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1
NDICE
Resumo/Abstract.
3
Agradecimentos.
5
Prefcio
7
Introduo..
9
Parte I Entre discursos
19
Captulo I O comeo.
20
1.1 No trilho de Augusto Bastos e Jos de Macedo 44 1.2 O Despertar para frica 74
Captulo II Discursos cruzados na sociedade civil
82
2.1 A Sociedade de Geografia de Lisboa e a questo colonial.. 93 2.2 A imprensa e a problemtica africana.. 105 Captulo III A emergncia colonial em texto..
111
3.1 Augusto Bastos e o saber etnogrfico.. 130 3.2 Jos de Macedo: o idelogo jornalista. 151 Parte II Do real ao utpico ou o inverso?................................................................ .
177
Captulo IV O real e o utpico nos discursos cientfico e jornalstico
178
4.1 Imprensa, sociedade civil e novos projetos de escrita 199 4.2 Cincia e colonizao: a elaborao de um novo discurso.. 218 Captulo V Realidade e utopia em discurso literrio
249
5.1 Literatura e realidade: ficcionar o real. 280 5.2 Literatura e utopia: a criao de mundos novos?................................ 287 Captulo VI Ensaiar a utopia ou experimentar a realidade?....................................... 298 6.1 Augusto Bastos e a Monographia da Catumbella.. 318 6.2 Jos de Macedo e a Autonomia de Angola. 332 Parte III Escritas em nome prprio
355
Captulo VII Escrita Popular ou Erudita?.................................................................... 356
2
7.1 Entre oralidade e escrita. 371 7.2 A literatura outra... 377 Captulo VIII Aventuras do serto e da cidade..
387
8.1 As colees romntico-histricas.. 405 8.2 A sociedade colonial em fico 422 Captulo IX Amarguras e iluses para a mudana..
443
9.1 A tese: Etnografia e Economia 450 9.2 A fico: Herana de Amarguras. 463 Concluso.. 489 Matriz das Epgrafes 507 Bibliografia 510
3
RESUMO
A dissertao Continuidades e descontinuidades da colonizao portuguesa: literatura e
jornalismo entre utopia e realidade prope a reflexo sobre os discursos em torno da
colonizao portuguesa, procurando identificar e avaliar as continuidades e descontinuidades
entre o discurso oficial, a retrica dominante e outros discursos que caracterizaram a
sociedade civil colonial em transio para o sculo XX. A produo textual dos dois autores,
Augusto Bastos e Jos de Macedo (um angolano e um metropolitano) usada para atingir este
objetivo. Oscilando a sua reflexo sobre utopia e realidade e circunstanciando o seu trabalho e
a sua receo, a dissertao pretende compreender a contribuio do discurso para a
construo do mundo real e do imaginrio.
O contexto cultural diversificado, as rpidas mudanas sociopolticas e a natureza complexa
das evidncias textuais conduzem esta dissertao a seguir mtodos multidisciplinares e
transdisciplinares, bem como, a seguir uma anlise transdisciplinar. Se, por um lado, os textos
jornalsticos e os ensaios so essenciais para entender o discurso sobre a realidade, por outro
lado, a literatura um elemento crucial para compreender o poder criativo da utopia como
cenrio de antecipao acerca de mundos possveis. Desta forma, so argumentadas as
principais contribuies do discurso para a interpretao da realidade e criao do imaginrio.
TITLE IN ENGLISH
Continuities and discontinuities of the Portuguese colonization: literature and journalism
between utopia and reality
ABSTRACT
The Dissertation Continuities and Discontinuities of the Portuguese Colonization: Literature and
Journalism between Utopia and Reality provides a reflection on discourses about Portuguese
colonization, seeking to identify and appraise continuities and discontinuities between official
speech, mainstream rhetoric and other discourses that characterized colonial civil society in
the transition to the twentieth century. The textual output of two authors, Jos de Macedo
and Augusto Bastos (a metropolitan and an Angolan), is used to achieve this goal. These
individuals produced fictional texts, journalistic articles and essays on colonial items. Balancing
their discussion of utopia and reality, and considering the circumstances of their work and
reception, this thesis seeks to understand the contribution of discourse for the construction of
both the real and the imaginary world.
4
The diverse set of cultural contexts under focus, the fast changing sociopolitical background
and the complex nature of the textual evidence leads the Dissertation to engage with
multidisciplinary and interdisciplinary methods as well as with transdisciplinary analysis. If, on
the one hand, journalism and essays are essential to understand discourse about reality, on
the other hand, literature is critical to understand the creative power of utopia as anticipatory
scenarios about possible worlds. In this way, it is argued, the central contributions of discourse
to the interpretation of reality and creation of the imaginary.
5
AGRADECIMENTOS
Gostaria de comear por agradecer ao orientador desta tese, o Prof. Doutor Francisco Soares,
pelo entusiasmo que partilhmos durante a sua elaborao e pelo clima de constante
descoberta que conseguimos manter at ao final da sua elaborao. Foi, igualmente, precioso
o seu auxlio na identificao e digitalizao dos textos das Aventuras do Reprter Zimbro, bem
como todo o apoio dado prossecuo dos momentos mais tcnicos desta tese.
Agradeo ao colega Antnio Trindade, pela localizao e envio dos textos de As Furnas do
Lobito que foram importantssimos para completar a anlise da fico de Augusto Bastos.
Tambm impossvel esquecer os momentos que vivi em Angola, na companhia do Francisco,
da Cidlia e da Amelinha que me receberam em sua casa e foram imprescindveis para o
sucesso do trabalho de campo que desenvolvi e que foi humanamente muito gratificante,
devendo-lhes um profundo agradecimento.
Menciono, ainda, o apoio das famlias dos autores que foi indispensvel para esclarecer alguns
pontos menos bvios dos seus percursos intelectuais. No caso de Augusto Bastos, agradeo a
Ana Cristina Bastos Marques, a Isabel Bastos Clington e a Denise Bastos Benchimol, de quem
tive o privilgio no s de partilhar momentos, como de ficar amiga. Relativamente a Jos de
Macedo, agradeo a toda a famlia a disponibilizao do esplio do autor e, em especial, a
Marcelino Borges de Macedo (um entusiasta sempre presente e afetuoso desta tese), a
Fernanda de Macedo, a Srgio Borges de Macedo, a Jorge Braga de Macedo (pelo apoio dado
durante todo o processo de recolha de dados), a Branca Braga de Macedo (por toda a
disponibilidade e pelas histrias que foi partilhando comigo) e ao Jorge Castro Henriques (pelo
apoio aquando da recolha da documentao).
Agradeo Fundao para a Cincia e Tecnologia pelo apoio dado realizao deste trabalho,
atravs da concesso de uma bolsa de doutoramento.
Lembro, tambm, o apoio dos funcionrios da Administrao de Benguela, tentando colmatar
as dificuldades tcnicas de recolha da documentao, que muito agradeo.
Gostaria de referir a disponibilidade da Biblioteca Nacional de Lisboa que autorizou a consulta
de documentos reservados ou em condies de degradao, agradecendo-a.
Ao Instituto de Investigao Cientfica Tropical agradeo a disponibilidade para receber o
esplio Dr. Jos de Macedo.
Um profundo agradecimento a Arminda Fortes, pelo carinho com que acolheu o esplio Dr.
Jos de Macedo e se tornou a sua arquivista e, tambm, pelos momentos partilhados na
procura de reconstituir a histria do autor, logo em seguida a eu ter comeado esse trabalho
duro de identificao e tratamento do esplio.
A Carlos Bastien agradeo a celeridade com que me ajudou a reconstruir alguns passos no s
da histria do pensamento histrico econmico como tambm de alguns intelectuais
6
contemporneos de Macedo. A Nuno Lus Madureira agradeo a partilha de bibliografia
importante para esta tese e o entusiasmo com que o fez.
Agradeo a muitos colegas de diferentes reas e colaborando comigo em diversos momentos
da tese, mas todos eles importantes para que este trabalho chegasse a bom porto. Refiro-me a
Ana Paula Gomes, Ana Lcia S, Jos Carlos Tiago Oliveira, Jacint Creus, Jos Manuel Pedrosa,
Jos Luis Garrosa, Javier Cardea, Valrie Wulf, Isabela Aranzadi, Philip Havik, Ana Cristina
Roque, Benita Sampedro, Jos Matos, Caridad Rodriguez e tantos mais.
Agradeo a Mrio Duarte e a Armando, por me terem apoiado nas burocracias em Benguela e
por terem sido amigos presentes.
Agradeo ao meu grupo de amigas (Girls) que nunca desvaneceu em dar o seu apoio,
aguardando avidamente a prxima publicao.
Agradeo a Teresa Pinheiro da Costa pela reviso de alguns captulos desta tese e pelas
palavras amigas e de encorajamento que sempre me deu.
Agradeo ao Sandro a partilha de muitos pensamentos sobre a economia do incio do sculo
XX e os demais assuntos ligados a esta tese, o entusiasmo com que sempre os recebeu e
discutiu comigo, bem como, o acompanhamento da ltima fase da mesma. Agadeo Cndida
por todo o apoio aquando do resgate do esplio de Jos de Macedo e pelo carinho com que o
fez.
Agradeo muito em especial minha me, pela durssima luta que travou durante a
elaborao deste trabalho e pela coragem com que o fez e me apoiou a prosseguir mesmo nos
momentos mais difceis. Ao meu pai agradeo por estar sempre presente e me dar alento a
continuar. Ao Vtor e Fernanda agradeo as partilhas que fomos fazendo (incluindo as de
falta de tempo). Ao Joo e ao Lus pela alegria que trouxeram aos momentos mais difceis
deste percurso.
7
PREFCIO
Desejo-o mais que o espero.
Toms Morus
Fechava assim Toms Morus o seu livro Utopia, referindo-se s possibilidades de concretizao
do que apresentava como sendo uma realidade distante e que se sabe tratar-se de uma
utopia. Na verdade, a expresso textual e mais propriamente a literatura, incarnando diversos
formatos, permitiu uma certa liberdade de antecipar mundos, de propor alternativas e,
sobretudo, de transformar o imaginrio acerca da realidade. A construo de uma ideia de
realidade transversal a todo o processo criativo, subjacente produo cientfica ou artstica,
pois se o mundo real que inspira um mundo criativo que criado a partir dessa inspirao.
Os objetivos de criao podem ser diversos, as linguagens usadas distintas e os resultados
variados, mas a verdade que o criador opera cerebralmente o mesmo tipo de processo sobre
a realidade num e noutro caso. Assim, ao estudar a vida intelectual dos autores que escolhi
como testemunhos da diversidade discursiva em torno das colnias, fi-lo atentando nesta
circunstncia de uma produo textual vasta, disseminada em vrios tipos de texto, que
apresentava coerncia, tanto ao nvel de contedo como ao nvel da forma. A esttica
funcionava, deste modo, como uma marca do autor, circunstanciada nas condies de
produo e receo das obras, existentes poca.
Foi meu objetivo no s recuperar autores e textos secundarizados atualmente, como
demonstrar a diversidade discursiva em torno das colnias e que, entre continuidades e
descontinuidades, foram sendo edificadas alternativas s opes que vingaram e que
constituem hoje o principal objeto de estudo das vrias disciplinas que aqui me auxiliam neste
percurso. Recorrendo a uma metodologia profundamente multidisciplinar e a uma anlise
transdisciplinar, encontrei na literatura e no seu mtodo de anlise o instrumento certo no s
para identificar o estilo prprio de cada autor, como para compreender como eram colocadas
essas vises alternativas do mundo. A fico foi, indubitavelmente, o meio mais procurado
pelos autores para exporem as suas propostas, antecipando solues, muitas destas que
vieram a revelar-se mais tarde como as corretas ou sendo mesmo aplicadas.
O percurso desta tese permitiu-me enriquecer em termos de conhecimento de vrias
disciplinas e, sobretudo, na rea da literatura como constituiu uma experincia de vida muito
profunda que me fez repensar profundamente a relao entre utopia e realidade e a
importncia da construo discursiva, em que a palavra muitas vezes mais expressiva que a
prpria realidade. Mundo real e a construo do imaginrio tornaram-se, ento, num desafio
aliciante que me permitiu viajar no tempo e no espao e reconstituir o papel do discurso.
Descobrir estes autores, fez-me acreditar que a realidade sempre bem mais complexa do que
pensamos e mais ampla dos que as verses prontas a consumir que nos so oferecidas.
Pelo caminho percorrido e pela riqueza da descoberta, dedico esta tese s memrias de
Augusto Bastos e de Jos de Macedo e de todos aqueles que acreditaram que a mudana
8
possvel e que tudo comea na palavra, no seu manuseio, na sua produo e na sua receo.
Afinal, a nossa construo tanto da realidade como do imaginrio em grande parte tributria
do discurso.
9
INTRODUO
La utopa no ha muerto, tenemos que conseguir lo que ahora parece imposible. Aunque como
escritores no estemos obligados a llevar a la prctica nuestras ensoaciones, al conocer de
todo poder tangible, s tenemos el poder de anticipacin, el poder de proponer, el poder de
transformar, el poder de la palabra, vehculo de la accin.
Donato Ndongo
Escrevia assim o escritor equatoguineense Donato Ndongo, em 2010, num ensaio sobre a
funo do escritor na literatura do seu pas. revelador este pequeno trecho, pois percebe-se
que realidade e fico no s apresentam uma relao prxima como se alimentam
mutuamente. Este poder de antecipao e de proposio de que fala Ndongo, na palavra que
antes de mais veculo de ao, vem de uma tradio longa, muito explorada a partir do
momento em que o romance se revelou como um recurso importante para veicular
mensagens que, por vezes, o discurso do real, fosse jornalstico ou ensastico tinha
forosamente de evitar. No entanto, as suas razes so mais longnquas e reportam-nos para
os sermes e cartas ainda escritas com base na retrica religiosa, como o so os casos
estudados de Frei Bartolom de Las Casas ou do Padre Antnio Vieira, ou ainda as simulaes
de uma realidade alternativa que se encontra em Tomas Morus. Tambm as publicaes
ensasticas e jornalsticas foram palco de ao destes discursos alternativos que propunham a
mudana, fosse pela denncia e anlise de situaes reais, fosse pela proposta de solues
(algumas das quais legislativas, outras ao nvel da instruo, outras ainda no mbito de novas
dinmicas sociais ou de diferentes perspetivas para o desenvolvimento local). Tudo somado,
permitiu-me perceber que se trata de um conjunto de discursos complexos, dispersos nos
meios de publicao (diversos ttulos, vrios suportes e diferentes anos) e com distintos
contedos que tinha razes distantes e que alastrava nos diversos espaos coloniais sob formas
diferenciadas que aqui exploro.
Em Continuidades e Descontinuidades da Colonizao Portuguesa: literatura e jornalismo entre
a realidade e a utopia debruo-me sobre os discursos patentes na sociedade civil (ficcionais,
ensasticos e jornalsticos), circunstanciando-os sociopoliticamente, tanto a nvel interno como
externo, e analisando-os do ponto de vista hermenutico. O acento colocado na diversidade
discursiva, com o recurso a documentos e textos publicados que demonstram a existncia de
uma variedade de propostas assinalvel, tendo como ponto de partida dois autores, Augusto
Bastos e Jos de Macedo que apresentam algumas caractersticas complementares. O
primeiro, autor angolano de Benguela, mestio e membro da elite local, o segundo autor
portugus de Vila Nova de Gaia, membro da elite intelectual emergente com a transio da
monarquia para a repblica. Ambos passando por Luanda, Benguela e Lisboa. Ambos
escrevendo ensaios, artigos, crnicas e fico, ambos centrados na questo colonial, entre a
realidade e a utopia, ambos produzindo discursos alternativos ao discurso dominante. Ambos
procurando afirmar-se junto de diferentes pblicos e tendo um fio condutor entre a sua
produo intelectual ficcional e no ficcional, o que sendo evidente em termos de contedos
tambm assinalvel em termos de recursos estticos convocados para a escrita dos textos. A
10
diferente origem e percurso dos autores, as experincias de vida bem diversas e a
possibilidade de distintas influncias intelectuais e literrias, a par de um encontro factual em
Angola e da partilha de objetivos similares no que concerne ao futuro das colnias, torna-os e
s suas obras excelentes testemunhos de experincias divergentes que por vezes se
transformaram em finalidades convergentes, independentemente da origem metropolitana ou
colonial.
Numa lgica de articulao e perceo da relao entre os discursos do real e do utpico
(sero complementares? Contraditrios? Exprimem uma lgica conflitual ou um dilogo
mesmo que tenso e algumas vezes parecendo paradoxal?), valoriza-se a comparao entre o
que constituram os discursos oficiais e oficiosos da sociedade civil (e o modo como estes se
influenciaram), na sua maioria veiculando utopias para as sociedades coloniais, e a realidade
dos espaos em estudo (patente nos testemunhos sociais, como por exemplo, a
implementao de novas leis ou os materiais veiculados na imprensa local, com relevo para os
textos literrios). Igualmente, se recorre comparao sempre que necessrio para realar as
continuidades ou descontinuidades discursivas, seja ao abrigo de exemplos nacionais como
internacionais, estudados e publicados pela literatura da especialidade, sobretudo a partir dos
anos oitenta do sculo XX e j em contexto puramente ps-colonial (por exemplo, casos
espanhol, francs ou ingls). Este processo comparativo entre os vrios discursos constitui
apoio imprescindvel para a anlise da literatura produzida pelos autores, de modo a entender-
se no s o seu enquadramento na contemporaneidade da sua produo, como as perspetivas
de receo que os autores poderiam perseguir relativamente aos seus textos, reposicionando-
os nos dias de hoje na histria da literatura de expresso portuguesa, pois trata-se de dois
autores pouco ou nada estudados no panorama literrio em portugus.
O discurso relativo s temticas coloniais tem sido analisado de forma fragmentada, em geral,
vocacionado para um territrio colonial em concreto ou para um assunto especfico. A
disperso em termos geogrficos das colnias portuguesas leva a que o estudo sistemtico da
colonizao seja difcil, aparentando que os diferentes espaos, outrora sob domnio
portugus, se encontram desgarrados com raras ligaes entre si e quase desligados de uma
poltica colonial, com caractersticas especficas, perpetrada a partir da metrpole, mais
propriamente da capital, Lisboa. Porm, acredito que um estudo analisando e comparando os
discursos propagados pelas elites metropolitanas, representadas por Jos de Macedo, e pelas
elites locais, representadas por Augusto Bastos, (tanto no que concerne poltica como
interveno da sociedade civil), procurando a sua essncia, o seu significado e
contextualizando-o, da maior importncia quando se quer perceber a longa presena
colonial portuguesa em espaos intertropicais e tropicais. Bastos e Macedo representam faces
da mesma moeda, inserida num sistema poltico e social e, sobretudo, cultural que os levava,
apesar de vivendo em sociedades diferenciadas, a obedecerem a uma srie de regras que iam
do direito e da tica ao gosto esttico. Assim as divises estanques entre colonizador e
colonizado, entre sociedade metropolitana e sociedade colonial revelam-se insuficientes para
perceber-se a complexidade do que foi o discurso real e criativo em torno das ento colnias.
Contedos e estticas foram partilhados, reinventados, numa tentativa permanente de chegar
a um pblico leitor, influenci-lo e mesmo lev-lo ao. Assim, tornou-se extremamente
importante aprofundar a anlise discursiva, dado que me pareciam existir algumas lacunas.
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No que se refere anlise hermenutica do discurso percetvel uma lacuna relativamente ao
estudo das utopias coloniais desenvolvidas pelo pensamento intelectual no nosso pas, ou seja,
a anlise do discurso tem sido essencialmente vocacionada para a realidade poltica e social
sem atentar verdadeiramente no papel que as utopias propagadas durante o perodo colonial
tiveram no delineamento de polticas, na conceo de legislao e na interpretao do papel
de Portugal no contexto internacional. Ainda menor tem sido a ateno prestada aos textos
ficcionais que em si exprimem ideias de sociedade e propostas de presente e futuro
alternativos e assim veiculados para um pblico consideravelmente vasto, visto serem
publicados em fascculos ou mesmo no corpo de jornais, acessveis pelo menos populao
alfabetizada. Entretanto, tambm notria a ausncia da preocupao de articulao entre a
anlise do contedo do texto e o elemento esttico ou vice-versa, parecendo que no caso a
que me reporto a interao contedo/esttica elementar para ter uma interpretao
holstica do mesmo. Separar estes dois elementos perder parte do significado que os autores
lhe quiseram dar e do cunho pessoal que imprimiram sua produo intelectual. Mais
protegida face perseguio poltica imediata, a literatura foi a forma de expresso que
concentrou em si os projetos de contrapoder mais arrojados e tambm as propostas mais
suaves de mudana. na fico de Bastos e Macedo que se encontram as provas cabais da sua
esperana no futuro e certeza na mudana, com personagens que, incarnando tipos ideais ou
reconhecidos facilmente pelo leitor, expressam essa possibilidade de transformao social e
poltica, podendo mesmo contribuir para o reescrever da histria oficial para que o presente
tambm possa ser refeito ou reescrito.
Ao nvel internacional tambm no so conhecidos muitos estudos nesta rea, estando a
surgir, desde a ltima dcada, reflexes interessantes sobre o discurso poltico e as utopias
coloniais transformadas em legislao ou em ato poltico, nomeadamente, em Frana e no
Reino Unido, mas ainda com uma escassa abordagem literatura, privilegiando outros
acontecimentos culturais e artsticos como a produo para as exposies coloniais. Destacam-
se os estudos realizados em torno do abolicionismo enquanto utopia colonial e da temtica
utpica propalada atravs do discurso poltico, em que existe alguma referncia literatura,
sobretudo a peas de teatro1. Contudo, a preocupao com a relao entre utopia, colonizao
e colonialismo no recente e encontra-se expressa em autores contemporneos dos autores
em que coloco o enfoque, revelando que apesar de pouco explorado este foi um tema que
surgia com alguma recorrncia nos meios intelectuais e de escrita2. No entanto, a anlise
profunda dos discursos antecipativos e ficcionais relativos utopia colonial praticamente
inexistente, ficando-se pelos estudos de intelectuais dos pases ibero-americanos
relativamente utopia colonial das misses e das redues do Novo Mundo, alguns dos quais
centrados na obra de Frei Bartolom de las Casas e nos Sermes do Padre Antnio Vieira3.
1 Nomeamos apenas alguns exemplos desses trabalhos: Franoise Vergs, Abolir lesclavage: une utopie coloniale. Les Ambigits dune politique humanitaire, Paris, ditions Albin Michel, 2001 ; Pascal Blanchard, Sandrine Lemaire, Culture Coloniale: La France conquise par son empire, 1871-1931, Paris, ditions Autrement, 2008 ; Dohra Ahmed, Landscapes of Hope: Anti-Colonial Utopianism in America, Oxford, University Press, 2009. 2 Por exemplo ver o trabalho de Henry MORTIMER, LUtopie Coloniale, s/local, Bureau du Voltaire, 1899.
3 Frei Bartolom Las Casas [traduo Jlio Henriques], Brevssima Relao da Destruio das ndias,
Lisboa, Edies Antgona, 1997, 2. Edio; e como exemplo para o padre Antnio Vieira, um dos seus
12
parte disso poucas so as investigaes sobre utopia colonial e ainda so em menor nmero os
estudos relativos s consequncias da divulgao das utopias coloniais sobre a prpria
realidade dos espaos colonizados. Em relao aos sculos XIX e XX, esses estudos so ainda
menos comuns, reportando-se a temticas muito especficas, o que no deixa de ser curioso,
visto tratar-se da poca em que a ocupao efetiva dos territrios e a internacionalizao da
poltica colonial so factos indiscutveis. Todavia, encontram-se autores a referenciarem as
utopias em geral e, logo, a reportarem-se a utopias contendo os conceitos colonial e colnia4.
Portugal no exceo s tendncias que se verificam nos estudos sobre colonizao ao longo
dos tempos. A disperso geogrfica dos antigos territrios sob colonizao portuguesa, a
descolonizao recente (se se pensar em termos histricos) e a preocupao com o estudo dos
fenmenos polticos e sociais quotidianos (que numa conjuntura de profunda transformao
tm-se alterado constantemente) tem relegado esta temtica para segundo plano, apesar da
sua relevncia no que toca definio daquilo que constituiu a presena oficial portuguesa
nestes espaos. Entendo, pois, que faz todo o sentido desenvolver um estudo com a finalidade
de apurar dentro dos vrios discursos difundidos, polticos, jornalsticos, ensasticos e, claro,
ficcionais, quais as utopias propagadas e de que forma estas influenciaram a realidade
colonial. Perceber como se aliaram publicaes peridicas e textos literrios e ensasticos e
como cincia e arte contriburam para a formao de cenrios identitrios protonacionais ou
nacionais e como todo o contexto histrico circunstanciou a produo discursiva aqui em
anlise. Deste modo, se o objeto de estudo primrio so os textos publicados pelos autores
entre a ltima dcada do sculo XIX e os anos 40 do sculo XX (no caso de Jos de Macedo,
pois Augusto Bastos falece na dcada de trinta e o ltimo conjunto de textos que analiso data
de 1931), que, para uma finalidade de contextualizao, tive de recorrer no s a outros textos
contemporneos como a textos anteriores e posteriores ou analticos no que se refere aos
processos histricos e polticos.
Entre os objetivos especficos deste trabalho nomeio os mais relevantes: a anlise, do ponto
de vista hermenutico, de discursos e de textos publicados (em contexto de interveno
poltica ou fruto de manifestaes de vontade da sociedade civil), com bvio destaque para os
autores escolhidos e para os textos ficcionais publicados; o estudo das utopias coloniais
difundidas em territrio portugus ao longo do tempo, no perodo escolhido e anteriormente
mencionado (que se prende no s com o tempo de publicao dos autores, mas porque
tambm pode funcionar como perodo exemplar, pois atravessam-se trs regimes polticos
Monarquia constitucional, Primeira Repblica e Estado Novo e dois sistemas de governao
Monarquia e Repblica , oscila-se entre regimes democrticos e ditatoriais, e ainda se sofrem
as consequncias da partio de frica e do Ultimato Britnico que provocam realinhamentos
polticos profundos, tanto na metrpole como nas colnias); a interpretao crtica da
realidade colonial portuguesa; a comparao entre o discurso e, consequentemente, as
utopias coloniais transmitidas atravs deste e a realidade da colonizao; o enquadramento
dos discursos reais e ficcionais dos autores em estudo nas conjunturas coloniais portuguesa e
internacional; a anlise das continuidades e descontinuidades da colonizao portuguesa no
muitos sermes publicados: Padre Antnio Vieira, Sermo do Bom Ladro, Lisboa, Editorial Nova tica, 2007. 4 Vide como exemplo Lewis Mumford, [traduo Isabel Donas Botto], Histria das Utopias, Lisboa,
Antgona [edio original em ingls de 1922].
13
que concerne s utopias coloniais propagadas e situao real; o estudo da receo dos
discursos sobre a temtica colonial em geral e dos textos dos autores em estudo em particular;
a definio do papel da esttica na obra dos autores em estudo e a sua contribuio para a
aceitao da sua obra.
Deste modo, pretende-se estudar aprofundadamente de que forma se relacionaram estes dois
vetores que considero essenciais na caracterizao da presena portuguesa nos trpicos: o
teor discursivo (real e ficcional), usado como mbil para a colonizao e como argumento de
mobilizao da sociedade, em grande parte vocacionado para a transmisso de utopias
coloniais, e a realidade das comunidades locais colonizadas. A seleo destes dois autores
decorreu depois de ter explorado as possibilidades de disperso autoral e geogrfica, mas
verificando que o trabalho ficaria enriquecido pela colocao do foco em Augusto Bastos e
Jos de Macedo, dadas as suas caractersticas: so dois autores com obra jornalstica,
ensastica e ficcional. So escritores em nome prprio que desempenharam um papel
importante e que tiveram largo eco no discurso colonial de ento. Ambos sofreram a
perseguio poltica e detenes temporrias, ambos reflectiram sobre a criao de mundos
alternativos realidade e possveis de conduzir as colnias ao desenvolvimento.
Complementares para esse estudo, porque representam a intelectualidade angolense e
portuguesa, respetivamente, acresce ainda um factor que os torna mais paritrios: se Bastos
passa por uma vivncia marcante em Portugal, regressando a Angola; Macedo faz o percurso
inverso, com uma experincia determinante em Angola, regressando a Portugal. A esta
alterao de percurso no foi alheio o acesso ao esplio de Jos de Macedo, encerrado at
2010 e aberto pela famlia do autor a meu pedido, e os dados recolhidos em Benguela, junto
da Administrao daquela cidade que me permitiram aceder carreira poltica de Bastos,
sendo ambos elementos determinantes no processo de elaborao desta tese.
Assim e como anteriormente aflorado, o perodo em estudo balizado pelas intervenes
discursivas destas duas personalidades, estendendo-se desde a ltima dcada do sculo XIX
at dcada de 40 do sculo XX. Esta poca caracteriza-se pela internacionalizao do
fenmeno colonial e pela sua extenso quase totalidade das potncias europeias, pelo
domnio efetivo de grandes parcelas de territrio em zonas tropicais e inter-tropicais, a
introduo de novas tecnologias industriais e agrcolas, pelo domnio de povos estrangeiros
sem o consentimento autctone, o encurtamento das distncias e uma maior circulao de
pessoas, bens e conhecimentos. Ao nvel nacional, tambm um perodo de constante
mudana, no s de regimes polticos como tambm de orientaes para o desenvolvimento
do pas. Procuro, por isso, identificar as clivagens e os aspetos comuns existentes entre a
poltica colonial portuguesa em presena de sistemas e regimes polticos diversos, partindo
dos textos dos nossos autores, em permanente contextualizao com o ambiente envolvente
s temticas coloniais. evidente que esta conjuntura trouxe tambm consequncias
produo intelectual, em geral, e literria em particular. A literatura colonial comea a ganhar
flego enquanto tal, pois at ento no existia essa categorizao, tornada patente at em
iniciativas pblicas como os concursos de literatura colonial que se vieram a vulgarizar a partir
dos anos vinte do sculo XX. A literatura portuguesa em que o tema colonial aparecesse era,
amide, fruto de um imaginrio e de uma ausncia mais do que de uma vivncia,
encontrando-se algumas pequenas referncias em autores portugueses. Contudo, so os
autores africanos os primeiros a marcar a diferena, introduzindo no panorama da literatura
14
portuguesa elementos que identificam uma nova tendncia, apesar do recurso a ferramentas
comuns para a produo literria. Assim, analisar textos literrios produzidos no seio de uma
sociedade colonial em tempos de mudana constante constituiu um desafio muito
interessante e uma possibilidade nica de estabelecer a ponte entre realidade e fico.
Algumas dificuldades foram detetadas ao longo deste trabalho, entre estas o tardio acesso ao
esplio de Jos de Macedo e o facto de este no se encontrar minimamente organizado ou
tratado, estando muitos dos materiais em mau estado de conservao e alguns manuscritos
tiveram de ser reconstrudos, pois encontravam-se em folhas soltas. Igualmente, a pesquisa
em Benguela foi morosa, obedeceu a muitos pedidos de autorizao e em alguns casos,
mesmo tendo conseguido que estas solicitaes fossem deferidas foi impossvel concretizar a
pesquisa, devido a impedimentos no prprio local de consulta, como aconteceu, por exemplo,
com os Inventrios de rfos que esto no Tribunal na cidade de Benguela. A vastido de
objetos de estudo e a permanente descoberta de novos elementos que me poderiam indicar
novas redes intelectuais acabaram por retardar a execuo do trabalho que, ficar, pois em
permanente processo de possvel atualizao. Tambm relativamente aos textos literrios e
dada a sua publicao em fascculos ou no corpo dos jornais, enquanto folhetins, foi muito
difcil coligir alguns contedos, permanecendo a noo de que ainda existe a possibilidade de
se descobrirem mais textos, os quais sei que foram publicados, mas aos quais no consegui
aceder. Contudo, creio ter reunido e analisado uma quantidade de materiais significativa para
o cumprimento dos objetivos propostos e que seguiu a metodologia exposta em seguida.
Metodologia:
Considerando tratar-se da anlise de produes intelectuais e estticas num contexto
complexo, de mediadores entre uma sociedade colonizadora, a metropolitana, e a sociedade
colonial, a da colnia, creio que a aproximao metodolgica teria de reflectir esse intricado
processo de produo e receo discursivas. Assim, mais do que uma produo sobre
sociedades interculturais, seja pela presena da metrpole na colnia ou vice-versa, no caso
colonial fala-se de sociedades j transculturais, isto , que se, por um lado, apresentam
caractersticas que parecem duais, por outro lado, percebe-se que ali j existe a forja de uma
identidade prpria e de mecanismos sociolgicos de especificidade que as tornam um
produto sociolgico completamente novo5. Esta realidade pressupe uma mestiagem de
culturas prvia, ou seja, um contacto profundo e continuado entre pessoas oriundas de
diferentes culturas. Nos casos abordados, em redor de Luanda e Benguela, bvio que a
urbanidade proporcionou um contacto inter-racial mais estreito, logo uma maior
interpenetrao cultural, sendo que provia o contacto dos colonizados com o sector
administrativo e econmico colonial, consciencializando-os da diferena que representavam.
Esse aglomerado de gentes, a prtica religiosa, os colgios que iam surgindo, o apreo pelos
seres e pelas longas conversas levavam a que a oratria tivesse sido cultivada e
5 Sobre a definio de transcultural, vide Francisco Soares, Notcia da Literatura Angolana, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2001, p. 18.
15
proporcionasse uma relativamente rpida viagem entre escrita e oralidade e entre culturas.
Um dos desafios neste caso lidar com a pretendida universalidade da razo humana que
levaria criao de conhecimento e de expresses artsticas similares. A ideia de civilizar o
outro encaixa perfeitamente nesta perspetiva, no entanto, dificulta que se percebam alguns
dos fenmenos socioculturais que no respeitem especificamente essa uniformidade
conceptual que se cr aceitvel entre as culturas dominantes. Da que tambm as ferramentas
metodolgicas e as teorias aplicveis, como, por exemplo, a literria, devam atentar neste
facto e adaptar-se de modo a poderem captar todas as variaes que vo sendo encontradas6.
Neste enquadramento, torna-se ainda mais importante no s perceber-se quem produziu
como em que circunstncias o fez e dirigido a quem, pois no podendo fugir a essa
universalidade da razo, a verdade que a produo textual tem na sua receo boa parte
da sua explicao, enquanto produto final. A leitura do texto s foi entendida enquanto
processo ativo na segunda metade do sculo XX, mas trouxe novas possibilidades
interpretativas, nomeadamente, as que se escondem nas entrelinhas dos textos produzidos
fora dos centros dominantes em termos artsticos, cientficos e jornalsticos. Tanto escritores
como jornalistas em ambiente colonial vivenciavam experincias muito diversas das que os
produtores metropolitanos tinham e isso revela-se na sua obra, atendendo leitura que vo
ter e aos factores tradicionais que esto em jogo, explicando uns aspetos em detrimento de
outros, colocando uns em evidncia e outros relegando para segundo plano.
A anlise semitica dos textos, pelas razes anteriormente apontadas, tornou-se essencial. Era
necessrio perceber se as ideias e as palavras expostas pelos autores, eram decompostas,
interpretadas e regressavam sua unidade, representando aquilo que o autor pretendia. A
palavra apenas faz a ligao ideia de algo e no ao objeto em si, o que est patente por
exemplo quando os autores explicam um determinado elemento natural ou outro, ou quando
traduzem entre a lngua portuguesa e outra lngua, ou quando referem um regionalismo para
em seguida explic-lo, existindo a perfeita ideia que a palavra apenas uma representao7.
Nas sociedades de vrias lnguas e com culturas conviventes, o desafio interpretativo ainda
maior, revelando-se a interpretao luz da semitica como uma ferramenta essencial. Ainda
mais importante esta anlise quando durante anos foi muito mais estudada a produo com
carcter de exterioridade do que aquela que foi desenvolvida no seio da prpria sociedade
colonial e que envolvia colonizadores e colonizados, sendo necessrio ultrapassar a viso
reportada nos orientalismos e exotismos8. Lembre-se que a consignao dos termos
cultura ou civilizado depende de o elemento observado pertencer ou no cultura de
quem emite o juzo, isto , a cultura, a civilizao no so elementos constantes e universais,
so diversos os comportamentos segundo cada cultura que levam a essa interpretao.
Contudo, no caso colonial como uma cultura se propunha como superior outra, esse aspeto
acaba por ser eliminado, da o discurso exterior, atribuindo exotismos e orientalismos. A
proposta de anlise semitica permite ultrapassar este fator que se apresenta como restritivo,
buscando a memria que vai sendo passada de gerao em gerao e entendendo a produo
textual como um resultado desta. Nas sociedades urbanas de Luanda e Benguela, a verdade 6 Para o caso da teoria literria vide Francisco Soares, Teoria da Literatura, Criatividade e Estrutura,
Luanda, Editorial Kilombelombe, 2007, pp. 32-39. 7 Vide Umberto Eco, O signo, Lisboa, Editorial Presena, 2004, 6. Edio, p. 118.
8 Estes argumentos esto muito desenvolvidos no livro j clssico de Edward Said, traduo Pedro
Serra], Orientalismo: Representaes Ocidentais do Oriente, Lisboa, Livros Cotovia, 2004, 2. Edio.
16
que j existia uma memria de encontros e desencontros que se revelava j na ideia de um
passado comum, at louvado e tornado herico do lado portugus, o que permitia ao lado
colonizado reclamar a sua participao no processo, e que o futuro fosse visto como o
prolongamento do agora, portanto, j com a possibilidade de obedecer a planos
alternativos. Da a possibilidade de perscrutarem-se os indcios utpicos em textos que
parecem numa leitura menos atenta apenas ligados realidade quando na verdade esto a
usar a realidade para propor uma utopia.
Ao escrever, o autor usa uma abordagem estratgica ao texto, tentando identificar tambm
quem e como se vai ler9. Na cabea do produtor textual est, amide, uma ideia de leitor
modelo que o ajuda a construir a sua narrativa e a conduz, inspirado pelos conhecimentos no
s provindos da sua prpria experincia literria como da sua prpria anlise do impacto das
leituras no pblico em geral. As condicionantes da produo textual so outro elemento
importante, pois muitas vezes o autor diz o que pode dizer e no o que desejaria e esse o
caso, por exemplo, de Jos de Macedo no discurso proferido em homenagem aos dez anos de
governao de Salazar, em que o autor foi compelido a dizer o que se esperava que dissesse,
embora no deixasse de revelar algum desacordo relativamente ao exerccio de poder de
Salazar. Querendo fazer uma anlise da funo social dos textos, necessrio ento contar
com a questo das circunstncias de produo e, em simultneo, com a expetativa do pblico
que conduz aceitao ou rejeio do corpo textual proposto. Seria sempre uma perspetiva
incompleta, aquela que no se complementasse pela receo do texto que acaba por
determinar a sua influncia sociocultural ou a falta desta. Assim, as experincias literrias
(sejam de fico ou de ensaio) do leitor so to determinantes para o sucesso textual quanto
as prprias experincias literrias do autor, sendo antes de mais interdependentes. Como
refere Jauss, a funo social da literatura s manifesta genuinamente as suas possibilidades
quando a experincia literria do autor intervm no horizonte de expetativa da sua vida
quotidiana, orienta ou modifica a sua viso do mundo e age consequentemente sobre o seu
comportamento social10, ou seja, quando realidade e fico se voltam a encontrar.
De forma a cobrir a complexidade anteriormente apresentada, foi seguida a metodologia, aqui
explanada em itens reduzidos:
1. Recolha e seleco de textos relevantes publicados entre 1890 e a dcada de quarenta
do sculo XX, sejam estes de fonte oficial ou fruto da interveno da sociedade civil. A
importncia dos textos medida pela repercusso que estes tm na sociedade em
geral, ou seja, atento especificamente a textos que constituram discursos em
situaes oficiais, que constituram acordos ou posicionamentos entre as potncias
coloniais, que tiveram repercusses junto da imprensa ou que a imprensa conseguiu
que tivessem impacto na sociedade, que revelem o posicionamento das populaes
locais, sobretudo das elites, face ao poder colonial. Entre estes textos so abarcados:
textos oficiais publicados; documentos diplomticos portugueses; relatrios de
instituies nacionais e internacionais no que concerne especificamente poltica
9 Ver Umberto Eco, Leitura do Texto Literrio: Lector in Fabula, Lisboa, Editorial Presena, 1993, 2.
Edio, p. 65. 10
Hans Robert Jauss, A Literatura como Provocao (Histria da Literatura como provocao literria),
[traduo Teresa Cruz], Lisboa, Vega, 2003, 2. Edio, p. 105.
17
colonial; legislao publicada; opinies, crnicas, relatos ou notcias expressos na
imprensa; textos resultantes de intervenes directas da sociedade civil em convnios,
congressos, conferncias; textos literrios; textos literrios produzidos em contexto
colonial (literatura local); escritos resultantes de testemunhos que exprimem uma
determinada realidade (dirios, crnicas de costumes, relatos de viagem). Entre estes
textos analisada com particular ateno toda a obra dos autores em estudo que
reflictam a sua cogitao em torno dos assuntos coloniais.
2. Contextualizao dos textos tanto em termos nacionais como internacionais, avaliando
a conjuntura em que se inserem.
3. Anlise do ponto de vista hermenutico dos textos seleccionados e contextualizados,
de modo a interpret-los e a procurar a mensagem essencial que buscam incutir no
seu pblico-alvo.
4. Apuramento da receo dos textos com temticas de carcter colonial pelo pblico-
leitor.
5. Interpretao das utopias coloniais propagadas atravs dos documentos escritos
analisados, com destaque para os textos literrios.
6. Comparao entre as utopias coloniais difundidas pela elite de origem metropolitana e
pela elite local.
7. Confrontao entre o que constituiu a utopia do discurso e a realidade apurada
localmente.
8. Anlise das continuidades e descontinuidades do sistema colonial portugus
encontradas nos diferentes espaos em estudo e sua evoluo durante o perodo em
estudo.
9. Contextualizao e anlise esttica e de contedo em profundidade dos textos
(ficcionais, ensasticos e jornalsticos, produzidos entre 1898 e 1947) de dois autores,
representando a elite da sociedade colonial e a elite oriunda da sociedade
metropolitana, Augusto Bastos e Jos de Macedo respetivamente, inserindo-os nas
tendncias do seu tempo e procurando, atravs deles, percecionar as continuidades e
descontinuidades discursivas relativas sociedade colonial.
10. Estudo do papel do elemento esttico na construo do estilo de cada um dos autores
e averiguao do seu contributo enquanto elemento unificador da produo
intelectual dos autores. Portanto, verificando se as tendncias estticas usadas na
fico se estendem produo textual no literria e se foram consideradas
determinantes pelos autores.
11. Aferio da receo dos textos dos autores na poca em que as obras foram
publicadas, sobretudo, atravs dos testemunhos publicados na imprensa e de alguma
correspondncia.
Durante a realizao da tese foi efetuado um trabalho de campo nas cidades de Luanda e de
Benguela e aproveitando para captar mais alguns dados no Lobito e na Catumbela, com a
finalidade de recolher material inexistente em Portugal, tendo permanecido em Angola entre
19 de Maro e 30 de Abril de 2010. Durante essa estada fiz pesquisa em bibliotecas, arquivos
administrativos e visitei locais, tentando reconstruir os passos dos autores e procurando
ligaes das suas redes. Fui conseguindo apurar alguns elementos e consultei documentos que
apenas ali poderia aceder como as actas camarrias, os peridicos locais (alguns nem na
18
Biblioteca Nacional de Lisboa existem), os actos administrativos, etc.. No entanto, de
assinalar a dificuldade constante na recolha de documentao, dado os obstculos que
surgem, nomeadamente, no que concerne cedncia de autorizaes para consulta. Outra
questo relevante a falta de condies em que o investigador tem de trabalhar, estando os
documentos, em muitos casos, degredados, arrumados sem qualquer ordem e sendo as
condies de trabalho deficitrias com a falta de energia eltrica constante, sem qualquer
meio para reproduo documental, apesar da boa vontade de muitos funcionrios que
tentavam colaborar. Tambm a abertura do esplio de Jos de Macedo, como anteriormente
referido, constituiu um imenso desafio s minhas capacidades de anlise e identificao
documental, dadas as condies em que se encontravam. O facto de trabalhar com
documentao no catalogada e em que a transcrio foi um mtodo constante por
dificuldade em aplicar qualquer outro, tornou o processo mais moroso, apesar de mais
desafiante e interessante, pois fiquei com a conscincia que muitos materiais eram tocados
pela primeira vez pelas mos de um investigador. O passo seguinte recolha, identificao e
transcrio da documentao foi a sua anlise e a aplicao do mtodo cientfico. Toda a
documentao analisada interdisciplinarmente, recorrendo sempre a uma interpretao
apoiada na disciplina semitica. A aproximao procurada baseia-se numa tentativa
permanente de enquadramento antropo-sociolgico dos discursos apurados, tendo em conta
uma multiplicidade de disciplinas que se estendem da cincia poltica economia, da histria
sociologia, passando pela antropologia, e, claro, pela literatura que me guia em todo o
percurso desta tese.
Como resultado e de modo a dar uma organizao lgica ao mesmo, decidi dividir a tese em
trs partes. A primeira intitulada Entre discursos, pretendendo enquadrar os autores na sua
poca e, em simultneo, demonstrar no s a variedade discursiva como a sua proliferao em
vrias reas da vida humana, comeando-se desde logo a analisar textos dos autores. Na
segunda parte denominada Do real ao utpico ou o inverso?, proponho que sejam
percorridos os vrios tipos de discurso, do cientfico e jornalstico ao literrio em que os
autores em estudo foram produtores discursivos e leitores vidos. A Parte III, Escritas em
nome prprio inteiramente dedicada literatura produzida pelos autores, em que de novo
se v como os discursos se entrelaam em realidade e fico, entre cincia e literatura, num
processo criativo profundo e profcuo. Para chegar a esta proposta foi feita uma recolha de
discursos do real e do utpico, tendo de passar no s pela produo ficcional de vrios
autores e em especial dos escritores em estudo, Augusto Bastos e Jos de Macedo, como pela
produo textual do real, em que insiro todos os textos jornalsticos, documentais, cientficos
entre outros como, por exemplo, os relatos, alguns destes assumindo uma forma hbrida e
sendo difceis de catalogar como estando apenas dentro de um gnero, dada a inteno dos
autores de os tornarem mais apetecveis para ser mais lidos. A interao entre mundo real e
mundo ficcional, entre realidade e utopia pareceu-me essencial para entender-se que as
continuidades entre um e outro mundos so evidentes e que sem se perceber esta inter-
relao, poder-se- perder a oportunidade de rececionar a diversidade da produo textual
em torno das sociedade coloniais e, em particular, da sociedade angolana, em destaque neste
estudo. Deste modo, penso conseguir-se uma anlise em profundidade sobre a diversidade
discursiva colonial, apurando, em simultneo, o que constituram as continuidades e as
descontinuidades da literatura e do jornalismo, entre a utopia e a realidade.
19
PARTE I
ENTRE DISCURSOS
20
CAPTULO I O COMEO
() quase que tudo esquecera o seu domnio colonial; e a zona da marinha e ultramar reputou-
se como uma dependncia do Parnaso, a pasta relativa a essa provncia da pblica
administrao (consoante se dizia no inglesado de estilo oficial) foi tida com pertena dos
poetas jovens, em aprendizagem rida dos graves negcios do Estado. A ndia s dava rumor
de que ainda existia para ns outros pelos peridicos de revoltas que no sobressaltavam
sequer um descorooado indeferentismo; e a frica era terra para degredados. De resto, a
curiosidade mundial, toda ela, soptara.
Sampaio Bruno
Augusto Bastos (1873-1936) e Jos de Macedo (1876-1948), autores que me acompanham ao
longo deste trabalho, representam um pensamento colonial que no saiu vencedor naquilo
que constituiu a poltica e prtica coloniais portuguesas, o discurso oficial ou mesmo o discurso
dominante. Como intelectuais sobrevivem a dois sistemas polticos (Monarquia e Repblica) e
a trs regimes polticos (Monarquia Liberal, Repblica Democrtica e Estado Novo) que
condicionam a sua produo textual. Escrevendo em peridicos e livros, publicam ensaios,
artigos e prosas ficcionais, abarcando o mundo real e o imaginrio, concertando na sua escrita
realidade e utopia. Ambos influenciados pelo positivismo de Comte que penetrara nas fileiras
das propostas alternativas ao poder institudo, sobretudo no republicanismo, em que se
inscrevem Bastos e Macedo, recebem tambm a interferncia no seu pensamento da filosofia
alem, do empirismo britnico, do evolucionismo darwiniano e, atravs das alas socialistas do
republicanismo, de pensadores como Proudhon que uma referncia assumida no caso de
Macedo. Alis, estas correntes de pensamento marcam a intelectualidade portuguesa e luso-
africana de todo este perodo do ltimo quartel do sculo XIX ao primeiro do sculo XX, sendo
leituras obrigatrias, mais ou menos assumidas e transversais no debate intelectual de
ento11. Contextualize-se, pois, as circunstncias em que os autores produzem a sua obra e de
como estes percursos podem simbolizar as continuidades e descontinuidades da colonizao
portuguesa, das propostas que se revelaram utpicas s solues reais.
Bastos e Macedo, um angolano mestio, o outro portugus de Vila de Nova de Gaia, vivem
respetivamente em Benguela e em Luanda, tendo ambos uma vivncia da ento metrpole,
como se ver em seguida. Tanto Benguela como Luanda eram cidades antigas, com um tecido
urbano prprio e com dinmicas j firmadas. Contudo, Benguela, durante o perodo em
estudo, ver-se- confrontada com o surgimento de novas cidades mais ao sul e com a
concorrncia de outras ali bem perto, como o caso do Lobito. Est-se, pois, num perodo de
mudana e de adaptao, em torno de mobilidades sociais, polticas e territoriais. Alis, esta
vontade de mudana e tendncia para transformao dos equilbrios internos e externos,
fazia-se sentir desde o processo de independncia do Brasil, mais propriamente em 1823, que
Benguela, talvez pressentido a sua perda de protagonismo com o afastamento do Brasil
(devido aos laos familiares e interesses econmicos existentes, facilitadas pelas ligaes entre
estas margens do Atlntico Sul), desejou a sua incorporao na Confederao Brazlica cujo
objetivo seria o de conseguir a independncia de Angola num quadro federativo com o Brasil.
11
Vide Maria Isabel Joo, Memria e Imprio, Comemoraes em Portugal (1880-1960), Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian/Fundao para a Cincia e Tecnologia, 2002, p. 57.
21
Esta confederao era defendida, sobretudo, por uma populao mestia luso-africana e afro-
brasileira que pretendia instaurar um relacionamento sul/sul direto12.
Escusado ser dizer que saiu vencida esta pretenso, derrota para a qual contribuiu o facto de
a elite colonial existente no ser uniforme na origem e, mais importante, neste caso nem nos
interesses e pretenses. Inmeras vezes, nem a necessidade de reunir capitais e esforo
humano para a construo das infraestruturas, que pareciam ser um interesse comum, foram
consensuais. Para alm desta desarticulao entre si da elite colonial, advinha o facto de,
muitas vezes, esta surgir de fenmenos socioculturais (como o enriquecimento de gente
modesta, a mestiagem biolgica e cultural, a origem socioeconmica dos indivduos)
desprezados pela elite e pela sociedade de referncia, a metropolitana, logo produzindo,
igualmente, uma desconexo entre aspiraes da elite metropolitana e da elite colonial13.
Interessa, essencialmente, perceber-se que parte da elite colonial, aquela que era gerada pela
urbe e na urbe e no resultante de um contexto de migrao, assumia caractersticas de
crioulidade, isto , demarcando-se de uma portugalidade unvoca, predominante entre as
vises elitistas metropolitanas, apesar da sua afirmao enquanto portugueses que parecendo
paradoxal, ver-se- adiante que no 14. nesse aparente paradoxo que se coloca a afirmao
identitria de portugalidade a par de uma assero de ser angolense (repare-se bem que no
uma declarao de angolanidade), portanto, diferenciado do portugus de Portugal, que gera
a pretenso da autonomia, conducente a uma independncia. Apesar das crticas metrpole,
esta autonomia no contra o colonizador, mas antes pelo direito a que os cidados locais
estejam mais perto do poder e o possam manejar em nome de um bem-comum para a colnia
e para a metrpole15. De sociedades em espera, porque bloqueadas pelo poder colonial
metropolitano, tornar-se-iam sociedades dinmicas, capazes de agir. Em vez de aprisionadas
na expectativa de decises longnquas de poderes ainda mais distantes que tardavam a chegar
e que as obrigavam a apenas reagir, em perodo de tempo dilatado, a questes prementes,
chegando, por vezes, a deciso, quando o problema ou questo j se era incontornvel
poderiam, tornar-se proativas16; era esta a esperana das elites colonizadas.
12 Vide Alfredo Margarido, Prefcio, in TORRES, Adelino, O Imprio Portugus entre o real e o imaginrio, Lisboa, Escher, 1991, p. 9. 13
Vide Adelino Torres, O Imprio Portugus entre o real e o imaginrio, Lisboa, Escher, 1991, p. 61. 14 Vide Francisco Sores, Notcia da Literatura Angolana, op. Cit., p. 11 e 153. 15
Note-se que o territrio que corresponde hoje atual Angola est ainda em formao em termos de geografia poltica, com o domnio de certas reas territoriais ainda inconclusivo ou com o recurso a campanhas militares que algumas vezes terminaram em derrota para o exrcito colonial. Assim, angolanidade ser um conceito identitrio introduzido mais tarde. Em finais do sculo XIX e incio do sculo XX, o termo seria angolense, reconhecendo a diferena face ao portugus de Portugal, mas reclamando ainda e apenas um regionalismo autonmico, tendente a uma independncia de que o Brasil era exemplo. Desta forma, nenhuma afirmao de um intelectual como angolense poderia levantar suspeio de traio ptria portuguesa, tal como era inconcebvel pens-lo relativamente a algum que se declarasse algarvio, minhoto ou beiro. 16
Sociedade em espera um conceito elaborado por mim, a partir de um trabalho de uma outra terminologia, identidades em espera, introduzido por Gabriela Dalla Corte e aplicado ao caso colonial africano por Jacint Creus. Tendo este ponto de partida, alarguei o campo de anlise a todos os fenmenos ocorridos socialmente e pareceu-me bvio o seguinte: essas sociedades estavam em espera porque o poder e as decises imanavam de um espao exterior que lhes impossibilitava tomar as rdeas dos seus destinos; para alm disso estavam bloqueadas pelo medo de agir. Vide Gabriele Dalla
22
Convm agora entender-se como a sociedade colonial urbana, j em si complicada, se v
confrontada com uma complexidade crescente, advinda de um novo interesse pelos territrios
africanos. A situao internacional, a denominada corrida a frica, contribui bastante para
esse fenmeno e leva a alguma crispao nacional, envolvendo toda a sociedade portuguesa
numa procura incessante de afirmao interna e externa que se pautava pelo caminho do
progresso e pela presso exterior que parecia empurrar Portugal para as traseiras da Europa.
Assim se explica o protagonismo da sociedade civil, acompanhando todo o conhecimento que
chegava atravs das sociedades cientficas geogrficas, das sociedades histricas, da literatura
de viagens, dos poetas de que fala Sampaio Bruno na abertura deste captulo, da reformulao
do conhecimento cientfico e do desenvolvimento econmico e organizando-se atravs da
criao das suas prprias associaes, da publicao de artigos, ensaios e textos literrios e no
debate tornado pblico, com a ajuda da imprensa, paulatinamente, mais acessvel populao
alfabetizada17. Contudo, convm assinalar que este dinamismo no se exercia apenas nos
centros urbanos metropolitanos. Tambm, nas cidades coloniais se organizavam movimentos
cvicos e se escrevia, publicando, o que significa que as populaes destas urbes tropicais, em
que se incluem Luanda e Benguela, pontos de referncia dos autores que sigo, no eram
apenas recetoras dos discursos oficiais, dominantes ou apenas veiculados publicamente. Estas
sociedades so produtoras de um discurso, embrionrio desde os primeiros momentos em que
se cultivaram artes e letras nos quintais e sales destas pequenas elites urbanas, mesmo que
modestamente.
Assim a uma complexidade social e poltica, pode-se acrescentar uma crescente diversidade
intelectual. Vrios produtores de discurso vo-se afirmando, separados no espao, embora
contemporneos, com vivncias prprias que os circunstanciam na sua produo e que, no
caso colonial, ainda podem afastar-se mais, pois se uns so intrnsecos realidade que
descrevem e aos anseios que praticam, outros so observadores externos dessa mesma
realidade, reproduzindo a sua prpria viso da alteridade, mas, muitas vezes, assente em
posies de legitimao resultantes da prpria posio do emissor discursivo (refiro-me a
classificaes como a informao oficial, o conhecimento cientfico, etc.)18. Deste modo,
encontra-se a par intelectuais que escrevem com carcter de exterioridade face ao assunto
sobre o qual redigem e outros que escrevem com carcter de interioridade, outros tantos
ainda, que sendo exteriores, escolhem durante parte ou a totalidade da sua vida a sociedade
que os acolhe e acabam por poder escrever em ambas situaes. Noutros casos, descobre-se,
ainda, a ideia que preciso produzir discurso onde este no existe, o que igualmente falso;
sob a forma escrita ou oral todas as sociedades so produtoras de discursos, em que estas se
representam e se do a conhecer. por isso necessrio perceber-se a experincia de vida de
quem produz, para conceber-se como a sua experincia pode ser vertida em escrita, em to
Corte e Paola Piacenza, A las puertas del hogar: madres nios y damas de caridad en el Hogar del Hurfano de Rosario, 1870-1920, Rosario, Pro Historia Ediciones, 2006. 17
Ernesto Castro Leal descreve assim o ambiente no incio do sculo XX: Perante um problema que marque a inquietao a escola intelectual, artstico, militar ou empresarial, gente de variados percursos e convices rene-se em torno de uma liga, revista ou jornal. Enumera, em seguida, vrios casos ilustrativos desta tendncia. Vide Ernesto Castro Leal, Antnio Ferro Espao Poltico e Imaginrio Social (1918-32), Lisboa, Edio Cosmos, 1994, pp. 120-121. 18
Edward W. Said aprofunda este tema relativamente ao Oriente, mas que se pode, em meu entender, estender para outras sociedades colonizadas como o caso da angolana. Edward W. Said, [traduo Pedro Serra], op. Cit., p. 13.
23
complexas situaes, em que mudana dos tempos se junta a diversidade, tornando as
sociedades coloniais extremamente dinmicas, ao invs do retrato esttico de que, inmeras
vezes, foram alvo.
Igualmente importante no estabelecer fronteiras rgidas entre mundos e contextos
culturais, porque em casos de contactos contnuos difcil que no ocorram emprstimos
mesmo que no reconhecidos ou circulao de ideias. Os meios urbanos coloniais de que falo,
apesar de limitados em populao, no deixavam de ter um toque de cosmopolitismo que lhes
chega exatamente com o encurtamento das distncias, providos pelas viagens regulares a
vapor e pela instalao do caminho-de-ferro, que traz novos habitantes de origens diversas
para a cidade, assim como chegam novos materiais impressos, discursos inovadores ou
renovadores. E a surge a aplicao do grande desafio do Iluminismo que a Europa inaugurava
e que parecia querer exportar: o que era correto para uma parte da humanidade seria correto
para toda a humanidade. Paralelamente a esta tendncia para a globalizao de direitos e
deveres, nem que fosse terica, uma outra, a da afirmao dos nacionalismo, disputando
terras alm-mar, buscando as suas origens fundadoras, no como alternativa a essa
globalizao, mas como complemento, quase como travo a uma globalizao que se poderia
tornar incontrolvel e incontornvel19. Havia um ns europeu, mas havia tambm um ns
portugus e depois um ns que partilhvamos uma cultura, espaos e tempos, originando
jogos de alteridade que nem sempre eram os mesmos20. Lembre-se ainda que ao referir estas
sociedades urbanas fruto da colonizao, estou a referir-me a sociedades construdas com a
participao de populaes muito diversas, incluindo a populao autctone, que no pulula
s nestas cidades, como viajou dentro do que eram os sistemas de comunicao coloniais,
encontrando-se por isso populaes oriundas do que hoje Angola, tanto em Lisboa (em que a
escravatura s abolida com o Marqus de Pombal no sculo XVIII) como no Brasil21.
Contudo, pode-se afirmar que os escritores africanos no eram muito numerosos e que se
deparavam com diferentes desafios, um destes a lngua, que no caso de muitos a lngua
materna no era coincidente com a lngua do colonizador que era tambm a lngua de escrita e
de publicao. Assim, tm mais facilidade no exerccio da escrita os urbanos, j criados em
ambiente de crioulidade, em que podendo existir uma lngua local coexiste a lngua colonial.
Outro desafio era libertarem-se daquilo que seria esperado de si ou do que era estimulado
pelos poderes coloniais e que no era mais do que mostrar a autenticidade local, atravs das
literaturas tradicionais, baseadas na oralidade, enquanto esta era valorizada na sua forma e
desvalorizada no seu contedo, sendo folclorizada e tornado o seu contedo inverosmil ou
algo associado a uma manifestao irracional. Todavia, alguns autores africanos conseguem
suplantar esta tendncia e, escrevendo na lngua do colonizador, contam entre as suas
publicaes o ensaio etnogrfico, produzindo, em simultneo, fico. Este o caso, por
19
Vide Kwame Anthony Appiah, My Cosmopolitanism, Barcelona, Centre de Cultura Contempornia de Barcelona, 2008, pp. 40-44. 20
Em discurso, a contraposio do eu ou ns pode basear-se na oposio ao poder colonial competidor, como o da Gr-Bretanha, pode enraizar-se na considerao do outro como incivilizado, pode ser o colono versus o colonizado, numa variedade de possibilidades que partida geralmente so descartadas, mas que discursivamente se vo afirmando. 21
Vide John Thornton [traduo Marisa Rocha Motta], A frica e os Africanos na Formao do Mundo Atlntico, 1400-1800, Rio de Janeiro, Campus Editora/Elsevier, 2004, 2. Edio, p. 48.
24
exemplo de Augusto Bastos, mas tambm de Paul Hazoum, do Daom, com a diferena que o
escritor francfono comea a escrever cerca de vinte anos depois de Bastos. Com contornos e
intensidades diferenciados pode aperceber-se que a situao colonial lana o mesmo tipo de
desafios aos escritores oriundos do meio colonizado, embora com especificidades intrnsecas a
cada caso. Assim, tambm aqui encontram-se cenrios de continuidade e descontinuidade
num mundo paulatinamente mais globalizado22.
Contexto Internacional: do abolicionismo partilha de um continente
frica entra no debate internacional, em grande parte, atravs da discusso do abolicionismo.
At ento, eram os relatos de viagem e as experincias espordicas de aventureiros que
alimentavam o imaginrio europeu, fruto das navegaes europeias comeadas no sculo XV.
Com a afirmao das correntes iluministas, a discusso sobre todas as questes ligadas
humanidade traz a lume o debate em torno da abolio da escravatura, o que se inscreve na
inaugurao de um certo cosmopolitismo, associado viso da humanidade como um todo.
Contudo, este debate no significa automaticamente que o escravo ou as populaes de que
oriundo sejam consideradas exatamente da mesma forma como aqueles que j conhecem as
Luzes. Os escravos continuam refns da sua ignorncia, bem como os territrios de sua origem
mantm-se carentes de desenvolvimento. Assim sendo, a interveno justa a abolio do
regime escravocrata em paralelo com a educao dos indivduos e a modernizao das
sociedades de que so oriundos. M. Ladbat, em 1788, apresenta o esclavagismo como crime
pblico e como algo contrrio moral natural da humanidade. O seu discurso, apresentado
publicamente, na Academia Real das Cincias, Belas Letras e Artes de Bordeaux, inscreve-se no
debate combativo e abolicionista da poca, justificando o seu autor a sua impresso, em
postscriptum, com a necessidade de contribuir para a libertao dos escravos, formando-os no
trabalho e no respeito pelos costumes. A sua liberdade no seria suficiente, era necessria
providenciar-lhes uma existncia feliz e til. Acrescenta ainda que estas ideias devem ser
apresentadas opinio pblica. Refere, ainda, um trabalho impresso de M. Schwartz que o
teria levado a disseminar a sua ideia para alm da apresentao oral do discurso23. Dois
elementos, desde j, a reter na sua anlise: a injustia da escravatura, por um lado, o tornar
pblica a discusso, no s para ouvintes como para leitores, ou seja, o assumir da importncia
do elemento discursivo, por outro lado. O que aqui se denota que os abolicionistas de finais
do sculo XVIII j esto a lidar com os desafios que o sculo XIX aprofundar, tendo a noo de
um novo poder em formao, o da opinio pblica que Ladebat refere da seguinte maneira: Je
crois donc devoir encore soumettre ms ides lopinion publique24. Lembre-se que nos pases
europeus, como Portugal, a prtica da escravatura abolida com o Iluminismo, no caso
22
Para a literatura francfona e ainda nos anos sessenta, Robert Pageard publica um pequeno livro que pretende traar esse caminho da literatura negro-africana, levantando alguns dos problemas com que os autores lusfonos se confrontam e que adiante ser analisado. Vide Robert Pageard, Littrature negro-africaine, Paris, Le Livre Africain, 1966, pp. 8-12. 23
M. de Ladebat, Discours sur la ncessit et les moyens de dtruire lesclavage dans les colonies, Lu la sance publique de lAcadmie royale des Sciences, belles lettres et arts de Bordeaux, le 26 Aot 1788, Project Gutenberg, [Ebook #10697] January 12, 2004, p. 3 e postscriptum, p. 32. 24
Idem, p. 33.
25
portugus pelas leis pombalinas de 1761 e 1773, impossibilitando a importao deste tipo de
mo-de-obra e proibindo a sua prtica, mesmo que enquanto costume25.
Com o dealbar do sculo XIX e as transformaes das sociedades em processo de
industrializao, a estes princpios humanitrios, juntam-se outros, mais pragmticos, num
ambiente internacional de competio nacional e, em simultneo, de partilha de ideias de
princpio, como a imoralidade do trfico negreiro. Ideias que j se vinham desenhando, por
exemplo, no trabalho de Ladebat, em que j so referidos os benefcios do trabalho livre e a
sua importncia para a manuteno as colnias, isto , existe uma preocupao em justificar a
libertao do escravo de modo racional e, em seguida, de explicar a possibilidade de regimes
transitrios de libertao da mo-de-obra que mais do que um custo seriam uma conquista
humanitria e poltica. Quer isto dizer que as ideias largamente disseminadas no sculo XIX,
tm a sua fecundao no sculo XVIII26. Muda, essencialmente, com a transio do sculo, a
relao entre discurso e prtica. O sculo XIX uma afirmao contnua de pragmatismo e
jogo poltico, com consequncias diretas nas populaes escravizadas. Franoise Vergs, num
trabalho no consensual e com propsitos revisionistas acerca do abolicionismo, refere
mesmo que o decreto que liberta os escravos os transforma diretamente em proletrios27.
Joaquim Nabuco refere num livro publicado na poca, O Abolicionismo, que a escravatura era
um bice criao de uma classe operria, criao de meios rurais e urbanos saudveis e
valorizao do trabalho, enquanto fator de afirmao do ser humano28. emancipao so
associadas outras duas noes no discurso abolicionista para a construo do ser humano
livre, isto , de um potencial cidado: a assimilao, atravs da educao, e a integrao numa
sociedade j modernizada. De toda a forma, o mais interessante do discurso abolicionista
este estar a caminho de mas no ser ou pertencer completamente a. Note-se ainda que,
apesar de uma libertao de uma parte da populao subordinada e sem quaisquer direitos
polticos ou sociais estar em curso, o discurso continua a ser unvoco, isto , o discurso do
escravo simplesmente no existe, muito deficitrio ou tem a intermediao de algum que o
dissemina. Esta situao permitiu que durante muitos decnios houvesse uma vitimizao do
escravo e que o abolicionismo fosse visto como uma questo moral do Ocidente desenvolvido,
ocultando-se toda a envolvncia que o trfico esclavagista teve e que foi muito para alm da
relao entre senhor e escravo na sociedade que em que este era acolhido.
Os registos do abolicionismo, para alm da prosa e arte humanistas e, por vezes, inflamadas
dos abolicionistas (todos eles vindos das elites intelectuais, com rarssimas excees), so
feitos em cadastros notariais, em minutas de aprisionamento e, raras vezes, com a recolha de
narrativas pessoais, sintoma que um dos nomes maiores do abolicionismo em portugus,
Joaquim Nabuco descreve: Se cada escravo narrasse a sua vida desde a infncia as suas
relaes e famlia, a sua educao de esprito e corao e corao, as cenas que presenciou, os
castigos que sofreu, o tratamento que tece, a retribuio que deram ao seu trabalho de tantos
anos para aumentar a fortuna e o bem estar de estranhos , que seria A Cabana do pai
Toms?, de Mrs. Beecher Stowe, ou A Vida, de Frederick Douglas, ao lado de algumas
25
Jean-Yves Loude, Lisboa na Cidade Negra, Lisboa, D. Quixote, 2005, p. 169. 26
Ladebat, M. de, op. cit., pp. 13-16. 27
Franoise Vergs, op. cit., p. 33. 28
Vide Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, S. Paulo, Publifolha, 2000, http://www.bibvirt.futuro.usp.br (Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro), pp. 59-66 e 74-76.
http://www.bibvirt.futuro.usp.br/
26
narraes que ns teramos de escutar?29. Importante passo d este autor que termina este
livro em 1863, em Londres, onde vivia poca, exemplificando com o discurso ficcional e
artstico a causa abolicionista e, indo mais longe, acaba por detetar onde estes discursos reais
e ficcionais no chegam que no mais do que a prpria vivncia do escravo. que uma
sociedade escravocrata diferente de uma sociedade com escravos, uma sociedade
condicionada pela relao senhor/escravo que no s modela o sistema de produo como
toda e qualquer relao social. Diz Franoise Vergs que numa sociedade esclavagista todos
aspiram a possuir escravos, fator direto de promoo social, determinando a histria, a
demografia, a construo geogrfica, etc.30. Logo, a maioria dos abolicionistas quando escreve
f-lo de sociedades com escravos ou que toleram a escravatura, situao em que no esto os
abolicionistas do continente americano como Joaquim Nabuco ou como os intelectuais
africanos que tambm o fazem. Alis, Nabuco, entre muitos outros, representa outra
diversidade do discurso abolicionista. Ele j o intelectual da sociedade escravocrata a
desenvolver um sentimento de injustia e ultraje que o leva a escrever o seu livro31. E, apesar
do seu livro assentar no humanitarismo europeu e sobretudo britnico quanto escravatura, a
verdade que o autor levanta inmeras questes que se prendem com o paradoxo da
emancipao nacional do Brasil que permite a manuteno da escravatura.
Tanto Nabuco como Vergs fazem essa distino entre os sentimentos e realidades de uma e
de outra sociedade, dizendo Nabuco: A guerra contra a escravido foi, na Inglaterra um
movimento religioso e filantrpico, determinado por sentimentos que nada tinham de poltica,
seno no sentido em que se pode chamar poltica moral social do Evangelho. No Brasil,
porm, o abolicionismo antes de tudo um movimento poltico, para o qual, sem dvida,
poderosamente concorre o interesse pelos escravos e a compaixo pela sua sorte, mas que
nasce de um pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a unio das
raas na liberdade. Segue e mais frente afirma: Nos outros pases o abolicionismo no tinha
esse carcter de reforma primordial, porque no se queria a raa negra para elemento
permanente da populao; nem como parte homognea da sociedade. O negro, libertado,
ficaria nas colonias, no seria nunca um fator eleitoral na prpria Inglaterra ou Frana. Nos
Estados Unidos os acontecimentos marcharam com tanta rapidez e desenharam-se de tal
forma, que o Congresso se viu forado a fazer dos antigos escravos do sul, de um dia para o
outro, cidados americanos, com os mesmos direitos que os demais; mas esse foi um dos
resultados imprevistos da guerra32. No entanto e apesar da assero muito correta de Nabuco,
dizendo que no Brasil, a questo no , como nas colnias europeias, um movimento de
generosidade em favor da classe de homens vtimas de uma opresso injusta a grande
distncia das nossas praias33, a verdade que existe uma vontade poltica no abolicionismo
europeu a par de vontades filantrpicas e humanitrias no menos valiosas da sociedade civil.
Contudo, a hiptese determinante de anlise que Nabuco levanta aquela que muitos anos
mais tarde guiar o historiador John Thornton quando este se refere aos africanos no sculo
XVII como a maioria dos colonos no mundo atlntico, ou seja, nas Amricas o abolicionismo
tem de ser analisado em todas as suas vertentes como um movimento intrnseco sociedade e 29
Idem, p. 16. 30
Franoise Vergs, op. Cit., p. 42. 31
Joaquim Nabuco, op. Cit., pp. 1-2 32
Idem, p. 9. 33
Idem, p. 9.
27
com consequncias diretas nesta34. Quanto dimenso poltica do pensamento abolicionista,
analisa bem Vergs quando, distncia do facto permitida pelo tempo, refere as razes
polticas que estariam no na origem, mas na permanncia deste movimento abolicionista. H
um elemento poltico importante a considerar: sem o fim do trfico negreiro e da demanda
esclavagista no poderiam os pases europeus estabelecer-se nos pases africanos
fornecedores desta mo-de-obra e a criarem estados coloniais. A habilidade discursiva de
polticos e a vontade da sociedade civil permitem ao tempo colocar o acento tnico na questo
humanitria que tantas vezes desprezou as consequncias de medidas imediatas libertadoras,
como a capacidade de sobrevivncia do prprio escravo. Portanto, se verdade que os
escravos no estariam nas praias europeias, tambm verdade que esta mo-de-obra fazia
falta para os novos projetos expansionistas europeus. Concentre-se agora o estudo, apenas,
neste elemento do jogo discursivo abolicionista, pois mais frente explorarei este assunto.
A funo humanitria no termina com a libertao do escravo, seguem-se outras premissas
necessrias para o bem da civilizao. Num jogo de vitimizao do escravo e heroicizao do
ativista antiescravista, a responsabilidade das sociedades africanas no prprio trfico diluda
para que apenas os dirigentes polticos e responsveis sociais africanos, afinal os aliados dos
europeus nas suas primeiras incurses em territrio africano, fossem demonizados, sendo
preciso libertar a populao da sua influncia Assim, surge a necessidade de educar e fazer
progredir o grande continente dominado por reis dspotas, sobas esclavagistas, rgulos sem
escrpulos e muulmanos negreiros35. Expia-se a culpa que os europeus tinham no trfico
esclavagista: o de terem sido responsveis pela sua ampliao, sistematizao e
endurecimento, enquanto construam o mundo atlntico. A variao das narrativas relativas a
frica, sobretudo, no chamado continente negro, era tambm fruto de uma diversificao
de presenas neste mesmo continente, facilitada pelo uso do quinino que baixava a
mortandade entre os europeus e que ia ao encontro da nova funo protagonizada pelos
poderes europeus. A perceo de que a escravatura em frica era endgena por razes de
organizao sociopoltica, em que no existindo a propriedade privada, existia o direito
propriedade privada da fora de trabalho, controlada por complexos sistemas de linhagem, em
que os membros mais novos tinham de prestar obedincia aos mais velhos tinha facilitado a
situao. Portanto, uma srie de ferramentas institucionais africanas esto adaptadas a esta
realidade, como por exemplo, a existncia de tribunais prprios que condenavam homens
livres escravatura. Igualmente as guerras eram fornecedoras de escravos, situao que se
exacerba no incio do sculo XIX, com a intensificao de fornecimento de armamento pelos
europeus em troca de escravos, que apenas findar com os acordos de proibio de comrcio
de armas entre as potncias europeias para tornar possvel a ocupao efetiva do continente.
Mesmo assim durante as campanhas de ocupao dos europeus comum haver relatos do uso
de armamento ao tempo j desatualizado.
Logo, se, por um lado, h a incompreenso europeia face instituio da escravatura tal como
esta praticada em frica, a verdade que a realidade e os interesses em jogo facilitam a
criao de discursos humanitrios que justificaro uma ao poltica, mobilizando intelectuais
das mais diversas origens. Com isto no quero dizer que no existe uma franca vontade dos
34
Vide John Thornton, op. cit., p. 54. 35
Vide idem, pp. 124-125 sobre a participao africana no trfico negreiro.
28
abolicionistas contriburem para o bem da humanidade, mas to s referir que a existe um
dos maiores testemunhos que a utopia e a realidade coexistem e se complementam em
quadros de mudana. Na verdade, o abolicionismo comea por ser uma utopia de quem no
sofre na pele os seus efeitos e no deixa de ser uma proposta alternativa sociedade
escravocrata.
Assim, aos aventureiros e comerciantes juntam-se os missionrios, os exploradores cientficos,
seguidos dos militares que demarcavam o territrio e muito lentamente alguns colonos. O
continente misterioso, obscuro e perigoso estava agora qual fera domada nas mos dos
europeus, capazes de o tornar compreensvel ao leitor europeu no conforto do seu lar.
Reconhecendo que a luta antiescravagista seria longa e dura, os poderes internacionais
acordam fixar os seus princpios, seja no Ato Anti-esclavagista de Berlim, em 1885,
reafirmando a vontade das potncias europeias em debelar este trfico, seja em 1888 com a
criao da Sociedade Anti-Esclavagista em Frana, sob o modelo da sua congnere inglesa, e,
em 1889, o Rei Leopoldo II da Blgica organiza uma conferncia internacional contra a
escravatura, em Bruxelas. Contudo, todas estas medidas eram ainda de alcance limitado, pois
atuavam essencialmente sobre o trfico e no sobre o exerccio da escravatura em si dentro
do continente africano. Todavia, o efeito dos relatrios de viagem dos exploradores e os
relatos dos missionrios contriburam em muito para que houvesse uma conscincia diferente
relativamente ao trfico continental e escravatura praticada no interior das sociedades
africanas. A escravatura torna-se igual em qualquer parte do mundo e uma tragdia a
combater. A razo e o progresso no podem permitir que mulheres e homens, s pela sua
condio de subordinao, sejam tratados como mercadoria. Deste modo, o pensamento
antiescravista pode aceitar a colnia e esse tipo de subordinao em nome do progresso, mas
no a continuao da escravatura. A abolio da escravatura significava, igualmente, o seu
apagamento, em nome do conhecimento que levaria formao de sociedades modernas. Ao
longo de todo o sculo XIX inventar-se-iam e organizar-se-iam arquivos paulatinamente mais
vastos de conhecimento destas regies, at h pouco tempo inspitas, e ao faz-lo inicia-se
um longo processo de hierarquizao de objetos e naturezas, como se tudo funcionasse por
alteridade e, em alguns casos, mesmo por oposio36. Ao longo de todo este processo, os mais
abolicionistas vo descobrindo as prprias perverses possibilitadas pela sua retrica
humanitria que nunca lhes teria aflorado o pensamento. Personalidades como o Rei Leopoldo
II ou o jornalista aventureiro Stanley simbolizam bem essa perversidade e as tenses que
podem existir entre o discurso e a prtica, entre a utopia e a realidade. Com a concretizao
paulatina da luta abolicionista por terra e por mar, abria-se espao para a ocupao efetiva dos
territrios africanos. Lembre-se que so dois movimentos que se tornam contemporneos em
meados do sculo XIX, gerando ainda mais diversidade discursiva. Conferncias, negociaes
diplomticas, imprensa, com a tentativa de formar a opinio pblica sobre as questes
africanas, e prtica poltica a par de intervenes militares tornam-se os palcos da ao
colonial.
36 Vide Pascal Blanchard e Sandrine Lemaire, Culture Coloniale: La France conquise par son empire, 1871-1931, op. cit., p. 55.
29
A Conferncia de Berlim ficou conhecida como aquela que traa os destinos do continente
africano para a modernidade. Com negociaes que duraram de Novembro de 1884 a
Fevereiro de 1885, realiza-se apenas com a discusso entre as potncias colonizadoras (Gr-
Bretanha, Frana e Portugal), com as potncias que tinham pretenses a tornarem-se
colonizadoras (Alemanha e Blgica) e com as que tinham pequenos enclaves ou faziam parte
do denominado Concerto das Naes (ustria-Hungria, Dinamarca, Espanha, E.U.A., Itlia,
Pases Baixos, Rssia, Sua e Turquia), portanto sem a representao de qualquer poder
autctone africano. Daqui sai uma orientao para todos os pases colonizadores baseada
numa ocupao territorial efetiva, com o estabelecimento de instituies e povoados e o
assentamento de populao europeia no papel de colono. Esta nova diretiva internacional
trar muitas alteraes gesta colonial, com especial impacto em Angola cujo serto estava
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