gênese e desenvolvimento do conceito vida
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LISTA DE SIGLAS
AIDS Acquired Immunodeficiency Syndrome(Sndrome da Imunodeficincia Adquirida)
CEB Cmara de Educao Bsica
CEE Conselho Estadual da Educao
DCEs Diretrizes Curriculares Estaduais
DNA Desoxyribonucleic acid(cido desoxirribonucleico)
EUA Estados Unidos da Amrica
FUNDEB Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de
Valorizao dos Profissionais da Educao
FUNDEF Fundo de Manuteno e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
Valorizao do Magistrio
HIV Human Immunodeficiency Virus(Vrus da Imunodeficincia adquirida)
HMS Beagle Her Majesty's Ship Beagle(Navio de Sua Majestade Beagle1)
IES Instituto de Ensino Superior
LDP Livro Didtico Pblico
NASA National Aeronautics and Space Administration(Administrao Nacional da Aeronutica e do Espao)
OGM Organismos Geneticamente Modificados
PCN+ Parmetros Curriculares Nacionais (2 verso)
PCR Polymerase Chain Reaction(Reao em cadeia da polimerase)
PNLD Programa Nacional do Livro Didtico
PNLEM Programa Nacional do Livro para o Ensino Mdio
SEED Secretaria de Estado da Educao
SV40 Simian vacuolating Virus 40(Vrus vacuolante smio 40 ou Vrus smio 40)
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFPR Universidade Federal do Paran
UTFPR Universidade Tecnolgica Federal do Paran
1 Prtica comum para a Marinha Real Britnica nomear os navios com nomes de animais, nestecaso, uma raa de ces originria no Reino Unido, por volta de 1830, a partir de outras raasmilenares incluindo, dentre elas, a talbot hound, a north country beagle, a southern hound e, possivelmente, a harrier.
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SUMRIO
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4APRESENTAO
No pode existir aqui pretenso de esgotar tamanha tarefa. Vamosapenas apresentar uma discusso que deveria interessar a todos os quese colocam no horizonte da qualidade cientfica, seja como competnciaacadmica tcnica, seja como potencialidade poltica, no sentido demudar a sociedade em direes mais desejveis. Construir cincias (...)no pretender produtos acabados, verdades definitivas, mas cultivarum processo de criatividade marcado pelo dilogo consciente com arealidade social que a quer compreender, tambm para a transformar(DEMO, 1995, p. 14, destaque do autor).
Essa obra procede de estudos sobre o fenmeno vida e o
desenvolvimento do conceito vida realizados ao longo dos ltimos anos, a partir
de fontes bibliogrficas de carter diversificado, atreladas com a histria e a
filosofia da cincia e suas implicaes tericas e prticas. Com a produo e
disseminao deste livro, procuro contribuir com pesquisas comprometidas com a
relao entre epistemologia da cincia e ensino de biologia.
Consideraes iniciais desse processo foram defendidas e publicadas
na dissertao Um estudo dos estilos de pensamento biolgico sobre o fenmeno
vida (BERTONI, 2007). Essa dissertao possibilitou dilogos e reflexes com o
documento Diretrizes Curriculares Estaduais de Biologia para a Educao
Bsica2, do Estado do Paran, a partir da verso preliminar publicada em 2006
(PARAN, 2006) e, depois, com a verso oficial publicada em 2008
(PARAN, 2008a).
Olhando para a histria do pensamento cientfico, percebo que o objeto
de estudo desse campo do conhecimento, a biologia, sempre esteve ligado ao
fenmeno vida, influenciado pelo pensamento historicamente construdo,
correspondente concepo de cincia de cada poca e maneira que o ser
humano encontrou de conhecer a Natureza.
2 Conforme Parecer CEE/CEB n 130/10, o Conselho Estadual de Educao do Paran semanifesta favorvel s DCEs e sugere substituir a nomenclatura para Diretrizes CurricularesOrientadoras da Educao Bsica para a Rede Estadual de Ensino.
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5Desde a antiguidade at a contemporaneidade, esse fenmeno foi
entendido de diversas maneiras, conceituado tanto pela filosofia natural como
pela teologia e pelas cincias (naturais e sociais), de modo que se tornou
referencial na construo do conhecimento biolgico e na construo dos
modelos interpretativos desse fenmeno.
Referenciado na construo histrica do pensamento biolgico,
possvel demarcar pelo menos quatro modelos interpretativos desse fenmeno
como base estrutural para o currculo de biologia no ensino mdio. Cada modelo
interpretativo caracteriza conhecimentos de grande amplitude, que identificam e
organizam o campo de estudo das cincias biolgicas e permitem conceituar vida
em distintos momentos da histria e, desta forma, auxiliar no embate s grandes
problemticas da contemporaneidade, dentre elas, a fragmentao do ensino dos
conhecimentos biolgicos.
Esses modelos interpretativos compreendem um conjunto de
conhecimentos biolgicos abrangentes que, por sua vez, tem implicaes
prticas, fundamentando as Diretrizes Curriculares Estaduais de Biologia para a
Educao Bsica das escolas do Paran (PARAN, 2008a) e organizando o
currculo dessa disciplina da seguinte maneira:
QUADRO 1 Organizao Curricular para a Biologia no Ensino Mdio.
PENSAMENTOSBIOLGICOS
CONHECIMENTOSABRANGENTES CONTEDOS BSICOS
Descritivo Organizao dos SeresVivos- Classificao dos seres vivos:critrios taxonmicos e filogenticos.
Mecanicista Mecanismos Biolgicos
- Sistemas biolgicos: anatomia,morfologia e fisiologia.- Mecanismos de desenvolvimento embriolgico. - Mecanismos celulares biofsicos e bioqumicos.
Evolutivo Biodiversidade
- Teorias evolutivas. - Transmisso das caractersticashereditrias. - Dinmica dos ecossistemas:relaes entre os seres vivos e interdependncia com o ambiente.
Manipulao Gentica Manipulao Gentica - Organismos geneticamentemodificados. Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Bertoni (2007) e Paran (2008a).
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6O arcabouo metodolgico, utilizado para estas discusses, possibilitou
aprofundamentos tericos desses marcos conceituais e a aproximao proposta
epistemolgica evolucionria dos estilos de pensamento, defendida por Ludwik
Fleck (1896-1961), principalmente no livro Gnese e desenvolvimento de um fato
cientfico (2010) 3.
Com este livro, procuro demarcar os estilos de pensamento que
predominaram historicamente no modo de explicar e, ao mesmo tempo,
compreender e interpretar o fenmeno vida. Assim, caminho no sentido de
superar a ideia de Mayr (2008) a respeito da definio de vida. Para
Mayr (2008, p. 20), RVXEVWDQWLYRYLGDpPHUDPHQWHXPDUHLILFDomRGRSURFHVVRGH YLYHU, uma condio de hipostaseamento, segundo Coutinho (2005), o quepermite a Ernst Mayr defender que vida um conceito abstrato aplicado em
realidades concretas, isto , uma abstrao IDOVHDPHQWH considerada como real.Nas palavras de Coutinho (2005),
Corretamente, Mayr considera que vida no uma entidade do mundo.No entanto, tambm no um hipostaseamento de processos, como elepensa, porque quando buscamos definir vida, no estamos lidandocom uma coisa, mas com um conceito, um conceito terico. Aoprocurar as propriedades definidoras de processos vitais, Mayr e outrosconfundem a definio de um conceito terico com o inventrio depropriedades essenciais pelas quais uma coisa pertence ou no a umacategoria, no caso, das coisas vivas. Chamamos essa atitude deessencialismo (COUTINHO, 2005, p. 43, destaque do autor).
Com este esboo inicial para a proposio de uma tese, melhor
delineada no item 3URSRQKR XPD WHVH deste livro, cabe ressaltar que aopo pela escrita em primeira pessoa se justifica e encontro suporte nos
argumentos das educadoras Magda Soares e Ivani Fazenda, no livro Novos
enfoques da pesquisa educacional (1992), cuja obra apresenta consideraes
sobre metodologias no-convencionais aplicadas em produes acadmicas,
admitindo o pesquisador como locutor do processo comunicativo e produtor desse
conhecimento na coletividade junto aos demais sujeitos, os quais compartilham
para a consolidao do estado do conhecimento. No caso deste livro, delineado
3 Esta obra de Fleck foi publicada originalmente em alemo no ano de 1935 sob o ttuloEntstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache.
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7teoricamente, os GHPDLVVXMHLWRV interlocutores so todos aqueles que antes demim permitiram o meu caminhar atual.
Por isso, procuro ao longo da pesquisa escrita FRPDPLQKD YR]GHSURIHVVRU, deixar que a prtica fale de si mesma. Nesse contexto, vencer omodelo passivo, contemplativo e receptivo, bem como o modelo subjetivista
FULDGRUGHWRGDUHDOLGDGH, abre caminhos para romper com a forma autmata ea-histrica de compreender a complexidade do fenmeno vida em vias de
valorizar a triangulao sujeito, objeto e o estado do conhecimento.
Na defesa de Soares e Fazenda (1992), existe um FRQWLQXXP em quese alcana a QmR-QHXWUDOLGDGHYDORUL]DGD, a valorizao do HX como elementode pesquisa, que busca na parceria com o outro compor o QyV para construircoletivamente o conhecimento que entendo estar alinhado a um estilo de
pensamento. um reconhecimento do HX como sujeito de pesquisa plausvel, osujeito que promove a comunicao intra-coletiva de ideias (a comunicao de
ideias em grupos culturais distintos) e dinamiza a transformao dos estilos de
pensamento, uma vez que o HX somos QyV. O desafio mais interessante est implcito nesta obra, em uma
FRQYHUVDFRPPLQKDFRQVFLrQFLD, na tentativa de superar os conflitos cognitivosrelacionados reflexo em que procuro YHU como o fenmeno vida PH parece,possibilitando-me abstra-lo e represent-lo conceitualmente e no como HOHrealmente se manifesta enquanto fenmeno. Prximo da viso de cincia
contempornea defendida por Carl Sagan, nesse sentido, muito mais uma
maneira de pensar do que um corpo de conhecimento propriamente dito.
Mais prximo ainda da viso expressa pelo epistemlogo suo Jean
Piaget, a construo do conhecimento sobre o fenmeno da vida, a gnese e o
desenvolvimento do conceito vida, relacionados representao do objeto real,
do objeto do conhecimento, d-se pela capacidade de pens-lo, e assim, permitir
a relao com o conceito.
Desse modo, a representao conceitual da realidade do mundo vivo
o prprio conhecimento sobre o fenmeno vida e o conceito vida s passa a ser
conceito, quando h abstrao reflexiva do objeto, isto , tal reflexo que me
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8permite pensar sobre o meu agir e que me levou a trilhar, em discusses dessa
natureza, por uma linha terica singular.
x Tem uma pedra no meio do caminho ...
Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinasto fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha umapedra (...) (ANDRADE, 2001, p. 17).
H tempo procuro refletir sobre o processo de formao do professor4
de biologia (a comear pela minha) e somar esforos no entendimento de que
esse sujeito em transformao e de transformao, em pleno desenvolvimento
profissional docente, precisa reconhecer a sua incompletude nesse processo,
assim como na intrincada formao sociocultural.
Entendo, portanto, que essa perspectiva do tornar-se professor num
contexto amplo de desenvolvimento pessoal e profissional, de aprendizagem do
adulto, de superao da racionalidade tcnica, de prxis reflexiva, se insere num
contexto de formao permanente5. Este processo passa a ser compreendido,
neste livro, como XPD FRQFHSomR GLDOpWLFD FRPR XP GXSOR SURFHVVR GHaprofundamento, tanto da experincia pessoal quanto da vida social global, que
4 Durante o texto, uso somente professor para representar professor e professora. O mesmotratamento ser atribudo quando me referir ao coletivo de professores e professoras.
5 Formao permanente um conceito usado aqui no sentido de formao profissional ao longoda vida do sujeito, ou seja, tornar-se professor em um momento da sua histria de vida ereconhecer sua incompletude num constante caminhar em meio a esse desenvolvimentoprofissional docente; formao essa que comea na sua trajetria de aluno nos bancos escolarese que torna necessidade permanente ao longo da profisso. Em alguns momentos do texto, usareio conceito formao continuada, com o mesmo sentido, por ser uma terminologia mais comum nomeio dos professores e tambm nos referenciais pesquisados. Usarei o conceito formao inicialpara caracterizar a formao na graduao, ou seja, o perodo de licenciatura. Pierre Furter, emsua obra Educao e vida (1973), aborda essa questo num contexto mais amplo, de educaopermanente ou educao contnua, fundamentando tal ideia a partir de trs bases, a saber: (1)que qualquer atividade humana, qualquer aspecto da prxis, presta-se a uma formao; (2) que a educao uma atividade de um sujeito e no um conjunto de instituies; e (3) que a educao sumamente ligada nossa maneira de viver o tempo e os tempos; consiste em DSUHQGHUFRPRRUJDQL]DUDVXDYLGDQRWHPSRseja qual for a idade cronolgica de algum, considerando, assim, permanente como a necessidade que todos ns temos de sempre aperfeioar a nossa formaoSURILVVLRQDO (FURTER, 1973, p. 140).
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9se traduz pela participao efetiva, ativa e responsvel de cada sujeito envolvido,
qualquHU TXH VHMD D HWDSD GD H[LVWrQFLD TXH HVWHMD YLYHQGR (FURTER, 1973, p. 136-137).
Nesse sentido, como afirmou o educador Paulo Freire em Pedagogia
da autonomia (1997), a presena no mundo a de quem se insere como sujeito
nele e escreve sua histria. Para ele, R VXMHLWR TXH VH DEUH DR PXQGR H DRVoutros inaugura com seu gesto a relao dialgica em que se confirma como
inquietao e curiosidade, como inconcluso em permanente movimento na
KLVWyULD (1997, p. 86).Nesse caminhar reflexivo juntei elementos importantes e suscitei
questionamentos pertinentes, com o intuito de promover discusses ao atuar
como docente em sala de aula, como diretor de escola pblica e, posteriormente,
como integrante das equipes disciplinares de cincias e biologia, do
Departamento de Educao Bsica da Secretaria de Estado da Educao do
Paran. Tais atividades demandaram minha participao no processo de
reformulao curricular de ambas as disciplinas (PARAN, 2008a; 2008b), na
elaborao das orientaes pedaggicas para os anos iniciais do ensino
fundamental de nove anos (PARAN, 2010), na produo de material didtico,
como o Livro Didtico Pblico6 e, tambm, no processo de formao continuada
dos professores que atuam nessas disciplinas na rede estadual. Esse percurso de
crescimento pessoal e profissional culminou em minha presena como
conferencista no Simpsio Estadual de Biologia, em outubro de 2011.
Minhas reflexes se estenderam tambm para o mbito da academia,
no Mestrado (2005 a 2006) em Educao do Programa de Ps-Graduao em
Educao da Universidade Federal do Paran (UFPR) e, posteriormente, no
Doutorado (2008 a 2011) em Educao da mesma instituio com a mesma linha
de pesquisa Cognio, Aprendizagem e Desenvolvimento Humano. Atuei, ainda,
6 O Livro Didtico Pblico (LDP) compreende uma das produes colaborativas de materiaisdidticos, por professores da rede pblica do Estado do Paran. Os textos foram escritos de formacolaborativa, isto , que ocorreu durante todo um processo de elaborao de texto didtico comacompanhamento e validao. A principal ideia desse processo consiste em contribuio dosenvolvidos, gerando uma dinmica de estudo e pesquisa no cotidiano escolar. As verses iniciaisdos textos foram aprimoradas com as orientaes da equipe pedaggica da SEED e dosconsultores das IES e disponibilizadas no Portal da Educao (www.diaadia.pr.gov.br), paraleitura, anlise crtica e sugestes da sociedade. Para mais informaes sobre o LDP e downloaddos materiais didticos, acessar o Portal da Educao.
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como professor substituto da disciplina de Prtica de Ensino em Cincias e
Biologia, do Curso de Cincias Biolgicas da UFPR e, atualmente, como
professor do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Cincias Naturais da
UTFPR Cmpus Ponta Grossa.
Destaco nessa minha trajetria pessoal e profissional, at os dias
atuais, que todos os questionamentos relacionados com a formao do professor
e com o Ensino de Cincias e Biologia como um todo foram pertinentes e
possibilitaram reflexes e dilogos com colegas e autores das reas pedaggica,
biolgica e de outras afins. Algumas dessas consideraes e discusses podem
ser conferidas em publicaes realizadas por Bertoni e Asinelli-Luz (2006, 2008a,
2008b, 2008c, 2010), tambm em Bertoni, Baganha e Schilichting (2006) e
Bertoni (2007; 2012).
Dentre as preocupaes, uma que se tornou a SHGUDQRPHXFDPLQKRe tomou conta das minhas leituras e investigao, diz respeito ao objeto deestudo da biologia, o fenmeno vida. Esses estudos demandaram relaescom o entendimento da linha do tempo do desenvolvimento do conceito vida; dos
limites e dilogos dos conhecimentos, e das diferentes proposies e concepes
na tentativa de definir o que vida, na histria da biologia e na constituio desse
campo do conhecimento cientfico; da produo, interlocuo, circulao de ideias
e disseminao do conhecimento biolgico.
Desses estudos ficaram alguns questionamentos que passaram a
compor o contexto destas discusses e elaborao da tese, formando as bases
para estudos futuros, posteriores a este, com implicaes tericas e prticas da
histria e filosofia da cincia no ensino de biologia. Dentre tais questionamentos
destaco os seguintes:
- Como o fenmeno vida foi pensado historicamente?
- Quais as concepes generalizadas de vida elaboradas ao longo da
construo da histria da biologia?
- Como surgiu o conceito atual de vida?
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x Como essa pedra parou no meio do caminho ...
Em trabalho de docncia realizado com professores de biologia da rede
estadual e com licenciandos do curso de Cincias Biolgicas da UFPR, em
ambos os contextos, percebi a dificuldade de entendimento a respeito do conceito
vida, principalmente definido sob o ponto de vista da biologia enquanto cincia em
construo.
A elucidao de tal dificuldade se deu em um trabalho diagnstico a
partir do que disse um coletivo de futuros professores do oitavo perodo do curso
de Cincias Biolgicas da UFPR. Para tal, utilizei um questionrio7 diagnstico
aplicado por mim no incio da disciplina de Prtica de Ensino em Biologia, com o
objetivo de complementar a elaborao do plano de trabalho semestral. Alm do
carter diagnstico como prtica docente, as informaes captadas passaram a
compor os registros de pesquisa, pois permitiram perceber o que pensavam
futuros professores de biologia a respeito do objeto de estudo da biologia.
Dentre as questes utilizadas, trs exploraram o entendimento sobre o
que vida e se fazem relevantes a essas discusses.
$ SDODYUD %,2/2*,$ IRL FULDGD QR LQtFLR GR VpFXOR ;,; FRP Rsignificado eWLPROyJLFR GH HVWXGR GD YLGD 0DV R TXH p 9,'$" e SRVVtYHOH[SOLFDUHVVHIHQ{PHQR". Com esta questo passei a conhecer a concepo dosfuturos professores que compunham aquela turma do oitavo perodo do Curso de
Cincias Biolgicas da UFPR a respeito do significado do conceito vida, assim
como a dificuldade e as possibilidades de abrangncia conceitual e de definio.
As respostas possibilitaram, tambm, um olhar complexo8 e mais amplo para o
7 O questionrio foi elaborado exclusivamente como diagnstico para a composio doplanejamento da disciplina Prtica de Ensino em Biologia (1 semestre letivo de 2011) e no comoparte da elaborao de uma pesquisa em nvel de tese. Para o contexto desta tese, as respostasse restringiram a diagnosticar o entendimento dos futuros professores de biologia e a relaodesse conhecimento envolvendo discusses de Histria e Filosofia da Biologia na formao inicial.
8 Na literatura, h vrios significados para o termo FRPSOH[R. Nesta trabalho, utilizo como visode mundo no sentido que abarca vrios elementos que se integram e interagem paracompreenso do pensamento, da realidade, dos processos, da vida, e que reflete a tenso dasdiscusses histricas nas relaes entre as partes e o todo. Esse novo modo de pensar arealidade, da vida, se diferencia das concepes holista (o todo igual a soma das partes) ereducionista (isolar o todo em partes para anlise e conhecimento) e permite compreender
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conceito vida, alm da possibilidade de estabelecer os limites explicao
cientfica.
Conforme Emmeche e El-Hani (2000), a vida apareceu como problema
para a cincia somente no fim do sculo XVIII, pois anteriormente a este perodo
no era considerada com o significado de um conceito cientfico moderno, e sim,
com o significado de caracterstica descritiva, propriedade essencial dos seres
vivos no contexto biomdico e histrico naturalista (MAYR, 1998). Portanto, este
modo de compreender o significado de vida contribui, principalmente, com os
problemas relacionados classificao botnica e zoolgica.
Com a segunda questo indago 6H %,2/2*,$ VLJQLILFD HVWXGR GDYLGDSRUTXHHQWmROLYURVGLGiWLFRVHPVXDPDLRULDDDSUHVHQWDPFRPRHVWXGRGRV VHUHV YLYRV"9,'$pRPHVPRTXH6(59,92"2TXHpXP6(59,92Hcomo diferenci-lo de um SER NO-9,92".
Especial ateno foi dada ao que comumente encontramos nos livros
didticos, principalmente em captulos iniciais de apresentao da disciplina para
os estudantes do ensino mdio. A maioria dos autores de livros didticos e
apostilas de biologia iniciam definindo biologia como cincia que estuda a vida,
mas, na continuidade, sempre procuram por propriedades essenciais que
caracterizam o ser vivo.
Na viso de Emmeche e El-Hani (2000, p. 34) tal considerao um
grande problema uma vez que QmR SRGHPRV ter acesso essncia da vida, TXLOR TXH GHILQH HVVHQFLDOPHQWH XP VLVWHPD FRPR YLYR. Os mesmos autoresainda questionam o fato das chamadas IRUPDV OLPtWURIHV que apresentam, aomesmo tempo, caractersticas de matria bruta e carecem da interao com uma
fonte de metabolismo celular.
A ttulo de exemplo, apresento a seguir definies expressas em trs
diferentes livros didticos de diferentes pocas e realidades:
contextualmente a natureza do todo, se aproximando, assim, dos conceitos de RUJDQL]DomRdefendido por Jacob (1983) e SHQVDPHQWRVLVWrPLFR em Capra (1997).
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13
(...) Biologia a cincia que estuda a vida. (...) No sabemos o que sejaa vida em si, mas os fenmenos vitais e as leis que o regem. (...) Seatentarmos bem, notaremos que a Biologia apresenta um duplo objeto. Em primeiro lugar apresenta um objeto formal, que so os seres vivosem si. Em segundo lugar apresenta um objeto material que so osfenmenos vitais e as leis que os regem (BOLSANELLO; VAN DER BROOCKE FILHO; FREITAS, 1970, p. 14).
Objeto de estudo da Biologia: os seres vivos. Biologia o estudo da vida.mas o que vida? definir vida no simples, mas podemos definir o que um ser vivo. Assim, a Biologia passa a ser a cincia que estuda osseres vivos (LOPES, 1999, p. 13).
A Biologia: cincia da vida. A Biologia uma cincia muito ampla, que sepreocupa em estudar todos os seres vivos e compreender osmecanismos que regem a vida (LOPES; ROSSO, 2010, p. 11).
Como possvel acompanhar nas definies, os diferentes autores,
embora relacionem a biologia concepo de vida, no conseguem explicit-la
fora dos limites dos seres vivos. A partir das trs definies, entendemos que os
autores se firmam na biologia como a cincia que estuda a vida, no entanto
expressam suas concepes, de diferentes pontos de vista, da existncia material
de propriedades essenciais, mecanismos e leis que mantm a vida nos seres
vivos.
Com a terceira questo, &RPR YRFr H[SOLFDULD D XP HVWXGDQWH GRHQVLQRPpGLRTXHOKHSHUJXQWDVVH2TXHp9,'$SURIHVVRU"(DXPSURIHVVRUGH RXWUD GLVFLSOLQD FRPR YRFr H[SOLFDULD", procurei saber dos licenciandos arelao entre as duas respostas anteriores, na condio de professor de biologia,
sendo questionado por estudantes e demais professores de outras disciplinas. A
maioria deles respondeu que explicaria com base na presena da vida num ser
vivo, devido aos DFRQWHFLPHQWRV que os caracterizam como vivos e, assim, osdiferenciam dos seres no vivos. A vida, na concepo deles, algo presente no
ser que d condio de mant-lo vivo.
Nessa conjuntura, seja no nvel mdio de ensino ou no ensino superior,
igualmente na funo de tcnico-pedaggico, estudei documentos oficiais com
orientaes curriculares destinadas disciplina de biologia e aos cursos de
formao inicial de professores.
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14
Dentre esses documentos, menciono os Parmetros Curriculares
Nacionais de Biologia (BRASIL, 2000), a Resoluo n 7 (BRASIL, 2001), que
estabelece as Diretrizes Curriculares para o Curso de Cincias Biolgicas, as
Diretrizes Curriculares Estaduais de Biologia para a Educao Bsica do Paran
(PARAN, 2006; 2008a), e as orientaes pedaggicas para os anos iniciais do
ensino fundamental de nove anos (PARAN, 2010). Tambm acompanhei o
processo de seleo de livros didticos de biologia pelo Programa Nacional do
Livro para o Ensino Mdio (PNLEM9) do Governo Federal, nos anos de 2008 e
2011 (BRASIL, 2008; 2011).
O documento Parmetros Curriculares Nacionais de Biologia
(BRASIL, 2000), com orientaes curriculares para o ensino mdio, expressa que
p REMHWR GH HVWXGR GD ELRORJLD R IHQ{PHQR YLGD HP WRGD VXD GLYHUVLGDGH GHPDQLIHVWDo}HV (2000, p. 14). Tal diversidade de manifestaes refere-se aoentendimento de que a vida algo que d condies do organismo de PRYHU-seSRUVLVy. Esse um resqucio da ideia de DOPD ou SULQFtSLRYLWDO, fortementedefendida pelos aristotlicos, ao mesmo tempo em que no deixa de ser um
primrdio da viso mecanicista que se fortalece com a cincia moderna.
O conceito de manifestao no sentido aqui atribudo ao fenmeno
vida, tambm pode ser entendido como uma YiOYXODGHHVFDSH para explicitarconceitos at ento sem uma definio muito bem constituda, anlogo ao
conceito fsico de energia. Quando penso na possibilidade de definir energia, de
certo modo, fao referncia manifestao que corresponde a uma forma de
converso e/ou conservao (BRASIL, 2000).
As noes de transformao e conservao de energia, por exemplo,devem ser cuidadosamente tratadas, reconhecendo-se a necessidade de que o DEVWUDWR conceito de energia seja construdo FRQFUHWDPHQWH, apartir de situaes reais, sem que se faa apelo a definies dogmticasou a tratamentos impropriamente triviais (BRASIL, 2000, p. 24-25).
9 Este programa foi implantado, em 2004, pelo Ministrio da Educao, pela Resoluo n 38 doFNDE, e previa a universalizao de livros didticos para os alunos do ensino mdio pblico detodo o pas. O PNLEM vigorou at 2008/2009, mas passou a incorporar o PNLD a partir da edio2011/2012, devido implantao, a partir de 2007, do Fundo de Manuteno e Desenvolvimentoda Educao Bsica e de Valorizao dos Profissionais da Educao (FUNDEB), em substituioao Fundo de Manuteno e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorizao do Magistrio(FUNDEF).
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Se aceito o conceito fsico de energia relacionado com a capacidade de
produzir movimento, como no seu significado greco-latino de WUDEDOKR, a energiapode ser convertida, mas nunca criada ou destruda. Essa ideia est relacionada
com os problemas que a comunidade cientfica buscou solucionar desde a origem
desse conceito, mesmo que num contexto ainda mtico e metafsico do
conhecimento.
A gnese e o desenvolvimento dos conceitos vida e energia
encontram-se entrelaados e to intrincados historicamente que possvel
reconhecer o fenmeno vida explicado a partir das concepes de IRUoDYLWDO (visvitalis) e FDOyULFR, num momento que antecede ao contexto cientfico esociocultural do sculo XIX (BUCUSSI, 2007).
O fsico Alessandro Aquino Bucussi, no texto Introduo ao conceito de
energia (2007), estruturou uma breve reviso bibliogrfica sobre a gnese do
conceito de energia, buscando investigar RPRPHQto que antecede a emergnciado conceito e, posteriormente, os principais resultados que nos descrevem a
evoluo que o mesmo sofreu, principalmente, no que se refere chamada
GHVFREHUWDVLPXOWkQHDGRSULQFtSLRGHFRQVHUYDomRGDHQHUJLD (BUCUSSI, 2007, p. 5). Segundo esse autor, a definio FLHQWtILFD de energia apenas uma dasmuitas outras que os dicionrios trazem, ou que esto presentes em determinada
cultura. Afirma ele que
a concepo Fsica do conceito de energia no muito clara, ela estassociada a um modelo conceitual compartilhado pela comunidadecientfica e este modelo, como vimos na breve histria da gnese doconceito de energia, no imutvel, esttico, ele evolui, passa porreelaboraes que devem, por isso mesmo, serem contextualizadashistoricamente (BUCUSSI, 2007, p. 18).
Os Parmetros Curriculares Nacionais de Biologia (BRASIL, 2001),
apesar da concepo inicial centrada numa viso mais animista de vida, procura
fortalecer uma nova proposta de viso de mundo e de mudana no significado
conceitual quando expressa que objeto de estudo da biologia o fenmeno vida
em toda sua diversidade de manifestaes. No entanto,
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esse fenmeno se caracteriza por um conjunto de processosorganizados e integrados, no nvel de uma clula, de um indivduo, ouainda de organismos no seu meio. Um sistema vivo sempre fruto dainterao entre seus elementos constituintes e da interao entre essemesmo sistema e demais componentes de seu meio. As diferentesformas de vida esto sujeitas a transformaes, que ocorrem no tempo eno espao, sendo, ao mesmo tempo, propiciadoras de transformaesno ambiente (BRASIL, 2000, p. 14).
A Resoluo n 7 (BRASIL, 2001) do Conselho Nacional de Educao
estabelece as Diretrizes Curriculares para o Curso de Cincias Biolgicas e no
primeiro pargrafo do documento a biologia apresentada como:
a cincia que estuda os seres vivos, a relao entre eles e o meioambiente, alm dos processos e mecanismos que regulam a vida. Portanto, os profissionais formados nessa rea do conhecimento tempapel preponderante nas questes que envolvem o conhecimento danatureza (BRASIL, 2001, p. 1).
Ao aceitar a biologia como estudo dos seres vivos, suas relaes e
regulaes, o documento de orientao nacional avana ao considerar o
fenmeno vida em diferentes nveis de organizao. Avana, tambm, ao exigir
que os cursos de formao em cincias biolgicas tenham entre seus princpios
de base OHYDUHPFRQWDDHYROXomRHSLVWHPROyJLFDGRVPRGHORVH[SOLFDWLYRVGRVSURFHVVRVELROyJLFRV (BRASIL, 2001, p. 5).
O mesmo documento (BRASIL, 2001) assume que o profissional
formado nessa rea precisa compreender que
a vida se organizou atravs do tempo, sob a ao de processosevolutivos, tendo resultado numa diversidade de formas sobre as quaiscontinuam atuando as presses seletivas. Esses organismos, incluindoos seres humanos, no esto isolados, ao contrrio, constituem sistemasque estabelecem complexas relaes de interdependncia. Oentendimento dessas interaes envolve a compreenso das condiesfsicas do meio, do modo de vida e da organizao funcional internaprprios das diferentes espcies e sistemas biolgicos. Contudo,particular ateno deve ser dispensada s relaes estabelecidas pelosseres humanos, dada a sua especificidade. Em tal abordagem, osconhecimentos biolgicos no se dissociam dos sociais, polticos,econmicos e culturais (BRASIL, 2001, p. 1).
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Em razo dessas discusses, parto do pressuposto de que o fenmeno
vida possa ser compreendido para alm de sua diversidade de manifestaes,
isto , em sua complexidade de relaes (PARAN, 2008a).
De acordo com as Diretrizes Curriculares Estaduais de Biologia
(PARAN, 2008a), essa complexidade se expressa, primeiro, nas relaes
histricas e epistemolgicas da cincia e, portanto, a prioridade do entendimento
no est nas diferentes maneiras do fenmeno se manifestar, o qual pode ser
interpretado como uma das relaes presentes em cada contexto histrico.
Desde a antiguidade at a contemporaneidade, esse fenmeno foientendido de diversas maneiras, conceituado tanto pela filosofia naturalquanto pelas cincias naturais, de modo que se tornou referencial naconstruo do conhecimento biolgico e na construo de modelosinterpretativos do fenmeno vida (PARAN, 2008a, p. 55).
Esse documento avana no entendimento que, para se compreender o
fenmeno vida a partir do contexto histrico de produo do conhecimento
biolgico, foram demarcados os momentos histricos e os diferentes estilos de
pensamento que predominaram e, DR ORQJRGDKLVWyria da humanidade, muitosforam os conceitos elaborados sobre este fenmeno, numa tentativa de explic-lo
e, ao mesmo tempo, compreend-OR (PARAN, 2008a, p. 38).Apesar dos avanos na proposta epistemolgica, o documento de
orientao curricular do Paran comete um equvoco, uma incoerncia, quando
trabalha com as concepes de SDUDGLJPD (KUHN, 2005) e de PXGDQoD QRPRGRGHSHQVDU (FLECK, 2010) a realidade da vida em determinados momentoshistricos. De certo modo, pelo menos por enquanto, ressalto que so
concepes distintas, provenientes de propostas epistemolgicas diferenciadas.
A biologia, portanto, segundo as Diretrizes Curriculares Estaduais de
Biologia (PARAN, 2008a) tem como objeto de estudo o fenmeno vida em toda
sua complexidade de relaes e no mais os seres vivos com suas caractersticas
anatmicas e fisiolgicas, como no tempo em que a histria natural prevalecia
enquanto conhecimento da realidade dos seres animados (vivos) e dos seres
inanimados.
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Mas, definir os limites do conceito vida compreende uma atividade
extremamente difcil. Sendo assim, por exemplo, em alguns livros didticos, os
autores consideram mais simples atribuir o significado da palavra biologia como
cincia que estuda os seres vivos, ou mesmo estabelecer o contraexemplo, a
morte, a fim de assegurar para esta a condio de processo irreversvel de perda
da atividade vital (EL-HANI; KAWASAKI, 2000; KAWASAKI; EL-HANI, 2002).
Em trabalho recente envolvendo anlise das definies de vida em
alguns livros didticos de biologia do ensino mdio, Kawasaki e
El-Hani (2002, p. 4-5) investigaram de que maneira o problema de definir vida tem
sido abordado e concluram que, HPERUD UHFRQKHoDP D GLILFXOGDGH GH GHILQLUvida, alguns autores no evitaram a discusso sobre como caracterizar seres
vivos, diferenciando-os da matria bruta e, em alguns casos, chegam a tratar
H[SOLFLWDPHQWHGRSUREOHPDGHGHILQLUYLGD. Em contato com vrios exemplares de livros didticos de biologia do
ensino mdio (BRASIL, 2008; 2011), pude perceber que os autores tambm se
dividem. H casos em que eles causam certa confuso ao abordarem os
conceitos VHU YLYR e YLGD, apresentando-os, s vezes, como sinnimos. Geralmente, os autores expressam suas consideraes em relao biologia em
um captulo inicial de apresentao da disciplina. Em muitos casos, ao longo do
livro ou dos volumes, os autores trabalham com concepes diferenciadas do
conceito vida, sem ao menos contextualiz-las histrica e socioculturalmente.
Isso acontece porque h necessidade de abordagem de determinados
contedos, de acordo com uma organizao diferenciada da que historicamente
se constituiu, de modo fragmentado e com explicaes consideradas sintetizadas.
Esses materiais, na maioria das vezes, encontram-se organizados de acordo com
os diferentes campos de conhecimento das cincias biolgicas, como por
exemplo, citologia, fisiologia, zoologia, botnica, gentica, ecologia e evoluo.
Como discutido at aqui, abordagens dessa natureza so comuns nos
referenciais didticos para o ensino mdio. No livro Biologia integrada (2003), de
Luis Eduardo Cheida, por exemplo, publicado num momento posterior s
orientaes dos Parmetros Curriculares e anterior ao incio do PNLEM, o autor
inicia o primeiro captulo do livro apresentando a biologia como cincia
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responsvel pelo estudo dos seres vivos, alm de consider-los a partir da
apresentao de certas caractersticas, que so acentuadas como propriedades
peculiares dos mesmos, como a seguir:
BIOLOGIA: ESTUDO DOS SERES VIVOS. A Biologia a cincia queestuda os seres vivos. Ar, pedra, gua so seres no-vivos. Plantas,animais, fungos, bactrias, vrus so seres vivos. MAS, COMOIDENTIFICAR UM SER VIVO? Os seres vivos apresentamcaractersticas que os diferem dos seres que no tm vida (...)(CHEIDA, 2003, p. 7, destaques do autor).
O autor do livro didtico, na citao anterior, refere-se s
caractersticas essenciais dos seres vivos que os diferem dos que no tm vida.
Segundo ele (CHEIDA, 2003), caractersticas como reaes a estmulos e
adaptao, constituio celular, composio qumica mais complexa, metabolismo
e homeostasia, ciclo de vida, diferenciados tipos de crescimento, reproduo,
hereditariedade e mutao, acentuam as diferenas entre seres vivos e no-vivos,
permitindo assim identificar um ser vivo a partir dessas caractersticas.
Um dos pontos que chamou a ateno na sua sistematizao a
apresentao da propriedade de homeostasia, sendo esta proveniente de estudos
mais recentes, de superao da biologia mecanicista originria da fsica mecnica
de sistemas fechados, pela biologia dos sistemas abertos. Tais estudos advindos
da relao PHFDQLVPRV GH UHJXODomR e HTXLOtEULR GLQkPLFR se fortalecem nocomeo do sculo XX, com investigaes de fisiologistas como Walter Cannon,
que expandiram as pesquisas de outro fisiologista, o francs Claude Bernard,
realizadas na metade do sculo XIX. Essa propriedade passou a ser melhor
compreendida com novas investigaes como a da teoria da endossimbiose
proposta pela biloga estadunidense Lynn Margulis e que culminou na proposio
da Hiptese Gaia nos anos de 1960, com o ambientalista James Lovelock.
Questiono, pois, teria o autor do livro didtico compreenso histrica e
epistemolgica dessas questes todas e de outras que aqui no foram por mim
mencionadas?
importante salientar dois pontos relacionados ao processo de
elaborao desses livros didticos, mesmo no sendo objetos de anlise neste
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livro. O primeiro, que tais referenciais didticos, na sua grande maioria, sempre
trouxeram um captulo inicial de apresentao da disciplina e, na maior parte dos
casos, tratam superficial e incoerentemente a questo do objeto e dos avanos do
conhecimento biolgico.
O segundo, a evoluo do processo de elaborao desse tipo de
material, devido aos avanos dos conhecimentos biolgicos e de suas
abordagens didtico-pedaggicas, com a institucionalizao dos Parmetros
Curriculares Nacionais no final dos anos de 1990 e suas modificaes
posteriores, com o PCN+ (BRASIL, 2002). Tambm, a partir das exigncias
contidas nos catlogos do PNLEM, em todas as verses de escolha.
A questo conceitual relacionada ao objeto de estudo da biologia
problemtica, seja em aceit-lo como unificador das cincias biolgicas, seja esse
conceito visto a partir do conhecimento histrico com influncias socioculturais.
Essas e outras situaes instigaram-me a investigar os contextos narrativos
histricos, nos quais influncias socioculturais impulsionaram o processo de
desenvolvimento do conhecimento biolgico e as influncias nas concepes
sobre o fenmeno vida, que possibilitaram o desenvolvimento do conceito vida e
as definies que se estabeleceram historicamente.
Minhas preocupaes, agora, pensadas no mbito da elaborao e
defesa de uma tese, e publicadas neste livro, se concentram em FRPHoDU DDIDVWDUSDUDDEHLUDGRFDPLQKRDSHGUDTXHDWpHQWmRVHHQFRQWUDEHPQRPHLR.
x A pedra comea a ser empurrada beira do caminho ...
A Biologia, enquanto cincia que busca elaborar explicaes sobre a
vida, sua origem, evoluo e manipulao, representa, nos dias de hoje, um dos
campos do conhecimento cientfico que mais tem avanado e contribudo para a
compreenso do fenmeno vida. Tal compreenso est vinculada, principalmente,
com pesquisas envolvendo as condies de VHU, HVWDU PDQWHU-VH e maisrecentemente SURGX]LU H SDWHQWHDU R YLYR, abrangendo a interao entre os
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seres vivos e as relaes de sobrevivncia entre eles; a descrio da vida como
propriedade essencial; os mecanismos que a regem; as narrativas histricas
sobre a origem e evoluo da vida; bem como as influncias humanas no mundo
natural desde o processo de hominizao e o incio da histria do ser humano em
sociedade.
Essas pesquisas interferem direta e indiretamente no processo de
conhecimento da realidade emergente, complexa, e desencadeia discusses,
tambm, de natureza teolgica, filosfica, histrica e sociocultural a respeito dos
fenmenos, dos fatos e das teorias cientficos atrelados natureza da vida. Isso
foi possvel medida que sucessivas geraes de novas pesquisas e de novas
invenes e inovaes completaram as lacunas da histria sociocultural da
biologia.
Mais do que a discusso em torno da relao estabelecida entre o
sujeito que compreende o objeto de estudo da biologia e o estado do
conhecimento, essa relao permite que, por exemplo, cada um, ao interpretar
sua experincia da evoluo temporal do mundo e de si mesmo nesse mundo,
possa orientar intencionalmente sua vida prtica no tempo. Tal relao se
manifesta, justamente, quando cada sujeito em si, tem que dar conta das
mudanas temporais de si e do mundo mediante o pensar e o agir.
Mais do que conhecer o passado, no sentido de compreender como o
fenmeno vida foi interpretado e explicado em diferentes momentos da histria da
humanidade, o desafio est em se localizar no tempo histrico. Isso implica, com
base nas afirmaes de Rsen (2001), que o professor de biologia, por exemplo,
desenvolva sua conscincia histrica e consiga interpretar a realidade do mundo
vivo em funo das intenes de sua ao.
Segundo Rsen (2001 p. 58), a conscincia histrica pode ser
entendida como RPRGRSHORTXDODUHODomRGLQkPLFDHQWUHH[SHULrQFLDGRWHPSRH LQWHQomRQR WHPSRVHUHDOL]DQRSURFHVVRGDYLGDKXPDQD. Sugere que cadasujeito desenvolva sua conscincia histrica e consiga interpretar a realidade do
mundo vivo em funo das intenes de sua ao. Isso significa, nos dizeres de
Rsen (2001, p. 60), que o ser humano WHPGHSHQVDUVHXPXQGRHVXDYLGDpara poder orientar-VH FRUUHWDPHQWH e intitula de supervit de intencionalidade
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essa relao do ser humano com o seu tempo. Assim, o professor de biologia, ao
compreender o desenvolvimento do conceito vida, em que as mudanas
temporais do mundo so interpretadas numa relao de continuidade entre
dimenses diferentes de tempo, procura explicar a realidade vivida a partir dessa
noo de continuidade.
A conscincia histrica no propriamente um pensamento cientfico
sobre a histria, mas uma H[SHULrQFLD LQWHQFLRQDO de como pensar odesenvolvimento do conceito vida, dos demais conceitos, dos avanos do
conhecimento biolgico, das elaboraes das teorias que procuram explicar a
vida, em relao aos diferentes estilos de pensamento biolgico. Tal relao
permite a localizao no tempo e posterior ao a partir de um estilo de
pensamento dominante, mesmo que seja um estilo religioso ou mtico.
Esse processo de formao da conscincia histrica sobre o conceito
vida, o ato de pensar historicamente o conceito, conhecer historicamente de modo
cientfico o prprio processo de cientificizao dos conhecimentos a respeito do
fenmeno vida, se d mediante a interpretao da experincia do tempo pela
inteno em relao ao tempo. Essa conscincia, portanto, permite a qualquer
sujeito no se perder no processo de transformao do mundo e de si mesmo. A
conscincia histrica permite ao sujeito dar sentido s mudanas do passado e
que pode ser aplicada para se entender o presente e o agir no futuro.
Como diz Rsen (2001, p. 54), R pensamento um processo genricoe habitual da vida humana. A cincia um modo particular de realizar esse
processo. O homem no pensa porque a cincia existe, mas ele faz cincia
SRUTXH SHQVD. Assim, desenvolver uma conscincia histrica a respeito dosavanos do conhecimento biolgico sob uma dimenso cientfica, significa
entender como essa dimenso do pensamento se desenvolveu.
Portanto, essa realidade complexa10, a de compreender como surgiu o
conceito atual de vida, precisa ser vista para alm da sua razo conceitual,
10 Entendo por UHDOLGDGHFRPSOH[D o modo de pensar no-linear, envolvendo entrelaamentos einterdependncias de todos os fenmenos, diferentemente do modo de pensar linear e cartesiano.No entendimento do gegrafo Milton Santo, a realidade complexa compreende a natureza doespao, IRUPDGRGHXPODGRSHORUHVXOWDGRPDWHULDODFXPXODGRGDVDo}HVKXPDQDVDWUDYpVGRtempo, e, de outro lado, animado pelas aes atuais que hoje lhe atribuem um dinamismo e umaIXQFLRQDOLGDGH (2004, p. 85). Complementa o autor afirmando que tal complexidade representa a
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epistemolgica, assegurando outros elementos como o discurso e o meio de
divulgao do conhecimento em cada poca; a concepo de natureza, de
cincia e de mtodo; o contexto histrico e sociocultural; aspectos econmicos e
polticos; elementos filosficos e teolgicos; dentre outros que permitam o
desenvolvimento pelo sujeito de uma conscincia histrica sobre o fenmeno
vida.
A fim de avanar nas questes relativas gnese e desenvolvimento
do conceito vida, este livro foi organizado da seguinte maneira:
1. INTRODUO: neste captulo, proponho a tese pretendida ao longodessa obra e discuto e explicito a metodologia de carter singular utilizada para
esta investigao. O momento de clarificar o processo de pesquisa e o enfoque
metodolgico empregado, bem como o universo terico, necessrios para se
consolidar a defesa da tese.
2. LUDWIK FLECK E A EPISTEMOLOGIA EVOLUCIONRIA: nestecaptulo, apresento os pressupostos da epistemologia evolucionria de Ludwik
Fleck. Abordo, numa sntese histrica, a sua vida e o seu trabalho enquanto
mdico e conhecedor dos fatos cientficos, que permearam suas pesquisas e
resultaram na sua tese amplamente discutida no livro Gnese e desenvolvimento
de um fato cientfico, traduzido e publicado em portugus em 2010.
3. ESTILOS DE PENSAMENTO BIOLGICO: neste captulo, esboouma perspectiva de constituio da Biologia entre os sculos XVIII e XIX, assim
como apresento algumas consideraes a respeito da histria do conhecimento
biolgico desde a antiguidade at a contemporaneidade. Delineio a
fundamentao sobre os estilos de pensamento biolgico que, historicamente,
predominaram no modo de explicar e ao mesmo tempo compreender o fenmeno
vida, objeto de estudo da biologia. Neste item, portanto, fundamento os estilos de
totalidade em diferentes escalas, em que FDGDFRLVDQDGDPDLVpGRTXHSDUWHGDXQLGDGHGRtodo, mas a totalidade no uma simples soma das partes. As partes que formam a totalidadeno bastam para explica-OD (ib.id.).
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pensamento biolgico descritivo, mecanicista e evolutivo, e acentuo proposies
para um dilogo posterior sobre a possibilidade da emergncia de um novo estilo
de pensamento biolgico, o da manipulao gentica, fundamentado na
epistemologia evolucionria.
4. COMO SURGIU O CONCEITO ATUAL DE VIDA?: neste captulo,exploro algumas consideraes a respeito do que se tem publicado em torno da
questo RTXHpYLGD", de modo a delinear algumas perspectivas que trazem noseu contexto os estilos de pensamento biolgico. Tambm, aprofundo uma
discusso a partir das abordagens anteriores no sentido de enfatizar a tese ao
apresentar um FDPLQKR para a compreenso de como emergiu o conceito atualde vida.
5. PALAVRAS FINAIS: neste ltimo captulo apresento algumasconsideraes, que caminham tanto para reforar a defesa quanto para a
emergncia de trabalhos futuros a partir deste, bem como argumentaes sobre a
fundamentao organizada aos estilos de pensamento biolgico, a gnese e o
desenvolvimento do conceito vida. Este livro encerra, tambm, mais uma etapa
que alicera a discusso em torno do objeto de estudo da Biologia, agregando
elementos que a partir de agora, certamente, contribuiro com a formao
permanente do professor de Biologia e abrir novos caminhos ao Ensino de
Biologia.
Assim sendo, com base no que delineei antes, o que esperar da tese
apresentada neste livro? De modo singular, que passe a ser valorizada como um
estudo a ser integrado ao processo de formao inicial e permanente de
professores de Biologia. De modo concomitante, que estes professores possam
conhecer os caminhos, por vezes rduos, que foram trilhados com o desgnio de
defesa em torno dos estilos de pensamento biolgico e da compreenso da
gnese e desenvolvimento do conceito vida.
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1. INTRODUO
Gente no nasce pronta e vai se gastando; gente nasce no pronta e vaise fazendo (CORTELLA, 2009).
A proposio do ttulo Gnese e desenvolvimento do conceito vida
representa a sntese de um longo e gradual processo de dilogos e reflexes,
envolvendo referenciais bibliogrficos escritos por autores das reas do
conhecimento cientfico e filosfico, bem como dilogos e discusses em terrenos
frteis como o so as salas de aula e os congressos e seminrios acadmicos. O
acesso a esses referenciais permitiu ampliar minha viso de mundo a respeito do
fenmeno vida e estabelecer os estilos de pensamento, que influenciaram no
modo de explicar e, ao mesmo tempo, compreender esse fenmeno, assim como,
concepes elaboradas desde a antiguidade at a contemporaneidade.
Alguns trabalhos, como os de autoria de Delizoicov (2002),
Coutinho (2005) e Parreiras (2006), dentre outros, foram importantes no incio da
elaborao da tese, pois contriburam significativamente para o reconhecimento
da necessidade de mais estudos referentes histria e epistemologia da
biologia. Esses estudos precisam estar inseridos no contexto de uma viso
epistemolgica que busca compreender como se d a elaborao cognitiva dos
conceitos biolgicos, que emergem da relao estabelecida entre sujeito e objeto.
Antes de apresentar minhas consideraes sobre a emergncia do
conceito vida, quero destacar nesse momento e fazer valer o trabalho de tese
realizado pelo professor Francisco ngelo Coutinho, Construo de um perfil
conceitual de vida (2005). Mesmo que pautado em outra base epistemolgica e
referenciado teoricamente sob outra perspectiva, Coutinho (2005) avana nas
discusses sobre o conceito vida, apontando caminhos para uma melhor
compreenso a respeito do fenmeno da vida. No pretendo, nesse trabalho,
discutir a opo terica desse autor pela epistemologia francesa de Gaston
Bachelard e sua tese do perfil epistemolgico, muito menos a respeito da
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proposio metodolgica de pesquisa em torno da tomada de conscincia do
perfil conceitual.
No obstante, quero destacar meu apreo e considerao pela noo
de perfil conceitual, ou seja, D LGHLD GH TXH DV SHVVRDV SRGHP DSUHVHQWDUdiferentes maneiras de ver e representar o mundo, que so usadas em contextos
difeUHQWHV (COUTINHO, 2005, p. 14). Assim, ative-me sua discusso em tornodo conceito vida, do modo de reconstruo histrica do conceito e do modo de
representar a compreenso histrica desse conceito em diferentes nveis.
Coutinho (2005) apresenta trs nveis de compreenso do conceito
vida que foram nomeados de internalismo, externalismo e relacional. Para o autor
e seus orientadores, os professores Eduardo Fleury Mortimer e Charbel Nio El-
Hani,
eVVDVWUrV]RQDVIRUDPQRPHDGDVSRUQyVLQWHUQDOLVQRTXando a vida compreendida como processos ou propriedades inerentes do vivente;H[WHUQDOLVPR TXH UHSUHVHQWD XPD FRPSUHHQVmR GD YLGD FRPR DOJRexterno e separado do vivente, podendo ser compreendida como algoque vem de fora ou que tende a uma finalidade para alm do ser vivo; eUHODFLRQDO R HQWHQGLPHQWR GD YLGD FRPR XPD UHODomR GH HQWLGDGHVe/ou sistemas, sendo a definio dada em termos de relaes(COUTINHO, 2005, p, 5-6).
Conforme Coutinho (2005, p. 15), a noo de perfil conceitual est
atrelada com a noo de perfil epistemolgico proposta por Bachelard, que afirma
ser SRVVtYHOSDUDFDGD LQGLYtGXR WUDoDUVHXSHUILOHSLVWHPROyJLFRSDUDXPGDGRconceito cientfico (...). Cada parte do perfil pode ser relacionada, portanto, com
uma forma de pensar e com um certo domnio da cultura a que essa forma se
DSOLFD. Mesmo considerando as caractersticas individuais, cada perfil
apresenta uma caracterstica mais geral, de modo que cada zona desse perfil,
cada parte que o compe, est relacionada com uma perspectiva filosfica
especfica. Assim, para cada conceito, o perfil diferencia de indivduo para
indivduo e pIRUWHPHQWHLQIOXHQFLDGRSHODVH[SHULrQFLDVLQGLYLGXDLVSHODVUDt]HVFXOWXUDLVGLIHUHQWHVGHFDGDSHVVRD (op cit, p. 16).
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Coutinho (2005) cita Mortimer (2001) ao referir-se obra de Bachelard,
muito prxima ao que prope Fleck (2010), considerando suas diferenas mais
especficas. Segundo Mortimer (2001 apud COUTINHO, 2005, p. 18) FDGD]RQDem um perfil conceitual oferece uma forma de ver o mundo que nica e
diferente de outras zonas. como se olhssemos para o mundo atravs de lentes
TXHPRVWUDPWRGDDUHDOLGDGHGHXPDIRUPDHVSHFtILFD. E complementa,
Dessa forma, noo de perfil conceitual surge como uma ideia de que possvel usar diferentes modos de pensar em diferentes domnios. Elasugere que, mesmo no domnio cientfico, existem diferenasepistemolgicas e ontolgicas entre teorias sucessivas. Cada conceito,portanto, pode ter diferentes aspectos e diferentes perfis (COUTINHO, 2005, p. 18).
1.1 PROPONHO UMA TESE ...
Ao estudar o processo histrico de desenvolvimento cientfico deparei-
me com a necessidade de ampliar as bases historiogrfica e epistemolgica, e
contextualizar os momentos histricos e os possveis condicionantes
socioculturais, os quais contriburam para os avanos do conhecimento biolgico.
Inspirado na proposta epistemolgica do mdico polons Ludwik Fleck,
exposta de modo mais complexa no livro Gnese e desenvolvimento de um fato
cientfico (FLECK, 2010), acredito na premissa de que os avanos do
conhecimento biolgico possam ser compreendidos por meio da epistemologia
evolucionria dos estilos de pensamento. Com esse mesmo embasamento
terico, solidamente fundamentado nas bases do modelo darwiniano,
Fleck (2010) formulou uma explicao para o desenvolvimento do conhecimento
microbiolgico e imunolgico do final do sculo XIX e incio do sculo XX. Os
estilos de pensamento, no entendimento do autor, seriam inicialmente pontos de
vista que marcam uma poca. Esses estilos comportam em si uma concepo de
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mundo e o modo de desenvolvimento cientfico pautado no processo
evolucionrio dos conceitos e teorias.
Pressuponho, em meio a esse contexto, que esses estilos de
pensamento biolgico, alm de possibilitarem uma compreenso mais coerente
dos avanos do conhecimento biolgico, ao longo do tempo se entrecruzaram, se
complementaram, se ampliaram e se transformaram, permanecendo ora
dominantes coercitivamente, ora resistentes transformao, de modo a
influenciar a observao de fatos cientficos, a gnese e a ressignificao de
conceitos cientficos, dos elementos de definio e a (re)elaborao de teorias
cientficas, assim como o estabelecimento de novas disciplinas cientficas e
escolares organizadas por influncia da constituio de coletivos de discusso e
de pesquisa.
Cada estilo de pensamento biolgico, identificado ou no na tese, foi
disseminado a seu modo e tempo histrico, e seus elementos estruturais
permanecem tanto na esfera da cultura cientfica como na complexidade da vida
social cotidiana das pessoas. Sendo assim, esses estilos coexistem na maneira
de ver, de representar e de definir o que vida.
Em meio a esse contexto de estudo histrico e epistemolgico,
conhecer os estilos de pensamento biolgico que emergiram e, do mesmo modo,
condicionaram esse processo de cientificizao do conhecimento, permite novos
entendimentos do mundo natural, tecnolgico e sociocultural. Tais estilos podem
assegurar a compreenso dos modos de explicar e, ao mesmo tempo,
compreender o que vida, de diferentes perspectivas e a elaborao de distintas
definies. A demarcao desses estilos de pensamento biolgico possibilita
explorar o desenvolvimento do conceito vida ao longo da histria da humanidade.
Esses estilos de pensamento biolgico, aqui considerados, sempre
estiveram atrelados aos demais estilos de pensamento estveis ou menos
estveis e momentneos, todos compondo um universo ora holstico, ora
reducionista, ora extremamente complexo, em busca de explicaes e
compreenses do mundo, da vida, do ser humano, do futuro. A sistematizao
desses estilos de pensamento se faz necessria como forma diferenciada e, no
meu entendimento, mais coerente para a compreenso dos conceitos biolgicos e
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dos elementos de definio de teorias cientficas, no contexto da histria natural e
na superao sociocultural pela biologia.
Tal superao e consequente processo de transformao ocorreram,
gradualmente, entre os sculos XVIII e XX e, atualmente, podem vir a contribuir
de forma significativa como referencial terico-prtico atual para pesquisas
aplicadas no Ensino de Biologia, a saber, sobre:
(a) Formao inicial e permanente do professor de biologia.
(b) Organizao curricular dos contedos de biologia na educao
bsica.
(c) Produo de material didtico no que diz respeito organizao,
seleo e abordagem de contedos nos livros didticos de biologia.
Assim sendo, proponho a tese para o entendimento do conhecimento
biolgico que evolui gradativamente por YDULDo}HVHPXGDQoDV em meio a umprocesso dinmico de superao e inovao de diferentes vises de mundo. Os
estilos de pensamento se estabeleceram de uma viso mtica a uma viso de
mundo naturalista (teolgica, filosfica e histrica) e a uma viso de mundo
cientfica moderna e contempornea.
Em sntese, a partir do que foi anteriormente exposto, proponho a tese:
o conhecimento biolgico sobre o fenmeno vida avanou em meio emergncia
e complexidade de fatos, conceitos e teorias cientficos. Esse modelo
evolucionrio de desenvolvimento dos estilos de pensamento biolgico, em meio
a variaes e mudanas, fundamenta o entendimento da gnese ampla do
conceito vida, desde a antiguidade at a contemporaneidade, permitindo a
compreenso de determinadas concepes e a elaborao do conceito atual de
vida.
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1.2 O CAMINHO A SER PERCORRIDO NESTE LIVRO
Toda discusso metodolgica guarda em si uma proposta, at porque impossvel no ter posio. (...) Mesmo assim, este trabalho deve serentendido como convite discusso, dentro do reconhecimento de ques pode ser respeitado como cientfico aquilo que se mantiver discutvel. Nada de dogmas. Nada de posies rgidas. Nada de proselitismo(DEMO, 1995, p. 13-14).
Segundo o professor Pedro Demo, em duas de suas obras, Pesquisa e
construo do conhecimento (1994) e Metodologia do conhecimento cientfico
(2000), os procedimentos metodolgicos de pesquisa podem ser distinguidos,
pelo menos, em quatro gneros de pesquisa: terica, metodolgica, emprica e
prtica.
Outro autor, o pesquisador Antonio Carlos Gil, no seu livro Como
elaborar projetos de pesquisa (2008), apresenta diferentes modos de classificar
as pesquisas mediante o uso de alguns critrios, como por exemplo, objetivos e
procedimentos tcnicos. Segundo ele, FRP relao s pesquisas, usual aclassificao com base em seus objetivos gerais. Assim, possvel classificar as
pesquisas em trs grandes grupos: exploratrias, descritivas H H[SOLFDWLYDV(GIL, 2008, p. 41).
Estas e outras classificaes no podem ser tomadas como
absolutamente rgidas, visto que algumas pesquisas, em funo de suas
caractersticas, no se enquadram facilmente num ou noutro
modelo (GIL, 2008, p. 44). Mas, em todos esses e outros tipos de classificaes,
reconheo que nenhum autossuficiente e concordo com a defesa de que "na
prtica, mesclamos todos acentuando mais este ou aquele tipo de pesquisa"
(DEMO, 2000, p. 22).
Neste momento das discusses, delineio o conjunto de procedimentos
que me ajudaram a DQGDU QR FDPLQKR GDV SHGUDV. Estou certo de queestabelecer a metodologia do trabalho significa ir alm da definio desses
procedimentos, entendendo que a metodologia um caminho atravs do qual se
faz cincia, se organiza a produo de conhecimentos cientficos e no poderia
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ter um fim em si mesma. Mais do que isso, constri-se o caminho ao (re)tirar as
pedras.
A metodologia aponta para a necessidade de se perceber a
complexidade do processo envolvido nessa pesquisa, a qual leva a um estudo
que possibilita reconhecer o princpio do qual se parte para a produo do
conhecimento e o caminho propriamente dito. Com isso, mantenho mais fiel
gnese dessa ideia ao termo grego methodos, do qual metho significa rumo e
holos significa caminho (RUSS, 1994, p. 185).
Este trabalho de natureza terica e exploratria compreende,
entretanto, um intrincado processo de auto-organizao e (re)construo
envolvendo, de modo concomitante, os DUWLItFLRV de reviso de literatura e deestado do conhecimento, e exigiu percorrer um caminho que muitas vezes
requereu ser reinventado a cada instante, porm com um UXPR bem definido. Conforme Demo (2000, p. 20), uma pesquisa de natureza terica
dedicada a reconstruir ideias, conceitos e teorias WHQGR HP YLVWD HP WHUPRVimediatos, DSULPRUDU IXQGDPHQWRV WHyULFRV. A tese proposta se caracteriza porpossibilitar a construo de um quadro de referncia, com papel decisivo na
construo das bases e condies para a interveno na realidade do Ensino de
Biologia, dentro de uma viso mais ampla de formao do professor,
proporcionando a reorganizao de contedos e a elaborao de material
didtico, contribuindo dessa forma para a melhoria da qualidade do processo
ensino-aprendizagem.
O que permite enquadrar esse estudo natureza exploratria a
condio extensa de contextualizao de um problema historicamente estudado,
mesmo que alguns autores considerem pesquisa exploratria um tema ou
problema de investigao pouco estudado, ou que no tenha sido abordado
anteriormente (SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2006, p. 99-100). Todavia,
necessrio reconhecer o tratamento diferenciado nas discusses em torno da
defesa da tese, com base na epistemologia evolucionria dos estilos de
pensamento (FLECK, 2010).
Realizei uma ampla reviso de literatura em diferentes fontes de
pesquisa e pude observar que nos moldes da metodologia proposta para a tese
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nenhum trabalho ainda foi escrito, salvo um estudo considerado introdutrio e
contido na dissertao intitulada Um estudo dos estilos de pensamento biolgico
sobre o fenmeno vida (BERTONI, 2007).
Uma pesquisa sempre foi considerada, de alguma forma, XPUHODWRGHlonga viagem empreendida por um sujeito, cujo olhar vasculha lugares muitas
YH]HV Mi YLVLWDGRV (DUARTE, 2002, p. 140). Consiste, portanto, num mododiferenciado de pensar determinada realidade, mesmo que de um tempo histrico
distante, representada por outras vises de mundo, a partir da apropriao de
conhecimentos e prticas que hoje contemplam referenciais tericos e passam a
ser reorganizados por mim na tese proposta.
Alm de pensar somente no produto de realizao da tese, tenho como
tarefa relatar o processo que permitiu tal realizao. De acordo com Duarte
(2002), muitas vezes valorizamos os resultados em detrimento aos processos,
pois
como se o material no qual nos baseamos para elaborar nossosargumentos j estivesse l, em algum ponto da viagem, separado eSURQWRSDUDVHUFROHWDGRHDQDOLVDGRFRPRVHRVGDGRVGDUHDOLGDGHVHdessem a conhecer, objetivamente, bastando apenas dispor dosinstrumentos adequados para recolh-los (DUARTE, 2002, p. 140).
Segundo Duarte (op.cit.), QDGD GH DEVROXWDPHQWH RULJLQDO. Assim,procuro organizar o estado do conhecimento biolgico e delinear parte da histria
de construo e reconstruo do conceito vida, pois concordando com Fleck, na
perspectiva do seu trabalho QmR VH FKHJD D XP FRQFHLWR GH VtILOLV VHP XPDDERUGDJHPKLVWyULFD (FLECK, 2010, p. 62). No que diz respeito especificamentea este livro, afirmo conforme Fleck, de que no h possibilidade de conhecer a
respeito do conceito vida sem uma contextualizao histrica desse conceito.
Fleck examina no primeiro captulo do seu livro (FLECK, 2010), a
gnese ampla do conceito de sfilis de um longo perodo de tempo que se estende
at o fim da Idade Mdia. Para tal, ele se utilizou de um arcabouo terico
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histrico dos relatos mdicos e anatmicos do perodo do Renascimento11, bem
como materiais historiogrficos sobre a evoluo da cincia, escritos entre os
sculos XIX e XX, a fim de estabelecer o estado do conhecimento a respeito
desse conceito.
Segundo Fleck (2010, p. 62), uma iluso acreditar que a histria do
conhecimento tenha to pouco a ver com o contedo do conhecimento. Afirma ele
que SHORPHQRVWUrVTXDUWRV WDOYH]D WRWDOLGDGHGRFRQWH~GRGDV cincias socondicionados e podem ser explicados pela histria do pensamento, pela
SVLFRORJLDHSHODVRFLRORJLDGRSHQVDPHQWR. Assim, Fleck apresenta a cronologia posterior das quatro linhas de
pensamento que hoje se conectaram para formar o conceito de sfilis na primeira
metade do sculo XX. Segue afirmando:
O desenvolvimento do conceito sfilis enquanto doena especfica no concludo, nem o pode ser, pois esse conceito participa de todas asdescobertas e inovaes da patologia, da microbiologia e daepidemiologia. Seu carter passou por transformaes a partir domstico, passando pelo emprico e o patognico em geral, para terminarno predominantemente etiolgico (...). Com as transformaes doconceito sfilis, porm, surgiram tambm novos problemas e novosdomnios do saber, de modo que, na verdade, nada est encerrado. (...)'DPHVPDPDQHLUDTXHQmRH[LVWHXPWXGRQmRH[LVWHXP~OWLPRDOJRfundamental que servisse de base para o conhecimento lgico. O saber,portanto, no se baseia em nenhum fundamento. A engrenagem dasideias e verdades somente se conserva mediante um movimentoconstante e efeitos recprocos (FLECK, 2010, p. 60, 95).
O terceiro captulo do mesmo livro (FLECK, 2010), analisa a ltima fase
do desenvolvimento do conceito sfilis em meio a um estudo de caso12,
envolvendo o conhecimento dos processos que conduziram aos primeiros testes
11 Perodo longo de tempo da histria da Europa caracterizado por acontecimentos entre o fim daIdade Mdia at o incio da Idade Moderna, aproximadamente entre os sculos XIII e XVII.
12 O estudo de caso trata-se de uma estratgia metodolgica muito utilizada em pesquisas narea da sade, XPDPHWRGRORJLDDSOLFDGDSDUDDYDOLDURXGHVFUHYHUVLWXDo}HVGLQkPLFDVHPTXHo elemento humano est presente. Busca-se apreender a totalidade de uma situao e,criativamente, descrever, compreender e interpretar a complexidade de um caso concreto,PHGLDQWHXPPHUJXOKRSURIXQGRHH[DXVWLYRHPXPREMHWRGHOLPLWDGR (MARTINS, 2008, p. 11). Oestudo de caso uma das metodologias mais antigas na investigao cientfica, pois surgiu naMedicina h mais de dois mil anos, quando o mdico grego Hipcrates relacionou 14 casosclnicos (MARTINS, 2008).
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de diagnstico da sfilis, considerando o trabalho coletivo de Wassermann13 e
seus colaboradores no incio do sculo XX.
Sobre esse estudo, Fleck complementa:
Assim chegamos a uma compreenso da gnese e do desenvolvimentoda reao de Wassermann. Ela tambm se apresenta como oentrelaamento histrico e unicamente possvel do curso das ideias. (...)Nessas tentativas, sempre resta algo coercitivo, imvel e inexplicvel emsua histria evolutiva. (...) Quando se compara a descrio da histria dasfilis com aquela da reao de Wassermann, torna-se claro que, paradescrever a ltima, precisa-se de um nmero maior de expressestcnicas. Mais conhecimentos prvios, isto , mais conhecimentossugeridos por especialistas so necessrios, pois nos afastamos domundo da experincia cotidiana e entramos cada vez mais no mundo dacincia especializada (FLECK, 2010, p. 126-127, 131).
Em sntese, Fleck realiza um estudo de caso da histria da medicina e
o que diferencia das demais pesquisas na rea mdica de sua poca a
alternativa da abordagem histrica como componente da compreenso do
conhecimento sobre a sfilis, que emergiu e se desenvolveu por muitos anos.
Fleck mostra com este estudo uma fase longa de SURWR conhecimento cientficoda sfilis tomando como ponto de avano a microbiologia e a imunologia,
desenvolvidas no sculo XIX. Segundo ele mesmo relata no seu livro, a biologia o
ensinou a examinar uma rea submetida evoluo sempre em sua histria
evolutiva (FLECK, 2010, p. 62).
Na tese proposta e desenvolvida neste livro, minha preocupao est
em saber o estado do conhecimento biolgico. Esse estudo necessrio a fim de
sustentar a tese de que os estilos de pensamento biolgico sobre o fenmeno
vida, sistematizados em diferentes linhas de pensamento, se conectaram para a
emergncia do conceito atual de vida.
A escolha da temtica da tese se deve relevncia do conceito, pois
vida objeto de estudo da biologia. Estudos como esse, na contemporaneidade,
mais precisamente neste incio de sculo XXI, somados aos estudos cientficos e
tecnolgicos desenvolvidos recentemente, situam a biologia no limiar entre a
13 Neste captulo, Fleck descreve detalhes sobre o conhecido teste de Wassermann, desenvolvidopara o diagnstico da sfilis. Esse nome atribudo ao teste, ou mesmo como UHDomR GH:DVVHUPDQQ, faz referncia ao bacteriologista e higienista alemo August von Wassermann.
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cincia e a teologia. Assim, passa a ser um conhecimento que permite o dilogo
ontolgico da vida entre o fenmeno, no sentido de se ter explicaes sobre suas
causas, e o enigma, quando no se podem explicar as causas.
Sua compreenso fundamental e base para todo o entendimento dos
avanos ocorridos desde a emergncia da histria natural, em superao ao
conhecimento mtico, passando pelo processo de transformao sociocultural
para a biologia entre os sculos XVIII e XX. O termo vida, aparentemente
corriqueiro, tem longa histria de construo e reconstruo, precisando ser
compreendido segundo um nvel gradual de complexidade.
Esse processo me ensinou a pensar criticamente, a escrever e a
apresentar a tese o mais prximo da exigncia e em conformidade com padres
metodolgicos e acadmicos, uma vez que ID]HU WHVHp XPDRSHUDomRTXH VHdesenvolve arriscadamente, pois assolada, constantemente, pela ronda de
DOJXQVIDQWDVPDV (ECO, 1999, p. xi). Aprender com a prpria pesquisa significa articular o ponto de vista
histrico e o processo de conhecimento pressupondo, ao mesmo tempo, o avano
da cincia e a confirmao da prtica social. Com isso, somar esforos s
pesquisas de Umberto Eco em Como se faz uma tese (1999), superando
fantasmas e rompendo com rituais, e assim VH R ID]HU XPD WHVH p XPDimposio, norma ou lei, a tese paradoxalmente, uma atividade ldica que
apanha diversas perspectivas em contraponto, exacerba dinamicamente os
FRQWUDVWHVHQRV ID]GHVFREULUQRYDPDQHLUDGH OHURXGHYHUR MiYLVWRRX OLGR(ECO, 1999, p. xii).
1.2.1 O processo de pesquisa e o enfoque qualitativo
A finalidade, neste momento das discusses, se restringe a delinear o
foco principal da metodologia que foi utilizada e apresentar o processo de
investigao, com destaque ao enfoque qualitativo.
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Aqui comea a se caracterizar a natureza da pesquisa, que envolve no
contexto metodolgico, um estudo exploratrio, visto a necessidade de um novo
olhar sobre o conhecimento biolgico e de discutir, epistemologicamente, a
questo RTXHpvida". A proposio principal dessa pesquisa se destaca, justamente, pela
sucesso de um corpo terico, que possa contribuir para que o professor de
biologia compreenda a necessidade dessas discusses. E mais, que ele possa
perceber durante a sua prtica pedaggica, a possibilidade de integrao dos
conceitos biolgicos, via necessidade de ampliar o significado do fenmeno vida,
contextualizando-o.
A partir dessas consideraes metodolgicas iniciais, afirmo que tal
pesquisa pretende um enfoque qualitativo, que em linhas gerais pode ser
utilizado, sobretudo, para refinar as questes envolvidas na pesquisa. Apresento
como propsito geral UHFRQVWUXLU socioculturalmente a realidade, pois, regularmente, questes surgem como parte do processo de pesquisa e tal
flexibilidade permite uma mobilidade entre os estilos sistematizados, os conceitos,
as concepes externalizadas e as definies apresentadas nos livros didticos.
Segundo Mucchielli (1991),
Os mtodos qualitativos so mtodos das cincias humanas quepesquisam, explicam, analisam fenmenos (visveis ou ocultos). Essesfenmenos, por essncia, no so passveis de serem medidos (umacrena, uma representao, um estilo pessoal de relao com o outro,uma estratgia face um problema, um procedimento de deciso...), elespossuem as caractersticas especficas dos IDWRUHVKXPDQRV. O estudodesses fatos humanos se realiza com as tcnicas de pesquisa e a anlise que, escapando a toda codificao e programao sistemticas, repousam essencialmente sobre a presena humana e a capacidade deempatia, de uma parte, e sobre a inteligncia indutiva e generalizante, deoutra parte (MUCCHIELLI, 1991, p. 3).
Como sintetizam Sampieri, Collado e Lucio (2006, p. 15), DSHVTXLVDqualitativa d profundidade aos dados, a disperso, a riqueza interpretativa, a
contextualizao do ambiente, os detalhes e as experincias nicas. Tambm
RIHUHFH XP SRQWR GH YLVWD UHFHQWH QDWXUDO H KROtVWLFR GRV IHQ{PHQRV DVVLPFRPRIOH[LELOLGDGH.
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1.2.2 O universo de pesquisa
Prosseguindo, com fins de organizao apresento o processo de
investigao, comeando pela descrio do universo de pesquisa. De modo geral,
o universo de pesquisa sistematizado a partir da elaborao da questo
problema. A seguir, apresento o objeto de pesquisa da tese expresso na seguinte
pergunta que passa a compor o problema de pesquisa:
- Quais os estilos de pensamento que, historicamente, predominaram e
contriburam para a emergncia de concepes histricas de vida?
Com o modelo evolucionrio de desenvolvimento dos estilos de
pensamento possvel compreender os avanos no conhecimento biolgico
sobre o fenmeno vida. Esse modelo fundamenta o entendimento da gnese
ampla do conceito vida desde a antiguidade at a contemporaneidade, permitindo
elucidar determinadas concepes de vida e a elaborao do conceito atual de
vida.
Antes, porm, mais esclarecimentos sobre o processo de realizao da
pesquisa. Toda pesquisa, no entanto, carece de definies referentes ao objeto a
ser investigado. As definies do objeto de pesquisa, bem como a opo
metodolgica, dizem respeito, entre outras coisas, capacidade de optar pela
escolha metodolgica mais adequada e constitui um processo to importante
quanto o texto de tese elaborado ao final do processo de pesquisa
(DUARTE, 2002).
A opo pela delimitao do objeto de pesquisa envolve, na maioria
das situaes, uma unidade de anlise e engloba a definio do marco terico.
Tal delimitao se apresenta com caractersticas mais flexveis, envolvendo no
somente pessoas, mas no caso o dilogo estabelecido com os sujeitos autores,
com suas produes tericas e tambm FRQWH[WRVHYHQWRVRXIDWRVVHPTXHQHFHVVDULDPHQWH VHMD UHSUHVHQWDWLYR GR XQLYHUVR (SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2006, p. 252).
Quanto seleo dos referenciais estudados e a definio do marco
terico, concordo que p VHPSUH LPSRUWDQWH YLVLWDU R SDVVDGR SDUD FRQVWUXLU RSUHVHQWHHYLVXDOL]DUR IXWXUR (SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2006, p. 52). Em
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Rsen (2001), ter conscincia histrica a respeito da produo e disseminao do
conhecimento biolgico e das concepes de vida elaboradas historicamente,
refora a ideia de se retornar ao passado para se agir no presente e, assim,
construir o futuro.
Alm do objetivo de saber como ocorreram as interpretaes do
fenmeno vida e os estudos a respeito do conceito vida, conveniente obter
estudos anteriores a partir de referenciais tericos bibliogrficos e documentais,
que possam ser teis frente ao problema em estudo. E, conforme destacam
Sampieri, Collado e Lucio (2006, p. 52), GHVFDUWDU a priori qualquer esforo prviode conhecimento pode ser um grave erro. Portanto, sempre haver pesquisas
anteriores com as quais discordamos de sua elaborao, enfoque, mtodo ou
GHVHQYROYLPHQWR. Conforme Gil (2008), o elemento mais importante do enfoque
qualitativo na fase de delineamento a leitura, a captao e a organizao das
informaes impressas, a fim de sustentar teoricamente o estudo e a elaborar o
marco terico. Isso sugere uma reviso de literatura e consequente e/ou
concomitante desenvolvimento de uma perspectiva terica, que implica em
DQDOLVDU H H[SRU DV WHRULDV RV HQIRTXHV WHyULFRV DV SHVTXLVDV H RVantecedentes em geral, considerados vlidos para o correto enquadramento do
HVWXGR (SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2006, p. 52).Entendo, alm disso, que a reviso de literatura consiste em identificar,
obter e consultar a bibliografia e outros materiais documentais, que sejam teis a
extrair e reorganizar as informaes relevantes e necessrias ao problema de
pesquisa, seja em fontes primrias, secundrias e/ou tercirias. Sampieri, Collado
e Lucio (2006, p. 54) complementam que essa reviso deve ser seletiva, SRLVDcada ano, em diversas partes do mundo, milhares de artigos so publicados em
revistas, jornais, livros e outros tipos de materiais QDViUHDVGHFRQKHFLPHQWR. A pesquisa bibliogrfica, realizada de modo independente ou
conjugada a parte de outra investigao, alm de fundamental em qualquer
trabalho de pesquisa, passa a ser basilar na tese proposta neste livro. O
conhecimento, ainda em processo de desenvolvimento, guarda estreita relao
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com o modelo de pesquisa documental em materiais, que geralmente no
receberam ainda um tratamento analtico (GIL, 2008).
O estudo do objeto proposto para esta tese est relacionado com a
demarcao histrica dos estilos de pensamento biolgico, um estudo histrico-
epistemolgico, a fim de compreender o carter histrico e o entrelaamento
sociocultural do conceito vida. Deste modo, a unidade bsica de pesquisa trata-se
de contextos, de situaes historicamente condicionadas e que permitem hoje a
elaborao do estado do conhecimento a respeito da gnese e do
desenvolvimento do conceito vida.
A mais importante vantagem desse encaminhamento consiste em
permitir compreender a complexidade de elementos envolvidos ao explorar a
histria da biologia, dentre tantas outras histrias culturalmente compostas, afinal,
conhecer os fatos do passado torna-se difcil tendo que assegurar incoerncias e
contradies ao utilizar fontes diversas. Sendo assim, neste trabalho, procuro
compreender como se deu a gnese ampla do conceito vida e o processo de
desenvolvimento cientfico desse conceito, concomitante ao processo de
cientificizao do conhecimento, com vistas ao estado do conhecimento na
concepo dos estilos de pensamento propostos nas ideias de Ludwik Fleck
(2010).
Alm da reconstruo histrica do conceito sfilis, Fleck (2010) analisa,
com mais detalhes, a ltima fase do desenvolvimento desse conceito, no seu
tempo histrico, ressaltando que R WUDEDOKR FROHWLYo de Wassermann e seuscolaboradores no incio deste sculo, conduziu aos primeiros procedimentos de
WHVWHGLDJQyVWLFRGDVtILOLV (SCHFER; SCHNELLE, 2010, p. 15).Tanto na parte histrica como na parte da vivncia do fato cientfico em
desenvolvimento, Fleck faz uma anlise epistemolgica, no centro da qual se
encontram os condicionamentos histricos do conhecimento e torna clara no s
tal estrutura coletiva e sociolgica do saber, bem como a sua relao com fatores
externos.
Segundo Schfer e Schnelle (2010, p. 15), para a reconstruo do
conceito de conhecimento, mesmo sem uma instrumentria disponvel, )OHFNprocura desenvolver, junto da jovem sociologia do conhecimento e da
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etnossociologia, um esquema conceitual correspondente que sirva para a
generaOL]DomRGHVHXUDVFXQKRREWLGRGRHVWXGRGHFDVRPpGLFR. A seguir, prossigo com as etapas do processo de investigao e
apresento, com mais detalhes, o trabalho de Fleck sobre estado do conhecimento
e a relao com a tese proposta. A defesa simples, pois nenhuma pesquisa nos
dias atuais, na concepo de cincia pretendida, comea totalmente do zero.
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2. LUDWIK FLECK E A EPISTEMOLOGIAEVOLUCIONRIA
(...) Em primeiro lugar, provvel que no existam erros completos nemtampouco verdades completas. (...) Em segundo lugar, querendo ou no, no conseguimos deixar para trs o passado com todos os erros. Elecontinua vivo nos conceitos herdados, nas abordagens de problemas, nas doutrinas das escolas, na vida cotidiana, na linguagem e nasinstituies. No existe gerao espontnea dos conceitos; eles so, porassim dizer, determinados pelos seus ancestrais. O passado muitomais perigoso, isto , s perigoso quando os vnculos com elepermanecem inconscientes e desconhecidos (FLECK, 2010, p. 61-62).
Neste tpico, apresento um resumo da vida e do trabalho de Ludwik
Fleck, a fim de compreender a gnese e o desenvolvimento de suas ideias.
Abordo suas proposies da epistemologia evolucionria no contexto
da teoria da cincia, a respeito da produo coletiva do conhecimento cientfico,
que se desenvolveu a partir da abordagem de um estudo de caso da histria da
medicina, relacionado ao desenvolvimento do conceito de sfilis.
Fleck utiliza a ideia de teoria comparada do conhecimento para fazer
um estudo de caso sobre a sfilis. Esse epistemlogo dos casos mdicos
identifica, desde a antiguidade at a contemporaneidade, compreenses distintas
sobre o desenvolvimento do conceito de sfilis e as diferentes formas de
enfrentamento dessa doena. Delizoicov (2007) afirma que Fleck realizou um
corte diacrnico ao longo da histria identificando ali trs concepes e
tratamentos da sfilis, que passa a chamar de estilos de pensamento.
O conceito estilo de pensamento, junto ao coletivo de pensamento,
formam os pilares da tese epistemolgica proposta por Fleck e so centrais para
a compreenso de sua abordagem. Alm desses, Fleck (2010) contextualiza
outros conceitos tambm importantes para a sua tese, dos quais aponto: fato, pr-
ideia, comunicao (circulao) intra-coletiva e inter-coletiva, conexes ativas e
passivas, coero de pensamento e harmonia das iluses. Nesse momento,
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dialogo mais sobre o conceito estilo de pensamento, de modo que, sua
proposio e a tese dos estilos de pensamento biolgico para as concepes que,
historicamente, predominaram no modo de compreender o fenmeno vida, fiquem
elucidadas.
Alm de comportar uma viso de mundo, o estilo de pensamento
agrega elementos que o configuram e podem ser identificados em vrias
passagens do livro (FLECK, 2010). Dentre esses destaco:
x O estilo de pensamento abrange a linha evolutiva e o estado do conhecimentoque marcam a histria de um domnio do saberEle consiste em numerosaslinhas de desenvolvimento das ideias que se cruzam e se influenciam
mutuamente e que, primeiro, teriam que ser apresentadas como linhas
FRQWtQXDVHVHJXQGRHPVXDVUHVSHFWLYDVFRQH[}HV (p. 55-56).x O estilo de pensamento corresponde ao estado do conhecimento que
estruturador das conexes entre sujeito e objeto, e est em progressiva
transformao.
x O estilo de pensamento envolve um conhecimento acumulado historicamentee significador de conceitos, apresentando no seu contexto uma linguagem
especfica e o uso de determinados termos tcnicos.
x O estilo de pensamento compreende o desenvolvimento histrico e gradativode um campo do conhecimento, configurando o estado do conhecimento,
atrelado descendncia de muitos elementos da histria cultural.
x O estilo de pensamento satisfaz um sistema fechado de crenas, comestrutura definida, que resiste tenazmente a tudo o que o contradiz,
emergindo, assim, uma espcie de harmonia das iluses.
x O estilo de pensamento conforma algo que molda a formao frente aocomplexo processo de desenvolvimento intelectual e de conceber problemas.
x O estilo de pensamento permite que elementos tericos e prticosinterpenetrem-se e passa a ser PDUFDGR SRU FDUDFWHUtVWLFDV FRPXQV GRVproblemas, que interessam a um coletivo de pensamento; dos julgamentos,
que considera como evidentes e dos mtodos, que aplica como meios do
FRQKHFLPHQWR (p. 149).
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x O estilo de pensamento consiste numa determinada atmosfera (atitude,contexto, situao) e sua realizao (atitude que se realiza), com disposio
para um sentir seletivo e para um agir direcionado e correspondente, a qual
gera formas de expresso adequadas conforme a predominncia de certos
motivos coletivos.
No meu entendimento, tal abordagem epistemolgica passa a ser mais
coerente para a compreenso de como se deu o processo contnuo de produo
e comunicao, pelo menos em parte, da totalidade do conhecimento biolgico.
2.1 VIDA E TRABALHO
Na introduo da verso em espanhol14 do livro publicado em 1935, os
pesquisadores alemes, o filsofo Lothar Schfer e o socilogo Thomas Schnelle
apresentaram uma biografia de Ludwik Fleck, a qual permanece na verso em
portugus publicada em 2010. Outros autores tambm organizaram algo a
respeito e apresentam um referencial biogrfico desse epistemlogo, dentre eles
Lwy (1994a; 1994b), Bombassaro (1995), Douglas (1998), Backes (2000),
Cutolo (2001), Delizoicov (2002), Pfuetzenreiter (2003), Parreiras (2006),
Delizoicov (2007), Cond (2010) e, mais recentemente, Bertoni (2007; 2012).
Schfer e Schnelle (2010, p. 10) afirmam que Fleck, apesar da
formao em medicina, mantinha uma vida ativa de leitura em filosofia, histria e
sociologia da cincia,
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