histÓria nas imagens arquitetura de …“ria nas imagens arquitetura de duas instituiÇÕes...
Post on 20-Nov-2018
228 Views
Preview:
TRANSCRIPT
HISTÓRIA NAS IMAGENS ARQUITETURA DE DUAS INSTITUIÇÕES
ESCOLARESi PARA CRIANÇAS PEQUENAS EM FLORIANÓPOLIS
Adriana de Souza Broering - Udescii
(adrianabroering@gmail.com)
RESUMO
O presente artigo apresenta e analisa duas imagens de instituições escolares edificadas
no município de Florianópolis: uma construída no final do século XIX, para receber a
elite da cidade; a outra, na década de 1970, para atender às crianças pequenas das
famílias pobres. Tem por objetivo investigar a história da educação infantil pública no
município, interpretando a cultura material escolar. Reflete sobre os dois
encaminhamentos e oferece uma análise da arquitetura e dos espaços escolares como
caminhos para uma investigação da história da educação. Pelas imagens, apresenta a
Vista Panorâmica da Capela e do Colégio Coração de Jesus no início do século XX e a
Vista da Capela de Santo Antônio e Maria Gorete, em 1976. Dá relevância às
fotografias e as considera documentos, evidenciando suas potencialidades na
investigação, organização e compreensão acerca da cultura material escolar desses
períodos. Destaca fronteiras percebidas nos dois tipos de atendimento. O do Colégio
Coração de Jesus, como a primeira instituição particular de Florianópolis a oferecer
educação para crianças pequenas das classes mais favorecidas, com a abertura do jardim
de infância em 1914. A imagem permite perceber a suntuosidade da construção: parece
"um castelo", e, por essa linguagem não-verbal, remete a valores e significados
simbólicos mais ou menos aparentes. A segunda imagem – a da velha igreja de madeira,
adaptada para ser um novo espaço educativo – acolhe o nascimento da primeira
instituição pública de educação infantil do município de Florianópolis, no bairro
Coloninha, para atendimento de classes populares. Imagem que à primeira vista
impacta, mas atende à recomendação do aproveitamento de espaços ociosos da
comunidade prescrita no documento Educação Pré-Escolar: uma nova perspectiva
nacional, publicado pelo MEC em 1975, por ocasião da implantação da educação pré-
escolar em massa no Brasil. Embora nas fotos as imagens sejam contrastantes, as
histórias dessas duas instituições se cruzam quando o Colégio Coração de Jesus forma
as primeiras professoras e a coordenadora que irão compor, em 1976, o quadro inicial
para trabalhar na educação infantil pública do município. Na sequência, o artigo
também reflete sobre os tipos de construção, espaço e materiais oferecidos na rede
municipal para atender institucionalmente às infâncias. Destaca que, diferentemente das
professoras que trabalhavam no “castelo”, as novas professoras da rede pública teriam
que ajudar a “construir um castelo” para as crianças pobres na velha igreja de madeira,
adaptada para ser o seu “novo” espaço educativo. As imagens estabelecem a relação
entre rede particular e rede pública em seus inícios. Ao cruzar outras fontes,
evidenciam-se, numa e noutra, os propósitos que as orientavam. Por fim, questiona se
essas escolhas repercutiram no atendimento prestado às crianças e se as construções, as
de ontem e as de hoje, permitem ver as concepções de infância constituídas histórica e
socialmente.
Palavras-chave: Instituições Escolares. Arquitetura e espaço escolar. Criança.
2
1 INTRODUÇÃO
O campo da pesquisa histórica, desde a década de 1950, tem passado por um
grande processo de renovação teórica e metodológica. Com outra abordagem dos
aspectos da realidade social, a história passa a ser vista como um campo que deve
abranger diferentes aspectos da existência humana – social, econômico, político,
cultural, educacional. Talvez a maior contribuição desse momento tenha sido a de
colocar em xeque a ideia de que a história produzia verdades e saberes absolutos.
A história cultural, como nova vertente, ganha espaço nas últimas décadas do
século XX. Na abordagem dos eventos, procura dar relevância também aos aspectos
subjetivos que compõem a realidade de um sujeito ou de um tempo histórico,
privilegiando objetos, domínios e métodos bem diferentes, envolvendo temáticas
ligadas ao cotidiano, à micro-história, às sensibilidades, ao imaginário e às
representações. Desdobramentos que motivaram os estudos em história da cultura
escolar, compreendida por Frago (1995)iii
como conjunto de práticas e condutas, modos
de vida, hábitos e ritos, objetos materiais e modos de pensar, assim como significados e
ideias compartilhadas.
Com os estudos da cultura escolar, a renovação na área e a preocupação
crescente dos historiadores em relação às fontes de pesquisa e da memória educacional,
definiu-se um domínio que será próprio da cultura material escolar. A essa área vai
interessar os artefatos, as edificações, o mobiliário, os materiais didáticos, os recursos
audiovisuais, as novas tecnologias relacionadas à educação escolarizada, como
“também a intrínseca relação que os objetos guardam com a produção de sentido e com
a problemática da reprodução social” (SOUZA, 2007, p. 170).
No diálogo com os referenciais aqui indicados, é importante observar o que esse
espaço ocupado social e culturalmente por um grupo de adultos e crianças indica, ao
compreender o espaço como “um constructo cultural que expressa e reflete, para além
de sua materialidade, determinados discursos” (ESCOLANO, 1998, p. 26). Pelo mesmo
motivo, a pesquisa sobre as instituições escolares se caracteriza como importante
estratégia para estudar a história e a filosofia da educação, uma vez que estão
impregnadas pelos valores da cada época. A arquitetura e o espaço escolar definido a partir
de concepções, leis, decretos e demais atos normativos, bem como as apropriações,
3
carregam uma linguagem que, justamente por seus múltiplos usos, assumem diferentes
significados e sentidos ao longo dos tempos (BENCOSTTA, 2007).
1.1 HISTÓRIA DA INFÂNCIA: INSTITUIÇÕES PARA CRIANÇAS RICAS E
POBRES
A partir da mudança de percepção que a sociedade veio desenvolvendo acerca
da criança e sua infância, passa-se a entender que a escola destinada aos pequenos
deveria ser diferente daquela destinada às outras crianças e aos adultos. Nesse processo,
a Educação Infantil, como modalidade de atendimento, nasce na Europa somente na
metade do século XIX. No Brasil, a educação das crianças pequenas surgiu no final do
século XIX, com a criação dos jardins de infância, marcadamente para atender às
classes abastadas. Tizuko Kishimoto (1988, p. 91) ao escrever sobre estas instituições
afirma que a gênese da Educação Infantil brasileira se volta para o atendimento às
crianças de classes mais favorecidas, que tinham acesso a um programa de caráter
pedagógico e educacional que vinha ao encontro dos discursos de civilidade da época e
das necessidades de modernização da escola.
Foi assim que o modelo europeu dos jardins de infância, criado por Froebeliv
,
acabou destinado às crianças das classes mais favorecidas no Brasil. As crianças das
classes populares só tiveram acesso a ela com a criação das creches, no século XX, em
instituições com a finalidade de atender a uma clientela bastante diferenciada, filhos da
classe trabalhadora e desassistidos econômica e socialmente (FARIA, 1997). No
percurso do cuidado com as crianças pequenas, como estratégias para “salvar” as
crianças carentes, também tivemos os asilos e a roda dos expostos, que por mais de um
século foi a única instituição de assistência à criança abandonada. Este tipo de
atendimento se prolongou até meados de 1950. Por meio da roda dos expostos, um
número significativo de creches foi criado por conta de organizações filantrópicas, com
enfoque no cuidado e na guarda das crianças (OLIVEIRA, 2002). O assistencialismo, de
acordo com Kuhlmann Jr. (2005), tem-se configurado como concepção ou proposta
educacional desde a constituição das instituições destinadas à infância pobre.
Observa-se que a institucionalização desse tipo de educação e para esse público
é constituída por muitas histórias. Seja em nível mundial, nacional, municipal ou nos
4
espaços educativos, cada experiência, estando elas interligadas ou não, são histórias que
vão ajudando a compor, como “quadros”, uma imagem. Grandes ou pequenas ações e
projetos, determinações legais, diretrizes governamentais, programas educacionais, são
também formas e matizes, conteúdos, enfim, que entram naquela imagem. Fazem parte
da história!
Pode-se pensar em uma imagem que vai sendo construída em diferentes tempos
e espaços, por várias mãos, uma vez que a trajetória histórica da educação infantil vai
sendo composta com a participação de todos - desde governantes até a sociedade civil,
dos trabalhadores da educação aos teóricos da área. Incluam-se nessa imagem tanto as
histórias dos sujeitos quanto toda a materialidade requerida pelo processo, uma vez que
os materiais para uso escolar são observados como importantes instrumentos de ensino
e aprendizagem há bastante tempo. Já os textos de Comenius, no século XVI, indicavam
tal preocupação. Neste sentido, podem-se destacar, no século XVIII, a invenção da
lousa e a utilização de novos artefatos no ensino mútuo. Já no século XIX destacam-se a
construção de prédios escolares, o surgimento de moderno mobiliário escolar e novos
materiais de ensino. A partir do século XIX, potencializa-se o processo de constituição
dos sistemas nacionais de ensino. Com o desenvolvimento do capitalismo, há uma
ampliação e proliferação diferenciada dos materiais de ensino, juntamente com uma
moderna pedagogia (SOUZA, 2007).
1.2 COMPONDO A CENA: IMAGENS QUE CONTAM HISTÓRIAS
Como já sinalizado, a institucionalização da infância é composta por histórias
não-lineares, constituídas em diferentes tempos e espaços. As questões que envolvem
tal trajetória nos levam a pensar que, para além das histórias macro, há pequenas
histórias e sem considerar cada uma delas, não seria possível constituir uma história
dessa área.
As imagens fotográficas do universus scholaris, utilizadas como fonte de
pesquisa histórica das instituições educacionais, “têm demonstrado potencial analítico
suficiente para colaborar na busca e organização de compreensões e explicações acerca
da cultura escolar manifestada nos ambientes em que ela interage” (BENCOSTTA,
2002, p. 24). Trata-se de um instrumento relativamente novo como fonte de
5
investigação para a história. Ainda são poucos os estudos preocupados com a história e
a memória através das imagens, embora algumas pesquisas na História da Educação, no
desafio para a reconstrução de memórias, venham associando as imagens, como fontes
de pesquisa, aos documentos textuais, orais, arqueológicos e arquitetônicos.
Ultrapassando seu aspecto ilustrativo, essa fonte nos ajuda a olhar através das
imagens, pois, como afirma Ana Maria Mauad (2004, p. 22), parafraseando Jacques Le
Goff, cabe “considerar a fotografia, simultaneamente, como imagem/documento e como
imagem/monumento”.
As imagens apresentadas nesse artigo foram recolhidas em diferentes arquivos.
A figura 1, obtida em pesquisa realizada na internet, apresenta uma tomada panorâmica
de um conceituado colégio situado no centro da cidade. A figura 2, “garimpada”,
segundo suas próprias palavras, pela professora Luciana Ostetto nos arquivos do jornal
O Estado, está disponibilizada no livro Educação Infantil em Florianópolis, 2000.
Teremos, nas duas imagens capturadas, outros ângulos, novas interpretações e a
possibilidade de refletir sobre as realidades vividas por duas diferentes infâncias no
município de Florianópolis. Acreditamos que, cruzadas com outras fontes, possam
fornecer pistas para pensar em que medida a história que elas ajudam a contar pode
contribuir para a construção das concepções sobre os sujeitos envolvidos e para
compreender a trajetória da educação das crianças pequenas no referido município.
Considerar as relações entre a arquitetura das instituições educativas e as classes
sociais a que se destinam pode elucidar fatos, tanto sobre as políticas educacionais
quanto sobre as concepções que teriam contribuído para a efetivação e/ou para a
alteração na forma da estrutura física oferecida. Caberia avaliar em que medida essa
arquitetura pode influenciar na constituição bio, psicossocial, cultural e educacional dos
sujeitos envolvidos. O que teria motivado o aparecimento de um e de outro formato são
fatos que passaremos a observar na continuidade da presente reflexão.
Fundado no final do século XIX pela Congregação das Irmãs da Divina
Providência, o Colégio Coração de Jesus está situado, desde 1898, no centro da cidade
de Florianópolis, representado por uma imponente obra arquitetônica. “Tratava-se de
uma instituição destinada à formação das elites e dirigida por freiras de ascendência
germânica, que traziam da Alemanha vasta experiência na educação de jovens e de
meninas” (GARCIA, 2007, p. 113). Ao longo dos anos, o colégio expandiu-se, tanto na
estrutura física quanto pedagógica, e transformou-se em um dos mais importantes
6
estabelecimentos escolares de Santa Catarina, inclusive incorporando as funções de
Curso Normal - equiparado à Escola Normal Catarinense em 1919 -, formando a
primeira turma de normalistas em 1921 (BOPPRÉ, 1989).
Figura 1: Vista Panorâmica da Capela e do Colégio Coração de Jesus, no início do século XX
Fonte: Disponível em: http://floripendio.blogspot.com/2010/05/florianopolis-antigo.html Acesso em: 5
jul. 2011
Chama a atenção, na imagem, a suntuosidade da construção. Ela, de fato,
corresponde à preocupação da época, pois, no Brasil, a partir da segunda metade do
século XIX, há uma preocupação com um lugar ou espaço específico para a construção
de escolas. Na imagem, destaca-se a imponente arquitetura, situada em área alta, que se
destaca na paisagem da cidade. Se olharmos sem a devida contextualização, a imagem
poderia muito bem corresponder à representação de um castelo, mas é uma instituição
de ensino.
Sabemos que toda construção é portadora de uma identidade arquitetônica que
comunica, traz mensagens. Tanto a arquitetura quanto sua localização podem compor
elementos portadores de discursos. Também a arquitetura escolar tem sido observada
por seu discurso material, por essa linguagem não-verbal que transmite hierarquias,
valores, significados simbólicos mais ou menos aparentes (VINÃO, 2005). Seria a
mensagem desta instituição que atendia às camadas mais abastadas da sociedade? Quem
olha vê um lugar nobre. A pergunta, lógica, é sobre a relação: haveria relação entre
lugar nobre e função nobre para pessoas nobres?
7
Este colégio foi a primeira instituição da cidade, com a abertura do jardim de
infância em fevereiro de 1914, a oferecer educação a crianças pequenas de 4 a 7 anos.
Em alguma medida, cerca de 40 anos após a criação inicial no Rio de Janeiro, aqui
também nasce o jardim de infância, que não foge à sua origem, voltado ao atendimento
das crianças de classes mais favorecidas, seguindo o mesmo caráter pedagógico e
educacional.
Já a educação infantil pública teve aqui início no ano de 1976, com a criação do
Projeto Núcleos de Educação Infantil, pelo Departamento de Educação da então
Secretaria de Educação, Saúde e Assistência Social (Sesas).
A “nova escola” nasceu numa velha igreja cedida para atender às crianças
pequenas da periferia. A velha igreja de madeira, adaptada para ser um novo espaço
educativo, acolhe o nascimento da primeira instituição de educação infantil do
município de Florianópolis, o Núcleo de Educação Infantil – NEI –, no bairro
Coloninha, situado no continente.
Figura 2: Vista Frontal da Capela de Santo Antônio e Maria Gorete em 1976
Fonte: Ostetto, 2000 (contracapa).
8
Vemos, ao fundo, uma construção de madeira com duas janelas pequenas na
parte superior e uma porta bem no centro da edificação. Há uma cruz fixada no centro,
no ponto mais alto do telhado. Na frente dessa construção, há crianças pequenas
brincando - ao que tudo indica – livremente, em um “tanque de areia” sob a observação
de um adulto.
Tomamos como ponto de partida, para a análise, a presença da cruz que, mesmo
não sendo muito grande, marca a posição do fotógrafo em mantê-la no enquadramento
da sua máquina na hora do registro, e que o espaço, mesmo não sendo mais o de uma
igreja, mantém afixada a cruz. O detalhe nos remete ao conceito de punctum de Barthes
(1987). Para o autor punctum é aquilo que desperta a subjetividade sem uma explicação
palpável, neste “extracampo sutil” podemos afirmar que a cruz chama a atenção.
Mesmo sem um motivo específico, o olho é atraído para a pequena cruz. Por que ela nos
toca?
Fernando Azevedo (1943, p. 244) ao afirmar que a cultura brasileira é construída
sob a égide da cultura católica destaca que a religião teve, no período colonial, uma
influência sem dúvida preponderante, e quase exclusiva, na organização do sistema de cultura
que, tanto no seu conteúdo como nas suas formas e instituições, acusa fortemente essas relações
de estreita dependência entre cultura e religião .
Ainda na década de 1970, essa intrínseca ligação continuava explícita no
município de Florianópolis, tanto porque foi a igreja católica, através da Congregação
das Irmãs da Divina Providência, que conduziu a formação das professoras contratadas
para trabalhar na educação infantil, quanto por ter cedido o espaço ao poder público,
“temporariamente, mediante pagamento simbólico”, para o atendimento das crianças
(OSTETTO, 2000, p. 48). Desta forma, é possível constatar que a educação infantil no
município de Florianópolis ainda estava, naquela época, imbricada com uma cultura
cristã. Não se trata de avaliar, neste momento, se isso foi importante ou não; trata-se tão
somente de constatar que esse período histórico teve essa marca.
Ao observar a imagem, percebemos que há múltiplos caminhos para entendê-la,
sendo preciso, antes de tudo, considerar sua vinculação com o contexto sócio, político,
cultural e pedagógico do período. Para tanto, quando se investiga a expansão das
creches e pré-escolas no Brasil, outros dados precisam ser considerados. Como aponta
Zilma de Oliveira, (2002), não se podem desconsiderar fatores como a crise do regime
9
militar, o crescimento urbano, a participação crescente das mulheres no mercado de
trabalho e a reconfiguração do perfil familiar.
Hoje, olhar para esta imagem pode causar certo estranhamento, mas o
aproveitamento desse tipo de espaço – “lugares ociosos da comunidadev – era
estimulado pelo então Ministério da Educação e Cultura (MEC), já que, além de ociosa,
a estrutura física era considerada suficiente para atendimento de crianças em idade pré-
escolar, cumprindo o que propunha a nova perspectiva nacional para a educação pré-
escolar (MEC, 1975, p. 13-14) de utilizar sempre os espaços físicos disponíveis na
comunidade, evitando a construção de prédios específicos.
Acompanhando a trajetória do Brasil, que na década de 1970 vivia uma rápida
expansão dessa cobertura e o discurso corrente era o de encontrar soluções a curto prazo
para os problemas da infância, como podemos observar, a orientação foi recebida e
posta em prática em Florianópolis.
Acreditamos que tais práticas, em muitos sentidos, são encaminhadas pelas
condições materiais apresentadas. Assim, concordamos com Rosa Fátima de Souza
quando enfatiza que “o estudo histórico dos materiais pode ser um instrumento valioso
para decifrar a cultura escolar” (2007, p. 179).
1.3 ONDE AS DUAS HISTÓRIAS SE CRUZAM
O Colégio Coração de Jesus, primeira instituição de Florianópolis a oferecer
educação a crianças pequenas no município, também formava professores. Ostetto
(2000, p. 45) aponta o lugar de destaque do referido colégio em relação à formação de
professores na década de 1970:
Ao que tudo indica, é conveniente ressaltar, o Colégio Coração de
Jesus era uma referência forte em termos de educação privada no
município e, portanto, frequentar seu curso magistério, praticamente o
único de Florianópolis, colocava em evidência as alunas que nele se
formavam.
A pesquisadora ainda destaca outra “novidade”, oferecida por essa instituição,
um curso de férias, portanto, não-regular, que formava para a educação pré-escolar já na
década de 1960. Na década de 1970, época da criação da Rede Municipal de Educação
10
Infantil (RMEI), o Colégio Coração de Jesus já era referência na formação de
professoras.
O colégio, que se destaca na paisagem, na vida social e cultural da cidade
atendendo às crianças das famílias mais abastadas, forma também as primeiras
professoras e a coordenadora que vão compor o quadro inicial para trabalhar na
educação infantil pública do município. Este fato era tão relevante, na época, que, ao
noticiar a criação de um espaço para atender a crianças carentes, o jornal O Estado, do
dia 22 de fevereiro de 1976, esclarece que “a elaboração do projeto contou com a
colaboração da professora Telma de Souza, que trabalhava no Colégio Coração de
Jesus” (OSTETTO, 2000, p. 45).
Ostetto (2000) traz indicativos de que o livro “Vida e Educação no Jardim de
Infância”,vi
de Heloisa Marinho, era utilizado no Colégio Coração de Jesus. Embora o
livro não fosse referenciado no projeto de 1976 da Secretaria de Educação, Saúde e
Assistência Social (Sesas), em entrevista, a coordenadora da educação infantil do
município cita o livro que, segundo suas palavras, “era a nossa Bíblia” (p. 110).
Com isso, vamos constatando que tanto as professoras que trabalhavam no
Colégio Coração de Jesus, quanto as que de lá saíram para trabalhar com as crianças
dessa nova rede municipal tiveram a mesma formação. As semelhanças param por aí.
Enquanto “no castelo” as professoras trabalhavam com as crianças ricas, as novas
professoras da rede teriam que ajudar a “construir um castelo” para as crianças pobres,
na velha igreja de madeira, adaptada para ser o seu “novo” espaço educativo.
Não é por acaso que já naquela época a história apresenta um dualismo
demarcado entre rede pública e rede particular. Considerando os encaminhamentos do
governo federal nesse período, o tipo de estrutura física apresentada na segunda imagem
era considerado “suficiente”, para atender às crianças em idade pré-escolar, à vista dos
termos do documento referido, que expressamente visa, entre outros objetivos, diminuir
de modo significativo as despesas do programa, além de permitir o mais rápido início de
sua implantação.
É preciso transitar pela história da educação para compreender e, quem sabe, a
partir daí, trazer novos significados e perspectivas para o cenário atual da educação; por
isso, é importante estudar as determinações legais e os encaminhamentos adotados na
implantação dessa rede.
11
Em alguma medida, a trajetória da rede pública de educação infantil do
município de Florianópolis (RMEI) não foge ao fluxo seguido pela história da educação
infantil no Brasil. As orientações eram de que os recursos financeiros alocados para
despesas de capital seriam mais bem aplicados na adaptação de prédios e em sua
ampliação, de acordo com o documento (BRASIL, 1975, p. 13 e 14), determina que, se
algumas construções fossem necessárias, deveriam caracterizar-se pela simplicidade e
funcionalidade.
Aplicadas as orientações à velha igreja, nada mais pareceu necessário, no
propósito do atendimento, além da reorganização do espaço físico. Mesmo assim, há
outros dados já levantados que indicam que a rede de Educação Infantil da Prefeitura
Municipal de Florianópolis se diferencia, no cenário nacional, desde o projeto inicial de
sua criação, por dois aspectos bastante significativos: primeiro, por sua vinculação
direta à Secretaria de Educação;vii
segundo, apontado por Ostetto (2000), pelo fato de os
profissionais contratados serem professoras por formação. Deve-se considerar também
que naquele período ainda não havia uma legislação que assegurasse os direitos das
crianças – reconhecendo-as como cidadãs de direitos –, conquistas legais estabelecidas
pela Constituição Federal de 1988viii
.
A intenção de atender na velha igreja era “salvar” as crianças carentes, mas cabe
evidenciar que, no que tange a origem, regulamentações legais, diretrizes, currículos e
programações, o edifício, ainda que aparentemente precário, tenha “inicialmente
cumprido com a função primordial de atendimento às crianças chamadas „carentes‟,
guardando-as e alimentando-as enquanto suas mães trabalhavam fora do lar”
(OSTETTO, 2000, p. 28).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É necessário olhar a educação como fenômeno complexo, e procurar
contextualizar os encaminhamentos, inter-relacionando-os às realidades políticas,
econômicas, socioculturais do tempo. A história da educação é construída por escolhas e
pelos saberes dos sujeitos que a produzem. Colocamos aqui, em perspectiva, a análise
sobre o início da história da Educação Infantil em Florianópolis, embora reconheçamos
não existir uma única história. Ela será sempre uma representação do passado contada e
12
lida a partir de objetivos, princípios, concepções, critérios, escolhas do sujeito que a
escreve.
Considerando os dois registros imagéticos, embora não possam por si só
expressar os acontecimentos, puderam alavancar reflexões acerca do tema. Acreditamos
que também contribuíram para pensar em que medida a arquitetura oferecida às crianças
tenha contribuído para a construção das concepções de educação, de sociedade, de
mundo para estes sujeitos de pouca idade. A cultura material escolar não deixa de ser
uma importante ferramenta teórica que permite vislumbrar tensões, contradições e
inovações presentes na relação entre sociedade, cultura, política, educação.
Outra reflexão possível é a de que todas as ações realizadas com as crianças,
para elas e junto com elas, devem ser consideradas num projeto educacional, pois tudo,
dentro de um espaço educacional, educa e imprime uma identidade, tanto a partir dos
sujeitos envolvidos, quanto da cultura escolar estabelecida. Desta forma, fica
evidenciado que uma construção pobre, em recursos e em estrutura física, não é um
espaço ideal para educar crianças. Que, independente das classes econômicas a que
pertençam, as crianças merecem e precisam ter condições dignas para viver suas
infâncias. Constamos, igualmente, que, embora a rede municipal tenha iniciado sua
trajetória seguindo encaminhamentos nacionais, tomou algumas decisões bastante
significativas que podem ter influído nessa história.
Inegavelmente, muito já se caminhou, mas, apesar de toda a trajetória de lutas da
sociedade civil, dos estudos específicos para a área nos últimos anos, das conquistas de
ordenamento legal, ainda vemos um tipo de educação para crianças de classes abastadas
e outra para crianças de classes menos favorecidas. De lá para cá, ao longo desses 36
anos, nesse processo de inserção da Educação Infantil na história da educação pública
do município, muitos foram os posicionamentos assumidos, seja na formação e
qualificação dos profissionais, seja na aquisição dos materiais, em arquitetura, no
tamanho e diversificação dos espaços das instituições para fins de expansão da rede.
Cada um desses encaminhamentos traz significados e contribuições para a constituição
das respectivas infâncias.
Deste modo, continuar a pesquisa e a luta para que a educação destinada
às crianças pequenas nessa rede seja um espaço que as conduza à inserção social só
contribuirá para que possam fazer parte de uma história da infância que será contada
muito mais pelo que conseguiu avançar e realizar do que por suas deficiências e falhas.
13
NOTAS DE FIM DE TEXTO
i Adjetivo escolar está sendo utilizado aqui para ajudar a evidenciar o desejo dessas instituições “em
prestar determinado tipo de educação”. Prosseguindo com a argumentação de Kuhlmann Jr., 1999, p.
61/62, o entendimento passa pela indicação desse autor, quando indica que: “o adjetivo escolar não
definiria de antemão um modelo de organização pedagógica para a instituição. Definiria a natureza da
mesma – educacional -, no interior da qual se encontrariam estruturas e objetivos de ordens diversas: a
creche, a pré-escola, a escola de ensino fundamental, a escola técnica (de processamento de dados, de
análises laboratoriais, de construção civil e outras), etc.”
ii Aluna do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), do Centro de Ciências Humanas e da
Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), na Linha de História e Historiografia
da Educação. E-mail: adrianabroering@gmail.com.br
iii [...] práticas e condutas, modos de vida, hábitos e ritos – a história cotidiana do agir escolar -, objetos
materiais – função, uso, distribuição no espaço, materialidade física, simbologia, introdução,
transformação, desaparecimento... -, e maneiras de pensar, assim como significados e ideias
compartilhados. Alguém dirá: tudo. Sim, com certeza, a cultura escolar é toda a vida escolar [...]
(Tradução nossa).
iv O pedagogo alemão Friedrich Wilhelm August Froebel (1782 – 1852) foi o fundador dos Jardins da
Infância – os Kindergartens – que serviram de modelo para a educação pré-escolar, propagado
internacionalmente (KULHMANN JR., 2010).
v Educação Pré-Escolar: uma nova perspectiva nacional. MEC, 1975.
vi
Este livro teve sua primeira publicação em 1952, sendo revisto e ampliado numa terceira edição em
1966. Heloisa Marinho foi formadora de educadoras dos jardins de infância do Rio de Janeiro, no
período de 1934 até 1978. Defensora dos ideais da Escola Nova, considerava-se discípula de Lourenço
Filho e de Anísio Teixeira (LEITE FILHO, 1998).
vii
Inicialmente denominada Secretaria de Educação, Saúde e Assistência Social (Sesas), a partir de 1986
mudará para Secretaria Municipal de Educação (SME).
viii
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é um marco histórico para a educação
infantil, pois prevê a educação como direito de todos e a coloca como um dever do Estado. A partir da
Constituição de 1988, sucederam-se outras importantes conquistas legais.
14
FONTES DOCUMENTAIS
BRASIL. Educação pré-escolar – uma nova perspectiva. Nacional. Brasília, 1975
______. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Brasília, 1988
FLORIANÓPOLIS. Prefeitura Municipal de Florianópolis. Secretaria de Educação,
Saúde e Assistência Social. Programa Educação Pré-Escolar no município de
Florianópolis: Projeto Núcleos de Educação Infantil. 1976.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, F. A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil.
Rio de Janeiro: IBGE, 1943.
BENCOSTTA, M. L.. Memória e cultura escolar: a imagem fotográfica no estudo dos
grupos escolares de Curitiba (1903-1971). In: Congresso Brasileiro de História da
Educação, 2., Natal, 2002. Anais... Natal: Offset Gráfica e Editora Ltda., 2002. v. 1, p.
21-31. Disponível em: http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe2/pdfs/Tema3/
3154.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2011.
______. (Org.). Culturas escolares, saberes e práticas educativas: itinerários
históricos. São Paulo: Cortez, 2007.
BOPPRÉ. M. R. O Colégio Coração de Jesus na Educação Catarinense. Florianópolis:
Lunardelli, 1989.
ESCOLANO, A. Arquitetura como programa. Espaço-escola e currículo. In: Currículo,
espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
FARIA, A. L. G. de. O espaço físico como um dos elementos fundamentais para uma
pedagogia da educação infantil. In: SEMINÁRIO ESTABELECIMENTO DE
CRITÉRIOS PARA CREDENCIAMENTO E FUNCIONAMENTO DE INSTITUIÇÕES
DE EDUCAÇÃO INFANTIL. III. Brasília. 1997
GARCIA. L. C.. Sobre mulheres distintas e disciplinadas: práticas escolares e relações
de gênero no ginásio feminino do Colégio Coração de Jesus (1935-1945) In:
DALLABRIDA, Norberto & CARMINATI, Celso João (Orgs). O tempo dos ginásios:
ensino secundário em Santa Catarina – final do século XIX meados do século XX.
Campinas: Mercado das Letras; Florianópolis: UDESC, 2007. p. 113.
KISHIMOTO, T. A pré-escola em São Paulo. São Paulo, Loyola, 1988.
KUHLMANN JR., M. Educação Infantil e Currículo. In: FARIA, A. L. G. e
PALHARES, M. S. (Orgs.). Educação Infantil Pós-LDB: Rumos e Desafios. São Paulo:
Autores Associados, 2005. p. 51-65.
15
______. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre:
Mediação, 2010.
MAUAD, Ana M. Fotografia e História: possibilidades de análise. In: Maria Ciavatta;
Nilda Alves. (Org.). A Leitura de Imagens na Pesquisa Social: história, comunicação e
educação. 1 ed. São Paulo: Cortez, v. 1, 2004. p. 19-36.
OLIVEIRA, Z. R. de. Educação Infantil: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez,
2002.
OSTETTO, L. E. Educação Infantil em Florianópolis. Florianópolis: Cidade Futura.
2000.
SOUZA, R. F. História da Cultura Material Escolar: um balanço inicial. In:
BENCOSTTA, M. L. (Org.). Culturas escolares, saberes e práticas educativas:
itinerários históricos. São Paulo: Cortez, 2007. p. 163-189.
VINÃO, A. F. Historia de la educación y historia cultural: posibilidades, problemas,
cuestiones. In: Revista Brasileira de Educação. Campinas, SP, n. 0, set./dez.1995. p.
63-82.
______. Espaços, usos e funções: a localização e disposição física da direção escolar na
escola graduada. In: BENCOSTTA, M. L. A. (org.). História da Educação, arquitetura
e Espaço Escolar. São Paulo: Cortez, 2005. p. 15-91.
top related