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O ESTEREÓTIPO NA HISTÓRIA DAS GUERRAS NUMA PERSPECTIVA SÓCIO-
HISTÓRICA
Prof. Ms Ruben de Oliveira Nascimento1 Universidade Federal de Uberlândia – UFU
Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.
rubennascimento@terra.com.br
Resumo Nesse estudo abordamos, numa perspectiva sócio-histórica, exemplos de ocorrência de estereótipos
na história das guerras e em seus contextos, mostrando a relação dos mesmos com fatores
históricos, sociais e culturais atrelados à percepção social. Analisando o estereótipo nas guerras a
partir de elementos históricos e culturais permeando seu uso ou ocorrência em contextos de guerra,
apontamos a importância que os mesmos acabam representando no estudo das atitudes para com o
outro espelhadas nos motivos e nas condutas demonstradas nesses contextos. Enfatizando a
significação do outro não somente como uma conceituação cognitiva (categorização), como
também um conjunto dinâmico de sentimentos nacionais e de valores culturais e históricos
envolvidos na ocorrência dos mesmos no contexto da guerra, concluímos frisando a importância do
estudo dos estereótipos na história das guerras, pelos componentes psicossociais que comportam e
pelas relações que estabelecem com a história e a sociedade das nações envolvidas em guerra.
Palavras-Chave: Estereótipo. Cultura. Guerra. Psicologia Sócio-Histórica.
1 Psicólogo com mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Assistente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Introdução
O dimensionamento psicológico de uma imagem ou figura do inimigo, assim como os
discursos produzidos, tem muita importância numa guerra, na medida em que o soldado não
combate somente porque está incorporado ao serviço militar e suas diretrizes, mas também porque
precisa de motivos significativos para fazê-lo numa situação de guerra. O mesmo pode se dizer
sobre a população de um país quando se mobiliza num conflito militar. Nesse caso, a própria
sobrevivência, sentimentos de patriotismo, de dever como cidadão, de senso de profissionalismo
militar, etc., podem ser motivos básicos para o desempenho de um soldado ou reação de uma
população à evolução de um conflito militar.
Dentre os diversos aspectos sociais de uma guerra, os estereótipos (ou seu uso intencional)
desempenham um importante papel psicológico e moral. A maneira como gênero, etnia,
nacionalidade, etc, são significados dentro dos contextos dos conflitos, pode traduzir preconceitos
que influenciam ou norteiam a conduta dos indivíduos nesses contextos e no desenrolar do conflito.
O contexto de uma guerra tem questões simbólicas que permeiam os fatos e as pessoas que
dela participam. Na direção do discurso sobre a guerra, ideologia, explicações culturais e razões
sociais sobre a mesma (argumentos, versões, rumores, boatos, propaganda, etc) acabam tendo um
efeito ou impacto significativo na moral, na vontade de lutar, de defender o país e, principalmente,
defender alguns valores sociais tidos como importantes ou de referência para a identidade de um
povo ou de um soldado.
Considerando que uma guerra mobiliza questões psicossociais, entendemos que os
estereótipos cumprem uma função determinante na conduta das pessoas nessa situação, na medida
em que justificativas para a guerra são socialmente produzidas com base na significação do outro e
atitudes serão expressas na ação e no tratamento dado ao outro com base em preconceitos e
conceitos que lhe serão atribuídos. Citaremos três exemplos na literatura: as Invasões Bárbaras, a
Segunda Guerra Mundial e a o período da Guerra Fria.
Sobre as Invasões Bárbaras, Macedo (2007) faz o seguinte comentário acerca da
categorização de “bárbaro”.
Sabe-se o quanto mesmo em nossa época tais termos contêm de pejorativo e de preconceituoso. Com efeito, a tais palavras estão associadas idéias de selvageria, atraso, violência desmedida, anarquia, primitivismo, e outros similares. Ao adotá-las acriticamente, a historiografia acaba por reproduzir o caráter etnocêntrico que as impregna. O ‘bárbaro’ sempre é considerado do ponto de vista do ‘não bárbaro’, quer dizer, do ponto de vista de quem se identifica com o mundo romano, e a idéia de ‘invasões bárbaras’ confere aos povos
não romanos uma responsabilidade negativa na destruição de um padrão civilizacional considerado modelar para o Ocidente. (MACEDO, 2007, p. 80)
Sobre a Segunda Guerra Mundial, Ambrose (2001) comenta a percepção que o famoso
general George Patton, herói americano na Segunda Guerra Mundial, tinha de soldados negros,
afirmando que “Patton não demonstrava muito entusiasmo com o recebimento de guarnições de
tanques compostas de negros, pois achava que estes não tinham reflexos suficientemente rápidos
para dirigir tanques em batalha” (2001, p. 403).
Sobre o período da Guerra Fria, Magnoli comenta que
Na Guerra do Vietnã, estava em jogo a unidade do Estado vietnamita e a natureza do seu regime político e econômico. Do ponto de vista dos estados unidos, jogava-se nada menos que o futuro geopolítico da Ásia e a configuração geral da esfera de influência soviética no continente. O evento é um elo da teia da Guerra Fria, cuja lógica se impunha sobre as motivações nacionais, étnicas ou religiosas de diversos conflitos regionais. (MAGNOLI, 2007, p. 390)
No primeiro caso, Macedo (2007) explica que estereótipos sobre a palavra “bárbaros” e o
que eles passam a representar, até mesmo na historiografia a respeito, desconsideram o fato de que
esses povos tinham um comportamento essencial das comunidades tribais da Antiguidade e da
Idade Média: a vida nômade. Eles precisam se deslocar para conseguir locais apropriados para sua
sobrevivência, e a guerra fazia parte desse cenário social e da estabilidade da Europa desse período.
No segundo caso, Ambrose (2001) mostra que no exercito americano na segunda guerra
mundial, existiu muita segregação para com os negros em todos os sentidos, incluindo nesse quadro
suspeitas sobre suas competências militares associadas à cor da pele. O comentário do general
Patton, que inclui uma percepção social estereotipada e preconceituosa do soldado negro, pode ser
incluído nessa questão. Na história da nação americana, essa segregação também é um fato.
No terceiro caso, aspectos culturais, geográficos e étnicos dos povos que vivenciaram os
conflitos gerados pela Guerra Fria, como é o caso das Guerras na Indochina e no Vietnã, fizeram
muita diferença no âmbito militar e na condução política dessas guerras, assim como na conduta
dos soldados e da população nesses conflitos (MAGNOLI, 2007).
Esses exemplos nos mostram que estereótipos são parte constante da história militar há
muito tempo e das condutas ou atitudes desenvolvidas em seu contexto e na evolução dos conflitos.
O objetivo desse trabalho é assinalar que estereótipos são mecanismos psicossociais
constantes na história das guerras, e que os mesmos podem causar ou motivar sérias atitudes das
pessoas em relação ao outro, conforme o contexto do conflito em questão. Nesse sentido,
analisaremos os estereótipos numa perspectiva sócio-histórica procurando mostrar que eles estão
associados, tanto em sua formação quanto uso, não somente a fatores cognitivos (racionais) mas
também afetivos, culturais e históricos de um povo e sua sociedade.
Na base de todo esse conjunto dinâmico de fatores estão os aspectos simbólicos que cercam
a relação do homem com suas questões sociais e situacionais, incluindo nesse quadro o contexto da
guerra, suas imagens e mensagens, sua cultura própria, suas relações com a história e a sociedade,
sua interligação com valores morais defendidos, etc. Tudo isso formando um fundo sócio-histórico
para o uso e fortalecimento do estereótipo em tempos de guerra.
O Estereótipo na Psicologia Social
Todos desenvolvem uma teoria sobre aspectos da realidade ou sobre o outro. Os estereótipos
estão relacionados com a definição do outro, com também ligados à conceituação ou categorização
de grupos étnicos, profissionais, religiosos, de gênero, etc. Segundo Braghirolli, Pereira e Rizzon, a
formação dos estereótipos trata-se de “supergeneralização de uma característica para toda uma
categoria ou grupo de pessoas” (2002, p. 35). O estereótipo está diretamente relacionado com a
percepção social que, por sua vez, diz respeito à percepção de pessoas envolvendo um julgamento
ou juízo de valores (BRAGHIROLLI, PEREIRA & RIZZON, 2002). Simões (1985, citado por
LIMA, 1997) explica que os estereótipos expressam uma “matriz de opiniões, sentimentos, atitudes
e reações dos membros de um grupo, com as características de rigidez e homogeneidade”, tendo
também um caráter de inexatidão com relação ao outro, uma vez que se apóia em imagens
prototípicas e preconceituosas sobre a realidade e os indivíduos.
Numa perspectiva sócio-histórica, a formação dos estereótipos tem como pano de fundo o
contexto histórico e cultural onde eles são gerados, os meios de transmissão utilizados para sua
formação e difusão, assim como as crenças compartilhadas e desenvolvidas no ambiente social (nas
relações sociais) que substanciam tais processos psicológicos (LIMA, 1997; PEREIRA, 2002). O
estudo da formação de estereótipos numa abordagem sócio-histórica leva em conta valores sociais e
fatores afetivos como elementos que têm participação tão importante quanto os aspectos cognitivos
imbricados nessa formação, assim como no emprego e manutenção de estereótipos nas relações
entre as pessoas no contexto social de referência. Nesse sentido, como aponta Lima (1997), os
estereótipos não funcionam somente como uma categorização da realidade, mas também como um
posicionamento do sujeito frente ao mundo social, e como o avalia.
Dentro dessa premissa teórica, o uso dos estereótipos numa guerra segue referências sociais
e históricas importantes, que podem ser fortalecidas pela propaganda, pelo discurso ideológico ou
por rumores difundidos entres as pessoas. Como foi dito, todos desenvolvemos teorias sobre o outro
e, nesse sentido, estereótipos são esperados entre combatentes ou povos em conflito, principalmente
quando existem acentuadas diferenças entre eles.
O mesmo pode ser pensado quando, intencionalmente, prepara-se cuidadosamente uma
propaganda entorno de estereótipos ou processos de “demonização” da figura do inimigo, com a
finalidade de mobilizar soldados e população em uma direção atitudinal específica. Entendemos que
quando tal processo de divulgação mobiliza os sujeitos tanto racional quanto afetivamente,
incluindo valores sociais e aspectos culturais prezados pelo indivíduo, o efeito será significativo.
Isso porque, na abordagem sócio-histórica (RATNER, 1995; VYGOTSKY, 2007) valores sociais e
fatores culturais têm poder simbólico (linguagem, conceitos, etc) para mediar sujeito e realidade
social com grande impacto na conduta e percepção das pessoas. Quando essa mediação simbólica é
usada habilmente a serviço do fortalecimento ou formação de estereótipos a respeito de um agressor
ou inimigo, desenvolve-se não apenas uma concepção de sujeito e de realidade, mas também
sentimentos relativos a esta idéia de sujeito e de concepção de realidade configurada pela
propaganda ou pela difusão cuidadosa de um discurso de efeito popular. Nesse caso, mesmo não
tendo garantias de que todas as pessoas atingidas pelo discurso assimilarão seu conteúdo e proposta
de ação como desejado, um impacto nas formas de pensar o outro e a sociedade em que ele está
inserido pode ser conseguido. O estereótipo pode ganhar mais força nesse contexto psicológico,
incluindo elementos a ele correlatos como sentimentos de ódio, raiva, repúdio, etc, além de todo o
processo de exclusão e estigmatização que costuma acompanhar relações humanas estereotipadas.
No contexto de guerra, tais questões são muito importantes, porque dizem respeito às formas
de gestão de conhecimentos sobre o outro e sobre a realidade que cercam o contexto das guerras, e
que podem mobilizar percepções sociais, sentimentos e valores culturais e históricos significativos
para justificar, por exemplo, certos atos verdadeiramente injustificáveis cometidos durante os
conflitos ou apoiar razões destorcidas (histórica, social e culturalmente) para dar início aos mesmos.
Exemplos de Estereótipos na História das Guerras
Abordando as Guerras Napoleônicas, Muir (2000, p. 1999) comenta que “In some countries,
notably Spain and Rússia, the struggle against Napoleon was encouraged by de belief that the
French were the enemies of religion, and perhaps even that their leader was the Antichrist”2.
Segundo Muir (2000) tal discurso pode ser relacionado com casos de brutalidade ocorrida na
ocupação da França, mais notadamente por soldados oriundos de regiões não penetradas pelo
exercito francês, anteriormente. Patriotismo e compromisso ideológico com ideários nacionalistas
da época eram também comumente evocados. Um das estratégias que Muir (2000) aponta, nesse
contexto histórico, era o uso do discurso de que um povo livre deve pegar em armas para combater
2 “Em alguns países, particularmente a Espanha e a Rússia, a luta contra Napoleão era incentivada pela crença que os franceses eram inimigos da religião, e que talvez seu líder fosse o Anticristo” (tradução nossa).
o inimigo que vem como opressor dessa liberdade, e da religião. Historicamente, a Revolução
Francesa e o Império Napoleônico têm estreita relação, e a noção de liberdade e crescimento da
nação francesa, dentro do contexto político europeu da época e das tensões entre as nações na
ocasião, era um fator psicológico e social importante (MONDAINI, 2007).
Keegan (2004), abordando a Primeira Guerra Mundial, assinala a relação entre a evolução
do conflito e uso da propaganda, principalmente no momento em que os governos buscavam
aumentar seus contingentes para uma guerra que consumia número cada vez maior de vidas pelo
estilo militar e pela carnificina do conflito de trincheiras em que ela se tornou. No caso da
Inglaterra, Keegan (2004) aponta que a propaganda enfocava valores como o orgulho masculino,
tendo nos cartazes de alistamento frases de efeito como: Papai, o que você fez na Grande Guerra?
Além desse exemplo, que envolve questão de gênero e valores familiares da época, Keegan (2004)
mostra que nesse conflito mundial, no momento em que o ânimo popular com a guerra sofria abalo
devido ao seu desenrolar destruidor crescente, empregou-se um processo de “demonização” da
figura do inimigo de modo a criar uma associação entre o agressor e fatores ameaçadores para a
existência de uma sociedade, como por exemplo, a integridade física e moral da população e a
inocência infantil. Keegan (2004) comenta que
à medida que a guerra intensificou-se o entusiasmo arrefeceu, a propaganda tomou cada vez mais a forma de demonizar o inimigo. Curiosamente, o mais eficaz ‘demonizador’ era de um país neutro, o holandês Louis Raemaeckers, cujas descrições de alemães como assassinos de bebês, estupradores e genocidas estavam entre as mais cruas das propagandas da Grande Guerra (KEEGAN, 2004, p. 46)
Já no contexto da Segunda Guerra Mundial, Hart, Hart & Hughes (2000) comentam que o
doutrinamento ideológico utilizado pelo regime nazista teve repercussões não apenas no espírito
combativo do soldado alemão, mas também em sua conduta na guerra com respeito a seus inimigos
e prisioneiros. Hart, Hart e Hughes (2000), apontam que
The ideological indoctrination that Colonel Keil and thousands of other German officers enthusiastically embraced expounded on traditional Nazi themes. It stressed the racial superiority of the German Volk, and that the German people faced a Darwinian struggle for national and racial survival in which only the fittest race would survive. Propaganda depicted Nazism as religion and the Führer as God. Simultaneously, increased ideological indoctrination inculcated a sense of superiority [...]3. (HART, HART & HUGUES, 2000, p. 13)
3 “A doutrinação ideológica que o Coronel Keil e milhares de outros oficiais alemães abraçou, põe à mostra temas nazistas tradicionais. Estes temas enfatizavam a superioridade racial do povo alemão, que o alemão encarava como uma luta darwiniana [evolucionista] pela sobrevivência nacional e racional, da qual somente uma raça assim ajustada poderia obter. A propaganda retratava o Nazismo como uma religião e o Fuhrer como um deus. Simultaneamente, uma crescente doutrinação ideológica inculcava um senso de superioridade”. (tradução nossa).
Hart, Hart & Hughes (2000), chamam atenção para o fato de que tal doutrinamento estava na
raiz das formas de tratamento cruel e desumano que o exército alemão empregou nos países
ocupados. Esses autores apontam que massacres e crimes de guerra eram praticados com base nas
diretrizes doutrinárias e ideológicas acima apontadas. A percepção (e crença) de que a população e
os soldados desses países, particularmente na campanha contra a Rússia, eram etnicamente
inferiores e que uma operação de “limpeza racial” seria um ato normal para qualquer soldado
alemão praticar diante do inimigo assim configurado, estava baseada na lógica de uma guerra não
apenas no sentido bélico, mas também étnico e filosófico. No caso da campanha russa, a conotação
étnica que o doutrinamento alemão evocava na época, derivava no campo de batalha para uma
concepção ou percepção social de que o soldado russo seria também subumano, por isso, poderia
ser morto sem piedade.
Na ocupação americana do solo alemão, na Segunda Guerra Mundial, Ambrose (2003)
assinala que “As reações dos membros da Companhia E em seu contato com o povo alemão
dependeram de seus diferentes preconceitos e de suas experiências”. (2003, p. 291).
Ambrose (2003) continua comentando sobre a percepção social do soldado americano nesse
conflito mundial, dizendo que
A história mais corriqueira da impressão que o recruta americano teve em seu contato com os povos estrangeiros durante a 2ª Guerra Mundial é mais ou menos assim: ele achou os árabes desprezíveis, mentirosos, ladrões, sujos, feios, sem nenhum traço de personalidade compensador. Os italianos eram mentirosos, ladrões, sujos, mas maravilhosos, com muitas características compensadoras, embora os considerassem indignos de confiança. Os camponeses franceses eram carrancudos, lerdos e ingratos, ao passo que os parisienses eram gananciosos, astutos, indiferentes ao fato de enganar alemães ou americanos. O povo britânico era corajoso, engenhosos, graciosamente antiquado, tedioso. Os holandeses eram considerados, como foi dito, simplesmente encantadores em todos os aspectos (mas o soldado comum nunca esteve na Holanda; apenas as tropas paraquedistas). (AMBROSE, 2003, 291, parênteses do autor).
A citação acima mostra uma quantidade de conceitos e teorias sobre o outro, que são fruto
tanto da experiência do soldado com esses povos quanto referências da própria cultura americana
sobre a vida e as relações humanas. Isso porque, a forma como um indivíduo nomeia ou significa o
outro tem relação com o conjunto de valores e de princípios compartilhados na sociedade de
referência, assim como em sua história e cultura, e que possibilitam criar rótulos ou categorias de
pessoas e de condutas. Certamente, os conceitos utilizados pelo soldado americano para descrever
os povos estrangeiros estão impregnados do modo de vida americano e dos princípios e juízos de
valor aprendidos nessa cultura.
Um exemplo do que acima colocamos pode ser encontrado em Daugherty III (2002). Esse
autor aborda o soldado japonês na Segunda Guerra Mundial e sua cultura. Segundo Daugherty III
(2002) atos de crueldade do soldado japonês para com mulheres, civis inocentes e soldados
capturados durante esse conflito mundial, pode ser explicado também a partir do código de conduta
do exercito japonês (Bushido) utilizado na formação do soldado, e de aspectos de funcionamento da
sociedade patriarcal japonesa. Daugherty III (2002) assinala que
Bushido is solely concerned whit relations between the samurai and their conduct in battle […] In fact, the samurai had complete power over women of his household and his interests remained paramount. This explains the Japanese enslavement of women as prostitutes during World War II. These ‘comfort women’, as they were referred to by Japanese military authorities, were at the complete mercy of their captors and were fully exploited by enlisted men and officers alike. This chauvinism likewise explains the ease with which Japanese soldiers killed innocent civilians throughout the conquered territories during World War II4. (DAUGHERTY III, 2002, p. 16)
Podemos notar, nos exemplos que utilizamos até o momento, a importância e o efeito
do estereótipo na história das guerras, principalmente na formação de atitudes e no modo de reagir
ao outro com base numa significação preconceituosa ou de rotulação de características físicas e
culturais, e que tem raízes ou premissas históricas e sociais, assim como valores sociais e morais
relevantes para sua formação ou sustentação ideológica e psicológica. A abordagem sócio-histórica
não prioriza somente os fatos em sua ocorrência atual, mas também os processos históricos e
culturais que o sustentam e dão sentido, porque a concepção de sujeito nessa abordagem passa pelas
relações sociais mediadas pelo que a linguagem representa em seu simbolismo, e que pode orientar
ou substanciar condutas. Segundo Vygotsky (2007) a relação do homem com a realidade é mediada
por signos, tendo a linguagem um destaque. Os símbolos dão significado à realidade quando
socialmente compartilhados ou convencionados pela comunidade que os usa. No caso dos
estereótipos, muitos símbolos impregnam a linguagem e o discurso utilizados para justificá-los. A
consciência crítica a respeito desses símbolos deve ser descortinada não apenas à luz de fatos e
acontecimentos presentes, mas também nas ligações históricas e sociais que as formaram no
passado, procurando compreender distorções históricas e formação de preconceitos sobre os sujeitos
e sobre as sociedades envolvidas nas guerras.
Comentários Finais
O uso de estereótipos na guerra encontra apoio em aspectos e valores culturais e históricos
de um povo. No entanto, podemos perguntar: existe a capacidade do indivíduo de reagir ao uso de
4 “O Bushido dizia respeito unicamente às relações entre o samurai e sua conduta numa guerra. De fato, o samurai tinha completo controle sobre a mulher em seu lar e seus interesses prioridade. Isso explica o uso escravo de mulheres como prostitutas na segunda guerra mundial, por parte dos japoneses. Estas ‘mulheres consoladoras’, como eram chamadas pelas autoridades militares japonesas, estavam completamente a mercê de seus captores e eram totalmente exploradas da mesma maneira tanto por recrutas quanto por oficiais. Este chauvinismo também explica como facilmente os soldados japoneses matavam civis inocentes nos territórios que conquistavam durante a segunda guerra mundial”. (tradução nossa).
estereótipos numa guerra, ao ponto de agir de maneira contrária as imagens que eles evocam sobre
os outros? A discussão dessa questão envolve o debate sobre o nível de consciência dos sujeitos
acerca dos estereótipos ou dos mecanismos sociais e ideológicos em sua formação.
Na perspectiva sócio-histórica (RATNER, 1995; VYGOTSKY, 2001, 2007), o homem
constitui-se sócio-historicamente, tendo a linguagem como um dos mais poderosos mediadores
entre o homem e a realidade social, permitindo-lhe com isso estruturar a realidade entorno dos
símbolos que a compõem. Mas, nessa abordagem, o homem também é visto como um sujeito ativo
em seu contexto social, tendo condições de perceber criticamente as contradições que observa nesse
contexto, podendo produzir seus próprios sentidos sobre a realidade e sobre as operações externas
que efetua, inclusive, tendo condições de transformar a realidade social que vivencia. Isso
dependeria, em parte, do grau de consciência (principalmente crítica) que o sujeito pode
desenvolver sobre essa realidade social e seus discursos. Nesse caso, no âmbito dos meios de
comunicação, a liberdade de imprensa pode ser um importante fator de observação e análise crítica
da realidade e dos discursos produzidos sobre ela (conforme diversos interesses não explícitos),
esclarecendo ou informando o leitor. Levando essas premissas para a pergunta que fizemos acima,
quanto mais conhecimento e informação correta sobre o inimigo, sobre os fatos e sobre as questões
ideológicas que perpassam os estereótipos, menor será o impacto dos mesmos sobre os sujeitos que
se pretende mobilizar, ou sobre o que sustenta as percepções sociais empregadas. Tomemos como
exemplo que aborda Ambrose (2001) quando da ocupação da Alemanha pelo exercito americano na
Segunda Guerra Mundial. Segundo Ambrose (2001) o contato do soldado americano com a
população alemã, fez com que muitos passassem a duvidar do que tinham ouvido falar sobre os
alemães.
‘O inimigo não poderia ser transformado tão rapidamente de um bruto num ser humano adorável. Portanto, os soldados americanos são praticamente forçados a concluir que haviam estado enceguecidos por medo e ódio e pela propaganda de seu próprio governo’, disse em seu livro, com acerto, Glenn Grey. O tema central das relações teuto-americanas na primeira semana de abril de 1945 foi a harmonia. (AMBROSE, 2001 p. 527, aspas do autor)
Que pese a dificuldade em generalizarmos a conclusão acima para todos os soldados
americanos na época ou à continuação dessa ocupação e seus desdobramentos psicológicos,
políticos e sociais, a compreensão de que de certo nível de consciência sobre os fatos e as pessoas
dentro de um contexto de referência de interação social e cultural tem efeitos sobre os estereótipos
ou sobre a percepção social do inimigo, pode ter fundamento. Esse efeito (ou conscientização)
advindo de uma interação social crítica e reflexiva pode gerar conclusões que reduzem ou eliminam
estereótipos concebidos a priori.
No entanto, as circunstâncias da guerra e a evolução do conflito podem ser elementos
igualmente fortalecedores de estereótipos ou distorções da realidade, obscurecendo consciências,
como podemos constatar no seguinte exemplo. Na Primeira Guerra Mundial, diante da firme
resistência da Bélgica, o exército alemão cometeu muitos atos hostis contra a população desse país:
massacres de civis em pequenas cidades belgas, cidades arrasadas, bibliotecas históricas queimadas
com perdas irrecuperáveis de livros muito importantes, tesouros arquitetônicos de inestimável valor
destruídos, etc. Estes atos foram reprovados pela opinião mundial e vistos como uma espécie de
guerra contra a cultura dentro do universo desse conflito, e a Alemanha largamente condenada
nesse sentido. Segundo Keegan (2004) essa condenação atingiu fortemente a Alemanha, e muitos
intelectuais e escritores responderam à essa condenação mundial dizendo que “se não fossem os
soldados alemães, a cultura da Alemanha teria sido destruída há muito tempo” (2004, p. 95). A
percepção da situação ficou invertida no discurso alemão, que correu em defesa de seus soldados
argumentando que a cultura alemã já se viu ameaçada antes e é justamente seu exército quem vem
garantindo a sobrevivência da mesma. Assim sendo, valores culturais podem ser percebidos como
uma riqueza nacional a ser preservada e protegida, mesmo que seja preciso destruir uma cultura
alheia. Notamos, portanto, que aspectos culturais fazem parte do contexto da guerra, assim como
tem relevância o nível de consciência de um povo acerca da guerra e suas conseqüências em seu
campo social ou cultural, e os discursos nela produzidos.
Numa perspectiva sócio-histórica, o que determinaria o estereótipo numa guerra não seria
somente a formação de uma percepção inexata sobre o outro, mas também os sentimentos, os
valores sociais, a história desse povo e os fatores culturais, num conjunto dinâmico. Tudo isso
permeado pela condição histórica e social do homem. Nesse quadro, tem importância aspectos
como os símbolos sociais e os valores culturais que esse povo possa ter como herança, e que se
expressam numa situação de guerra.
Keegan (2004) assim descreve algumas cenas nos momentos iniciais da Primeira Guerra
Mundial.
A chegada da guerra foi saudada com grande entusiasmo popular nas capitais dos países combatentes. Em São Petersburgo, uma enorme multidão reuniu-se com bandeiras, cartazes, ícones e retratos do czar. Nicolau II apareceu na sacada. Todos na multidão ajoelharam-se e cantaram o hino russo. Em Berlim, o cáiser surgiu na sacada de seu palácio vestindo um uniforme verde-acizentado para dirigir-se à multidão agitada. ‘Uma hora decisiva caiu sobre a Alemanha. Pessoas invejosas de todos os lados estão nos compelindo a recorrer a uma justa causa. A espada está sendo forçada em nossas mãos’. Ocorreram cenas similares em Londres, em 5 de agosto. Em Paris, foi a partida dos regimentos da cidade nas estações ferroviárias que levou as multidões às ruas. ‘Gritos de ‘Vive la France! Vive l’armée’ podiam ser ouvidos em toda a parte, enquanto as pessoas acenavam com lenços e chapéus. Jovens gritavam ‘Au revoir! A bientôt!’. (KEEGAN, 2004, p. 88).
A transcrição acima ilustra bem o que até aqui expomos. O discurso sobre a guerra envolve
os aspectos simbólicos que perpassam não somente o conflito em termos militares, mas também
valores culturais, conceitos sociais e constituição histórica do povo. Os estereótipos têm, no
conteúdo desses discursos e nos elementos sociais e históricos que ele evoca, grande chance de
prevalecerem no contexto da guerra, na sua significação ou razão de ser, na significação do outro e
nas relações humanas nela produzidas.
Reconhecemos também que o curso e a evolução da guerra também têm um peso no cenário
social e na conduta das pessoas nesse contexto ou situação. Contudo, uma guerra não se desenvolve
somente pelas condições militares e seus desdobramentos no campo de batalha, mas também pelos
discursos ideológicos, rótulos, “demonização” da figura do inimigo e seus efeitos práticos, rumores,
boatos, etc, constituídos a partir dos discursos veiculados, do formato das notícias e do uso dos
meios de comunicação numa guerra, do contexto histórico e dos aspectos culturais que o povo
simboliza em seu mundo social e na visão sobre a guerra, etc.; e como por eles se desenvolvem
intelectual, afetiva, cultural e historicamente as versões e razões para justificar ou conduzir
psicologicamente uma guerra, como também a conduta e as atitudes dos indivíduos frente ao outro
nesse contexto.
Concluímos assinalando que, numa abordagem sócio-histórica, os estereótipos empregados
num contexto de guerra devem ser percebidos como que abarcando percepções sociais ancoradas
em fatores cognitivos (intelectuais), em sentimentos, posicionamento frente ao mundo social,
valores culturais e explicações históricas de cada povo, expressados nos gestos, na linguagem e nos
diversos símbolos que compõem a sociedade em questão, assim como nas atitudes para com o
outro. Por isso a formação e ocorrência de estereótipos na história das guerras deve ser considerado
como um relevante de estudo e pesquisa nesse sentido, principalmente considerando o contexto em
que são produzidos antes e durante um conflito em análise (e seus desdobramentos posteriores), seu
pano de fundo histórico e social e os meios utilizados para sua comunicação e manutenção
ideológica.
REFERÊNCIAS
AMBROSE, E. S. Soldados Cidadãos: do desembarque do exército americano nas praias da Normandia à Batalha das Ardenas e à rendição da Alemanha – 7 de junho de 1944 a 7 de maio de 1945. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. AMBROSE, E. S. Band of Brothers: companhia de heróis. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. BRAGHIROLLI, E. M.; PEREIRA, S. & RIZZON, L. A. Temas de Psicologia Social. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
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