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Em fuxicos se fazem ciência e arte
João Marcelo Iglesias da Câmara,
Isabel Cafezeiro,
Ricardo Kubrusly,
Edwaldo Cafezeiro,
Carmem Gadelha1
Resumo: Somos cinco em pleno fuxico. Conversamos sobre a ciência, o fazer científico, a
arte e suas práticas. Costuramos os retalhos, descosturamos aquilo que, na ciência, se diz
neutro e universal. É evidente, para nós, que a ciência é o alinhavo de panos diversos. Fazer
ciência, então, é como fazer arte, artesanato, literatura, discursos. Ciência, tanto quanto as
coisas da vida. Isto já foi dito antes, mas convém estar sempre lembrando. Descrevemos,
aqui, um encontro imaginado, que nasceu de perguntas enviadas por e-mail. Isto foi
crescendo das formas mais diversas: pequenas conversas presenciais, pequenas gravações,
pedaços de textos já pensados, escritos e publicados, além das questões ainda (e sempre)
em processo de amadurecer. Os personagens desta conversa são panos de diferentes cores,
padrões e texturas: pensamentos dos campos da arte, literatura, matemática e computação
que se costuram em pequenos pedaços, sem uma direção controlada. O fuxico traz à luz
modos de pensar e fazer que se efetivam de forma muito aderente às demandas do local e
do tempo, às coisas que pressionam o senso comum a por-se em causa. Esse mesmo modo
de pensar é também conformador das ciências, mas está camuflado sob normas e métodos,
de onde sobressai apenas o que se apresenta de acordo com os discursos legitimados. Isto
camufla, inclusive, as regras do próprio discurso. Aqui nos interessam as formas como
1 João Marcelo Iglesias da Câmara é aluno do Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da UFRJ. Isabel Cafezeiro é Professora Associada do Instituto de Computação da UFF e Professora do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da UFRJ. Ricardo Kubrusly é Professor Titular do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da UFRJ. Carmem Gadelha é Professora Associada da Escola de Comunicação da UFRJ e Professora do Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da UFRJ. Edwaldo Cafezeiro é Professor Titular Emérito da Faculdade de Letras da UFRJ.
essas duas dinâmicas – a que transparece nas linguagens e métodos científicos; e a outra,
comprometida com as questões que a vida apresenta – se relacionam e interdependem. O
fuxico e seus modos de pensamento e operação nos ajudam a refletir sobre estas dinâmicas,
ou seja, sobre a ciência e seus processos de construção. Este texto tem como objeto o fuxico
e o fuxicar. Não se trata de método científico (balizas e procedimentos), nem de criação
artística (inserida em regimes também específicos de pensamento). Abraçamos um
processo que, como tal, pode mudar a toda hora, tensionando a inclusão e a exclusão de
pontos de vista. Confrontam-se discursos e obstruem-se fronteiras para expor artifícios e
artimanhas na luta pela obtenção de hegemonia científica ou excelência poética. Valem
tanto os consensos quanto os dissensos.
Em fuxicos...
Elaboramos aqui algumas especulações que necessitam lugar para serem
apresentados, visto que não se encaixam, nem em forma nem em conteúdo, nos tradicionais
simpósios dos congressos científicos. A dificuldade: é justamente para cientistas e
pesquisadores que queremos falar, já que nosso objetivo é pensar a ciência e o fazer
científico por outros ângulos, olhares supostamente diversos dos referenciais da própria
ciência. Achamos um lugar! Neste Décimo Quinto Seminário Nacional de História das
Ciências e das Tecnologias, o simpósio temático “Poética dos Números” nos convida:
O objetivo deste simpósio é permitir que uma diversidade de trabalhos que
necessitam de lugar para a apresentação de suas conquistas e ansiedades
encontrem lugar. O simpósio pretende reunir pesquisadores que vêm
desenvolvendo estudos sobre matemática, filosofia, computação, história, artes,
de maneira imbricada com as diversificadas ciências, pretendendo assim,
identificar tanto as análises referentes aos antigos conceitos quanto as novas
abordagens utilizadas. Essas novas interpretações deslocam do exato para o
inexato e paradoxalmente do sensível para o abstrato as interpretações do mundo
físico, que já não podem acontecer distante das ditas humanidades.
Nosso tema, como já foi dito, é ciência e o fazer científico. A forma de apresentação é em
fuxico: conversas entre pesquisadores, e sendo fuxico, e sendo ciência, é verdade-mentira,
tanto quanto na arte. Diga-se, aliás, que problematizamos justamente a hierarquização dos
saberes que legitima a ciência numa ordem de superioridade sobre os outros saberes,
incluindo a arte.
João é artista de teatro, aluno do programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Escola
de Comunicação da UFRJ, onde Carmem é professora. Durante o segundo período de 2015,
Carmem e Isabel ministraram juntas o curso “O trágico e a cena contemporânea” onde foi
relatada uma prática com fuxicos. João se interessou pelo assunto e enviou perguntas por
mail a Isabel. São essas perguntas, neste texto, que submetemos a possíveis respostas ou
simples desdobramentos de raciocínio compartilhado. João é o “perguntador”, provocado,
abre espaço a problemas. Em fuxico, essas perguntas desencadearam um encontro
imaginado a cinco cabeças, que embora (ainda) não tenha acontecido, relatamos aqui em
detalhes:
Isabel, eu li o texto que você me mandou sobre o fuxico. Esse com o título “Que teus olhos
sejam atendidos”, que foi publicado nos Anais do Scientiarum História VIII. É um texto
explicativo sobre a metodologia fuxico, a partir do método fuxico, certo? Como se chegou
à ideia do fuxico?
João, o fuxico surgiu de forma tão inesperada que a gente tem que parar e repensar todo o
processo. Uma aluna do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das
Técnicas da UFRJ foi assistir a um seminário usando uma blusa enfeitada com fuxicos. Foi
dessa boniteza que surgiu a ideia de levar o fuxico para a sala de aula, onde discutíamos
ciência e literatura. Aconteceu assim, sem nenhuma pretensão, eu acho. Levamos várias
linhas e agulhas e retalhos de pano cortados em círculos e fomos fazendo, sem muita
explicação, ao mesmo tempo em que as discussões sobre a ciência aconteciam, ao redor de
uma mesa de fórmica branca. Os panos coloridos se espalharam na mesa; e fomos
discutindo a ciência através de textos literários, que era a proposta do curso. Os fuxicos, nós
não discutíamos. Íamos fazendo, alinhavando, puxando o fio, um por um, sem nenhum
objetivo em vista, além de encher a caixa. Assim, passeamos por Machado de Assis,
Fernando Pessoa, Drummond, João Cabral, Cora Coralina, ouvimos maracatu. Não há
método e nem metodologia. Como foi, Ricardo, que passamos a associar a nossa ação de
fazer fuxico com nosso tema de estudo, a ciência?
Percebemos que a lógica do fazer científico está mais para a lógica do fazer fuxico do que
para o método científico, já que a ciência é uma construção coletiva, legitimada por um
grupo de pessoas; daí, não tem como ser neutra e tampouco universal. Então a nossa
abordagem é trazer, para perto de nós, a nossa vida, a nossa ciência. O fuxico virou ciência
assim como o lado de dentro e o lado de fora se confundem na fita de Möbius: não há um
momento definitivo, é tudo um caminhar. Os matemáticos sabem disso, né, Isabel?
Sim, sabem, embora raramente admitam. O matemático Fernando Q. Gouvêa, no seu artigo
“Was Cantor surprised?” diz claramente que uma prova não é uma prova, até que algum
leitor matemático, de preferência um considerado competente, diga que é. Disse isso
porque estudou as cartas trocadas entre Cantor e Dedekind. Os matemáticos sabem que a
matemática é uma construção e que é legitimada pelo coletivo de matemáticos.
Existe algum outro texto sobre o não-método fuxico criado por vocês, Ricardo?
O fuxico, assim como a ciência, gera movimento. Nunca é uma construção pura e nem
linear, porque estamos sempre a puxar um fio. Esse texto do Scientiarum causou muita
controvérsia. A princípio não foi aceito porque a comissão entendeu que fuxico remete a
“falar mal, fazer o mal”. Isto gerou um movimento de reações vindas de diversas partes
inesperadas, que viram a ciência no mecanismo do fuxico, uma coisa misturada, como na
vida. Um dia, a Carmem me disse algo sobre esse “mal” que pregaram na nossa testa e na
do fuxico. Quer retomar isso, Carmem?
Sim. De fato, “fuxicar” pode significar “falar mal”: de alguém, de alguma coisa; dizer,
insinuar ou afirmar algo duvidoso sobre alguém; gerar e alimentar boatos. Fuxicar também
pode ser mexer no que está quieto e causar algum rebuliço. Certa negatividade ou
leviandade pode circular na roda de fuxico, mas também alegria, descompromisso,
produção de ironia para o que ou quem se acha muito certo; na acepção positiva, o fuxico
seria libertador exatamente por sua capacidade indagadora e desestabilizadora das
convicções. Nada disso provém de consulta a dicionário. Recorro à intuição e a sugestões
que me ocorrem quando o fuxico e um trabalho sobre ele é associado ao mal, justamente
em um encontro de cientistas. Lembro-me de Roland Barthes: “O plural é o Mal”, porque
foge à unidade fundadora e sustentadora da verdade, o “Bem”, tendo esse bem vinculações
com a criação divina e a unidade de todas as coisas Dele provenientes; o bem platônico,
que só pode habitar o mundo das idéias perfeitas; o bem associado à verdade científica, que
finge não estar sujeita à adesão e ao consenso. O bem é uma verdade que se naturaliza
exatamente porque faz esquecer as circunstâncias de seu engendramento, as
institucionalizações, os poderes em nome dela arregimentados. Aqui tratamos tanto da
verdade científica quanto da verdade moral. Escapando a estes procedimentos de verdade, é
claro que o fuxico só pode habitar a morada do mal, só pode ser demoníaco. E serão maus
cientistas todos aqueles que interrogarem, fuxicosamente, o lado não revelado, complexo,
escondido da verdade; o fuxico pode ser uma feroz ameaça justamente quando expõe a
fragilidade da fronteira entre o falso e o verdadeiro. Aproveito para lembrar outro aspecto
de nossos fuxicos: eles são feitos também por homens, que costuram tanto as conversas
quanto os panos. Em mais este aspecto, tudo parece conspirar para uma confirmação: o
fuxico, uma atividade feminina (portanto não pertencente ao modelo civilizatório do macho
europeu), só pode ser aberração que tem o topete de apresentar-se como parte constituinte
de um processo de construção de idéias reivindicadoras da dignidade científica ou artística
e literária. Desculpe, Ricardo, prolonguei minha interrupção ao que você dizia,
respondendo à pergunta do João sobre se há mais textos sobre o fuxico.
Texto sobre o fuxico escrito por nós? Acho que apenas esse. Mas nossos trabalhos, meu e
da Isabel, sobre a matemática, levantam essa questão que revisitamos com o fuxico. Falam
sobre a matemática que é vivida e experimentada, sobre o vínculo das ideias com as coisas
que estão no mundo. Não há pensamento sem fuxico, nem fuxico que não pense o mundo.
A palavra falada, escrita ou mesmo pensada fuxica em nossos sentidos, nossos modelos de
mundo; o fazer científico é apenas fuxico. O Cafezeiro aborda também esta questão nos
estudos dele sobre discurso. Quer falar sobre isso, Cafezeiro?
Sim, no meu livro Discurso e Texto, Dimensão Simbólica e Cidadã do Português Brasileiro
e Africano, da Editora Achiamé, eu argumento que os nexos são os vínculos. Há o vínculo
entre as partículas componentes de um texto, mas também há o vínculo entre o discurso,
fixado pelo texto, e a coisa sobre a qual se fala, as circunstâncias, os acontecimentos. É no
contexto em que o evento se dá que o texto se fixa e produz imagem, semelhança e
dessemelhança.
Peraí, Ricardo e Cafezeiro, eu quero dizer uma coisa sobre isso. Eu acho que a relação entre
o nosso trabalho sobre a matemática e o livro do Cafezeiro é mais ou menos a seguinte:
aconteceram no Brasil ao longo dos tempos manifestações em defesa da criação de uma
língua brasileira. Estes movimentos consistiram em reações ao português de Portugal
imposto como referência de uso correto da linguagem. Cafezeiro diz que as elites, de
acordo com seu domínio, oficializam as normas e, assim, o sentido conservador da
gramática. Ficam sempre à margem da norma oficial as criações populares (assim
chamadas exatamente por serem postas à margem) e as novas criações. Como consequência
do processo de colonização e a despeito de qualquer das línguas faladas no Brasil no século
XVI, o Português passou a ser a língua dos brasileiros. Mas, como ele diz, as semelhanças,
as analogias e as anomalias vão aflorando como uma constante crise nas representações.
Novos aspectos e sentidos são adquiridos pelo léxico e pela linguagem. A gramática
imposta e fixada não resiste ao fluxo das circunstâncias, dos acontecimentos, à necessidade
de expressão. Em crise, surge um novo falar, um novo discurso e uma nova gramática
estabelecida pelos falantes cuja legitimação entra em conflito com as normas impostas.
Assim como o discurso, a matemática hegemônica que nos é imposta não resiste ao fluxo
das circunstâncias, dos acontecimentos e à necessidade de expressão. Em conflito, emerge
uma outra matemática não legitimada, não reconhecida pela academia, mas em constante
processo, resultado das demandas da vida. Daí, seja no discurso, seja na matemática, são
duas ciências: uma de Estado, mais abstrata, mais regrada, seguindo padrões estipulados
pela comunidade de cientistas, reconhecida pela academia; e a outra, uma ciência “menor”,
muito vinculada às demandas da vida. Quer falar, Carmem?
Acho esse tema apaixonante. Há também uma arte de Estado, que constitui toda a tradição
moderna pós-renascentista. É interessante destacar que até aquele momento, ciência e arte
não se distinguiam como regimes de pensamento tão distantes. A arte dizia respeito ao
modo como se construíam os artefatos de uso diário (doméstico ou instrumental de guerra e
manufatura); arte era também o modo de lidar com determinados temas do saber e dos
discursos. A arte podia ser magia e ciência. A racionalidade renascentista se encarrega de
separar os saberes entre os que cuidam da razão e os que tratam da sensibilidade; um
recorte, aliás, bem platônico, só que reconhecendo no sensível algum nível de acesso à
verdade das coisas. Aí se inventam a literatura (com o advento da imprensa muda
inteiramente nossa relação com as narrativas) e a arte, separadas da ciência. É curioso
observar que a pintura renascentista e clássica é notável em ilustrar e dar visibilidade a esta
separação: o espaço da tela é simetricamente organizado, concebido e ocupado por leis de
proporções; esse espaço reflete o sujeito bipartido em razão e sensibilidade. O ponto de
fuga restabelece a orientação espacial: ele é aquilo de onde tudo diverge e para onde tudo
converge. No século XVII, não nos esqueçamos que a Terra tornou-se redonda e o universo
descentrado; a representação remete a representações para mostrar que a ordem das coisas
não dadas a ver pelo quadro obedece à mesma ordem estabelecida pelo quadro. Esta arte é
tomada como sinônimo de beleza, porque supõe-se que aquela geometria desenha e
representa a própria beleza e perfeição dos teoremas. Quando falamos de arte e ciência de
Estado, dizemos muitas coisas: a separação entre a arte soberana, voltada para a eternização
do sereno poder dos reis; e a arte dita popular, que se manteve na rua, indagando e
desafiando as proporções. A partir do século XIX, mesmo declarando-se contra toda
normatividade, a arte não deixou completamente de ser vista na cisão hierárquica entre a
“alta” e a “baixa” cultura. Deleuze se refere tanto à arte menor quanto à literatura e à
ciência menor, para designar expressões não controladas por e não pertencentes às
hegemonias e aos poderes. Aquelas expressões que falam de um povo ainda inexistente,
mas em constante devir. Um povo por vir precisa ser pensado numa condição de pequena
saúde; os muito robustos e crentes de si próprios engendram fascismos de todo tipo. Acho
importante, Isabel, lembrarmos dessa questão e desse desafio de abrir fendas, enxergá-las
naquilo que parece inteiriço e coerente. É nessas aberturas que se instalam as indagações,
mas também os espaços de criação, seja científica ou artística. Afinal, os dois regimes de
pensamento parecem não se distinguir neste aspecto. Nesta indistinção, pode instalar-se a
liberdade de pensar e inventar uma vida, um povo. A condição é saber que o processo
define-se pelo seu inacabamento.
Estes termos “Ciência de Estado”, “ciência menor” e “arte menor” são de Deleuze, no Mil
Platôs (v.5) e em Crítica e clínica. Ele argumenta que a Ciência de Estado se desenvolve
num espaço estriado, como um tecido. O tear estabelece fronteiras na largura; assim o pano
cresce infinitamente, mas controlado em uma de suas dimensões. Já a “ciência menor” é
como o feltro, um espaço liso, praticado pelos povos nômades; é também como o
“patchwork” americano, onde as peças são costuradas sem restrições de limites. Para nós, o
“patchwork” é semelhante ao fuxico. As duas ciências necessitam uma da outra, mas estão
em permanente tensão. A Ciência de Estado se justifica na ciência menor: usa as questões
da vida como justificativa para sua própria existência e desenvolvimento. Mas quando já
está fortalecida e legitimada, ela passa a subestimar as questões da ciência menor como
sendo de menor importância. E a ciência menor está sempre exercendo a sua importância,
trabalhando nos chamados espaços alternativos de sobrevivência. É precisamente nessa
tensão que queremos atuar, sem abdicar de nenhuma forma de fazer científico.
Os autores aparecem ao final do texto; essa equipe é formada por docentes e discentes?
Alguém de fora do departamento? Como se formou o grupo de criação?
Como dissemos, foi na aula. Eu, Isabel e Cafezeiro oferecemos uma disciplina “Ciência e
Literatura” pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas da
UFRJ, no primeiro semestre de 2015. Era uma turma formada por alunos de áreas diversas,
que contava também com a presença atuante e constante de vários professores da UFRJ,
incluindo Carmem.
Sim, eu também estava lá fazendo fuxico. Nas primeiras aulas, em que a Isabel não estava,
resolvemos fazer uma dinâmica mais organizada, seguindo a sequência da roda. Cada um ia
fazendo seus comentários relacionando ciência e o texto lido. Depois que veio o fuxico,
essa ordem já não foi mais possível. O fuxico estabeleceu uma outra dinâmica, relatada no
texto que você leu, João:
Há uma mesa grande e branca. Vão chegando, alunos e professores dos mais diversos cantos, dos mais
diversos campos de saber, e sentam-se em torno da mesa. O debate corre, a partir de textos literários
previamente selecionados, e o fuxico, derramado sobre a mesa, se oferece em agulhas, linhas, tesouras e
círculos de retalhos já cortados. O fazer-fuxico provoca a desdisciplina: desloca o floco de luz de quem seria
o ator principal e assim, dissipa a escuridão do que seria um espaço-teatro caixa-preta. Deslizam sobre a mesa
a tesoura, a linha. O fuxico desdomestica quem seria a plateia: os atores não permanecem sentados, ouvintes.
Levantam-se, falantes, e circundam a mesa para buscar o que está longe, ou para buscar conserto em um
ponto mal dado. Há um barulho periférico, burburinho. O pensar constrói-se com o fazer, estimulado pelos
textos em discussão, guiado pelo coser das agulhas. Desordem: Por vezes o burburinho se mostra mais
interessante do que o tema que circula na mesa, então, invade a cena e traz para a mesa assuntos não
previstos. Outras vezes é o tema proposto que se infiltra nas pequenas conversas periféricas ganha novas
roupagens, multiplica-se. Não se sabe mais o que é dentro, o que é fora. Ah! A Fita de Möbius... e lá vem a
matemática!
Deixa eu falar uma coisa...
Espera aí, Isabel, só pra eu terminar.... surfar pela banda
Isabel, a proposta inicial sempre foi a escritura de um texto conjunto, ou isso surgiu ao
longo dos encontros, como uma necessidade do encontro?
A proposta da escrita em conjunto era uma ideia inicial bastante vaga. Queríamos escrever
um artigo científico que causasse algum tipo de estranhamento aos cientistas e
pesquisadores. No início a ideia era escrever sobre a ciência, mas no lugar de usar
referências e citações de cientistas, usaríamos as falas dos personagens, ou seja, seriam os
personagens, e não os cientistas, que dariam legitimidade ao nosso ponto de vista. Por
exemplo, a fala de Policarpo Quaresma poderia ser usada em algum trecho sobre a Língua
Brasileira, Simão Bacamarte sobre a ciência, etc. Mas isso nem chegou a ser proposto em
aula, porque o fuxico embalou de primeira. Já no final do curso, abrimos um texto
compartilhado e escrevemos uma primeira proposta. Os alunos foram enviando seus
fuxicos (pedaços de texto) e eu ia costurando. Isto foi diferente do que fazemos aqui agora,
já que cada um de nós está costurando seu fuxico diretamente no texto. Na conversa
presencial, o olhar faz a costura de um fuxico no outro, já que direciona a palavra para
quem vai falar em seguida. Aqui, como não temos o olhar, estamos tendo o cuidado de
deixar claro na fala anterior uma dica para quem vai falar em seguida. Não tem método,
não... é espontâneo. Tudo depende do que é possível e conveniente fazer a cada momento.
Quer falar Carmem?
Não acho que nada seja espontâneo, porque tudo se inscreve em contextos, memórias e
desmemórias. A própria falta de método acaba por requerer um método, explicitamente ou
não. O “possível e conveniente” em “cada momento” não é um detalhe, nem diz respeito à
espontaneidade, mas ao que que cada um traz de sua vivência, entrecruzando-a com a dos
outros. Aí a coisa é bem lúdica, mas pode ser perturbadora. O que Isabel acaba de dizer me
lembrou uma peça, feita por um colega seu agora, João no PPGAC, o Diogo Liberano.
Quando ele fazia a graduação em Direção Teatral, realizou um de seus exercícios cênicos
com uma adaptação de Esperando Godot, de Beckett. Foi um trabalho lindo, que depois se
apresentou em muitos teatros do Rio e fora dele. Acontece que a cena (os atores e seus
improvisos) foi paulatinamente obrigando o texto a desfazer-se até quase nada restar dele.
As entrelinhas e demais espaços vazios foram sendo preenchidos por situações que cada
vez mais se afastavam de Beckett para acolher os improvisos. Isto parece banal, mas
constitui um desafio permanente: aprender a lidar com o imprevisto. Isabel e eu assistimos
a uma apresentação do que agora se chama Vazio é o que não falta, Miranda. É muito
inquietante, para o espectador, jamais saber se o que está vendo foi ensaiado ou não, se faz
parte ou não de uma provocação agressiva e debochada, se o que está sobre o palco
obedece a algum propósito ou simplesmente não tem objetivo ou sentido nenhum. Ocorre
que o próprio vazio de sentido produz sentidos múltiplos (diabólicos), em todas as direções,
incontrolavelmente. O paradoxo do título não poderia ser mais preciso. O fuxico funciona
um pouco assim, na acolhida do que parece sem importância, mas que pode oferecer
imensas surpresas se colocado em posições e relações inesperadas.
Carmem, tem uma vontade no fuxico de aproximação de ciência e arte, ou isso é
consequência de uma vontade de dissolver hierarquias e com isso revelar aproximações?
Penso que toda aproximação implica também a potencialização dos atritos. Talvez isso
indique jogos de saberes postos entre a arte e a ciência, como no Renascimento; embora se
mostre a separação, evidenciam-se também anseios de expressar uma à outra. E vemos que
separação é também união, aliança. As perfeitas proporções geométricas mostram a sua
beleza na forma sensível da arte de um Da Vinci, por exemplo. Hoje, não podemos
esquecer as tensas relações da arte com a ciência no âmbito das tecnologias da imagem etc.
Mas é claro que não posso deixar de dizer do anseio de desierarquização que perpassa
nossas discussões. Aliás, isso diz respeito ao próprio exercício do pensar artístico e do
pensar científico na Universidade. Ouvi há dias uma bela fala de uma professora do IFCS
que realçava os avanços democráticos dos últimos anos no Brasil, com as políticas de cotas,
bolsas etc. Mas ela indagava também se fomos capazes de mudar nossos regimes de
funcionamento e lógicas operacionais para acolher este “outro”, negro, pobre, portador de
saberes locais e não consagrados, considerados pouco dignos do apreço científico e
acadêmico. Isto aponta, tanto na arte quanto na ciência, o prejuízo imenso que sofremos
todos, em termos de formulação de projetos democráticos includentes, libertos do domínio
da hegemonia dos saberes ocidentais. Leiam-se, aqui, saberes europeus, brancos,
masculinos, altamente capitalizados pela economia. É claro que não podemos dispensar
esses saberes em nome de nacionalismos ingênuos. Trata-se de abrir espaços a expressões
de minoria, mas talvez isto não baste. Seria necessário articular de maneira mais afirmativa
o local e o global, de modo que as políticas de minoria construam redes horizontais de
saber/poder. Uma estudante negra carioca terá projetos diferentes de uma negra paulista ou
nigeriana; as políticas feministas sul-americanas provavelmente nada têm a dizer a uma
feminista árabe. O que fez a universidade para - junto a esse novo estudante não branco e
pobre, que mora nas periferias - por em causa a validade dos saberes impostos e
transmitidos? Sobre tudo isso o fuxico, com sua errância e multiplicidade, tem muito a
dizer. A propósito, no fuxico não há periferia ou centro. Aliás, ele evidencia que, ao
considerarmos algo periférico, é bom lembrar, como na banda de Möbius: o dentro é o fora
e vice-versa.
Inexato, exato anexato
Ricardo, você acha que eu posso dizer que o fuxico é uma maneira de trafegar pelos
arquivos críticos, filosóficos, científicos do mundo, através de operações que trazem vida a
este arquivo, que o colocam em estado de devir?
Eu acho que não, que tal “fuxico opera nos arquivos críticos-filosóficos-científicos em
devir vida” se quiseres muito usar 'devir'... não devemos dar bola nem pra Deleuze.
Eu, misturada a todos, continuo a me chamar Carmem. Por isso, discordo um pouco do
Ricardo. Nada me custa atender e cumprir certos protocolos acadêmicos de citação e
referência ao legado de que dispomos. Afinal, dissemos antes que a ciência maior e a
menor vivem aos abraços e às turras; por mais que desgramaticalizemos nossos falares,
sempre voltaremos a uma certa gramática; algo se mantém nas rupturas, de tal modo que
possamos continuar, fazer e desfazer; somos eternas penélopes. Deleuze e Guattari, por
exemplo, têm um lindo momento, acho que em Mil platôs (v.5), onde eles falam do espaço
posto entre a ambição ao exato e a presença teimosa do inexato. O problema está na
dicotomia. Admitindo o anexato, que não é nem um nem outro, abraçamos um pensamento
mais disposto para a criação.
Então, Ricardo e Isabel, vamos fechar. Cada um manda um fuxico.
Isabel: Se Brás Cubas escreveu suas memórias, coisas vividas ditas pelo morto, nós aqui,
muito vivos, dizemos em tom presente o encontro que não vivemos.
Ricardo: Se o outro lado é esse lado, como nos ensinam distraidamente as matemáticas, eu
me pergunto se não seríamos apenas rãs coaxando em um charco azul galáxia?
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