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MAGISTRATURA E PREVIDÊNCIA: MITOS E REALIDADES

Romano José EnzweilerJuiz de Direito em Santa Catarina

Resumo: 1. Introdução. 2. Os princípios da separação dos Poderes e da independência do Juiz: falsastensões com o princípio da isonomia. 2.1. Constituição e princípios fundantes. 2.2. Estado Democráticode Direito e Poder Judiciário. 2.3.Princípio da independência e prerrogativas da Magistratura. 2.4.Falsas tensões. 3. Proventos de aposentadoria da Magistratura: limites materiais à emendaconstitucional. 4. Crise fiscal e Estado-Providência. 5. A reforma da previdência social brasileira. 5.1.Nota introdutória. 5.2. Composição do orçamento da seguridade social e os regimes existentes. 5.3. Oorçamento da seguridade social é deficitário ou superavitário? 5.4. A previdência dos servidorespúblicos. 5.5. Regime de repartição versus regime de capitalização. 5.6. Quem ganha e quem perdecom a reforma da previdência. 6. Conclusões.

1. Introdução

A questão previdenciária vem ocupando, com acentuado destaque, espaço na agendadas reformas tendentes à harmonização das contas públicas brasileiras. Propala-sediuturnamente e sem questionamentos que o Estado tornou-se caro demais para a sociedade1,tendo como resultante um déficit agudo, a exigir medidas “amargas e duras para a salvaçãonacional”2. Diante desse quadro, asseveram, já não se justifica a manutenção de regimesprevidenciários próprios, diferenciados para os servidores públicos, pois colidentes com oequilíbrio financeiro e atuarial que agora deve presidir o sistema. Ainda, no epicentro dodebate, encontram-se as carreiras de Estado e as prerrogativas que as singularizam.

O tema, tal como proposto pelo recém-inaugurado Governo Lula, faz comprometer anoção de Estado, trazendo para a ordem do dia o desafio enunciado por Dahrendor, deequacionar as variáveis crescimento econômico (criação de riqueza), sociedade civil (coesãosocial) e liberdade política3. No entanto, seu exame atento revela que as premissasapresentadas como verdade inquestionável – colapso da previdência com origem no regime 1 Vide, a respeito, Custo Brasil – mitos e realidade. Luiz Inácio Lula da Silva (Coord.). Petrópolis: Vozes, 1997.2 A capa da revista Veja de 22 de janeiro de 2003 estampava: “Reforma da previdência – Ninguém quer largar oosso: os militares e juízes fazem pressão para manter aposentadorias privilegiadas. Mas, sem a reforma, o Brasilquebra.”3 GRAU, Eros Roberto. Estado, políticas públicas e projeto democrático. Revista de pós-graduação dafaculdade de direito da USP, v. 2. São Paulo: Síntese, 2000, p. 11. “(...) o trabalho de traduzir os direitosconsagrados pela Constituição em uma realidade para a maioria da população, não compete exclusivamente enem sequer principalmente ao Supremo Tribunal Federal ou ao Judiciário, mas requer a colaboração dos demaisramos do governo, da sociedade em geral e o próprio desenvolvimento da economia.” (...) “As Constituiçõesrígidas (...) constituem autênticos mecanismos antimajoritários. Daí as tensões entre constitucionalismo – queprivilegia a proteção de direitos – e democracia – que enfatiza a regra da maioria.” VIEIRA, Oscar Vilhena. AConstituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 9 e 23.

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dos servidores estatutários – não são verdadeiras, como ficará evidenciado ao longo destetrabalho.

Disseminadas informações equivocadas, o pensamento único que se acaba instalando apartir desta visão midiática4 e acrítica faz com que seja sumariamente desqualificada e tachadade casuística - porque destinada à preservação de “privilégios” - qualquer dissensão queproponha o aprofundamento do discurso em bases responsáveis, com a investigação deprincípios e garantias constitucionais5.

Vê-se criado, assim, um ambiente hostil junto à opinião pública (ou publicada), o queprovoca a intolerância para com os servidores públicos e a Magistratura em especial, de poucoproveito para o encaminhamento equilibrado e útil das proposições relativas à previdênciasocial.

De efeito, o reducionismo, isto é, a simplificação da dimensão do processo, compredomínio das abordagens atemporais e acontextuais, ao desconsiderar a importância culturalenvolvida, traz como conseqüência a marginalização da voz e da realidade individual de seusatores6. Olvida-se que “a maioria, naturalmente, não é critério de verdade, apenas critério deação. Tem por objeto decisões políticas, não decisões de foro não-político”7.

Portanto, antes de ideologizar a controvérsia, desprestigiando e vulgarizandoinstituições basilares da democracia brasileira, tal o Poder Judiciário, algumas questões defundo se impõem. É este, justamente, o escopo do presente ensaio.

4 “A mídia tende a gerar uma vulgata do discurso jurídico e uma ilusão de compreensão do direito. Forma-se uma“jurisprudência jornalística” que desorienta, desinforma e apresenta o direito como instrumento para resolução demales que definitivamente não cabe ao sistema jurídico resolver.” CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direitona sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 163.5 “O Brasil só tem Constituição e democracia quando isso não atrapalha as contas do governo (...). Advogados,juízes, membros do Ministério Público e todos os brasileiros realmente desejosos de liberdade e conscientes deque, eliminando o direito, o que resta é o arbítrio, devem reagir vigorosamente.” DALLARI, Dalmo de Abreu.Ditadura constitucional.6 FARIA, Alexandre. Pesquisa em redes estratégicas – descobertas e reflexões etnográficas. Revista deadministração de empresas, vol. 43, nº 1, janeiro/fevereiro e março 2003. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas.7 MIRANDA, Jorge. O homem e o Estado – direitos do homem e democracia. Coimbra: Almedina, 1999, p. 83.VIERA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 10: “Ospontos de legitimação democrática vão além da vontade cambiante das maiorias populares”.

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2. Os princípios da separação dos Poderes e da independência do Juiz: falsas tensões como princípio da isonomia

2.1. Constituição e princípios8 fundantes

Conforme anota Canotilho, a Constituição é o estatuto jurídico do político,compreendendo-se como político não só o espaço institucional do Estado mas, sobremaneira,o da sociedade9.

É inquestionável a importância que assume o Estatuto Maior10 na conformação dasesferas de poder e, pois, na organização da vida em comunidade11. Para melhor compreendê-loe valorá-lo, tem-se desenvolvido a teoria dos princípios, que figuram como “o coração dasconstituições contemporâneas, capítulo rico e inovador da teoria jurídica, na era do pós-positivismo”12.

A função do princípio, enquanto norma, consiste em emprestar fundamento material eformal aos subprincípios e demais regras integrantes da sistemática normativa13. Os princípiosformam, nas palavras de Canotilho, “o cerne da Constituição e consubstanciam a suaidentidade intrínseca”14. Assim, “fazem eles [os princípios constitucionais] a congruência, oequilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmidenormativa, elevam-se, portanto, ao grau de Norma das normas, de Fonte das fontes”15. São,pois, o conteúdo primário e retor do sistema jurídico-normativo fundamental de um Estado16. 8 “Assim, a interpretação do direito é (deve ser) dominada pela força dos princípios. Eles – os princípios –conferem coerência ao sistema. (...) [Os princípios] são mandamentos de otimização. Assim, ainterpretação/aplicação das regras jurídicas é sempre determinada, conformada pelos princípios. Refiro-me,evidentemente, não a princípios gerais do direito, porém aos princípios de cada direito (a cada sociedadecorresponde um direito; o direito brasileiro, o direito argentino, v.g.); esses princípios de cada direito nada têm demetafísicos; resultam de uma construção histórico-cultural.” GRAU, Eros Roberto. Quem tem medo dos juízes(na democracia)? In Justiça e Democracia, n. 1, 1996, p. 107. “[Princípio é] a norma que orienta a elaboraçãode outras de primeiro grau, extraída, por dedução, do sistema normativo, operando limitação das próprias normase auto-integração do sistema.” OLIVEIRA, Régis Fernandes de. HORVATH, Estevão. Manual de DireitoFinanceiro. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.9 Apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: RT, 1999, p. 72.10 “Expressam opções políticas fundamentais, configuram eleição de valores éticos e sociais como fundantes deuma idéia de Estado e de sociedade.” ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. SãoPaulo: RT, 1999, p. 75.11 “O fundamento dessa organização constitutiva da pólis era a autoridade da tradição e das leis fundadoras. Naépoca moderna, a idéia de Constituição tomou um sentido bem diverso, marcadamente funcional: ela existe paraproteger o ser humano, mesmo o indivíduo mais réprobo e hediondo, contra o abuso de poder. A Constituiçãomoderna é um instrumento de defesa dos governados contra os governantes. Se ela não exerce esse papel, se elase limita a suprimir os freios ou obstáculos ao exercício do poder em nome da governabilidade, não se está diantede uma Constituição. ” COMPARATO, Fábio Konder. Réquiem para uma Constituição.12 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: RT, 1999, p. 71.13 Idem , p. 73.14 Apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: RT, 1999, p. 202.15 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. Apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito deprincípios constitucionais. São Paulo: RT, 1999, p. 75.16 “A função judicial é a função própria de um poder de Estado, isto é, uma função política por antonomásia.Uma função que tem a seu cargo – como a executiva e a legislativa – a realização dos princípios fundamentaissobre os quais se assenta a organização do sistema republicano e democrático adotado pela ConstituiçãoNacional.” CÁRCOVA, Carlos Maria. Direito, política e magistratura. São Paulo: LTr, 1996, p. 154 e 155.

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“Dotados de originalidade e superioridade material sobre todos os conteúdos que formam oordenamento constitucional, os valores firmados pela sociedade são transformados peloDireito em princípios”17.

Neste sentido, o legislador constituinte de 1988 elegeu a “separação dos poderes”18

como um dos elementos imprescindíveis ao estabelecimento e mantença do EstadoDemocrático de Direito19, com supedâneo nas tradições republicanas brasileiras e inspirado naexperiência do constitucionalismo mundial dos últimos duzentos anos, elevando-o, por essarazão, à categoria de cláusula imutável20.

Bem por isso, rememorando as raízes históricas da separação dos poderes, comenta-se:“Proposta essa idéia [da separação dos poderes] de maneira sistemática no século XVIII, como fim exclusivo de proteção da liberdade, mais tarde seria desenvolvida e adaptada a novasconcepções, pretendendo-se então que a separação dos poderes tivesse também o objetivo deaumentar a eficiência do Estado, pela distribuição de suas atribuições entre órgãosespecializados. Esta última idéia, na verdade, só apareceu no final do século XIX, quando já sehavia convertido em dogma a doutrina da separação dos poderes, como um artifício eficaz enecessário para evitar a formação de governos absolutos”21.

2.2. Estado Democrático de Direito e Poder Judiciário22

Como visto, a separação dos Poderes constitui elemento indispensável à noção deEstado Democrático de Direito, compondo o equilibrado sistema de freios e contrapesos, o

17 ROCHA, Cármem. Princípios constitucionais da administração pública. Apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel.Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: RT, 1999, p. 76.18 Quando da Revolução Francesa, definiu-se: "Toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada,nem a separação de poderes determinada, não tem constituição" (Declaração dos Direitos do Homem e doCidadão de 1789, art. 16).19 Evidentemente, a mesma lógica é inaplicável a Estados totalitários ou autoritários. “Os Estados comunistaseram Estados de não-direito. A desesperada tentativa da perestroika para alicerçar a formação de um Estado dedireito socialista demonstra que faltava o essencial de um Estado de direito: a separação de poderes, a garantia dedireitos e liberdades, o pluralismo político e social, o direito de recurso contra abusos de funcionários, asubordinação da administração à lei constitucional, a fiscalização da constitucionalidade das leis. O Estado dedireito é a antítese do totalitarismo estalinista ou autoritarismo monopolista da nomenklatura.” Por outro lado,adverte o mestre lusitano, “as tentativas para recriar um Estado absenteísta ou um Estado subsidiário, numa épocade agressividade social e globalitarismo ideológico, escondem a razoabilidade de justiça do Estado social dedireito.” CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado de direito. Lisboa: Fundação Mário Soares, 1999.20 Título I - Dos princípios fundamentais: (...) Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entresi, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. (...) Da emenda à Constituição: Art. 60. A Constituição poderá seremendada mediante proposta: (...) §4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:(...) III – a separação dos Poderes.21 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 181.22 “O Judiciário tem uma missão difícil: controlar a legalidade e a probidade dos atos administrativos, legislativose judiciais. Possivelmente, o combate à corrupção na Administração Pública figure entre as mais relevantestarefas dos Magistrados modernos. Em razão disso, a independência judicial e a especificação funcional dosistema jurídico nunca foram tão importantes. É intrigante, para dizer pouco, que, exatamente quando o Judiciáriocomeça a consolidar o perfil institucional definido pela Carta de 1988, se discuta tanto o controle externo daMagistratura.” CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad,2000, p. 92.

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que só será verdadeiramente atingido se houver o necessário prestigiamento de suasinstituições e, claro, dos agentes que as compõem.

Para tanto, “na democracia, a regra básica é manter elevadas as possibilidades deescolha e abertas as alternativas de decisão. Por isso o Estado Democrático de Direitoestabiliza garantias aos direitos das minorias, da oposição e da Magistratura. Sem estesmecanismos reduzem-se drasticamente aquelas possibilidades e alternativas. Eliminam-se, domesmo modo, as oportunidades de reversão das decisões”23.

Todavia, a obliteração dos canais políticos e a impossibilidade de satisfação daspromessas de bem-estar pelo Estado (liberal e, também, social)24, impuseram ao Judiciáriobrasileiro o desgaste natural do exercício do poder25, fazendo, de um lado, com que parte daMagistratura se “avoque na condição de representante do povo e, de outro, que os políticospretendam amordaçar o Judiciário e submetê-lo à lógica do consenso popular, criando-sebloqueios que impedem o funcionamento tanto do sistema jurídico quanto do sistemapolítico”26.

Premido pelas carências sociais, acaba o Judiciário por confundir seu papel,assumindo, muitas vezes, “a técnica decisória do sistema político (substituindo a vontade dalei pela das praças) ou a lógica do sistema econômico (adotando critérios de eficiênciaadministrativa, alocação de recursos e captação de clientela típicos de um shopping center enão de um Palácio de Justiça)”27.

O exemplo italiano, conhecido de todos como “operação mãos limpas”, é ilustrativo.Lá, “a Magistratura italiana destruiu o antigo sistema partidário. As lideranças da repúblicaforam ou estão sendo processadas. Alguns dos principais Magistrados do Tribunal de Roma –conhecido na Itália como o ‘Porto da Neblina’, pois os processos se ‘perdiam’ ou eram‘esquecidos’ em seus labirintos – foram expulsos do Judiciário. Só uma Magistratura firme,independente e preocupada em cumprir as leis é capaz dessas proezas. Se estivessecomprometida com o poder econômico ou com o sistema político-partidário, a lógica dosistema jurídico não teria se afirmado. Para isso, foi fundamental o autogoverno daMagistratura”28.

23 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 90.24 “De fato há duas espécies de utopia: as utopias proletárias socialistas que têm a propriedade de nunca serealizarem, e as utopias capitalistas que têm a má tendência de se realizarem freqüentemente”. FOUCAULT,Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1999, p. 110.25 “Pretender fazer do Judiciário o salvador do Estado Social ou o substituto do administrador relapso (...)significa confundir racionalidade política com racionalidade jurídica”. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Odireito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 95.26 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 76.27 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 76.28 Idem , p. 92.

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2.3. Princípio da independência e prerrogativas da Magistratura

Na feliz expressão de Canotilho, “os princípios estruturantes da ordem constitucionalganham concretização através de outros princípios que densificam aqueles, iluminando o seusentido jurídico-constitucional e político-constitucional, formando com eles um sistemainterno”29.

Logo, o princípio maior da “separação dos poderes” densifica-se a partir daindependência dos tribunais, sem a qual o Estado Democrático de Direito não passa de meracaricatura30. Portanto, “num Estado de Direito pertence aos tribunais, através de juízesindependentes, ‘dizer o direito’. Num Estado de Direito Democrático cabe aos Magistradosjudiciais ‘dizer o direito em nome do povo’”31.

A independência da Magistratura constitui-se na pedra angular do Estado de Direito,uma vez que sua ausência redunda na negação da justiça. Um juiz dependente não possuiautoridade e, pois, carece de legitimidade para impor suas decisões.

Não se pode olvidar, tampouco, que a imparcialidade do juiz, valor supremo que é, sóse vê garantida por força de sua independência. “Portanto, o enfraquecimento daindependência do juiz constitui uma violação ao direito fundamental das pessoas, garantidopela Constituição em seu art. 5º, incisos XXV e LIII, a verem seus conflitos de interessesjulgados por juiz independente e imparcial”32.

Assim sendo, “essa elevada missão [de julgar], que interfere com a liberdade humana ese destina a tutelar os direitos subjetivos, só poderia ser confiada a um poder do Estado,distinto do Legislativo e do Executivo, que fosse cercado de garantias constitucionais deindependência.” E são as garantais funcionais que asseguram a independência e aimparcialidade dos membros do Poder Judiciário, previstas, aliás, “tanto em razão do própriotitular mas em favor ainda da própria instituição” 33.

Daí concluir-se que para a consecução do ideal da independência das decisões éimprescindível a independência também do julgador. Por isso, foi ele cercado de garantias quelhe permitem assim exercitar o poder conferido, porque “quando alguma coisa tem valorsupremo, merece supremo respeito”34.

29 Apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1999, p. 28.30 “A independência dos tribunais continua a representar um princípio fundamental em qualquer país que aceiteos princípios mínimos do estado de direito.” CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e DireitoConstitucional. Coimbra: Almedina, 1999, p. 20631 CANOTILHO, J.J. Gomes. Estado de direito. Lisboa: Fundação Mário Soares, 1999.32 ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 50. Maisadiante, explicita o mesmo autor: “As garantias constitucionais dos direitos em geral e dos direitos fundamentaisem particular só adquirem sentido quando se dispõe de um aparelho judiciário apto a transformá-las emrealidades concretas. Fora disso, não passam de ‘declarações de intenções’ ”. p. 70.33 SILVA, José Afonso da. Curso e Direito Constitucional Positivo. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 575.34 ECO, Umberto. MARTINI, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem. 4 ed. Rio de Janeiro: Record,2000. “Ademais, é impossível estruturar qualquer sociedade sobre o vácuo de valores.” BRILHANTE, ÁtilaAmaral. Liberalismo e ética. Fortaleza: UFC, 1998, p. 71.

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Tanto assim é que Pimenta Bueno, já em 1857, em elegante citação referida peloMinistro Néri da Silveira, observava: “Tirai a independência ao Poder Judiciário, e vós lhetirareis sua grandeza, sua força moral, sua dignidade, não tereis mais Magistrados, simcomissários, instrumentos ou escravos de um outro poder (...) Não é, pois, por amor ou nointeresse dos juízes, que o princípio vital de sua independência deve ser observado como umdogma é, sim, por amor dos grandes interesses sociais”35.

Não é outra a importância conferida à Magistratura nos países democráticos da Europa,valendo citar, ilustrativamente, a Constituição do reino da Dinamarca, que em seu capítulo VI(O Poder Judiciário), disciplina:

“Art. 64. No exercício de suas funções, os Magistrados devem guiar-se apenaspela lei. Eles não podem ser demitidos senão em virtude de julgamento e nãopodem ser transferidos contra sua vontade, exceto no caso de uma reorganizaçãodos tribunais. Entretanto, o Magistrado do com sessenta e cinco anos cumpridospode ser colocado em disponibilidade sem diminuição dos vencimentos, até queele atinja a idade de aposentadoria.”

Desde o Brasil Império, o Poder Judiciário manteve-se independente, por dispositivoexpresso inserto na Constituição de 1824, assim redigido:

“Art. 151. O Poder Judicial é independente, ...(...)Art. 155. Só por sentença poderão estes juízes perder o lugar.”

A primeira Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, datada de 1891,incorporou a estas garantias a vitaliciedade e a irredutibilidade de vencimentos36. Acerca dasprerrogativas da Magistratura, então recém-guindadas à categoria constitucional é elucidativoe atualíssimo o comentário de João Barbalho U.C., à época:

“Pretende-se com esta garantia [vitaliciedade] premuni-los contra a pressãoofficial e partidária. É preciso que o juiz nada tenha que temer ou esperar dogoverno e das potestades do dia. N’esta situação, devidamente abroquelado, ellecumprirá desassombrado seo dever e resistirá às influências perturbadoras dajustiça. Entretanto, que, demissível seria elle muita vez dominado pela tentação desacrificar o dever à conservação do cargo. E nada mais sábio do que pô-lo fora dadependência do poder que o nomeia e d’aquelles que n’esse poder influem. Ecomo não deveria n’isto ser cuidadosa a Constituição, quando ella deo aosMagistrados o poder de julgar dos actos da administração pública, bem como daconstitucionalidade das leis? As decisões e interpretações constitucionaes de umacorporação demissível ou ‘pro tempore’, transformariam, afinal, a Constituição no

35 Revista “In Verbis”, IMB, nov./96, p. 9.36 Art. 57. Os juízes federais são vitalícios e perderão o cargo unicamente por sentença judicial. § 1º. Os seusvencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos.

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que o governo quisesse. Isto posto, não será fora de razão dizer-se que osMagistrados devem ser perpétuos para que perpétua possa ser a Constituição.Além de tudo, a permanência e estabilidade que esta condição assegura ao titulardo cargo, convida e attrahe para este as aptidões, os mais competentes, que,cônscios de seo mérito, não aceitariam uma posição – conquanto mui digna eelevada – precária e insegura.”

Ao depois, respeitante à irredutibilidade dos vencimentos, explicita o insuspeitáveljurista, em 1891:

“Seos vencimentos... não poderão ser diminuídos. Outra garantia deindependência. Para dar esta [a independência] não bastaria a vitaliciedade. Comescasso vencimento, não proporcionado à altura do cargo e importância de suamissão, o Magistrado ficaria escravo da necessidade e ‘Le besoin d’argent est lapire des servitudes.’ (...) Acima de quaesquer considerações neste particular, ellacollocou a irreductibilidade desses vencimentos, sem a qual, no dizer de Story,teria sido inútil e quasi ridícula a disposição que consagra a vitaliciedade. (...) Etinha dito Hamilton: ... Si o Magistrado executivo ou os juízes ficassem n’esteartigo dependentes da legislatura, claro está que a sua independência a qualqueroutro respeito seria inteiramente illusória. Geralmente falando, dispor dasubsistência de um homem é dispor da vontade d’elle. (...) A Constituiçãodetermina que os vencimentos dos Magistrados não poderão ser diminuídos. Estadeterminação é absoluta, não tem limitações. E uma só que tivesse a inutilizaria detodo. (...) A Constituição quer a independência d’estes [juízes] e esta não se dará sia autoridade legislativa puder, de qualquer modo, reduzir-lhes o vencimento.”

A Carta de 1934 promoveu o incremento das garantias da Magistratura, fazendo incluirno rol a inamovibilidade.

A Constituição promulgada em 10 de novembro de 1937, alcunhada de “polaca”, noauge da ditadura Vargas, não modificou a estrutura das garantias da Magistratura.

Com a redemocratização do país, que se concretizou pela Constituição de 1946,inalterada restou a tradicional tríplice garantia dos juízes, acrescentando-se a garantia deproventos integrais quando da inatividade37.

A 24 de janeiro de 1967 foi dada a público a Constituição gerada pelo Regime Militar,a qual contemplou igualmente as garantias da Magistratura, inclusive dispondo sobre aintegralidade dos proventos de aposentação pois, em que pese a ausência do pleno Estado

37 “Capítulo IV- Do Poder Judiciário. (...) Art. 95. Salvo as restrições expressas nesta Constituição, os juízesgozarão das garantias seguintes: (...) §1º A aposentadoria será compulsória aos setenta anos de idade ou porinvalidez comprovada, e facultativa após trinta anos de serviço público, contados na forma da lei. §2º Aaposentadoria, em qualquer desses casos, será decretada com vencimentos integrais.”

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Democrático, tinham ciência os detentores do poder que não se pode construir uma nação semo Estado de Direito e, para este, é imprescindível uma Magistratura livre e independente38.

Pontes de Miranda, ao comentar os dispositivos da Carta Política de 1967 nesteparticular, explicita:

“A vitaliciedade sem irredutibilidade de vencimentos seria garantia falha. Aqui setiraria parte do que ali se assegurou, a independência econômica, elemento derelevo, que muitos reputam o maior, da independência funcional.” (...) Asgarantias são direitos constitucionais, oriundos de regras jurídicas diretas eimediatas, e não simples garantias institucionais. O Poder legislativo e os outrospoderes não têm faculdade de interpretar e conceituar vitaliciedade,inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. São conceitos daConstituição”39.

A Carta Cidadã de 1988, mantendo a tradição consagrada pela história constitucionalde nosso país, perpetuou as garantias da Magistratura, suporte da independência do juiz e,portanto, da separação dos poderes. Quanto aos proventos de aposentadoria, trata o art. 93:

“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporásobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...) VI – aaposentadoria com proventos integrais é compulsória por invalidez ou aos setentaanos de idade, e facultativa aos trinta anos de serviço, após cinco anos de exercícioefetivo na judicatura.”

Posteriormente, a emenda constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, quemanteve inalterada a tríplice garantia, remeteu a matéria referente à aposentadoria e pensão aodisposto no art. 40 da Carta Política. Numa palavra, pela reforma previdenciária entãopromovida, rompeu-se princípio secular de nosso direito constitucional, pois aos Magistradosfoi dispensado tratamento idêntico ao conferido a todos os demais servidores do Estado,devendo-se agora contribuir por pelo menos 35 (trinta e cinco) anos, com tempo mínimo de 10(dez) anos de exercício no serviço público e 5 (cinco) anos no cargo efetivo em que se dará aaposentadoria. A isto, conjugou-se o requisito da idade: para os homens, no mínimo 60(sessenta) anos e para as mulheres, no mínimo 55 (cinqüenta e cinco) anos de idade, se setratar de aposentadoria integral. Por outra, se proporcionais forem os proventos deaposentadoria, deverá o homem contar com pelo menos 65 (sessenta e cinco) anos e a mulher,60 (sessenta) anos de idade. Estas as regras atuais, válidas para todo o funcionalismo público.

38 “Capítulo VII – Do Poder Judiciário. (...) Art. 108. Salvo as restrições expressas nesta Constituição, gozarão osjuízes da garantias seguintes: (...) §1º A aposentadoria será compulsória aos setenta anos de idade, ou porinvalidez comprovada, e facultativa após trinta anos de serviço público, em todos esses casos com osvencimentos integrais.”39 MIRANDA, Pontes de. Comentários à constituição de 1967.

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2.4. Falsas tensões

Não se afiguram verdadeiras as anunciadas tensões entre os princípios da separaçãodos poderes (e decorrente independência do juiz) e o da isonomia.

Primeiro, porque os proventos de aposentadoria dos Magistrados encontram-seatualmente disciplinados pelas mesmas regras afetas aos demais servidores públicos40.

Segundo, porque não se pode ignorar que as garantias da Magistratura e de seustitulares, como se demonstrou à saciedade, dão suporte à sua efetiva independência e, porconseqüência, salvaguardam o princípio maior e imutável da separação dos poderes.

Terceiro, porque há clara distinção constitucional entre tratamento normativo desiguale tratamento discriminatório (ou privilegiado), sendo aquele admitido e desejado pela normamaior41.

Quarto, porque as desigualdades qualificadas pela Constituição fazem parte do sistemade valores da sociedade brasileira e, pois, colocam-se acima do texto escrito na Carta Maior,compondo um quadro de normas (juntamente com outras de especial importância) que sepodem denominar superpositivas ou, no dizer de Otto Bachoff, suprapositivas.

Afinal, se todos somos iguais, como justificar salários diferenciados para funçõesdesiguais? Ou, ainda, diante da crise fiscal pela qual passa o Brasil, por que admitir imunidadetributária aos partidos políticos, suas fundações, às entidades ditas filantrópicas, às igrejas, aosjornais, aos periódicos, às revistas?

Simplesmente porque há, na isonomia pretendida pela Constituição, ponderação devalores, entendendo-se, por exemplo, que funções mais especializadas devem ser melhorremuneradas, que a garantia da liberdade religiosa e da liberdade de expressão são valoresmais relevantes para a sociedade do que eventual recurso financeiro que possa ser carreado aoscofres públicos através de tributos, mesmo que tais receitas sejam exclusivamente destinadasao combate à fome, à criação de oportunidades aos excluídos, à construção de casas popularesou escolas.

Demais disso, “critérios devem ser estabelecidos a fim de permitirem que asdesequiparações sejam juridicamente toleráveis”. A base do tratamento “desigual” funda-se noprincípio da razoabilidade e na legitimidade do fim a alcançar. Nesta busca pelo equilíbrio, “éimperativo que o valor promovido com a desequiparação seja mais relevante do que o

40 Hoje, excepcionam tais regras somente os professores que se dediquem exclusivamente ao exercício dasfunções de magistério na educação infantil, no ensino fundamental e no ensino médio (art. 201, § 8º, daConstituição Federal, com a redação que lhe foi emprestada pela emenda 20/98). Para estes, o tempo decontribuição fica reduzido em 5 (cinco) anos. Assim, para os homens, bastam 30 (trinta) anos e, para as mulheres,25 (vinte e cinco) de contribuição.41 “Privilégio e discriminação vêm a ser, pois, desigualdade normativa sem respaldo no sistema constitucional,não se confundindo com o tratamento normativo desigual que tem base objetiva e suporte constitucional.”ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o poder judiciário. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 161.

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sacrificado por ela”, isto é, deve-se verificar “se o meio empregado e o fim perseguido sãocompatíveis com os valores constitucionais”42.

À evidência, os valores supremos perseguidos pelo Estado Democrático de Direito,como a justiça43 e a segurança44, ancoram-se no princípio basilar da separação dos poderes(guindado à condição de cláusula imutável pelo constituinte originário) e este, de seu turno, noda independência dos juízes, que para ser verdadeira e efetiva necessita concretizar-se formal ematerialmente, o que se dá também e principalmente através dos proventos de aposentadoria.

Neste contexto, gize-se, “igualdade é conceito relacional. Igual ou desigual em relaçãoa quê? A promoção da igualdade significa, sempre, produção de novas desigualdades. Assimcomo mais inclusão também é sinônimo de mais exclusão. Não há nem linearidade nemcausalidade nessas relações: mais igualdade e mais inclusão geralmente também redundam emmais desigualdade e mais exclusão”45.

3. Proventos de aposentadoria da Magistratura: limites materiais à emendaconstitucional46

Porque em jogo questão de interesse social maior, supremo47, que diz respeito à própriaunidade, identidade48 e continuidade do Estado Democrático de Direito, optou o constituinteoriginário49 em garantir à Magistratura o exercício independente da função, sob pena de se vertransformada em simulacro de Poder50.

42 BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 160.43 Quando do julgamento da constitucionalidade da Medida Provisória nº 173, que impedia a concessão deliminares e cautelares contra inúmeras outras MPs, entendeu o STF que, embora constitucional, a medidapoderia, no caso concreto, deixar de ser aplicada pelos Tribunais inferiores e Juízes de primeira instância, casoentendessem que, na espécie, a “falta desses instrumentos pusesse em risco a realização da justiça”. VIEIRA,Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p.169.44 Consoante se verifica do preâmbulo da Constituição Federal.45 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, p.128.46 Consultar, dentre a excelente bibliografia existe no Brasil, as seguintes obras: LIMA, Regina Marta Cereda.Poder constituinte e poder reformador. Leme: Livraria de Direito, 1996. COSTA E SILVA, Gustavo Just da.Os limites da reforma constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. LOPES, Maurício Antônio Ribeiro.Constituinte reformador. São Paulo: RT, 1993.47 As cláusulas intangíveis devem impedir “não só a supressão da ordem constitucional, mas também qualquerreforma que altere os elementos fundamentais de sua identidade histórica”. MENDES, Gilmar Ferreira. Oslimites da revisão constitucional. Texto básico de conferência proferida na Associação dos Advogados de SãoPaulo, em 16 de março de 1994. A mesma “identidade histórica” se vê presente no constitucionalismo brasileiroem relação às garantias da Magistratura.48“Para Carl Schmitt, não se fazia mister que a Constituição declarasse a imutabilidade de determinadosprincípios. É que a revisão não poderia, de modo algum, afetar a continuidade e identidade da Constituição.”MENDES, Gilmar Ferreira. Os limites da revisão constitucional. Texto básico de conferência proferida naAssociação dos Advogados de São Paulo, em 16 de março de 1994.49 “A inquietude do constituinte de 1988 de não se preocupar somente com os direitos, senão ainda em comofazê-los efetivos, também impôs (...) a necessidade de contar com uma certa dose de integridade ética eintelectual, coragem cívica e criatividade, por parte dos juízes”, o que, acrescentamos, será improvável que se

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E esta zona de “reserva de justiça tem como finalidade assegurar a sobrevivência decertos valores que o constituinte considerou fundamentais para a consolidação das instituiçõese princípios democráticos”51, apesar de autores da estatura intelectual de Karl Loewenstein52

advertirem para a fragilidade dessa construção em momentos de crise.

A preferência manifestada pelo legislador constituinte originário decorre do própriosistema e, ainda assim, veio explicitada na Carta Política, a fim de espancar quaisquerdúvidas53.

Por essa razão, diz-se que ocorreu um processo de substantivação do direitoconstitucional, “passando a legitimidade da produção legislativa, assim como a da reforma daConstituição, a estar vinculadas não somente à realização de um procedimento, mas àsubmissão a um Direito com conteúdo ético, que busca seu fundamento nos direitos humanos,no direito natural e nos princípios do Estado de Direito e da separação dos poderes”54.

A partir do julgamento das ADINs 926-5 e 939-7, foram superadas as incertezasrespeitantes à possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de emenda que colida comos princípios retores da Carta Política55, reduzindo as chances de que “uma maioria aja sob odomínio de uma paixão momentânea ou interesse de curto prazo”56. À conta disso, impõem-sedois questionamentos:

Poderá emenda constitucional modificar as garantias conferidas à Magistratura?

O direito à aposentadoria integral dos juízes insere-se no conceito de cláusulaimutável?57

À primeira pergunta responde-se negativamente, quer dizer, “inserem-se [as garantiasda Magistratura] no campo das limitações materiais à atuação do poder constituinte derivadosendo, por essa razão, intangíveis. Não se admite que o poder constituinte derivado possa verifique no futuro, a continuar a sistemática precarização e banalização do Poder Judiciário. VIEIRA, OscarVilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 8.50 Por essa razão, vê Bryde proximidade entre limites materiais de revisão e cláusulas pétreas. “Se o constituinteconsiderou determinados elementos de sua obra tão fundamentais que os gravou com cláusulas de imutabilidade,é legítimo supor que nelas foram contemplados os princípios fundamentais”. MENDES, Gilmar Ferreira. Oslimites da revisão constitucional. Texto básico de conferência proferida na Associação dos Advogados de SãoPaulo, em 16 de março de 1994.51 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 7.52 LOEWENSTEIN, Karl. Brazil under Vargas. New York, Russel & Russel, 1973. Apud VIEIRA, OscarVilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 24.53 Preâmbulo, art. 2º e art. 60, § 4º, Constituição Federal de 1988.54 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 25.55 Isto, a contar do julgamento das ADINs 926-5 e 939-7.56 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 117.57 “As cláusulas pétreas representam, na realidade, categorias normativas subordinantes que, achando-se pré-excluídas, por decisão da Assembléia Nacional Constituinte, evidenciam-se como temas insuscetíveis demodificação pela via do poder constituinte derivado”. Excerto de voto do eminente Ministro Celso de Mello, noSupremo Tribunal Federal, apud VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo:Malheiros, 1999, p. 164.

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diminuir não só as garantias individuais, como até mesmo e principalmente as garantiasasseguradas pelo poder constituinte originário aos membros de um dos Poderes daRepública”58.

Pode-se afirmar, sem um mínimo de desvio interpretativo, que as garantias daMagistratura59 inscrevem-se dentre as cláusulas imutáveis, pois sem elas não haverá efetivaindependência de julgar e, assim, não há como falar em separação dos poderes, elementoindissociável do núcleo básico da Constituição60. Logo, há expressa vedação constitucional emrelação à modificação das prerrogativas da Magistratura, porque se estaria aí ferindofrontalmente o disposto no art. 60, § 4º, inciso III, da Carta da República.

Impende sublinhar, com a necessária intensidade, que “no regime democrático, até opovo soberano sofre limites no exercício de seus poderes. Se o povo ou, a fortiori, os seusrepresentantes pudessem alterar uma norma constitucional ao seu alvedrio, o Estado de Direitoseria mera ficção”61.

A segunda proposição, da imutabilidade/mutabilidade do estatuto da Magistratura arespeito dos proventos de aposentadoria, objeto principal deste estudo, merece detidaatenção62.

De início, é importante recordar a singularidade da questão remuneratória daMagistratura, colhendo-se o ensinamento lapidar do saudoso Ministro Luís Gallotti:

“As majorações dos vencimentos da Magistratura deveriam serautomáticas, independentemente da interferência dos outros poderes,previstas, expressamente, na Constituição e sujeitas, tão-só, aoimplemento de determinadas condições, tais como alteração do salário-mínimo, majoração dos vencimentos paradigmas da cúpula dos outrospoderes ou aumento do custo de vida, tudo de modo a afastar a duvidosaconstitucionalidade das aludidas interferências, inclusive a deselegância ea gratuita hostilidade dos que, bem fornecidos de vantagens e regalias,

58 HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. 1995, p. 95, apud MAZZILLI, Hugo Nigro. Areforma constitucional e as garantias da magistratura. http://www.amperj.org.br.59 As garantias da Magistratura inscrevem-se, inapelavelmente, dentre os elementos essenciais da Constituição.Assim, a alteração desses elementos configuraria não uma simples revisão, “mas verdadeiramente a sua própriasupressão”. Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Os limites da revisão constitucional. Texto básico de conferênciaproferida na Associação dos Advogados de São Paulo, em 16 de março de 1994.60 “(...) As cláusulas superconstitucionais voltam-se à proteção das instituições básicas da Constituição, entre asquais seus princípios substantivos e procedimentais de justiça.” VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e suareserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 140.61 COMPARATO, Fábio Konder. Réquiem para uma Constituição. E ainda: “Imaginar que não o povo, ou seusrepresentantes especiais, eleitos para o exercício dessa tarefa exclusiva, mas sim os próprios governantes possamdotar o país de uma Constituição, ou reformar a que está em vigor, é um despautério lógico e político.”62 “Se partirmos da idéia, já assente, de que o constituinte de 1988 não pretendeu instituir dois sistemas paralelosde reforma da Constituição, limitando-se a estabelecer um processo especial de revisão, que deveria ser realizadosegundo regras próprias, em período especificamente definido, resta inequívoco que qualquer tentativa de tornarpermanente esse processo revelar-se-ia incompatível com a Constituição.” MENDES, Gilmar Ferreira. Os limitesda revisão constitucional. Texto básico de conferência proferida na Associação dos Advogados de São Paulo,em 16 de março de 1994.

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lançam labéu sobre lídimas interpretações judiciárias, de auto-atribuiçãode pingues vantagens, as quais não se alceiam e não se equiparam ao queobtêm ou podem obter os catões bem servidos, isentos, aos demais, dasobrecarga avassalante de serviço e de responsabilidade, cometidos àMagistratura” (Trecho transcrito pelo eminente Ministro Luís Gallotti, no“relatório” sobe o Recurso Extraordinário nº 42 950, na R.D.A. 59, pág.190; no D.J. de 22-2-60)”63.

Vale lembrar que os Juízes são agentes políticos, membros de Poder, como o são oPresidente da República, o Governador, os Senadores e os Deputados.

O problema que se coloca, objetivamente, é o de saber até que ponto a modificação dosproventos da inatividade da Magistratura compromete sua independência e põe em risco, aofim e ao cabo, o princípio máximo, intangível.

Duas opções apresentam-se neste ponto. Pode-se, por um lado, “engessar” o TextoMaior, aumentando demasiadamente o raio de abrangência das regras tocadas pelaimutabilidade. Por outro, “se se incorrer na tentação de uma interpretação restritiva, abre-se apossibilidade de flexibilizar ainda mais o processo de reforma, deixando os valoresfundamentais da Constituição totalmente vulneráveis”64.

Pelo que representa para a nação65, o princípio da separação dos poderes (e aindependência dos juízes) não se pode ver mitigado, mesmo que tangencialmente, através deexpedientes menores, que coloquem em risco, por exemplo, o recrutamento dos maisdestacados talentos jurídicos para as fileiras da Magistratura, desestimulando-os com a certezade uma vida repleta de privações pessoais e familiares, sem qualquer perspectiva de dignidadequando da aposentação.

De nossa parte, não temos dúvidas: os proventos de inatividade dos juízes devem sertratados de modo a evitar o sacrifício de sua independência e, pois, da separação dos Poderes eda justiça, valor supremo do Estado brasileiro, consoante se infere do preâmbulo daConstituição Federal.

Ao definirmos o nível de independência e qualificação de nossos Magistradosestaremos, simultaneamente, explicitando a nós mesmos e ao mundo o país que desejamosrecriar e a dimensão ética que pretendemos deixar às gerações que irão nos suceder. Estasopções passam, necessariamente, pelo grau de sinceridade que move os que decidem e pelosenso de responsabilidade social que os orienta.

Assim, trivializar a Magistratura a pretexto de satisfazer o “desejo popular” deigualização ou com o objetivo de equacionar momentaneamente as contas do tesouro temsentido apenas para o cenário político do dia ou, ainda, para sinalização aos mercados e 63 In OLIVEIRA, Abreu de. Aposentadoria no serviço público. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971, p. 348.64 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 137.65 Os direitos e garantias essenciais à liberdade humana encontram-se acima da possibilidade de emenda,destacando-se, dentre todas as vedações, em nossa percepção, a respeitante à separação dos poderes. VideVIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 164.

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instituições financeiras. A conseqüência da mediocrização do Poder Judiciário tende a ser, nolimite, a fragilização da cidadania brasileira, na medida em que se esboroa um dos princípiosnucleares e estruturantes da organização política nacional.

O encaminhamento da reforma previdenciária por esta senda, arriscamos dizer,encontra-se verdadeiramente distante do necessário para a construção de um país decente,democrático e plural.

Mesmo inexistindo correspondência entre o princípio da irredutibilidade devencimentos e a questão envolvendo a integralidade dos proventos na inatividade, pelo fato deaquela dizer respeito à garantia do exercício do cargo, temos como imutável (limite material)esta última cláusula constitucional.

E o argumento apresentado (intangibilidade referente à integralidade dos proventos deaposentadoria da Magistratura) não se sustenta apenas no princípio do direito adquirido66, istoé, para os que já se encontram judicando. Se se está colocando em pauta o que de mais valiosohá para o Estado Democrático de Direito Brasileiro, suas razões transcendem, à obviedade, oaspecto temporal.

Está-se cuidando daquilo que a doutrina denomina de cláusulas superconstitucionais,quer dizer, daquele “conjunto de princípios fundamentais que – reconhecidos explícita ouimplicitamente pela Constituição – se encontram em posição hierarquicamente superior emrelação aos demais preceitos da Constituição; esta hierarquia constitucional, contestada pelamaioria da doutrina, pode ser comprovada sob a perspectiva mais comum aos positivistas, quese refere à impossibilidade de se reformar as chamadas cláusulas pétreas pelos procedimentosde reforma ordinária da Constituição, e da possibilidade de se controlar a constitucionalidadede emendas à constituição em face destas cláusulas”.67

Tal plexo de garantias, desta forma, apresenta-se inderrogável, e qualquer tentativa,mesmo que oblíqua, de precarizar o Poder Judiciário leva a marca da inconstitucionalidade.

Poder-se-ia argumentar, ao revés, que a imutabilidade não alcança a situação aquiprevista, pois a Carta da República veda somente a proposta de emenda “tendente a abolir”, nocaso, a separação dos poderes.

Numa palavra, para esta vertente, a modificação dos critérios para obtenção daaposentadoria pelos membros da Magistratura não teria o condão de pôr em risco aquele

66 Art. 5º, inc. XXXVI, Constituição Federal de 1988. A título ilustrativo, destaca-se precioso comentário deEduardo Espínola, realizado em 1924: “Aos juízes assegura a Constituição a vitaliciedade, a inamovibilidade e airreductibilidade dos vencimentos. Declara ainda emphaticamente que os cargos inamovíveis – são garantidos emtoda sua plenitude. Quer isto dizer que os direitos e vantagens, em cujo exercício entram immediatamente poreffeito da acceitação de sua nomeação, em hypothese nenhuma podem soffrer modificações; assim também osdireitos futuros, subordinados às condições preestabelecidas pelas leis vigentes a esse tempo, não toleramqualquer alteração, escapando, portanto, à efficiência das leis posteriores”. Questões jurídicas e pareceres. SãoPaulo: Monteiro Lobato, 1925, p. 433.67 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 168.

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princípio intangível, havendo espaço para “alterações toleráveis até imediatamente antes doponto em que se caracteriza a tendência à extinção”68 [do princípio da separação dos Poderes].

Esta possibilidade interpretativa, no entanto, em nosso sentir, restou repelida pela CorteSuprema quando do julgamento das ADINs69 que questionavam a emenda constitucionalinstituidora do IPMF – Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras. Naquelaoportunidade, manifestou-se o Supremo Tribunal Federal pela inconstitucionalidade da novelemenda, utilizando argumentação coincidente com a aqui esposada. A questão levantada diziarespeito a dois aspectos: a) incidência do novo imposto também sobre a movimentaçãofinanceira dos Municípios e Estados e b) cobrança do imposto no mesmo exercício financeiroem que instituído.

Para declarar a inconstitucionalidade da emenda com fulcro no item “a” (figuração dosMunicípios e Estados como sujeito passivo do imposto), o Supremo Tribunal Federal utilizou-se do entendimento seguinte: “sendo a imunidade recíproca elemento essencial dofederalismo, e sendo a Federação uma cláusula pétrea – por força do art. 60, § 4º, I, daConstituição –, não há outra alternativa ao Tribunal senão declarar a emendainconstitucional”70.

Doutra feita, disse a Corte Maior, além de ferir o pacto federativo, a emenda emdestaque violou os direitos e garantias individuais (item “b”, acima), pois “sendo o princípioda anterioridade uma garantia constitucional do contribuinte, deveria receber a proteçãoespecial dispensada pelo art. 60, § 4º, IV, da Carta Política. (...) Mesmo não se encontrando nocapítulo que consagra os direitos individuais, o princípio da anterioridade, sem qualquerdúvida, consistia em um direito individual, coberto pela garantia de intangibilidade”71.

No caso em comento, entendeu o Supremo Tribunal Federal que “uma interpretaçãotão ampla do que deveria ser compreendido como direitos individuais, para efeito de limitar opoder de emenda”72, não impediria eventuais reformas à Carta Política.

Como se percebe, nosso excelso sodalício empregou a expressão “tendente a abolir”,constante do art. 60, § 4º, da Constituição, como sinônimo de “afetar”, emprestando-lhe umcaráter “extremamente sensível”. “Na cobrança do IPMF dos Estados, o Supremo decidiu, deforma unânime, que a emenda era inconstitucional, pois ofendia e ameaçava o pactofederativo. (...) Para o Ministro Carlos Velloso a suspensão do princípio da imunidaderecíproca ofende o pacto federativo, enfraquecendo-o” 73. Portanto, tende a aboli-lo.

68 Manifestação do “Advogado do governo” na Adin 926-5, cf. VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e suareserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 165.69 ADINs 926-5 e 939-7.70 Idem, p. 164.71 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 165.72 “Como afirma Carlos Velloso, ‘o argumento não deve impressionar’ ”. (...) “As reformas constitucionaisprecipitadas, ao sabor das conveniências políticas, não levam a nada, geram insegurança jurídica, e a insegurançajurídica traz a infelicidade para o povo” . VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. SãoPaulo: Malheiros, 1999, p. 167.73 Idem, p. 182.

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Destarte, o Supremo Tribunal, no julgamento do IPMF, “demarcou sua posição deintransigência com qualquer violação dos princípios e direitos protegidos como cláusulassuperconstitucionais.” (...) “Para o STF, o fato de o princípio da anterioridade ser rotulado pelaConstituição como uma ‘garantia’ fez possível sua proteção como cláusulasuperconstitucional”74.

Na mesma esteira, a Constituição Federal fornece especial proteção ao princípio daseparação dos poderes, “elemento essencial para a realização do constitucionalismodemocrático. (...) Mais do que um mecanismo organizador das diversas tarefas a seremrealizadas dentro do Estado, a separação dos Poderes constitui princípio ético, na medida emque estrutura a própria idéia de Estado de Direito. É por intermédio da separação dos Poderesque se reconhece a exigência de lei genérica, universal e abstrata, aprovada democraticamentepela representação popular, como único mecanismo capaz de vincular as condutas dosindivíduos. Também é a idéia de separação dos Poderes que coloca limites à ação doExecutivo, que se transformou, com o constitucionalismo moderno, num poder sub legem. Porfim, a independência do Poder Judiciário, enquanto poder neutro, responsável pela resoluçãode conflitos a partir da legislação e da própria Constituição, é o ponto essencial não apenas naconstrução do Estado de Direito, como da própria democracia. Trata-se de garantiafundamental do cidadão contra as iniciativas individuais e públicas de interferência em suaesfera de dignidade”75.

Em conclusão, para os efeitos do art. 60, § 4º, da Constituição Federal, a expressão“tendente a abolir”76 possui caráter extremamente sensível, e qualquer proposta que “ofenda”,“enfraqueça”, “mitigue”, “atenue”, “reduza o significado”77 ou “ameace” a separação dosPoderes ou a aplicação da justiça e, pois, os direitos e garantias individuais, mesmo quetangencial ou obliquamente, sequer poderá ser objeto de deliberação, sob pena de se “deflagrarum processo de erosão da própria Constituição”78.

Assim sendo, tendo em conta a realidade histórica constitucional brasileira, a garantia àintegralidade dos proventos de aposentadoria dos Magistrados inclui-se dentre as regrastocadas, cobertas pela imutabilidade.

4. Crise fiscal e Estado-Providência

Num contexto de redefinição do papel do Estado na economia, a partir do fim daGuerra Fria e do ressurgimento do ideal da Europa unificada, surgem pressões as maisdiversas com vistas a disciplinar as atividades do poder público, evitando o desperdício de

74 Idem, p. 182.75 Idem, p. 244.76 “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...) § 4º Não será objeto de deliberação aproposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal eperiódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais.”77 MENDES, Gilmar Ferreira. Os limites da revisão constitucional. Texto básico de conferência proferida naAssociação dos Advogados de São Paulo em 16 de março de 1994.78 Idem

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receitas, reduzindo e limitando despesas, induzindo, enfim, ações de governo a setransformarem, a pouco e pouco, em ações de Estado.

Desta forma, diante do agigantamento do Estado e, mais, com o estrangulamento daatividade produtiva - capitaneado pela “questão tributária” -, resolveu-se desmantelar o“Estado providência”, agora identificado com o “Estado ineficiência”.

Buchanan79, de maneira curiosa e bem-posta, atribui o aumento das despesas públicas àindisfarçável disputa que ocorre entre o “processo político” e o “processo de mercado”. Ora,sustenta o autor, uma vez que o mercado distribui renda de forma desigual e o processopolítico distribui votos indistintamente, este último tende a valorizar, no momento da decisão,aquelas questões capazes de atrair a maior quantidade de votos. Portanto, a racionalidadeeconômica (bem-estar coletivo, planejamento de longo prazo) cede passo à oportunidadeinstantânea de captação de votos (populismo), cujos efeitos são de todos conhecidos80.

Como se sabe, a teoria econômica não é consensual quanto aos efeitosmacroeconômicos de medidas que contenham a amplitude aqui ponderada, isto é, inexisteunanimidade sobre a real necessidade de implementação de medidas restritivas à atividadeestatal na economia e seus reflexos concretos no bem-estar da população.

Por este motivo, resumiremos adiante as principais correntes do moderno pensamentoeconômico acerca do controvertido tema.

Uma primeira perspectiva considera que, no curto prazo, reduções no déficit provocamuma quebra na procura total, apenas parcialmente compensada por aumentos da procuraprivada e da procura externa, induzidos por uma descida da taxa de juros ou da taxa decâmbio. Neste sentido, o nível de crescimento tendencial da economia seria invariável àdimensão do setor público, pelo que reduções no déficit seriam desnecessárias. Numa palavra,para tais autores, este novo “sacrifício” (via ajuste fiscal) suportado pela sociedade seria inútil,ao menos para o atingimento dos objetivos declarados (estabilidade econômica e posteriorcrescimento sustentado).

Uma visão alternativa coloca maior ênfase no impacto dos níveis das receitas edespesas públicas sobre a oferta agregada e o crescimento de longo prazo. Se a consolidaçãoorçamental levar a uma diminuição do peso do Estado no Produto Interno Bruto – PIB -, auma redução dos impostos e a um aumento do investimento privado produtivo, então oimpacto sobre o crescimento de longo prazo deverá ser positivo. Se, inversamente, aconsolidação tiver por base um aumento dos impostos, uma redução do investimento públicoem infra-estruturas e uma manutenção do peso das despesas correntes, então tais medidaspoderão, de fato, prejudicar o crescimento no curto e longo prazo.

Por fim, há quem sustente, ainda, que uma política que seja encarada comocontracionista num modelo convencional pode ter um impacto expansionista no curto prazo,

79 GIACOMONI, James. Ob. cit., p. 33.80 ENZWEILER, Romano José. O princípio da autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário ea lei de responsabilidade fiscal. Brasília: AMB, 2002.

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se introduzir mudanças fortes quanto a futuras alterações de política. Se a consolidação forbaseada em restrições nas despesas, pode dar origem a uma redução significativa na taxa dejuros de longo prazo (através da redução do risco de solvência que, no nosso caso, vem sendoanunciado pela mídia de risco-Brasil) e a um aumento do consumo corrente e do investimento(induzido também por expectativas de impostos mais baixos no futuro). Desta forma, aoconter despesas do setor público, estar-se-ia diminuindo o “preço” do dinheiro a ser investidona atividade privada, o que faria aumentar a produção com subseqüente queda de preços,controle da inflação e, finalmente, diminuição da pressão tributária, especialmente sobre osetor produtivo. Em decorrência, se a política orçamental afeta a taxa de poupança daeconomia, então a dívida pública torna-se uma variável relevante da equação. Logo, o“sacrifício” é de todo benéfico.

Assim sendo, entende este último grupo que controlar os níveis de endividamentopúblico e o serviço desta dívida no longo prazo constitui-se num dos objetivos (se não oprincipal) da política orçamental responsável.

A respeito dos contornos da “síndrome da crise fiscal” brasileira, pelo que se colhe daensinança de Guido Mantega, o próprio BIRD demonstra, em relatório confidencial entregueao governo em julho de 1996, que “o câmbio e a taxa de juros anularam em boa parte osganhos obtidos com a queda da inflação e com o aumento da produtividade”81. E o Prof.Aloizio Mercadante identifica nesta mesma política econômica, fruto da armadilhacâmbio/juros, o desajuste estrutural no saldo comercial82.

Concomitantemente a esta “desarmonia macroeconômica”, sustentada basicamentepara manter a estabilidade da moeda à custa das privatizações e da elevada taxa de juros,passando pelas reformas constitucionais de “flexibilização” dos direitos sociais83, conserva o 81 MANTEGA, Guido. in Custo Brasil mitos e realidade. LULA DA SILVA, Luís Inácio (Coord.). 2 ed.Petrópolis: Vozes, 1997.82 Custo Brasil mitos e realidade. LULA DA SILVA, Luís Inácio (Coord.). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 37.Para os fins do presente estudo (análise da estrutura do déficit público), pouco importa que, ao contrário daArgentina, tenhamos conseguido escapar – quase que tardiamente - da “armadilha do câmbio”.83 Parece-nos equivocado afirmar que o mundo perdeu a crença no Estado-do-bem-estar, a partir da crise fiscalvivida no ocidente, e se tenha comprometido, medularmente, com o mercado. Para desmentir o desmontepúblico, basta observar as políticas sociais adotadas em países como a Itália, governada pelo conservadorBerlusconi, que acaba de lançar o programa intitulado “livro branco do welfare”. É do Ministro Roberto Maroni asentença: l’approcio giusto al problema è sociale e non “finanziario” o “tremontiano” (Corriere della Sera, 5de fevereiro de 2003, p. 14). O programa destina-se a redobrar os investimentos em despesas sociais utilizandoinstrumentos conhecidos de política fiscal (incentivos), não deixando de atender às demandas previdenciárias.Em contrapartida, países sul-americanos experimentam “a burocracia estatal, irracional, ineficiente e desequipadapara lidar com políticas mais complexas. Torna-se, desse modo, mais exposta aos grupos interessados em pilhar oEstado e fazer de seus diversos ‘anéis burocráticos’ balcões privilegiados de negociatas, corrupção e assalto aoscofres públicos. Evidentemente, as políticas públicas acabam privilegiando facções da sociedade, afrouxando arelativa autonomia do aparato estatal e privatizando, do modo cada vez mais seletivo, os resultados dosinvestimentos do Estado”. CAMPILONGO, Celso Fernandes, ob. cit., p. 58. “A suposta capacidade do mercadodecidir no lugar dos mecanismos de escolha coletiva é outra ambiciosa falácia.” CAMPILONGO, ob. cit., p.74.John Kenneth Galbraith acentua: “A exclusão do poder e do resultante conteúdo político da economia faz comque ela identifique apenas duas falhas importantes e intrínsecas na tendência para o desemprego ou inflação. Osremédios que preconiza a economia aceita são ou ridículos, ou errados ou parcialmente irrelevantes.” Escritos deeconomia. Lisboa: Notícias, 1998, p. 211. Em contrapartida, adverte Galbraith: “Existe um grande prestígioneste exercício de poder que muito contribui para o fazer progredir. Os homens que dirigem a moderna grande

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país o pesado ônus de cumprir as metas estabelecidas com o Fundo Monetário Internacional,devendo-se atingir um superávit primário de 3,75% do Produto Interno Bruto84, a fim deconferir credibilidade e acesso a novos aportes internacionais, desde que honrado o pagamentodo serviço da dívida externa e garantida a mobilidade dos capitais financeiros. “A apostaimplícita é que a tranqüilidade traria de volta os fluxos privados. A conseqüência, entretanto,dos acordos, é uma explosão contínua da dívida pública interna”85.

Afinal, a quem interessa a “crise fiscal” e o desarranjo das contas nacionais? Aosespeculadores, àqueles que “se alimentam basicamente do crescimento do déficit público,tanto americano quanto das economias periféricas. (...) Em muitos casos, com o governoassumindo passivos cambiais do setor privado. Reside nesse déficit público a fonte de grandeparte dos lucros desses bancos de negócios que passam a administrar esses recursosglobalizados”86.

Para os modestos objetivos deste breve ensaio e averiguação da origem do desajusteorçamentário, um outro aspecto merece destaque também especial: a distribuição da cargatributária.

Assim, por exemplo, em se tratando de Imposto De Renda Pessoa Física (IRPF), 70%de sua incidência se dá, de acordo com o ex-Secretário da Receita Federal, Osires Lopes Filho,“sobre o trabalho assalariado, 20% sobre trabalho não assalariado e apenas 10% sobre outrosrendimentos, inclusive de capital. Então, o Imposto de Renda pessoa física é, essencialmente,um tributo da classe média”87.

O aspecto desonroso do IRPF reside na participação “solidária” da classe rica noconjunto arrecadado. Foram investigadas as maiores empresas brasileiras, seus dirigentes econtroladores, representando 36.000 pessoas. Verificou-se que três pessoas cujo patrimônioindividual equivale a 92 milhões de dólares norte-americanos declararam-se isentas doimposto, e uma quarta pagou 300 dólares. “Então, o Brasil tem essa característica. A classerica, que é quem melhor aproveita a vida no país, tem mais bem-estar, é pouco solidária nasustentação do Estado, que lhe garante a propriedade privada, a manutenção dessa propriedadee a prosperidade. (...) E o capital é baixissimamente taxado pela carga tributária”88.

empresa e os seus vários serviços de finanças, de caráter legal, legislativo, técnico, publicitário e ainda outrosserviços sagrados da atividade da grande empresa são os membros mais respeitados, prósperos e prestigiados dacomunidade nacional. Eles são o regime. Os seus interesses tendem a tornar-se o interesse público.”GALBRAITH, John Kenneth. Ob. cit, p. 217.84 A meta foi reavaliada, e o governo federal agora acena para o mercado com um superávit de 4,25% do PIB, deacordo com o noticiado no jornal Diário Catarinense de 8 de fevereiro de 2003, p. 13.85 LESBAUPIN, Ivo. MINEIRO, Adhemar. O desmonte da nação em dados. Petrópolis: Vozes, 2002, p.16.86 NASSIF, Luís. In Custo Brasil mitos e realidade. LULA DA SILVA, Luís Inácio (Coord.). 2 ed. Petrópolis:Vozes, 1997, p. 84.87 LOPES FILHO, Osires. In Custo Brasil mitos e realidade. LULA DA SILVA, Luís Inácio (Coord.). 2 ed.Petrópolis: Vozes, 1997, p. 6888 Idem, p. 69.

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Agravando ainda mais o quadro dos desajustes, no que diz respeito às privatizações(v.g., dos setores elétrico89 e de telecomunicações), novos problemas avizinham-se para ofragilizado balanço de transações correntes, uma vez que foram “internacionalizadosimportantes e lucrativos setores que geravam receitas dentro do país (e, portanto, em moedanacional), mas que devem remeter lucros aos seus acionistas majoritários que estão no exterior(e, portanto, deverão fazer essas remessas em dólar)”90.

Assim, a dívida líquida total do setor público, que no ano de 1994 era de R$ 153bilhões, no ano de 2001 atingiu R$ 660 bilhões – o que significa um aumento de 331%. Adívida pública federal (dívida mobiliária interna), que era de R$ 61,8 bilhões, passou, nomesmo período, a ser de R$ 624 bilhões – aumento de 910%91.

Releva destacar, ainda, que no período apurado as despesas de pessoal da Uniãogiraram em torno de R$ 50 bilhões entre 1995 e 2000, chegando a R$ 65 bilhões em 2001. Poroutro lado, as despesas com amortização da dívida acrescem dos R$ 120 bilhões para R$ 274bilhões (descontadas as despesas com juros).

O gasto com juros da dívida, dos 25% em 1995, saltou para 55% em 2000 (percentualsobre as receitas correntes líquidas)92.

Diante da majestade irretorquível dos números, verifica-se que o Estado brasileiro,diferentemente do que vem sendo amplamente divulgado, não mergulhou na crise fiscal porconta do déficit originado a partir de direitos e prerrogativas concedidos aos seus servidores.Ao contrário! Se se buscar com seriedade e isenção a causa da asfixia orçamentária, asrespostas deverão ser encontradas na política cambial, na política de juros, no desajusteestrutural do saldo comercial, junto aos especuladores do déficit público, na injusta estruturado imposto de renda pessoa física, que se transformou em imposto sobre salários e não atingeaqueles que mais usufruem do Estado, nas privatizações patrocinadas com dinheiro doBNDES e na remessa de divisas dessas mesmas empresas privatizadas às matrizes sediadas noexterior.

5. A reforma da previdência social brasileira

5.1. Nota introdutória

A discussão travada a respeito da reforma da previdência traz, como traço marcante, adesinformação. Diante da inexistência de uma base de dados confiável para se verificar a realsituação atuarial da seguridade social e, por outra, da ausência de um mínimo de rigorconceitual acerca do tema, vão se formando opiniões vazias de qualidade, dominadas por 89 “Governo prepara pacote para setor de energia”, incluindo renegociação da dívida, com financiamento doBNDES e aumento de tarifas. O Estado de S. Paulo. 13 de fevereiro de 2003, Caderno Economia, p. b1. “AESconfirma que não pagou o BNDES”, cujo valor atinge US$330 milhões. Folha de S. Paulo. 4 de março de 2003,Dinheiro, p. b3.90 LESBAUPIN, Ivo. MINEIRO, Adhemar. O desmonte da nação em dados. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 15.91 Idem, p. 17.92 LESBAUPIN, Ivo. MINEIRO, Adhemar. O desmonte da nação em dados. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 50.

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interesses corporativos, políticos ou econômicos, manifestadas sem qualquer compromissocom a verdade.

Nesta perspectiva, enfoques parciais podem levar a escolhas equivocadas a respeito dasprioridades, no que tange a uma das mais caras garantias prestadas pelo Estado aos seuscidadãos: a previdência social.

Impende anotar que a seguridade pública, por se constituir no principal alicerce de umprojeto civilizatório que afirma as pessoas humanas93, possui dimensão não apenas fiscal mastambém social, devendo ambas andar juntas. E mais, não faz qualquer sentido discutirisoladamente a reforma da previdência havendo oportunidade, por exemplo, para o amplodebate da reforma tributária, pois elas estão umbilicalmente ligadas94.

5.2. Composição do orçamento da seguridade social e os regimes existentes

Cumpre destacar, desde logo, que de conformidade com o estabelecido na atual CartaPolítica, a União deve elaborar três orçamentos anuais: de investimentos, fiscal e daseguridade social95.

A seguridade social, de seu lado, compreende um conjunto integrado de ações deiniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos àsaúde, à previdência e à assistência social96. Deve ela ser financiada, segundo estipula o artigo195 da Constituição Federal, por toda a sociedade, de forma direta e indireta, medianterecursos orçamentários e, ainda, das seguintes contribuições: I – do empregador, da empresaou entidade equiparada, incidente sobre folha de salários, receita ou faturamento e lucro; II –do trabalhador e dos demais segurados da previdência; III – sobre a receita dos concursos deprognósticos (loterias).

Como já se noticiou, é sob o argumento de agudo déficit da previdência que sepretende modificar a equação das receitas apresentadas. Mas, segundo se percebe, a reforma sedará apenas e tão-somente no que pertine aos servidores públicos civis (lato sensu), os quaiscompõem o que se denomina “regime próprio”, permanecendo o atual sistema para osintegrantes do “regime geral” (INSS), para os militares e parlamentares. Há, finalmente, aprevidência complementar, a qual, pela importância adquirida, será objeto de estudoespecífico.

93 BENJAMIN, César. Reforma ou contra-reforma? Caros Amigos, fev./2003.94 BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. APPY, Bernard. Observações sobre os projetos de lei que instituemregime de previdência complementar para os servidores públicos. Parecer elaborado para a Associação dosMagistrados Brasileiros, nov./2000.95 Art. 165, §5º, Constituição Federal.96 Art. 194, Constituição Federal.

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5.3. O orçamento da seguridade social é deficitário ou superavitário?

Em razão de uma impressionante e eficaz campanha publicitária, acreditam muitos queo orçamento da seguridade social é deficitário. Nada mais falso!

No ano de 1997, v.g., o balanço da seguridade social apresentou saldo positivo de R$6,928 bilhões, “desmontando os argumentos dos defensores da reforma quando afirmam queas novas medidas visam cobrir o ‘rombo’ da Previdência”97.

Idêntica situação foi constatada nos anos seguintes, destacando-se o de 2001, comsaldo positivo de R$ 31,464 bilhões, e o ano de 2002, no qual o superávit foi de R$ 36,308bilhões98. Estes valores, obviamente, não foram reinvestidos no sistema de seguridade, masutilizados para compor o orçamento fiscal e, assim, promover superávit primário parapagamento do serviço da dívida.

De que forma, então, chega-se ao déficit anunciado, de cerca de R$ 17 bilhões?

Num primeiro momento, confundindo-se conceitualmente, por exemplo, benefícios denatureza eminentemente assistencial com benefícios previdenciários. Tal expediente faz“engordar” a conta de despesas da previdência, sem que haja correspondente receita. Após, aoinvés de utilizar valores agregados, isto é, o total de receitas e o total de despesas, usa-se dareceita previdenciária líquida, quer dizer, aquela decorrente apenas da folha de pagamento.Mascara-se, assim, a receita 99.

Dessa maneira, são mantidas as despesas (benefícios previdenciários urbanos e rurais,e a renda mensal vitalícia), mas diminuídas as receitas, deixando-se de considerar aquelasprovenientes das outras fontes de custeio (contribuições sociais como, por exemplo, Cofins,CPMF e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL).

Por outro lado, sem colocar em pauta a utilidade social da transferência de receita daárea urbana para a área rural, ou ainda, o programa de renda mínima que aí se constitui, o fatoé que a tecnocracia oficial considera de natureza puramente previdenciária os benefícios pagosaos 7 milhões de trabalhadores rurais, cujo déficit é gigantesco, somando R$15 bilhões/ano,pois a imensa maioria nunca contribuiu para a previdência. Numa palavra, a necessidade definanciamento dos trabalhadores rurais é de 87%.

97 PIMENTEL, José. Reforma da previdência. O que muda para o trabalhador e para o servidor. Cartilhaelaborada pela assessoria técnica do PT na Câmara dos Deputados e pelo gabinete parlamentar do Deputado JoséPimentel – PT/CE.98 Dados da ANFIP – Associação Nacional dos Fiscais da Previdência, gentilmente cedidos pelo Dr. FlorianoJosé Martins.99 Na Itália, de igual forma, existe enorme confusão conceitual entre o que vem a ser despesa assistencial e o quedeve ser contabilizado no orçamento da previdência. Mesmo assim, as despesas sociais do Estado italianochegam a 25,4% do PIB, conforme dados do subsecretário do Trabalho, Alberto Brambilla. A despesaprevidenciária na Itália atinge os 17% do PIB, segundo dados do Tesouro fornecidos a todos os organismosinternacionais. Cf. Corriere della sera, 19 de fevereiro de 2003, Caderno de Economia, p. 17.

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Engrossam a fila das incorreções os valores pagos a título de renda mensal vitalícia –RMV100 –, que somaram, no ano de 2002, R$1,6 bilhão. Sublinhe-se que, também aqui, nuncahouve receita correspondente.

Estes valores (rurais e RMV, totalizando R$16,6 bilhões), de cariz visivelmenteassistencial, são equivocadamente contabilizados à conta da previdência. Daí a explicaçãopara o déficit.

Não é de ser ignorada tal incorreção, considerando-se que os benefícios assistenciais erurais (rural, LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social e RMV), representaram, em 2001,24% do total pago em benefícios no país.

Aliados a estes elementos que impactam as contas da previdência, temos ainda odesemprego e a informalidade no setor privado, havendo 40,7 milhões de trabalhadores ematividade que não contribuem para a previdência, o que representa 58% da população ativaocupada.

Este diagnóstico isento é comprovado pelo atual governo, que esclarece: “Muito dadeterioração das contas da previdência não se fundamenta em aspectos atuariais, mas sim emmecanismos de relevante impacto social como: (i) políticas de subsídios a atividadesbeneficentes de assistência social, a micro e pequenas empresas, a trabalhadores domésticos edo campo, a empresas rurais e até atividades desportivas; (ii) uma política de distribuição derenda por meio de aumentos reais conferidos ao salário mínimo e (iii) uma política detransferência de renda da área urbana para a rural”101.

5.4. A previdência dos servidores públicos

Desde sempre foram reconhecidas as peculiaridades ínsitas àqueles que exercemcargos públicos, inclusive no que se refere ao pensionamento. Em Santa Catarina, porexemplo, “a origem da Seguridade Social remonta a 1925, quando o governador GustavoRichard criou o Montepio do Servidor Público, antecessor do Instituto de Previdência de SantaCatarina – IPESC –, para que ‘o tão maltratado servidor público pudesse viver seus últimosdias e morrer com dignidade’ ”102.

Felizmente, ao longo do século XX, as conquistas sociais incorporaram-se também aoplexo de direitos dos trabalhadores públicos brasileiros, permanecendo, todavia, um sem-número de restrições e encargos específicos, agravados a partir da emenda constitucionalnº20/98, “tais como idade mínima, tempo de serviço público e de cargo”, e ainda

100 Criada pela Lei nº 6.179/74, destinada aos maiores de 70 anos de idade ou inválidos que não exercematividade remunerada e que não possuem meios para se manter, preenchidos certos requisitos. O valorcorresponde a um salário mínimo/mês. O benefício foi extinto em 1991, mas garantido até hoje o seu pagamentoaos beneficiários.101 O texto A previdência social no Brasil foi distribuído aos Conselheiros do Conselho de DesenvolvimentoEconômico e Social – CDES – em fevereiro de 2003.102 GOULART, Serge. Devolvam nossa previdência. Dossiê histórico da destruição/privatização da previdênciapública e solidária. São Paulo: Conhecer, 2000, p. 21.

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“contribuição sobre o conjunto remuneratório”.103 Agregue-se a isso o fato de os servidorespúblicos não receberem Fundo de Garantia nem, tampouco, a multa de 40% em caso dedemissão, como ocorre na iniciativa privada.

Com efeito, sobre o tema, o eminente Deputado Federal José Pimentel manifestou-se, atempo e modo, explicitando:

“Os servidores públicos federais, estaduais e municipais formam a categoria detrabalhadores que mais prejuízos sofrem com a reforma da previdência. (...) Não édifícil constatar que eles foram escolhidos os principais alvos da ofensivareformista do governo FHC.(...) Enquanto o governo massacra o servidor públicocivil, protege o militar, deixando-o de fora da reforma. O servidor civil contribuicom uma grande parcela (entre 11% e 25% de seu salário) para ter direito aobenefício da aposentadoria, ao passo que o militar contribui apenas para o custeiodas pensões das viúvas e filhas solteiras – sem limite de idade – e com umpercentual que representa um terço do que paga o servidor civil”104.

Ademais, “para todos os governos, um objetivo central é desmoralizar as conquistasdos servidores públicos caluniando-os como ‘privilégios’ ou ‘barbaridades’, num país em quetantos morrem de fome e sem assistência e previdência”. (...) O objetivo das classesdominantes é primeiro barrar o destacamento mais avançado da classe trabalhadora[Magistratura, p.e.]. Depois, fazê-la retroceder até a última trincheira. Depois empurrar todosjuntos para as mãos das empresas privadas de previdência e de assistência médica”105.

Mesmo assim, a tendência é que a novel reforma da previdência tenha como únicoobjetivo modificar os benefícios conquistados pelos servidores públicos, criando teto (esubteto) de benefícios e de contribuição, nos moldes dos percebidos no regime geral. Adiferença, possivelmente, deverá ser buscada no mercado, através de planos de previdênciacomplementar e seguros. Para o “fechamento” das contas, também é muito provável que sepretenda a elevação da alíquota de contribuição, incidente sobre o teto106. Para constar,sublinhe-se que, diferentemente, um trabalhador ou empresário da iniciativa privada possuiteto de benefício, embora igualmente limitado o valor de sua contribuição107.

103 Dados da ANFIP – Associação Nacional dos Fiscais da Previdência, gentilmente cedidos pelo Dr. FlorianoJosé Martins.104 PIMENTEL, José. Reforma da previdência. O que muda para o trabalhador e para o servidor. Cartilhaelaborada pela assessoria técnica do PT na Câmara dos Deputados e pelo gabinete parlamentar do Deputado JoséPimentel – PT/CE.105 GOULART, Serge. Devolvam nossa previdência. Dossiê histórico da destruição/privatização da previdênciapública e solidária. São Paulo: Conhecer, 2000, p. 23.106 Especula-se que a alíquota saltaria dos atuais 11% para 20%, diminuindo a participação (contrapartida) dosgovernos para algo em torno de 1%. Esta equação é regressiva e penalizará, sem dúvidas, os servidores de menorrenda, desde que, como parece, a alíquota do regime complementar seja inferior à do regime próprio. Falou-se, nareunião do dia 25/02/03 realizada pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, numa alíquota para oregime complementar de 7,5%.107 Hoje, o limite de contribuição é de aproximadamente R$172,00, o que corresponde a um benefício de R$1.511,00.

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Portanto, na discussão, está-se desprezando o fato de o servidor público encontrar-sesubmetido a regras diferenciadas, mais restritivas quanto à aquisição do direito àaposentadoria, e regido por outra lógica que não a do mercado de trabalho, que regula ossalários a partir da oferta e procura de mão-de-obra.

O que definitivamente não se deve admitir, isto sim, é tomar-se o segurado daprevidência (seja ele servidor público ou trabalhador da iniciativa privada) como meropoupador, transformando a previdência social num negócio e jogando à sorte os proventos deaposentadoria e a tranqüilidade do segurado na velhice, tudo ao sabor do mercado financeiro,dos bancos e das seguradoras.

Especialmente em relação aos Magistrados, seus proventos de aposentadoria nãopodem ser analisados sob a ótica estritamente fiscal – mesmo que esta lhes seja extremamentefavorável, conforme demonstram cálculos atuariais –, como se “despesa” fosse. Aqui, emrealidade, há um compromisso de horizonte temporal muito longo, garantido pela durabilidaderecíproca dos compromissos, o que determina, logicamente, uma percepção diferenciada deseu estatuto.

Ao contrário, o direito dos Juízes a uma aposentadoria digna constitui remuneração“propter laborem”, que leva em consideração a exclusiva e plena dedicação à funçãojurisdicional e a responsabilidade que esta encerra, tratando-se de investimento de elevadoretorno social, pois aqui se cuida de preservar agente político, membro de Poder do Estado, e,principalmente, de garantir o cumprimento independente de sua elevada missão de julgar,inclusive os atos dos agentes dos demais Poderes108.

5.5. Regime de repartição versus regime de capitalização109

Um dos itens que mais vem sendo explorado no bojo da reforma da previdência é acomparação entre os regimes de repartição e o de capitalização. Trata-se, basicamente, daforma de financiamento das aposentadorias. Assim, enquanto a repartição baseia-se no “pactoentre gerações” e no princípio da solidariedade, o regime de capitalização insere no contexto oconceito de “conta individual”.

Evidentemente, sob a ótica estritamente econômica, a opção entre os regimes dar-se-áde acordo com a rentabilidade esperada pelo segurado, e esta encontra-se ligada a três fatores:1. taxa de juros anual do regime de capitalização (rendimento das obrigações públicas); 2. taxa

108 Idêntico tratamento é dispensado aos Magistrados, por exemplo, na Espanha: “[Lei Orgânica 6/1985 do PoderJudiciário, com as alterações posteriores] Capítulo V – Da Independência Econômica – Artigo 402: 1. O Estadogarante a independência econômica dos Juízes e Magistrados mediante uma retribuição adequada à dignidade dafunção jurisdicional. 2. Também garante um regime de Seguridade Social que proteja os Juízes e Magistrados eseus familiares durante o serviço ativo e na aposentadoria. Artigo 403. O regime de retribuições dos Juízes eMagistrados será regido por lei, atentando para sua exclusiva e plena dedicação à função jurisdicional, à categoriae ao tempo de prestação dos serviços. Se retribuirá, ademais, a responsabilidade do cargo e o posto de trabalho.”109 Texto grandemente inspirado na excelente obra Reforma das Pensões, de Emmanuel Reynaud, do Institut deRecherches Economiques et Sociales, Paris.

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de aumento anual dos salários médios dos segurados; 3. taxa de crescimento anual líquido dogrupo de segurados.

A equação se resolve, por óbvio, através da comparação destes três elementos. Assim,e.g., se a taxa de juros anual empregada para remuneração do capital for superior à soma dasexpectativas de aumento da taxa média de salários e do crescimento líquido do número desegurados, então o regime de capitalização é mais favorável. De uma forma simplista mas nãodesarrazoada, pode-se dizer que a opção pelo regime de capitalização é uma aposta na taxa dejuros (especulação financeira), que se espera seja maior do que a soma da taxa de aumento desalários médios dos segurados e da taxa de crescimento líquido (resultado entre os que aderemao sistema e os que o abandonam) do número de segurados (empregos). Enfim, trata-se deconfiar na remuneração do capital em detrimento da massa de salários e do emprego.

Para o caso inverso, obtêm-se os melhores resultados segundo o método de repartição.Por exemplo, a julgar pela experiência francesa durante os anos de 1950 a 1979, o período foiclaramente mais apropriado para a repartição: a massa salarial aumentou em média 12,4% aoano, enquanto que a taxa de juros anual média (rendimento das obrigações públicas) só chegoua 7,6%.

No longo prazo (o período de um século), a perspectiva mais provável é de que sealternem conjunturas favoráveis respectivamente à capitalização e à repartição. Deste ponto devista, pode-se considerar as duas técnicas de financiamento equivalentes.

Em escala macroeconômica, não existe uma transferência de poder aquisitivo ao longodo tempo, pois sempre se trata de repartir num dado momento a renda nacional entre ativos einativos. Vale dizer, entre trabalhadores ativos e aposentados.

Noutras palavras, seja qual for o método financeiro previsto para atender àsnecessidades de aposentadoria - regime de repartição, regime de capitalização ou rede familiar-, a carga real desta responsabilidade recai a todo momento sobre a populaçãoprofissionalmente ativa. O que muda de um sistema para outro são os mecanismos derepartição e as modalidades de intervenção dos atores sociais no processo de regulamentação.

Dessa maneira, insistimos neste ponto: importa definir de forma conceitualmenteadequada os encargos a serem suportados pelos participantes do regime previdenciário e os denatureza assistencial, que devem vir financiados pelo conjunto inteiro da sociedade, através detributos gerais.

Bem por isso, o método predominante de financiamento das pensões nos países quecompõem a União Européia é o da repartição, o qual, para sua perenidade, dependeexclusivamente da continuidade do fluxo de contribuintes. No mundo inteiro, porém, atendência é que os sistemas previdenciários, em razão da forte pressão dos mercadosfinanceiros, reduzam os compromissos do Estado e refreiem o aumento das deduçõesobrigatórias.

Destarte, um dos debates mais interessantes e, certamente, motivador da atual reformaprevidenciária brasileira refere-se à capacidade de os regimes de capitalização gerarem

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recursos que favoreçam o financiamento da economia. Esta discussão, porém, ao contrário doque se imagina, não chegou a uma resposta categórica. A despeito dos inúmeros trabalhoseconométricos dedicados ao impacto da incidência que os dois modelos de financiamento -repartição e capitalização - exercem sobre a poupança nacional, não se pôde obter resultadosconvincentes.

Com efeito, a incorporação de regimes capitalizados conduz a mecanismos desubstituição e de reorientação da poupança. Contudo, ao aumento líquido da poupança privadaque se consiga gerar corresponderá uma não-poupança pública, uma descapitalização pública,em razão dos incentivos fiscais necessários ao funcionamento destes sistemas. No Brasil,estes incentivos se dão através de deduções do imposto de renda, na ordem de 12% do totalinvestido. Portanto, o impacto sobre a poupança nacional é mais complexo do que poderiaparecer à primeira vista.

Considerada a despesa fiscal, mais que um acréscimo líquido da poupança em nívelnacional, a principal conseqüência da adoção dos regimes de capitalização é a modificação dacomposição desta poupança e a reorientação do perfil de alocação dos recursos. Por outrolado, a necessidade de aumentar a poupança privada, em detrimento do consumo, também éum tema controverso, especialmente durante períodos recessivos.

A qualidade dos recursos gerados pelos regimes de capitalização põe em destaque ocontraste entre dois modelos. O modelo dominante é o dos fundos de pensões e planos deaposentadorias individuais, cuja dinâmica de funcionamento alimenta os mercados de capitaisnacionais e internacionais e contribui em grande medida para a vitalidade dos mercadosfinanceiros.

Há quem contraponha a esta forma de alocação de recursos, por meio dos mercados decapitais, o funcionamento do sistema alemão de reservas contábeis, que permite, pela via doautofinanciamento das empresas, uma alocação direta dos recursos disponíveis.

Quanto ao papel do Estado, muitas vezes a institucionalização de sistemas decapitalização parece ser uma maneira de livrar-se de compromissos. No entanto, a experiênciatem demonstrado que não se trata realmente de um afastamento do Estado, mas antes, deassumir uma outra forma de compromisso.

Na realidade, a intervenção estatal é significativa no funcionamento dos sistemasprivados por exemplo, nos regimes de empresa e nos planos individuais. Ao estabelecer asmedidas regulamentares e fiscais que deverão ser aplicadas a esses planos, o papel do Estado édecisivo na definição de suas características e cobertura. Ademais, é possível que se tenha deconstituir uma rede de segurança, seja explícita, com a garantia de benefícios mínimos no casode falha dos sistemas privados, seja implícita, por meio dos tradicionais mecanismos deassistência.

A lógica dos sistemas de aposentadoria não permite que se forme a idéia de um simplesencadeamento, que permita a transferência automática, ao setor privado, das responsabilidadesassumidas pelo Estado. Naqueles países onde foram desenvolvidas iniciativas privadas tais

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como os regimes de empresa, paralelamente foram instituídas diversas formas deregulamentação centralizadas.

5.6. Quem ganha e quem perde com a reforma da previdência

Aparentemente, numa primeira leitura, nem os servidores nem as contas públicasganham com a anunciada reforma da previdência. Aqueles, ao que tudo indica, além dasrestrições específicas inseridas pela emenda constitucional nº 20/98, terão a alíquota de suacontribuição sensivelmente aumentada, com a criação de teto de benefício idêntico ao doregime geral. A proposta prevê, ainda, contribuições fora do sistema público de SeguridadeSocial (por certo no mercado financeiro e possivelmente adotando-se o regime decapitalização).

Pelo lado das contas públicas, também não se vislumbra qualquer alento pois,paradoxalmente, “quanto maior o número de servidores que aderir ao regime complementar,maior será o desequilíbrio financeiro do sistema próprio e, portanto, maior a pressão peloaumento das contribuições dos segurados e dos inativos”110 .

A migração do regime próprio (dos servidores) para o complementar, de acordo comBelluzzo, provoca impacto negativo sobre as contas públicas no curto prazo, uma vez que ogoverno deverá manter os benefícios dos servidores já aposentados, deixando de arrecadar ascontribuições (sobre a parcela dos salários superior ao limite do regime geral) dos servidoresque aderirem ao regime complementar, o que deflagra um gasto adicional, na medida em que éobrigado a contribuir para o regime complementar em montante igual ao da contribuição dosservidores. “No longo prazo, no entanto, haveria uma redução nas despesas públicas, namedida em que o governo deixaria de ser responsável pelo pagamento de benefícios para osfuncionários que aderirem ao regime complementar”111. Na seqüência, porém, adverte: “Se, noentanto, a alíquota de contribuição dos servidores for elevada para 20%, o novo sistema sóserá vantajoso no longo prazo para as contas públicas se o custo médio real da dívida públicafor inferior a 1,2% a.a. no primeiro caso [salário real constante] e 3,7% a.a. no segundo[salário real com aumento à taxa de 2% a.a.], o que é muito pouco provável” 112.

Em resumo, desconsiderando outros aspectos igualmente importantes, isto é, numaabordagem tão-somente macroeconômica (conjuntura da dívida pública e tendência decrescimento da taxa real de juros), é temerário, para dizer pouco, precipitar a transiçãopretendida pela reforma.

Mas, afinal, quem ganha com a reforma?

110 BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. APPY, Bernard. Observações sobre os projetos de lei que instituemregime de previdência complementar para os servidores públicos. Parecer elaborado para a Associação dosMagistrados Brasileiros, nov./2000, p. 3.111 Observamos que essa contribuição do servidor para o regime complementar deve ser facultativa, como listadono item 47 – reforma da previdência –, do “Programa de Governo da Coligação Lula Presidente”.112 BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. APPY, Bernard. Op. cit., p. 7.

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Sem dúvida alguma, os principais beneficiados com a reforma são os bancos113, asseguradoras, as empresas de consultoria (principalmente as que possuem acesso a informaçõesprivilegiadas) e, muito provavelmente, a grande mídia114.

Há, tramitando no Congresso, o PLP 9, já antes comentado. O substitutivo globalapresentado pelo governo anterior “determina a obrigatoriedade de aquisição da cobertura pormorte (pensão) e invalidez, bem como da renda mensal vitalícia (aposentadoria por idade outempo de contribuição), em entidade aberta de previdência complementar ou seguradora queopere exclusivamente no ramo vida, de livre escolha do participante. Na prática, o que ogoverno propõe é transformar as entidades de previdência complementar dos servidorespúblicos em meros fundos de investimento”115. Obviamente, diz Belluzzo, “trata-se de umprato cheio para as entidades abertas de previdência privada e seguradoras, que passariam a terum mercado cativo”116.

Conseqüência direta do novo modelo seria, como demonstra o exemplo chileno, oexpressivo aumento nos custos administrativos que, naquele país, nos dez primeiros anos,consumiram um terço da rentabilidade bruta do sistema. Deste valor, outro um terço foi gastoem marketing e vendas117.

Em face de tudo o que foi documentado ao longo deste ensaio, podemos encerrarafirmando que a reforma da previdência que se desenha não interessa ao povo brasileiro, nãotraz benefício algum às contas do Estado e prejudica enormemente os servidores públicos,devendo ser necessariamente precedida, como consta do item 52 do programa de governo dacoligação Lula Presidente, por uma “discussão racional”, em que “as fontes de financiamentosejam objeto de negociação no âmbito da Reforma Tributária”.

113 As previdências complementares crescem no Brasil à larga, alcançando uma expansão média de 45% ao ano,sendo que os fundos de pensão acumulavam, no final do ano de 2001, um patrimônio equivalente a 12% do PIBbrasileiro. Na Suíça e na Holanda, respectivamente, tal patrimônio alcança 100% e 120% do PIB. Nos EstadosUnidos, os fundos 401(k) somam US$ 1,7 trilhão. WEINTRAUB, Arthur Bragança de Vasconcellos.Previdência privada. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.114 Assim, “do ponto de vista do capital, seu objetivo [da reforma] é apropriar-se de uma quantia fabulosa decapital, cerca de 134 bilhões de reais por ano, para injetar diretamente no mercado financeiro para garantir ofinanciamento da dívida externa e interna, e um oxigênio para a continuidade do delírio da especulaçãofinanceira”. GOULART, Serge. Devolvam nossa previdência. Dossiê histórico da destruição/privatização daprevidência pública e solidária. São Paulo: Conhecer, 2000, p. 15.115 BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. APPY, Bernard. Op. cit., p. 9.116 Op. cit., p. 10.117 Cf. BELLUZO, Luiz Gonzaga de Mello. APPY, Bernard. Op. cit., p. 10.

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6. CONCLUSÕES

Reformas e interesses

1. Qualquer proposta de reforma à Constituição Federal, em especial quando concernentea temas de forte apelo popular e impacto que transcende gerações, como a da seguridade, deveser elaborada pelo governo com elevado senso de responsabilidade, considerando-se nãoapenas sua dimensão fiscal mas também social.

2. Agentes financeiros e grande mídia, em defesa de interesses não necessariamentecoincidentes com o do Estado brasileiro, instauraram um perigoso consenso quanto àimprescindibilidade das mudanças, desqualificando sumariamente - porque destinada àpreservação de “privilégios” - qualquer dissensão que proponha o aprofundamento da questão,como a investigação de princípios e garantias constitucionais.

3. “Os homens que dirigem a moderna grande empresa e os seus vários serviços definanças, de caráter legal, legislativo, técnico, publicitário e ainda outros serviços sagrados daatividade da grande empresa são os membros mais respeitados, prósperos e prestigiados dacomunidade nacional. Eles são o regime. Os seus interesses tendem a tornar-se o interessepúblico” (John Galbraith).

Estado e Poder Judiciário

4. Para convencimento e apoio popular às reformas, criou-se um discurso baseado na“isonomia” e na “igualização”, demonizando-se o Estado e o servidor público a ponto dedesprestigiar e vulgarizar instituições basilares da democracia brasileira, tal o Poder Judiciário.

5. “O Brasil só tem Constituição e democracia quando isso não atrapalha as contas dogoverno” (Dallari), o que permite concluir que sempre vivemos – e continuamos a viver –numa democracia autoritária, caracterizada pela supremacia do Poder Executivo em relaçãoaos demais Poderes.

Constituição, separação dos Poderes, Magistratura independente e democracia

6. Os princípios figuram como o “coração” das Constituições contemporâneas,estruturantes do sistema de valores da sociedade. Dentre estes, o da separação dos Poderes foidestacado pelo constituinte de 1988 como imutável (cláusula superpositiva), a fim de evitar aformação de governos absolutos e para a garantia fundamental do cidadão contra as iniciativasindividuais e públicas de interferência em sua esfera de dignidade.

7. As cláusulas intangíveis devem impedir “não só a supressão da ordem constitucional,mas também qualquer reforma que altere os elementos fundamentais de sua identidade

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histórica” (Gilmar Ferreira Mendes). As prerrogativas da Magistratura sempre se fizerampresentes em nosso ordenamento constitucional, e a garantia da aposentação com proventosintegrais figura no Texto Maior desde 1946.

8. Para que a separação dos Poderes seja efetiva é indispensável a preservação daautonomia funcional dos Magistrados, eis que “a independência dos tribunais continua arepresentar um princípio fundamental em qualquer país que aceite os princípios mínimos doEstado de Direito” (Marcello Caetano).

9. “Na democracia, a regra básica é manter elevadas as possibilidades de escolha eabertas as alternativas de decisão. Por isso o Estado Democrático de Direito estabilizagarantias aos direitos das minorias, da oposição e da Magistratura” (Campilongo).

10. “Não é por amor ou no interesse dos juízes que o princípio vital de sua independênciadeve ser observado como um dogma. É, sim, por amor dos grandes interesses sociais”(Pimenta da Veiga, 1857).

11. Se o Magistrado for economicamente dependente da legislatura, “claro está que a suaindependência a qualquer outro respeito será inteiramente ilusória. Geralmente falando, disporda subsistência de um homem é dispor da vontade d’elle” (Pimenta da Veiga, 1857).

Valores supremos: justiça e segurança. Supremas garantias: proventos de aposentação

12. Quando do julgamento da constitucionalidade da Medida Provisória nº 173, queimpedia a concessão de liminares e cautelares contra inúmeras outras MPs, entendeu oSupremo Tribunal Federal que, embora constitucional, a medida poderia, no caso concreto,deixar de ser aplicada pelos Tribunais inferiores e Juízes de primeira instância, casoentendessem que, na espécie, “a falta desses instrumentos pusesse em risco a realização dajustiça” (Sepúlveda Pertence). Com maior razão, a modificação do sistema de aposentação dosMagistrados colocará em risco, sem dúvidas, a realização da justiça.

13. A conseqüência da mediocrização do Poder Judiciário, aí incluída a questão dosproventos de aposentadoria, tende a ser, no limite, a fragilização da cidadania brasileira, namedida em que se esboroa um dos princípios nucleares e estruturantes da organização políticanacional, sendo oportuno recordar que os direitos e garantias essenciais à liberdade humanaencontram-se acima da possibilidade de emenda. Portanto, afigura-se ofensiva à ordemconstitucional qualquer tentativa, mesmo que oblíqua ou tangencial, de mitigação do princípioda separação dos Poderes e da independência do Juiz, quer comprometendo sua subsistênciano presente, quer comprometendo-a no futuro.

14. A garantia dos proventos de aposentadoria integrais aos Magistrados escapa à lógicapuramente contábil, porque se trata de investimento de elevado retorno social, em que valoresintangíveis encontram-se envolvidos – tais a justiça, a segurança, e por serem os Juízesmembros permanentes de Poder, agentes políticos, pertencentes à carreira típica de Estado.Pode-se, pelo mesmo motivo, justificar o não pagamento de impostos pelas igrejas e meios de

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comunicação, isto é, para a preservação de outros valores igualmente caros à sociedadebrasileira, como a liberdade de culto religioso e a liberdade de imprensa.

15. As garantias da Magistratura, antes privativas – inamovibilidade, vitaliciedade,irredutibilidade de vencimentos –, foram estendidas a inúmeras outras categorias de servidorespúblicos. Todavia, aos Juízes, com exclusividade, são impostas restrições inerentes à função.Assim, por exemplo, é-lhes vedado: exercer qualquer outro cargo, ainda que emdisponibilidade (exceto um de professor), participar de conselhos ou órgãos de empresasprivadas ou estatais, concorrer a cargo eletivo, sindicalizar-se, fazer greve e exercer ocomércio. Sublinhe-se, finalmente, que o Magistrado encontra-se permanentemente deplantão, em constante risco de vida, não percebendo qualquer retribuição financeira nem,tampouco, compensação de horário por tais ônus, o que revela situação inigualável a qualqueroutro servidor, público ou privado.

Reforma da previdência

16. O encaminhamento equivocado dado à reforma previdenciária encontra-se distante donecessário para a construção de um país decente, democrático e plural, pois direcionado àcriação de superávit primário para pagamento dos credores internacionais.

17. Mesmo com os altos índices de sonegação e fraude e apesar da manutenção dosinúmeros favores fiscais concedidos a clubes de futebol e entidades filantrópicas, inexistedéficit no orçamento da seguridade social, ao contrário do anunciado oficialmente. No ano de2002, por exemplo, o superávit atingiu mais de R$ 36 bilhões, conforme noticia o próprioTesouro Nacional, havendo R$ 150 bilhões de estoque de dívida ativa.

18. Antes de se realizar a reforma da previdência, é indispensável que se faça a reformatributária, reestruturando-se o sistema tributário nacional, injusto e concentrador de renda.

19. Não se deve admitir que o segurado da previdência (seja ele servidor público outrabalhador da iniciativa privada) seja tratado como mero poupador, transformando aprevidência social num negócio e jogando à sorte os proventos de aposentadoria e atranqüilidade do segurado na velhice, tudo ao sabor do mercado financeiro, dos bancos e dasseguradoras.

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