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1
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Nicola Stefano Galgano
O preceito da Deusa O no ser como contradio
em Parmnides de Elia
So Paulo 2015
2
Nicola Stefano Galgano
O preceito da Deusa O no ser como contradio
em Parmnides de Elia
Tese a ser apresentada ao programa de Ps-
Graduao em Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade de So Paulo,
para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia sob
a orientao do Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho.
So Paulo 2015
3
Ao Tomaz Toledo
4
AGRADECIMENTOS
Este trabalho o resultado de um longo percurso que seguiu por todo tipo de configurao:
houve partes retas e tortuosas, em descida e em subida, planas e cheias de obstculos; ele foi
possvel graas a, mas tambm apesar de. A maioria dos obstculos no poderia ter sido superada
sem a colaborao de muitas pessoas, que aqui quero agradecer.
Agradeo antes de tudo ao meu orientador o prof. Roberto Bolzani Filho, por ter acreditado
neste projeto e ter proporcionado as condies institucionais para que se realizasse.
Agradeo s instituies que me abrigaram materialmente: agradeo USP e FFLCH,
cujas estruturas foram amigveis e cujos funcionrios foram amigos e colaboraram com simpatia,
principalmente a equipe da secretaria da FFLCH, Geni Ferreira Lima, Luciana Bezerra Nbrega,
Maria Helena Barboza e Marie Mrcia Pedrozo.
Agradeo CAPES que com suas bolsas, aquela propriamente de doutorado e aquela de
pesquisa no exterior, me proporcionou as condies financeiras para o meu sustento no Brasil e no
Canad, quando ali passei um ano na Universidade de Toronto (UofT). Gostaria de registrar
tambm a extrema simpatia e gentileza de seus funcionrios, que sempre me trataram bem e
cuidaram de que tudo ocorresse bem, assim como de fato ocorreu.
Os agradecimentos acadmicos so inumerveis. Antes de tudo aos meus orientadores
oficiais, o prof. Roberto Bolzani Filho e o prof. Thomas M. Robinson, que me acompanharam
intelectualmente, cada um a seu modo. difcil descrever o que representaram para mim; associo
o prof. Bolzani mais liberdade de jorrar, salvo depois passar pelo crivo crtico, e o prof. Robinson
mais a passar pelo crivo crtico, salvo depois se permitir a liberdade das afirmaes ousadas. Com
ambos senti a felicidade da pesquisa.
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Depois, ainda em mbito acadmico, agradeo s muitas pessoas que ofereceram sugestes
e me aconselharam, tanto pessoalmente quanto por correspondncia. Em primeiro lugar ao prof.
Livio Rossetti da Universidade de Perugia, que sempre me estimulou com sua amizade, singeleza
e criatividade e, mais do que isto, sempre me contagiou com seu entusiasmo para com os pr-
socrticos: grazie Livio! Agradeo tambm ao prof. Nstor Luis Cordero, da Universidade de
Rennes, estudioso pertinaz e insubstituvel, provavelmente o atual maior conhecedor de
Parmnides no mundo, que sempre atendeu minhas dvidas com clareza e generosidade
admirveis.
Agradeo professora Eliane Christina de Souza pelas sugestes e pelo primeiro seminrio
brasileiro sobre o no ser, realizado na UFSCar, de propores ainda limitadas, mas que, espero,
possa crescer. Agradeo aos professores Alberto Bernab, Beatriz Bossi e Graciela Marcos, que
tambm atenderam a certas minhas questes parmenidianas.
Na esfera afetiva h muitas pessoas s quais eu agradeo.
Agradeo antes de tudo professora Maria Carolina Alves dos Santos, amiga querida que
acompanhou todo este meu percurso, os altos e os baixos, apesar de morarmos em cidades
diferentes, e testemunha da difcil alquimia pessoal, pela qual eu passei, que subjaz conduo
da pesquisa filosfica, posto que o laboratrio do pesquisador est instalado em sua prpria mente.
A ela agradeo as conversas, as aulas compartilhadas e o excelente seminrio que foi realizado na
Universidade Federal de Marlia, onde o seu Plato e o meu Parmnides se encontraram e
disputaram entre ser e no ser.
Agradeo aos colegas Henrique de Paula, Marcello Fontes e Sheila Paulino com os quais
compartilhei os momentos de alegria e de tenso das festas e das discusses, das perspectivas
acadmicas e de vida, das dvidas, decepes, esperanas e satisfaes e toda a paleta intelectual,
6
afetiva e emocional que se vivencia com os amigos.
Agradeo Patrcia, que me abrigou e me abriga e gosta de compartilhar comigo o
espairecer necessrio s nossas cansativas tarefas.
Agradeo aos meus filhos: Giovanni, que esteve trabalhando longe, com o qual discutimos
muitas coisas do mundo e do universo; Paula e Aurlia que estiveram sempre perto e presentes e
mais do que ningum me ajudaram neste percurso em todos os sentidos, todos. Para elas no h
palavras suficientes.
Agradeo, por fim, as ondas inspiradoras das praias solitrias de Ilha Comprida, o mar de
verde da minha moradia em Itu e o frio severo do Canad, fascinante, ao menos para mim.
7
Quando pensamos no nada absoluto, no realizamos
o nada, nem tampouco a idia do nada, porque a nica
que podemos construir por excluso das coisas
conhecidas e positivas, pela excluso total de toda
positividade, por recusa; sem a positividade no
poderamos conceber o nada. S o concebemos por
oposio, ou seja, por negao do positivo, pela
negao da presena, pela recusa da presena.
Mrio Ferreira dos Santos
"A sabedoria do ser e do nada"
8
RESUMO
GALGANO, N. S. O preceito da Deusa: O no ser como contradio em Parmnides de Elia.
2015. 239 p. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento
de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2015.
O presente trabalho um estudo da noo de no ser em Parmnides. Este estudo se prope a
preencher uma falta que, ao longo do sculo XX e agora no XXI, foi se tornando cada vez maior,
na medida em que crescia o interesse por essa noo extraordinria, que pertence ao universo da
lgica e da ontologia antigas e da nossa atualidade. Para evidenciar essa noo o trabalho deixou
de lado os demais aspectos do poema, principalmente o estatuto do ser, e se restringiu anlise da
noo de no ser. Para tanto, foi desenvolvida uma metodologia que pudesse tornar claros tanto o
problema inicial parmenidiano quanto a soluo que ele prope. Descobriu-se, ento, uma
habilidade especfica de Parmnides em observar o comportamento da mente humana; com isto, o
estudo esclareceu o papel do mtodo de Parmnides para compensar a amechanie (falta de
recursos) do homem comum na compreenso do mundo. Ele identifica o no ser como objeto
virtual que enganosamente confunde aquele que se pe no caminho da pesquisa, pois, para
Parmnides, o no ser impossvel. Com a noo desta impossibilidade ele determina, discute e
aplica o mtodo que garante a persuaso verdadeira, um autntico princpio de no-contradio,
mas diferente daquele de Aristteles. A este princpio enunciado pela thea, para distingui-lo daquele
do Estagirita, o autor d o nome de Preceito da Deusa.
Palavras-chave: Parmenides, no-ser, eleatismo, no-contradio, ontologia, lgica.
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ABSTRACT
GALGANO, N. S. The precept of the Goddess: non-being as contradiction in Parmenides of
Elea. 2015. 239 p. Thesis (Doctoral) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas.
Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2015.
The present work is an inquiry into the notion of non-being in Parmenides. The study has the
purpose of filling a lack that increased, along the XX century and now in the XXI, according to the
growth of concern about this extraordinary notion, which belongs to the universe of ancient and
modern logic and ontology. With the aim of making this notion evident, the work put aside the
other aspects of the poem, mainly the statute of being, and was restricted to the analysis of the
notion of non-being. For this reason, a methodology was developed that could make clear both the
initial parmenidian problem and the solution that he offers. A specific ability was discovered, that
of Parmenides as observer of the human mind; with this, the study made clear the role of
Parmenides method to compensate the amechanie (lack of resource) of the common man in
understanding the world. He identifies the non-being as a virtual object that deceptively confounds
that who takes the way of inquiry, because, to Parmenides, non-being is impossible. With the notion
of this impossibility, he determines, discusses and applies the method that certifies the true
persuasion, an authentic principle of non-contradiction, albeit different of that of Aristotle. To this
principle enunciated by the thea, to distinguish it from that of Stagirite, the author gives the name
of Precept of the Goddess.
Keywords: Parmenides, non-being, eleaticism, non-contradiction, ontology, logic.
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SUMRIO
1 APRESENTAO ...................................................................................................... 13
2 INTRODUO NOO DE NO SER ............................................................... 19
2.1 Introduo geral temtica. ................................................................................. 19
2.2 Justificao da pesquisa dentro do panorama dos estudos de histria da filosofia na
atualidade. 22
2.3 Apresentao da temtica e justificao da metodologia. ................................... 27
2.4 O testemunho de Plato ....................................................................................... 30
3 PARMNIDES PSICLOGO PRIMEIRA PARTE ................................................ 37
3.1 Introduo geral. .................................................................................................. 37
3.2 Parmnides psiclogo (primeira parte). ............................................................... 40
3.2.1 O fragmento 1 ................................................................................................ 41
3.2.2 O fragmento 2 ................................................................................................ 51
3.2.3 O fragmento 3 ................................................................................................ 61
3.2.4 O fragmento 4 ................................................................................................ 66
3.2.5 O fragmento 6 ................................................................................................ 66
3.2.6 O fragmento 7. ............................................................................................... 81
3.3 Resumo e concluso da primeira parte. ............................................................... 92
11
4 O MTODO ................................................................................................................ 95
4.1 Introduo. ........................................................................................................... 95
4.2 A exposio do mtodo: o no ser em parmnides .............................................. 97
4.2.1 Anlise do fragmento DK 2 ........................................................................... 97
4.2.2 O anncio da deusa, versos 1-2: ' ' ,
, ................................................................ 98
4.2.3 O primeiro caminho, versos 3 e 4:
, ( ), ......................................................... 101
4.2.4 Os versos 5 a 8: ' , .............. 118
4.2.5 ............................................ 118
4.2.6 ( ) ....................................... 118
4.2.7 . ................................................................................................ 118
4.2.8 De volta aos versos 3 e 4: , . 129
4.2.9 ( ), ........................................... 129
4.2.10 Concluso ................................................................................................... 136
4.3 A discusso do mtodo ...................................................................................... 140
4.3.1 Fragmento 6 ................................................................................................. 141
4.3.2 Os versos 6.4: ' ' , ............... 144
4.3.3 ' , .................................................................................... 144
12
4.3.4 O fragmento 7. Os versos 1 e 2. ................................................................... 146
4.4 A aplicao do mtodo ....................................................................................... 149
4.4.1 ingnito e imperecvel. ...................................................................... 154
4.4.2 Intermezzo. O no ser na experincia do devir. ........................................... 156
5 O PRECEITO DA DEUSA ....................................................................................... 170
5.1 O no ser em Parmnides ................................................................................... 170
5.1.1 O ser, os seres. .............................................................................................. 180
5.1.2 Ouk esti ........................................................................................................ 184
5.2 Parmenides psiclogo (segunda parte). ............................................................. 189
5.2.1 O fragmento DK 8. ....................................................................................... 189
5.2.2 O fragmento DK 4. ....................................................................................... 201
5.2.3 O fragmento 16. ........................................................................................... 205
5.2.4 Concluso. .................................................................................................... 208
5.3 O preceito da deusa ............................................................................................ 208
6 CONCLUSO .......................................................................................................... 220
7 REFERNCIAS ........................................................................................................ 226
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1 APRESENTAO
O estudo apresentado nas pginas a seguir trata de um tema especfico entre os muitos
presentes no poema de Parmnides: o no ser. Os motivos para este recorte so dois: o primeiro
a necessidade atual, no debate contemporneo, de uma reviso dos mais variados pressupostos que
sustentam e compem a nossa viso de mundo que podemos chamar genericamente de
newtoniana onde, imergida em espao e tempo homogneos, se encontra uma realidade em
constante devir; esta viso parece no ser mais suficiente e, ademais, questionada desde o sculo
XIX pela filosofia e ao menos desde o sculo XX pela cincia mais avanada. Hoje, espao e tempo
no so mais tidos como um receptculo neutro do mundo; alguns tradicionais instrumentos
cognitivos humanos, como a relao causa-efeito e o princpio de no-contradio, parecem no
atuar de forma absoluta como se acreditava; e, finalmente, a projeo para o futuro das dinmicas
do mundo segundo nossos atuais conhecimentos e portanto, uma ideia de rumo para a
humanidade no tem cenrios confortveis, principalmente porque a equivocidade, a
instabilidade e at mesmo a confuso das noes que utilizamos para ver o mundo no permitem
um foco mais preciso.
Em busca de novos caminhos de compreenso, j na primeira metade do sculo XX, tanto
a cincia como a filosofia se voltaram ao passado na esperana de encontrar no patrimnio cultural
ocidental alguma ideia ou algum gancho que pudesse ajudar nessa busca. Assim, pensadores to
diferentes como Heidegger e Popper se dedicaram interpretao de Parmnides e o trataram como
par entre pares, como colega, como atualmente presente no debate contemporneo, como filsofo
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vivo1 . Parmnides no o nico que recebeu tratamento similar, outros pr-socrticos foram
chamados em causa e a razo parece ser uma s: suas ideias no passaram pelos filtros platnico e
aristotlico, sendo menos comprometidas com a viso cultural ocidental predominante e, por isto,
sugestivas de outras vises e outras posturas de compreenso. Mas Parmnides recebeu um
tratamento especial, principalmente porque foi autor de um problema ainda hoje insolvel, a assim
chamada aporia eletica. Ele e alguns de seus seguidores, principalmente Melisso, que radicalizou
as ideias parmenidianas, so responsveis por uma viso de mundo anti-intuitiva, que rejeita o devir
assim como geralmente o entendemos, abrindo um abismo na noo de realidade, seja aquela
cotidiana do homem simples, seja aquela cientfica do homem sbio. Todavia, a aporia eletica
aportica nas concluses mas no nas premissas, as quais restam firmes e coerentes para qualquer
um que se disponha a analis-las, isto , Parmnides tinha l suas razes; assim, s vezes tratado
como gnio e outras como banalmente ilgico, o eleata continua representando um desafio srio
aos pesquisadores de cincia e de filosofia.
A aporia eletica se revela imediatamente na oposio absoluta entre o que absolutamente
afirmado e o que absolutamente negado. Na frmula mais conhecida a oposio estabelecida
entre ser e no ser; mas tal oposio possui esta caracterstica: se o no ser nada, o ser no tem
nada a que se opor e a oposio cai; para que subsista, o no ser deve ser algo, mas se o no ser
algo, o ser se oporia a algo, isto , ao ser, e neste caso tambm a oposio cai; enfim, se a oposio
entre ser e no ser eliminada, nos vemos obrigados a dizer que ser e no ser so a mesma coisa,
1 Heidegger, 1998; Popper, 2014.
15
com consequncias ainda mais absurdas. O principal responsvel da articulao da aporia, aquele
que no se deixa capturar e que escapule de nossas garras racionais o no ser. Desde Grgias e
Plato o no ser uma noo das mais aporticas e, como um Midas negativo, tudo que ele toca se
torna difcil; mas dele o pensamento contemporneo no consegue mais prescindir e, como outras
noes que sofreram outrora o mesmo destino de rejeio, est sendo mais uma vez acolhido,
estudado e repensado. Por um lado a fsica atual pretende que pares de partculas subatmicas
tenham origem no nada e, por outro lado, o no ser passa a ser menos absoluto em lgicas
paraconsistentes e paracompletas. Tanto no mundo sensvel da fsica, quanto no mundo inteligvel
da lgica, o no ser, tambm chamado de nada, se alberga silenciosamente, exigindo meditaes
sobre seu papel e sua existncia, isto , sobre seu status.
O peso da filosofia parmenidiana foi sentido, como j dissemos, pela cultura
contempornea; mas justamente os dois pensadores dos quais falamos, Heidegger e Popper, embora
tenham captado a dimenso do recado de Parmnides at mesmo mais do que muitos historiadores
da filosofia antiga, so conhecidos entre os estudiosos por ter produzido interpretaes entre as
mais arbitrrias tanto do texto do poema quanto, mais propriamente, de sua filosofia. A aparente
contradio se resolve facilmente, Popper e Heiddeger captaram a dimenso filosfica de
Parmnides e a aproveitaram para suas prprias meditaes; mas a dimenso filosfica apenas
um sinal da filosofia, a qual, para ser reconstruda e esclarecida sobre a base segura da exegese do
fragmentrio texto parmenidiano, requer tantas providncias metodolgicas e uma ateno to
grande que o poema ainda considerado um quebra-cabeas, pois, apesar dos esforos dos
estudiosos ao longo de mais de 150 anos, ainda no se conseguiu chegar a uma unanimidade de
interpretao. O problema dos fragmentos que sobreviveram, os problemas paleogrficos, de
16
traduo, de coerncia interna e de compreenso filosfica, fazem com que o poema seja estudado
hoje palavra por palavra, com obstinao surpreendente, causando polmicas interpretativas a cada
passo, a cada conjuno e a cada interpuno.
No aspecto filosfico, um dos mistrios do poema est na noo de no ser. Este aspecto
porm no depende precipuamente do estado do texto ou da exegese das palavras e de suas noes
implicadas; o no ser foi problemtico desde os exrdios de divulgao do poema, quando estes
problemas textuais no estavam presentes. V-se isto claramente em Melisso, que acaba rejeitando
qualquer devir, em Grgias2, que escreve um texto to absurdo e, ao mesmo tempo, rigoroso que,
at hoje, no se sabe se ele estava falando seriamente ou apenas fazendo uma pardia de
Parmnides, e em Plato que discute o no ser no dilogo O sofista. A proposta de Parmnides
escandalosa: aparentemente implica o mundo imvel de Melisso, a equao entre ser e no ser de
Grgias e afinal o nonsense detectado por Plato, o qual no acha soluo melhor de que elimin-
lo, atribuindo-lhe outra identidade, um no ser relativo no lugar daquele absoluto.
A tradio da histria da filosofia moderna, de Hegel em diante, privilegiou a noo de ser
e para esta noo que se dirigiram os estudiosos at aproximadamente a primeira metade do
sculo XX. De l para c, do contedo do poema foram acentuados os aspectos metodolgicos,
epistemolgicos e cada vez mais os cientficos. Timidamente o no ser comeou a ganhar espao
e a representar uma etapa importante da meditao filosfica parmenidiana. Nos anos 60, uma
preconizada volta a Parmnides foi surgindo a partir da questo da impossibilidade de uma
2 Grgias: Do no ser ou da natureza ( ).
17
intermediao entre ser e no ser, intermediao rejeitada por Parmnides e reestabelecida
principalmente por Aristteles com sua teoria de matria e forma, ato e potncia. Nos anos 70
publicado o primeiro texto dedicado ao no ser de Parmnides, Il primato del nulla e le origini
della metafsica, de Alberto Colombo (1972), fortemente comprometido com uma liguagem
metafsica tradicional, onde o tratamento do no ser desenvolvido dentro de um discurso
filosfico amplo e com anlises, eu penso, de grande qualidade dentro daquela linguagem. De outro
lado, o no ser foi bastante estudado, principalmente pela assim chamada escola analtica de
filosofia. Entretanto, os vrios estudiosos pertencentes a esta corrente quase sempre se
movimentaram dentro de uma moldura conceitual pre-estabelecida, normalmente de lgica, onde
o no ser e suas noes correlatas negao, dupla negao, nada etc. tinham um lugar cativo
entre os axiomas: grosso modo, procurava-se, afinal, entender o no ser numa funo lingustica
ou meta-lingustica, basicamente como operador lgico de negao. Por isso, o no ser como noo
filosfica acabou sendo tido em considerao menor e os estudos analticos de filosofia antiga no
conseguiram penetrar no mundo anti-intuitivo do no ser. O mesmo no pode ser dito dos estudos
de lgica, os quais, sem temor se aventuraram e continuam se aventurando por mundos estranhos
e aterradores; no entanto, o no ser elaborado pela lgica no pode no passar pelo crivo do
aprofundamento filosfico, sob pena de permanecer apenas um operador lgico sem maiores
consequncias. Chegando no terreno da filosofia, mesmo o no ser elaborado pela lgica no pode
no passar pelo crivo parmenidiano.
O presente trabalho procura suprir a este anseio de uma pesquisa detida e pormenorizada
do tema do no ser em Parmnides, para alm da moldura lingustica, abordando francamente a
questo filosfica mas sempre dentro do contexto do poema e de suas circunstncias histricas.
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Ademais, esse estudo realizado sem a necessidade de entrar no restante da problemtica
parmenidiana, principalmente a questo do ser e o seu status (suas caractersticas) no mundo
parmenidiano. Para tanto, foram tomadas algumas providncias metodolgicas que permitissem,
por quanto possvel, isolar a noo de no ser, sem contudo priv-la da vitalidade que percorre todo
o poema. A primeira delas foi a identificao das possveis observaes que levaram Parmnides a
se interessar pelo assunto. Foi assim identificado um Parmnides observador do comportamento
da mente humana, que refletiu at as ltimas consequncias quais as implicaes da negao da
totalidade das coisas. A segunda providncia foi identificar qual o pressuposto filosfico que
Parmnides excogitou para a compreenso da noo de no ser. Por fim, foi identificado o mtodo
que permitiu a Parmnides distinguir os discursos persuasivos segundo a verdade, daqueles que
persuadem de forma no confivel. Esse mtodo, ao qual dei o nome de Preceito da Deusa, foi
aquele que ele aplicou para a descoberta das caractersticas do seu ente cosmolgico, o eon.
Especificamente em relao ao no ser, o resultado da pesquisa impressionante e mostra
como Parmnides tocou uma profundidade jamais vista antes e, talvez, nem depois dele. A tese
tenta mostrar que para Parmnides a oposio entre a negao e o ser, realizando um passo ainda
aqum do nosso princpio de no contradio, ou seja, a oposio proposta por Parmnides
princpio do princpio de no-contradio. A meditao filosfica a respeito desta oposio resulta
num caminho fortemente anti-intuitivo, do qual aqui foi dada apenas uma brevssima nota
sugestiva. Com isso espero ter contribudo histria da filosofia eletica, mas tambm ao
enriquecimento do acervo conceitual proposto por aqueles pensadores e deixado de herana
espiritual a todos ns.
19
2 INTRODUO NOO DE NO SER
2.1 Introduo geral temtica.
No ser uma noo genuinamente transcendente, porquanto por definio no se refere a
nenhum objeto, nem da experincia sensvel nem ideal, nem existente e nem potencial. Essa sua
natureza sugere que, em sua origem, no pode ter surgido como ressonncia na mente de algum
fato externo, mas que seja uma criao da prpria mente humana. O no ser aparece primeiramente
e abruptamente com Parmnides, num ambiente e num momento histricos de grande fecundidade
criativa do pensamento humano, como resultado do interesse reflexivo dos sbios daquela poca.
Na aurora da filosofia, na Grcia do VI e V sculos a.C., alguns sbios comearam a se
dedicar a certas reflexes e s noes resultantes. Antes de tudo a noo de todo, que em pouco
tempo geraria tambm a questo singular de se estabelecer se a lei do todo interna ao todo, como
pensavam os pr-socrticos, ou externa ao todo, como comearam a pensar aqueles que comearam
a separar o todo csmico (fsico) dos princpios regentes. Estes ltimos, ora pensaram um outro
todo separado (como o mundo das ideias de Plato), ora uma estrutura hierarquizada entre o mundo
sensvel e deus (como em Aristteles), ora complexas cosmologias como as dos gnsticos e dos
neoplatnicos; finalmente, essa profuso de interpretaes alcanou a noo de um universo,
criado, completamente dissociado de um ser transcendente, criador, junto com a postulao de um
ser capaz de transitar nos e entre os dois mundos (Cristo, homem divino), segundo o pensamento
cristo que se afirmou no ocidente.
E justamente com a afirmao da teologia crist que se toca o primeiro auge de um
progressivo processo de hipstase da noo de no ser. Depois de Parmnides, j em Melisso, o
no ser adquire uma verso mais operativa no pensamento e no discurso (contra os preceitos da
20
deusa de Parmnides), a qual se configura como o fundamento do futuro desenvolvimento do
conceito do no ser quantitativo, ou seja, de zero matemtico. Com Plato o no ser despojado
de sua dimenso absoluta e reportado a um contexto relativo, a justificar o complexo tema da
diversidade dos seres no mundo. Com Aristteles o no ser pde conviver com o ser, desde que na
dilao do tempo, como ele afirma no princpio de no-contradio. Finalmente com Agostinho o
no ser perde sua essncia original de negao absoluta e passa, por um lado, a ter a potencialidade
de criao pois o Deus de Agostinho cria o mundo ex-nihilo, invertendo assim o axioma
melissiano e, por outro lado, passa a poder se compor com o ser, dando origem a uma escala
hierrquica de seres na ordem cosmolgica da teologia crist. A partir de Agostinho, o tema do no
ser desaparece das principais preocupaes da filosofia3 e tambm desaparece explicitamente da
cultura ocidental por mais de mil anos4. Aps este perodo, reaparecer primeiro na filosofia, em
forma majestosa na dialtica hegeliana, e depois na cultura, dando origem aos movimentos niilistas
ps-nietzschianos, que redundaro no grande vigor do niilismo como opo de vida na cultura
atual. De fato, atualmente, ecoa no s nos livros especializados mas tambm nos livros populares
e em outras mdias populares (jornais, rdios, internet) a, assim chamada, pergunta filosfica
fundamental, de Heidegger: por que o ser e no o nada? Esta pergunta um segundo auge da
hipstase do no ser, pois de fato considera o no ser uma alternativa concreta ao ser, invertendo
assim o axioma parmenidiano.
Este longo percurso comea com Parmnides, o primeiro a falar do no ser no ocidente e,
3No De magistro Agostinho esboa a questo mas a abandona logo em seguida. (De Magistro, II, 3) 4Uma rara e isolada exceo aquela de Fredegiso de Tours, que no ano 800, escreve uma Epistula de substantia nihili
et tenebrarum, tambm conhecida como De nihilo et tenebris, veja-se o estudo de D'Agostini (1998).
21
com sentido filosfico, ao menos pelo que se sabe at agora, o primeiro na histria do pensamento
humano. Imergido no ambiente de reflexo da Grcia jnica dos sculos VI e V dentro daquele
movimento de pensamento definido at de ilustrao jnica sua descrio do no ser apresenta
uma pureza de concepo que se rompe j com seu discpulo Melisso e progressivamente cada vez
mais at nossos dias. Isto significa que a noo parmenidiana no foi absorvida pela cultura, mas
foi abandonada talvez, recalcada preferindo-se a ela outras noes de no ser progressivamente
mais distantes daquela absoluta. Por este motivo, ao se retomar a noo parmenidiana, nos
deparamos com uma intuio filosfica intacta, porque abandonada, e portanto ilesa ao atrito do
tempo. Quando solicitada e provocada ela responde com uma vitalidade desafiadora das melhores
reflexes, justificando o grande interesse que Parmnides continua tendo depois de 2.500 anos, um
interesse diferente daquele despertado por peas num museu, que nos falam de outras pocas; essa
intuio continua alimentando um interesse filosfico vivo e poderoso, fato raro entre as ideias da
antiguidade e reservado a pouca excees.
Em nossos tempos, coube a Friedrich Nietzsche inaugurar uma reflexo radical sobre o
tema do no ser elevando o nada a noo filosfica poderosa e atuante. Provavelmente, ningum
melhor do que ele soube interpretar profundamente os anseios do homem contemporneo quando
disse que o niilismo o estado dos espritos fortes e das vontades fortes do qual no possvel
atribuir um juzo negativo: a negao ativa corresponde mais sua natureza profunda5, entificando
o nada onde depois muitos iro se apoiar para desenvolver suas prprias doutrinas. E, ao lado desse
marco zero da origem, o nada de onde tudo comea (a vida se d desde nada e para nada alm
5Nietzsche, Wille zur Macht, ed. Kroner, XV, 24.
22
dela mesma. Toma-se, diz Nietzsche em Ecce homo, no se pergunta quem d6), se pe o marco
zero da chegada, o nada onde tudo termina, o vazio deixado por deus: Deus morreu. Deus
permanece morto. E ns o matamos.7 Do sculo XIX, passando pelos Bergson, Heidegger e Sartre
do sculo XX, e chegando s lgicas para consistentes do sculo XXI, a noo de no ser (ou nada)
impe uma discusso sem a possibilidade de atenuar o potencial devastador do problema: a
consistncia do fundamento, seja este entendido como viso de mundo ou como verdade (absoluta
ou relativa) ou como afirmao incontrovertvel. E, em nossos tempos, de Nietzsche a Priest, no
se consegue excluir Parmnides dessa discusso; todos tm que levar em conta o eleatismo e os
que no o fazem acabam por perder o essencial da posta em jogo, ou seja, a possibilidade ou
impossibilidade de um conhecimento epistmico, a possibilidade ou impossibilidade de se alcanar
uma certeza para alm das convices transitrias.
Posto que a filosofia antiga s antiga quando comparada filosofia de nosso tempo, nas
prximas pginas ser estudado o tema do no ser em Parmnides, e se constatar que no se trata
de um momento de um percurso histrico j superado, mas de uma parcela atuante do discurso
filosfico atual, embora tenha sido desenvolvida na antiguidade da cultura grega.
2.2 Justificao da pesquisa dentro do panorama dos estudos de histria da filosofia na
atualidade.
A expresso 'no ser', enquanto noo filosfica, comparece pela primeira vez com
6 Nietzsche, Ecce homo, seo 3. 7 Nietzsche, Die frhliche Wissenschaft, seo 125.
23
Parmnides. Como noo comum, 'no ser' enquanto negao de um ente qualquer a partir da
negao do verbo 'ser', presente nas antigas lnguas histricas e nas pr-histricas tambm8. Nas
lnguas modernas, 'no ser' uma noo corrente e pertence estrutura das nossas atuais linguagens
(com algumas excees no relevantes aqui) a partir do uso pragmtico principalmente das noes
de presena/ausncia, existncia/no existncia e, em maneira preponderante na nossa estrutura
lingustica predicativa, onde qualificaes so consideradas pertencentes ou no pertencentes a um
ente.
A histria da filosofia mostra que 'no ser' no uma noo trivial, como o uso pragmtico
que dela fazemos poderia sugerir. Desde seu aparecimento no texto parmenidiano, o 'no ser'
apresentou uma aporia fortssima, talvez a maior das aporias e, apesar das tentativas dos maiores
filsofos, parece se reapresentar de tempo em tempo, como uma ferida que se reabre denunciando
que, de fato, nunca cicatrizou. Da pragmtica noo crtica o salto to grande que se se aplicasse
pragmtica a noo crtica, o mundo, assim como ns pragmaticamente o vemos e interpretamos,
cairia abaixo. O primeiro a perceber isto foi Parmnides e, com ele, os eleatas; a aporia do no ser
recebeu assim o nome de aporia eletica. A mais radical expresso da aporia eletica se encontra
em Melisso, mas mesmo em Parmnides, onde ela atenuada, a aporia desnorteadora. Com
nossas palavras atuais, e com nossas noes, podemos dizer que se, de um lado, no ser a negao
absoluta do ser, ento fica impossvel sustentar a explicao comum do fenmeno que ns
chamamos devir, que consiste em asserir que as coisas nascem e morrem, que tudo se transforma,
que tudo passa a ser o que no era e deixa de ser o que era.
8A partcula negativa est bem documentada para o Indo-Europeu *m (Chantraine, 1977, verbete ).
24
Como se sabe, esta aporia foi enfrentada por Plato, o qual se viu obrigado a deixar de lado
a noo de no ser absoluto e a introduzir aquela de no ser relativo, exatamente para salvaguardar
a nossa percepo comum do devir. Algo similar fez Aristteles pois, de fato, ambos ressaltam a
grande dificuldade representada pelo no ser absoluto. De l para c, a aporia eletica no foi
resolvida e a discusso permanece em aberto, basta consultar um dicionrio de filosofia para se
perceber a equivocidade da noo de 'nada' nos autores contemporneos ou um dicionrio de lgica
a evidenciar por um lado a aporia e por outro a dificuldade de se estabelecer exatamente o status
questionis do no ser. Vejamos esse exemplo do verbete 'nada' extrado de um dicionrio de lgica:
Segundo P.L. Heath, da University of Virginia, nada um conceito indigesto e poucos
saberiam como lidar com ele. Desde Parmnides (nasceu em 515 a.C.!), que asseverou ser
impossvel falar do que no , mas violou sua prpria regra no ato de fazer tal asseverao
mergulhando em um mundo no qual o ocorrido se reduzia a nada tornou-se difcil
atravessar a estreita passagem que, nesse tema, separa sentido e sem-sentido. Assim,
limitamo-nos a lembrar que, em notao lgica, a palavra 'nada' costuma ser representada
pela negao do quantificador existencial.9
Desde Parmnides, diz o autor do dicionrio, no se conseguiu vir a cabo da questo do no
ser, ou 'nada' como se prefere dizer atualmente. Mas o autor esqueceu de dizer que, embora
Parmnides tenha violado a prpria regra, aquela da impossibilidade de falar do no ser, no foi o
nico e no foi exceo: se se admite que a expresso no ser (ou nada) se refere ao que no , do
qual impossvel falar, ento todos ns violamos a regra de Parmnides, inclusive o autor, o qual
viola a sua prpria regra (negao do quantificador existencial!), permanecendo plenamente
imergido na aporia eletica. Esta passagem, num verbete de um dicionrio de lgica resume
claramente o problema: aparentemente Parmnides, no exato momento em que afirma o preceito,
9Hegenberg, L. (2005), p. 231.
25
o viola, ou seja a violao est contida na prpria manifestao do preceito, como aquelas famosas
frases paradoxais: eu no estou falando, eu no estou aqui, no leia esta placa, e assim por diante.
No entanto, a suspeita de que talvez Parmnides no tenha sido to ingnuo mais que legtima.
Antes de tudo porque muito difcil construir uma cosmologia rigorosa, como ele fez, sobre um
conceito paradoxal. E depois, o paradoxo da aporia eletica, se ele fosse um apenas paradoxo, um
constructo sem consistncia epistmica, teria sido relegado em plano secundrio na histria da
filosofia e Parmnides teria seguido talvez a mesma sorte de seu concidado Zeno, o qual teve
que aguardar as pesquisas de lgica do sculo XX para ver resgatado, ao menos em parte, o seu
valor.
O fato de que a aporia eletica esteja ainda em aberto e sem soluo vista, levou a um
incremento dos estudos parmenidianos ao longo do sculo XX, com uma acentuao na segunda
parte do sculo. As monografias e at mesmo as edies crticas se multiplicaram, sem falar de
uma quantidade imensa de estudos e artigos em muitas reas nas quais a obra parmenidiana incidiu
direta ou indiretamente: filosofia, literatura e poesia, epistemologia, filosofia da cincia, ontologia,
lgica, lingustica e muitos outros campos mais especficos dos quais muitas vezes o estudioso de
histria da filosofia no notificado. O assunto de longe mais tratado do poema de Parmnides
o 'ser'. Isso deve-se principalmente ao prprio DNA da histria moderna da filosofia, na prtica
iniciada com Hegel. A influncia do hegelianismo e do idealismo alemo como um todo redundou
nesta predileo para a noo absoluta do ser, parente prxima do prprio Absoluto hegeliano.
Nesse contexto, o no ser to somente um momento dialtico, embora estrutural, o qual no
possui uma autonomia e que, afinal, se desfaz na medida em que o Absoluto se realiza. A
consequncia desta influncia limitou os estudos propriamente histricos a respeito do no ser de
Parmnides. Surpreendentemente, porm, a noo filosfica de 'nada' cresceu por prpria conta
26
entre os filsofos contemporneos, os quais acabaram por se interessar em Parmnides e estimular
novos estudos histricos10.
Neste percurso, ainda o 'ser' o protagonista nos estudos histricos de filosofia. J nos outros
campos, na reflexo filosfica contempornea e nos estudos lgicos, a noo de 'no ser' preme
para novos aprofundamentos. Surgem assim novos estudos especialmente em rea de filosofia
analtica (penso aqui no moderado Jonathan Barnes, mas h outros mais analiticamente radicais)
que voltam a evidenciar a aporia eletica. Apesar de todos estes movimentos, e com exceo de
poucos artigos dedicados a esclarecer o 'no ser' mais para esclarecer a noo de 'ser', no ouve,
que eu saiba, at o presente trabalho, um estudo especfico sobre o 'no ser' em Parmnides. Eu
prprio, quando senti a necessidade de enfrentar esse argumento, fui colhido por uma sensao de
assombro pelo tamanho do empreendimento, sensao que consegui superar somente com uma
estratgia de pesquisa que articula o tema em partes separadas e, de certa forma distintas, embora
pertencentes ao mesmo fenmeno filosfico da antiguidade grega: a aporia eletica de Parmnides
a Plato. Assim, o presente trabalho constitui a primeira etapa, embora desenvolvida em segundo
lugar, de uma tetralogia do 'no ser' que se desenvolve e evolui na sequncia histrica de
Parmnides, Melisso, Grgias e Plato. O estudo sobre o no ser em Melisso foi realizado no
mestrado, aqui est o estudo sobre Parmnides e no futuro, minhas foras o permitindo, esto os
10Aqui dois exemplos bem distintos mas tendo em Heidegger uma matriz comum: o italiano Severino, estudioso de
Heidegger na juventude, publicou um importante artigo nos anos 60, Ritornare a Parmenide (hoje em Severino,
1982), onde recupera a oposio radical entre ser e no-ser de (segundo ele) Parmnides e desencadeia um grande
movimento na Itlia, chamado at de neo-parmenidismo; o argentino Cordero, francs de adoo, tambm
estudioso de Heidegger na juventude, se orientou para o aprofundamento das questes exegticas do poema de
Parmnides, produzindo at mesmo, nos anos 80, uma edio crtica a partir dos originais e resgatando um
Parmnides menos idealista alemo e menos platnico do que aquele defendido pela maioria das escolas histricas
at ento e por muitas at agora. (Cordero, 1984)
27
estudos sobre o no ser em Grgias e sobre o no ser no Sofista de Plato. Justificada a necessidade
histrica da presente pesquisa, podemos agora nos dedicar apresentao da mesma e da
metodologia escolhida para a realizao.
2.3 Apresentao da temtica e justificao da metodologia.
O poema de Parmnides, pela sua importncia histrica e filosfica, recebeu muitas atenes
desde a antiguidade. Graas a essas atenes, algumas partes do poema sobreviveram devido
citaes dos vrios doxgrafos. A reconstruo a partir das citaes comeou na aurora da
modernidade com a publicao de uma coletnea de poetas gregos, , em 1573,
de autoria de Henri Estienne. Nas pginas dedicadas a Parmnides (41-46) no so reportadas as
citaes de Simplcio, autor que Estienne, segundo Cordero, no podia no conhecer11. Esse livro
contm tambm um apndice com correes aportadas por Joseph J. Scaliger, num trabalho de
filologia12 notvel e inovador para a poca. A verso completa de Scaliger ficou indita e esquecida
at ser reencontrada em 1980, acusando o excelente trabalho do fillogo, o qual reconstruiu o
poema em 148 versos, faltando uns 12 para completar a verso atualmente utilizada13. Esta simples
nota histrica j pe toda a problemtica que ainda perdurar por sculos at nossos dias: a
reconstruo filolgica do poema. O texto de Parmnides passou de seu original dialeto jnico
(numa colnia itlica) para a Atenas de Scrates e Plato e sucessivamente foi recopiado
provavelmente na escola de Aristteles, onde j se supe haver dois textos diferentes, dadas as
11Cordero (1987), p. 8. 12Proto-filologia diz Cordero, ibidem, p. 8. 13Todas estas notcias esto em Cordero (1987).
28
citaes diferentes do mesmo trecho em Aristteles e Teofrasto14. A filologia sucessiva se complica
mais ainda, ao se considerar as citaes de poca muito sucessivas com as mais diversas variaes
de evoluo da lngua. Ao todo as citaes podem ser subdivididas em trs grupos cronolgicos15:
(1) Plato, Aristteles, Teofrasto e Eudemo, no sculo IV a.C.;
(2) Plutarco (sec. I d.C.), Galeno (sec. II d.C.), Clemente de Alexandria e Sexto Emprico (sec. II
e III d.C.), Digenes Larcio (sec. III d.C.);
(3) Plotino (sec. III d.C.), Jmblico (sec. III-IV d.C.), Proclo (sec. IV-V d.C.), Damascio e Amnio
(sec. V-VI d.C.) e Simplcio (sec. VI d.C.).
Plato, o primeiro a citar Parmnides, parece iniciar uma das duas tradies doxogrficas
mais fortes, aquela que j inclui uma interpretao de Parmnides no texto, enquanto que uma
segunda, que corre at Proclo, parece ser baseada num texto j fortemente aticizado cujo maior
representante Teofrasto16. Alm disso, parece haver uma terceira alternativa, encontrada em Sexto
Emprico, que se baseia em textos peripatticos diferentes dos de Teofrasto (como dissemos acima)
compondo um quadro bastante complicado: os textos de Smplcio, Proclo, Plutarco e Sexto
Emprico, os que citam a maioria dos versos de Parmnides, apresentam, cada um por motivos
diversos, vantagens e desvantagens do ponto de vista da qualidade filolgica. Alguns destes
problemas sero tratados mais adiante e aqui queremos apontar apenas o estado fragmentrio do
texto e os seus intransponveis obstculos exegticos. Por conta dessas dificuldades, os estudos
parmenidianos esto em aberto, as tentativas dos estudiosos de novas solues a cada problema
14ib. p. 5. 15Passa (2009), p. 21. 16Ibidem, p. 26-7.
29
particular no param e h muito trabalho ainda pela frente.
A presente pesquisa tem um assunto delimitado, o no ser em Parmnides, que delimita
tambm, reduzindo-as, as dificuldades filolgicas. Por outro lado, como veremos em breve, a maior
dificuldade em relao noo de no ser no poema de natureza filosfica e, portanto, a
metodologia aqui usada alia o suporte filolgico a um forte contexto interpretativo filosfico. No
so poucos os autores, em mbito de histria da filosofia, que afirmam que a interpretao do texto
de Parmnides depende da interpretao filosfica que a ele se d. Um parecer similar se encontra
tambm entre os fillogos17 deixando a problemtica beira de um crculo vicioso de petitio
principii: por um lado necessrio entender a letra do texto para entender as noes e ideias
veiculadas e, por outro lado, necessrio conhecer as noes e ideias veiculadas para entender a
letra do texto.
Parece impossvel escapar desta situao por muitas razes. Alm das j citadas questes
de transmisso do texto, preciso acrescentar: (1) o format escolhido por Parmnides, ou seja, a
poesia em linguagem pica ao invs da recente prosa jnica, mais clara para expressar contedos
mais precisos; (2) a funo didtica do poema, que o torna, segundo o costume da poca, um pr-
memria para o ensinamento oral, ou seja, sem toda a preciosssima parte da articulao e
exemplificao dos argumentos, o que contribuiria ao esclarecimento; (3) as novidades lingusticas,
de noo filosfica e a descrio de uma cosmologia prpria que no teve discpulos verdadeiros18
aos quais recorrer para esclarecimento das noes do mestre; (4) a extraordinria complexidade e
17Passa, (2009), p. 11. 18Uma discusso mais adiante.
30
profundidade da filosofia de Parmnides, muito difcil para a poca e, a bem da verdade, para a
atualidade tambm.
O presente estudo, voltado a uma questo filosfica especfica, dispensa muitos dos
problemas implicados pelo estudo do poema como um todo e, ao mesmo tempo consegue escapulir
do crculo vicioso acima, chamando a depor em favor da nitidez da argumentao proposta, um
testemunha que especial por vrias razes, Plato, como em breve veremos. Por outro lado,
proponho aqui um ponto de vista no tentado ainda em relao a Parmnides, o ponto de vista de
um estudioso da mente humana, aquele que hoje chamaramos de psiclogo; de fato, como
veremos, o poema apresenta um vocabulrio psicolgico explcito e tambm, como ser
evidenciado, um vocabulrio psicolgico mimetizado na linguagem arcaica de Parmnides. Todos
os termos psicolgicos que estudaremos foram mais do que meticulosamente estudados pelos
crticos e aqui se trata nada mais de que unir esse vocabulrio, at agora disperso, num todo mais
coerente e que mostrar um Parmnides at agora indito, o Parmnides psiclogo. Esses dois
instrumentos metodolgicos, o Parmnides psiclogo e o testemunho de Plato ajudaro o primeiro
a interpretar palavras do texto claras na filologia mas misteriosas na noo, e o segundo a confrontar
o resultado obtido com a cristalina discusso filosfica proposta por Plato, quando ele enfrenta
diretamente o eleata.
2.4 O testemunho de Plato
Sobre a relao entre Parmnides e Plato, ou melhor de Plato com Parmnides, escreveu-
se muitssimo e certamente no este o lugar para aprofundar tal tema. Mas Plato reveste uma
importncia especial como testemunha da obra parmenidiana e mais do que as suas ideias a respeito
de Parmnides, nos interessam as suas palavras. De fato, Plato o mais antigo filsofo a citar o
31
nome de Parmnides e tambm a citar textualmente algumas de suas afirmaes; o faz em vrias
oportunidades: duas vezes no Banquete (em 178b9-11, que constitui o fr. DK 28 B 13, e em 195c2,
onde apenas nomeado); duas no Teeteto (em 180e1, que constitui o fr. DK 28 B 8.38, e em 183e3-
184a3, onde apresenta a pessoa de Parmnides); em vrias passagens do Sofista (a edio de Coxon
reporta cinco trechos entre os testimonia19), das quais trs contm citaes de versos do poema (em
237a8-9, que constituem os versos DK 28 B 7.1-2, em 244e6, que constitui o fragmento DK 28 B
8.43-45, e em 258d3-4 que repetem os versos 7.1-2). J o dilogo a ele titulado, o Parmnides,
embora seja impregnado de filosofia eletica, no possui citaes que seguramente e literalmente
possam ser atribudas ao poema de Parmnides.
O testemunho de Plato apresenta algumas vantagens exegticas em relao aos demais
doxgrafos: o mais antigo e cronologicamente mais prximo a Parmnides; confivel do ponto
de vista da compreenso da letra do texto, pois Plato tem conscincia das dificuldades de
compreenso daquele dialeto jnico transplantado no sul da Itlia e comprimido num mdulo
didtico (poema), imitando uma linguagem pica ainda mais antiga, ou seja, percebe que uma
linguagem artificiosa que pode conduzir a enganos20; por fim, Plato um dos maiores filsofos
da humanidade e, ademais, estudou detidamente a filosofia do eleata e a discutiu em obras
filosficas imortais, portanto, dificilmente pode ser acusado de incompreenso da mensagem
parmenidiana21, tornando-se assim, do ponto de vista filosfico, totalmente confivel.
19Coxon (2009), p. 104-113. 20Plato, Theet., 184a. 21Na mesma passagem do Teeteto (184a), Plato afirma de no ter certeza de ter entendido o que disse e o que quis
dizer ( , ), palavras que indicam a preocupao
rigorosa de Plato quanto ao pensamento, que ele achava profundo (), de Parmnides.
32
A citao que nos interessa diretamente aquela do Sofista. Plato escreve, j em idade
avanada, um livro de grande importncia filosfica, um dos maiores livros de filosofia de todos
os tempos, O Sofista. Ali ele discute alguns temas essenciais da vida do pensamento humano,
principalmente, como que o mundo pode se apresentar mltiplo e mutvel se as ideias parecem
tender unidade e parecem ser imutveis. O extraordinrio aparato filosfico que Plato pe em
jogo tem um ponto de partida singular: uma discusso sobre o no ser. Aps o estabelecimento do
mtodo de caa ao sofista e aps as vrias articulaes da diairesis platnica, o no ser o primeiro
verdadeiro obstculo no percurso platnico, mas um obstculo to grande que, assim como
configurado, segundo a noo de no ser que se conhecia at ento o no ser parmenidiano no
podia ser absorvido a servio de uma causa, quem sabe maior, para uma nova viso de mundo, a
causa e viso platnicas: no podendo ser aproveitada, a noo parmenidiana descartada. Na
sequncia do texto platnico, outras noes e outros filsofos so descartados, mas somente
Parmnides sofre uma dinmica crtica especial, que vir a ser conhecida como parricdio. A
respeito da questo de se utilizar (e inutilizar) a noo parmenidiana de no ser absoluto, diz a
personagem, o estrangeiro de Eleia, que ele no quer ser tido como parricida, porque o pai
Parmnides no cansava de repetir, do comeo ao fim (de sua atuao filosfica), em verso e em
prosa, que:
No, impossvel que isto prevalea, ser (o) no ente.
Tu porm desta via de inqurito afasta o pensamento;22
22Parmnides (DK B 7.1-2) em Plato, Soph. 237a8-9 , ,
' ' . Trad. Cavalcante de Souza (1978).
33
Aqui preciso notar duas coisas: a primeira que, no aceitando a noo expressa na
citao se mataria Parmnides, o que quer dizer que esta noo essencial na sua filosofia e sem
ela a filosofia parmenidiana no sobrevive; a segunda a descrio contextual da citao, pois
Parmnides no se cansava de repetir, ao longo de sua vida e de todas as maneiras, como um bordo,
o que confirma que a citao pertence ao ncleo slido e persistente do pensamento do eleata. As
duas descries so sinrgicas e apontam, assim me parece, para aquilo que o essencial da
filosofia parmenidiana. Ademais, acrescente-se que a evidenciar este ncleo essencial no um
pensador menor mas Plato na sua fase filosfica mais profunda. Penso que no h mais dvidas,
possvel fazer uma reconstruo do puzzle do poema, limitadamente sua parte filosfica, a partir
da imagem de referncia oferecida por Plato, que tambm aquela que mais interessou aos antigos
e que mais interessa tambm aos filsofos atuais.
O poema foi muito estudado nos primeiros 150 anos aps Parmnides, at basicamente
Aristteles e pouco depois, e foi responsvel direto por algumas das grandes intuies da antiga
filosofia grega. Do que chegou at ns, alm das obras dos eleticos Zeno e Melisso obras
altamente anti-intuitivas e paradoxais, mas que nem sempre ajudam a entender o prprio
Parmnides23 , o fruto mais desconcertante do eleatismo sem dvida o
de Grgias. Este livro seguramente referido ao eleatismo, mas expe a matria de forma
paroxstica deixando os estudiosos perplexos e indecisos entre levar as flagrantes contradies ali
expostas a srio ou considerar o todo um exerccio ldico de sarcasmo sofstico. As demais
23Em meu trabalho sobre Melisso tive a ocasio de pr em evidncia o quanto bastante comum em muitos autores,
interpretar Parmnides a partir de Melisso, atribuindo ao mestre pecados que afinal so s do discpulo. Por terem
noes muito similares nem sempre fcil discernir as de um das de outro. (Galgano, 2010)
34
referncias ao eleata podem ser inferidas em muitos autores, de Empdocles a Demcrito, mas no
so explcitas at Plato, o qual muitas vezes faz referncias aos antigos pensadores e, no Sofista,
traceja at mesmo o primeiro esboo de histria da filosofia da qual se tem registro, onde
Parmnides de novo nomeado junto com Xenfanes e a estirpe eletica.24
Plato acolhe a herana dos antigos, embora no se saiba muito bem em qual medida ele
seja franco quanto aos seus autores de referncia25, e discute suas propostas, ora aceitando-as ora
criticando-as sempre com grande respeito e at com venerao, como o caso do prprio
Parmnides, no s pela citao no Teeteto, mas tambm pela impressionante apresentao do
eleata no dilogo Parmnides. Diferentemente de Aristteles que muitas vezes, como foi
evidenciado por alguns autores26, chega a distorcer o pensamento dos antigos para justificar suas
prprias noes, Plato mais cauteloso e faz citaes pontuais das quais no se tem porque pr
em dvida a autenticidade. Em relao ao nosso tema, das trs citaes de versos no Sofista, duas
repetem a mesma passagem, aquela que nos interessa diretamente aqui. As duas citaes so
ligeiramente diferentes:
, ,
' ' .27
, ,
' ' .28
24Plato, Soph. 242b et passim. 25Por exemplo, em sua obra h uma nica referncia a Pitgoras, embora ele discuta temas pitagricos em muitas
passagens, inclusive apresentando personagens pitagricas. 26Por exemplo, a obra de Cherniss (1935) Aristotles criticism of presocratic philosophy. 27Plato, Soph. 237 a 8-9. 28Ibidem, 258 d 2-3.
35
Resta a tarefa de entender estas palavras, que agora j sabemos, se referem ao cerne da
filosofia parmenidiana, e de construir uma imagem de referncia que possa ser um guia confivel
na reconstruo do poema.
A primeira expresso, , uma expresso imperativa embora
apresentada com um subjuntivo. H divergncias gramaticais, que discutiremos detalhadamente
em sede oportuna, mas o sentido geral de uma noo reforada com outra: no prevalea (em
sentido ativo ou passivo, por enquanto no importa) a noo, jamais o reforo. Esta expresso
tpica de toda a fala imperativa da deusa, que d um carter hiertico e de universalidade
afirmao; em suma, diz a deusa, uma lei. Qual a lei que no pode ser prevaricada? Que sejam
os no seres: . No entanto o que venham a ser os e qual seja o sentido de
exatamente o problema mais crtico da filologia, da semntica e da filosofia de Parmnides como
um todo. portanto totalmente desaconselhvel tomar estas noes como imagem de referncia.
E o mesmo deve ser dito em relao ao verso seguinte, ' '
, onde os vrios conceitos envolvidos, caminho, pesquisa, pensamento, so todos
problemticos em Parmnides e uma clara noo para todos eles talvez seja possvel no fim do
estudo, mas no no incio e muito menos como pressuposto (externo) ao poema, como imagem de
referncia.
Apesar disso, embora no possam ser descartadas as noes dos conceitos envolvidos, tem
algo muito claro que permanece e que a estrutura sinttica onde as noes esto implantadas:
e . A negao se d como uma negao a respeito de duas noes de mesma origem
semntica: e . E o , 'jamais', indica claramente o imperativo negativo a respeito
da negao . Em suma, a estrutura diz: jamais seja negado algo, onde esse algo se refere a
e , dos quais ns ainda no temos uma clara semntica. Ora, estaramos diante de algo
36
incompreensvel se no fosse Plato a nos esclarecer. A citao ocorre no meio da discusso sobre
o no ser e o tema exatamente se possvel que o 'no ser' seja29. Agora, seja qual for o sentido
de e em Parmnides, coisa que analisaremos a seu tempo, eles tm um sentido claro em
Plato: que o no ser seja algo. Para que possamos deixar espao semntica parmenidiana sem
constrang-la dentro da semntica platnica, a imagem de referncia pode ser firmada em volta da
oposio radical (jamais) entre duas instncias, ser e no ser, cuja noo deve ser esclarecida.
Temos assim nossa imagem de referncia. O tema filosfico principal em volta do qual gira
o poema a oposio radical de duas instncias cosmolgicas (), a saber, ser e no ser, cujas
noes devem ser esclarecidas. Resta ainda a acrescentar que esta imagem no incongruente com
os textos de Melisso e de Grgias, no incongruente com a temtica apresentada por Plato como
eletica e tambm com aquela apresentada por Aristteles; ademais, no incongruente com as
demais imagens legadas pela doxografia ou, ao menos no desabonada por elas.
29 a discusso para tentar caar o sofista que se escondeu no no ser.
37
3 PARMNIDES PSICLOGO PRIMEIRA PARTE
3.1 Introduo geral.
A finalidade desse captulo mostrar, pela identificao de um vocabulrio psicolgico em
seu poema, a capacidade de Parmnides de observao do comportamento mental humano; esta
habilidade de autntico psiclogo (talvez 'cognitivista', segundo as atuais categorias em uso), em
ato no poema, capaz de explicar um resultado extraordinrio, a descoberta de uma estrutura do
pensamento a partir da descoberta de uma estrutura do pensar, onde por pensar quero me referir ao
processo fisiolgico e por pensamento ao resultado desse processo. Enquanto no prximo captulo
examinaremos de perto as estruturas do pensar e do pensamento propostas por Parmnides, aqui
nos limitaremos averiguao geral de uma investigao psicolgica em breve veremos em que
moldes capaz de sugerir o enfoque psicolgico na pesquisa realizada pelo eleata. Por outro lado,
o estudo de psicologia como cincia do comportamento mental e no como cincia da alma um
ramo do saber relativamente recente e se se considera Wundt o fundador da psicologia cientfica
no sculo XIX, ainda teremos de esperar o sculo XX para a consolidao de uma cincia autnoma
em relao ao atualmente ambguo, impreciso e equvoco conceito de alma. A psicologia cientfica
do sculo XXI estuda a mente e no a alma, estribando-se sobre o comportamento mental concreto
e deixando de lado se h ou no uma instncia a alma externa ao corpo, material ou espiritual,
que possa explicar os fenmenos psquicos.
Ao se aplicar essa noo atual de psicologia s culturas antigas nos deparamos com a
dificuldade da ausncia naquelas pocas de uma tal viso psicolgica autnoma e, por conseguinte,
com a ausncia das noes correspondentes e de uma terminologia especfica a definir essa
autonomia. Isso deu espao a um fenmeno singular, quando se estuda a psicologia na antiguidade
38
em geral se estudam campos semnticos ligados palavra psyche com o seguinte resultado: h
vrios estudos sobre a psicologia em Homero ou na poesia pica ou na poesia lrica ou na tragdia;
h at alguns estudos sobre a psicologia nos pr-socrticos, principalmente Herclito e at mesmo
Demcrito; por fim, h estudos de psicologia na obra de Plato e, principalmente, como era de se
esperar, na obra de Aristteles, o primeiro a escrever um livro autnomo sobre psicologia. Mas no
h estudos sobre a psicologia na obra de Parmnides. O motivo principal, assim me parece, deve
ser buscado no fato de que, no poema de Parmnides, a palavra psyche no aparece.
Num livro famoso 30 , A descoberta do esprito, Bruno Snell estreia afirmando que: O
pensamento europeu comea com os gregose, desde ento, surge como a nica forma do
pensamento em geral. (p. 11). O esprito do ttulo no a mente da psicologia e nem de outras
disciplinas especficas, a mente em sentido cultural amplo, mesmo assim, para poder chegar a
consideraes mais amplas, Snell obrigado a analisar mais detidamente noes e termos como
psyche, thymos, nous, de Homero em diante, chegando a resultados importantes e a consideraes
lcidas. Infelizmente, quando trata de Parmnides, ele se limita queles que lhe pareceram os
pontos altos da mensagens parmenidiana, a revelao divina, a recusa da experincia dos sentidos31
e o puro ser32, sem nenhum aprofundamento nem mesmo da questo do nous como se esperaria
de um livro que trata da 'descoberta da mente' que em Parmnides no pequena.
30Snell (1975). 31Ib: ... a influncia de Parmnides, o qual deixou de lado o saber humano, a experincia sensvel, e buscou um
acesso directo a divino (p. 190) 32Ib: A divindade leva Parmnides ao pensamento puro, com o quale le apreende o puro ser. Enquanto Alcmeon,
partindo da percpo sensvel prpria do saber humano, avana diramos, indutivamente at ao invisvel, a
deusa de Parmnides ensina-o a deixar de lado, como coisa enganadora, toda a percepo sensvel e o dever por
ela captado. (p. 191)
39
Com o livro de Snell, se perdeu uma grande oportunidade de dar incio a estudos mais
aprofundados da psicologia em Parmnides. Como veremos, os historiadores da filosofia antiga do
sculo XIX para a primeira metade do sculo XX, no deixaram muito espao para um
desenvolvimento nesta direo; por outro lado, os historiadores da psicologia, que na verdade
comearam a trabalhar mais intensamente na segunda metade do sculo XX, apenas se apoiaram
nos textos dos historiadores da filosofia, em geral os mais renomados, e utilizaram as obras mais
gerais de histria da filosofia antiga, descuidando da imensa literatura secundria que foi produzida
sobre Parmnides. O resultado foi uma verdadeira escassez de pesquisa e uma repetio do seguinte
fenmeno: l onde os textos se propem a falar da psicologia de Parmnides, se limitam a expor
sumariamente, em geral de forma desajeitada, a sua filosofia33.
Assim, falando de sua filosofia, esses estudiosos abordam inexoravelmente a epistemologia
parmenidiana: o tema da possibilidade do conhecimento verdadeiro. No entanto, uma pergunta
seria legtima: possvel se falar de epistemologia, como Parmnides o fez, sem fazer nenhuma
33Vejam-se alguns exemplos. Os livros gerais de histria da psicologia deixam muito a desejar [Por exemplo, Malone
(2009), onde nas p. 34-36 dedicadas aos eleticos, no uma s palavra referida pesquisas parmenidianas sobre
o funcionamento da mente, dedicando o pouco espao a um resumo muito impreciso das ideias filosficas do
eleatismo.] mas mesmo livros especializados sobre o assunto so surpreendentemente parcos quanto a Parmnides
ou at mesmo omissos [Como exemplo de omisso veja-se o Everson (1991) Companion to Ancient Thought 2
Psychology, livro especificamente dedicado Psicologia no pensamento antigo, onde, apesar da presena dos
maiores nomes entre os scholars de filosofia antiga (Schofield, Irwin, Annas, A.A. Long e outros), no h nenhuma
referncia psicologia de Parmnides.]. Um texto dedicado ao assunto, Early psychological thought [Green, C. D.
e Groff, P. R. (2003).] destinado a psiclogos e filsofos (p. ix), embora se proponha a ser um ancient account
accounts of mind and soul, quando aborda Parmnides (e os eleticos) escreve assim: Neverthless, his inclusion
in a history of early psychological thought is a little tricky to justify, since he had little or nothing to say on the
issue of the psych (). His major contributions were in epistemology, tyhe theory of knowledge itself, and in
ontology, the theory of what, at the most basic level, can be said to exist. [Ibidem, p. 28.] No me parece que os
diretos responsveis por tais afirmaes sejam os seus autores, pois eles tomaram essas descries dos estudiosos
de histria da filosofia antiga em particular, a respeito de Parmnides, os autores citados so Barnes e Gallop, os
quais no fazer nenhuma referncia aos estudos psicolgicos de Parmnides e o argumento principal que no
texto parmenidiano no h referncia psyche.
40
referncia ao sistema psicolgico de conhecimento? Acho que no, porque um aparelho cognitivo
tem que estar pressuposto explcita ou implicitamente; e tenho a impresso de que se repete um
erro metodolgico j evidenciado em outros casos onde se confunde a palavra como a noo. Por
exemplo, se nos basessemos na palavra 'lgica', nos livros de histria da lgica no constaria
Aristteles, porque embora a noo de lgica assim como hoje a entendemos estivesse j perfeita
e claramente presente, ele no usava esta palavra; e, se fizssemos o mesmo com a palavra nmero,
na histria da matemtica no constariam os primeiros pitagricos, embora as noes matemticas
estivessem claramente presentes entre eles. O mesmo parece acontecer com a psicologia em relao
a Parmnides, pois o fato de que no comparea a palavra 'psique' em seu poema, no quer dizer
que no tenha tratado de temas psicolgicos e, como mostraremos, ali esto claramente presentes
muitas noes que hoje chamaramos de noes de psicologia.
3.2 Parmnides psiclogo (primeira parte).
Passamos a estudar agora os elementos psicolgicos com os quais e sobre os quais
Parmnides constri a sua filosofia. Embora o poema fale claramente a respeito de atos da mente,
isto , a respeito da possibilidade de pensar a verdade e tambm a respeito do caminho errado que
os mortais seguem quando pensam suas opinies, um aprofundamento desse ponto de vista, pelo
que eu sei, como eu j disse, ainda no foi tentado. Por isso, antes de aprofundar o tema, eu gostaria
de deixar claro, mais uma vez, em que sentido estou usando aqui o termo 'psicologia' e seus
cognatos. Uso aqui o termo no sentido utilizado pela cincia moderna, ou seja, como 'mente' e
tomando distncia do sentido de 'alma', uma das possveis tradues de . Assim, uso
'psicologia' como aquela cincia que trata dos estados e processos mentais, exatamente como a
41
primeira definio do Dicionrio Huaiss da Lngua Portuguesa34.
A psicologia cientfica surge no sculo XIX mas se consolida somente no sculo XX. Assim,
razovel que o aspecto 'psiclogo' possa aparecer somente depois do surgimento da nova cincia
da psicologia. Na verdade, esperaramos um exame do ponto de vista psicolgico no comeo35 ou
ao longo do sculo XX, quando assistimos multiplicao de muitas disciplinas no campo da mente
humana, desde as neurocincias at a psicologia social e a comparativa. Na rea da filosofia,
assistimos ao nascimento da 'filosofia da mente', mas uma reviso dos conhecimentos psicolgicos
no pensamento antigo no vai alm de poucas notas nos livros gerais de histria da psicologia.
Desta forma, nestas pginas, o propsito pr em evidncia o Parmnides observador da natureza,
funes e fenmenos da mente humana e, naturalmente, algumas discusses sobre como e quanto
essas observaes influenciaram a sua filosofia.
3.2.1 O fragmento 1
O poema se abre com uma imagem poderosa e espetacular que, j desde o primeiro verso,
carrega um vocabulrio psicolgico:
, ' ,
Umas guas conduzem o jovem discpulo to longe quanto o esprito pode alcanar, e levam o carro
34Houaiss (2001), verbete 'psicologia'. 35 Uma notvel exceo o livro de Beare, de 1906, Greek theories of elementary cognition. From Alcmaeon to
Aristotle. Na introduo ele diz: The aim of the following pages is to give a close historical account of the various
theories, partly phisiological and partly psychological, by which the greek philosophers from Alcamaeon to
Aristotle endeavourede to explain the elementary phenomena of cognition. The pre-Aristotelean writers who
applied themselves to this subject, and whose writings we possess any considerable information, are Alcmaeon of
Crotona, Empadocles, Democritus, Anaxagoras, Diogenes of Apollonia, and Plato. Parmnides no tratado.
42
sobre um caminho especial que o levar presena da deusa. A palavra parece ser a chave
para seguir o curso didtico que Parmnides, atravs da voz da deusa, oferece ao seu leitor. O verso
reportado por Sexto Emprico, o qual, na sua parfrase traduz exatamente por 36.
Naturalmente, com esta palavra, o ctico Sexto quer dizer 'alma', atendendo a uma noo de seu
tempo que intil reportar aqui. Mas certamente uma palavra que se refere estrutura
humana que atualmente chamamos mente.
tem um grande campo semntico j em Homero, onde significa alma ou esprito como
princpio de vida, do sentir37 e do pensamento38 . Mas aqui, no proemio, Parmnides faz uma
introduo ao carter do seu escrito com muitas imagens coloridas, ressonantes e dinmicas39, para
colocar seu leitor na disposio mental de ateno para as lies da deusa40 . Por esta razo, a
palavra aqui fortemente potica e indeterminada, de modo que o pblico a intenda de uma
forma mais subjetiva que objetiva. Portanto, ela apresenta pouco interesse para a nossa busca de
um sentido claro e unvoco. Entretanto, a sua posio no primeiro verso nos deveria alertar de que
o sujeito do poema a mente. a mente (no sentido amplo de aquela capacidade humana de
imaginao, compreenso e conhecimento) que est se preparando para a grande aventura pelo
mundo inteiro at seus limites (e mais!), para descobrir os segredos mais ocultos, privilgio do
36Sextus Empiricus, 7.112.1:
. 37Bremmer (1983), p. 54: Thymos is above all, the source of emotions. 38Bremmer (1983) p. 55: When Odysseus is left alone by the Greeks in a battle, he spoke to his proud thymos (XI,
403). Having realized the two possibilities left to him, he ends his deliberations by asking, but why does my
Thymos consider that? (XI, 407) 39Multimidia, segundo a feliz expresso de Cornelli (Cornelli 2007; p. 50). 40Uma ampla discusso sobre as tcnicas usadas por Parmnides em relao ao seu auditrio est em Robbiano (2006).
Apesar da grande discusso sobre o papel do proemio, no se encontra nenhum nexo de contedo entre este e o
resto do poema.
43
homem sbio, principalmente quando conduzido por uma deusa.
A descrio parece mostrar a mente bem disposta ao conhecimento e com uma grande carga
de vontade, pronta para se lanar na jornada difcil do conhecimento. E, de fato, depois da
cuidadosa descrio da viagem em direo deusa que o receber, a viagem fsica do discpulo
termina diante da presena divina, enquanto a viagem da mente continua, anunciada pela prpria
deusa: primeiro atravs do mundo dos pensamentos (como veremos), um mundo onde possvel
encontrar aquele tipo de Persuaso que procede ao lado da verdade; e, segundo, atravs do mundo
da opinio, feito de estrelas divinas, cus etreos, Eros, homens e mulheres. notvel como essa
segunda parte da viagem no acontece com uma passagem fsica do jovem aprendiz atravs dos
lugares fsicos, dos quais o poeta poderia ter nos dado uma descrio, mas exatamente uma
viagem da mente, examinando teorias sobre o mundo cosmolgico, o mundo biolgico e tambm
sobre o mundo psicolgico. Assim, o poema de Parmnides um poema da mente, pela mente e
sobre a mente.
3.2.1.1 A deusa, DK B 1.2-27.
Nos 26 versos seguintes do fragmento 1, Parmnides conta da viagem de um jovem discpulo,
o kouros41, ao encontro da annima deusa. A linguagem que ele escolhe para esta parte mtica, de
forma que o cenrio, os atores e a prpria ao so mticos. No h nenhuma referncia a nenhum
41Entre as vrias interpretaes do kouros (em grego, jovem), em geral polarizadas entre identific-lo como o prprio
Parmnides ou como um discpulo de Parmnides, se destaca a interpretao de Cousgrove (1974), que diz que
kouros significa jovem, mas no sentido de 'sem experincia', Youth, on the other hand, implies inexperience (p.
93) podendo afinal ser um homem adulto e maduro e mesmo assim ser kouros.
44
vis psicolgico em toda a passagem, exceto se quisermos entend-la, como o prprio Sexto
Emprico faz, como uma alegoria de um tipo de processo mental42. A interpretao correta, ou at
mesmo a interpretao provvel, desta primeira parte do proemio um assunto realmente
controverso entre os estudiosos43 e, por outro lado, para nossos fins, entrar nesta discusso no
42Para Sexto (Adv. Math. 7.112-114), os cavalos so os desejos da alma ( ), o caminho do daimon
a argumentao filosfica ( ) e assim por diante.
43Zeller desconsidera o proemio, enquanto Diels (1987) o revaloriza, inclusive analisando os detalhes das descries
dos eixos, ferrolhos e outros mecanismos presentes no proemio. Bowra retoma, de certa forma, a interpretao de
Sexto, afirmando que o proemio essencialmente alegrico. Simultaneamente, uma retomada da interpretao
mistrica, que iniciara de certa forma com Diels, acontece com a anlise de Burkert (1969) e prossegue com
Kingsley (1999) e Kingsley (2003) at chegar nas interpretaes sensrias de Gemelli-Marciano (2008). Esta ltima
afirma antes de tudo, seguindo Kingsley (2003), que o poema de Parmnides esotrico; e, depois, que os meios
necessrios a transmitir essa sensao de entrar num outro mundo so utilizados no poema, que era declamado e
no lido, atravs das imagens propostas e dos sons dos versos, os quais proporcionariam: 'Alienation' and 'binding'
are the most powerful means to remove listeners from the ordinary, everyday dimension and way of thinking and
put them into a different state of consciousness. Images, repetitions, sequences of words and sounds, supposedly
'logical' arguments all contribute to this end and have a particular meaning and function that surpass conventional
human language and ordinary syntactical and semantic relationships. (2008, p. 26-7) Todavia, a maioria dos
estudiosos tende para uma interpretao literria, principalmente como artifcio retrico introdutivo.
No seu comentrio ao estudo de Gemelli-Marciano (2013) apresentado a Eleatica em 2007, Cornelli afirma que
h um Parmnides que no queramos ver (p. 145-148). Eu concordo, com algumas ressalvas. Dada uma
normalidade de conscincia, h muitas coisas que podem alter-la. Em primeiro lugar h as alteraes atravs de
certas substncias psicgenas, e possivelmente Parmnides, se de fato praticava a katabasis, quase certamente
usava as papaveris lacrimae (a resina que escorre do receptculo da flor de papoula quando sofre uma inciso) que
era de largo uso religioso (no necessariamente inicitico) e mdico em toda a rea mediterrnea (Nencini, 2004,
2009); uma prtica similar se mantm ainda no rito catlico pelo uso religioso (no necessariamente inicitico) do
vinho, substncia que tambm altera a conscincia. Depois h as alteraes de conscincia por paroxismo
emocional (stress e similares), como se em certos ritos, principalmente aqueles acompanhados pelos sons
obsessivos de instrumentos de percusso. Depois h as alteraes de conscincia pela arte, poesia, msica e outras,
onde a experincia artstica leva para outro mundo. Mas o mesmo se sente diante que uma elegante demonstrao
matemtica o da 'lgica' extraordinria (assim nos parece) de um feito cientfico qualquer. Em suma, no h grande
novidade em dizer que sons e imagens do poema levam a um estado de conscincia alterado. O problema est na
explicao que se quer dar quele estado alterado. Em geral, na ocorrncia de um estado alterado provocado
voluntariamente, h um 'mestre' que pretende saber o que aquele estado alterado significa. Infelizmente, a histria
mostra que esse tal 'mestre' possuidor de uma pretensa 'sabedoria' que vem de 'outro mundo', nada mais que um
charlato da superstio e da crendice. Ora, superstio e crendice tambm se alimentam destes estados alterados
de conscincia (como j dizia Herclito, DK 22 B 5, 14). A proposta de Parmnides exatamente poder distinguir
os discursos verdadeiros daqueles que no tm fundamento e que so fruto de superstio e crendice (ele diz,
hbitos culturais). Apesar da grande empolgao de Kingsley em defender a formao inicitica de Parmnides, o
fato histrico muito simples: a religio mistrica era o padro na antiguidade e no a exceo. Ento, ao histrico
da filosofia no interessa o Parmnides xamnico ou que faz katabasis, isto era comum e est registrado na cultura
anterior a Parmnides. O que interessa ao historiador da filosofia esta novidade chamada filosofia, que em
Parmnides se manifesta de forma embrional. E pouco importa se a matriz religiosa ou inicitica, o fato que a
45
proveitoso porque neste trecho no se encontra nenhuma palavra explcita ou situao ou imagem
que fale da mente. Assim, podemos pular esta parte e ir diretamente fala da deusa, com a qual
Parmnides muda completamente o tom da linguagem; a partir do ponto do poema onde ela inicia
sua fala, a linguagem perde o seu imaginrio mtico e a indeterminao potica para se tornar uma
linguagem tcnica e precisa, apesar das grandes dificuldades com as quais Parmnides se depara
para expressar novas noes, como em breve veremos.
3.2.1.2 O programa, DK B 1.28-30.
Ento, a deusa recebe o kouros e, depois de algumas palavras de conforto, ela diz:
, .
Ela diz que ele precisa aprender ()44 tudo: de um lado o firme da verdade
filosofia representa uma 'mutao gentica', para usar metaforicamente uma linguagem moderna, que define una
autonomia em relao matriz. Ora, tal 'mutao gentica' se revelou interessante e por isto que cresceu
autonomamente e sobreviveu at hoje; a esta criatura 'geneticamente modificada' que se interessa o historiador
da filosofia; e, para a histria da filosofia, sons e imagens so interessantes na medida em que ampliam ou
aprofundam a compreenso da filosofia e no quando evocam esoterismos mistricos, pois estes interessam
antropologia e cincias afins (at mesmo lingustica, na sua parte antropolgica, como a etno-lingustica; veja-se,
por exemplo as referncias a Parmnides em Costa, 2008). Ento, eu concordo que h um Parmnides que no
queramos ver, mas com a ressalva de que este querer eventualmente consciente, pois, este outro lado (que no
queramos conhecer) no necessariamente interessante. Por exemplo, o livro In the dark places of wisdom, do j
citado Kingsley (1999), faz uma hiptese a respeito da biografia de Parmnides, aquela de ele ser um iniciado;
hiptese vlida, mas no nova, como Cornelli sabe perfeitamente, por ser um estudioso do pitagorismo (veja-se o
seu excelente In search of Pythagoreanism, de 2013 e a crtica a Kingsley nas pginas 46-49). Mas esta hiptese,
ao qual o inteiro livro dedicado, no acrescenta um iota compreenso de sua filosofia, pois esta no est 'nos
lugares obscuros da sabedoria', mas na luz meridiana de sua ontologia, sua lgica e na sua problemtica cosmologia,
suscitando at hoje debates, estes sim, extraordinrios entre os filsofos e cientistas contemporneos no mundo
inteiro. 44Muitas so as tradues dos estudiosos: Albertelli (1939, p. 119) che tu impari; Pasquinelli (1958, p. 227): imparare;
Guthrie (1965, p. 9) to learn; Capizzi (1975, p. 8) esplorare; Barnes (1982, p. 122): ascertain; O'Brien (1987, p. 7)
hear; Marques (1990, p. 114), Santoro (2011, p. 85): que te instruas; Reale (1991, p. 89): che tu apprenda; Conche
(2004, p. 43) que tu sois instruit; Robbiano (2006, p. 213): to find out; Coxon (2009, p.52) be informed;
46
, e, de outro lado, as opinies dos mortais, nas quais no h f verdadeira. Deixei duas
palavras em grego porque precisamos olhar para elas mais de perto. Mas, antes de tudo, precisamos
esclarecer o sentido geral da passagem. Parmnides expe aqui o programa do assunto que ele
desenvolver nos prximos versos, algo que podemos considerar como um ndice, um dos vrios
elementos meta-discursivos do poema45 . Ele diz que seu poema tratar de duas coisas, uma
relacionada com a verdade (vamos aceitar assim, por enquanto) e outra com as opinies dos
mortais. Ademais, o kouros precisa aprender como todas as coisas deveriam ser quando seguem as
aparncias (DK 1.31-2)46. O programa anunciado ser cumprido em duas partes, chamadas parte
da verdade, fragmentos DK 2 a 8, e a da opinio, fragmentos DK 9 a 19.
Agora podemos voltar para o verso 1.29: . Todos os
estudiosos entendem este verso metaforicamente e o traduzem segundo o sentido mais comum de
cada palavra, deixando que a imaginao do leitor se ponha em ao: o corao imvel da verdade
bem redonda. Todas as tradues vo nesta direo, embora com diferenas de estilo e de opo
das variantes trazidas pelos doxgrafos47 , e no se afastam do sentido metafrico. Apesar da
imagem muito forte de um corao da verdade bem redonda que capturou a sensibilidade de
muitos estudiosos, h muitas razes para tomar estas palavras no como metfora mas como uma
45Veja-se a respeito o excelente artigo de Livio Rossetti, La structure du pome de Parmnide (2010). 46Estes versos controversos, desde sua traduo at a interpretao, no so assunto desta investigao. 47O termo , transmitido por Simplicius, escolhido por Diels, mas muitos autores preferem uma das duas
outras variantes que temos: , de Sexto Emprico e , trazido por Proclo. O termo tem
uma variante, , em Plutarco. Recentemente, Kurfess leva adiante uma interessante questo interpretativa;
h, na poesia arcaica, uma tendncia repetio que, no caso de Parmnides foi subestimada, de forma que os trs
adjetivos no so alternativos (variantes) de um mesmo verso, mas devem pertencer a trs versos diferentes,
implicando a introduo de mais dois fragmentos: What are commonly regarded as conflicting variant readings
of the opening of the poem are actually, so I claim, quotations from different passages of the poem, and all three
adjectives, , and even , preserve Parmenides original wording. (Kurfess, 2014a)
47
linguagem tcnica precisa. Estudei esses versos em detalhes em trabalho precedente 48 e aqui
somente reporto algumas concluses. A primeira razo a levar em conta , como j dissemos, a
mudana do tom potico, sugestivo e mtico, na primeira parte do proemio, linguagem precisa da
deusa no resto do poema49 , de forma que o 'corao imvel da verdade bem redonda' uma
linguagem tcnica e no uma metfora, pois faz parte da fala da deusa e no da descrio previa da
viagem do kouros. Naturalmente, neste caso surge o problema de entender estas palavras em
sentido tcnico, pois, de fato, o que poderia significar um verso to colorido?
Vamos comear rejeitando as razes da interpretao padro. Um 'corao imvel' no uma
boa metfora, porque o corao de fato no pode parar nunca, pois um corao imvel um corao
morto. A palavra para 'corao' , que tem uma longa histria desde Homero at os poetas
lricos, nunca foi usado como metfora 50 . A palavra para verdade, (na forma genitiva
) no pode ser entendida como uma noo abstrata e ideal, porque essa acepo comear
somente com Plato e se completar provavelmente somente com Agostinho51 ; no tempo de
Parmnides ela deve ser entendida no sentido arcaico concreto de 'coisa verdadeira'52 . A bela
48Galgano, 2012. 49 Rossetti (2010, p. 202): En annonant les deux types de savoir, la desse entre dans le rle du sophos et du
didaskalos, cependant que le pote Parmnide abandonne celui du chanteur qui cherche enchanter et
suggestionner son auditoire pour celui de lintellectuel qui a appris et sait des choses retentissantes et qui est capable
den rendre compte. 50Sullivan, 1996. Numa passagem desse artigo (p. 17), a autora sugere citando Il. X 93, onde Agamemnon muito
preocupado diz meu no est firme () que o 'no firme' poderia fazer referncia batida do
corao, talvez irregular, caracterizando um sentido mais fsico. Eu penso que muito mais simples aceitar o sentido
psicolgico por vrios motivos: 1) uma noo de variao da regularidade da batida do corao em associao com
as preocupaes de Agamemnon me parece um conceito sofisticado demais para essas poca; 2) o 'no firme' faz
referncia clar
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