sobre o perspectivismo amerindio e vice-versa
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DISSERTAO DE MESTRADOUNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
SOBRE O PERSPECTIVISMO AMERNDIOE VICE-VERSA
Rafael Rocha Pansica
FLORIANPOLIS
2008
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PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
SOBRE O PERSPECTIVISMO AMERNDIO E VICE-VERSA
Rafael Rocha Pansica
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina,
sob a orientao do Prof. Dr. Mrnio Teixeira-Pinto.
FLORIANPOLIS
2008
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AgradecimentosOs Outros: o melhor de mim sou Eles
Manoel de Barros(Livro sobre Nada, 1996)
Dvidas de vida
A vida no tem volta. No em tanto, ela no nos passa diante dos olhos, pra
gente correr atrs dela. Antes, ela h de vir-e-ver manca, desajeitada, um passo
fundo e outro diverso sim, atrs da gente... E um dia, obstinada como ela , a
vida vai desabar sobre ns, cheiinha do que no somos. Para quando, preciso,
apenas, que nos disponhamos, em cheio, sob sua mirada. Sim, o que a vida espera
da gente a abertura do caminho o alijamento de tudo o que obstrui este entre.
No meu caso, o clarear do trajeto, a aproximao do dia-Dia, passa pelo
convvio com uma poro nobre de gente que, perdoem-me o detalhe, amo sem
nenhum porm: mame Eleuza, ao papai Pedro, ao mano Dudu, titia Detinha,
mana Marcela e ao Carrilho agradeo. Em especial, agradeo quele que me
incutiu o gosto torto do caminho, pai de todos ns, inspirador silencioso destas
linhas e entrelinhas meu querido Seo Firmino! E quem diria, meu Deus? Ele
mesmo brasileiro. E ateu. Vov, fora na careca! Quero te ver de novo na
faculdade...
todos vocs, em agradecimento, dedico esta dissertao.
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Ddivas devidas
Um dom para o professor Mrnio Teixeira-Pinto que, com agitao e
inquietao peculiares, aceitou orientar um projeto, e um autor, sempre divagar,
quase pairando. Tal diferena, pode-se imaginar, fazia de nossos encontros
ocasies no destitudas de alguma graa. Melhor assim, afinal, no h
antropologia sem tal e qual. Agradeo-lhe pela confiana, pela liberdade e,
principalmente, pela antropologia, to provocativa quanto fundamental.
Um dom ao professor Oscar Calavia Sez que, seno no papel, na prtica foi
o co-orientador dessa dissertao: sempre acessvel e solcito, leu, comentou e
criticou um par de esboos desse trabalho auxlio decisivo para o rumo trilhado
por esta dissertao.
Um dom ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da UFSC e
aos professores que conheci, e com quem muito aprendi: Antonella Tassinari,
Filipe Verde, Miriam Grossi e Miriam Hartung. Em especial, agradeo ao xar
Menezes Bastos, a quem tenho em grande estima, sobretudo pela competncia e
elegncia com que lida com o ofcio, e os ossos, antropolgicos.
Um dom para Amrica e Carlos; Cadu; Camilinha Antonino (que sabe
quando aniversariar); Camilinha de Caux (pelo franco apoio); para a querida
Clarissa; para Elias, rica e Everton (parceiros ilustres da refinada arte do buteco);
para Edite; para Frank, Brasilino e Paulo (irmos de som); Jake, Marcelo, Marcos,
Martina (em campo, sempre Ahlert!), Maya, Rubinho Caixeta, Sandra Rbia, Tales,
Tiago, Val e para a querida Vivi Kraieski vocs fazem diferena.
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Um dom aos mestres Claude Lvi-Strauss, Eduardo Viveiros de Castro e
Tnia Stolze Lima, a quem devo muito mais que a matria deste trabalho, a saber, a
prpria antropologia como vocao.
Um dom ao CNPq, pelo apoio necessrio.
Um dom ao leitor, a quem ofereo este trabalho.
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Resumo
Organizada em trs partes, esta dissertao versa sobre o perspectivismo
amerndio. O primeiro captulo apresenta o argumento de Eduardo Viveiros de
Castro e Tnia Stolze Lima. No segundo captulo uma anlise etnograficamente
motivada do argumento empreendida para sustentar a apresentao, no ltimo
captulo, de algumas hipteses de trabalho referentes a um relacionalismo
estrutural amerndio.
Abstract
Organized in three parts, this dissertation deals with the so-called Amerindian
perspectivism. The first chapter presents the arguments by Eduardo Viveiros de
Castro and Tnia Stolze Lima. In the second chapter an ethnographically oriented
analysis of the arguments is undertaken in order to sustain the presentation, in the
last chapter, of a working hypotheses regarding a Amerindian structural
relationalism.
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Sumrio
Introduo _____________________________________________ 09
Captulo 1 A proposta do perspectivismo ____________________ 12
1) Tnia Stolze Lima e a proposta do perspectivismo yudj ............................ 12
2) Eduardo Viveiros de Castro e a proposta do perspectivismo amerndio ..... 20
3) Corpo e alma ................................................................................................. 28
Captulo 2 Anlises e questes _____________________________ 33
1) Multinaturalismo .......................................................................................... 33
1.1) Eu e Outros ............................................................................................. 36
1.2) Estatuto e status .................................................................................... 39
2) Ponto de vista ................................................................................................ 44
2.1) Histria perspectivista ......................................................................... 44
2.2) Variaes de uma estrutura intersubjetiva .......................................... 51
3) Dvidas e reparaes .................................................................................... 61
4) Prefcio ao Captulo 3 .................................................................................. 64
Captulo 3 Hipteses de trabalho __________________________ 68
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1) Entre pontos de vista ................................................................................... 68
1.1) Troca de perspectivas ........................................................................... 69
1.2) Sntese disjuntiva .................................................................................. 71
2) Entre relaes ................................................................................................. 77
2.1) Analogias genealgicas: o contnuo e o discreto ................................... 78
2.2) Do contnuo ao discreto ....................................................................... 92
2.3) Do discreto ao contnuo ..................................................................... 100
3) Relacionalismo estrutural amerndio ......................................................... 107
3.1) Relacionalismo: emparelhamento e transformao .......................... 111
Referncia Bibliogrfica __________________________________ 128
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Introduo
Na frente do perigo bugio bebe gemada.Periquitos conversam baixo
Manoel de Barros(O livro das ignoras, 1993)
Esta dissertao versa sobre o perspectivismo amerndio, ou seja, sobre a
proposta desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro e Tnia Stolze Lima acerca
do complexo etnogrfico referente ao modo como os ndios americanos, de modo
geral, concebem suas relaes com certos animais, plantas e espritos (que so
tomados como sujeitos plenos). Para tanto, organizamos nossos esforos em trs
movimentos.
No primeiro captulo nos dedicamos a apresentar o argumento perspectivista
proposto por Viveiros de Castro e Lima. O argumento ser exposto atravs das
consideraes que seus autores entretm acerca dos princpios do relativismo
cultural, da verso do animismo proposta por Descola, da noo de reciprocidade
de perspectivas anunciada por Lvi-Strauss e, finalmente, do material etnogrfico
amerndio referente relao entre corpo e alma.
No segundo captulo analisamos os conceitos de multinaturalismo e de
ponto de vista a partir de algumas das etnografias que serviram de fundamentao
para a proposta do perspectivismo amerndio. Ao invs de analisarmos as
etnografias que no fazem parte do conjunto daquelas que fundamentam o
argumento de Viveiros de Castro e Lima buscando, por exemplo, mostrar se as
teses do perspectivismo se aplicariam ou no a tais regies analisadas ,
trabalhamos com as prprias etnografias que serviram de base proposta no
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intuito, primeiro, de entender melhor o argumento (restituindo-o ao solo
etnogrfico), ao mesmo tempo em que nos servimos dessas etnografias para
empreender uma problematizao positiva de alguns pontos do perspectivismo.
Tal problematizao antecede e orienta a fundamentao inicial de uma
outra proposta analtica sobre o mesmo material etnogrfico. Assim, no captulo
trs apresentamos algumas hipteses referentes a uma relacionalismo estrutural
amerndio. Partindo da comparao entre uma srie de relaes intersubjetivas
(intra- ou inter-especficas) selecionadas em diferentes etnografias sobre os povos
amerndios, propomos abordar o perspectivismo amerndio atravs do conceito de
estrutura, antes que do conceito de ponto de vista. Esta proposta se constituir e se
apresentar a partir de uma interpretao etnograficamente motivada do par
conceitual lvi-straussiano do contnuo x discreto interpretao que acabar, em
alguma medida, por se afastar da leitura, inspirada na obra de Deleuze e Guattari,
do perspectivismo amerndio como sntese disjuntiva. Sublinhemos, aqui, com
fora, que no se trata, de maneira alguma, de oferecer respostas definitivas: nosso
intuito, ao propor estas hipteses, o de fomentar as discusses acerca do tema do
perspectivismo. Enfim, trata-se, do comeo ao fim, de um ensaio no sentido estrito
do termo: uma prosa que versa sobre um tema especfico, sem esgot-lo, reunido
idias e dados de outros autores, de forma a ressaltar certas articulaes ainda
pouco exploradas (Fausto 2002: 07).
Nota: As notas que consideramos mais importantes foram inseridas no corpo do
texto, e formatadas do presente modo. Esta maneira de apresentar o texto,
entremeado-o por adendos que facilitem nossa argumentao ou que nos paream
mais importantes para deix-los no p da pgina, nos pareceu interessante: ela
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segue a sugesto que foi levada cabo, por exemplo, por Viveiros de Castro em A
inconstncia da alma selvagem e outros ensaios de antropologia (2002). Ao
autor tambm devemos a inspirao do ttulo dessa dissertao. Sobre o
perspectivismo amerndio e vice-versa foi canibalizado de um dos subttulos do
texto apresentado por ele na XXV ANPOCS (Viveiros de Castro 2001). O subttulo
que nos referimos : Sobre Lvi-Strauss e vice-versa.
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Captulo 1 A proposta do perspectivismo
Mas o que est acontecendo no Brasil formidvel! Algo de praticamente indito! Quando conheci o Brasil o que era a
etnologia? Eram velhos eruditos de gabinete que se debruavam sobre a filologia tupi; era isso e nada mais. E
agora vemos uma das escolas mais brilhantes da atualidade.
Claude Lvi-Strauss (Entrevista, 1998)
1) Tnia Stolze Lima e a proposta do perspectivismo yudj
Em 1996, na mesma edio da revista Mana, so publicados os dois
primeiros estudos sobre o perspectivismo indgena. O primeiro artigo da edio
de Tnia Stolze Lima e se intitula O dois e seu mltiplo: reflexes sobre o
perspectivismo em uma cosmologia tupi1. O texto trata do regime de
funcionamento do conceito yudj de ponto de vista atravs da anlise etnogrfica
da caa dos porcos. A caa se revela um campo estratgico para o estudo do
perspectivismo, pois ela apresenta, justamente, um tipo agonstico de encontro
entre pontos de vista: de um lado o ponto de vista dos caadores yudj, de outro o
ponto de vista dos porcos:
Os porcos vivem em comunidades divididas em famlias e organizadas em torno de um chefe dotado de poder xamnico. Habitam aldeias subterrneas e so produtores de cauim, o qual, na perspectiva humana, nada mais que uma argila finssima, conforme me contou uma mulher que sonhou com uma aldeia de porcos em cujo porto ela e eu tomvamos banho, at que descobrimos que estvamos atoladas em uma lama da qual os porcos diziam ser, justamente, mandioca puba (Lima 1996: 22-23)2.
1 O segundo artigo de Eduardo Viveiros de Castro e intitula-se Os pronomes cosmolgicos e o perspectivismo amerndio. Trataremos dele adiante.
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A questo do ponto de vista dos porcos remontava o material etnogrfico ao
conceito de animismo que, naquele momento, havia sido recuperada por Philippe
Descola (1992) em um estudo comparativo de grande escopo sobre modos de
objetivao da natureza. O autor, ento, tomava o animismo como um desses
modos de objetivao modo presente nas sociedades que pensam as interaes
entre os humanos e as espcies naturais atravs do modelo das relaes sociais: as
sociedades amerndias, na medida em que apreendem o meio natural a partir da
utilizao de categorias elementares da vida social (em especial as categorias de
consanginidade e de afinidade), seriam sociedades animistas. Ponto importante, o
argumento de Descola considera que tal modo de objetivao implica, em alguma
medida, a atribuio de caractersticas humanas s espcies naturais o que
justificava a retomada do termo animismo.
Lima, no artigo em questo, no ancora sua anlise nesses termos. Os
projetos de Philippe Descola e de Tnia Stolze Lima so, de fato, diferentes:
enquanto Descola toma o material etnogrfico referente humanidade dos
animais como alvo de sua explicao (e como um ndice que lhe permitiria
classificar a sociedade no modo de objetivao anmico), Lima o apresenta como
um pressuposto investigativo da cincia social do observado (Lvi-Strauss 1967:
404), um dado nativo que se encontra disperso em diversas manifestaes do
pensamento e da socialidade yudj ou seja, um ponto de partida, antes que um
ponto de chegada de seu argumento. Tal diferena nos ajuda a compreender as
crticas que a autora enderea maneira como o idioma animista entende a
questo da humanidade dos animais. De fato, o material etnogrfico com o qual
2 No captulo seguinte retomaremos esse mesmo trecho para uma anlise sobre as dinmicas intersubjetivas do perspectivismo.
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Lima trabalhava no a permitia sustentar a idia de que a humanidade dos animais
seja projetada pelos ndios. Sobre este ponto, cito: uma proposio como os
[Yudj]3 pensam que os animais so humanos [...] falsa, etnograficamente
falando. Eles dizem que para si mesmos, os animais so humanos (Lima 1996:
26). Ao afirmar que os animais tomam a si mesmos como humanos, os Yudj esto
dizendo que a humanidade dos animais algo que se d entre os prprios animais,
independentemente do que ns, os Yudj, possamos pensar a este respeito. E o que
os Yudj pensam a este respeito algo como: os animais esto longe de serem
humanos, mas o fato de se pensarem assim torna a vida humana muito perigosa
(Lima 1996: 27).
Pode-se perceber, portanto, como a etnografia yudj problematiza a
proposta animista. Primeiramente, a etnografia no permite afirmar que a
humanidade dos animais seja projetada pelos Yudj, pois, como os Yudj afirmam,
so os prprios animais que se consideram humanos: os Yudj, ao contrrio, os
vem como animais. Ademais, o fato da humanidade dos animais ser alvo de uma
discrdia yudj coloca em questo um corolrio da leitura animista, a saber, que a
humanidade dos animais aproxima-os dos humanos. Lima nos chama ateno para
esse ponto: o sentido da relao entre os animais e os Yudj no se constitui e nem
se encerra na humanidade compartilhada por ambos, pois este fundo comum no
parece ser pensado, pelos nativos, em funo de uma identificao entre os animais
3 Em seu ltimo livro (2005), Lima nos relata os motivos pelos quais passou a utilizar o nome Yudj (em lugar de Juruna) para se referir ao povo com quem trabalha: Esse povo assumia at recentemente dois etnnimos, um de verdade e outro de mentira: Yudj e Yuruna (Juruna). [...] H alguns anos, com a criao de uma escola indgena em Tubatuba, e a ortografizao da lngua, o nome de verdade imps-se rapidamente entre todas as pessoas. por isso que esta etnografia trata de um povo chamado Yudj. de minha responsabilidade a substituio do etnnimo Juruna por Yudj em todas as falas das pessoas inseridas nesse livro (Lima 2005: 15-16). Por essa razo, substitumos o etnnimo Juruna por Yudj em todos os trechos de Lima citados ao longo desta dissertao. Estas substituies sero indicadas, sempre, entre colchetes.
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e os humanos, mas, ao contrrio, em funo de uma diferenciao4 entre eles
afinal, se os porcos se vem como humanos, os Yudj insistem em tom-los por
porcos. Ora, tratava-se ento de propor uma maneira mais apropriada de abordar
essas questes, e justamente aqui que Lima sugere o conceito de ponto de vista.
O conceito de ponto de vista parecia, ento, orientar a anlise etnogrfica ao
aparato analtico erigido pelo relativismo cultural. Com efeito, a relao entre os
Yudj e os animais parece descrever uma situao em que um mesmo objeto
abordado de diferentes modos como naquele sonho da mulher yudj (supra
citado) em que os porcos vem mandioca pubando onde as banhistas vem argila
finssima. A questo, portanto, era saber se este modo yudj de relao, se este tipo
de encontro poderia mesmo ser descrito pelo aparato do relativismo cultural. E
apesar de, primeira vista, parecer uma abordagem pertinente, Lima descarta tal
possibilidade.
O relativismo cultural expressa um jogo epistemolgico em que a realidade
do objeto anterior s abordagens culturais: dado a priori, o objeto independente
e, de certa forma, indiferente s apreenses que lhe so dirigidas ou seja, o objeto
mirado , antes de tudo, coisa em si. Elemento pivotal deste jogo epistemolgico, o
objeto no s possibilita a existncia das abordagens culturais, como condiciona o
espao de relao entre elas, ora justapondo-as enquanto pontos de vista, ora
sobrepondo-as conforme as aproximaes diferenciais que estas abordagens
culturais podem manter em relao s propriedades reais do objeto. Posto assim,
uma leitura relativista do relato onrico referido deveria poder fundamentar os
4 Acredito, ento, que forjar uma caracterizao geral da cosmologia [yudj] mediante noes como antropocentrismo e animismo perder o essencial, porque ali a relao de identidade entre humanidade e animalidade dada primeiramente como condio para se pensar a diferena (Lima 1999: 45-46).
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diferentes pontos de vista a partir do universo dado das coisas em si. No entanto,
como Lima demonstra em sua anlise da caa dos porcos, a cosmologia yudj se
constitui completamente alheia a este universo.
A caa mostra-se uma empresa muito perigosa. Trata-se de um encontro
agonstico entre os porcos do mato e os caadores yudj, caracterizado, segundo
Lima, como uma disputa entre pontos de vista. Os Yudj vem os porcos como
presas e tencionam ca-los, mas os porcos, por sua vez, vem os Yudj como
humanos e procuram recrut-los como afins potenciais ou seja, enquanto os
Yudj encaram o encontro como uma caada, os porcos encaram-no como uma
oportunidade de angariar parentes. Assim posto, o desfecho deste embate possui
apenas duas possibilidades: um homem yudj, por exemplo, ou retornar aldeia
como um caador trazendo suas presas, ou ento conhecer a aldeia dos humanos
(porcos) como um de seus afins. O ponto importante, aqui, est no fato de que este
embate de perspectivas no remete a nenhum termo mediador que seja apto a
determinar objetivamente a verdade de tal encontro. Com efeito, a querela se
resolve na prpria interao, visto que a relao caminha na direo de uma das
duas perspectivas: ou o caador retornar sua aldeia trazendo os porcos caados,
ou conhecer a aldeia dos porcos como um de seus afins. Em suma: no h nada
aqui alm dos pontos de vista:
A caa dos porcos no pe em cena uma mesma realidade vista por dois sujeitos, conforme nosso modelo relativista. Pelo contrrio, ela pe um acontecimento para os humanos e um acontecimento para os porcos. Em outras palavras, ela se desdobra em dois acontecimentos paralelos (melhor dizendo paralelsticos), [...] que so tambm correlativos, e que no remetem a nenhuma realidade objetiva ou externa, equiparvel ao que entendemos por natureza. Um referente do outro. Diremos, pois, que a caa apresenta duas
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dimenses, dadas como dois acontecimentos simultneos que se refletem um no outro (Lima 1996: 35)
O embate no um acontecimento visto por duas perspectivas diferentes, mas a
prpria relao entre os pontos de vista. A noo relativista do objeto como coisa
em si no tem nenhum lugar nesse mundo marcado pela variao dos pontos de
vista (Lima 1996: 33).
No se tratando aqui de um universo de coisas em si, entende-se porque o
aparato do relativismo cultural no fornece um instrumental analtico apropriado
para se compreender a dinmica desse embate. Na verdade, o fato deste encontro
se desdobrar em dois pontos de vista correlativos, que no remetem a nenhum
referente externo, direciona formalmente o argumento quele paradoxo do
relativismo cultural analisado por Lvi-Strauss em Raa e histria (1950). Este
paradoxo ilustrado por aquela famosa anedota passada nas Antilhas do sculo
XVI: espanhis e ndios, igualmente desconfiados acerca da humanidade do outro,
se mobilizam, de modos distintos, em uma investigao sobre tal questo: para os
espanhis o questionamento sobre a humanidade dos ndios passava pela
possibilidade deles possurem ou no uma alma; para os ndios a questo passava
pela investigao dos corpos dos espanhis, que eram afogados no intuito de se
verificar se eram humanos ou divinos, ou seja, se seus corpos estavam ou no
sujeitos putrefao:
Esta anedota, simultaneamente barroca e trgica, ilustra bem o paradoxo do relativismo cultural [...]: na medida em que pretendemos estabelecer uma discriminao entre as culturas e os costumes, que nos identificamos mais completamente com aqueles que tentamos negar. Recusando a humanidade queles que surgem como os mais selvagens ou brbaros dos seus representantes, mais no fazemos que copiar-lhes suas atitudes tpicas. O brbaro
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em primeiro lugar o homem que cr na barbrie (Lvi-Strauss 1976: 60)
Para o autor, procurar se diferenciar dos outros tomando-os como brbaros uma
atitude, entre outras coisas, paradoxal, pois eles, como ns, tomam-se como
civilizados, tomando os outros (o que nos inclui) como brbaros. A noo de
humanidade, sem distino de raa e cultura, tem como fundamento paradoxal
essa atitude generalizada de recusa em ver os outros como vemos a ns mesmos.
Ora, uma lgica semelhante parece presidir entre os Yudj, que afirmam que todas
as espcies humanas (os yudj, os porcos, etc) se apreendem sob a forma da
cultura, mas, a princpio, se recusam a apreender os outros como apreendem a si
mesmos5. A reciprocidade de perspectivas do argumento lvi-straussiano ganha, na
anlise etnogrfica referente s concepes yudj acerca da ontologia do sujeito,
uma variao indgena apontada por Lima. Segundo a autora, entre os Yudj a
duplicidade a lei de todo ser e de todo acontecimento (Lima 1996: 35). As
subjetividades que compem o cosmos so constitudas, assim, por dois princpios
distintos: o primeiro deles se refere ao pensamento reflexivo e conscincia de si, o
outro marcado por valores ligados alteridade (como nas apreenses da vida
onrica e do xamanismo). Pois bem. Analisando a relao entre os caadores e os
porcos, Lima sugere se bem a entendo que estes princpios subjetivos distintos,
compostos em par e constituintes tanto dos caadores quanto dos porcos, acabam,
no encontro em questo, funcionando separadamente como agente e paciente:
enquanto um destes princpios subjetivos se presta a ver o interlocutor, o outro se
5 bem verdade que, na caada, enquanto os Yudj vem os porcos como porcos, estes vem os Yudj como gente (ou seja, os vem como vem a si mesmos). Mas no quadro do xamanismo e do ponto de vista dos porcos, os [Yudj] representam espritos (Lima 1996: 26, grifos adicionados).
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d a ver pelo interlocutor. A dinmica do encontro, assim, se efetua como uma
apreenso cruzada destes princpios subjetivos: Esses [princpios] operam por
intermdio de uma noo, o ponto de vista, que articula [...] a dimenso sensvel de
um com a dimenso espiritual do outro (Lima 1996: 36, grifos adicionados).
O princpio subjetivo yudj que ocupa a posio de agente ir apreender o
princpio subjetivo do porco que se encontra na posio de paciente (vendo-o como
caa), ao passo que o princpio subjetivo do porco em posio de agente ir
apreender o princpio subjetivo yudj que se encontra na posio de paciente
(vendo-o como afim). A questo do embate, portanto, est em saber qual dessas
relaes agente/ paciente prevalecer ao fim do encontro: se os caadores yudj
permanecerem vendo os porcos como caa, dar-se- uma relao, digamos, natural
com os porcos (o princpio subjetivo yudj acaba apreendendo aquele princpio
subjetivo dos porcos em posio de paciente); mas se eles passarem a ver os porcos
como afins, dar-se- uma relao, digamos, sobrenatural6 com os porcos (o
princpio subjetivo dos porcos acaba apreendendo aquele princpio subjetivo yudj
em posio de paciente). Enfim, o perigo envolvido na possibilidade de um caador
passar a ver os porcos como afins parece se aproximar do perigo envolvido na
possibilidade de um ndio, nas Antilhas, comear a se indagar a respeito da
qualidade crist de sua alma, passando a ver sua vida como brbara, e a dos
espanhis como civilizada de todo modo, o ponto que nos dedicamos a destacar
o seguinte: se o perspectivismo yudj se afasta do animismo e do relativismo
cultural, aproxima-se deliberadamente do jogo de perspectivas proposto por Lvi-6 Ao dizer que a relao dos Yudj com os porcos natural (quando os vem como porcos) ou sobrenatural (quando os vem como gente) estou me referindo problematizao que a autora empreende dicotomia Natureza/ Sobrenatureza atravs da noo de reciprocidade de perspectivas.
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Strauss em trabalhos como Raa e Histria e O pensamento selvagem. Sobre a
dvida do argumento de Lima para com o trabalho de Lvi-Strauss, cito o seguinte
trecho:
Esses fatos evocam diretamente a noo de reciprocidade de perspectivas (o homem e o mundo se espelham um no outro) com que Lvi-Strauss argumenta em favor da superao da velha dicotomia entre religio e magia [...], sustentando que o homem se defronta com o mundo, tomando a ambos e no mesmo golpe como sujeitos e objetos (Lvi-Strauss, O pensamento selvagem). nesse contexto terico que eu situaria a noo de ponto de vista (Lima 1996: 29).
Ao tomar os Yudj e as outras subjetividades, num s golpe, como sujeitos e
objetos, a reciprocidade de perspectivas funciona, no argumento de Lima, para
problematizar a dicotomia entre Natureza e Sobrenatureza.
2) Eduardo Viveiros de Castro e a proposta do perspectivismo
amerndio
O segundo texto sobre o perspectivismo publicado na revista Mana (1996)
o artigo de Eduardo Viveiros de Castro intitulado Os pronomes cosmolgicos e o
perspectivismo amerndio. No que se refere ao tratamento etnogrfico, o estilo
analtico deste texto difere daquele do artigo de Lima: enquanto este se detm
sobre os detalhes de um evento especfico do material etnogrfico yudj (a caada
dos porcos do mato), aquele recolhe nas mais diversas etnografias americanistas
um material considervel, sem, contudo, analis-lo detalhadamente. Apesar dessa
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diferena, os artigos apresentam muitos pontos em comum7 a comear pelo
debate com Descola:
O leitor ter advertido que meu perspectivismo evoca a noo de animismo, recentemente recuperada por Descola (1992), para designar um modo de articulao entre as sries natural e social que seria o simtrico e inverso do totemismo. Afirmando que toda a conceitualizao dos no-humanos sempre referida ao domnio social, o autor distingue trs modos de objetivao da natureza: [o totemismo, o animismo e o naturalismo] (Viveiros de Castro 1996: 120)
Segundo Descola, o totemismo e o animismo constituem-se como modos
simtricos e inversos de objetivao da natureza: enquanto o primeiro articula as
sries natural e social atravs das relaes do mundo natural, o segundo articula as
sries atravs das relaes do mundo social ou melhor, se no totemismo a
organizao social constituda a partir do entendimento que os grupos sociais tm
das interaes que as espcies naturais mantm entre si, no animismo as interaes
das espcies naturais (entre si e com os humanos) so entendidas a partir do modo
como os humanos constituem suas prprias relaes. O naturalismo, por sua vez e
diferentemente dos outros dois modos, no articula as duas sries: aqui opera-se
uma oposio ontolgica, uma descontinuidade entre natureza e sociedade.
A proposta foi alvo de alguns comentrios de Viveiros de Castro. Ao se
debruar sobre a natureza das relaes que constituem cada um dos trs modos de
objetivao propostos por Descola, Viveiros de Castro argumenta que o totemismo
fenmeno heterogneo ao do animismo e do naturalismo: se o totemismo se
constitui como uma estrutura classificatria de correlaes lgicas entre sries
descontnuas (natureza e cultura), o animismo e o naturalismo se constituiriam,
7 Os artigos em questo foram redigidos a partir de um mesmo dilogo empreendido por Tnia Stolze Lima e Eduardo Viveiros de Castro. Os prprios autores registram este ponto em seus textos.
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diferentemente, como cosmologias diferenciadas segundo as relaes de engloba-
mento que, um e outro, estabelecem entre natureza e cultura:
Com efeito, se no modo anmico a distino natureza/cultura interna ao mundo social, humanos e animais estando imersos no mesmo meio sociocsmico (e nesse sentido a natureza parte de uma socialidade englobante), na ontologia naturalista a distino natureza/cultura interna natureza (e neste sentido a sociedade humana um fenmeno natural entre outros). O animismo tem a sociedade como plo no-marcado, o naturalismo, a natureza: esses plos funcionam, respectiva e contrastivamente, como a dimenso do universal em cada modo (Viveiros de Castro 1996: 121).
Esta problematizao do argumento proposto por Descola no consiste, apenas, em
uma troca do totemismo pelo naturalismo: se para Viveiros de Castro a inverso
est na relao entre o animismo e o naturalismo porque eles se constituem, em
seu argumento, como estruturas ontolgicas e hierrquicas, diferentemente do que
foi proposto por Descola, para quem a inverso est dada entre o animismo e o
totemismo, modos lgicos e simtricos de objetivao.
Mas o ponto mais importante no debate com Descola diz respeito questo
do animismo. Por um lado, Viveiros de Castro dirige-lhe a mesma crtica que vimos
em Lima: de fato possvel definir o animismo como uma projeo de diferenas e
qualidades internas ao mundo humano sobre o mundo no-humano? (Viveiros de
Castro 1996: 122). Tomar o animismo amerndio como uma projeo do mundo
humano consiste em tratar estas cosmologias pela clave da crena. Ora, tratar as
idias dos outros como crena constitui-se muitas vezes como uma forma
inadequada do tratamento do material etnogrfico e, o que pior, como uma forma
de neutralizar o pensamento alheio (no levando-o a srio). A questo que os
antroplogos deveriam se fazer : o idioma da crena apropriado para a
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compreenso do universo etnogrfico que estudo?8 No caso do animismo
amerndio, parece que no: se a natureza da crena est vinculada uma eficcia
simblica das representaes9, seu idioma mostra-se inadequado para tratar das
etnografias do continente, visto que a economia amerndia da apreenso se
encontra mais prxima do conceito de percepto que do conceito de representao:
quando um caador yudj v os porcos como porcos, ou como gente, trata-se
sempre de um tipo especfico de apreenso: este ver como se refere literalmente a
perceptos, e no analogicamente a conceitos (Viveiros de Castro 1996: 117). Enfim,
s crticas endereadas ao animismo como projeo articula-se um outro ponto
crtico este independente do debate com Descola , qual seja, a recusa do
tratamento do material etnogrfico amerndio a partir do aparato do relativismo
cultural, que pressupe um universo de coisas em si abordadas por uma infinidade
de representaes culturais:
8 O ponto, portanto, diz respeito aplicabilidade do idioma da crena ao material amerndio. Sabemos que este idioma aplicado, de modo apropriado e com excelente rendimento, em muitos outros casos como, por exemplo, o nosso universo cristo. A Santssima Trindade de Deus (ao mesmo tempo Pai, Filho e Esprito Santo) considerada pelos cristos como um mistrio da f. Ou seja, crer, aqui, um conceito bastante apropriado para a anlise, justamente porque crer uma categoria nativa dos cristos. Pois bem. Se o crer uma categoria nativa crist, no parece ser uma categoria nativa amerndia ponto que o padre Antnio Vieira j intua quanto questo da catequizao dos ndios brasileiros do sculo XVII: outros gentios so incrdulos at crer; os brasis, ainda depois de crer, so incrdulos (Vieira apud Viveiros de Castro 2002a: 185). Acrescentamos, aqui, uma observao nessa mesma direo: se a multiplicidade crist da Santssima Trindade (Pai-Filho-Esprito Santo) mostra-se como um mistrio da f para ns cristos, o mesmo no se observa a respeito da multiplicidade amerndia (por exemplo, a implicao cauim-argila daquele sonho da mulher yudj, que citamos acima [Lima 1996]) pois se a multiplicidade divina , para os cristos, algo no solucionvel pelo entendimento humano (j que esta multiplicidade, divina, seria justamente o que define Deus como Deus), a multiplicidade ontolgica amerndia, ao contrrio, no est fora do alcance do entendimento comum e, talvez, por isso mesmo, se constitua como o pressuposto de um pensamento que no se dispe a crer para poder multiplicar o que h.
9 Se tomarmos a crena como um juzo cuja verdade se sustenta sem qualquer necessidade de fundamentao na objetividade dos fatos isto , como um juzo cuja verdade se sustenta em alguma revelao ntima dada por uma intuio ou experincia subjetiva , ento a eficcia da crena s pode ser caracterizada como uma eficcia simblica: algo dado no universo da representao, do conceito, enfim, de uma idia, ou idealizao, cujo vnculo com o concreto e com o real seria exterior (e em certa medida arbitrrio).
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Os pressupostos e conseqncias [do perspectivismo] so irredutveis (como mostrou Lima) ao nosso conceito corrente de relativismo, que a primeira vista parecem evocar. [...] Tal resistncia do perspectivismo amerndio aos nossos debates epistemolgicos pe sob suspeita a robustez e a conseqente transportabilidade das parties ontolgicas que os alimentam (Viveiros de Castro 1996: 115)
Retornaremos questo do relativismo adiante. No momento observemos que se,
por um lado, Viveiros de Castro problematiza as propostas de Descola, por outro
no deixa de reter do trabalho do antroplogo francs uma distino fundamental
para sua proposio do perspectivismo, a saber, a distino entre a espcie e a
condio humanas: o referencial comum entre todos os seres da natureza no o
homem enquanto espcie, mas a humanidade enquanto condio (Descola apud
Viveiros de Castro 1996: 119)10. a partir da que Viveiros de Castro retoma o
trabalho de Lvi-Strauss, no que se refere ao tema da reciprocidade de perceptivas
(Raa e Histria), para empreender uma crtica etnograficamente motivada da
concepo substancialista das categorias de Natureza e Cultura. Este momento do
argumento merece toda a nossa ateno.
O primeiro ponto destacado pelo autor diz respeito contradio entre duas
imagens tradicionais que so caras s descries deste campo etnogrfico: o
etnocentrismo e o animismo. O argumento pelo etnocentrismo amerndio funda-se
na grande difuso de auto-etnnimos cujo significado os humanos verdadeiros
(ver Lvi-Strauss 1976: 60). Ao entender que os predicados culturais da
humanidade se encerram na fronteira de seus grupos, os povos amerndios
estariam imediatamente a definir seus estrangeiros como pertencentes ao domnio
10 Na citao em questo, Viveiros de Castro aborda a distino entre a espcie e a condio humanas citando o trabalho de Descola. (Salvo engano, tal distino tanto no trabalho de Descola quanto em Viveiros de Castro vem do argumento de Tim Ingold: humanity [condio humana] e humankind [espcie humana]. Ver, por exemplo, Ingold 1995).
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do (sobre)natural, do extra-humano donde se conclui que a distino entre
natureza e cultura regeria, tambm, a apreenso amerndia das relaes sociais.
Por outro lado, e contraditoriamente, os ndios americanos so ditos ser animistas,
pois estenderiam os predicados da humanidade muito alm das fronteiras da
espcie, tomando natureza e cultura como partes de um mesmo campo
sociomrfico. Ou seja: ou os amerndios so etnocentricamente avaros na
extenso do conceito de humanidade, e opem totemicamente natureza e cultura;
ou eles so cosmocntricos e anmicos, e no professam tal distino (Viveiros de
Castro 1996: 125). Ora, esta contradio de suma importncia para o autor, pois
contra ela que a tese do perspectivismo amerndio se constitui. Recusando-se a
tomar o etnocentrismo e o animismo como descries mutuamente excludentes
visto que ambas se fundamentam na mesma etnografia , Viveiros de Castro
prope uma espcie de sntese entre elas: (i) do etnocentrismo, o perspectivismo
descarta a avareza na extenso do conceito de humanidade, mas retm-lhe o
carter analtico da distino entre natureza e cultura; (ii) do animismo, o
perspectivismo retm a noo de um cosmocentrismo (da humanidade como
condio) e descarta, primeira vista paradoxalmente, a idia de uma
indiferenciao entre natureza e cultura11. A questo aqui, portanto, como
sintetizar o cosmocentrismo amerndio com a distino pregnante, nessas
cosmologias, entre as categorias de natureza e cultura? Esta sntese
elegantemente operada atravs do conceito de ponto de vista:
11 Penso que a soluo para essas antinomias [etnocentrismo ou animismo?] no est em escolher um lado [...]. Trata-se mais bem de mostrar que tanto a tese quanto a anttese so verdadeiras (ambas correspondem a intuies etnogrficas slidas), mas que elas apreendem os mesmos fenmenos sob aspectos distintos; e tambm de mostrar que ambas so falsas, por se referirem a uma concepo substantivista das categorias de Natureza e Cultura (seja para afirm-las ou para neg-las) inaplicvel s cosmologias amerndias (Viveiros de Castro 1996: 125).
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A primeira coisa a se considerar que as palavras amerndias que se costumam traduzir por ser humano, e que entram na composio das autodesignaes etnocntricas, no denotam a humanidade como espcie natural, mas a condio social de pessoa, e, sobretudo quando modificadas por intensificadores do tipo de verdade, realmente, funcionam (pragmtica quando no sintaticamente) menos como substantivos que como pronomes. Elas indicam a posio de sujeito; so um marcador enunciativo, no um nome. Longe de manifestarem um afunilamento semntico do nome comum ao prprio (tomando gente para nome da tribo), essas palavras mostram o oposto, indo do substantivo ao perspectivo (usando gente como pronome coletivo a gente). Por isso mesmo, as categorias indgenas de identidade coletiva tm aquela enorme variabilidade contextual de escopo caracterstica dos pronomes, marcando contrastivamente desde a parentela imediata de um Ego at todos os humanos, ou mesmo todos os seres dotados de conscincia; sua coagulao como etnnimo parece ser, em larga medida, um artefato produzido no contexto da interao com o etngrafo. No tampouco por acaso que a maioria dos etnnimos amerndios que passaram para a literatura no so autodesignaes, mas nomes (freqentemente pejorativos) conferidos por outros povos: a objetivao etnonmica incide primordialmente sobre os outros, no sobre quem est em posio de sujeito. Os etnnimos so nomes de terceiros, pertencem a categoria do eles, no a categoria do ns (Viveiros de Castro 1996: 125-126)
A natureza pronominal das autodesignaes no indica outra coisa que a posio
de um sujeito, o ponto de vista de um agente. Ou seja, toda a espcie de seres capaz
de ver a si mesma como humana apresenta, por si, um ponto de vista: a afirmao
dos Yudj de que os porcos do mato se vem como humanos no se d como uma
projeo yudj de sua prpria subjetividade, mas como um reconhecimento yudj
da subjetividade dos porcos so os porcos que se vem como humanos; os Yudj,
ao contrrio, os vem como porcos. O ponto, aqui, que atravs da natureza
pronominal das autodesignaes, os predicados de humanidade deixam de ser
etnocentricamente projetados por uma espcie, dita mais humana que as outras,
para passar a se constituir como uma condio humana distribuda eqitativa-
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mente entre aquela variedade de espcies viventes capaz de ver a si mesma como
humana12. Pois bem: o cosmocentrismo anmico dos amerndios se observa atravs
do princpio de subjetivao implicado nestas autodesignaes pronominais. Mas e
a distino natureza/ cultura?
Esta distino se fundamenta a partir de uma diferena que pode ser vista,
no trecho supra citado, na relao entre as autodesignaes e os etnnimos: assim,
por exemplo, vimos que os porcos se vem como humanos (autodesignao), mas
so vistos pelos Yudj como porcos (etnnimo). Esta autodesignao e este
etnnimo se mostram como ndices de pontos de vista diferentes, constituindo-se
como um par articulado de apreenses subjetivas: a auto-apreenso dos porcos se
articula com a apreenso desses mesmos porcos feita por terceiros (os Yudj). Ora,
a esse jogo pronominal que articula as perspectivas ns e eles que Viveiros
de Castro associa a distino natureza/ cultura, distanciando-se, assim, daquelas
abordagens que propem uma concepo substancialista de tal distino: na
caracterizao do perspectivismo amerndio, o que cultura ou natureza depende
exclusivamente das apreenses dos pontos de vista, de modo que a cultura de uns
(por exemplo, dos porcos) pode bem ser a natureza de outros (dos Yudj).
Enfim, a sntese perspectivista entre, por um lado, o cosmocentrismo
anmico e, por outro, a distino etnocntrica entre natureza e cultura, passa
justamente pela idia da reciprocidade de pontos de vista e o referencial aqui
aquela proposta lvi-straussiana descrita em Raa e Histria. Assim como as
diversas culturas tendem a tomar a si mesmas como civilizadas e s outras culturas
12 por isso que termos como wari (Vilaa 1992), dene (McDonnell 1984) ou masa (rhem 1993) significam gente, mas podem ser ditos por e portanto ditos de classes muito diferentes de seres; ditos pelos humanos, denotam os seres humanos, mas ditos pelos queixadas, guaribas e castores, eles se auto-referem aos queixadas, guaribas e castores (Viveiros de Castro 1996: 126)
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como no-civilizadas, no perspectivismo amerndio os pontos de vista se tomam
como humanos, vendo os demais pontos de vista como no-humanos:
Tipicamente, os humanos, em condies normais, vem os humanos como humanos, os animais como animais, e os espritos (se os vem) como espritos; j os animais (predadores) e os espritos vem os humanos como animais (de presa), ao passo que os animais (de presa) vem os humanos como espritos ou animais (predadores). Em troca, os animais e os espritos se vem como humanos: apreendem-se como (ou se tornam) antropomorfos quando esto em suas casas ou aldeias, e experimentam seus prprios hbitos sob a espcie da cultura vem seu alimento como alimento humano (os jaguares vem o sangue como cauim, os mortos vem os grilos como peixes, os urubus vem os vermes da carne podre como peixe assado, etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos, etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado do mesmo modo que as instituies humanas (com chefes, xams, festas, ritos, etc.) (Viveiros de Castro 1996: 117).
3) Corpo e alma
Vimos como as propostas de Lima e Viveiros de Castro se constituem atravs
de consideraes acerca do animismo, do relativismo e da reciprocidade de
perspectivas lvi-straussiana. Resta-nos tratar de um importante fundamento
etnogrfico da proposta perspectivista, a saber, aquele que diz respeito s
concepes amerndias acerca da ontologia do sujeito: a relao entre corpo e alma.
O argumento perspectivista parte, entre outros pontos, da observao nativa
(expressa em diversas etnografias do continente) de que, no cosmos, apenas os
sujeitos possuem corpo e alma. Entre os Wari da Amaznia meridional, por
exemplo, se tudo tem um corpo, s os humanos o que inclui os Wari, os
inimigos e diversos animais possuem alma (Vilaa 2000: 59). Ora, se s os
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humanos possuem alma, o princpio subjetivo que caracteriza a condio humana
parece estar implicado nela. A alma, assim, dotaria todos os seres que a possuem de
intencionalidade e conscincia.
Frente ao fato de que todas essas espcies humanas so dotadas de alma,
porque, pergunta-se Viveiros de Castro, estas espcies no se tratam mutuamente
como humanos? Porque o perspectivismo? Bom, se a alma que compe cada uma
das espcies humanas implica o princpio subjetivo, o corpo, que tambm as
compem, responde pelos diferentes modos de atualizao deste princpio, ou seja,
pela diferena de pontos de vista: enquanto o corpo diferencia as espcies, a alma
as assemelha como humanas (Vilaa 2000: 59). Sobre essa proposta, que articula
a identidade anmica a uma alteridade somtica, Lima tece o seguinte comentrio:
Atingimos assim duas concluses. Que a relao entre o humano e o animal marcada por uma contradio entre o mesmo e o outro: a alteridade real do animal remete ao mesmo tempo sua identidade virtual. E que existe uma dicotomia muito clara entre as disposies enraizadas no corpo e os atributos da alma (Lima 1996: 29)
Pois bem. Partindo dessa contradio entre o mesmo e o outro, e de uma analogia
com o que se descreve no relativismo cultural, Viveiros de Castro prope o conceito
de multinaturalismo para descrever o regime ontolgico das sociocosmologias
amerndias: enquanto o relativismo supe uma diversidade de abordagens
culturais incidentes sobre uma Natureza una e total, o perspectivismo supe uma
unidade formal de abordagem (a Cultura) aplicada diferentemente a partir de uma
multiplicidade de corpos. Se o relativismo multiculturalista, o perspectivismo, ao
propor uma epistemologia constante para ontologias (naturezas) variveis,
multinaturalista.
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*No entanto, o modo como o argumento prope entender a relao entre
corpo e alma (uma alteridade somtica associada a uma identidade anmica), nem
sempre encontra respaldo nas etnografias. Lima, por exemplo, no pode sustentar,
sem reservas, a idia de uma identidade anmica inter-especfica na etnografia
yudj. Vejamos.
Por um lado, ao afirmar que somente os sujeitos (humanos ou no-
humanos) so dotados de alma, os [Yudj] tambm postulam que os atributos
culturais so atributos da alma (Lima 1996: 29). No entanto, a alma dos Yudj no
possui o mesmo estatuto funcional da alma dos animais, pois a experincia da
alma humana, diferentemente daquela da alma animal, no consiste em
conscincia de si como sujeito (1996: 35)13. A etnografia yudj, portanto, acaba
problematizando o argumento perspectivista a respeito de uma identidade anmica
inter-especfica, pois ainda que a alma manifeste uma forma idntica entre as
espcies (visto que toda alma manifesta uma forma humana), nem sempre o
princpio subjetivo dos seres se encontra implicado na alma. Assim, o que haveria
em comum entre os Yudj e, por exemplo, os porcos, no seria exatamente uma
identidade anmica, mas o fato de que ambos, enquanto seres dotados de pontos de
vista, so compostos de corpo e alma. Esta a interpretao que fao do texto de
Lima (1996). Partindo da anlise etnogrfica do encontro entre os caadores yudj
13 Enquanto princpio vital situado no corao, a alma [yudj] uma parte do eu e no pode explicar porque o eu uma pessoa; [...] ela o duplo do sujeito, e escapa, enquanto tal, ao mesmo. Sua experincia no , ento, a subjetividade (Lima 1996: 35).
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e os porcos do mato, Lima observa que estes componentes pessoais corpo e alma
cumprem funes diferentes na apreenso que caadores e porcos mantm na
relao entre si: enquanto um dos componentes pessoais funciona como agente
(local onde se implica o princpio subjetivo, onde se d a experincia do eu como
sujeito), o outro componente funcionaria como paciente (ou seja, como
componente dado viso de outrem: este componente se constitui como o duplo do
sujeito, escapando, portanto, sua experincia de subjetividade). O ponto que esta
anlise etnogrfica revelaria, portanto, que em uma relao intersubjetiva ao
contrrio do que, de modo geral, prope o argumento perspectivista nem sempre
a alma exerce a funo de agente (cultura) e o corpo a de paciente (natureza),
pois o princpio subjetivo dos Yudj no se encontra, como nos porcos, implicado
em sua alma, mas em seu corpo.
Acerca da relao corpo e alma h ainda outro ponto do argumento
perspectivista, relacionado com este que acabamos de ver, sobre o qual gostaramos
de fazer um comentrio (pequeno e rpido). Atentemos para o seguinte trecho:
A forma manifesta de cada espcie um mero envelope (uma roupa) a esconder uma forma interna humana, normalmente visvel apenas aos olhos da prpria espcie ou de certos seres transespecficos como os xams. Esta forma interna o esprito (Viveiros de Castro 1996: 117)
Ou seja: tipicamente, em condies normais, ao se relacionar com outrem, mira-se
sua roupa (seu corpo); mas, em certas ocasies no xamanismo, por exemplo ,
possvel interagir com ele sob o modo da cultura, vendo-o como humano,
acessando a forma interna (a alma) oculta sob seu corpo.
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Chamo a ateno, aqui, para uma questo que me parece interessante. A
afirmao de que podemos acessar, dependendo das condies, o corpo ou a alma
de outrem nos interessa porque, em certo sentido, esta afirmao acaba
contradizendo um ponto importante do argumento perspectivista, a saber, o de que
a variao dos perceptos (a variao ontolgica) se d pela variao dos pontos de
vista. Ora, se, como afirma o argumento, o determinante da apreenso est na
mirada dos pontos de vista e no no referente mirado, ento no haveria porque
apontar uma diferena entre a mirada sobre o corpo e a mirada sobre a alma de
outrem. Se, por exemplo, ao me aventurar na floresta, vejo a caa como porco ou
como gente, isso no dependeria do componente do sujeito [corpo e alma] onde se
deita meu olhar mas, ao contrrio, do ponto de vista que estou ocupando: se vejo
porco porque ocupo um ponto de vista yudj, de caador; mas se vejo gente
porque ocupo o ponto de vista dos porcos...
Voltaremos no ltimo captulo a tratar das relaes entre corpo e alma. Por
ora, esses comentrios, rpidos, aparecem aqui apenas para levantar algumas
questes que me foram aparecendo na leitura dos textos.
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Captulo 2 Anlises e questes
As teorias antropolgicas devem ser encaradas menos como um ponto de chegada do processo de pesquisa do que como o
ponto de partida e o meio de uma investigao etnogrfica que as coloca sob crtica das idias e prticas dos grupos
estudados
Marcio Goldman (Alteridade e Experincia: Antropologia e Teoria Etnogrfica, 2005)
Seguindo os esforos e os caminhos abertos por Viveiros de Castro e Lima,
gostaramos, medida de nossas foras, de contribuir com o estudo do
perspectivismo amerndio propondo uma outra forma de abordar o material
etnogrfico. Nesse sentido, as problematizaes empreendidas neste captulo,
sobre alguns pontos do argumento perspectivista, vo, nica e exclusivamente, em
funo do debate, entendido aqui como esforo conjunto no tratamento do objeto.
A partir dessas problematizaes, esboaremos, no ltimo captulo, a proposta de
um relacionalismo estrutural para abordar o material etnogrfico.
1) Multinaturalismo
Uma traduo mais abstrata do conceito Yudj de perspectiva a seguinte. Um ser aparece para si mesmo de modo distinto do que ele aparece para outrem. Isto , a relao consigo difere da relao com outrem. H um vnculo necessrio (no sentido forte do termo) entre essas duas perspectivas: elas constituem um par. E h mais. Pois, a um ser que aparece para um outro ser de um modo distinto do que aparece para si mesmo, outros seres aparecero distintamente para um e outro tendo esses terceiros, em muitos casos, a sua prpria perspectiva. Quer dizer, o conceito indgena trata o mundo enquanto especificidade de cada vivente. Os viventes arrastam consigo sua prpria realidade sensvel (Lima 2006: 12, grifos adicionados)
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O primeiro ponto a se destacar que a maioria absoluta (seno a totalidade)
dos exemplos que fundamentam o argumento sobre o perspectivismo amerndio
relatam encontros entre duas perspectivas. A passagem supra citada aponta para
isso, ao afirmar que os perceptos se articulam em pares. No obstante, o trecho
grifado acaba sugerindo a possibilidade de um encontro entre trs perspectivas ou
mais...
A considerao desta possibilidade refere-se, me parece, problemtica do
multinaturalismo amerndio. Dizamos, no captulo anterior, que o conceito de
multinaturalismo constitui-se como um modo de descrever a dinmica ontolgica
das apreenses intersubjetivas, proposto a partir de uma analogia com o
multiculturalismo relativista. Ali destacamos a inverso entre o multiculturalismo e
o multinaturalismo: enquanto o primeiro afirma a unidade dos objetos frente a
uma multiplicidade de abordagens subjetivas, o segundo afirma a unidade formal
dos sujeitos atualizada em uma multiplicidade de abordagens objetivas (pontos de
vista). No entanto, como j se pode perceber, a diferena entre o multiculturalismo
e o multinaturalismo no se encerra na inverso do par unidade/ multiplicidade
quando aplicados relao entre sujeito e objeto: o que os diferencia , justamente,
a natureza da relao sujeito-objeto. No multiculturalismo, o objeto independe do
sujeito: dado como coisa em si, o objeto indiferente e anterior s abordagens
subjetivas que lhe so atribudas. No multinaturalismo isso no acontece: o objeto
(que, aqui, vem entre aspas) no existe como coisa em si, mas como coisa para
algum. Ou seja, enquanto no multiculturalismo relativista a abordagem do sujeito
ao objeto se d como uma relao exterior e representacional, no multinaturalismo
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perspectivista a relao do sujeito ao objeto interna e genitiva (Viveiros de
Castro 2002b: 384). A ontologia do mundo amerndio integralmente relacional:
O mundo real das diferentes espcies depende de seus pontos de vista, porque o mundo composto das diferentes espcies, o espao abstrato de divergncia entre elas enquanto pontos de vista: no h pontos de vista sobre as coisas as coisas e os seres que so pontos de vista. A questo aqui, portanto, no saber como os macacos vem o mundo, mas que mundo se exprime atravs dos macacos, de que mundo eles so o ponto de vista (Viveiros de Castro 2002b: 384-385).
Retomaremos este mesmo trecho mais adiante para tratar da idia de que a
realidade sensvel est j implicada no ponto de vista. Por ora, nos debrucemos
sobre a questo da realidade das apreenses e da ontologia relacional do cosmos
amerndio: se na relao de conhecimento das cosmologias multiculturalistas a
verdade se encontra na unidade do Objeto (externo e anterior aos modos de
apreenso), na relao de conhecimento das cosmologias multinaturalistas a
verdade parece se fundamentar na unidade formal do Sujeito: toda mirada de uma
perspectiva verdadeira porque todos os pontos de vista remetem a uma unidade
formal de apreenso, ou seja, todos os perceptos se equivalem porque todos os
pontos de vista, apesar de mutuamente distintos, atualizam uma mesma forma de
percepo. Nas palavras de Viveiros de Castro (2002b: 396), o que temos aqui
um caso de universalismo cultural, cuja contrapartida um relativismo natural14.
Pois bem. Os questionamentos que a seguir faremos ao conceito de
multinaturalismo no dizem tanto respeito ao carter relacional da ontologia
amerndia, mas principalmente idia de que, na cosmologia desses povos, um
14 Mais adiante, sobre esta mesma questo, o autor assim se expressa: Mesmas representaes, outros objetos; sentido nico, referncias mltiplas (Viveiros de Castro 2002b: 387).
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objeto seja constitudo a partir da articulao, e mtua implicao, de uma
multiplicidade de miradas: assim, por exemplo, em condies normais, um sujeito
que v a si mesmo como humano, visto por um outro sujeito (um animal
predador ou um esprito canibal) como porco, e por um terceiro (um animal de
caa) como, por exemplo, um jaguar...15 No entanto e este o ponto que
queremos chamar ateno , as etnografias nos oferecem apenas pares de
perceptos, relatos de encontros entre duas perspectivas: o multinaturalismo se
efetua sempre como um binaturalismo16.
1.1) Multinaturalismo: eu e outros.
De fato, notvel a ausncia de exemplos etnogrficos que descrevam uma
relao entre trs ou mais perspectivas. Tal ausncia importante, pois se os
pontos de vista compem e constituem o cosmos amerndio, eles deveriam poder
interagir em encontros com mais de duas perspectivas ou seja, deveria haver
15 Lembremos do seguinte trecho (citado no primeiro captulo): Tipicamente, os humanos, em condies normais, vem os humanos como humanos, os animais como animais, e os espritos (se os vem) como espritos; j os animais (predadores) e os espritos vem os humanos como animais (de presa), ao passo que os animais (de presa) vem os humanos como espritos ou animais (predadores) (Viveiros de Castro 1996: 117) 16 Ao propor que a dinmica de apreenses de um encontro intersubjetivo (entre um jaguar e um homem, por exemplo) no da ordem das representaes, Viveiros de Castro tece a seguinte analogia: O sangue dos humanos o cauim do jaguar exatamente como minha irm esposa de meu cunhado, e pelas mesmas razes (Viveiros de Castro 2002a: 385). Do mesmo modo que no h nada de subjetivo, ou de representacional, nos conceitos de irm ou esposa, no h tambm nada de subjetivo ou representacional nos conceito de sangue e de cauim: se a esposa de meu cunhado de fato minha irm, o sangue dos humanos de fato o cauim do jaguar. No entanto e este ponto que queremos destacar , o multinaturalismo das relaes de parentesco no parece ser o mesmo multinaturalismo do perspectivismo amerndio: enquanto o primeiro caso pode descrever um encontro entre uma multido de pessoas (numa reunio de famlia, por exemplo, enquanto eu trato minha irm como irm, meu cunhado a trata como esposa, meus pais como filha, meu av como neta, minha tia como sobrinha, etc...), no perspectivismo, ao que parece, o multinaturalismo s se realiza dois-a-dois (o que os humanos tratam como sangue, as onas tratam como cauim). O multinaturalismo amerndio, assim, seria mais um binaturalismo.
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algum caso etnografado de um objeto, qualquer, mirado (ou seja, constitudo) por
trs ou quatro pontos de vista diferentes. No entanto, salvo engano, no h notcia
de casos desse tipo. Ou ser que sim? O leitor atento poder replicar que na prpria
bibliografia usada na redao deste texto encontra-se no apenas um, mas dois (e
talvez mais) exemplos que relatam relaes entre uma multiplicidade de
perspectivas. Um destes exemplos provm da etnografia machiguenga, e se
encontra j na epgrafe do primeiro artigo de Viveiros de Castro sobre o
perspectivismo amerndio: El ser humano se ve a s mismo como tal. La Luna, la
serpiente, el jaguar y la madre de la viruela lo ven, sin embargo, como un tapir o un
pecar, que ellos matan (Baer apud Viveiros de Castro 1996: 115). O outro exemplo
provm da etnografia yanomami:
Os espritos vem os humanos sob a forma de assombraes [revenants]; os animais os percebem como semelhantes que se tornaram moradores de casas os seres malficos os consideram como caa e as assombraes os vem como parentes abandonados (Kopenawa & Albert apud Viveiros de Castro 2006: 330)
Os exemplos so de nosso maior interesse, mas acreditamos que eles no
indicam, necessariamente, um multinaturalismo. Observemos, assim, que tanto no
caso machiguenga quanto no caso yanomami a multiplicidade de perceptos dada
sobre o ponto de vista em posio de enunciao: (i) os Machiguenga se vem como
humanos, mas a Lua, a serpente, o jaguar e a me da varola os vem como antas
ou porcos; (ii) os Yanomami se chamam yanmami thp (seres humanos), mas
so tomados como assombraes pelos espritos, e como caa pelos seres malficos,
etc. Cabe perguntar, aqui: a que se refere essas descries machiguenga e
yanomami? Ser que esses relatos esto a descrever encontros entre uma
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multiplicidade de agentes? A primeira descrio, por exemplo, estaria a relatar um
encontro simultneo entre, digamos, um machiguenga, uma ona, uma serpente e a
Lua? Acreditamos que no. Levando em conta o fato de que os perceptos se
articularem sempre em pares17, podemos concluir que a descrio desses relatos se
constitui mais ou menos assim.
Ao tomar contato, por exemplo, com os Machiguenga, ou com sua
etnografia, coletamos uma diversidade de relatos de encontros intersubjetivos que
envolvem os Machiguenga (ou seja, relaes Machiguenga/ Outros). Todos esses
encontros so descritos por um par de perceptos: os Machiguenga vem a Lua
como x e em contrapartida a Lua v os Machiguenga como y; em outro encontro os
Machiguenga vem as Onas como w e em contrapartida as Onas os vem como z,
etc. Em seguida, ao comparar os relatos e os pares de perceptos que os descrevem,
percebemos que os Machiguenga so vistos de formas diferentes por interlocutores
diferentes. Ento sobrepomos os perceptos que a Lua, as Onas, as Serpentes
mantm, cada um por sua vez, sobre os Machiguenga e obtemos, assim, uma
multiplicidade de apreenses. Como todas essas apreenses so da ordem dos
perceptos (isto , so igualmente verdadeiras), a ontologia machiguenga poderia,
assim, ser caracterizada pelo conceito de multinaturalismo.
17 Veja, por exemplo, Viveiros de Castro: O que para ns sangue, para o jaguar cauim; o que para as almas dos mortos um cadver podre, para ns mandioca pubando; o que vemos como barreiro lamacento, para as antas uma grande casa cerimonial (Viveiros de Castro 1996: 127). Vejamos, tambm, Lima: Um ser aparece para si mesmo de modo distinto do que ele aparece para outrem. Isto , a relao consigo difere da relao com outrem. H um vnculo necessrio (no sentido forte do termo) entre essas duas perspectivas: elas constituem um par (Lima 2006: 12. grifo adicionado). Em um momento anterior desse mesmo texto, a autora se expressa do seguinte modo: O regime Yudj em que operam as perspectivas, por sua vez, articula-as em pares: a ona, para si mesma gente, e ona para a gente (2006: 11; grifo adicionado).
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Se as coisas realmente se passam dessa maneira, ou seja, se estamos
seguindo uma boa pista, foroso admitir que o conceito de multinaturalismo est
mais a inferir do que a descrever cosmologias multinaturalistas. Pois este conceito
no se fundamenta nos relatos nativos que descrevem encontros simultneos entre
uma multiplicidade de agentes. Ao contrrio, o conceito de multinaturalismo se d
quando o analista entrecruza os relatos que descrevem encontros intersubjetivos
dados dois-a-dois: a multiplicidade de perceptos um dado a porteriori. Mais uma
descrio antropolgica do que uma auto-descrio cosmolgica, o conceito de
multinaturalismo se constitui, paradoxalmente, quando ns nos dispomos a fixar
um referente: os Machiguenga, que se vem como humanos, mas so vistos como
porcos ou como antas pela Lua, pelas Onas, pelas Serpentes. por ocupar a
posio enunciativa dos relatos que descrevem suas prprias relaes com outros
seres, que os Machiguenga podem ser dispostos pelo analista como um referente
comum sobre o qual se debruam uma multiplicidade de apreenses.
1.2) Estatuto e status
Estamos sugerindo que os relatos de encontros intersubjetivos descritos por
uma diferena de perceptos, aqueles que fundam o complexo etnogrfico visado
pelo perspectivismo, parecem indicar menos uma relao entre mltiplos pontos de
vista do que uma multiplicidade possvel de encontros entre duas perspectivas.
Assim, pois, coloca-se a questo: o problema do multinaturalismo seria, ento, um
problema de prefixo? Ou seja, o conceito de binaturalismo (com o perdo da
palavra feia...) resolveria o problema? Por um lado sim, pois, de fato, os perceptos
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que compem um par apresentam um mesmo estatuto epistemolgico (so
igualmente verdadeiros). Por outro lado no, pois, com efeito, h outra questo
importante envolvida aqui, a saber, a questo da assimetria de status entre os
perceptos articulados.
A questo do status dos perceptos no exatamente levantada por esta
dissertao. Ela j est presente na literatura, embora tenha sido tratada, na
maioria das vezes, como uma questo de diferenas entre juzos de verdade. Vide o
seguinte trecho de AmaZone:
Nota-se na literatura a utilizao de juzos de verdade. Ainda no est bvio se tais juzos so um componente do perspectivismo indgena ou de uma interpretao comandada pela distino aparncia-essncia, temperada por vezes com uma pitada de relativismo. Weiss, por exemplo (mas Baer tambm), sugere que a forma dos espritos na apreenso humana seria menos verdadeira que a forma humana auto-apreendida pelos espritos. O diferencial entre essas apreenses se traduziria em termos do verdadeiro e do falso? A apreenso jaguar dos seres humanos como pecaris seria mais falsa ou mais verdadeira que a auto-apreenso humana? Somente a auto-apreenso seria verdadeira? [...] Uma interpretao perspectivista do perspectivismo no teria de dissociar a verdade e o julgamento? T. S. Lima (1995) sugere que, mutatis mutandis, tudo verdade no sistema Yudj. O que se pe a questo da convenincia das verdades. Convm a pessoas humanas embriagar-se com o cauim dos pecaris? indiferente para os humanos se o cauim de gente, de porco, ou de pa? (AmaZone 2008: [2])
O trecho aponta uma questo especfica referente diferena dos perceptos
articulados em um par. Apesar de se mostrar recorrente, esta uma questo
esquiva. O trecho supra citado nos coloca diante de duas formas de abordagem.
Por um lado, Weiss e Baer sugerem que a diferena das apreenses pode ser
compreendida como uma diferena de juzos de verdade. Os autores no tomam as
apreenses como perceptos, e, de fato, a leitura que Weiss e Baer empreendem
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transita mais prxima das veredas do relativismo que das vias do perspectivismo.
Por outro lado, empreendendo uma leitura propriamente perspectivista, Lima no
procura compreender a questo atravs das noes de verdadeiro e falso, pois,
mutatis mutandis, os perceptos so igualmente verdadeiros: para a autora, a
questo de convenincia.
A pergunta que nos fazemos a seguinte: como conciliar essas duas
abordagens? Debruando-se sobre uma mesma questo a diferena das
apreenses articuladas em um par , acreditamos que as formulaes acima se
fundamentam em intuies etnogrficas concretas, no se opondo como
abordagens excludentes, mas, antes, apontando duas facetas de um mesmo
fenmeno: estatuto e status. Se os perceptos articulados em um par manifestam
uma igualdade de fato, uma equivalncia de estatuto (como bem mostraram
Viveiros de Castro e Lima), h que se atentar para esta outra questo, a saber, a da
assimetria de status, ou de direito18, entre os perceptos que compem um par.
Para tratar desta questo, trazemos ao argumento o relato descrito por
Renard-Casevitz em seu Le banquet masqu: une mythologie de l'tranger
(1991)19. A autora nos oferece uma srie de relatos machiguenga sobre viagens
aldeias estrangeiras que, no entanto, parecem muito com a aldeia onde os
Machiguenga moravam. Esta impresso inicial de semelhana se desfazia toda vez
que os viajantes machiguenga aventavam a possibilidade de realizar uma refeio
comum com seus anfitries: o que os anfitries tinham como peixes ou cutias, os
18 Status pode parecer um termo desajeitado. O adotamos aqui tendo em vista a definio do Dicionrio Aurlio (1995: 612): status (stctu). [Lat.] S. m. Etnol. Conjunto de direitos [...] que caracterizam a posio de uma pessoa em sua relao com outra.
19 Para duas anlises desse relato, ver Viveiros de Castro (2002b: 382-383) e Calavia Sez (2006: 13-14).
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visitantes viam como cobras ou morcegos (pratos que no so prprios do repasto
humano). Para dar conta dessa defasagem de apreenses, Renard-Casevitz traa
uma analogia com as relaes de parentesco, sugerindo que o peixe dos aldees a
cobra dos visitantes da mesma forma
Quune mre et um pre pour X sont des beaux-parents pour Y [...] Cette variabilit de la dnomination en fonction de la place occupp explique que A soit la fois poisson pour X et serpent pour Y (Renard-Casevitz 1991: 29).
Esta analogia, como Viveiros de Castro j ressaltou, muito interessante
(2002b: 383). Para o autor, ela servia, entre outras coisas, para o esclarecimento da
questo da equivalncia do estatuto das apreenses. Aqui, diferentemente, e com
uma pequena reformulao, a analogia nos serve para apontar a questo da
diferena de status entre os perceptos. Vejamos: (i) os viajantes e os anfitries,
apesar de se estabelecerem uma relao cordial, se diferenciam quando miram um
terceiro termo: o que para o primeiro cobra, para o segundo peixe; (ii) na
relao entre cunhados acontece algo bem semelhante: enquanto um deles tem a
moa como sua irm, o outro a tem como sua esposa.
O ponto que esse par de perceptos diferentes, que se equivalem quanto ao
estatuto, subsumem uma relao positiva e outra negativa. Explico. No caso
machiguenga, vimos como todos se tratam como humanos; no entanto, quando a
mesa posta apenas os anfitries usufruem do repasto. No segundo caso, os
homens so afins entre si, mas quando a noiva est no altar apenas um deles tem o
direito de consumar o casamento. Ou seja, antes que uma questo de verdadeiro/
falso, ou uma questo de convenincia, a diferena de apreenses implica uma
assimetria de direito: cobra e peixe so perceptos igualmente verdadeiros, mas
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apenas um deles implica uma relao positiva: quando se trata de um repasto,
peixe comida, cobra no! O ponto, portanto, que essa diferena dos perceptos
articulados indica algo alm da multiplicidade ontolgica de um objeto: a
diferena de apreenso indica, antes disso, uma assimetria entre as relaes que
os anfitries e convidados estabelecem com o objeto: enquanto um dos perceptos
indica uma relao positiva (pois, de fato, come-se peixe), o outro indica uma
relao, a princpio, negativa (pois no se come cobra)20: o repasto dos anfitries
o fastio dos convidados.
Em suma: a assimetria de status diz respeito assimetria das relaes que os
pontos de vista mantm com o objeto mirado: a relao positiva aquela que
acaba se efetuando, enquanto a relao negativa aquela que no possui, digamos,
este direito. Assim, trazemos ao argumento a distino entre o quid facti e o quid
juris para sugerir que os perceptos que compem um par de apreenses
manifestam, por um lado, uma equivalncia de fato (mesmo estatuto) e, por outro,
uma desigualdade de direito (status assimtricos).
20 Cabe notar que sempre h a possibilidade de um par assimtrico de perceptos deixar de ser um par assimtrico para se transformar numa comunho de perceptos positivos. Vide, por exemplo, o seguinte relato yaminawa (que iremos analisar com maior mincia no captulo seguinte): um antepassado yaminawa, sozinho na floresta (depois de uma caa mal sucedida), foi avistado por porcos que se mostravam humanos, e convidado por eles para conhecer a aldeia onde moravam. L ele foi recebido com uma cuia de lama que os habitantes chamavam de cauim. A princpio recusou-se a beber (no se bebe lama). Mas depois que lhe pingaram um colrio, ele passou a ver a lama como cauim, e bebeu da cuia. O mito segue relatando outras ofertas dos anfitries, outros pares assimtricos que se transformam, todos eles, em comunho de perceptos (ver Calavia Sez 2001, 2006).
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2) Ponto de vista
Estas consideraes sobre o multinaturalismo colocam uma questo
importante para a economia do argumento de Viveiros de Castro e Lima sobre o
perspectivismo amerndio: o conceito de ponto de vista o mais apropriado para
dar conta do complexo etnogrfico visado? Esta questo se coloca justamente
porque, ao longo desses comentrios acerca do multinaturalismo, pode-se perceber
uma dinmica da apreenso mais afeita ao conceito de estrutura (sensu Lvi-
Strauss21) que do conceito de ponto de vista pois, se nossas anlises seguem uma
boa pista, o material etnogrfico apontaria para encontros entre duas
subjetividades que atualizam um par de perceptos descritos por uma equivalncia
de estatutos e uma assimetria de status (positivo/ negativo). Ou seja, se os pares de
perceptos apresentam este padro, que se transforma de um caso para outro, no
caberia aqui uma anlise a partir do conceito de estrutura?
2.1) Histria perspectivista
Em uma entrevista concedida via correio eletrnico Flvio Moura, Viveiros
de Castro explicita sucintamente seu argumento sobre o perspectivismo amerndio:
21 No custa lembrar que o conceito lvi-straussiano de estrutura no o mesmo daquele usado pelos antroplogos do estrutural-funcionalismo. Nas palavras de Lvi-Strauss, a noo de transformao inerente analise estrutural. Diria, at, que todos os erros, todos os abusos cometidos, sobre ou com a noo de estrutura, provm do fato de seus autores no compreenderem que impossvel conceb-la separada da noo de transformao. A estrutura no se reduz ao sistema: conjunto composto de elementos e de relaes que os unem. Para que se possa falar de estrutura, necessrio que entre os elementos e as relaes de vrios conjuntos surjam relaes invariantes, de tal forma que se possa passar de um conjunto a outro por meio de uma transformao (Lvi-Strauss 2008: 163).
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Trata-se da noo de que, em primeiro lugar, o mundo povoado de muitas espcies de seres (alm dos humanos propriamente ditos) dotados de conscincia e de cultura e, em segundo lugar, de que cada uma dessas espcies v a si mesma e s demais espcies de modo bastante singular: cada uma se v como humana, vendo todas as demais como no-humanas, isto , como espcies de animais ou de espritos (Viveiros de Castro s/d)22.
O modo como o autor entende o perspectivismo gira em torno do conceito de ponto
de vista. Sua primeira considerao consiste em apontar uma diversidade de
espcies de seres dotados de conscincia e cultura, cada qual apresentando um
ponto de vista especfico. Dado a variedade de perspectivas, o autor passa a
destacar a diferena das apreenses: o percepto lido como o efeito da mirada de
um ponto de vista qualquer, e o perspectivismo tomado como o efeito do encontro
de duas ou mais perspectivas. Seu argumento, portanto, se desenvolve sob o
pressuposto de que os pontos de vista so logicamente anteriores ao
perspectivismo ( assimetria de perceptos).
O conceito de ponto de vista tem um sentido especfico e ocupa uma posio
estratgica no argumento perspectivista. Este conceito possui uma histria23 que
remete, por um lado, s consideraes lvi-straussianas acerca do paradoxo do
relativismo e, por outro, ao debate com o idioma animista que vinha sendo
proposto por Descola. Como j tratamos da diferena entre o idioma animista e o
idioma perspectivista no primeiro captulo, no se trata aqui de traar o panorama
da discusso, mas apenas apontar, rapidamente, o modo como Lima e Viveiros de
Castro procuravam dar conta dos problemas postos pela etnografia amerndia, ao
mesmo tempo em que firmavam uma posio alternativa no debate.
22 Ver http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1417,1.shl (acessado em 03/11/ 2008)
23 Segundo Deleuze & Guattari (1991), todo conceito possui uma histria.
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No incio dos anos 1990, Descola prope um argumento para o complexo
indgena referente humanidade dos animais. Retomando a noo de animismo, o
autor sugere que as sociedades amerndias, ao objetivar a natureza a partir de
conceitos como afinidade e consanginidade, acabavam por estender a condio
social de pessoa para os animais, plantas, etc. Viveiros de Castro e Lima, ao
contrrio, afirmavam que, para as cosmologias indgenas, a condio de pessoa est
dada tanto para os ndios quanto para os animais, pois, segundos essas
cosmologias, no s os animais foram humanos nos tempos mticos, como
continuam a se ver como humanos nos tempos atuais. Ou seja, o fato dos animais
verem a si mesmos como humanos algo que independe da vontade e da mirada
dos ndios: os animais se vem como humanos, mas os ndios (como Lima [1996]
bem ressalta para o caso dos Yudj) discordam desse ponto de vista e os
consideram, justamente, animais os ndios, portanto, no estariam a projetar a
condio de pessoa sobre aqueles que insistem perceber como animais. Ora, isso
significa dizer que se a humanidade dos animais deve ser dada por algum, ela s
pode ser dada pelos prprios animais: ao afirmar, por exemplo, que os porcos se
vem como humanos, os ndios estariam afirmando, simplesmente, que ali est
dada a condio social de pessoa e isso no tanto porque os porcos se vem como
humanos, mas porque eles vem como os humanos. Tem-se, aqui, o conceito de
ponto de vista e, ao mesmo tempo, o lugar central que ele ocupa no argumento
perspectivista: os animais so pessoas porque possuem um ponto de vista24.
24 Para garantir a realidade da condio subjetiva dos animais era preciso demonstrar a realidade de seu ponto de vista. E aqui interessante observar o lugar onde se aloja e se constitui o ponto de vista: a perspectiva est no corpo. Ora, o fato da perspectiva estar no corpo me parece crucial no debate com o animismo: o corpo aquilo que no outro j est dado naturalmente, independente de qualquer projeo subjetiva (e anmica) dos ndios.
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Claro est que o conceito de ponto de vista apresentou e iluminou pontos
que no se encontravam, ento, na proposta animista (Descola 1992). Mas o nosso
esforo, aqui, o de indicar o lugar terico donde este conceito foi inspirado.
Vimos, no primeiro captulo, como a questo do perspectivismo amerndio se
colocava para Viveiros de Castro e Lima: os ndios e os animais vem a si mesmos
como humanos, vendo os outros como no-humanos. Posto assim, o problema
assemelhava-se quele do paradoxo do relativismo analisado por Lvi-Strauss em
Raa e Histria: todas as sociedades vem-se como civilizadas, vendo as demais
como no-civilizadas. Com efeito, a proposta do perspectivismo amerndio
encontrou, no argumento lvi-straussiano, uma forte inspirao. Ento vamos
ele.
O argumento de Lvi-Strauss sobre o paradoxo do relativismo gira, pode-se
dizer, em torno do conceito de ponto de vista (o etnocentrismo como ponto de
vista). Lemos em Raa e Histria, acerca da questo do etnocentrismo, que a
extenso da noo de humanidade, sem distino de raa e civilizao, efeito de
um reconhecimento tardio e instvel do etnocentrismo alheio: o outro s visto
como semelhante ou seja, como parte da humanidade quando se consegue
perceber que ele tambm considera brbaro tudo o que no lhe diz respeito.
Retenha-se daqui o seguinte ponto: este relativismo postula, em primeiro lugar, a
experincia de um ponto de vista etnocntrico (o esquema apreensivo que toma a si
mesmo como civilizado e o outro como no-civilizado), para ento poder
reconhecer e estender, de modo instvel e limitado, este ponto de vista outrem
fazendo dele um outro Eu, ou melhor, um Tu (a segunda pessoa do Singular).
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Enfim, a partir desse reconhecimento que os sujeitos em relao podem perceber
a relatividade das apreenses: os brbaros de uns so os civilizados de outros.
Entendemos que o argumento de Viveiros de Castro e Lima se constitui a
partir de uma abordagem semelhante: mesmo que os autores afirmem e este
ponto crucial; faz toda a diferena! que no perspectivismo amerndio o
reconhecimento da humanidade alheia est dado desde o incio e sobre uma
multido outros seres (inclusive no-humanos), a lgica do argumento ainda acaba
funcionando como se a experincia do ponto de vista fosse anterior ao encontro
intersubjetivo e, portanto, assimetria de perceptos: aquilo que um ponto de vista
percebe como x tido como logicamente anterior ao estabelecimento de sua
relao com outrem e, portanto, anterior descoberta de que seu x y para ele25.
De fato, o argumento prope que a realidade sensvel est dada em cada
perspectiva, ou melhor dizendo, que o mundo est implicado no ponto de vista.
Esta idia se encontra tanto no trabalho de Lima (no trecho que citamos no incio
do captulo26) quanto no trabalho de Viveiros de Castro:
O mundo real das diferentes espcies depende de seus pontos de vista, porque o mundo composto das diferentes espcies, o espao abstrato de divergncia entre elas enquanto pontos de vista: no h pontos de vista sobre as coisas as coisas e os seres que so pontos de vista. A questo aqui, portanto, no saber como os macacos vem o mundo, mas que mundo se exprime atravs dos macacos, de que mundo eles so o ponto de vista (Viveiros de Castro 2002b: 384-385).
25 Ponto importante, o fato das relaes serem constituintes dos pontos de vista (isto , ontologicamente interiores a eles) independe da lgica de que a articulao assimtrica dos perceptos seja o efeito de uma mirada conjunta de pontos de vista distintos. Ou seja, as perspectivas (porco e humano, por exemplo) so logicamente anteriores assimetria de perceptos (cauim dos porcos/ lama dos humanos).
26 Destacamos, aqui, o trecho a que nos referimos: O conceito indgena [de ponto de vista] trata o mundo enquanto especificidade de cada vivente. Os viventes arrastam consigo sua prpria realidade sensvel (Lima 2006: 12).
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Afirmar que as espcies viventes arrastam um mundo es
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