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DANIEL COELHO DE SOUZA Professor catedrático da Universidade Federal do Pará
Ex-membro do Conselho Federal de Educação
INTRODUÇÃO
À CIÊNCIA
DO DIREITO
6ª edição
editora C cejup
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INTRO UÇÃO
A introdução à ciência do Direito responde, no curso jurídico, ànecessidade de uma disciplina geral. Os cursos superiores, desenvolvidos pordisciplinas especializadas, reclamam que ao estudo setorial preceda outro
geral. Esta conveniência é mais veemente no curso jurídico, cujo objeto éhistórico: regras obrigatórias de conduta na sociedade de um tempo, o que,
provavelmente, levou Benjamin de Oliveira Filho a reivindicar para aintrodução caráter eminentemente cultural.
Não é, aliás, este imperativo apenas de ordem didática. O saber jurídico, qualquer que seja o nível em que o consideremos, só pode ser bem
exposto e compreendido, se o seu estudo se inaugura pelo exame das suas generalidades, pretensão mais ambiciosa e fecunda do que a sua simplesvisão sintética sugerida por A. B. Alves da Silva.
Objetivo de tal natureza sempre foi almejado. Várias foram astentativas de alcançá-lo: a enciclopédia jurídica, a filosofia do Direito, asociologia jurídica, a teoria geral do Direito e a introdução à ciência doDireito.
Enciclopédia jurídica
A enciclopédia jurídica foi a mais remota. Adotava por padrão aestrutura do Corpus Juris , tradiciona l codificação do Direito romano.
Pretendem alguns que a obra de Gulielmus Durantis 1237-1326), o Speculum Judiciale (1275), seja considerada pioneira no gênero, o que outroscontestam. O texto de Durantis abrangia o Direito romano e o canônico,destinando-se mais propriamente às autoridades judiciárias do que ao estudodo Direito.
A literatura enciclopédica floresceu a partir do século XVI, quando sedivulgaram numerosos trabalhos compreendendo todos os ramos do direitode maneira sistemática, entre os quais se destacaram os de Lagus e Hunnius ,atribuindo alguns a este último a verdadeira fundação da enciclopédia
jurídica.
No século XVIII, resultante do divórcio entre a filosofia e as ciências positivas, duas tendências passaram a atuar na enciclopédia jurídica, do que
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decorreu que algumas obras se inclinassem no sentido dogmático ou positivo,como a de Stéphane Pütter , e outras no sentido filosófico, como a de
Nettelbladt.
No começo do século XIX, sob influência de Georg Wilhelm FriedrichHegel (1770-1831) e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854),
procura-se fazer da enciclopédia uma ciência própria, não mero repositór iomais ou menos ordenado de informações. Surgiram, assim, as enciclopédiasde Karl Pütter , Friedlaender , Rudhart , Heinrich Ahrens (1808-1874), Walter eoutros.
A partir da segunda metade do século XIX a literatura enciclopédica
entra em decadência, não merecendo referência senão à obra de AdolfMerkel (1836-1896), cuja primeira parte é dedicada já ao estudo da teoria
geral do direito: conceito, ca racteres, divisão e gênese do Direito; elementos,divisão e gênese das relações jurídicas; aplicação do Direito e ciências
jurídicas.
O trabalho dos enciclopedistas, sem embargo da amplitude teórica dealgumas de suas obras, era, principalmente, de organização do Direito
positivo. Não podia a enciclopédia emancipar-se da experiência jurídica,
alcançar conceitos gerais e servir, assim, de instrumento útil para umconhecimento jurídico de base não empírica.
Adquirir uma idéia sucinta das parcelas, como pondera Eusébio deQueiroz Lima , não é ter uma noção exata do todo. E além disso, reparaErnesto Eduardo Borga, por sua orientação empirista, atendo-se aos fatos,somente poderia resultar numa teoria do Direito Positivo, nunca numa teoriaque abarcasse o direito todo, menos ainda o conceito elaborado em vista doDireito Positivo.
Filosofia do direito
A filosofia do direito integrou, durante muito tempo, o currículo jurídico, proporcionando ao estudante contato com as mais gerais noções jurídicas. E é certo, conforme anota Huntington Cair ns, que a especulação jurídica, a través de toda a sua história, a pesar do fato de que o seu objeto em grande parte é existencial, tomou mais da filosofia do que da ciência .
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É fora de dúvida, porém, que por ela não se poderia jamais iniciar oestudo do Direito. Não se conclua daí, que não tenha valiosa significação no
elenco das disciplinas jurídicas. Apenas, o saber filosófico, do ponto de vistalógico, senão cronológico, deve suceder ao científico. O conhecimentofilosófico é a síntese mais alta que o homem alcança, a nenhuma síntese seatinge, com exatidão e coerência, sem a prévia análise dos elementos que a
pressupõem. A atividade filosófica é crítica em alto nível, e os níveis maisaltos de crítica não podem ser alcançados sem que antes tenham sido
percorridos os inferiores. O saber filosófico só pode ser atingido apoiado emconhecimento anterior mais modesto porque é saber de remate. Nem é viável
pretender a filosofia de um objeto sem o seu prévio conhecimento científico,dado que aquela, explica Joseph Vialatoux , é um retour , uma reentrada, uma
re-flexão de um saber ao menos começado.
A tendência geral, em nossos dias, é deslocar a filosofia jurídica docurrículo de graduação para o de pós-graduação, posição de culminânciaque já lhe fora assinalada por Alessandro Levi. Também o nosso Pedro Lessa(1859-1921), que entendeu ter sido um erro grave a eliminação dessadisciplina dos cursos jurídicos, pretendia vê-la situada no último ano daacademia.
Sociologia jurídica
Podemos estudar os fatos sociais na sua generalidade, naquilo quetodos têm em comum, examiná-los, portanto, em sentido lato; paralelamente,
podemos considerar alguns deles que têm qualificação própria e promovemum processo adaptativo peculiar. A sociologia geral, consoante Nicholai S.Timacheff, estuda a sociedade em nível altamente generalizado ou abstrato, eas ciências sociais particulares, sob um determinado e específico aspecto.Segundo Pitirim Sorokim (1889-1998), a linha de demarcação existente entre
estas e aquela decorre do fato de que, se existem, dentro de uma classe defenômenos, N subclasses, deve haver N + 1 disciplinas para estudá-las: N
para estudar cada subclasse e mais uma para estudar aquilo que é comum atodas, bem como a correlação entre elas.
O fato jurídico, sendo social, pode ser objeto de uma delas, a sociologia jurídica. Sucede, porém, que a sociologia jurídica considera o Direito sob oaspecto da sua causalidade histórica, que é apenas um elemento paracompreendê-lo. O Direito é, antes de tudo, norma e valor. Não cabe
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compreendido na sua universalidade sem a pesquisa das exigências éticas queinspiram suas regras, ao que não atende a sociologia jurídica.
Esta é, ademais, uma ciência de temática polêmica e de contornosrelativamente imprecisos, o que a inabilita para servir de disciplina geral nosestudos jurídicos. É o que assinala, também, André Franco Montoro, quandoa caracteriza como disciplina que ainda não se consolidou suficientemente,no sentido de não dispor de um corpo sistemático de conclusões, com objeto emétodos definidos, atraso de desenvolvimento que atribui à hostilidade dedois setores afins: de um lado, os juristas resistem à penetração, em seucampo, de uma disciplina estranha à dogmática jurídica, e, de outro, ossociólogos desconfiam da objetividade e do caráter científico de estudos
vinculados à normatividade jurídica.
Além disso, a sociologia jurídica não focaliza, nem lhe caberia fazer, aregra jurídica em si, na sua estrita significação normativa. Dedica-se àanálise dos seus pressupostos fáticos, os fatores sociais que a determinam. Eestes, relevantes que sejam para o sociólogo ou o historiador, não satisfazemà necessidade de pré-conhecimento científico do ordenamento jurídico,
porque dele não proporcionam uma noção autêntica e metódica .
Teoria geral do Direito.
A teoria geral do Direito, no campo dos estudos jurídicos, refletiu ainfluência avassaladora do positivismo do século XIX. Escola antimetafísica,o positivismo alimentava a convicção de que a filosofia jamais alcançaria,como sempre se propusera, o conhecimento das essências. Sob sua feiçãoortodoxa, importava verdadeira contestação da autonomia do conhecimentofilosófico, dado que entendia caber a este a missão de integrar e coordenar oconhecimento científico.
No setor dos estudos jurídicos, a filosofia positivista engendrou a teoria geral do direito, que devia substituir a filosofia jurídica. O jurista partiria daanálise da realidade histórico-social para, por comparação e indução, alçar-se aos conceitos. Ciência, conforme pretendia ser, a sua primordialcaracterística seria a de subordinar-se ao método científico. Nenhum saber
jurídico poderia convergir para outro objeto que não o próprio direito positivo. Ao jurista competia observar as instituições, determinar as suas
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afinidades, assinalar as suas relações permanentes, e, finalmente, porindução, alcançar as respectivas noções gerais.
Embora a teoria geral do Direito não tenha ocupado a posição quealmejava, uma vez que dava por sucumbida a filosofia jurídica – diagnósticoem que falhou totalmente, pois, como assinala Alceu Amoroso Lima (1893),assistimos nos últimos anos a um recrudescimento em torno dos fundamentosfilosóficos do Direito, como talvez jamais se tenha visto no decorrer de toda ahistória - certo é que se integrou definitivamente na doutrina do direito.
É indubitável, porém, que ela não exaure os nossos conhecimentosteóricos. Basta ter em mente que condenava a fracasso qualquer tentativa de
conhecimento jurídico-filosófico, o que contradiz toda a cultura jurídicacontemporânea.
Introdução à ciência do Direito
A introdução é uma disciplina cuja meta mais pretensiosa está naformulação de princípios gerais aplicáveis ao conhecimento jurídico. É umadisciplina epistemológica, não uma disciplina jurídica em sentido restrito,
porque não estuda uma normatividade jurídica histór ica. Não se ocupa denormas jurídicas, de sistemas de direito positivo, de nenhum ordenamento jurídico vigente. É uma ciência da ciência do direito. Considera as noções gerais do direito, tal como podem ser abstratamente formuladas, quasesempre fazendo omissão dos seus matizes históricos reais.
Uma das suas características mais típicas é o seu sentido pragmático.Seu conteúdo não é rigoroso, exato, rígido. Defensável, até certo ponto, éincluir ou excluir dele certas matérias. Constituem-na noções que professorese tratadistas entendem adequadas para a iniciação ao curso de Direito. Essa
circunstância gera a diversidade dos programas de ensino.
Uma das facetas da sua preocupação prática está em que ela deveservir de trânsito entre o curso médio e o superior. Problema que é hojeobjeto de preocupações e cuidados, justificando a reivindicação de um
processo de integração da escola média com a universida de.
As dificuldades da passagem daquela a esta não são exclusivas docurso jurídico. Afligem, em parte, os candidatos a outros cursos, como o de
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Medicina, o de Engenharia, o de Economia, etc. No curso de Direito, porém,como enfatiza Gaston May , se agravam. Em relação a outros, o currículo
médio proporciona, de algum modo, conhecimento prévio que terá utilidadedireta no curso superior. Em Medicina, por exemplo, o estudante já secontactou com a Biologia e a Física. Em Engenharia, as noções de Física e deMatemática obtidas no curso médio são de vantagem decisiva no superior.Para o estudante de Direito, no entanto, há um hiato entre o curso médio e osuperior. É por isso que a introdução, sem prejuízo do seu núcleo de idéias
gerais a que corresponde, em princípio, a chamada teoria geral do Direitocolige noções não jurídicas, mas filosóficas, sociológicas e, eventualmente,também históricas, e delas se utiliza como ponte entre o curso médio e osuperior.
Para justificá-la, ainda poderiam ser citadas as palavras de que seserviu Cousin para pleitear a criação dessa disciplina em França, transcritas
por Lucien Brun: “ Quando os jovens estudantes se apresenta m em nossasescolas, a jurisprudência é para eles um país novo do qual ignoramcompletamente o mapa e a língua. Dedicam-se de início ao estudo do DireitoCivil e ao do Direito romano, sem bem conhecer o lugar dessa parte doDireito no conjunto da ciência jurídica, e chega o momento em que, ou sedesgostam da aridez desse estudo especial, ou contraem o hábito dos detalhes
e a antipatia pelas vistas gerias. Um tal método de ensino é bem poucofavorável a estudos amplos e profundos. Desde muito tempo os bons espíritosreclamam um curso preliminar que tenha por objeto orientar de algum modoos jovens estudantes no labirinto da jurisprudência; que dê uma vista geral detodas as partes da ciência jurídica, assinale o objeto distinto e especial decada uma delas, e, ao mesmo tempo, sua recíproca dependência e o laçoíntimo que as une; um curso que estabeleça o método geral a seguir no estudodo Direito, com as modificações particulares que cada ramo reclama; umcurso, enfim, que faça conhecer as obras importantes que marcaram o
progresso da ciência. Um tal curso reabilitaria a ciência do Direito para a
juventude, pelo caráter de unidade que lhe imprimiria , e exerceria umainfluência feliz sobre o trabalho dos alunos e seu desenvolvimento intelectuale moral”.
Complementarmente, é válido observar que a introdução atua comoverdadeiro teste vocacional. A experiência mostra que o universitário deoutros cursos, pelo trato anterior com matérias que a eles pertencem, tem, deum modo geral, embora imprecisamente, relativa informação quanto ànatureza dos dotes pessoais que lhe serão preferentemente reclamados. O
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discípulo que no curso colegial sente predileção pela Matemática temrazoável probabilidade de êxito no curso de Engenharia, ou em outro em que
o conhecimento matemático seja básico. Já o estudante de Direitohabitualmente se inclina para o curso por uma escolha negativa. É a falta deajuste às ciências experimentais, quase sempre, que o leva do colégio àfaculdade, quando não uma inclinação literária ou um simples pendor para asleituras propiciatórias de cultura geral. Essa escolha no escuro encerra orisco de uma opção a que não corresponda inclinação autêntica.
O estudo jurídico, como o de qualquer curso superior, é especializado,o que importa dizer que resultado melhor é obtido quando tentado por quem
possui real inclinação para as matérias que o integram. Por isso, a
introdução, dando ao estudante um primeiro contato com o curso, faculta-lhe julgar das suas próprias habilitações e retificar ou confirmar uma escolhaque pode ter feito sem os elementos imprescindíveis à sua decisão.
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SUMÁRIO
1. Dados filosóficos
1.1 Realidade e valor1.2 Homem e valor1.3 Direito e justiça
2. Dados sociológicos
2.1 Fato social2.2 Sociedades humanas2.3 Fenômeno político
3. Dados sociofilosóficos
3.1 Normatividade social3.2 Normas éticas e normas técnicas3.3 Normas morais e normas jurídicas3.4 Normas convencionais
4. Disciplinas jurídicas
4.1 Disciplinas fundamentais e auxiliares4.2 Filosofia jurídica4.3 Ciência do Direito4.4 Teoria geral do Direito
5. Noções fundamentais
5.1 Norma jurídica5.2 Norma, sanção e coação5.3 Sanções jurídicas5.4 Fontes do Direito5.5 Direito subjetivo5.6 Direitos pessoais e direitos reais5.7 Proteção dos direitos subjetivos5.8 Dever jurídico5.9 Relação jurídica5.10 Atos jurídicos
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5.11 Sujeito de Direito5.12 Objeto do Direito
5.13 Ato ilícito
6. Instituições jurídicas
6.1 Instituições jurídicas6.2 O Estado6.3 Personalidade6.4 Família6.5 Propriedade6.6 Posse
6.7 Obrigações6.8 Sucessão
7. Enciclopédia jurídica
7.1 Classificação das normas jurídicas7.2 Problemas de classificação7.3 Critérios de classificação7.4 Direito Constitucional
7.5 Direito Administrativo7.6 Direito Penal7.7 Direito Processual7.8 Direito do Trabalho7.9 Direito Internacional Público7.10 Direito Civil7.11 Direito Comercial7.12 Direito Internacional Privado
8. Técnica jurídica
8.1 Técnica jurídica8.2 Vigência da lei8.3 Interpretação8.4 Integração8.5 Eficácia da lei no espaço8.6 Eficácia da lei no tempo
Bibliografia consultada
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1.Dados Filosóficos
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1.1 REALIDADE E VALOR
1.1.1 Realidade e valor
Gustav Radbruch (1878-1949), reportando-se às doutrinas de WilhelmWindelband (1848-1915) e Heinrich Rickert (1863-1936), considera básica adistinção entre realidade e valor. Comenta, com evidente acerto, que em meioaos dados de nossa experiência, surgidos de maneira uniforme em nossas
próprias vivências, realidade e valor mostram-se-nos mesclados. Homens ecoisas, saturados de valor e de desvalor, aparecem associados sem que
possamos fazer entre eles nítida distinção.
Quando refletimos sobre a nossa experiência, percebemos que o valornão está nas coisas e sim em nós mesmos. Se digo de uma tela que é bela, a
beleza não está nela, mas no meu julgamento. Se digo de um ente que é útil, asua utilidade não lhe é intrínseca, mas um atributo que lhe confiro.
O primeiro ato da consciência parece ser o de formular umareivindicação do próprio eu, libertando dos dados de experiência aqueles quesão pessoais, e isso leva a distinguir realidade de valor.
Realidade e valor pertencem a setores autônomos; realidade éobjetividade; valor, subjetividade. Não podemos falar de valores como sefossem reais ainda que para Max Scheler (1875-1929), segundo Alfred Stern,nos sejam dados antes de toda experiência e, portanto, aprioristicamente; enem de realidades como se um valor lhes fosse inerente. Ao valorcorrespondente uma essência própria, também à realidade, outra. Realidade evalor são inconfundíveis. Uma é, outro deve ser. A realidade existe, é umatributo do ser; o valor se afirma, é um julgamento do sujeito, sem o qual o
mundo, observa Wilhelm Schapp, não teria interesse para o homem.Essa distinção é básica para a filosofia jurídica, porque o direito julga o
comportamento. Nenhum julgamento pode, logicamente, existir sem a idéia deum valor, porque julgar é comparar um objeto a um valor, para concluir da suacompatibilidade ou incompatibilidade. O direito, fazendo apreciação daconduta, porque discrimina entre lícito e ilícito, importa estimação de valores.
Não pertence, portanto, na sua irredutível essência, ao plano da realidade.
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1.1.2 Ser e dever ser
Da distinção entre realidade e valor resultam duas posições: a que serefere ao ser dos entes e a que se refere ao dever ser do homem. E, comocorolários dessas, os conceitos de lei natural e lei ética, distinção essa cujodesconhecimento, conforme Raimundo Farias Brito (1862-1917), atentacontra a natureza das coisas e a mais comum experiência.
1.1.2.1 Juízos enunciativos e valorativos
Esses conceitos são alcançados através de juízos que são a alavanca
fundamental da atividade cognitiva da inteligência humana, o que deles fazsejam inteiramente diversos das representações, mesmo considerados do pontode vista psicológico, como afirma Franz Brentano (1838-1917).
A experiência tem por objeto coisas e fatos individualizados. Sobre elaa mente do homem elabora o conhecimento. Mas assim não faria, não fosse asua possibilidade de formular juízos,
Essa aglutinação pode dar-se por análise ou por síntese, isto é, ou
consiste numa decomposição do objeto da experiência em seus elementosintrínsecos, ou num acrescentamento ao objeto de algo que não lhe pertence por essência. Há, portanto, juízos analíticos e sintéticos . Segundo EmmanuelKant (1724-1804), a quem coube formular com clareza a distinção, osanalíticos não ampliam nosso conhecimento, apenas desenvolvem o conceito eo tornam mais inteligível. Ao contrário, os sintéticos são autênticos juízos deexperiência e sobre eles se constróem todas as ciências explicativas.
Além do mais, construídos os juízos sintéticos na base da observação, podem eles mesmos ser ligados, numa segunda operação lógica, cujo nível de
criatividade é maior. Se temos noções resultantes da experiência de duascoisas singulares e conseguimos aglutiná-las, formamos uma terceira noçãorepresentativa de uma nova realidade, cuja criação dependeu da experiênciaapenas indiretamente. E nesse processo atingimos, progressivamente, níveiscada vez mais altos de compreensão e generalidade. Como explica G. J.Romanes, a partir do mais simples juízo possível e, portanto, da mais simples
proposição (correspondente gramatical do juízo), a inteligência humana eleva-se de um modo uniforme e ininterrupto. Nem é outra a lição de Kant, quandoensina que os juízos estabelecem uma unidade entre as nossas representações,
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pois que a uma representação imediata substituem outra mais elevada quecontém a primeira, assim como várias outras, de modo que muitos
conhecimentos possíveis são reunidos em um só.
Os juízos atendem à diferença entre natureza e valor. Há juízos pertinentes à compreensão do mundo natural e juízos que traduzem valores edefinem atitudes do homem sensibilizados por eles. Daí a distinção entre
juízos enunciativos e juízos valorativos. Podemos dizer é isto , ou dizer deveser isto . Às vezes a cópula verbal é ser , outras, dever ser . Quando usamos ser ,
para coordenar duas idéias, formulamos um juízo enunciativo. Se acoordenação se faz com dever ser , o juízo é valorativo. Os enunciativos são
juízos de experiência; os valorativos, estimativos de valor.
Os enunciativos são descritivos. Quando dizemos de algo que é ,fazemos apenas uma descrição, tanto mais perfeita quanto mais impessoal. Aatitude do naturalista é de completa neutralidade: é narração de umaexperiência. Por isso, dizemos que os juízos enunciativos são teóricos.Medem-se pelo critério da veracidade, isto é, podem ser verdadeiros ou falsos.Um juízo enunciativo é verdadeiro quando há coincidência entre o liame que
prende as idéias no juízo e o que existe entre as coisas ou fatos a que elas sereferem, quando, na frase magistral de Joaquín Xirau (1895), o seu perfil se
calca sobre o perfil do ser. Se declaramos que A é B, e de fato existir umaligação objetiva entre A e B, igual à que afirmamos, temos um juízoverdadeiro. Ele vincula, logicamente, idéias de realidades, tambémnaturalmente vinculadas. Há perfeita identidade entre a teoria do fato e ele
próprio. Falso é um juízo equivocado, no qual se pretende estabelecerlogicamente relação inexistente no plano da realidade.
Os juízos verdadeiros dividem-se em verdadeiros necessários everdadeiros contingentes, distinção equivalente à que se faz entre verdades derazão e verdades de fato, claramente feita por Gottfried Wilhelm von Leibniz
(1646-1716), a qual, na observação de Manoel Garcia Morente (1888-1942),resulta da necessidade de se determinar a curva geral do desenvolvimento dasligações existentes entre os vários estados internos da percepção. Há idéiasligadas entre si por necessidade lógica, de maneira que é impossível a suarecíproca desvinculação. Quando o elo que une duas idéias tem essa natureza,o juízo que indica a relação é descritivo necessário. Ao dizermos que a linhareta é a distância mais curta entre dois pontos, estamos fazendo umaafirmativa que a razão assevera ser inconcebível negar em qualquer situação.Se declaramos que duas coisas iguais a uma terceira também o são entre si,
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afirmamos uma verdade de razão, porque esta evidencia a impossibilidade dehaver duas coisas que, sendo iguais a uma terceira, não o sejam entre si.
Nesses exemplos enunciamos juízos verdadeiros, descrevendo realidades taiscomo são, e necessariamente verdadeiros, porque não podemos concebercircunstância, no tempo e no espaço, capaz de desmentir a ligação lógicaestabelecida entre as idéias no juízo.
Um juízo verdadeiro contingente descreve uma realidade como ela seapresenta, mas, sendo essa realidade suscetível de transformações (pode tersido uma ontem, pode ser outra hoje, poderá amanhã ser uma terceira), averacidade do juízo fica condicionada a uma certa circunstância de tempo eespaço. Se descrita como é hoje, formulamos um juízo; se como será amanhã,
talvez formulemos outro juízo. Assim, em referência à temperatura ambiente,se dizemos que está quente, podemos ter feito um juízo verdadeiro, pelo fatode estar efetivamente quente. Se, horas depois, ao calor suceder o frio, o juízoverdadeiro será outro. Como o próprio objeto do juízo é contingente, ele éválido para cada momento da experiência.
Os juízos valorativos da conduta são práticos, porque servem àrealização de um fim. E postulativos, dado que enunciam exigências positivasou negativas de procedimento.
1.1.2.2 Lei natural e lei ética
Os juízos enunciativos e valorativos conduzem aos conceitos de leinatural e lei ética. A natural é a fórmula mais evoluída do enunciativo; a ética,a mais evoluída do valorativo prático.
Segundo Emmanuel Kant, a filosofia tem esses dois objetos,abrangendo ambas as leis, em dois sistemas particulares, ainda que ambicione
sua síntese final.
Conquanto não possamos admitir lei natural sem juízo enunciativo, nemlei ética sem juízo valorativo, existe distinção entre lei natural e juízoenunciativo, lei ética e juízo valorativo.
Numa experiência, submetemos um pedaço de metal à ação do calor.Verificamos que o metal se dilatou, e declaramos que o metal X, submetido aocalor, se dilatou. Este é um juízo descritivo verdadeiro. Pela multiplicação da
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experiência e a análise das suas condições passamos a uma lei geral: o calordilata os corpos. Quando alcançamos uma noção geral que explica toda a
experiência realizada e possível, temos uma lei natural.
Se deixamos cair um objeto, constatamos que ele cai em direção àTerra. Pelo mesmo processo, chegamos a determinar a lei da gravidade. A leinatural é a generalização exemplar de um juízo enunciativo. Se não
pudéssemos assim construir, adverte Émile Meyerson (1859-1933), de nadanos valeriam as regras que formulássemos sobre a experiência dos fenômenos,que são infinitamente diversos.
Surge, assim, o conceito abstrato de causa, pelo qual se estabelecem
relações entre o passado e o presente, que são, a rigor, meramente prováveisdevendo a lei natural desempenhar, como observa José Juan Bruera, umafunção meramente sinótica das regularidades constatadas pela experiência, asquais, embora praticamente equivalentes à certeza, dela apenas são,teoricamente, aproximativas .
Esta é uma contingência lógica do método indutivo, que se eleva dassensações à generalidade, ainda que adotado com as cautelas recomendadas
por Francis Bacon (1561-1626): elevar-se lentamente, seguindo marcha
gradual, sem saltar nenhum degrau.
Bertrand Russel (1872-1970) dá-nos uma clara idéia dos princípios aque esse método está submetido:
a) quando uma coisa de uma certa espécie, A, for achada comfreqüência associada com outra de espécie diversa, B, e nunca for achadadissociada da coisa da espécie B, quanto maior seja o número de casos em queA e B se achem associados, maior será a probabilidade de que se achemassociados em um novo caso no qual saibamos que uma delas está presente;
b) nas mesmas circunstâncias, um número suficiente de casos deassociação converterá a probabilidade da nova associação em quase certeza efará com que se aproxime de um modo indefinido da certeza.
Ainda que o mesmo raciocínio não se possa aplicar à lei ética (tantomais que a radical distinção entre natureza e valor já foi antes ressaltada), nem
por isso podemos ignorar a significação da experiência na orientação daconduta. Vendo uma pessoa agredir outra, julgamos que não deve proceder
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assim; valorizamos uma situação, e, portanto, fazemos um juízo valorativo(não deve ser), diante de um acontecimento humano, circunscrito a uma
experiência singular. A Ética, disciplina filosófica, habilita-nos a alcançar a leiética, norma de conduta válida para uma universalidade de situações. O juízovalorativo, feito em função do incidente singular, só gera lei quando conduz aregras gerais com pretensão de validade universal. Consoante ensina WilhelmDilthey (1833-1911), construímos generalizações acerca de estados afetivos,valores vitais, virtudes e deveres, e estes recebem por sua vez força dossentimentos e impulsos que surgem da imitação do concreto neles contido e dosentimento tranqüilo que a sua subordinação nos infunde.
Os predicados que distinguem juízo descritivo e valorativo permitem a
distinção entre lei ética, com as suas características próprias, e lei natural, comas suas qualificações particulares.
A lei natural é um porquê explicativo da realidade, é verdadeira oufalsa, exatamente porque o binômio verdade-erro prevalece no mundo teórico.Se dizemos que quando ocorre A ocorre B, essa afirmativa é uma lei natural,se assim acontecer no plano da realidade ao qual se refere. A lei naturalapresenta os fenômenos, dando-lhes explicação coincidente com a sua própriarealidade intrínseca. Caso não coincidam explicação e realidade, estaremos
diante de uma lei falsa, porque todas as leis da natureza assentam no pressuposto, que não é científico, mas filosófico, da invariabilidade da ordemnatural, a qual nos concede prever os fatos uns pelos outros, sem o que,consoante afirma Henri Poincaré (1854-1912), não se pode aceitar alegalidade e a possibilidade mesma da ciência. Como explica David Hume(1711-1776), todos os raciocínios concernentes à causa e ao efeito, que são oscientíficos, estão fundados na experiência e todos os raciocínios tirados daexperiência estão fundados na suposição de que o curso da naturezacontinuará sendo uniformemente o mesmo.
A lei ética é válida ou inválida. Não é verdadeira ou falsa, porque, nocampo do comportamento, verdade e erro não têm presença, dado que
pertencem ao plano das enunciações. Uma lei é justa ou injusta, fundamentadaou arbitrária, eqüitativa ou violenta. É válida, neste sentido filosófico, quandoexpressa um valor autêntico e lhe é fiel; inválida, quando não traduz um valorou o faz de modo inadequado.
Uma lei natural é presumidamente invariável, não pode ser, emnenhuma circunstância, em nenhum momento, desmentida pela experiência.
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Podemos acumular séculos de observação, concluir uma lei natural, mas seuma experiência desmenti-la, passa a ser falsa. Ter-se-á constatado, então, o
acerto da observação de André Cresson, quando afirma que uma lei natural seapoia em verificações que são como zero em relação à generalização que selhe atribui.
Já com a lei ética acontece diversamente. Só podemos aceitar a suaexistência se ela for suscetível de infração. O pressuposto de qualquer uma é ode que se dirige a pessoas livres. Quando se diz deve-se fazer assim , estáimplicitamente admitido outro procedimento.
Entre lei natural e lei ética fez Hermann Ulrich Kantorowicz (1877-
1940), um paralelo diferenciador de extrema clareza, ao afirmar que aqueladescreve invariáveis relações causais ou conexões estruturais (de fatos,mudanças, quantidades, propriedades); impõe obrigações, não sobre a condutahumana, mas, no caso de veracidade, sobre a inteligência; constitui matéria decognição e prova, não de sanções, sim de conseqüências; não de autoridade,sim de experiência; não de consciência, sim de ciência; não de deveres, sim deacontecimentos constantes. A lei natural gira em torno do que é real, enquantoque as normas de conduta prescrevem um comportamento que pode ser ou nãoreal, mas que deveria ser real.
1.2 HOMEM E VALOR
Há valores diversos. Segundo o ensinamento de Scheler, são absolutos,maneiras de sentir que não dependem da sensibilidade e da vida, e podem serclassificados numa escala crescente de perfeição:
a) úteis (utilidade); b) vitais (nobreza, saúde, força);
c) espirituais (conhecimento, arte, direito);
d) religiosos (sagrado).
A cada valor corresponde o seu oposto, um desvalor. Assim, à utilidadecorresponde a inutilidade, à nobreza o comum, à saúde a doença, à força o
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despauperamento, à verdade o erro, ao belo o feio, ao lícito o ilícito, ao sagradoo profano.
1.2.1 Atitudes ante os valores
Diante dos valores, o homem assume atitudes diferentes. Uma delas éavalorativa; a Segunda, valorativa; a terceira, supravalorativa, e a última,referencial.
Nossa atitude cega aos valores, de neutralidade e indiferença, éavalorativa. Se nos situamos em posição de sensibilidade aos valores, esta, em
contraste com a precedente, é valorativa. Entre essas posições extremas,radicalmente opostas, há posições mistas, que participam das antecedentes.Uma é a referencial, na qual não nos encaminhamos diretamente para osvalores, mas nos conduzimos motivados por ele. A outra é a detranscendência, de superação dos valores, a supravalorativa.
1.2.1.1 Atitude avalorativa
Podemos ver os objetos, insensíveis aos valores, inclusive na presençadaqueles propícios a uma atitude valorativa. Diante de uma tela ou umaescultura sentimos reação estética. Esta reação é valorativa, expressa umaestimativa segundo o valor do belo. Entretanto, um especialista em determinarautenticidade de pinturas, diante de um quadro, apenas analisa a técnica do
pintor na aplicação da tinta, a composição química desta, a constituição físicada tela, etc. Mesmo diante de uma obra de arte que a todos sensibiliza, lhecumprirá sufocar a tendência para valorizá-la e ficar indiferente aos seusméritos estéticos. Os próprios atos humanos são sujeitos à consideraçãoavalorativa. O crime, por exemplo, que produz ressentimento coletivo, pode
ser friamente analisado por sociólogos ou estatísticos, agindo indiferentes aqualquer estimação. A posição avalorativa, indispensável no estudo danatureza, leva à criação das ciências descritivas, ou na expressão de ClaudeBernard (1813-1878), ciências contemplativas.
1.2.1.2 Atitude valorativa
Podemos nos colocar, ao contrário, numa posição valorativa.
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Nossa mente é povoada de valores, que não são arbitrariamente
subjetivos, porque, se o fossem, cada um teria os seus próprios e, entretanto,há valores comuns a todos os homens. Não podemos defini-los, porque a suaessência nos escapa. Mas dão-nos eles emocionalmente. No entanto, a nossavida é motivada por eles, sejam utilitários, morais, jurídicos, religiosos,estéticos, etc. Têmo-los, permanentemente, diante de nós, o que faz da nossaconduta uma escolha constante de possibilidades.
Podemos nos desprender do mundo em sua pura manifestaçãofenomênica, tentar ascender ao plano dos valores, saber o que são edeterminar-lhes a hierarquia. É o que faz a filosofia dos valores. Assim como
as ciências naturais são frutos da posição avalorativa, a filosofia dos valoresresulta da posição valorativa, e se encaminha, segundo Carlos Astrada, para adeterminação de um possível sentido da vida em função do valor, da suavivência e da sua realização.
As atitudes expostas são contrastantes. Numa, eliminamos asensibilidade para qualquer valor, porque nos interessa apenas ser igual aoespelho que reproduz a imagem. Nossa meta é ver e descrever, sem cogitaçãode como poderia ou deveria ser. Noutra, nos desligamos da experiência
imediata, e tentamos alcançar um mundo ideal que a ela se sobrepõe.
Essas posições podem ser complementadas por mais duas: asupravalorativa e a referencial.
1.2.1.3 Atitude supravalorativa
A supravalorativa transcende, ao mesmo tempo, natureza e valor, que semostram, às vezes, contraditórios. E um dos dramas humanos é exatamente o
contraste entre o que é e o que deve ser. Essa contradição não é apenas daconsciência individual, mas também da história dos povos, e nos inspira atentativa de superá-la, de transcendê-la, até um plano em que a realidade sejaigual a valor e vice-versa. O homem anseia por uma síntese na qual se liberedessa contradição que marca toda sua vida. Se a alcança, confessa, como
Nicolas Malebranche (1638-1715): eu concebo que todos esses efeitos que secontradizem, essas obras que se embatem e se destroem, essas desordens quedesfiguram o Universo, que tudo isso não assinala nenhuma contradição na
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causa que o governo, nenhum defeito na inteligência, nenhuma impotência,senão uma perfeita uniformidade.
Essa tentativa de alcançar um estado espiritual em que ser e dever sercoincidam, expressa-se na posição supravalorativa. A religião é produto desseesforço. Deus é, ao mesmo tempo, o que é e o que deve ser. Nele, existência evalor confundem-se. Porque Nele, conforme William James (1842-1910), aquem Émile Boutroux (1845-1921) comparava a Blaise Pascal (1623-1662), ocrente continua-se num. Eu mais vasto do qual se difundem experiênciasliberatórias.
1.2.1.5 Atitude referencial
Finalmente, como podemos ver somente realidade, somente valor e nãover realidade nem valor, também podemos adotar uma última posição, areferencial, que ensaia estender uma ponte entre realidade e valor, como queencaminhando a vida para a eternidade, nas palavras de Wilhelm Sauer (1879-1962). Nela, o que o homem cria não é valor em si, mas referência a valor. Elaengendra a cultura.
1.2.1.5 Cultura
Cabe aqui dar um conceito de cultura, o que não é fácil, pois se trata devocábulo cuja significação é múltipla. Daremos uma idéia elementar que nos
basta à finalidade deste capítulo, partindo da distinção entre cultura e natureza.A natureza nos é dada mas o homem, como ente biológico que não se basta ,que se move para além de si (Francisco Pontes de Miranda (1892-1979),quebra as pedras para usá-las lascadas, depois polidas, descobre o fogo, faz asua habitação, cultiva o gado e as plantas e acaba conquistando o espaço. Na
proporção em que progride, emancipa-se da natureza, da qual, segundoOswald Spengler (1880-1936), torna-se cada vez mais inimigo. Ele implantano mundo algo ainda inexistente, e que passa a existir como criação sua, o quePaulo Dourado de Gusmão chama o reino das interpretações, das destinações,dos sentidos e dos significados. A isso chamamos, embora a idéia sejaimperfeita e suscetível de corrigenda, cultura, que, na frase de Max Scheler, éantes de mais nada um processo pelo qual o homem se faz homem.
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Ao enriquecer o mundo com os seus produtos, o homem cria em funçãode fins, inspirado pela motivação de valores. Cria as obras de arte, inspirado
pelo belo; o direito, pela justiça, etc. Em si mesmo, o valor é inatingível; seatingido, deixaria de sê-lo e passaria a realidade. A posição do homem, portanto, como ser que cria cultura, é a de referência e aproximação a valores.
1.3 DIREITO E JUSTIÇA
Distinguimos realidade de valor para observar que pertencem ahemisférios incomunicáveis, a cada um dos quais corresponde uma atitudehumana. O direito não cabe ao plano da natureza. É obra de cultura e,
portanto, criação visando a valores.
1.3.1 Valores jurídicos
O valor é inerente a qualquer norma. Quando pretendemos de uma pessoa que se conduza de certo modo, sabendo que pode proceder de outro,fazemo-lo em função de um motivo, que é o valor da pretensão. Se elegemos
uma, dentre várias condutas possíveis, fazemo-lo por julgá-la meritória. Aregra jurídica, como qualquer outra, dirige-se a fins e só tem sentido quandoestes são considerados. Sendo tais fins históricos, os valores que lhescorrespondem sofrem a seu turno pressões sociais, geradas pelo inconsciente evigoroso sentimento de unidade social a que se refere Alfred Adler (1870-1937).
Os fins almejados pelo direito são diversos: a ordem, a segurança, aharmonia, a paz social, a justiça. A eles correspondem outros tantos valores
jurídicos. As normas jurídicas se pautam por eles, meios que são para realizá-los.
Esses valores apresentam, como os demais, uma hierarquia, embora,não raro, sejamos obrigados a sacrificar um superior por outro inferior. Ovalor jurídico mais alto, aquele que, por excelência, torna legítima a
proposição jurídica, é a justiça.
Embora sendo ela o mais alto, às vezes outros se lhe sobrepõem. Emépoca de crise social, é comumente sobrepujada pela segurança ou pela
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ordem. Assim ocorre em período de guerra, quando se mutilam as garantiasindividuais, em benefício da segurança coletiva. Em estado de normalidade, o
direito é tanto mais perfeito quanto mais refletir as exigências humanas de justiça.
Para Carlos Cossio (1903), a revelação dos valores jurídicos resulta daanálise do homem em suas três dimensões existenciais: o mundo objetivo, a
pessoa e a sociedade. À coexistência enquanto circunstância (mundo objetivo)correspondem os valores jurídicos da ordem e da segurança. À coexistênciaenquanto pessoa, o poder e a paz. Por último, à coexistência enquantosociedade, a cooperação e a solidariedade. Os valores jurídicos formam parese em cada um destes há um valor autonômico e um valor heteronômico, isto é,
de expansão da personalidade e de restrição à personalidade. Sãoautonômicos: a segurança, a paz e a solidariedade. São heteronômicos: aordem, o poder e a cooperação. Como os valores de autonomia são suportesdos de heteronomia, situam-se aqueles em plano superior a estes.
À justiça, que sempre consideramos o valor jurídico por excelência,reservou Cossio sentido semelhante ao que tem na teoria platônica. Não lhe
pertence um conteúdo específico, sombra que é de todos os valores bilateraisda conduta, aos quais dá equilíbrio e proporção, atuando como critério para a
sua realização simultânea e proporcional.
1.3.2 Teoria da Justiça
No campo da filosofia jurídica, a teoria da justiça é uma imposiçãológica. Referindo-se-lhe a regra de direito, como seu valor peculiar, ela éinsuscetível de ser compreendida, interpretada e aplicada, senão em referênciaà justiça.
1.3.2.1 Idéia da justiça
Se indagamos, porém, o que é justiça, logo veremos que o seu entendimento é polêmico. A pergunta é uma só, mas as respostas são numerosas edesencontradas, dando lugar a teorias filosóficas e sociais e a ideologias
políticas, talvez porque o tema, como pensava Pascal, seja sutil demais paraser abordado por instrumentos humanos.
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No entanto, observa Luís Recaséns Siches (1903), um levantamentodessas teorias demonstra, por trás de sua aparente contradição, alguma
identidade. A similitude está em que a noção de justiça vem sempre ligada àde igualdade. O símbolo desse entrelaçamento é também o da justiça: a balança de pratos nivelados e fiel vertical.
Se recordarmos algumas definições doutrinárias, teremos confirmada aobservação.
1.3.2.1.1 Platão
Platão (428-347 a.C.) meditou sobre a justiça como virtude individual ecomo critério de organização social. O princípio comum a ambas, escrevePaul Natorp (1854-1924), é o da organização, segundo o qual uma pluralidadede forças, acompanhadas de seus efeitos, encadeiam-se, promovendo-semutuamente (e promovendo, portanto, sua obra comum), sem estorvar-se emnenhum ponto.
Sob o primeiro aspecto, via nela uma espécie de virtude regente. A almahumana abriga um sem-número de tendências, de sentimentos, de afeições, de
inclinações, e é solicitada pelos elementos diversos de que se compõe. À justiça caberia ordenar e unificar esse universo íntimo, dando harmonia àssuas partes. Tal como o maestro que tira dos instrumentos de uma orquestrasom harmoniosos, a justiça daria aos elementos da alma a sua exata medida eos comporia numa tranqüila unidade. Não se identificaria ela, portanto, comouma virtude ao lado de outras, mas coordenadora de todas.
Sobre a justiça social, entende Platão que defini-la somente se podequando se recorda a razão que leva o homem à vida social: a existência dediversas necessidades e a descoberta da maneira pela qual podem ser
satisfeitas, mediante a divisão do trabalho.
Se uma pessoa atende, somente ela, a uma certa necessidade de todas,das demais obtém a satisfação das suas próprias necessidades, para as quaisnada produz. Em conseqüência, uma sociedade é, por origem, uma reunião de
pessoas desiguais, o que assegura a solidariedade dos seus componentes eresguarda a sua unidade. Proceder justamente é desenvolver sua função
própria, à qual devem corresponder as inatas aptidões humanas. A sociedade, para ser justa, deve situar cada homem na sua função adequada, condição da
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sua perfeita unidade. As funções sociais correspondem às faculdades da almaindividual. Por isso, reduzem-se essencialmente a três: a produção, realizada
pelos trabalhadores, equivalente ao desejo elementar de alimentação, cujavirtude, para quem a realiza, é a temperança; a defesa, desempenhada pelossoldados, cuja virtude é a coragem; e o governo, que corresponde àinteligência reflexiva, e exige de quem o exerce uma virtude própria, a
prudência.
É justa uma sociedade na qual cada indivíduo faz o que lhe é próprio.
1.3.1.2 Aristóteles
Aristóteles (384-322 a.C.) foi o primeiro filósofo a desenvolverexaustivamente o tema, sendo considerado o verdadeiro fundador da teoria da
justiça, de tal maneira que os estudos posteriores, inclusive os modernos, a elese reportam como sua primeira fonte.
Também Aristóteles considerou a justiça em seu duplo papel, comovirtude do indivíduo e critério de ordem social, sem lhe emprestar, porém, no
primeiro, a superior posição que lhe conferia Platão, para situá-la como
virtude a par de outras. Formulou, dir-se-ia que com perfeita atualidade, aobservação de que a justiça não pode ser atuante sobre toda a alma porquetutela apenas as relações dos indivíduos entre si.
Decalcado na realidade institucional do seu tempo, indicou-lhe asfinalidades próprias:
a) distribuição de honrarias e riquezas pelos indivíduos;
b) garantias dos contratos; e
c) proteção contra o arbítrio e a violência.
Caberia a primeira tarefa à justiça distributiva e as duas últimas à justiçacomutativa. Embora sem outra afinidade entre si, em todas essas modalidadesde justiça assinalava Aristóteles um traço comum: a igualdade. Afirmar-se-iaesta, em relação à justiça distributiva, sob a forma de proporcionalidade, dadoque as benesses sociais deveriam ser distribuídas segundo os méritos de seusdestinatários. E o princípio da igualdade aritmética inspiraria as duas
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subdivisões da justiça comutativa, cabendo aos magistrados, em relação a elas,restabelecer sempre a igualdade em favor do lesado.
1.3.2.1.3 Ulpiano
Os latinos deixaram algumas, ainda que imprecisas, definições de justiça. Nem se poderia diversamente admitir, dado que a grande realização dacivilização romana foi o direito que está para ela como a filosofia e as artesestão para a civilização grega.
Uma das definições mais conhecidas é a de Domicio Ulpiano (170-228
a. C.), consoante a qual a justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido.
1.3.2.1.4 Tomás de Aquino
Tomás de Aquino (1225-1274) estuda o direito como objeto particularde uma virtude específica, a justiça, não podendo ambos ser compreendidossenão como pertinentes à condição social do homem. Considera próprio da
justiça ordenar o homem em suas relações com os demais, posto que implica
certa igualdade e a define como tendo por conteúdo “dar a cada um o que éseu”, isto é, o que lhe está subordinado ou está estabelecido para sua utilidade. Não se satisfaz, conforme explica Etienne Gilson (1884), sem que se assegureo respeito à igualdade entre pessoas diferentes, interessadas num mesmo ato.
Distingue a justiça de todas as demais virtudes porque, enquanto estasse voltam diretamente para o agente do ato, exigindo a pureza de intenções,aquela reside na adequação do ato praticado com um modelo extrinsecamentedado de antemão.
Inspirado em Aristóteles, divide a justiça em: legal (colaboração para o bem comum), comutativa (relações entre os indivíduos) e distributiva (partilhade encargos e benefícios públicos entre os indivíduos).
1.3.2.1.5 Spencer
Herbert Spencer (1820-1903), observando que na idéia de justiça duasoutras se inserem, uma de afirmação e outra de restrição à liberdade
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individual, a primeira positiva e a Segunda negativa, comenta que aquelaconduz à desigualdade em função dos resultados a que podem chegar os
indivíduos pela aplicação das suas diferentes possibilidades à realização dos próprios fins, enquanto que a Segunda, limitativa dos inevitáveis conflitos aque a prática da liberdade conduz, leva ao pensamento de que todas as esferasde ações se limitam uma às outras, o que implica uma concepção deigualdade.
1.3.2.1.6 Stammler
Segundo Rudolf Stammler (1856-1938), o conteúdo de uma norma jurídica é
justo quando ela, em sua peculiar posição, concorda com o ideal social. Pordifícil que seja definir este padrão, Stammler julgou encontrá-lo no modelo deuma comunidade de homens de vontade livre, coexistindo, assim, emcondições de perfeita harmonia e espontaneidade.
1.3.2.2 Comentário crítico
Embora diversas, as teorias sobre a concepção de justiça apresentam um
traço comum. Em todas elas existe uma referência direta ou implícita à idéiamatemática da igualdade. Típica é a noção de Kantorowicz, quando ensinaque a essência da justiça está em tratar o que é igual como igual. Ou a deLester Frank Ward (1841-1913), quando afirma que a justiça consiste naimposição artificial, pela sociedade, de uma igualdade em condições que sãonaturalmente desiguais. Ainda a de Friedrich Nietzche (1844-1900),invocando Tucídides (471-395 a. C), quando afirmava que a justiça é sempreuma compensação e uma troca entre poderes opostos mais ou menos iguais.Também a sempre lembrada definição de Dante Alighieri (1265-1321), paraquem o Direito seria a proporção real e pessoal de homem para homem que,
conservada, conserva a sociedade e que, destruída, a destrói. O próprio HansKelsen (1881-1973), em cuja doutrina o tema não tem acolhida, entende queo princípio da justiça, referido a uma ordem social, não é senão o equivalentedos princípios lógicos da identidade e da contradição, sensível, assim, àevidência dessa constante de todas as definições. Seja ela equilíbrio,
proporcionalidade ou harmonia, mas qualquer dessas noções nos leva,inevitavelmente, à de igualdade.
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Agora perguntamos: essas teorias satisfazem as nossas necessidadesteóricas de formulação do princípio da justiça? Não. Ao invés de eliminar
problemas, adverte Siches, suscitam outros.
Se a justiça fosse a própria igualdade, numa relação de troca, perfeitaseria aquela em que duas pessoas reciprocassem objetos idênticos. Se tenhoum quilo de trigo a trocar, a única maneira de receber coisa exatamente igual éreceber outro quilo de trigo. Daí se vê que a compreensão da justiça comofórmula igualitária de compensar o homem em suas relações recíprocas nadasignifica, porque, sempre que mutuamos alguma coisa, é por algo distinto,absurdo que é permutar coisas iguais.
Se eu quiser trocar o trigo por outra mercadoria, como não podemoscomparar coisas heterogêneas, faz-se necessário estabelecer um terceiro valor,que, no caso, é o preço. Permuto o quilo de trigo por uma certa quantidade demoeda que me habilita a fazer uma aquisição conforme a minha conveniência.
Na comparação, e hipoteticamente, com o dinheiro da transação, fico emcondições de comprar dois quilos de milho. Não sendo possível realizar essastrocas diretamente, tenho que fazer referência a um valor, que é o econômico.
Ainda assim surgem outros problemas. Por que, vendendo um quilo de
trigo, não posso, com o produto, comprar um de ouro? A resposta seria quetrigo e ouro não se eqüivalem, quando referidos ao terceiro elemento datransação (o valor), que atua como determinante dos preços.
Mas isso importa reconhecer que o conceito de justiça, representandoigualdade, é formal, esquemático, não bastando dizer que os homens devemser dispostos igualitariamente numa sociedade ou que os seus interessesdevem ser compostos de acordo com um princípio de igualdade, para alcançara idéia que lhe corresponde.
Há um século atrás, nos termos daquela fórmula, poderíamos dizer quea igualdade estaria em consentir aos homens massacrarem-se mutuamente afim de que os mais capacitados sobrevivessem em melhores condições. A livreconcorrência expressa um esquema de igualdade de condições para todos, noqual Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) vira a própria justiça: os homens sãoiguais, as leis são iguais para todos, deixemo-los disputar segundo suas
pretensões. No entanto, numa sociedade moderna, esse esquema produziriaflagrante injustiça.
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Significativas dessa problemática da justiça são as hipóteses concebidas por Edgar Bodenheimer (1907). Se todos os membros de uma coletividade,
observa, ou mesmo a sua maioria, estiverem reduzidos ao mesmo estado deescravidão ou de opressão, não há razão para admitir-se que a justiça tenhasido alcançada graças a uma simples igualdade de tratamento. Se criminososque tenham cometido iguais delitos de pouca gravidade forem todoscondenados à pena de morte ou de prisão perpétua, o simples fato deigualdade da sua punição não satisfaz à justiça.
A teoria da justiça, repete-se, não esgota a investigação sobre os valoresda regra jurídica. É um degrau a partir do qual buscamos, não importa sob quedenominação, outra escala de valores, que dão substância ao conceito
meramente formal de justiça. Entendemos que esta, como exigência humana,não é somente idéia, mas também ideal. A idéia é essa mesma queassinalamos através da história da filosofia do direito. É a regra que nosorienta em sociedade, visando a obter uma satisfação equilibrada dosinteresses humanos. É, entretanto, vazia de autêntica significação, nada maisnada menos que uma equação algébrica (Leon Grinberg), porque, longe deexaurir a problemática ética ligada a uma ordem social, apenas abreoportunidade para estudá-la num plano superior, onde procuramos valorescapazes de proporcionar conteúdo e sentido àquele conceito.
Esses valores não pertencem ao plano da filosofia, mas ao da história, oque afina com o ensinamento de Georges Gurvitch (1894), consoante o qual a
justiça e todos os valores jurídicos são os elementos mais variáveis entre todasas manifestações do espírito, porque variam simultaneamente, em função:
a) das variações da experiência dos valores;
b) das variações na experiência das idéias lógicas e das representaçõesintelectuais;
c) das variações nas relações recíprocas entre a experiência volitiva-emocional e a experiência intelectual; e
d) das variações na relação entre a experiência dos dados espirituais e a própria experiência.
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Explica-se, assim, que o conceito de justiça se tenha conservado estávelna filosofia, enquanto o ideal humano que lhe corresponde tanto se tenha
alterado.
1.3.3 Formas de justiça
A justiça apresenta-se debaixo de três formas e cada uma delas justificauma posição própria no seu estudo. Várias definições de justiça podemdivergir entre si, e, sem embargo disso, são aceitas, desde que se refiram à
justiça sob formas diferentes.
As três formas são: a subjetiva , a objetiva e a ideal . Na subjetiva, é umavirtude. A expressão subjetiva, usada na sua significação verdadeira, querdizer relativa ao sujeito . Trata-se, pois, de justiça como uma virtude dosujeito. No caso, evidentemente, o homem, porque só há justiça nas relaçõeshumanas. Quando dizemos de alguém que é justo, empregamos o vocábulo
justo no sentido subjetivo, expressando que a pessoa tem uma virtude, a justiça. Na definição de Ulpiano, a justiça consiste na disposição de dar a cadaqual o que é seu. De modo idêntico na de Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) –“tribuere suum cuique ”. Em ambas a justiça é vista no seu caráter subjetivo.
Mas a justiça é, por excelência, valor de uma ordem social. Significandocritério debaixo do qual uma sociedade está estruturada, a justiça, no seuaspecto objetivo, exterioriza-se em normas. Sob tal modalidade é que a suanoção mais se aproxima da de direito. Direito é tentativa de afirmação objetivada justiça, definida em regras compulsórias de conduta. Quando Sócrates(469-399 a.C.), condenado à morte, recusou a fuga, considerando o respeitoque devia à justiça da sua sociedade, a esta se referia no seu sentido objetivo.Quando cumprimos um dever em submissão à justiça da nossa sociedade, ouacatamos uma norma em obediência à justiça do nosso grupo, à justiça
aludimos no mesmo sentido.
Finalmente, a justiça é valor. Sendo todo valor transcendente, elatambém o é. Sob tal feição, permite-nos a crítica da ordem social, essa mesmaque se nos apresenta como justiça objetiva, e por isso nos obriga a praticarcertos atos e nos abster de outros. Isso nos permite senti-la como valorafirmado e como valor contestado. Podemos dizer, por exemplo, que umasociedade é injusta e que outra é justa, que uma imposição leal é justa e que
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outra é injusta. A justiça, traduzindo valor, referida a um ordenamento social,autoriza-nos a julgar da sua legitimidade ou ilegitimidade.
1.3.4 Modalidades da justiça
São duas as modalidades da justiça: geral e particular . A geralconverge para o interesse da comunidade. A particular é pertinente àconsideração dos interesses individuais.
A justiça geral pretende o bem comum. Para realizá-lo prescreve que oindivíduo, como parte de uma sociedade, contribua com algo para a
sobrevivência e o desenvolvimento dela. Fixa os deveres de cada um comrelação à sociedade em que vive, e se realiza quando exige dos indivíduos demaneira igual e eqüitativa.
A sociedade que exigisse de seus membros uma quantia fixa a título deimposto seria injusta, porque tanto o rico como o pobre estariam contribuindocom importância igual. E injusto seria também se o que exigisse nãodestinasse ao bem comum, mas ao de uma minoria.
A justiça particular, embora sob um aspecto traduza o exercício de umafunção social, é sensível às motivações e às necessidades particulares.
Divide-se em justiça comutativa e distributiva .
A comutativa rege as relações de troca. Dela a expressão mais fiel éexatamente a igualdade. Se alugo uma casa, estou trocando o seu uso pelodinheiro do aluguel. Se vendo um objeto, troco-o pelo dinheiro do comprador.Sempre que damos alguma coisa para receber outra, a situação é regida pela
justiça particular comutativa, cujo enunciado é: aquele que dá algo a outrem
deve receber, em compensação, valor apropriado ao que deu. Se hácorrespondência entre os valores permutados, sejam mercadorias, serviços,etc., a transação é justa.
A justiça particular distributiva, embora visando ao interesse doindivíduo, corresponde a uma função social. Toda sociedade, pelo fato deimpor limitações aos indivíduos, torna-se depositária de valores, riquezas,utilidades e vantagens, que redistribui pelos seus membros. A justiça que deve
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presidir a essa atividade é a distributiva. O seu critério é o da eqüidade e domérito, não o da igualdade.
1.3.5 Direito público e direito privado
As modalidades de justiça, a geral e a particular, a última nas suassubmodalidades, comutativa e distributiva, dão margem a que possamos
perceber que as regras jurídicas, que são ou devem ser manifestações sensíveisda justiça, podem ser distribuídas em dois grandes setores: normas de direito
público e normas de direito privado. As de direito público correspondem à justiça geral e à particular distributiva, e as de direito privado à comutativa.
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2. Dados Sociológicos
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2.1 FATO SOCIAL
Estudaremos o fato social em três partes. Na primeira determinaremos anoção estrita da significação de social. Na Segunda, apresentaremos o seuconceito. Na terceira, analisaremos a sua natureza, considerando a diversidadedoutrinária sobre a matéria.
2.1.1 Noção de social
Fato social é um fato humano, ao qual qualificamos de social, tema deuma ciência própria, a sociologia. O vocábulo social é perfeitamente distintodo vocábulo plural. É necessário que à pluralidade se acrescente algo mais
para que seja considerada manifestação social.
É de rejeitar, portanto, qualquer tendência espúria, já anteseventualmente manifestada no decurso da história da sociologia, tendente aver o social como uma categoria do ser , presente em qualquer realidade,desde a intra-atômica até a dos sistemas estelares.
O fenômeno social é conduta. Conduzir-se implica uma atitude. Ora,somente os seres dotados de psiquismo têm comportamento. Onde não existe
psiquismo não há conduta. Logo, fato social é igual a fato social humano.
A sociologia é uma ciência do homem, investiga processos humanos deconvivência. As próprias supostas sociedades animais, algumas apresentandoformas definidas de coexistência, não podem ser incluídas no seu campo, nemmesmo em áreas periféricas, porque os animais apenas coexistem, o que é umfato biológico. Henri Bergson (1859-1941), a cuja obra Edourard le Royu
empresta importância igual à de Kant, escreve que, quando nós vemos asabelhas de uma colméia formarem um sistema tão estreitamente organizadoque nenhum dos indivíduos pode viver isolado além de um certo tempo,mesmo se lhe fornecermos alimentação e alojamento, temos de reconhecerque uma colméia é, realmente, não metaforicamente, um organismo único doqual cada abelha é uma célula unida a outras por laços invisíveis. O instintoque anima a abelha confunde-se com a foça de que a célula é animada. Logo,o estudo de tais sociedades incumbe à Biologia, que se ocupa dos fenômenosda vida, em todas as suas modalidades e sob todos os seus aspectos.
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A sociologia, diversamente, se dedica a uma ordem de fenômenos aosquais só a convivência humana dá origem.
Num mundo sem humanidade não haveria sociologia, porque nãoexistiria ambiente social, em cujo interior ocorrem os acontecimentos que lhesão próprios. A sociologia estuda as maneiras de comportamento do homemnum determinado meio e suas diferentes modalidades de adaptação.
2.1.2 Conceito de fato social
O homem habita em duas ambiências: uma natural e outra social.
Natureza e sociedade são climas em que vive. Característica da vida émanifestar-se como processo de adaptação. O homem se adapta ao meionatural, através de mecanismos fisiológicos e recursos técnicos, e ao social,
por processos chamados sociais, que se desenvolvem à base de interação.
Vivendo em grupo, nós interatuamos, isto é, cada um de nós exercesobre os outros uma influência e, na mesma medida, a recebe dos outros. Estainfluência recíproca dos indivíduos que convivem é a interação. Esta significa,antes de mais nada, qualquer alteração no comportamento de duas pessoas,
uma diante da outra. Por isso, diz-se que a interação é o correspondente socialda ação recíproca da Física.
Fundamental nesse processo de interação é a linguagem, porque, como proclama Émile Gouiran, a sociedade é um fato cujas causas, nem por seremmúltiplas, deixam de se reduzir a uma só: a necessidade para o homem deexistir pensando e a impossibilidade de pensar sem uma palavra que lheresponda. A sociedade é, assim, essencialmente, a linguagem do homem , poisonde o homem se expressa há sociedade e nem se expressa ele senão porquehá sociedade.
Para sua acomodação ao meio natural o indivíduo modifica-se paraobedecê-lo, ou o modifica, valendo-se das técnicas. Igualmente, sua adaptaçãoao meio social, ou a outro indivíduo tem duplo sentido: é corrente que vai,corrente que vem, em alternativas de influência subordinante e subordinada.
A interação é o suporte fático de toda a realidade social. Sem ela, nãoexistiria fato social. Não se deduza daí que basta que haja interação para quese produza um fato social. A própria irradiante interação existente nas
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multidões não cria senão estados de espírito intensos, mas momentâneos,conforme Gustave Le Bom (1841-1931). Para que a interação ultrapasse o
recinto da mera realidade psicológica interindividual, dando lugar a umfenômeno sintético novo, o social, necessário é que, à falta de melhorexpressão, diríamos, atinja um certo nível de densidade . Assim, o fato socialapresenta características que bem o distinguem do psicológico:
a) generalidade (é comum aos indivíduos);
b) coerção (traduz uma pressão do grupo sobre o indivíduo);
c) repercussão (a qual se processa independentemente das intenções
individuais);
d) transcendência (no sentido de que se situa fora e acima da ação dosindivíduos).
2.1.3 Grupos sociais
Os grupos sociais são sistemas mais ou menos permanentes de interação
cooperativa.
Numa família, pais, filhos, irmãos, parentes que vivem em comum, háinteração. Num grupo de trabalho, as pessoas organizadas para uma tarefainteratuam. Uma comunidade universitária forma um sistema, mais ou menosfechado, de interação, no qual encontramos sistemas menores, séries, turmas,classes, pequenos grupos cujos componentes levam uma vida mais comum.Teremos grupos menores dentro de outros maiores, que estarão dentro de umainda maior. Cada um deles forma como que uma constelação de influências,
porque é um sistema de interações.
O indivíduo não está vinculado a um só grupo. Tem a sua família, a suaigreja, o seu partido, o seu clube. Ele ocupa, assim, ao mesmo tempo, distintas
posições em diferentes sistemas. Não é a presença física do indivíduo que dáao sistema a sua autonomia.
O grupo social, como sistema de interação, é uma entidade abstrata, porque é intangível na sua essência. Numa escola, acabada a aula, cadaestudante volta à sua casa, e passa a estar isolado dos colegas. No entanto, o
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grupo subsiste. Num quadro de futebol, finda a concentração ou o jogo,acontece o mesmo. Cada membro regressa à sua casa, mas seu grupo subsiste.
O grupo existe desde que uma parcela de comportamento do indivíduoseja ditada por ele. O estudante que, em casa, dedica-se aos seus deveresescolares, está procedendo de acordo com uma exigência de seu grupo. Sedeixa de ir a uma festa ou dela sai mais cedo, para não perder a aula do diaseguinte, o mesmo acontece. Desde que várias pessoas, em caráter
permanente, dediquem parte de sua conduta a um grupo, este existe e subsiste,mesmo quando seus integrantes não estão contactando.
É exatamente porque mister não se faz que a conduta individual seja
consagrada exclusivamente a um grupo, que o indivíduo pode participar devários e, assim, pertencer a diferentes sistemas de interação, uma vez quecolabore com todos.
2.1.4 Formas, processos e relações
Os grupos sociais ordenam-se de formas diferentes. Diversos são osseus procedimentos de manutenção e alteração. E mantém intercâmbio uns
com outros. Por isso, podem ser considerados quanto à sua organização, aosseus processos de manutenção e de transformação e às suas relações comoutros grupos.
A organização dos grupos é variada. Um grupo de presidiários, sujeito auma rígida disciplina, não está organizado de maneira idêntica a um clube ou auma universidade. A família não está organizada, em toda parte, da mesmamaneira, e nem o esteve de modo igual em todos os tempos.
Relativamente aos processos de conservação e alteração, devemos
salientar que a vida social é essencialmente dinâmica e que os gruposrepresentam sistemas de forças em tensão. Em cada grupo há dois processosfundamentais: um, de conservação, sem o qual ele pereceria; outro, detransformação, sem o qual se anquilosaria. Esses processos, a seu turno, sediferenciam em sua significação específica: religiosa, éticos, estéticos,gnoseológicos, políticos e econômicos.
Finalmente, os grupos sociais entram em contato uns com os outros, oque dá origem a fenômenos sociais de uma classe peculiar.
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2.1.5 Temas da sociologia
Como os grupos sociais podem ser apreciados sob esses três aspectos, asociologia, ciência que os estuda, tem esse tríplice objeto.
E. em relação a ele, segundo o ensinamento de Leopold von Wiese(1876), procede sempre num ritmo pendular entre a realidade e a abstração: 1.Abstrai o social inter-humano do resto pertencente à vida humana; 2. Constataos efeitos do social e do modo como se produzem; 3. Restitui o social aoconjunto da vida humana para fazer compreensíveis suas relações com ela.
2.1.6 Cara cterísticas dos grupos
São características essenciais dos grupos sociais: cooperação e participação harmônica.
A primeira característica é mais evidente. Vida social é vidacooperativa, de associação, de conjugação de esforços. Onde o indivíduo nãocolabora, não existe vida social, ipso facto , grupo social. A cooperação seapresenta numa faixa extensa de gradação. Pode ser mínima ou máxima. Se
alguém dá a máxima cooperação a certo grupo social, afasta-se dos demais, e pertence somente àquele. Diminuindo, entretanto, a cooperação do indivíduo,aumenta a sua possibilidade de fazer parte de outros grupos, doando a cada umdeles parcela da sua dedicação.
Uma equipe de futebol, jogando num campo, exemplifica de formaexata a cooperação como qualidade grupal. Todos cooperam, indivíduo paraindivíduo, em busca do mesmo fim. Inconscientemente, também, estãocooperando num grupo mais amplo. Cada equipe visa a ultrapassar aadversária, mas, se alguém tentar interromper a competição, as equipes
passam a cooperar para evitar a intromissão. É que elas formam um grupomaior, tanto que, atingidas por uma afronta comum, reagem como conjunto,deixam de ser duas equipes distintas, apenas uma só reagindo contra o intruso.E, assim, por que elas acatam regras iguais de procedimento, formando outraunidade maior, com posição própria diante de terceiros.
A segunda característica, mais nítida para definir o contorno de umgrupo social, é o senso de participação harmônica, isto é, o sentir a diferençaentre pertencer e não pertencer a um certo grupo. Só as pessoas pertencentes a
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um grupo têm direitos e deveres, relativamente a ele. Esta consciência de privilégios, regalias, vantagens, direitos e encargos separa os integrantes de
um grupo dos que a ele não pertencem.
Autores há que citam características mais numerosas: pluralidade deindivíduos, objetivos comuns, interação mental, relativa durabilidade, certaorganização e sentimento de autonomia. Cremos, porém, todos esses atributoscontidos, embora alguns implicitamente, naqueles que citamos, segundo alição de H. M. Johnson.
2.1.7 Natureza do fato social
Hoje a Sociologia não se preocupa com a pergunta metafísica sobre oque é sociedade. Nem outras ciências têm mais a mesma veleidade. APsicologia não indaga mais o que é a alma, nem a Física pergunta mais o que ématéria. A Sociologia, como qualquer ciência, é observação de fenômenos
para a sua compreensão. O interesse do tema está apenas em que ele permiteuma sucinta visão da história da Sociologia.
Situemos o problema.
Observamos, entre os homens determinados fenômenos que chamamossociais. Só existem quando estão agrupados, não podendo ser explicadosapenas em função de realidades inerentes ao indivíduo. Daí a pergunta: qual éa sua natureza?
Podemos determinar, a respeito, quatro posições principais: o fisicismo,o biologismo, o psicologismo e o sociologismo.
O fisicismo é a explicação do fato social como variante do mecânico. O
biologismo é a sua explicação como modalidade do biológico. O psicologismoé a sua explicação como maneira de ser do fenômeno psíquico. Osociologismo é, finalmente, a tendência para a explicação do fato social porele mesmo, não como epifenômeno de outro que lhe seja subjacente.
Explicado o fato social como mecânico, não existirá, a rigor,Sociologia, mas uma mecânica social. Se o explicamos como fato biológico, aSociologia será apenas o último e mais avançado capítulo da Biologia. Sedizemos que o fato social é manifestação de fenômeno mental, também não
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haverá uma Sociologia, mas uma Psicologia social. Será preciso afirmar que ofato social não é modalidade de outro, que constitui uma realidade irredutível
a qualquer outra, para que possamos ter uma ciência peculiar de seu estudo, aSociologia.
A Sociologia é uma ciência recente, cujo batismo ocorreu no séculoXIX, com o positivismo, filosofia de Auguste Comte (1798-1857), o primeiroa reconhecer-lhe autonomia, incluindo-a na sua famosa classificação, na qualdistribuía as ciências em ordem decrescente de sua generalidade e crescente dasua complexidade. Essa classificação partia da ciência mais ampla e maissimples, a Matemática, até atingir, no seu termo, uma ciência nova, maiscomplexa e mais restrita, a Sociologia.
Ingressando a Sociologia entre as ciências, surgiram debates sobre anatureza do fato social, caracterizados pela pretensão de explicá-lo comovariante de outros, já estudados. Ocorreu com ela o que se passa com todaciência neófita: enfrentar a concorrência de ciências mais amadurecidas, maisdesenvolvidas, tradicionais, que pretendem chamar a si a explicação do novofato observado, negando-lhe a autonomia, característica essencial para serobjeto de uma ciência própria.
2.1.7.1 Fisicismo
Sob a rubrica de fisicistas devem ser citados aqueles que, participandode um momento de extraordinário prestígio da Física, ciência que então
parecia a chave para o conhecimento completo da realidade, pretenderamdeslocar os seus métodos para o estudo das manifestações de vida social. Osgrupos sociais seriam considerados à semelhança de corpos, e os processossociais entendidos tal como se interpreta a atuação de forças mecânicas.Wilhelm Ostwald (1853-1932) é o mais destacado representante do
movimento.
2.1.7.2 Biologismo
O biologismo, posição, entre outros, de Spencer, Pavel FederovichLilienfeld (1829-1903) e René Worms (1867-1926), correspondeu a um
período de euforia da Biologia.
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Até certa época, o fato vital, objeto dessa ciência não havia sidocaracterizado na sua perfeita autonomia, diante dos fenômenos físicos e
químicos. Considerava René Descartes (1596-1650), um dos filósofos queinauguraram a Idade Moderna da filosofia, os seres vivos em tudo iguais amecanismos, e suas funções resultantes exclusivamente da disposição de seusórgãos, à semelhança do que ocorre nos movimentos de um relógio. Assim
pensando, observa Marx Frischeisen Kohler, aproximava-se ele da idéia deuma derivação histórica dos organismos, partindo da natureza inanimada.
Avançando paulatinamente, realizando uma revolução que E. Boinetcompara à de Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794) no estudo dos corposinorgânicos, a biologia foi repudiando tais noções, até que Marie-François
Bichat (1771-1802) trouxe uma contribuição decisiva para a sua plenaautonomia, ao afirmar que o fato vital era inteiramente diverso dos fenômenosfísicos e químicos que se passam no corpo, tese que ainda repercute nasdoutrinas contemporâneas de Elsasser e Planyi. Não somente diverso, maisexatamente oposto àqueles. De onde resultou a sua definição, segundo a quala vida é um conjunto de funções que resistem à morte. A vida seria um estadode permanente luta, de que o corpo seria cenário, entre as propriedades físicase químicas da matéria, de um lado, e, de outro, suas propriedades vitais. Asdoenças seriam momentos de crise nessa luta pela sobrevivência das
propriedades vitais , cuja derrota final estaria na morte.
Bichat precisou a noção de organismo, como um conjunto sui generis ,caracterizado pela recíproca dependência entre o todo e as partes. E foiexatamente o conceito de organismo que pareceu, em certo momento, sedutordemais, a ponto de justificar a sua ampliação ao campo de outras ciências,entre estas a sociologia. A sociedade poderia, então, ser comparada a umorganismo vivo, precisamente porque, nela, tal como sucede neste, o tododepende de cada uma das suas partes e estas daquele. Assim, os métodos da
biologia poderiam ser legitimamente aplicados ao estudo dos fatos e das
instituições sociais.
Os partidários da escola organicista, conforme observa AntonioDellepiane, bifurcam-se: uns identificam a sociedade a um organismo vivo(Lilienfeld, Jacob Novicow (1849-1912), Worms) e outros estabelecem umaanalogia mais formal do que substancial entre ambos (Albert E. FriedrichSchafle (1831-1903), Spencer).
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Spencer, ambicionando uma síntese global da realidade, via noUniverso uma estrutura em forma de pirâmide, construída por um incessante
processo de evolução, em cuja base estaria o mundo inanimado (inorgânico),logo em cima o mundo animado (orgânico) e no topo o mundo social(superorgânico). As sociedades seriam, então, verdadeiros superorganismos,cuja estrutura se determinaria em função da estatura, da força, dos meios dedefesa, do gênero de alimentação, da distribuição dos alimentos e do modo de
propagação, relativamente a cada espécie. À semelhança dos organismos,teriam órgãos, sistemas, funções, nasceriam, cresceriam, envelheceriam emorreriam.
Na escola biologista situa-se o chamado darwinismo social, fundado na
tese de Charles Darwin (1731-1802), segundo a qual cada organismo mantémseu lugar por uma luta periódica, o que lhe parecia indubitável em face dacircunstância de se multiplicarem todos os seres em progressão geométrica,enquanto que, em média, permanece o total da subsistência; do que resultaria aexplicação da evolução social por esse processo competitivo espontâneo. Oerro maior da doutrina, consoante observa Marcel Prenant, foi exatamente ode referir à sociedade humana a falsa lei de Thomas Robert Malthus (1766-1834) como se fosse uma lei universal da vida, quando nada mais traduzia doque constatações feitas na sociedade burguesa da Inglaterra.
A tese organicista, que é a mais representativa da corrente biologista,conduziu a comparações pitorescas, no esforço de seus teóricos de confirmar a
pretendida semelhança. As funções de governo corresponderiam às funçõesnervosas, a produção seria o equivalente da nutrição, os transportes, dacirculação, etc., etc.
2.1.7.3 Psicologismo
Mais tarde, o psicologismo assumiu atitude de contestação às doutrinasanteriores.
Foi seu fundador Gabriel Tarde (1843-1904) que, escreve Fernando deAzevedo (1894-1974), conseguiu, numa luta de 20 anos contra todas asformas de biologismo, desprender da Biologia a nova ciência, mas parasubordiná-la a outra: a Psicologia.
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Ensinava ele que um fenômeno somente pode ser objeto deconhecimento científico se ele se repete. Assim, por exemplo, acontece na
Física, com as vibrações que se sucedem, e na Biologia, com ahereditariedade.
Os fatos sociais, no seu entender, podem ser reduzidos a um só, deíndole individual, a imitação. Por esta, um sentimento, uma idéia, um gesto,transmite-se de uma pessoa a outra. O ponto de partida da imitação é ainvenção, fato essencialmente individual, porque somente o indivíduo inventa.Toda vida comum é invenção ou imitação e, unicamente, sob esses aspectos,
pode ser estudada. Procurar como se apresenta e se modifica a imitação, emtodas as circunstâncias, é o fim da Sociologia.
Considerado o fato social manifestação de um processo nitidamenteindividual, não se lhe poderia predicar natureza peculiar diversa da naturezado fenômeno mental. A Sociologia, então, seria uma Psicologia interindividualou intermental, da qual todos os elementos básicos seriam dados pelaPsicologia de cada um dos indivíduos, cuja colaboração produz a vida social.
2.1.7.4 Sociologismo
Émile Durkheim (1858-1917) foi o verdadeiro fundador da Sociologiacientífica.
Conceituou os fatos sociais como maneiras de sentir, pensar e agirexteriores e coercitivas. Há maneiras de pensar, sentir e agir que dependem doindivíduo e são projeções da sua mente, cujo estudo incumbe à psicologia.Mas outras há que se singularizam pela exterioridade e traduzem obediência aum padrão extramental, em relação aos quais a conduta não pode serentendida em termos meramente psicológicos. Nesta situação, o
comportamento do indivíduo é condicionado por fatores que estão fora da suamente.
A exterioridade dos fatos sociais bem se evidencia na circunstância deexistirem independentemente de nós. Precedem-nos e nos sobrevivem.Exemplo: as religiões. Dentro de um credo, que nos sobrevive, nascemos emorremos. As crenças não existem como frutos de elaboração da menteindividual, mas como realidades sociais que se imprimem no espírito de cadaum de nós. Também a linguagem, fato social por excelência, revela o
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condicionamento imposto pela sociedade ao indivíduo. Se alguém quiser sedirigir aos membros do seu grupo, sem usar da linguagem comum, ficará
privado de comunicação. Por outro lado, ela, a bem dizer, modela a própriaformação da consciência do indivíduo, tão prematura e total a sua imposição.
Além de exteriores, os fatos sociais exercem pressão sobre osindivíduos, impondo-se à sua conduta, e nisso está a sua coercitividade.Segundo Durkheim, a coercitividade é que nos permite reconhecer o carátersocial de um fato, como elemento característico do seu perfil, a marcá-lo demodo nitidamente distinto em relação ao fato psíquico. A moda, por exemplo,que pode, em termos teóricos, ser tida por modelo de conduta facultativa, atua,
porém, irresistivelmente, sobre os homens, como autêntica realidade social
que é, a ponto de, como aponta Gustave Le Bom (1841-1931), levá-los aadmirar coisas sem interesse e que parecerão, alguns anos depois, de extremafealdade.
Durkheim instituiu uma sociologia positiva, visando a descobrir, pelosmétodos ordinários de observação e indução, as leis que ligam certosfenômenos sociais a outros, por exemplo, o suicídio ao aumento da população.
Fiel à maneira positiva de qualquer ciência abordar o seu objeto próprio,
recomendou aos sociólogos tratassem os fatos sociais como coisas, regra basilar do seu método, da qual os corolários:
a) arredar prenotações;
b) precisar o objeto positivo da pesquisa, mediante o grupamento de fatosem função dos seus caracteres exteriores comuns;
c) apreender os fatos pelo aspecto em que se mostram emancipados dassuas manifestações individuais.
Fugindo à dispersão especulativa dos predecessores, Durkheimconcentrou seu esforço teórico na precisa conceituação do único insubstituívelobjeto da sociologia, os fatos sociais. Contrapondo-se a Tarde, para quem elesnão seriam senão a soma das representações individuais, não encerrando assimnada mais que j�
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