaes da igualdade, da
semelhana e da especularidade traduz um modo de pensar a relao de equidade entre
Deus Pai e Deus Filho e a relao de proximidade entre Deus e o homem. Tal
abordagem no deixa de ser formulada em termos estticos, j que a uma matriz de
beleza que a imagem se refere e j que a converso pressupe simultaneamente a
reconverso do olhar e a reformulao da beleza da alma luz de tal matriz, atravs da
mediao de Cristo, que o modelo ao qual o homem tem de atender pela
exemplaridade da beleza divina que ele incarna. O prprio modo especular a que a
viso humana est limitada predispe a uma leitura caracterstica da semiologia acerca
da relao entre o universo criado e a esfera divina.
Com a segunda parte da dissertao pretende-se demonstrar e consolidar a ideia
de que h, efectivamente, uma esttica agostiniana contrariamente ao que afirmam
muitos dos filsofos historiadores desta rea, como Raymond Bayer6 e desmistificar o
receio que os prprios investigadores que se debruam sobre o pensamento esttico de
Santo Agostinho tm demonstrado pela relutncia em usar a palavra esttica
relativamente ao Bispo de Hipona, preferindo a segurana da expresso teoria do
belo. Mesmo sem sistema esttico e sem filosofia da arte, a esttica agostiniana no se
resume a uma teoria do belo.
No primeiro captulo desta segunda parte enfrenta-se a questo da ausncia de
uma filosofia da arte no pensamento agostiniano, clarificando as diversas acepes que
o filsofo africano consagra palavra arte e analisando a considerao que dedica s
actividades que contemporaneamente se considera pertencerem ao universo da criao
artstica. Anumos quanto inexistncia de uma filosofia da arte mas discordamos
daqueles que vem em tal ausncia um impedimento a que se possa legitimamente falar
de uma esttica agostiniana. A ateno que o filsofo d s especificidades da
experincia temporal humana e a permeabilidade que reconhece existir entre o homem
interior e o homem exterior revelam uma rara valorizao da dimenso sensvel, a ponto
de Santo Agostinho descrever at mesmo para o homem ressurrecto um possvel uso
dos sentidos corpreos, j desnecessrios quanto sua funo utilitria; um uso
destinado ao deleite, como prmio por uma vida virtuosa.
6 Cf. Raymond Bayer, Histria da Esttica, Lisboa, Estampa, 1995, p. 87.
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33
O segundo captulo visa responder crtica da ausncia de sistema no
pensamento agostiniano, uma vez mais anuindo quanto veracidade da constatao de
assistematicidade, mas recusando tal argumento como um factor de menoscabo e de
recusa de uma reflexo estruturada enquadrvel no mbito da esttica. Para tal,
problematiza-se o prprio conceito de sistema enquanto forma filosfica superior e
prope-se uma leitura da expresso terica agostiniana luz do conceito de
dispositivo, na acepo que Deleuze lhe consagra atravs da descrio que faz deste
filosofema em Foucault.
O ltimo captulo desta tese consiste numa exposio acerca do que a esttica,
de certo modo justificando os ncleos de abordagem propostos como eixos do
pensamento esttico agostiniano. Parte-se de uma perspectiva histrica sumria que
revisita alguns dos autores mais representativos do momento fundacional da disciplina
filosfica em questo. Tarefa ingrata pelas omisses a que no nos podemos furtar.
Todavia, assumimos com tal escolha de autores Baumgarten, Kant, Schiller, Schelling
e Hegel o propsito de descrever as linhas tericas de base que alicerariam os
posteriores desenvolvimentos na rea da esttica e que viriam a culminar na actual
tendncia de alargamento do mbito disciplinar. Tendncia esta que contrasta com o
momento fundacional da esttica durante o perodo iluminista alemo, no qual se
procurou lindar e circunscrever o mbito da disciplina, para assim o legitimar
filosoficamente. A transversalidade da esttica agostiniana revela uma salutar
abrangncia, alis comum a tantos outros autores medievos, que poder servir como
exemplo ou como reforo terico para a esttica contempornea face s dificuldades
com que esta se tem deparado nesse seu movimento de expanso. Alm da perspectiva
histrica, o perfil que se pretende traar da esttica exige tambm a explorao de
alguns conceitos fulcrais como o de experincia esttica, emoes estticas e valor
esttico. A tese finda precisamente com tal anlise que se por um lado revela uma
concepo da esttica capaz de abranger as linhas do pensamento agostiniano em funo
dela previamente traadas, por outro lado tambm foi dessas linhas que se nutriu tal
concepo e nelas encontrou contributo para melhor se perspectivar.
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Nota: Salvo indicao contrria, as tradues so da nossa responsabilidade.
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Parte I
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1. Os corpos e os sentidos
1.1 Materia / moles e forma / species
A esttica agostiniana , no raras vezes, tida como menos interessante do que a
esttica neoplatnica que tanto a influenciou. Com efeito, as Enadas de Plotino
parecem evidenciar uma abordagem relativa ao belo e arte mais autnoma ou
especfica do que aquela que desenvolvida em qualquer uma das obras de Santo
Agostinho que chegaram at ns a excepo estaria certamente em De pulchro et
apto. Alm de Plotino dedicar dois tratados especificamente ao tema do belo,7 h nas
Enadas uma perspectivao inovadora da arte que Santo Agostinho de certo modo
adoptar expressa em termos bastante positivos e que contrastam com o aparente
menosprezo com que o Bispo de Hipona se refere a todas as formas de expresso
artstica, que no a msica. A perspectivao inovadora da arte que Plotino desenvolve
e que Santo Agostinho segue, sem no entanto lhe tecer encmios, marca uma inflexo
quanto esttica platnica, que avessa quilo que hoje podemos designar de beleza
artstica. Para Plotino, a arte (), porque provm da ideia do artista, mais do que da
sua habilidade manual, faculta o conhecimento da beleza superior e , nesse sentido,
valorizada como afirmao do divino ora, isto contrrio ao pensamento de Plato,
para quem a arte estava trs graus afastada da verdade e para quem a obra de um
sapateiro tinha maior valor do que a de um escultor. Apesar de toda a sensibilidade
artstica presente nos termos que Plotino usa para distinguir a beleza do bloco de pedra
7 O sexto tratado da Primeira Enada, tido como o primeiro na cronologia plotiniana conhecido pelo
ttulo Acerca do Belo e o oitavo tratado da Quinta Enada, o trigsimo primeiro em termos
cronolgicos e intitulado por Porfrio de Acerca da Beleza Inteligvel. Cf. Plotin, Ennades I-VI/2,
mile Brhier (ed./ trad.), Paris, Belles-Lettres, 1924-1938.
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38
esculpido, da do bloco de pedra tosco8 e para se referir ao processo de purificao da
alma, em analogia com o gesto escultrico,9 a verdade que, para alm dessa estratgia
retrica, no h propriamente diferena entre a considerao da arte plotiniana e
agostiniana. Para ambos os filsofos, a arte est subjugada a um quadro finalstico que
tem no seu fulcro a purificao da alma e a contemplao da esfera divina para ambos,
a arte tem um valor heurstico e a beleza que se lhe associa no mais do que um plido
trao da beleza superior da esfera divina.
Sendo o prprio Santo Agostinho um filsofo de tradio neoplatnica, o
pensamento esttico que desenvolve mantm o pressuposto de que toda a beleza,
inclusivamente a corprea, advm da comunho com uma forma ideal, mas Santo
Agostinho vai mais longe do que Plotino ao estabelecer que a natureza inteligvel do
belo no obsta a que este possa ser concebido de um modo formalista, material. Assim,
quando em Acerca do Belo, Plotino comea por negar a ideia de que a beleza consiste
na simetria, apresentando cinco argumentos para refutar tal tese estica,10
o Bispo de
Hipona, por seu turno, habituado a conciliar teorias antagnicas, coloca lado a lado a
perspectiva plotiniana que enfatiza a existncia de belezas no compostas no mundo
sensvel e a ideia de que a fonte ltima do belo una, simples com a tese rival estica,
segundo a qual a beleza requer uma multiplicidade de partes em harmoniosa relao. Ao
faz-lo, Santo Agostinho parece ignorar voluntariamente a mtua inconsistncia destas
perspectivas. Na verdade, o Bispo de Hipona apenas reduz o alcance da objeco
plotiniana, j que mantm a pertinncia do critrio da simetria, interpretando-o no
8 Cf. En. V, 8, 1.
9 Cf. En. I, 6, 9.
10 A tradicional definio de beleza, que se supe de origem estica, sintetizava-se nos seguintes termos:
. Os argumentos plotinianos para a recusa da ideia de que a beleza resulta da
simetria desenvolvem-se do seguinte modo: a) tal ideia pressuporia que s um ser composto seria belo e,
por exemplo, um ser simples como uma cor, um som ou a luz do sol, no poderiam ser belos; b)
equivaleria tambm a afirmar que cada parte em si no possui beleza, mas apenas sua combinao tal
atributo poderia ser imputado; ora, segundo Plotino, para um conjunto ser belo, as partes tambm tm de
o ser. Um conjunto belo no pode constituir-se por partes feias; c) h tambm exemplos como o de um
rosto proporcionado, que no poder tirar a sua beleza das propores (simetria), uma vez que estas se
mantm mesmo quando, por vezes, esse rosto se mostra feio; d) tambm porque h beleza, por exemplo,
nos conhecimentos, nas cincias, nas leis, nos discursos e nas nobres condutas de vida, para os quais
impossvel determinar um padro de medida passvel de aferir a relao entre as partes da alma e todos
estes exemplos so j uma beleza da alma; e) acrescenta-se o facto de poder haver, por exemplo, simetria
em teorias ms e f) porque a beleza da inteligncia, que livre em si mesma, no poderia colocar-se em
termos de simetria/ propores. Cf. En. I, 6, 1.
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39
como um critrio falso, mas como um critrio insuficiente. Quando Santo Agostinho
articula elementos da esttica plotiniana com elementos esticos, a ambivalncia em que
cai a perspectivao da beleza corprea pode no ser necessariamente entendida como
paradoxal, no sentido de mutuamente invalidante, se tomarmos a beleza corprea como
um elemento teofnico proclamador da beleza divina, e prescritor de uma via para se lhe
aceder, que tanto implica a desvalorizao desta beleza que imagem, como insiste no
reconhecimento do seu encanto, enquanto promessa da maior beleza constituda pela
esfera divina. Estas duas atitudes divergentes em relao ao mundo sensvel, so
conciliveis porque so paralelas duplicidade do movimento a partir do qual a
multiplicidade advm da unidade e a ela tende novamente. A unidade afim do desejo
criador de beleza e a partir dessa unidade que nasce uma harmonia numerosa
(coaptatio), divergindo e desdobrando-se numa multiplicidade de partes e convergindo
novamente ao tender para o todo. A duplicidade deste movimento marca qualquer
beleza criada e marcar o modo de relao que o homem deve manter face a este gnero
de beleza. Deste modo, embora Santo Agostinho insista, na esteira de Plotino, no
carcter imaterial da beleza sempre dependente do princpio de racionalidade que est
na sua origem e no da massa que constitui os corpos tidos por belos, a verdade que,
por exemplo em De civitate Dei, o Bispo de Hipona define a beleza fsica como sendo
a harmonia das partes com uma certa suavidade da cor11
, evidenciando que no
descarta a tradicional esttica das propores, reformulando-a no mais em termos de
simetria, como os esticos, mas em termos de harmonia de partes (congruentia partium
ou congruentia numerosa)12
e da mtua adaptao (coaptatio) que entre elas se
observa.13
No h, portanto, o abandono completo da concepo formal da beleza, como
pressuporia naturalmente o legado neoplatnico, mas, de modo a reiterar a pertinncia
de tal legado, a esttica agostiniana assenta em pressupostos que acentuam a
subordinao formal das diversas belezas existentes ao princpio que as informa.
Curiosamente, esses pressupostos em que assenta a esttica agostiniana e que lhe
permitem enfatizar o carcter hbrido e derivado as belezas sensveis por oposio sua
fonte simples e una, para a qual remetem pelo acordo entre o nmero e a sua figura
11
Omnis enim corporis pulchritudo est partium congruentia cum quandam coloris suavitate De civ. Dei
XXII, 19 (CCL 48, p. 838).
12 Cf. Ibid..
13 Cf. De civ. Dei XXII, 24.
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40
visvel,14
ao mesmo tempo que permitem reiterar os assertos em que assenta a
concepo plotiniana do belo, constituem-se como elementos de dissenso entre o
pensamento do filsofo africano e o do filsofo egpcio. Esses pressupostos so a
criao ex nihilo e a recusa da teoria plotiniana da emanao. O primeiro, opondo-se s
teorias da preexistncia da matria e ideia de um criador demirgico que lhe d forma,
far com que a categoria ontolgica da forma, nos seus variados graus de igualdade e
no apenas como padro inteligvel, assuma um papel crucial na concepo da beleza do
universo. O segundo amplia a ideia de participao das belezas inferiores na beleza
superior e contribuir decisivamente para a percepo e para o exerccio da beleza
orientada para Deus. Se a criao tivesse emanado de Deus, tal implicaria que, nas
criaturas, essa prpria substncia divina, por natureza infinita e imutvel em si mesma,
seria sujeita a mutaes e mesmo a degradao o que se constitui como uma ideia
sacrlega aos olhos de Santo Agostinho. A criatura no deriva da prpria substncia do
criador, mas do nada.
Santo Agostinho descreve Deus como forma infabricata atque omnium
formosissima 15
que cria a matria informe ex nihilo, com o potencial para receber
forma16
pela converso a si. A beleza da criao intrnseca sua existncia e sua
equivalente desde o momento da criao.
A explorao do conceito agostiniano de forma fulcral para qualquer
abordagem esttica deste autor, pois traduz o carcter intermedirio da atitude esttica
um carcter que no deixa de ser religioso17
ao preservar num nico lexema dois
significados semanticamente distintos. A este nvel, o latim agostiniano quase parece
permitir uma cintilao da harmoniosa indiscernibilidade dos opostos, que o carcter
delimitador da linguagem verbal inevitavelmente gorou. O conceito forma no s se
refere aos arqutipos transcendentes da realidade, como s configuraes dos corpos
14
Cf. De civ. Dei XX, 30, 10-19.
15 De vera relig. 11, 21.
16 Cf. De vera relig. 18, 36.
17 Na acepo prstina de religiosidade, enquanto esfera emprica propcia ao re-ligare transdimensional.
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materiais. Significa isto que contingncia e transcendncia so expressas do mesmo
modo, em termos estticos.18
O conceito forma congrega, portanto, as acepes que os gregos cindiram pelos
termos ou e . A natureza ambivalente da forma agostiniana torna
incontornvel ancorar a sua abordagem temtica da criao que, por seu turno, articula
a questo da ordem, a questo do exemplarismo implcita nas rationes seminales e,
obviamente, as questes do nihil e do mal.
A doutrina da creatio ex nihilo era j vigente na ortodoxia crist,19
quando Santo
Agostinho desenvolve a sua perspectiva sobre a criao do mundo, adequando-se muito
eficazmente necessidade de refutar o dualismo maniqueu, cujos argumentos tanto
incomodavam o Bispo de Hipona, apesar de com eles ter comungado inicialmente. No
portanto de estranhar que o tema da criao seja, sobretudo, tratado por Santo
Agostinho nos seus escritos de maior pendor antimaniquesta, como De ordine (386),
De Genesi contra Manichaeos (388), De Genesi ad litteram liber imperfectus (393),
Contra Adimantum (393), De Genesi ad litteram (393-415), Contra adversarium Legis
et Prophetarum (420) e, naturalmente, tambm em passagens presentes em
Confessionum XI-XIII (397-398) e em De civitate Dei XI (413-426).
Todas as coisas foram criadas por Deus a partir do nada e atravs de um acto
livre de amor. A matria da criao no preexistente ou co-eterna com Deus; Ele criou
a prpria matria da criao e, por isso, o acto criador concerne no apenas a tudo o que
existe, como tambm a tudo que poder ainda vir a existir. Ora, a matria da criao
uma matria informe, tal como se lhe refere o Livro da Sabedoria,20
qual Santo
18
Carol Harrison expe singularmente esta ideia, ao escrever que As configuraes concretas e as
formas vagamente discernveis so nomeadas com os nomes da transcendncia, do belo. Assim, o latim
agostiniano permite-lhe conservar lado a lado o imediato e a ultimidade, fazendo-o [por intermdio da
beleza], pensando-os como o belo. The actual shapes and forms dimly discerned are named with the
names of the ultimate, of the beautiful. Thus Augustines Latin helps him to hold together the immediate
and the ultimate, and to do this by thinking of them as the beautiful. Harrison, Beauty and Revelation in
the Thought of Saint Augustine, Oxford, Clarendon Press, 1992, p. 2.
19 Tefilo de Antioquia (~120 180) tido como o primeiro autor cristo a defender a creatio ex nihilo,
argumentando que se a matria fosse, tal como Deus, incriada como postulavam os platnicos , ento
no faria sentido considerar a transcendncia de Deus, j que tal pressuporia que a matria fosse igual a
Deus e que Ele no poderia ser o criador de todas as coisas. A preexistncia da matria gorava o carcter
extraordinrio da criao e da actividade do criador divino, at porque os homens tambm conseguem
produzir coisas novas a partir da matria existente.
20 []Vossa mo omnipotente que formou o mundo de matria informe [] Sab. 11:17.
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Agostinho faz equivaler os cus e a terra do princpio do acto criador descrito no
Gnesis.21
A interpretao agostiniana da criao bblica v-se a braos com a
necessidade de no incompatibilizar entre si estas passagens do Antigo Testamento,
bem como com a necessidade de dar resposta s crticas sarcsticas em que resultava a
interpretao maniquesta das mesmas.22
A criao da matria informe corresponde a
um primeiro momento do acto criador, que no dever ser entendido como primeiro
num sentido cronolgico ou diacrnico, mas em termos meramente lgicos ou
ontolgicos, e que permitem uma compreenso tridica da gnese.
Assim, a creatio prima contempla a criao dos cus e da terra ex nihilo, ainda
sem forma, mas com capacidade para receber, nos momentos seguintes, as formas das
coisas.23
Pela creatio secunda, Deus informa o informe, dando forma aos seres
particulares a partir da matria informe da creatio prima. neste segundo momento que
surge a determinao temporal e que se estabelecem os seis dias da criao e o stimo
dia de descanso, que no corresponde a um cessar da actividade divina relativamente s
criaturas, mas ao acto criativo constitudo por estes dois primeiros momentos. Como,
porm, a criao se processa ao longo da histria, h um terceiro momento, ainda em
curso sob a divina providncia, pelo qual os seres j criados crescem e multiplicam-se
(agora em termos geracionais) e no qual, graas s razes seminais (rationes seminales),24
21
No princpio, Deus criou os cus e a terra. A terra era informe e vazia. Gn. 1: 1-2.
22 Os maniqueus questionavam ironicamente o que andara Deus a fazer antes de criar os cus e a terra;
por que razes resolvera cri-los; e ridicularizavam uma suposta antropomorfizao de Deus presente no
Antigo Testamento. Cf. De Gen. cont. Man. I, 2, 3 e Conf. XI, 10, 12.
23 Cf. De Gen. cont. Man. I, 5, 9 e I, 7, 11 onde Santo Agostinho diz que, no princpio, Deus fez os cus e
a terra, como se fizesse o grmen do cu e da terra, estando ainda confusa e sem forma (confusa et
informis) a matria do cu e da terra e ainda invisveis (Cf. De Gen. cont. Man. I, 3, 5), pois so
anteriores ao fiat lux , mas j assim designados dado que deles procederiam os cus e a terra agora
visveis aos nossos olhos. Esta matria informe encontra correspondncia no grego, conforme aponta
o prprio Bispo de Hipona. Dada a sua informidade ela est muito prxima do nada (prope nihil erat) e
quase nada (paene nihilo). Cf. Conf. XII, 6, 6 - 8, 8.
24 Para um estudo mais aprofundado sobre o conceito de razes seminais na obra do Bispo de Hipona, cf.
Charles Boyer, La thorie augustinienne des raisons sminales, in Essais sur la doctrine de saint
Augustin, Paris, Gabriel Beauchesne et ses fils, 1932, pp. 97-137; J. Brady, The Function of the Seminal
Reasons in St. Augustines Theory of Reality, Ph.D. Dissertation, St. Louis University, 1949; Michael
John McKeough, The Meaning of the Rationes Seminales in St. Augustine, Washington, Catholic
University of America Press, 1926.
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as coisas que existem no mundo apenas em potncia,25
podem actualizar-se dando origem a
novos seres.
A explicao tridica da criao no obsta ideia de que Deus tenha criado tudo
a partir do nada, num nico instante criador. O segundo e o terceiro momentos da
criao esto, desde logo, contemplados na creatio prima, onde a matria informe
criada do nada contm em si todas as coisas nas suas particularidades ainda em
potncia.26
Nada mais ou nada realmente novo foi criado aps o primeiro acto de
criao; tudo foi criado no princpio, antes de aparecer na terra e no tempo; mas esse
acto criativo actualiza-se progressivamente atravs dos tempos, pelo trabalho contnuo
da divina providncia.
A teoria das rationes seminales permite estabelecer uma distino entre o acto
original da criao e o operar providencial de Deus, ou, por outras palavras, entre o
modo atravs do qual Deus se constitui como causa nica, livre, de tudo o que e de
tudo o que no sendo poder ainda vir a ser e o modo de causalidade necessrio das
leis naturais que presidem ao curso da natureza. Tambm este modo , em ltima
instncia, resultante da causa primeira e superior de todas as coisas27
e que, portanto,
no inviabiliza a capacidade causal passiva, ou potencial, relativa aos acontecimentos
que no tomamos por habituais como os milagres mas que nem por isso devero
ser considerados como uma quebra na cadeia causal natural. Os milagres resultam
tambm da capacidade intrnseca s razes seminais, que tm a sua origem em Deus.28
As causas naturais no passam, porm, de instrumentos da actividade providencial de
25
Apesar de no conhecer as noes aristotlicas de acto e potncia, a verdade que Santo Agostinho
envereda por uma via que no completamente distinta da do estagirita e que facilitar a
conceptualizao do ser em So Toms de Aquino, nove sculos depois.
26 Cf. De Gen. cont. Man. I, 6, 10.
27 Cf. De Trin. III, 4, 9.
28 Ocorre, porm, que se os acontecimentos vulgares so operados espontaneamente pela providncia
natural, j os milagres e os prodgios so operados pela providncia voluntria, atravs da
instrumentalizao dos homens e dos seres anglicos, o que significa que, para ocorrerem, os milagres
tm de ser operados pelos homens ou pelos anjos. Providncia natural e providncia voluntria so ambas
modalidades da providncia divina, ainda que Deus no intervenha directamente em nenhum dos casos. A
terminologia providncia natural e providncia voluntria embora no seja muito comum nas obras
agostinianas, empregue pelo Bispo de Hipona em De Genesi ad litteram VIII, 9, 17: [] operatio
providentiae reperitur, partim naturalis, partim voluntaria.
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Deus, pelo que h diferena entre a criao das razes seminais e a sua sequente
manifestao no tempo.
A ideia das razes seminais remonta a Anaxgoras (sc. V a. C.), quando este
substitui a tradicional concepo dos quatro elementos, pela noo de um nmero
infinito de causas primeiras, inertes os grmenes () que seriam activadas
pela essncia intelectual (), explicando assim a possibilidade de surgirem coisas
aparentemente novas. Para Anaxgoras, os confirmavam a sua ideia de que
nada de novo poderia ser criado, nem nada do que existia poderia ser totalmente
destrudo tudo se transformava. Demcrito foi bastante influenciado por esta ideia
de grmenes a partir dos quais todas as coisas se desenvolvem, apondo-lhe outro
conceito o de substncias elementares () controladas por um poder externo
que, ao dot-las de movimento, dava origem a todas as coisas. Estava assim firmada a
base da ideia das rationes seminales, que conheceria ainda desenvolvimentos e
variaes com os contributos de Aristteles, dos Esticos e de Flon. Este ltimo
introduz a ideia na exegese bblica.
Santo Agostinho simpatizava com os pressupostos desenvolvidos por
Anaxgoras e pela variante estica,29
adoptando o que diziam sobre os
. Para o Bispo de Hipona, as formas ou ideias platnicas tinham existncia
eterna na mente de Deus que, ao contempl-las, criou ex nihilo as razes seminais
semelhana das ideias ou formas.30
Assim, ideias eternas e razes seminais distinguem-se
pois as ltimas tm existncia fsica na matria ainda que no primeiro acto criativo
no sejam originadas logo com uma forma definida31
, e esto ligadas por participao
s primeiras (s ideias eternas) e, por dependncia, vontade de Deus.32
29
Que consistia numa viso conciliadora entre a perspectiva aristotlica e a perspectiva platnica,
postulando uma distino entre matria passiva e matria activa. Os Esticos defendiam uma alma do
mundo de natureza gnea, existente na matria passiva e contendo todas as razes () de todas as
mudanas, bem como os grmenes () das formas futuras. O fogo era o princpio activo que
informava e movia a matria (princpio passivo).
30 Com efeito, as ideias eternas correspondem no lxico agostiniano Sabedoria divina, ou Verbo.
31 Cf. Conf. XI, 4, 6 onde Santo Agostinho afirma que mesmo o que no foi criado e todavia existe, nada
tem em si que no existisse.
32 Cf. Chris Gousmett, Creation order and miracle according to Augustine, In Evangelical Quaterly 60,
3, 1988, p. 222.
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As rationes seminales actualizam-se fisicamente ao longo da criao que
continua a ocorrer no decurso da histria e sob a divina providncia. Na creatio prima
descrita no primeiro versculo do Gnesis, elas contm como potncia todas as espcies
possveis de coisas particulares. Este substrato potencial mantido e materializado pela
vontade e pelo poder causal de Deus nele imposto. Sem esta perene dependncia
relativamente a Deus, as razes seminais no existiriam. A interveno divina nas
razes seminais, pela providncia, constitui-se como a derradeira causa uma causa
interna , todas as outras causas operam externamente sobre as razes seminais.
As rationes seminales obedecem moo divina e s assim desenvolvem no
tempo as formas nelas existentes, pelo que mesmo os novos seres no escapam aos
desgnios de Deus.33
A criao ex nihilo coloca a Santo Agostinho o problema da responsabilizao
de Deus pelo mal, pois se criou tudo a partir do nada, ento tambm ter criado o mal. A
soluo passa por negar a existncia do mal enquanto substncia. Se tudo o que existe
foi criado por Deus e se o que Deus cria s pode ser tido como bom,34
conclui-se,
portanto, que o mal meramente uma privao de bem. Neste seguimento, sendo a
existncia boa por natureza e sendo a suprema existncia o sumo bem,35
no ser
descabido reportar o mal ao nada (nihil). A doutrina da creatio ex nihilo postulada por
Santo Agostinho evidencia que o filsofo distingue claramente o nada da matria
informe, contrariamente a Plotino que fazia equivaler os dois conceitos. A matria
informe est, no entanto, prxima do nada e pode considerar-se como um estdio
intermdio entre a forma e o no-ser.36
Alguns autores consideram que, mesmo no
havendo equivalncia entre a matria informe e o nihil, plausvel que o nihil
33
Foram vrios os investigadores a argumentar sobre se o posicionamento agostiniano a este nvel
assumiria um carcter determinista ou evolucionista. Para um resumo esquemtico de tal debate cf.
Marcos Roberto Nunes Costa, Defesa agostiniana da criao ex nihilo, contra os Maniqueus, in
Scintilla, Curitiba, vol. 5, n. 1, Jan/ Jun. 2008, p. 51, n. 20. Concordando com Copleston, cremos que a
pertinncia de tal debate questionvel, j que este problema, para Santo Agostinho, equacionado
relativamente interpretao bblica e no lhe consagrado um tratamento cientfico. Cf. Frederick
Copleston, Histria de la Filosofia: De San Agustn a Escoto, vol. II, Barcelona, Ariel, 1983, p.83.
34 Alis, como muito bom, como est expresso em Gn.1: 31 Deus, vendo toda a Sua obra, considerou-a
muito boa. Cf. De Gen. ad litt. imp. I, 3.
35 Cf. De vera relig. 17, 34 18, 36.
36 Cf. Conf. XII, 6, 6, onde Santo Agostinho afirma que a matria informe no era ainda nada e, no
entanto, era j algo.
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46
agostiniano no seja um nada absoluto ou ontolgico, constituindo-se j como alguma
forma de substncia, semelhana da maniqueia ou da quase-existncia implcita
no plotiniano.37
Se as rationes seminales pareciam ser uma figura da
estabilidade pois, apesar de serem o veculo capaz de dar origem a novos seres, esse
movimento configura-se como mais uma das evidncias da estabilidade divina que
havia assegurado, desde o incio, a tal possibilidade de novas espcies, criando-as ainda
que em potncia e, assim, relativizando o seu carcter de novidade o nihil sugere, ao
invs, uma ausncia de estabilidade, porque o que sempre se dispersa, constantemente
se torna dissoluto e eternamente perece.38
Em termos morais, o nada a fonte do
movimento defectivo da vontade. Pela corrupo, tende-se ao lapso do ser ao nada.
Assim, alm de ausncia de estabilidade, tambm ausncia de ser, configurando-se
efectivamente como um nada absoluto, ontolgico.39
Apesar de no possuir qualquer referente ontolgico, o nada agostiniano tambm
no esttico da que se constitua como uma ameaa e mantenha um elo com a
corrupo (nequitia),40
com o pecado (iniquitas)41
e com o mal. A criao ex nihilo, in
principio, e a Deo, o que significa que Deus no emana de si o mundo e que o mundo
no lhe igual.42
As criaturas so um outro, inferior, de Deus; ao cri-las, o inexistente
comeou tambm a fazer sentido enquanto inexistente (negao do criado) o que no
37
Cf. Gavin Hyman, Augustine on the Nihil: An Interrogation, Journal for Cultural and Religious
Theory, vol. 9, n. 1, 2008, p. 40.
38 Cf. De beata vita 2, 8, onde Santo Agostinho descreve a eterna dissolvncia do nihil.
39 Cf. De Gen. ad litt. VII, 5, 7; De nat. boni 25 ou In Iohan. Evang. tract. I, 13, onde o Bispo de Hipona
adverte para o erro em que alguns incorrem ao tomar o nada por alguma coisa (putare aliquid esse nihil).
Os Maniqueus estariam certamente entre essas pessoas.
40 Cf. De beata vita, 2, 8.
41 Cf. Conf. VII, 12, 18 e VII, 16, 22.
42 Gerado a partir de Si e igual a Si, s mesmo o Filho unignito que participa da sua essncia; tudo o
demais no partilha a substncia divina porque advm do nada. Cf. De Gen. ad litt. VI, 2, 2, onde Santo
Agostinho diz que o criado no da mesma essncia ou substncia do criador; De Gen. cont. Man. I, 2, 4,
onde explicita que a bondade das coisas no a mesma bondade com que Deus bom e Conf. VII, 10, 16,
onde, referindo-se luz imutvel, escreve: [] superior, quia ipsa fecit me, et ego inferior, quia factus
ab ea.. Alm da criao ser ex nihilo, in principio, e abs Deo, poderemos ainda acrescentar que, quanto
ao seu modo, ela in Verbo, pois resulta da Palavra criadora. Como princpio, o Verbo divino identifica-
se com o Filho, com a Sabedoria a Palavra de Deus enleia conhecimento e amor e faz equivaler o dizer
ao fazer: in hoc principio, deus, fecisti caelum et terram in verbo tuo, in filio tuo, in virtute tua, in
sapientia tua, in veritate tua, miro modo dicens et miro modo faciens. Conf. XI, 9, 11.
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47
significa que exista pois, ao criar algo que no igual a si, Deus instaura a distncia
entre si e o que cria.43
Essa distncia absolutamente vazia ope-se, no entanto,
estabilidade que caracteriza Deus. O nada flui perenemente, mas no pode ser
equacionado em termos temporais, j que mesmo o tempo ex nihilo.44
O acto de criao ex nihilo tambm um acto de domesticao ou de
subordinao do nihil, pois ao mesmo tempo que se instaura a distncia entre o criador e
a criatura, o facto de a criao resultar de um acto livre, de amor, significa que h
uma proximidade ntima entre Deus e a sua obra. Deus quis livremente o mundo e
por t-lo desejado h proximidade entre ambos, mesmo que ao faz-lo do nada o
tenha distanciado de si. A inigualvel bondade de Deus e o seu amor incondicional
fazem da criatura um ser livre, cujo sentido de si da sua vida lhe entregue. Essa
entrega a abertura do ser ao ser e ao nada; trata-se de uma questo de sentido e de
existncia, pois ao tender naturalmente ao ser, o homem tende completude da
existncia e, a este nvel, no tende naturalmente ao no-ser, ao nada; porm, tendo
sido criado por Deus a partir do nada, a distncia que tem de percorrer at Deus
sempre ameaada pela possibilidade de deslizar para o nada no pela ausncia de
Deus, que omnipresente, mas pela deficincia de ser na criatura enfatizada ao
distanciar-se de Deus por um acto defectivo da vontade.
Indubitavelmente, o nada possui uma conotao negativa, que o torna
indissocivel do mal mesmo que, como este, carea de estatuto ontolgico e no possa
ser tido como um princpio rival de Deus, nem ser considerado co-eterno com Deus,
como postulavam os Maniqueus. Contra qualquer dualismo, Santo Agostinho defende
que nunca algo existiu que no fosse criado por Deus, nem que se opusesse a Deus,
sendo diferente dele.45
S faz sentido equacionar o sentido do mal e do nada em relao
ao criado, ou melhor, a partir do momento em que o gesto criador instaura uma
distncia entre Deus e o demais. O nada no uma realidade positiva, baseia-se na
defeco e na ausncia de ser e permite que o mal seja experienciado no mundo, como
privao de bem. O mal nada tem de substancial: ele no , porm afecta o ser.
43
Em Conf. XII, 7, 7, Santo Agostinho refere que essa distncia do Criador ao criado no um
afastamento em termos espaciais, permitindo a concluso bvia de que se trata de uma distncia
ontolgica, em termos de ser e no de espao.
44 Tal no significa que o nada seja co-eterno com Deus, pois o nada no , apenas faz sentido com o
gesto criador da que o nada seja considerado tambm como um movimento.
45 Cf. Conf. XII, 7, 7.
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48
S quando o amorfismo da matria ultrapassado pela creatio secunda, que o
cu e a terra saem das trevas o fiat lux marca a possibilidade da perspectivao
esttica do criado, no s porque o surgimento da luz vem a par da configurao
material em termos de existncia e visibilidade, mas tambm porque essa luz tida
como boa.46
H uma trplice articulao implcita no conceito de forma que irmana
existncia, bondade e beleza; assim o evidencia Santo Agostinho em De vera religione:
Pois tudo o que , necessariamente possui beleza por mais nfima que
seja, portanto, ainda que seja um bem nfimo, ser todavia um bem e proceder de Deus.
Pois que se a suma beleza um sumo bem, tambm a mais nfima beleza ser um
nfimo bem. Assim, todo o bem ou Deus, ou procede de Deus. Logo, at mesmo a
beleza mais nfima provm de Deus. Sem dvida, o que se diz a respeito da beleza pode
tambm ser dito quanto forma.47
a forma que vivifica a matria e que a retira do limbo entre o ser e o no ser.
Tudo o que , tendo sido criado por Deus, bom, qualquer que seja o seu modo (bonum
est, quidquid aliquo modo est).48
A existncia implica um certo modo, ou uma certa
forma de ser; nos conceitos species e forma radicam os qualificativos speciosus e
formosus. Plotino j havia enunciado a articulao entre ser e beleza, ao defender que
no h belo privado de ser, nem essncia privada de ser belo. Para o licopolitano, na
falta de belo, falta tambm a essncia; o ser tanto mais ser, na medida em que belo.49
Santo Agostinho no poderia estar mais de acordo, quando, em De immortalitate
animae, conclui que se no a massa material (moles), mas a species que d ao corpo o
seu ser, ento a sua plenitude tanto maior, quanto mais speciosus e pulchrius for. Pela
46
Deus disse: Faa a luz. E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas Gn.
1:3-4.
47 Quoniam quidquid est, quantulacumque specie sit necesse est; ita etsi minimum bonum, tamen bonum
erit, et ex Deo erit. Nam quoniam summa species summum bonum est, minima species minimum bonum
est. Omne autem bonum, aut Deus, aut ex Deo. Ergo ex Deo est etiam minima species. Sane quod de
specie, hoc etiam de forma dici potest. De ver. relig. XVIII, 35 (CCL 32, p. 208). A traduo de species
por beleza, pretende evitar uma transliterao que limitaria, a nosso ver, a verdadeira acepo do trecho e
segue a estratgia utilizada por Boyer na edio francesa de Confessionum, onde este conceito tambm
traduzido por beaut. Cf. Saint Augustin, Les aveux, trad. Frdric Boyer, Paris, P.O.L., 2008.
48 Cf. Conf. XIII, 31, 46.
49 Cf. En. V, 8, 9.
-
49
mesma lgica, substituindo os qualificativos speciosus e pulchrius por deformis, o
inverso verdadeiro.50
Por outras palavras, um corpo tem tanto mais ser quanto mais
speciosus atque pulchrius for e tem menos ser, quo mais feio ou disforme for. O ser
proporcional species, o que ser o mesmo que dizer que o ser de um corpo
proporcional sua beleza.
Tal como moles e materia surgem lado a lado nos textos agostinianos e na
maioria das vezes com valor intermutvel , tambm com os substantivos forma e
species ocorre o mesmo. Tal sinonmia no significa, porm, que o Bispo de Hipona os
empregue indistintamente. Em relao ao binmio materia/ moles, evidencia-se que o
ltimo termo utilizado, sobretudo, para expressar a ideia de extenso material,51
embora, muitas vezes, surja tambm empregue no sentido de substncia.52
No que
toca ao par forma/ species, h que salientar que a ambivalncia anteriormente apontada
para o conceito de forma se aplica tambm species, pelo que no raras vezes Santo
Agostinho emprega ambos os termos ligando-os pela conjuno que (atque), ou at por
vel.53
Quando species se articula com pulcher, geralmente este ltimo qualificativo tem
uma funo de reforo do primeiro, j que, como nota Monteil, a pulchritudo evoca um
estado optimizado do corpo.54
Se species e forma se podem reportar causa da
perfeio ou plenitude do ser e do corpo, o mesmo j no parece verificar-se
relativamente a pulcher, ainda que seja empregue conjuntamente com species. A
sinonmia apontada entre forma e species, no sucede entre forma e pulcher. A
pulchritudo est mais para consequncia, do que para causa mais para uma
conformidade exterior, do que para o princpio que a configura.
Fontanier sugere que, em relao forma, species cobre um registo mais extenso
e que, etimologicamente, ser a transposio mais correcta do grego .55
Segundo
este autor, species designa toda a beleza desde a epifania de Deus at atraco dos
50
Cf. De imm. an. 8, 13.
51 Cf. Conf. VII, 1, 2; XII, 20, 29; XII, 21, 30; XIII, 32, 47.
52 Cf. Conf. V, 10, 20; V, 11, 21; X, 6, 10; X, 43, 70; XII, 15, 19.
53 Cf. Jean Michel Fontanier, La beaut selon Saint Augustin, Presses Universitaires de Rennes, 2008, p. 29.
54 Cf. P. Monteil, Beau et Laid en Latin. tude de vocabulaire, Paris, Klincksieck, 1964, p. 91.
55 Cf. Fontanier, op. cit., pp. 31-38.
-
50
corpos. Forma evoca mais a correco do desenho e corresponde mais a uma geometria
da beleza.56
S em parte concordamos com tais suposies, pois se a palavra species
sugere mais enfaticamente o mbito esttico do contexto em que referida, parece-nos
que tal ocorre, precisamente, em virtude de uma crescente especificidade que,
esteticamente, se comea a definir com o conceito de forma e que se vai concentrando
em termos de acepo e de particularizao no conceito species, at perda de valncias
pelo qualificativo pulcher, anteriormente referida. Quase incorrendo numa redundncia,
podemos considerar a species uma especificao da forma, que a centraliza com maior
margem no seio do mbito esttico. o prprio Fontanier quem refere que a
diferenciao da matria, capax specierum, em mltiplas species, significa
indissociavelmente, a especificao dos seres nas formas prprias, e a sua acesso
visibilidade, ou melhor, perceptibilidade a criao de substncias discretas e
discernveis.57
Efectivamente, o termo forma quase parece insuficiente, porque menos
especfico, para exprimir em concreto a ideia de beleza, mas no corresponder mais a
uma geometria da beleza ou a uma correco do desenho do que o termo species, j que
se ambas forem perspectivadas em relao ordem que prefiguram, percebe-se que
efectivamente h uma real sinonmia entre os dois conceitos e que as diferenas no
emprego de cada um so fruto do cuidado do Bispo de Hipona em exprimir a
possibilidade emprica da compreenso esttica dos diferentes modos do ser, por vezes
fazendo deles objectos directos dessa perspectivao sensvel.
56
Ibid., p. 35.
57 Ibid., p. 31. Cf. tambm p. 32, onde Fontanier afirma que Santo Agostinho utiliza o termo species para
designar a forma imprimida (o ) na matria informe.
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51
1.2 Os fundamentos antropolgicos da esttica agostiniana
A doutrina da criao ex nihilo no s permitiu a Santo Agostinho refutar o
dualismo maniquesta, como lhe facultou um enquadramento propcio diminuio do
fosso ontolgico entre a esfera divina e a esfera sensvel, que o dualismo platnico lhe
legara. A forma inovadora como o Bispo de Hipona perspectiva a relao corpo/ alma
pode ser interpretada como paradigmtica da relao esfera sensvel/ esfera inteligvel,58
assumindo especial relevncia no entendimento do papel que a beleza dos corpos tem
no percurso ascensional a empreender pela alma at sua origem.
Para Santo Agostinho, tambm a alma uma criatura mutvel e, ainda que nas
primeiras obras seja possvel encontrar expresses como alma divina,59
o Bispo de
Hipona no a perspectiva enquanto tal, contrariamente aos maniqueus para quem as
almas eram partculas da natureza divina enclausuradas em corpos temporais na
sequncia do conflito primordial entre o bem e o mal. O ponto de vista maniqueu que
Santo Agostinho partilhou durante cerca de nove anos culminava, de certo modo, numa
desresponsabilizao face ao pecado, uma vez que no era verdadeiramente o homem
quem pecava, mas a natureza maligna que o enclausurava.60
Santo Agostinho rejeita
tambm a hiptese plotiniana da alma como hipstase que abarca a multiplicidade de
almas individuais.
58
Na mesma senda, Peter Brown afirma que a relao alma/ corpo uma sindoque para designar a
humanidade vulnervel face a Deus. Cf. P. Brown, Le Renoncement la chair. Virginit, clibat et
continence dans le christianisme primitif, Paris, Gallimard, 1995, p.76.
59 Por exemplo, em Contra Acad. I, 1, 1. Cnscios de que a expresso divinum animum assume um
sentido figurativo, os tradutores agostinianos evitam traduzi-la literalmente, optando por acepes como
alma sublime.
60 Cf. Conf. V, 10, 18.
-
52
No sendo aquilo que Deus , a alma foi criada por Ele a partir do nada. A
questo da origem da alma permanecer, no entanto, sempre em aberto para o filsofo
africano que no aventa muito mais sobre o assunto para alm da sua convico de a
alma ter sido criada por Deus e de no ser um corpo.61
A convico de a alma ter sido
criada por Deus a partir do nada e no de si62
pressupe desde logo que a alma seja
naturalmente boa, embora sujeita degradao e corrupo. A alma no pode, dada a
sua natureza, ser m. Ela um bem corruptvel que ocupa uma posio intermdia entre
Deus e os corpos. Nada est mais prximo de Deus do que a alma.63
A posio intermdia da alma no lhe outorga porm o papel de intermediria
entre a esfera divina e a esfera sensvel, como sucedia na perspectiva neoplatnica. Para
Santo Agostinho, esse papel mediador cabe exclusivamente a Cristo. A convico da
incorporalidade da alma preconiza que esta se constitui como uma substncia imaterial,
inextensa e indivisvel caractersticas que o Bispo de Hipona retira do neoplatonismo.
No discurso epistolar que dirige a Jernimo,64
Santo Agostinho argumenta a favor da
incorporalidade da alma ao notar que esta se apercebe das ocorrncias em diversas
partes do corpo, o que implica que a totalidade da alma deva estar presente em cada
parte do corpo. Ora, se a alma est inteiramente em cada parte do corpo, no pode ela
prpria ser um corpo.65
Sendo uma criatura, a alma, tal como o corpo, est sujeita
mudana a aprendizagem, os afectos, a deteriorao ou o progresso moral podem
mudar a alma porm, diferenciando-se do corpo que mutvel no espao e no tempo,
a alma apenas est sujeita mudana no plano da temporalidade e, ainda assim, a
mutabilidade da alma no lhe pressupe quaisquer mudanas substanciais. As mudanas
61
Cf. De Gen. ad litt. VII, 28, 43, onde Santo Agostinho elenca o que seguramente pode afirmar acerca
da alma. Em relao questo da origem da alma, esta obra iniciada em 393 e concluda em 415 no
difere da posio evidenciada por Santo Agostinho em Epistola ad Hieronymum de Origine Animae (Ep.
166 a Jernimo acerca da origem da alma) tambm redigida em 415, nem dos quatro textos que compem
De Anima et ejus Origine escritos em 419, como reaco aos dois livros que um jovem filsofo africano
chamado Vicente Victor escrevera criticando a indefinio da abordagem agostiniana sobre a origem da
alma e apresentando as suas ingnuas concluses.
62 Cf. De an. et orig. I, 4.
63 Cf. De quant. an. 34, 77.
64 Mais concretamente em Ep. 166, 2, 4. Esta epstola tambm conhecida pelo ttulo De origine animae
hominis.
65 Cf. De imm. an. 17, 26.
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53
qualitativas que a existncia temporal imprime na alma so alteraes acidentais e no
determinam uma perda ou alterao de identidade. Alis, mais do que em mudana, ao
nvel da alma dever-se- falar em moo, uma vez que a sua substancialidade a torna
afim do movimento. A substncia anmica uma substncia viva, pois sem vida no
poderia ser o motor do corpo e, enquanto motor, ela imutvel no sentido em que no
se altera a sua substncia. A alma mantida na sua existncia pela vontade de Deus e a
natureza imutvel de certo tipo de conhecimentos implica necessariamente a identidade
substancial da mente na qual tal conhecimento est presente. Aqui reside tambm uma
das provas da imortalidade da alma, ainda que ela no partilhe a eternidade de Deus.66
Santo Agostinho permanecer irresoluto quanto questo da origem da alma,
especialmente no que concerne ao momento em que a alma e o corpo se unem para
constituir o homem. Em De beata vita, escrito em Cassicaco no ano 386, o filsofo
exprime as suas reticncias quanto possibilidade de algum dia poder encontrar uma
soluo para a anima quaestio.67
Mais de uma trintena de anos depois, em De anima et
ejus origine, as dvidas mantm-se. Durante este perodo, vrias foram as obras nas
quais a questo abordada e nas quais o Bispo de Hipona vai elencando hipteses, sem
no entanto tomar partido por alguma delas. Se em De beata vita as razes sobre a
presena do homem no mundo e, consequentemente, sobre a ligao das almas
individuais aos corpos variam entre seis hipteses,68
j em De libero arbitrio, escrito
dois anos depois, Santo Agostinho apresenta um conjunto de possveis razes mais
reduzido, mas tambm mais estruturado, sobre a origem das almas, com vista defesa
da justia divina: a) as almas surgem por propagao ou descendncia, tendo sido
criadas a partir da alma pecadora de Ado (hiptese traducianista);69
b) as almas so
individualmente criadas em cada criana que nasce (hiptese criacionista);70
c) as almas
preexistem algures e so enviadas por Deus para os corpos dos que nascem, obliterando
66
Sobre a distino entre imortalidade e eternidade cf. De div. quaest. 83, 19.
67 Cf. De beata vita 5, 5. Na ltima obra que escreveu, em 430, Santo Agostinho confessa sem pejo que
continua na ignorncia em relao a esta questo. Cf. Con
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