onodera, iwi mina. estado e violência - um estudo sobre o massacre do carandiru
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IWI MINA ONODERA
Estado e violncia: um estudo sobre o massacre do Carandiru
HISTRIA SOCIAL
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
SO PAULO 2007
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IWI MINA ONODERA
Estado e violncia: um estudo sobre o massacre do Carandiru
HISTRIA SOCIAL PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de MESTRE em Histria Social, sob a orientao da Profa., Doutora Vera Lcia Vieira.
SO PAULO 2007
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer em primeiro lugar ao grande incentivo da professora
Dra. Vera Lcia Vieira, que me acolheu, ajudou e deu foras para que esse
trabalho fosse feito da melhor maneira possvel, o meu muitssimo obrigada.
Minha me Irene e irm Maili que sempre estiveram ao meu lado nas horas
mais complicadas.
Professoras Yvone Dias e Cida Rago pelas timas e pertinentes
colaboraes na banca de qualificao.
Andressa Villar pela pacincia nas longas e duradouras discusses terico-
metodolgicas que fazamos horas a fio.
Ika e Miu miu pelo incentivo dirio.
Guilherme Ravache pela reviso rpida e eficiente.
Aos amigos Alessandra, Richard, Rommel, Adriana, Fernanda, Cinthia,
Simone, Juliana, Ane, Rosana Rodini, Mariana Sodr, Tatiana Calvente por tudo.
E, finalmente, a CAPES, que sem ela no seria possvel finalizar este
trabalho.
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RESUMO
Este trabalho analisa o Massacre do Carandiru e o contexto histrico que envolve
o episdio. Por meio das evidncias aqui apontadas mostramos a problemtica do
Estado autocrtico brasileiro e de seu aparato repressivo, que atua na coao das
liberdades civis e do indivduo pelo uso da Polcia Militar, dos rgo de Governo e
sua burocracia, ou da prpria excluso social. Contextualizamos o episdio ao
mostrar o histrico da violncia institucional brasileira, as inoperantes Leis Penais,
a problemtica do Estado de Direito, a falncia do sistema prisional e as
freqentes denncias das organizaes de direitos humanos.
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ABSTRACT
This project analyses the Carandiru Massacre and the historical context that
involves the episode. Through evidences here pointed we show the problematic of
the autocratical brazilian State and its repressive aparattus, which actuates in the
coercion of civil and individual freedom by the use of Military Police, Government
organs and its bureaucracy, or by its own social exclusion. We put in context the
episode by showing the historical of the brazilian institucional violence, the
inoperable penal laws, the problematic of the State of Rights, the failure of the
prison sytem and the frequent exposures of the organizations of Human Rights.
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SUMRIO
INTRODUO 09 CAPTULO 01 ORDEM EXCLUDENTE
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1.1. EM NOME DA LEI 28 1.2. A FACE BRUTAL DA AUTOCRACIA BURGUESA 32
CAPTULO 02 OS QUE ESTO SOB CUSTDIA
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2.1. ORDENAO INTERNA DO PRESDIO CARANDIRU 77 2.2. PAVILHES E SUAS DIVISES 86 2.3. VISITAS 90 2.4. DIREITOS LEGAIS DO PRESO 91 CAPTULO 03 INQURITOS E INVESTIGAES
95
3.1. JULGAMENTO CORONEL UBIRATAN GUIMARES 106 3.3. AS INDENIZAES 109 3.4. FAMLIAS (15 ANOS DEPOIS) 116 CONSIDERAES FINAIS 118 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 121 ANEXOS
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SIGLAS
ABIN Agncia Brasileira de Inteligncia AI Ato Institucional BNH Banco Nacional de Habitao CDIH Comisso Interamericana de Direitos
HumanosCEI Comisso Especial de InquritoCEJIL Centro pela Justia e o Direito
InternacionalCOE Comando de Operaes Especiais CPI Comisso Parlamentar de Inqurito Copom Centro de Operaes da Polcia Militar DSN Doutrina de Segurana Nacional ESG Escola Superior de Guerra EUA Estados Unidos da Amrica FIESP Federao das Indstrias do Estado de
So Paulo GATE Grupamento de Aes Tticas
Especiais IML Instituto Mdico Legal JK Juscelino Kubitschek LEP Lei de Execuo Penal OBAN Operao Bandeirantes OEA Organizao dos Estados Americanos ONU Organizao das Naes Unidas OEA Organizao dos Estados Americanos OPS Office of Public Safety PCC Primeiro Comando da Capital PDS Partido Democrtico Social PM Polcia Militar PMDB Partido do Movimento Democrtico
Brasileiro PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PNB Produto Nacional Bruto PT Partido dos Trabalhadores ROTA Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar SNI Sistema Nacional de Informaes USP Universidade de So Paulo
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INTRODUO
Segurana para quem? Cientistas sociais e membros dos rgos de direitos humanos tentam, a todo o momento, responder tal questionamento em
vo, e no chegam a concluso alguma. A dificuldade na pergunta est,
principalmente, porque na nossa histria, h muito, no sabemos mais quem nos
protege ou quem nos agride. No precisamos ir muito longe, quando pensamos
que desde a nossa colonizao os supostos colonizadores foram os principais
usurpadores de toda a riqueza de nossas terras.
Grande parte da Amrica Latina prova de tal afirmao, cuja histria de
extermnios perpassa pelo que se denomina processo de colonizao. Nosso
pas, especificamente, tambm traz na sua histria um marco de violncia desde
a chegada dos colonizadores portugueses at os dias de hoje. Nosso perodo
colonial marcado pelos massacres aos indgenas e negros, passando pelo
reinado e perodo imperial, pelos perodos militares e ditatoriais. A nossa histria
foi repleta de muita luta, seja desde a abolio da escravatura, proclamao da
repblica at atualmente com nossas lutas por um Estado mais democrtico.
De quem fugia a grande massa de trabalhadores e contestadores no
regime militar? Sim, deles mesmos, daqueles que teoricamente deveriam zelar
pela nossa segurana.
O episdio do dia 02 de Outubro de 1992, no qual 111 presos da Casa de
Deteno Flamnio Fvero, mais conhecida como Carandiru, foram mortos em
seu interior no s reflexo da falta de organizao de uma sociedade a beira de
um caos, como tambm da problemtica da Polcia Militar e do Estado na
segurana de seus cidados. Um conjunto de fatores, que aconteceu nesse dia,
analisados nesta dissertao, leva a crer que no foi um fator singular e factual,
mas sim uma exploso de acontecimentos e de problemticas, muitas das quais
j vinham sendo denunciadas e que culminaram no fatdico dia.
Vivenciava-se h pouco tempo um regime identificado como democrtico,
j que a ltima ditadura militar acabara poucos anos antes e os ecos deste regime
ainda se faziam presentes tanto nas aes policiais quanto na estrutura das
prises brasileiras, controladas por agentes penitencirios despreparados e por
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um sistema judicirio moroso e incompetente para lidar com o novo regime,
conforme os preceitos constitucionais definidos na Carta de 19881.
A crise do capitalismo aconteceu nos anos 80 e 90, ampliou, em muito, a
populao desempregada e a depauperao salarial se acentuava, com a
inflao, que contribua para ampliar ainda mais a j brutal concentrao de
renda. As grandes metrpoles do pas tornaram-se os locais onde tais problemas
apareciam com maior intensidade e a falta de preparo do poder pblico para
atender as demandas e necessidades sociais, espelhava a real funo do Estado
junto sociedade: atender aos que tinham acesso a este poder e controlar os que
demandavam, caracterizando qualquer contraveno como um atentado ordem
e segurana.
Neste contexto, a superlotao das prises se amplia, pois passam a ser
encarcerados pelo Estado quaisquer indivduos suspeitos de terem cometido atos
enquadrados como contraveno, desde os mais banais at os que tivessem
resultado em mortes. As prises consolidam-se assim como espaos onde
convivem pessoas j julgadas e condenadas, com pessoas aprisionadas por
suspeio de alguma contraveno simples, ou mesmo sem culpa formalizada.
O massacre do Carandiru um acontecimento que demonstra o impasse
no processo de institucionalizao democrtica em curso desde o trmino da
ditadura militar, uma vez que a efetividade do Estado Democrtico de Direito
depende, em boa parte, do grau de controle judicial sobre a atividade dos agentes
pblicos e na capacidade de responsabiliz-los por crimes praticados ou danos
injustos causados a terceiros, mas como se discorre e se demonstra neste
trabalho, no isso que ocorre.
No foi um acontecimento singular, pois diversos presos j vinham
entrando em rebelio, mas o que chamou a ateno na escolha do tema, foi o
choque e a comoo que este episdio especificamente causou. O Massacre do
1 A Carta de 1988 inova ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil fosse signatrio. Aps a carta, importantes tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil, dentre eles: a) a Conveno Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; b) a Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos Cruis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989; c) a Conveno sobre os Direitos da Criana, em 24 de setembro de 1990; d) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos, em 24 de janeiro de 1992; e) o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; f) a Conveno Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; g) a Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995.
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Carandiru ficou famoso pela quantidade de presos mortos de uma vez e foi a
primeira vez que realmente a sociedade e os rgos institucionais vislumbraram o
que acontecia dentro das nossas prises brasileiras. E os nmeros
impressionaram. A Casa de Deteno abrigava no total 7.257 presos, s no
Pavilho 09 havia aproximadamente 2.069, o nmero oficial de mortos foi 111.
Este massacre, do ponto de vista das investigaes levadas a cabo pela
jurisprudncia vigente no pas, tem seus episdios relatados em um processo que
possui 38 volumes e cujo desfecho se resumiu na condenao, por 632 anos, do
coronel Ubiratan Guimares, com direito a cumprimento em regime de liberdade,
por ser ru primrio.
Neste processo l-se claramente que, de um lado estava uma tropa
armada guarnecida de metralhadoras, fuzis, escudos e coletes prova de balas e
com cachorros enraivecidos, do outro, estavam detentos armados de estiletes,
paus e ferros2. No total, invadiram o Carandiru 325 homens, 25 cavalos e trs
ces. Os "autos do processo" revelam que a operao desobedeceu estratgia3
criada para a ao policial naquela penitenciria, que se desenrolou sem
comando e terminou sob uma farsa guardada at hoje.
Apesar de terem decorrido mais de 15 anos do episdio, a atualidade dos
fatos concreta, visto que as caractersticas institucionais e culturais vigentes no
sistema carcerrio brasileiro, a violncia por parte da Polcia Militar, a deficincia
e ausncia do Estado na proteo e reeducao destas pessoas continuam at
hoje.
Quando analisamos tal estrutura no h como no pensar que o sistema
prisional nesta ordem autocrtica est fadado ao fracasso, conforme o afirma
Michel Foucault que tambm aborda a inverso de valores quando o indivduo
entra na priso. Desde 1820 se constata que a priso, longe de transformar os
criminosos em gente honesta serve apenas para fabricar novos criminosos ou
para afund-los ainda mais na criminalidade...4.
2 Segundo o Laudo do Instituto de Criminalstica foram encontrados 13 revlveres que no se pode comprovar se realmente pertenciam aos presos. 3 Elaborado em 1984, atualizado com o passar dos anos, o Plano Boreal estabelece, em mincias, a estratgia militar a ser aplicada em situaes de emergncia na penitenciria do Carandiru. As evidncias da existncia desse plano foram encontradas pelo jornalista Ricardo Stefanelli, em pesquisa feita nos processos, mas por mais que tenhamos buscado os arquivos dos processos, no os encontramos. No entanto, resolvemos manter a referncia para que esta possa ser uma indicao para que outras pessoas possam fazer pesquisas sobre o assunto. 4 Foucault, Michel. Vigiar e Punir. Petrpolis, Vozes, 1979, p 132.
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Torna-se assim imprescindvel estudar o interior da priso, ou seja, o seu
funcionamento interno e as suas leis prprias. No entanto, vivencia-se certa
dificuldade para proceder a anlise, pois a bibliografia relacionada priso
brasileira e a tudo que cerca esta temtica, carece de historiadores que voltem
sua ateno para o tema. O balano historiogrfico realizado pelas historiadoras
Vera Lucia Vieira e ngela Mendes de Almeida para o projeto sobre violncia
institucional, demonstra que a maior parte
dos autores (...) so socilogos 5 , antroplogos 6 , assistentes sociais, da rea de poltica e que, poucos so os historiadores7 que vm se dedicando a analisar esta questo atual na perspectiva acima citada8.
A problematizao social vem ao longo da nossa histria, quando
pensamos na particularidade da histria da violncia no Brasil, quando passamos
por processos ditatoriais, inclusive recentes, visto que vivenciamos um estado dito
democrtico a partir dos anos 80. Porm segundo o cientista poltico Paulo Srgio
Pinheiro, essa nova democracia, surgida do perodo ps-ditadura militar, acabou
sendo insuficiente para abarcar tantas demandas da sociedade.
A historiadora Regina Clia Pedroso recupera a histria do sistema
carcerrio no Brasil, e as relaes de poder da sociedade que deram origem a tal
instituio. A autora faz uma retrospectiva do sistema carcerrio brasileiro desde
o Primeiro Cdigo Penal Brasileiro em 1830, o que nos foi de grande valia quando
se fez necessrio historicizar o universo carcerrio.
Outro livro que nos foi de grande ajuda o do jornalista policial Percival de
Souza, A Priso, onde contada sua experincia na priso, decorrente de um
ciclo de reportagens realizado para o Jornal da Tarde. Tambm pudemos
observar o funcionamento interno desse local to desconhecido pela grande 5 Para as autoras, um extenso balano historiogrfico que situa as tendncias, abordagens, estudos de estado da arte relativos sociologia da conflitualidade encontramos nos textos de Jos Vicente Tavares dos Santos. Neste sentido ver, do autor, As conflitualidades como um problema sociolgico contemporneo. In: Revista Sociologias - Dossi "Conflitualidades". Porto Alegre, PPG-Sociologia do IFCH - UFRGS, Porto Alegre, ano 1, n. 1, janeiro-junho de 1999. 6 Dentre os quais se destaca Luis Eduardo Soares por suas anlises e experincias institucionais. 7 PEDROSO, R. C. Os Signos da Opresso. Histria e Violncia nas Prises Brasileiras. So Paulo. Arquivo do Estado/IMESP. 2003. Violncia e Cidadania no Brasil. So Paulo: tica, 1999.8 - Projeto de Pesquisa intitulado Autocracia burguesa e violncia institucional em desenvolvimento pelas autoras. Projeto vinculado ao Centro de Estudos de Histria da Amrica Latina. PUC/SP (mimeo)
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maioria da populao no livro Mundo do Crime, de Jos Ricardo Ramalho, no
qual o autor relata o relacionamento dos presos e estuda, assim como ns, o
Carandiru, mas no o episdio especificamente e nem suas causas, o que
tambm nos diferencia, pois contextualizamos historicamente para podermos
compreender alguns dos motivos que desencadearam no episdio do dia 02 de
outubro.
O trabalho de reflexo em torno dos sujeitos sociais que participaram do
episdio do Carandiru nos levou a conhecer e entender um pouco o acontecido.
Assim, colhemos alguns testemunhos de pessoas que vivenciaram o perodo e
que participaram deste momento. A pesquisa junto s fontes e as hipteses
levantadas tanto pelo tema, como pelo prprio desenvolvimento da pesquisa,
levaram esses depoimentos, - compostos de entrevistas gravadas, conversas via
telefone, e at mesmo via e-mail -, a um papel de fundamental importncia. Os
depoimentos permitiram compreender como alguns sujeitos sociais
experimentaram e interpretam os acontecimentos, as situaes e os modos de
agir dos grupos aos quais pertenciam, j que esses testemunhos pessoais se
revestem ao mesmo tempo das problemticas vivenciadas no presente e no
passado. Assim, concordaremos com Jorge Eduardo Aceves Lozano,
considerando:
A evidncia oral uma fonte muito importante e, em vrios casos, a nica ou medular, mas que afinal s mais um dos meios e acervos de informao de que dispe o pesquisador para a construo da percepo, no tempo e no espao, da experincia humana, particularmente dos grupos sociais em que oralidade se mantm em vigncia.9
No entanto, em que pese a perspectiva de que a documentao oral
pressupe uma metodologia prpria, optamos por trabalhar essas evidncias
orais enquanto um tipo de documento, no conjunto de outros que nos forneam
informaes sobre determinado acontecimento.10
9 LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prtica e estilos de pesquisa na histria oral contempornea. Pg. 24 In: AMADO, J. (org.). Usos e abusos da histria oral. Rio de Janeiro, FGV: 1998. 10 Mesmo no utilizando as fontes orais como metodologia, conhecemos alguns autores que tratam da Histria Oral: Alessandro Portelli, Jorge Eduardo Lozano, Yara Aun Khoury, Thompson. Citaremos aqui uma pequena bibliografia sobre histria oral: Almeida, P. R. de e Khoury, Y. A. Histria Oral e Memrias. Entrevista com Alessandro Portelli. Histria & Perspectivas. Uberlndia: Edufu, 2001; Thompson, A. Aos cinqenta anos: uma perspectiva internacional da histria oral
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Com base nisso, entrevistamos personagens que estiveram envolvidos
direta ou indiretamente com o episdio, como o Coronel Ubiratan Guimares, a
Procuradora de Assistncia Judiciria Maria Helena Daneluzzi, que cuidou dos
processos contra o Estado de indenizaes das famlias dos presos mortos; o
agente penitencirio Esmael Martins, que estava na penitenciria no dia fatdico;
duas mes (Geralda Silva e Souza e Celina Silva) e uma irm (Celma de Oliveira)
de trs detentos mortos e um filho de um policial Alex Tobias.
Acreditamos que a utilizao destas fontes tambm importante na busca
e no trabalho de contextualizao, j que possvel ouvir, nas verses dos
envolvidos, suas lembranas sobre o que acontecia no pas no perodo em que
ocorreu o episdio.
Os artigos e matrias dos grandes jornais do pas e internacionais tambm
foram utilizados e analisados diferentemente. Jornais e revistas contribuem para a
formao de conceitos e para fixar determinados entendimentos sobre os
acontecimentos, agindo diretamente na institucionalizao social dos sentidos11.
Extramos artigos de jornais, principalmente do O Estado de S. Paulo e
Folha de S. Paulo, de outubro de 1992. Nestes jornais estampa-se a indignao
da populao com o acontecido e com a ausncia de informaes, de que se
ressentia tambm a imprensa. Tambm efetuamos pesquisas via internet o que
nos deu acesso a reportagens de 2001 poca do julgamento do Coronel
Ubiratan Guimares, que foi quem comandou a invaso ao presdio.
Alm da populao e da imprensa, diversos rgos governamentais e
instituies de direitos humanos lutavam contra a falta de informaes e, observa-
se que acusavam o governo pelos maus tratos sofridos pelos presos e familiares
no episdio do dia 02 de outubro, conforme o comprovam documentos e relatrios
levantados sobre o assunto. O relatrio Massacre do Carandiru: Chega de
Impunidade! realizado pela Comisso Organizadora de Acompanhamento para os
In: Ferreira, M. de M. et al (orgs). Histria Oral. Desafios para o sculo XXI. Rio de Janeiro: Fiocruz/FGV, 2000; Lozano, 1998, op. cit.; Portelli, A. A Filosofia e os fatos: Narrao, interpretao e significado nas memrias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro: 1996. 11 Vrios autores tm se debruado sobre a utilizao da imprensa enquanto fonte documental, concordando em geral que se trata de um discurso que expressa um poder e como tal, tem a ntida finalidade de criar uma realidade, quer que o ponto vista instaure o objeto (FIORIN, Jos Luiz. O Regime de 1964. Discurso e Ideologia. So Paulo, Atual: 1988, p.1.).
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Julgamentos do Caso do Carandiru12 , que foi obtido na Internet, denuncia o
massacre ocorrido na penitenciria.
A Comisso Teotnio Vilela13, que est sediada no Ncleo de Violncia da
USP, dispunha tambm de diversos materiais sobre o assunto. O relatrio n
34/00, de 13 de abril de 2000, da Comisso Interamericana de Direitos Humanos
contm um estudo sobre o Massacre feito pela Organizao dos Estados
Americanos, alm de cpias do Interrogatrio e Julgamento do Coronel Ubiratan
Guimares. Obtivemos a cpia do relatrio da Human Rights Watch 14 , que
contm, entre outras informaes, o laudo criminalstico do Instituto Criminalstico
de So Paulo, o resultado do laudo pericial feito pelo rgo e as recomendaes
da prpria instituio. Obtivemos a lista oficial dos presos mortos, e o Parecer
Mdico Legal do Departamento de Medicina Legal, tica Mdica e Medicina
Social e do Trabalho Instituto Oscar Freire15.
Como se pode depreender considerou-se que as informaes obtidas dos
documentos, estejam elas grafadas em textos analticos, verbalizadas por
protagonistas que vivenciaram ou presenciaram direta ou indiretamente aquele
momento histrico, ou relatadas em reportagens, expressam uma dada realidade
social.
A proposta analtica perseguida a de buscarmos objetivar a anlise
ontolgica acerca do ocorrido, isto , de investigar este massacre com a
preocupao de compreender elucidando as diversas conexes em seu interior e
em suas determinaes circunstanciais, e tambm o que revela sobre a dinmica
social em curso no pas e em particular a conotao que o Estado a adquire,
alm da finalidade que cumpre16.
Neste sentido, entendemos que o episdio Carandiru no se esgota em
si, dado que expe as contradies de uma ordenao social com caractersticas
12 MASSACRE DO CARANDIRU: CHEGA DE IMPUNIDADE. Brasil: [ca. 2001]. Disponvel em http://www.global.org.br/portugues/modules.php?name=News&file=article&sid=16. Acesso em: 24 jul. 2003. 13 Organizao no-governamental que atua na defesa dos Direitos Humanos, combatendo especificamente violaes cometidas em estabelecimentos de privao de liberdade de adultos e de adolescentes (como delegacias, presdios, penitencirias, unidades de internao de adolescentes e etc.) e por agentes do Estado encarregados do controle da violncia. 14 Fundada em 1978, a Human Rights Watch conduz investigaes sistemticas e regulares sobre os abusos contra os direitos humanos em mais de 70 pases. O relatrio segue anexado. 15 Em anexo 16 LUKCS, G. Pensamento Vivido, Santo Andr: Estudos e Edies Ad Hominem e Viosa: Editora UFV, 1999.
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particulares: a violncia, a excludncia, a funo social que o Estado vem
cumprindo, portanto, a forma particular de ser desta sociedade e que, neste
massacre expe sua essencialidade. A especificidade de tais caractersticas, que
se revelam neste episdio, que consideramos ser possvel resgatar, trabalhando
com este tema, no manuseio das informaes extradas destas fontes, aspectos
estes que s se revelam com o trabalho analtico da documentao.
O resultado desta anlise nos mostra uma realidade cujas relaes
societrias, particularmente as urbanas, revelam a fragmentao desumanizadora
prpria das vigentes nas sociedades capitalistas, a que acrescem as
particularidades do Brasil, com sua brutal concentrao de renda e uma dinmica
em que o Estado revela a autocracia burguesa, no qual predomina o uso privado
da coisa pblica.
Uma viso confusa mistura e alterna papis nas micro e macroinstncias de poder (in)visvel que estabelecem portas de acesso ao mundo social ou de excluso dele. Vive-se sob um estado de suspeio e de preveno, a fim de tornar (in)visvel aquilo que assusta, que incomoda, para a introjeo das separaes, da impotncia e da pequenez do homem.17
A anlise das conseqncias da excluso social tem sido uma constante
nos cientistas sociais e so raros os autores que efetuam uma crtica a este
conceito. Encontra-se uma exceo em Jos de Souza Martins que, crtico do
conceito de excluso social18, assim se pronuncia quando analisa esta dupla
sociedade:
uma sociedade dupla, como se fossem dois mundos que se excluem reciprocamente, embora parecidos na forma: em ambos podem ser encontrados as mesmas coisas, aparentemente as mesmas mercadorias, as mesmas idias
17 CMARA, Heleusa Figueira. Alm dos Muros e das Grades (discursos prisionais). So Paulo: EDUC, 2001, p. 42. 18 Martins denuncia que o reducionismo resultante do uso indiscriminado do termo leva a uma interpretao da realidade, segundo a qual a dinmica social parece empurrar as pessoas, os pobres, os fracos, para fora da sociedade, para fora de suas melhores e mais justas e corretas relaes sociais, privando-os dos direitos que do sentido a essas relaes. Quando, de fato, esse movimento as est empurrando para dentro, para a condio subalterna de reprodutores mecnicos do sistema econmico, reprodutores que no reivindicam nem protestam em face de privaes, injustias e carncias (MARTINS, J. de S. Excluso Social e a Nova Desigualdade. So Paulo: Paulus Editora: 1997, p-16-17)
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individualistas, a mesma competio. Mas as oportunidades so completamente desiguais. A nova desigualdade resulta do encerramento de uma longa era de possibilidades de ascenso social, que foi caracterstica do capitalismo at h poucos anos. (MARTINS, 1997:22).
De fato, a anlise da documentao e da leitura de livros revela como que
dois plos de uma mesma realidade: de um lado, os sujeitos sociais que, na
condio de subalternidade que engessa as possibilidades de ascenso social ou
usufruto da produo social e que, nesta condio gestam relaes sociais que
seguem uma ordenao prpria margem daquela oficialmente aceita e de outro,
a formal, legal e que se veicula pelo Estado.
Os primeiros, portanto, extra oficiais so considerados pela esfera oficial
como ilegais ou contraventores e, como tal, sofrem as intervenes do Estado
que atua por meio de suas vrias instncias, dentre as quais, as perpetradas pela
Polcia Militar, sendo nesta ordem penalizados. O resultado desta anlise resultou
em que a disposio da pesquisa se desse da seguinte maneira:
O Captulo 01 expressa a Ordem Excludente na banalizao da violncia,
presente no apenas nas aes diretas do aparato policial, mas tambm pela
quase indiferena social ante tais condies e pela anuncia da sociedade para
com tais arbitrariedades, exercida em nome da segurana dos cidados.
Aqui iremos demonstrar como so feitas as violaes, sejam elas das leis
e, portanto, dos direitos. Tratamos tambm das violaes feitas pela Polcia Militar
no que diz respeito aos direitos humanos da sociedade civil e da populao
encarcerada. Discorremos aqui a funo social que cumpre a Policia Militar
representao do Estado autocrtico -, pois o papel inicial dela seria o de
defender a populao e os cidados, no entanto, esta j no cumpre este dever,
pois, desde o perodo militar, passara a ser utilizada para reprimir massas e
manifestaes.
Descortina-se ainda o modus operandi desta polcia, situando sua
historicidade que ajuda na explicitao da anlise do Inqurito Policial Militar,
onde consta o nome de todos os policiais envolvidos no episdio do dia 02 de
Outubro de 1992 e as armas que estes empunhavam na poca. Uma
historicidade cujo marco, para fins deste trabalho, se encontra na articulao
entre a Polcia Militar com as Foras Armadas na Operao Limpeza, instaurada
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no governo do general Castelo Branco em 1964, cujos preceitos so a poltica de
Segurana Nacional.
A evidncia da violncia policial emerge da anlise principalmente porque
no estudo feito com a documentao, observa-se que a alegao policial de ter
agido em legtima defesa no se comprova.
Em So Paulo, na dcada de 90, vigorava a poltica de lei e ordem,
instaurada no comeo da dcada de 80, e que tinha como premissa principal a
extino da violncia e da criminalidade. A documentao demonstra que tal
finalidade no se cumpre, fadada ao fracasso a partir das premissas fixadas pelo
governo do que causaria a violncia e quem eram seus agentes.
Observa-se ainda uma contradio entre as premissas fixadas pelo Estado
e suas prprias aes, isto , em defesa da segurana social as autoridades
transgridem a prpria lei cuja a no transgresso dependeria a segurana. Ou
seja, em nome do guardio (a lei) amplia-se a insegurana e se cometem as
arbitrariedades. Violam-se as leis e com isso, amplia-se a violao aos direitos.
Ante estas evidncias, torna-se necessrio revelar a funo social que
cumpre a Polcia Militar nesta ordem excludente, j que muitas de suas aes,
conforme se pode resgatar das falas dos policiais em documentao de jornal,
revelam no a conscincia da proteo aos indivduos, mas sim o preconceito
contra uma grande parte da populao e a criminalizao das demandas sociais.
A Polcia, seja Civil ou Militar, embora teoricamente seja produto da
filosofia de Estado de Direito liberal, ao longo da histria do Brasil, na prtica vem
atuando, no para proteger os seus cidados, mas para ir contra eles. uma
polcia que costuma violar a cena dos crimes19, tornando-os inidneos, e isso no
foi diferente no episdio do dia 02 de Outubro de 1992. A identificao desse
modus operandis nos permite estabelecer uma relao com outras mortes
ocorridas nas mesmas circunstncias, nas quais eles estavam presentes, e isto
no se d apenas na atualidade. Ele advm de perodos anteriores, tendo se
aperfeioado no perodo da ditadura militar.
O trabalho conjunto da polcia com as Foras Armadas na Operao
Limpeza, instaurada no governo do general Castelo Branco em 1964, atravs da
poltica de Segurana Nacional resulta at os dias de hoje em que tal aprendizado
19 Princpios jurdicos dispostos no artigo 6, inc, I, combinado com o artigo 169 do C.P.P.
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incorporou-se definitivamente como aes rotineiras na identificao, acareao e
aprisionamento de indivduos considerados ou suspeitos de serem
contraventores. Assim, apesar do fim do perodo ditatorial propriamente dito,
alguns procedimentos ainda perduram como a tortura, o fuzilamento, as chacinas
e a mortes de pessoas sob custdia do Estado, que o caso deste episdio.
A proibio da tortura20 foi ratificada no Brasil na Conveno sobre Tortura
e outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes, de 198921,
no entanto, ela ainda ocorre, no s devido a formao do pas vindo desde o
colonialismo e perodo de escravido, mas tambm pela conivncia das
autoridades, visto que boa parte delas foi formada durante o perodo militar e
foram acostumadas com a impunidade e que ainda esto na ativa.
Atualmente, a tortura no tem a conotao poltico/ideolgica como na
poca da ditadura militar, revelando-se agora em sua forma mais crua, como
abusos dos agentes do Estado e corrupo de policiais, ou como represlias
usadas pelos agentes penitencirios, policiais e monitores das cadeias contra os
presos rebelados.
A deficincia e ausncia do Estado na proteo e reeducao dos cidados
encarcerados vem sendo objeto de denncias de organizaes nacionais e
internacionais voltadas para estas temticas e dentre estes adquirem visibilidade
as obras de Paulo Srgio Pinheiro, que coordena o Ncleo de Violncia da USP.
No entanto, sua abordagem caminha na identificao de que o problema da
violncia do Estado uma questo de incompetncia institucional, ou de falta de
verbas, ou de uma ao poltica mais enftica e planificada, no apenas para
20 Os quatro diplomas internacionais que probem a prtica de tortura podem ser identificados na Declarao Internacional dos Direitos do Homem (1948), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos (1966), na Conveno das Naes Unidas Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis (1984), Desumanos ou Degradantes e na Conveno Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985). 21 A Assemblia Geral das Naes Unidas, em sua XL Sesso, realizada em Nova York, adotou a 10 de dezembro de 1984, a Conveno Contra a tortura e outros Tratamentos ou penas Cruis, Desumanas ou Degradantes, em 23 de maio de 1989, o Congresso Nacional aprovou a referida Conveno por meio do Decreto Legislativo n 04, em 28 de setembro de 1989, a carta de Ratificao da Conveno foi depositada e a Conveno entrou em vigor para o Brasil em 28 de outubro de 1989, na forma de seu artigo 27, inciso 2. Em 6 de fevereiro de 1991, o governo brasileiro promulgou a Conveno Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes. Finalmente, em abril de 1997, o pas promulga a Lei 9.455 que define e tipifica a conduta delituosa da tortura. (BRASIL. Decreto n 40, de 15 de fevereiro de 1991. Conveno Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou penas Cruis. Declarao Universal de Direitos Humanos, Braslia, 1991)
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combater a violncia, mas tambm para resolver os problemas sociais que as
gestam.
Dois aspectos chamam a ateno nestes posicionamentos. De um lado, o
entendimento que o problema est na esfera do poltico e que, neste sentido,
basta uma ao poltica mais consistente para que tudo se resolva. Em outras
palavras, que estes fatos expressam a fragilidade das instituies democrticas
ainda em construo e que, portanto, as solues passam por alterar, no interior
da mesma ordem vigente, as polticas que vm sendo aplicadas.
Ora, conforme Jos Chasin, tais anlises, por estarem circunscritas ao
universo das polticas, denotam o ardil do politicismo. Pois, segundo ele,
politizar tomar e compreender a totalidade do real exclusivamente pela sua dimenso poltica e, ao limite mais pobre, apenas do seu lado poltico-institucional (...) Expulsa a economia da poltica ou, no mnimo, torna o processo econmico meramente paralelo ou derivado do andamento poltico, sem nunca consider-los em seus contnuos e indissolveis entrelaamentos reais, e jamais admitindo o carter ontologicamente fundante e matrizador do econmico em relao ao poltico.22
Politicismo que se evidencia nas anlises, mas que traduz, a nosso ver,
uma condio inerente especificidade de nossa formao social. Conforme
Vieira23, a governabilidade burguesa, reduzida em sua possibilidade de atuar com
autonomia e de cumprir sua funo de classe nesta particular forma de regime
liberal quanto ao atendimento s demandas sociais (imprescindveis ao prprio
desenvolvimento do capitalismo, sob pena de rompimento da sua prpria lgica),
reduz sua ao dimenso do poltico, enquanto a ordem econmica gerencia a
subordinao. Vieira afirma ainda que:
as polticas pblicas, fundadas na lgica da integrao da Amrica Latina aos pases hegemnicos, significam a permanncia dos vnculos sociais, polticos, econmicos, cientficos, culturais, diplomticos e militares na condio de subordinao. Nesta lgica, o Estado que, classicamente
22 CHASIN, J. Hasta Cuando? A Propsito das Eleies de Novembro In RAGO, A. F. O ardil do politicismo: do bonapartismo institucionalizao da autocracia burguesa in Revista Projeto Histria, O Golpe de 64: 40 anos depois. PUC/SP. Editora EDUC. n 29. Dezembro. 2004, p. 123. 23 VIEIRA, V. L. Educao liberal em estados autocrticos burgueses in Pro-Posies. vol I. n I. Maro. UNICAMP. Campinas. 2005.
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aparenta ser distinto das foras sociais que o engendram gesta polticas que no s no atendem s necessidades sociais, mas se contrapem a elas, atingindo, por vezes, at mesmo os segmentos da burguesia que lhe do sustentculo.24
Portanto, a complexidade dos problemas sociais vai alm de um governo
ausente e o questionamento se estaramos vivendo em um Estado de
segurana nacional ou insegurana nacional e qual o teor desse Estado, no
qual os problemas sociais so tomados apenas em suas dimenses polticas,
excluindo de suas outras dimenses societrias e particularmente de seus
condicionantes econmicos. Um Estado que, configurado em um capitalismo
atrpico, se coloca acima das relaes sociais no apenas enquanto exerce suas
funes privilegiando apenas alguns segmentos sociais e manifesta a
inviabilidade da incluso social da maior parte da populao e sequer cumpre seu
precpuo dever de cuidar do cidado encarcerado, nos revela sua face no
democrtica. Pois o indivduo, a partir do momento que est dentro de uma
penitenciria, cuja guarda do Estado, o dever do Estado seria o de zelar pela
integridade fsica do preso. O que o episdio do Carandiru espelha que no s
isto no acontece em termos de condies mnimas humanas do
encarceramento, como chega a elimin-lo.
No segundo captulo intitulado Os Que Esto sob Custdia trabalha-se
principalmente o indivduo encarcerado, tomado como sujeito social em uma dada
ordenao social que o imputou a tal condio. Buscamos recuperar a lgica
interna desta ordenao social a partir de estudos de caso que, tomados em sua
generidade, nos permitem associar esta condio de excludncia no interior da
prpria sociedade civil25. Baseado nisso, concordamos com Lukcs quando este
diz:
24 Idem ibidem 25 Para Carlos Nelson Coutinho, no contexto da luta contra a ditadura, sociedade civil era sinnimo de tudo que se contrapunha ao Estado ditatorial, o que era facilitado pelo fato de civil significar tambm, no Brasil, o contrrio de militar. Disso resultou uma leitura do conceito: o par conceitual sociedade civil / Estado, que forma em Gramsci uma unidade na diversidade, assumiu os traos de uma dicotomia radical. Nessa nova leitura, ao contrrio do que dito por Gramsci, tudo o que provinha da sociedade civil era visto de modo positivo, enquanto tudo o que dizia respeito ao Estado aparecia marcado com sinal fortemente negativo. Para Gramsci, a sociedade civil pertence ao momento da superestrutura: podem ser fixados (...) dois grandes planos superestruturais: o que pode ser chamado de sociedade civil, ou seja, o conjunto de organismos habitualmente ditos privados e o da sociedade poltica ou Estado, e ainda representa o momento ativo e positivo do desenvolvimento histrico(...) in RAMOS, Andressa M. V. A Liberdade
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(...) embora a essncia da histria consista em que nada se produz sem desgnio consciente, sem finalidade desejada, a compreenso da histria exige que se v mais longe. Por um lado, porque as muitas vontades individuais em ao na histria produzem, na maior parte das vezes, resultados muito diferentes dos resultados desejados, e que com muita freqncia se opem at aos resultados desejados, pelo que, por conseguinte, os seus mbeis so apenas de importncia secundria para o resultado do conjunto. 26
Esta abordagem nos permitiu analisar esta condio individual diretamente
vinculada ao papel do Estado na formao do penalizado. Um Estado que,
conforme afirma Marx em sua crtica neutralidade apregoada por Hegel, deveria
expressar o conjunto da sociedade, mas que, enquanto expresso de poder,
conforme ocorre no capitalismo, gesta leis cuja prtica social resulta na
construo do contraventor e na legalizao da excluso.
O limite da emancipao poltica manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre.27
Resgata-se assim aspectos da condio do indivduo encarcerado,
submetido a uma dupla excludncia28, ou seja, dentro e fora do presdio. Fora
porque esses indivduos so provenientes de uma realidade excludente,
desempregados, subempregados, cujas relaes sociais j se encontram
desestruturadas, particularmente considerando-se os padres vigentes em uma
sociedade que prima pela desigualdade. Dentro porque, quando a pessoa entra
Permitida. Contradies, Limites e Conquistas do Movimento pela Anistia: 1975-1980. 2002. 166 pgs. Dissertao (Mestrado em Histria Social). Pontifcia Universidade Catlica, So Paulo, p. 33. 26 LUKCS, Georg. Histria e Conscincia de Classe: Estudos da Dialtica Marxista. Porto: Publicaes Escorpio, 1974. Embora Luckcs tenha feito auto-crticas a este texto, reconhecendo sua debilidade em face sua produo posterior, na qual aprofunda suas reflexes sobre a ontologia, a citao se refere a uma dada noo da histria que nos auxilia a situar a dinmica social enquanto ao de indivduos. 27 MARX, Karl. A Questo Judaica. Rio de Janeiro: Editora Laemmert, 1969. 28 Michelle Perrot a este respeito diz As sociedades industriais, intensificando as relaes entre os grupos, multiplicam normas e interdies, sob muitos aspectos constrangedores e repressivos, elas codificam tudo, e ao mesmo tempo, fabricam delinquentes (PERROT, Michelle. Os Excludos da Histria: Operrios, Mulheres e Prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 237).
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no presdio, ainda no faz parte do grupo que j est estabelecido, com uma
ordenao social especfica, que vivencia normas e valores institudos no interior
da penitenciria, ou seja, as leis da priso29. O resgate da vida das pessoas encarceradas nas celas do Carandiru
naquele dia 02 de Outubro de 1992 nos possibilita revelar como este Estado atua
no sentido de levar as pessoas condio de suspeio. Esta anlise vem sendo
possvel graas ao acesso lista oficial dos mortos no massacre, que
comparamos com uma outra, no oficial obtida nos arquivos do Ncleo de
Violncias da USP. Alm de reportagens da poca dos principais veculos de
comunicao como os jornais Estado de So Paulo e Folha de S. Paulo e atravs
do banco de dados da Comisso Teotnio Vilela30.
J no terceiro captulo, o Embate Social, analisamos os inquritos e
investigaes decorrentes do Massacre do Carandiru. exatamente neste
captulo final que mostramos as conseqncias, que culminaram do episdio, e as
denncias feitas pelas organizaes de direitos humanos. Alm da problemtica
existente na juno de sujeitos sociais, tanto os que esto sob custdia, quanto a
Ordem Excludente, antagnicos que, ao se defrontarem, resultam no conflito em
que a fora de um abate-se sobre a fragilidade de outro.
29 O cientista social Jos Ricardo Ramalho em seu livro A Ordem pelo Avesso descreve: assim como a direo da cadeia tem suas regras de funcionamento e as impem com rigor os presos, estes tambm dispem de um conjunto prprio de regras que tem vigncia entre eles e so aplicveis por uns presos sobre os outros, somente. As regras da cadeia, assim como as leis de um pas, tm autoridades reconhecidas como tais as quais atribudo o poder de aplic-las, poder que paira acima das partes envolvidas. (RAMALHO, Jos Ricardo. Mundo do Crime: A Ordem pelo Avesso. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p 41). 30 Op. cit. Cf. nota 10.
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Captulo 01 - ORDEM EXCLUDENTE
Quando se analisa a violncia praticada pela polcia de So Paulo neste
Massacre do Carandiru e em outros episdios no h como se furtar a uma
reflexo sobre o Estado brasileiro e sobre a ordem liberal, que aqui vigora, o que
nos remete a um imenso arsenal de autores que vem se debruando sobre uma
evidncia que pem em cheque o reconhecimento de que vivenciamos sob a
lgica do liberalismo, ou se, conforme afirmava Marx j no sculo XIX, inerente
ordem liberal a violncia institucional.
Em suas crticas teoria do Estado, Marx embora concordasse com a
necessidade do Estado enquanto emanao da concretizao de potencialidades
humanas ope-se radicalmente concepo de neutralidade inerente ao
idealismo hegeliano. Em outros textos, nos quais se posiciona sobre a situao da
Alemanha, ou sobre o papel da burguesia na constituio dos Estados europeus,
tanto na Revoluo Francesa, quanto no processo de unificao alem, este autor
perpassa pelo tema da violncia como fator inerente constituio do Estado sob
o domnio da burguesia capitalista.
Hegel conceituava que em face do direito privado e do interesse particular,
da famlia e da sociedade civil, o Estado , por um lado, necessidade exterior e
poder mais alto; subordinam-lhe as leis e os interesses daqueles domnios, mas,
por outro lado, para eles fim imanente, tendo a sua fora na unidade do seu
ltimo fim universal e dos interesses particulares do indivduo; esta unidade
exprime-se em terem aqueles domnios deveres para com o Estado na medida
em que tambm tm direitos31.
Marx na Questo Judaica define "emancipao" enquanto "reduo do
mundo humano ao prprio homem", enquanto reduo dos fundamentos da
sociedade em geral s prprias relaes humanas, implicando, em particular, no
caso do Estado moderno, o traado dos limites da ao poltica, opondo-se assim
a qualquer forma de tirania. Este autor ao criticar a emancipao poltica do
Estado burgus, explicita os fundamentos ontolgicos da essncia humana e
segue a ontologia hegeliana do ser universal, pela qual o gnero humano consiste
31 HEGEL, G. W. F. Princpios da Filosofia de Direito. So Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 226.
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no conjunto dos predicados que definem, para cada indivduo, as potencialidades
essenciais do gnero humano que sua existncia pode realizar parcialmente.
Para ele, a necessidade da mediao poltica do Estado decorre da
estrutura universal da essncia genrica da vida humana. A poltica
ontologicamente deduzida da estrutura dialtica do ser universal. Marx acredita
que o Estado uma forma primeira cujo desenvolvimento histrico subjuga a
realizao da essncia universal da humanidade e a poltica o processo de
realizao desta essncia, emancipada da religio e dos entraves ao seu livre
desenvolvimento.
Hegel considera ainda que cada indivduo s participaria efetivamente da
sua essncia humana enquanto membro do Estado e s atravs dele seramos
livres, liberados do sistema de necessidades e dos interesses e igualados numa
mesma obedincia lei. Essa ltima, na medida em que todos so iguais perante
ela, j faz abstrao de todas as diferenas, de classe, de profisso, de interesse
particular, de riqueza, de raa etc., abolindo todo privilgio social ou individual.
Assim diante da prpria essncia comum e universal do homem interpelando os
indivduos enquanto seres de razo dotados de liberdade e de responsabilidade
pelos seus atos, a partir, da vontade universal encarnada pelo Estado, seu
guardio. Conforme Furtado, analisando a crtica de Marx a Hegel,
Diante do Estado, situados na mira do seu ponto de vista universal, os indivduos seriam o que so essencialmente: homens. Para Hegel os indivduos somente se reuniriam sua essncia universal ao cabo de um processo de negao da individualidade, de negao da vontade e interesse individuais pela submisso lei e finalmente pela eleio de representantes que, na verdade, no representam indivduos e sim classes particulares da sociedade junto ao Estado. Para Marx a necessidade da introduo de mediaes a fim de tornar poltica a atividade dos indivduos, a necessidade de estabelecer as condies sob as quais os indivduos podero participar da vida universal do Estado na qualidade de representantes das suas classes ou funcionrios pblicos - deriva da separao entre sociedade civil e Estado introduzida pela sociedade burguesa e, consequentemente, da separao histrica, e portanto contingente, entre a essncia humana universal e sua realizao efetiva.32
32 FURTADO, Jos Luiz. Notas sobre o Jovem Marx e o conceito Feuerbachiano de essncia genrica humana. 2004.
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Esta separao entre a necessidade humana universal e a impossibilidade
de sua realizao efetiva sob o domnio da burguesia que, nesta lgica,
determina a necessidade do exerccio da dominao seja sob a forma da coero,
ou do cooptao e ou da coao.
Para Max Weber existe a evidncia de que este Estado s se mantm pela
fora: o Estado contemporneo [] uma comunidade humana que, nos limites de
um territrio determinado [...] reivindica com sucesso por sua prpria conta o
monoplio da violncia fsica legtima33.
Esses preceitos weberianos aparecem nos estudos do socilogo
Dominique Monjardet, que segundo ele, as reivindicaes se sustentam de vrias
maneiras, ideolgicas, jurdicas, mas antes de tudo pragmticas: pela criao,
manuteno e comando de uma fora fsica suscetvel, por sua superioridade, de
impedir a qualquer outra pessoa o recurso violncia, ou de cont-lo nos quadros
(nvel, formas, objeto) que o prprio Estado autoriza. Essa fora pblica mais
comumente denominada polcia.34
Ora, na essencialidade, trata-se da organizao de um Estado, fundado na
ordem burguesa capitalista, que se pauta pela apropriao privada da produo
coletiva e a necessidade de manter esta apropriao leva necessidade do uso
da coero que cresce quanto maior for a concentrao desta apropriao, o que
nos remete imediatamente condio de desenvolvimento do capitalismo no
Brasil e, poderamos dizer, na Amrica Latina.
Em suas conformaes hiper-tardias35, nas quais emerge uma burguesia
que, por sua incompletude de classe, frgil e incapaz de realizar a revoluo
que possibilitaria at mesmo a implantao da ordem liberal; o exerccio da
dominao demanda o uso de aparatos repressivos no apenas quando esta se
respalda nos militares para promover renovaes necessrias ao prprio
capitalismo, mas tambm quando o regime institudo sob o espectro da
democracia, e no qual deveria imperar o Estado de Direito.
33 Sublinhado no texto, traduo K. Freund, em Le Savant et le Politique, Plon, Paris, 1959, p 113. Pode-se preferir a traduo americana de Gerth & Mills: A human community that [sucessfully] claims the monopoly of the legitimate use of physical force..., em From Max Weber, 1946 e 1958, p. 78. 34 MONJARDET, Dominique. O que faz a Polcia. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2003, p. 13. 35 Utilizamos tal conceito baseado no autor Jos Chasin. CHASIN, J. A Misria Brasileira. 1964 1994: Do golpe militar crise social. Santo Andr, Ad Hominem, 2000.
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Nasce, desse modo, uma categoria social cuja potncia auto-reprodutiva do capital extremamente restringida, uma burguesia que incapaz de exercer sua hegemonia e, com isso, incorporar e representar efetivamente os interesses das demais categorias sociais numa dinmica prpria36.
A avalanche de estudos sobre esta temtica e as inmeras denncias de
toda ordem sobre as violaes a este Estado de Direito s so empanadas pela
divulgao das violncias praticadas por pessoas que esta mesma ordem impede
que concretizem suas mais bsicas necessidades humanas, praticamente
jogando-as na ilegalidade. No entanto, conforme analisa Vieira37, a maior parte
destes estudos parte do pressuposto de que vigora o Estado de Direito, ou
reconhece que a democracia possvel e vivel ou mesmo que est em vigor,
bastando para isto melhorar a performance das autoridades institudas. De suas
constataes destaca-se tambm que os estudos tendem a analisar a violncia
enquanto atributo de pessoas comuns, muitos dos quais acabam por concluir,
mesmo que subjetivamente, que a violncia uma caracterstica do povo.
A nova democracia, surgida do perodo ps-ditadura militar, demonstrou a
inviabilidade da vigncia de um Estado de Direito, o que constatado pelo
cientista poltico Paulo Srgio Pinheiro.
...essas novas democracias que emergiram nas Amricas depois das transies dos regimes ditatoriais nas dcadas de 70 e 80 foram incapazes de garantir a paz para as populaes, visto que a criminalidade violenta, o crime organizado, as execues sumrias e a tortura sobreviveram ao fim do arbtrio poltico das ditaduras...38
36 RAGO, A. F. O ardil do politicismo: do bonapartismo institucionalizao da autocracia burguesa. Projeto Histria, O Golpe de 64: 40 anos depois. PUC-SP, Educ, n. 29, dezembro de 2004, p. 123. 37 VIEIRA, Vera Lucia, Criminalizao das lutas sociais em estados autocrticos burqueses, in: PROJETO HISTRIA, revista Programa de Ps-graduao em Histria da PUC/SP n 31 AMRICAS. So Paulo: EDUC, 2 de 2005 38 PINHEIRO, Paulo Srgio. So Paulo sem Medo: um diagnstico da violncia urbana. So Paulo, Garamond, 1998, p. 13.
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E que nesta tica concluem sobre fragilidade do exerccio da cidadania e a
necessidade de se incrementar a apropriao dos direitos humanos pela maioria
da populao39.
No entanto o maior problema que a autora encontra nestes estudos a
perspectiva de que mesmo quando denunciam o carter discriminatrio das leis
vigentes nestes pases, o que aumenta a marginalidade e amplia a violncia,
constituindo-se assim um ciclo vicioso de culpabilizao mtua: manuteno de
altos ndices de violncia coibidos por aparatos policiais e governamentais que
atuam com violncia de que resultam sociedades violentas 40 , ou quando
denunciam os abusos das autoridades, como a prtica de obter confisses
mediante tortura, ou a impunidade dos torturadores e quando constatam que isto
decorre de fatores vinculados ao prprio aparato coercitivo, ou seja, ao aparato
prisional, policial e o judicirio, ou quando associam tais prticas incapacidade
do estado democrtico erradicar os maus-tratos impostos a prisioneiros comuns;
restringem suas concluses necessidade do aperfeioamento do Estado liberal
democrtico41.
1.1. Em nome da lei
O conjunto de leis que regem o sistema de encarceramento no Brasil
teoricamente um dos mais modernos e avanados da atualidade. De fato,
tanto a Constituio Federal, quanto as estaduais de 1988 contm garantias
39 ABRAMOVAY, M. et alii. Juventude, Violncia e Vulnerabilidade Social na Amrica Latina: desafios para Polticas Pblicas. Braslia. UNESCO/BID. 2002, pp. 28 a 33 in: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127138por.pdf; 40 Constatando o aumento da violncia cotidiana no Brasil aps a dcada de 80, Mesquita Neto demonstra que a resposta ao aumento da criminalidade e da violncia foi o aumento do nmero de agentes empregados em servios pblicos e privados de segurana e na quantidade de recursos investidos em servios de segurana. Apesar de no existir ameaas ao Brasil, no perodo de 1985 a 1995 o nmero de policiais militares e civis e guardas municipais aumentou 45,4%. O nmero de policiais civis aumentou 126,8% de 1982 a 2000 s no Estado de So Paulo, que o mais populoso do pas. MESQUITA NETO, Paulo, Crime, violncia e incerteza poltica no Brasil. In: Cadernos Adenauer II, A violncia do cotidiano. n 1. SP. Fundao Konrad Adenauer, maro 2001, pg. 31/32. Tambm observam os autores o aumento dos gastos com militarizao no apenas das foras armadas, mas tambm da polcia civil. (COGGIOLA, Oswaldo. Governos Militares na Amrica latina, So Paulo. Editora Contexto. 2001, p 37-38). Existem inmeros estudos sobre a violncia nos outros pases latino-americanos. Mas apenas a ttulo de exemplo, podemos citar o artigo de Pierre Salama, La violncia lationamericana vista por los economistas. In: Revista Ciclos, en la histria, la economia y la sociedad, n 24, ao 2002, Faculdad de Cincias Econmicas Univ. Buenos Ayres, 2002. 41 VIEIRA, op.cit. 2005, p . 189.
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explcitas para proteo da populao encarcerada, dentre as quais se destaca
que " assegurado aos presos o respeito integridade fsica e moral"42. A
Constituio do Estado de So Paulo determina, por exemplo, que "a legislao
penitenciria estadual assegurar o respeito s regras mnimas da Organizao
das Naes Unidas para o tratamento de reclusos, a defesa tcnica nas infraes
disciplinares(...)".43
A Lei de Execuo Penal (LEP) adotada em 1984 reconhece os direitos
humanos dos presos e contm vrias provises ordenando tratamento
individualizado, protegendo os direitos substantivos e processuais dos presos e
garantindo assistncia mdica, jurdica, educacional, social, religiosa e material,
visando a "ressocializao das pessoas condenadas"44 e neste sentido sugere
que penas alternativas como fianas, servios comunitrios e suspenso
condicional sejam adotadas pelos juizes como forma de se atingir este objetivo.
Segundo a LEP, as responsabilidades judiciais para com os presos no
terminam com o pronunciamento da sentena. Ao contrrio, os juzes tm a
obrigao central de conduzir os presos pelos vrios estgios do sistema penal.
Dentre suas atribuies esto a avaliao e determinao sobre os pedidos de
transferncia dos presos para regimes menos restritivos (do regime fechado para
semi-aberto) ou simplesmente para outras prises; autorizando sadas
temporrias, livramento condicional, suspenso condicional e convertendo um tipo
de pena em outro.45
Alm da LEP, em 1994, definiu-se um conjunto de cuidados a serem
adotados para com os presos, que foram consubstanciados em um documento
denominado As Regras Mnimas para o Tratamento do Preso no Brasil 46 .
Consistindo-se de sessenta e cinco artigos, as regras abrangem tpicos tais como
classificao, alimentao, assistncia mdica, disciplina, contato dos presos
como o mundo exterior, educao, trabalho e direito ao voto baseado nas
42 Constituio de 1988, art. 5, sec. XLIX. Dando eco a essas preocupaes, o Cdigo Penal Brasileiro determina que aos presos "sero assegurados todos os direitos no atingidos pela sentena ou pela lei", e que impe s autoridades a obrigao de respeitar "a integridade fsica e moral dos [presos]". Cdigo Penal, art. 38. 43 Constituio do Estado de So Paulo, art. 143, sec. IV (sobre poltica prisional). 44 Mirabete, Execuo Penal, p. 34. Nesse primeiro artigo, a lei articula o objetivo de facilitar as "condies para a harmnica integrao social" dos presos. Lei de Execuo Penal, art. 1. 45 Lei de Execuo Penal, art. 66. 46 Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria, Resoluo No. 14, de 11 de novembro de 1994.
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medidas que definem as mesmas regras nos Estados Unidos e foram oficialmente
descritas como um "guia essencial para aqueles que militam na administrao de
prises".47
No entanto, o distanciamento entre o que prega a lei e a realidade que se comprova cotidianamente no Brasil demonstra no apenas a inoperncia destas
intencionalidades legais, mas seu contrrio, isto , a lei que de fato vigora a que
se expressa nas aes do Estado atravs de seu aparato repressivo e
jurisdicional o que expressa sua autocracia. Pois se, em tese existem leis que no
se cumprem, a prtica adotada a legalidade restringida vigente de fato. E o que
se constata a legalidade do abuso, da impunidade, da arbitrariedade, que atesta
a inviabilidade da institucionalidade dos preceitos liberais em nosso pas e sua
correlata democracia ou Estado de Direito. Ou melhor, o Estado de Direito a
manuteno da autocracia burguesa que detm todos os direitos e que sustenta
tal Estado coercitivo nos mesmos moldes que no perodo ditatorial. Mudaram os
nmeros e os nomes das leis, mudou-se o foco da represso, mas a lgica da
violncia institucional se mantm, a julgar pelo aparato repressivo. Soma-se a isto a questo scio-econmica do pas e, quando analisamos
as grandes cidades do pas, como So Paulo, temos, a partir dos anos 70, um
recrudescimento das desigualdades histricas acumuladas por quatro sculos de
um capitalismo hipertardio.
Habitantes de pequenas cidades rurais em todo o Brasil e at da Amrica
Latina migraram para as grandes cidades como So Paulo e nela encontraram
uma incipiente economia que vinha se implantando com a industrializao, e que,
no entanto, mantinha um parque industrial restringido e a venda de tal forma
concentrada que tornava impossvel a garantia de emprego, frustrando assim as
expectativas de esperana de uma vida melhor.
No entanto, essa esperana entrou em declnio a partir da crise dos anos
80, em que o capitalismo de hegemonia norte-americana atingiu em cheio a
economia do pas, principalmente So Paulo, a tentativa de desenvolver um
mercado interno foi se esboroando com uma inflao crescente, de origem nos
desequilbrios estruturais da sociedade e da economia.
47 Ministrio da Justia, Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria, Regras mnimas para o tratamento do preso no Brasil (Braslia: Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria, 1995), p. 9 (citao do ento Ministro da Justia Nelson Azevedo Jobim).
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Os anos 80 foram caracterizados, em mbito nacional, por uma queda
brutal nas taxas de investimentos industriais, particularmente nos anos de 1981-
83 at o fim da dcada. Semelhante s necessidades do perodo 1964-67,
quando o Regime Militar foi chamado para efetuar grandes reformas nas
condies de distribuio e circulao, houve um empenho em readequar as
condies gerais de economia na dcada de 80. Porm nos anos 60, tal faanha
foi obtida com os novos investimentos, o Banco Nacional de Habitao (BNH) e
consrcios creditcios que tiveram como resultado a elitizao do consumo e o
rebaixamento do salrio mnimo. Nos anos 80, essa nova elitizao j no foi
mais possvel e um novo surto de consumo no aconteceu.
Ao contrrio disso, as condies de crescimento da dvida externa e o
aumento da dvida pblica interna estabeleceram empecilhos no que tange ao
crescimento da economia. Com isso as taxas de inflao aumentaram e a
economia entrava em recesso.
A agro industrializao e a mecanizao do trabalho no campo empurraram
mais de quatro milhes de migrantes para foram das regies agrcolas nos anos
70, segundo dados do censo demogrfico de 1980. Desses migrantes, a maioria
teve como destino a capital paulista e as cidades da regio Sudeste.
Em 1984, a prefeitura de So Paulo, na gesto de Mrio Covas, se
encontrava em estado calamitoso. O oramento pblico era gasto com o
pagamento dos juros e amortizaes da dvida pblica, em detrimento de
investimentos na cidade. Foi ainda nesta poca que a Federao das Indstrias
do Estado de So Paulo (FIESP) anunciou a perda de 400 mil empregos
industriais na metrpole. No pode ser esquecido tambm que em So Paulo,
semelhante s grandes cidades, recrudesciam as desigualdades sociais
acumuladas ao longo dos sculos advindo desta forma particular de capitalismo.
Neste contexto, o crescimento experimentado pelas grandes cidades e a
falta de investimento no urbano resulta em que estas j no comportavam mais a
grande quantidade de pessoas que migravam e que no tinham como sobreviver,
pois faltava emprego, melhores condies de vida e, conseqentemente, a
violncia tendia a aumentar.
Neste cenrio, no de se estranhar que o Brasil, conforme constata a
Comisso Internacional dos Direitos Humanos, em todos os sentidos, o sistema
penal brasileiro enorme. O Brasil encarcera mais pessoas do que qualquer outro
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pas na Amrica Latina (sem dvida, possui um nmero de agentes penitencirios
maior que o nmero de presos em muitos pases); o sistema opera o maior
presdio individual da regio; at mesmo o nmero de fugitivos atinge milhares48.
Um sistema prisional onde presos so torturados em delegacias policiais,
so humilhados por suspeio, despidos, pendurados num pau de arara e
sujeitos a espancamentos, choques eltricos e afogamentos. Muitos detentos
ainda permaneceram por longos perodos nas mesmas delegacias onde sofreram
os abusos, prorrogando o contato com seus torturadores49.
Se no perodo ditatorial as mais variadas formas de tortura 50 foram
amplamente usadas contra os presos polticos para reprimir crimes de opinio, e
na inteno imediata de obter informaes, em nome da Segurana Nacional,
hoje esta prtica se mantm, mas agora em nome da ordem e, novamente, da
segurana social.
1.2. A face brutal da autocracia burguesa
Na nossa sociedade moderna a justificativa para muitas das aes feitas
pela Polcia Militar manter a ordem e controlar a desordem. No entanto suas
aes demonstram o quanto a manuteno do Estado Autocrtico corrobora com
a desordem, fazendo com que, conforme apontam os autores, os segmentos
sociais mais pobres sejam os mais visados pela polcia, resultando da que esses
as vejam muito mais como ameaa do que como segurana.
A historiadora Regina Clia Pedroso acredita que o Estado, alm de se
apresentar de diversas maneiras, produz um medo crnico que absorvido no
s pelos pobres como pelas vrias camadas sociais.
O medo deixa de ser uma reao especfica a situaes concretas e se transforma praticamente em um estado permanente da vida cotidiana, transformando-a. Esse medo interiorizado delimita o estado da existncia das pessoas, como nos disse a sociloga uruguaia Carina Perelli: O
48 Dados retirados do relatrio da HUMAN RIGHTS WATCH. Disponvel em:
http://www.dhnet.org.br/. 49 HUMAN, op. cit. P. 05. 50 Sobre as formas de tortura cf: ALVES, Mrcio Moreira. Torturas e torturados. Rio de Janeiro, 1966; e Brasil: Nunca Mais. So Paulo, Ed. Vozes, 1985.
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primeiro exlio , portanto, o que tem lugar no interior do corpo do indivduo51
Esse medo cotidiano enfrentado pelos sujeitos sociais acaba levando ao
estado de amedrontamento corriqueiro onde qualquer indivduo pode vir a ser o
inimigo. A categoria inimigo, do ponto de vista ideolgico, pode assim ser
construda: so os comunistas, anarquistas, operrio, negros, vagabundos,
desocupados o populacho. O indivduo classificado como inimigo ou excludo
social vem a ter a sua submisso utilizada de uma forma ou de outra pelo poder
atravs de um ordenamento social.52
A historiografia e as cincias sociais ainda discutem e estudam a polcia,
partindo o debate da prpria definio do que vem a ser a polcia observando-se
vrias vertentes sobre o tema. Para o socilogo norte-americano Egon Bittner53:
A polcia nada mais que um mecanismo de distribuio, na sociedade, de uma
fora justificada por uma situao (...), um instrumento de distribuio da fora
no negocivel, sendo seu papel: (...) tratar de todos os tipos de problemas
humanos quando sua soluo necessite ou possa necessitar do emprego da fora
e na medida em que isso ocorra -, no lugar e no momento em que tais
problemas surgem. isso que d homogeneidade a atividades to variadas
quanto conduzir o prefeito ao aeroporto, prender um bandido, retirar um bbado
de um bar, conter uma multido, cuidar de crianas perdidas, administrar
primeiros socorros e separar brigas de casa (...)54.
Com isso, este autor introduz idias de necessidade e de legitimidade, que
no tm a ver com o instrumento, embora admita que matria de julgamento em
relao ao seu uso social feito desse instrumento. Assim complementa que a
polcia no esse instrumento, portanto, que intervm quando force may have to
be used (ibid), mas sim quando lhe ordenado faz-lo, seja por uma instncia
que tem autoridade sobre ela ou pelo sistema de valores partilhados aqui e agora.
51 PEDROSO, Regina Clia. Os Signos da Opresso: Histria e Violncia nas Prises Brasileiras. So Paulo, Arquivo do Estado: 2003, p. 32. 52 Idem ibidem. 53 Socilogo, autor do livro Aspectos do trabalho policial. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2003. 54 BITTNER, Egon. Aspectos do trabalho policial. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2003.
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O socilogo Dominique Monjardet explica que a polcia encarregada,
portanto, de satisfazer ou de manter, a corrente substancial dos interesses
coletivos. Aqui se oscila entre aquilo que comum a toda a polcia, seus meios
de ao, e o que prprio de cada polcia, aquilo em nome do que ou em vista do
que esses mesmos meios de ao lhe so confiados, isto , as finalidades que a
sociedade lhe atribui.55 Para ele, a polcia cuja instituio se adapta demanda
social no necessariamente melhor ou mais eficaz que uma polcia que a
exclui; acaba virando uma outra polcia.
Seu objeto no muda, continua sendo instrumentalizar a coero nas relaes sociais; mas a coerso no tem o mesmo sentido. Monopolizada, ela instrumento de uma dominao que se autolegitima impondo a ordem. Atribuda a uma profisso, ela instrumento de represso de uma classe de indivduos designados como adversrios. Aplicada a si mesma por uma coletividade, ela instrumento de socializao a seus valores. Pode-se conceber uma sociedade sem autonomizao do poder (a sociedade contra o Estado; Clastres, 1974), podemos ento imaginar uma sociedade sem polcia profissional, mas no se pode pensar uma sociedade sem coeres. E por ela ser e na medida em que a expresso do trabalho da sociedade sobre si mesma que a polcia reinveste seu sentido original de organizao da sociedade.56
No Brasil, a questo que a polcia, criada como um meio para defender a
populao, apesar dos diversos estudos dos tericos sobre a sua funo, ela vem
fazendo o contrrio, ela prpria, no decorrer da sua histria, mata e violenta os
cidados, que supostamente deveria proteger.
Marcada pela onda sucessiva de abusos de poder e de fora este brao
armado do Estado semelhante ao de outros pases da Amrica Latina, conforme
se pode deduzir das afirmaes do jornalista argentino Martin Edwin Andersen:
a crise institucional e de credibilidade em que se encontram grande parte das foras policiais militares argentinas so reflexos de vrios anos da falta de militarizao desde que foram colocados a ordem acima da lei. Mesmo 17 anos depois do restabelecimento da democracia, esse passado entretanto muito presente. Uma leitura sobre a histria
55 MONJARDET, Op. cit., 2003, p. 21. 56 Idem ibidem.
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policial argentina traz algumas respostas para entender a atual situao. Em termos gerais, a ausncia de justia histrica e de militarizao criaram uma grande desconfiana na comunidade com relao polcia, sentimento este que se evidencia principalmente nos momentos em que mais se precisou da polcia. Entretanto, existe uma predisposio dos agentes da lei de utilizar uma fora maior do que a necessria bem caracterstica daquelas usadas nos processos militares (a destruio do inimigo), quando deveria ser o comportamento de uma polcia profissional, que se espera que controle uma situao de conflito usando menos fora bruta possvel. Nos tempos modernos, onde as teorias de polcia democrtica, por mais distintas que possam ser, falam da necessidade de dar ao policial de rua ferramentas necessrias para resolver os problemas, na Argentina, os policiais so tratados como soldados e a muitos deles nunca foram pedidas opinies sobre nenhum tema, nem receberam treinamento profissional, mesmo sabendo que em muitas das situaes, as decises ficariam a cargo desses policiais.57
No prprio site da Polcia Militar 58 , eles se auto-definem como uma
organizao fardada, organizada militarmente, subordinada ao Governador do
Estado, atravs da Secretaria da Segurana Pblica e do Comando Geral da
Corporao, e que presta seus servios dentro do rigoroso cumprimento do dever
legal59. Lendo sua apresentao no h como no associar as finalidades que
esta corporao se atribui, assim como o tom patritico de lutar por uma ptria
grande e feliz, contribuindo para a grandeza de So Paulo e do Brasil com os
discursos dos militares no perodo ditatorial, pois, conforme declaram:
um corpo militar que dispem de meios e ferramentas para coibir excesso no seio da tropa, fatos esses a que nenhuma organizao est imune, mas que, dada a reao draconiana aplicada aos infratores, inibe e desestimula atitudes anti-sociais. A maior prova disso a correta apresentao das estatsticas pela Corporao, incluindo os desvios de seu pessoal e as punies sofridas. A tropa da
57 ANDERSEN, Martin Edwin. La Polcia: Pasado, presente y propuestes para el futuro. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2002, p. 17. 58 A policia brasileira, desde o sculo XIX, j teve outras denominaes, como: Corpo de Municipais Permanentes, Corpo de Municipais Provisrios, Guarda de Polcia, Brigada Policial, Fora Policial e finalmente, Fora Pblica.
59 Dados retirados do site da Polcia Militar. Disponvel em: .
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Corporao tem contribudo com sua quota de sangue, perdendo pessoal em mortes e em casos de invalidez, enfrentado incompreenses e injustias, lutando contra faltas de efetivo e, por vezes, de meios, mas tem deixado sua marca positiva nos coraes dos paulistas que amam sua terra, que desejam um futuro melhor, e que comungam conosco do ideal de uma ptria grande e feliz. Contando com o imprescindvel apoio das autoridades constitudas, a quem sempre serviu e servir impessoalmente, a Polcia Militar do Estado de So Paulo pretende continuar sendo mais um dos pilares da grandeza de So Paulo e do Brasil, fiel ao lema que ostenta em seu braso: lealdade e constncia.60
Haja visto que os preceitos que a norteiam so os mesmos adotados na
poca da instaurao da ditadura, ou seja, maro de 1967, a Lei 317, mais
conhecida como Lei Orgnica da Polcia61, torna a Polcia Militar responsvel pelo
policiamento de rua, uniformizado e ostensivo, e a Polcia Civil no uniformizada
faria a rdio patrulha e cabia a ela a responsabilidade exclusiva pelas
investigaes criminais desde esta ltima formatao desses braos armados62.
No perodo ditatorial a Office of Public Safety (OPS) ajudava as polcias a
desenvolver verdadeiros arsenais de equipamento e experincia para combater
qualquer ameaa segurana interna do pas.
Segundo a OPS-Brasil, seu trabalho com essas unidades de polcia especial revelou que seus bons resultados em maio de 1967, durante uma manifestao estudantil no Rio Grande do Sul, quando esquadres policias antitumultos, treinados pela OPS, mostraram aos estudantes que [havia]...fora suficiente para controlar ajuntamentos de massa...[e que] as autoridades...no iriam tolerar grupos
60 Dados retirados do site da Polcia Militar. Disponvel em:
. 61 Antes do golpe militar de 1964, o comandante da polcia de cada Estado era escolhido pelo governador do Estado, e os chefes de polcia das cidades eram indicados pelos prefeitos eleitos, de modo que as prioridades municipais e estaduais tinham precedncia sobre as nacionais. A nova lei, porm, submetia as foras policias regionais e municipais de cada estado ao secretrio estadual de Segurana Pblica, que passou ento a ser indicado pelos militares, ainda que no necessariamente ele prprio fosse militar. (HUGGINS, Martha. Polcia e Poltica: relaes EUA/ Amrica Latina. So Paulo: Cortez Editora, 1998, p. 151). 62 Ocorreu uma rivalidade enorme entre as duas entidades policiais e enquanto aumentava a competio entre os rgos policiais e entre a polcia, os esquadres de morte comeavam a proliferar. (HUGGINS, Martha. Polcia e Poltica: relaes EUA/ Amrica Latina. So Paulo: Cortez Editora, 1998, p. 155).
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[civis] violentos, como observou com aprovao a OPS-Brasil, sem qualquer comentrio sobre a violncia empregada para levar a cabo essa poltica.63
Nessa mesma poca, comeou a atuao de uma nova unidade policial.
Dan Mitrione, consultor da OPS, ajudou a organizar e selecionar integrantes para
uma unidade de choque da Polcia Militar a ser composta por 40 homens de mais
de um metro e oitenta de altura para trabalhar principalmente nas favelas.
Mitrione foi denunciado pelo grupo brasileiro de direitos humanos Brasil Nunca
Mais64, por utilizar mendigos apanhados na rua como cobaias no ensino aos
policiais de novos mtodos de tortura para a obteno de informaes65 . A
autonomia dessa nova unidade policial chegou a ser comparada ao esquadro da
morte, pela sua prtica de atuao noturna e das ordens de atirar para matar.
O iderio que norteava ambas as corporaes, tanto a Civil quanto a
Militar, era a Doutrina de Segurana Nacional 66 cujo cerne, para o que nos
interessa destacar, era o combate ao inimigo interno e o zelo pela segurana
supostamente ameaada pelo comunismo67.
63 Idem. Ibidem., p. 156. 64 O policial norte-americano Dan Mitrione, posteriormente transferido para Montevidu, onde acabou sequestrado e morto, quando instrutor em Belo Horizonte, nos primeiros anos do Regime Militar, utilizou mendigos recolhidos nas ruas para adestrar a polcia local. Seviciados em salas de aula, aqueles pobres homens permitiam que os alunos aprendessem as vrias modalidades de criar, no preso, a suprema contradio entre o corpo e o esprito, atingindo-lhes os pontos vulnerveis, (ARNS, D. Paulo Evaristo. Brasil Nunca Mais. Petrpolis: Vozes, 1985: 32). 65 Idem ibidem. 66 A fundao da Escola Superior de Guerra de 1949, o funcionamento de 1950. (...) Essa expresso segurana nacional s apareceu depois da II Grande Guerra. At 1939 a gente falava em defesa nacional (...). (...) O ttulo da segurana nacional est inscrito, nas Constituies de 1934 e 1937, como uma seo destinada a legislar sobre a organizao, as atribuies as competncias das Foras Armadas. O art. 159, da primeira, criou o Conselho Superior de Segurana Nacional, composto pelo presidente, pelos ministros de Estado e os chefes do Estado- Maior do Exrcito e da Armada (Marinha), com atribuies que se relacionavam com a defesa e a segurana do pas, esse Conselho se manteve nas constituies futuras. Na Constituio de 1946, entra sob o ttulo das Foras Armadas, com isso acreditava-se que ela eminentemente poltica, e portanto, ideolgica; uma das modalidades que se reveste a poltica geral de um pas. Seu contedo no esttico, mas historicamente varivel. Um mesmo pas ter polticas de segurana nacional diferentes, conforme as etapas de seu desenvolvimento. REZNIK, Luis. Democracia e Segurana Nacional: a Polcia Poltica no ps-guerra. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. 67 A DSN englobava tambm a meta de criar condies para, atravs do fortalecimento do Estado, construir um modelo de desenvolvimento econmico extremamente favorvel entrada do capital estrangeiro, pretendendo implantar uma infra-estrutura capaz de transformar o pas em uma potncia econmica. Para que isto pudesse ocorrer, era necessrio manter sob controle o crescimento dos movimentos sociais organizados que, cada vez mais, ocupavam espaos no cenrio poltico, criando um clima poltico-social de grande instabilidade, ameaando os interesses da classe dominante nacional.
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A disseminao desta doutrina teve como responsvel a Escola Superior
de Guerra (ESG) que formulou a Doutrina de Segurana Nacional (DSN) e o
Desenvolvimento para treinar e ideologizar seus integrantes. Para os estudiosos
da DSN - onde se destaca o General Golbery de Couto e Silva - o
desenvolvimento econmico estava intrinsecamente ligado segurana interna e
externa68, e para mant-la usou de poderes irrestritos sobre qualquer que fosse o
organismo que causasse alguma ameaa ao governo.
Instalou-se desta maneira um aparato repressivo do governo, que contou
com uma rede de informao, que acabou subsidiando os governos para impor
suas decises revelia das demandas sociais. Conforme prega o Manual Bsico
ESG, os principais ameaadores da segurana interna eram os chamados
subversivos, que atuavam visando provocar um conflito de concepo marxista-
leninista, estimulado e, at mesmo, auxiliado do exterior, que utilizando
intensivamente operaes psicolgicas e todas as formas de subverso e
violncia, visa conquista do poder pelo controle progressivo da nao69.
Para fazer face qualquer movimento social que ameaasse a segurana
interna, a Doutrina de Segurana Nacional (DSN) traou medidas que visavam
evitar, impedir e eliminar as aes subversivas e garantir a segurana interna70,
ou seja, garantir a segurana interna usando qualquer meio. Esta doutrina com os
regimes ditatoriais latino-americanos foi acompanhada pelo treinamento, entre
1950-65 de mais de 30 mil oficiais do exrcito em bases de treinamento militares
e com os conselheiros norte-americanos, seja no Panam, nos EUA71, ou em
seus prprios pases.
Nos pases da Amrica Latina temia-se, antes de qualquer agressor que
podia vir de fora, o "inimigo interno", tipo "quinta coluna" do marxismo
internacional que devia ser combatida a fim de garantir o "desenvolvimento em
ambiente de segurana"72.
68 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposio no Brasil. Petrpolis: Ed. Vozes, 1984, pg.33.69 Conforme Manual Bsico da ESG, pg. 242. 70 Artigo 5 do AI-5. 71 CARVALHO, Hlio de Castro Contreiras de. Militares Confisses - Histrias Secretas do Brasil. MAUAD Consultoria e Planejamento Editorial Ltda. Rio de Janeiro 1998. 72 De acordo com as pesquisas feitas pelo projeto Brasil Nunca Mais, havia 7367 nomes de pessoas que sofreram processos polticos formados na Justia Militar, em acusaes formalizadas por subverso, 10 mil exilados, 4.877 cassados e aposentados compulsoriamente e cerca de 300 mortos e desaparecidos.
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No perodo ps-ditadura, tal aparato no foi desmontado e sequer a Polcia
Civil foi separada da Polcia Militar enquanto agentes encarregados de manter a
ordem e a segurana, no mais nacional, mas da sociedade. As polcias
incorporaram a Doutrina de Segurana Nacional transformando assim, os
cidados da sociedade civil em subversivos, ou seja, so ameaa ordem,
portanto, inimigos em potencial do Estado, at que provassem sua inocncia.
O conceito de violncia urbana levou a que o Estado acabasse por
entender que a polcia tivesse uma ao centralizada no Office Public Safety, o
que tambm se mostrou insuficiente.
Os processos de distenso73 que re-inserem a autocracia aps os perodos
ditatoriais bonapartistas74 ocorrem com muita semelhana entre os pases latino
americanos submetidos s ditaduras ou autoritarismos, pelas quais as lideranas
concordam em manter os preceitos ditatoriais em nome da segurana nacional,
da manuteno da ordem, dos compromissos internacionais assumidos
(pagamento das dvidas nos mesmos moldes preconizados) preceitos
constitucionais que garantiram impunidade aos torturadores, permitindo-lhes se
manterem em postos e cargos pblicos da Polcia Civil, entre outros.
Para Elzira Vilela, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, de So Paulo,
a tortura institucionalizada pela ditadura militar hoje s mudou seus alvos. O
modo de agir dos integrantes da ditadura, o arbtrio, a violncia que se dirigia
contra os opositores do regime passa a se voltar contra a populao mais pobre, 73 As distenses ditatoriais que se observam nos pases latino-americanos ocorrem todas na dcada de 80: Brasil movimento diretas j. 1982. Uruquai plebiscito de 1981 contra o continusmo da ditadura. Chile plebiscito de 1981 contra permanncia de Pinochet. Argentina militares cedem lugar ao presidente eleito Ral Alfonsn. in: VIEIRA, Op Cit, 2005. 74 Para o historiador Antnio Rago Filho: [...] a ditadura militar brasileira, como outras tantas latino-americanas, no teve uma derrota mortal. Aps 21 anos de sua existncia, o trnsito da forma bonapartista para a institucionalizao da autocracia burguesa em nosso pas se deu por um processo de auto-reforma. Isto significa dizer que mesmo no desconhecendo o desenvolvimento das presses populares, os combates travados para derrub-la, em especial com o surgimento das greves em fins da dcada de 70, das aes parlamentares e extraparlamentares, dos movimentos sociais, o trnsito no se operou num movimento que ps abaixo todas as vigas de sua sustentao: no se processou por um movimento revolucionrio. Ao contrrio, essa transio transada foi orquestrada dentro do prisma de uma transio lenta, gradual e segura, com o cronograma dos passos a serem efetivados dentro dos limites e controle dos gestores bonapartistas do capital atrfico. Uma das estratgias da autocracia burguesa, como j assinalado, foi a de deixar de modo intocvel a estrutura econmica, deixando aberto s oposies o campo da poltica, espao regulado e aberto para o aperfeioamento das instituies democrticas. O aprimoramento das formas polticas significou concretamente a manuteno da ditadura do grande capital, e na volta aos quartis nenhum acerto de contas que derrotasse o fardo pesado imposto ao prprio povo (RAGO FILHO, 2004, p.10).
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negra, analfabeta, que se concentra, sobretudo, nas favelas, cortios e periferias
das cidades. A ao dos agentes de segurana discriminatria e depende da
pessoa contra qual ela dirigida75, aponta.
A Operao Bandeirantes 76 (OBAN) foi responsvel pelo perodo de
torturas mais brutais da ditadura militar brasileira, segundo um relatrio da Anistia
Internacional de 1973 77 . Os noticirios comprovam que a violncia policial
continua e que os mesmos mtodos, abordagens e justific
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