sociedade internacional, direito ao desenvolvimento e estados fracassados: em busca de alternativas
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UNIJU UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
Departamento de Cincias Administrativas, Contbeis, Econmicas e da Comunicao
Departamento de Estudos Agrrios Departamento de Cincias Jurdicas e Sociais
CURSO DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO
DNIS ALBERTO NASCIMENTO MACHADO
SOCIEDADE INTERNACIONAL, DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E ESTADOS FRACASSADOS: EM BUSCA DE ALTERNATIVAS
Iju (RS) 2012
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DNIS ALBERTO NASCIMENTO MACHADO
SOCIEDADE INTERNACIONAL, DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E ESTADOS FRACASSADOS: EM BUSCA DE ALTERNATIVAS
Dissertao apresentada ao curso de Ps-Graduao Stricto Sensu em Desenvolvimento, na linha de pesquisa Direito, Cidadania e Desenvolvimento, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJU), como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Desenvolvimento.
Orientador: Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin
Iju (RS) 2012
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M180s Machado, Dnis Alberto Nascimento.
Sociedade internacional, direito ao desenvolvimento e estados
fracassados: em busca de alternativas / Dnis Alberto Nascimento
Machado. Iju, 2012.
137 f.
Dissertao (mestrado) Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Iju). Desenvolvimento.
Orientador: Gilmar Antonio Bedin.
1. Sociedade internacional. 2. Direitos Humanos. 3. Globalizao.
4. Direito ao desenvolvimento. 5. Estados fracassados. I. Bedin, Gilmar
Antonio. II. Ttulo. III. Ttulo: em busca de alternativas.
CDU : 341.231.14
341.232
Catalogao na Publicao
Frederico Cutty Teixeira
CRB10 / 2098
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UNIJU - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Mestrado
A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertao
SOCIEDADE INTERNACIONAL, DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E
ESTADOS FRACASSADOS: EM BUSCA DE ALTERNATIVAS
elaborada por
DNIS ALBERTO NASCIMENTO MACHADO
como requisito parcial para a obteno do grau de
Mestre em Desenvolvimento
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin (UNIJU): ________________________________________
Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto (UDC): __________________________________________
Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas (UNIJU): _________________________________________
Iju (RS), 16 de maro de 2012.
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AGRADECIMENTOS
Em toda pesquisa h momentos de solido, isolamento e desassossego. O
pesquisador descobre-se um grande amigo dos livros, com as pessoas a sua volta,
em contrapartida, ficando no raro distantes. No entanto, em cada pausa o mundo
visto de outra maneira, as pessoas se reaproximam e a saudade abrandada por
novos e insubstituveis momentos com famlia e amigos.
por isso que a presente dissertao no pode ser creditada a uma s
pessoa, mas tambm a todas aquelas que estiveram presentes em cada linha, em
cada pgina que se iniciava e na qual se fixavam as impresses, ideias e
sentimentos de quem escrevia acompanhado por todos aqueles que nunca lhe
negaram um abrao ou uma palavra de apoio.
Agradeo aos meus pais, Srgio Corsetti Machado e Clair Catarina do
Nascimento Machado, os quais so a minha inspirao, motivao, fora e crena.
Com vocs aprendi que a vida pra valer, como diz o poeta, e que mais
importante do que vencer ou perder atingir o significado dos acontecimentos,
compreendendo o pano de fundo por detrs daqueles rtulos postos na trama da
vida por nossos anseios e justificativas.
Agradeo minha namorada, Larissa Ritter de Almeida, a qual me ensinou
a beleza das coisas simples e complexas que permeiam o convvio mtuo. Obrigado
pelo incentivo contnuo, pelo imprescindvel amparo afetuoso e compreensivo que
nunca faltou e esteve sempre a iluminar aqueles dias mais complicados e nos quais
a criatividade parece em descanso.
Ao meu grande amigo, Prof. Dr. Eduardo Matzembacher Frizzo, pelo
companheirismo e pelas valiosas conversas. Com certeza os nossos
questionamentos esto presentes neste trabalho, aclarando ou mesmo
problematizando as temticas, sempre com o objetivo de ampliar os horizontes
hermenuticos.
Prof. Dra. Luciene Dal Ri, a qual propiciou uma grande carga de
entusiasmo com o seu trabalho de orientao no primeiro ano de mestrado, trazendo
todo o seu profissionalismo e experincia nas reas da pesquisa e da docncia. No
h dvida de que os sensatos ensinamentos por ela apresentados contriburam em
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muito para se conseguir escapar de maniquesmos, elevando assim a ideia de dar
uma tonalidade mais densa ao discurso.
Ao Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin, o qual assumiu a orientao a partir do
segundo ano, constantemente dissipando as inmeras dvidas que surgiam e
trazendo sempre uma palavra de serenidade e animao. Foi graas a ele que a
disciplina das Relaes Internacionais pde se fazer presente com maior fora no
texto, configurando-se a sua orientao, por isso, no ponto balizador mais slido do
trabalho como um todo.
Ao Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas, por todo o auxlio prestado no transcorrer
da feitura desta dissertao e do mesmo modo pela perspectiva imbuda de direitos
humanos que desperta em seus alunos. fato que sem as direes apontadas por
ele, seja na pesquisa ou na docncia, o resultado de todo este trabalho no teria
sido o mesmo.
Aos professores doutores Darcsio Corra, Daniel Rubens Cenci, Martinho
Luis Kelm, Odete Maria de Oliveira, Arno Dal Ri Jnior e Antonio Carlos
Wolkmer, por estimularem aquela grande paixo pelo conhecimento que traz bons
ventos de sensatez s reviravoltas inerentes ao dia a dia.
Agradeo aos colegas de mestrado pelo companheirismo, em especial
Giancarlo Maturano Ghisleni, Aline Dornelles Madrid, Priscila Gadea Lorenz e
Lucas Goulart da Silva, bem como Secretaria do Curso de Mestrado em
Desenvolvimento, na pessoa de sua funcionria Janete Guterres, por toda a
assistncia oferecida.
Um muito obrigado aos vrios professores, familiares e amigos que no
foram aqui mencionados, mas estiveram comigo em cada passo e em cada esforo,
nas lembranas dos muitos momentos compartilhados, bem como nos sonhos e nas
esperanas do porvir.
Agradeo tambm pelo subsdio financeiro proporcionado pela Capes, sem o
qual a realizao deste trabalho no seria possvel.
E finalmente a Deus, dualidade de presena e ausncia, ser e no ser que
povoa os acontecimentos insondveis e os caminhos no traados que perpassam a
vida.
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Ver a terra como podemos v-la agora, pequena e azul e bela flutuando no silncio
eterno, ver-nos como passageiros unidos nesse astro, irmanados no
encantamento brilhante da noite que no termina irmos que percebem agora
estar verdadeiramente irmanados.
Archibald MacLeish
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RESUMO
A presente dissertao examina, no contexto terico-normativo da sociedade internacional contempornea, a emergncia do direito ao desenvolvimento e sua vinculao com os Estados fracassados. Para tanto, a dissertao parte da abordagem da sociedade internacional moderna, a qual emerge em razo da ascenso do Estado moderno, implicando tambm no exame deste ltimo para a conformao da primeira parte do trabalho. Aps, examina a inflexo terica possibilitadora do aparecimento da sociedade internacional contempornea, demandando assim o estudo dos novos atores internacionais, dos direitos humanos e do fenmeno da globalizao. Por fim, na esteira da expanso internacional dos direitos humanos, faz uma anlise do surgimento do direito ao desenvolvimento e o vincula ao tema dos Estados fracassados. Alm disso, levanta um breve conjunto de alternativas para essas entidades no contexto atual da sociedade internacional.
Palavras-chave: Sociedade internacional. Direitos Humanos. Globalizao. Direito ao desenvolvimento. Estados fracassados.
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ABSTRACT
This dissertation examines the theoretical and legal context of contemporary international society, the emergence of the right to development and its relationship with failed states. To this end, the dissertation begins with the approach of modern international society, which emerges due to the rise of the modern state, but also implies the examination about the latter for the conformation of the first part of the work. After that, examines the theoretical inflection enabler of the emergence of contemporary international society, thus requiring the study of new international actors, human rights and globalization. Finally, in the wake of the expansion of international human rights, analyzes the rise of the right to development and links it to the issue of failed states. In addition, raises a brief set of alternatives for these entities in the current context of international society. Keywords: International Society. Human Rights. Globalization. The right to development. Failed states.
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SUMRIO INTRODUO .......................................................................................................... 10 1. A SOCIEDADE INTERNACIONAL MODERNA CLSSICA E SEUS CONTORNOS ........................................................................................................... 15 1.1 A Sociedade Internacional e sua Conformao Histrica ................................... 16 1.1.1 O nascimento do Estado Moderno e suas caractersticas centrais .................. 16 1.1.2 A formao da sociedade internacional moderna e seus principais elementos constitutivos ............................................................................................................... 21 1.2 A Sociedade Internacional e sua Denominao: Comunidade, Sociedade ou Anarquia Internacional? ............................................................................................ 28 2. A SOCIEDADE INTERNACIONAL CONTEMPORNEA E SUA CRESCENTE COMPLEXIDADE ..................................................................................................... 42 2.1 A Criao da ONU e a Declarao Universal dos Direitos do Homem ............... 43 2.2 A Emergncia dos Novos Atores Internacionais e suas Implicaes .................. 49 2.3 O Fenmeno da Globalizao e suas Implicaes ............................................. 68 3. DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E ESTADOS FRACASSADOS: EM BUSCA DE ALTERNATIVAS ................................................................................................. 80 3.1 A Expanso dos Direitos Humanos e o Direito ao Desenvolvimento .................. 81 3.2 Os Estados Fracassados .................................................................................... 94 3.3 Os Estados Fracassados e suas Alternativas na Atualidade ............................ 107 CONSIDERAES FINAIS .................................................................................... 115 REFERNCIAS ....................................................................................................... 119 ANEXO 1................................................................................................................. 127 ANEXO 2................................................................................................................. 133 ANEXO 3................................................................................................................. 137
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INTRODUO
comum referir que a contempornea fase pela qual atravessam os seres
humanos tende a ser fugidia, escapando com frequncia das tentativas de bem
apreend-la. Isso evoca expresses conceituais como ps-modernidade, alta
modernidade, hipermodernidade, globalizao, sociedade lquida e sociedade de
risco, com todas, de alguma forma ou de outra, tentando abarcar o contexto atual, o
qual ao mesmo tempo revela perturbantes paradoxos. Dentro desse mbito, em que
as realidades das relaes no planeta se tornam mais intensas, interligadas e
interdependentes, e da mesma forma mais esquivas s determinaes conceituais
do passado, realmente desafiador situar o Estado, tradicional detentor de toda a
soberania, e tambm localizar a exata dimenso dos relacionamentos inerentes
sociedade internacional.
Por essa razo que o presente trabalho se inicia a partir de detido exame da
sociedade internacional, contextualizando o cenrio para somente depois tratar
diretamente da matria referente ao direito ao desenvolvimento em conjunto com a
temtica dos Estados fracassados. O caminho traado at a figura do fracasso
estatal passou, portanto, pela tentativa de procurar distinguir alguma unidade
conceitual bsica para a contempornea realidade internacional, mesmo que isso
tenha sido feito sem se descuidar da intrnseca complexidade do atual panorama,
possibilitando encontrar uma determinada ordem no caos com a inteno de dar
maior coeso terica para o estudo. No trajeto certas hipteses se confirmaram,
outras no, resultando disso a reafirmao de alguns pontos, como a relativizao
da soberania estatal e da poltica de poder referente ao molde clssico da disciplina
das Relaes Internacionais.
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Anteriormente situado como o ator central dessa disciplina, hoje o Estado,
ainda que seja imensamente importante, desafiado por outros atores
internacionais que retiram dele muito de sua prvia proeminncia, modificando a
dinmica clssica das relaes internacionais, erigidas agora a uma conformao
global. Revela-se assim toda a complexidade enfrentada quando do estudo da
condio estatal e da sociedade internacional dentro do contexto da globalizao,
exigindo do pesquisador uma viso que abarque vrias disciplinas, ainda mais
quando o intento seja inserir nesse campo o elemento jurdico do direito ao
desenvolvimento e a enigmtica figura dos Estados fracassados. Desse modo,
houve um intenso dilogo entre os caracteres tericos inerentes ao Direito, Teoria
do Estado, s Teorias da Globalizao e s Relaes Internacionais, indicando a
natureza interdisciplinar do presente trabalho, o que no implica carncia na
delimitao temtica de maneira alguma.
que o objetivo final, de qualquer forma, foi sempre o de encontrar
alternativas tericas para aquelas entidades estatais mais defasadas em suas
estruturas, os Estados fracassados, as quais no conseguem se estabilizar dentro
do presente cenrio, sofrendo deficincias constantes que se retroalimentam e
aprofundam as desigualdades interestatais. Fez-se imperioso ento encontrar a
relao dessas entidades, tambm conhecidas como Estados falidos (expresso
esta mais fiel inglesa Failed States), com o direito ao desenvolvimento e com o
restante da contextualizao contempornea internacional. Entrementes, cabe
referendar que em anexo ao presente trabalho encontra-se uma lista (anexo 2) de
quais seriam aquelas entidades estatais consideradas em situao de fracasso na
atualidade (Somlia, Haiti, Qunia, Camboja, etc.).
Alm disso, mostra-se bastante oportuno justificar a escolha da expresso
Estados fracassados em lugar de se optar pela expresso Estados falidos. No Brasil,
de um modo geral, a literatura tem utilizado esta ltima terminologia, enquanto que
em Portugal comum a utilizao da variante Estados falhados. Este trabalho se
utilizar sobretudo da verso Estados fracassados, empregada igualmente por
Leandro Nogueira Monteiro em sua obra O Conceito de Estado Fracassado nas
Relaes Internacionais, nomenclatura adotada ainda por Nivaldo Montingelli Jr. em
sua traduo do livro Construo de Estados, de Francis Fukuyama. Entende-se
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que a expresso Estados fracassados coaduna-se mais com a abrangncia que o
presente trabalho pretende dar aos vrios aspectos imbudos em sua problemtica
(polticos, sociais, institucionais, etc.), ao passo que a locuo Estados falidos,
embora mais fidedigna origem inglesa, poderia dar azo a compreenses um tanto
mais centradas nos aspectos econmicos da questo.
De todo modo, imperioso mencionar que a preocupao principal deste
texto nunca deixou de atentar concretamente para o ser humano, ainda mais
considerando a conjuntura dos Estados fracassados, os quais se situam em uma
realidade bastante drstica para as suas populaes, na qual a m gesto poltica e
econmica, os conflitos, as doenas, a insegurana traam um panorama muito
pouco animador, com perdas de infraestruturas econmicas e de capital social,
gerando maior incerteza e minguando sobremaneira as perspectivas para o futuro.
Nesse nterim, objetivando melhor clarear o assunto, configura-se oportuno fazer
referncia a certo entendimento preliminar acerca da categoria Estado Fracassado,
afirmando que, na compreenso do presente trabalho, adaptam-se a esse conceito
aquelas entidades estatais as quais nem mesmo para uma parcela moderada de
suas respectivas populaes tem conseguido elevar os nveis de desenvolvimento e
garantir uma vida digna (nos moldes mais bsicos de concepo que se d a uma
vida digna).
Mesmo em face desses parmetros, no o caso de alegar de maneira
peremptria a no existncia de aspectos positivos no que concerne ao cenrio
atual. Pode-se expor que, com a ascenso do direito ao desenvolvimento como um
direito humano fundamental com a Declarao sobre o Direito ao
Desenvolvimento, de 1986, cumprindo nisso um importantssimo papel , h uma
dinmica internacional diferenciada no que toca soberania, dinmica que j vinha
se consolidando na esteira da afirmao dos direitos humanos pela Declarao
Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e que passa a referir-se ento ao direito
ao desenvolvimento como mais um plano de ao exigvel no que concerne aos
Estados para com as suas populaes, bem como no que tange aos Estados mais
fortes para com aqueles mais fracos. Isso significa uma sociedade internacional com
maior tendncia cooperao e interdependncia, fazendo prementes
perspectivas solidaristas que possam dar um novo rumo para a natureza muitas
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vezes predatria intrnseca ao fenmeno da globalizao, afirmando tambm a
categoria da sociedade internacional contempornea em contraponto sociedade
internacional moderna, sua predecessora.
Nesse sentido, o presente texto alia-se perspectiva que compreende ter
havido uma inflexo no panorama internacional a partir da Declarao de 1948, com
os direitos do indivduo se afirmando perante os Estados em todas as suas
dimenses, o que significa valorizar e dar efetividade aos direitos civis, polticos,
sociais, econmicos, culturais e de solidariedade, corroborando para uma sociedade
internacional muito menos marcada pela poltica de poder inerente sociedade
internacional moderna, bem como muito mais propensa ao dilogo e resoluo dos
conflitos interestatais pela via institucional. Alm disso, como mencionado, emerge a
categoria jurdica do direito ao desenvolvimento prpria dos direitos de
solidariedade , confirmando a natureza jurdico-moral mais tendente cooperao
que deve ser albergada pelos Estados com o fito de dirimir as desigualdades
interestatais e dar uma melhor condio de vida para aquelas populaes que
habitam aqueles Estados em situao de fracasso.
a partir dessas mudanas atinentes ao panorama jurdico internacional e
tambm a partir da nova complexidade desse cenrio que se reitera a existncia de
uma sociedade internacional contempornea, com a ascenso, como afirmado, de
novos atores e de uma considervel relativizao da poltica de poder referente
sociedade internacional moderna. Concomitantemente, aps a descolonizao da
dcada de 1960, em tal panorama emergem os j aludidos Estados fracassados
os quais no esto de modo algum ilesos relativizao da soberania respeitante ao
atual contexto da globalizao , com todos os Estados, assim, em maior ou menor
medida, sendo afetados pelos processos globalizadores, sejam estes de ndole
positiva ou negativa. Todos esses aspectos s vm a confirmar a atual
complexidade internacional e a categoria da sociedade internacional
contempornea, sendo portanto com base no conjunto desse mbito substancial que
o presente trabalho consolida as suas diretrizes fundamentais.
A partir do exposto, ressalta-se que no primeiro captulo ser abordada a
categoria da sociedade internacional moderna, a qual emerge em razo da
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ascenso do Estado moderno, implicando tambm no exame deste ltimo para a
conformao da primeira parte do trabalho. No que concerne ao segundo captulo,
ser examinada a acenada inflexo terica que possibilitou o aparecimento da
sociedade internacional contempornea, demandando assim o estudo dos direitos
humanos, dos novos atores internacionais e do fenmeno da globalizao. Por fim,
no terceiro captulo, ser feita a exposio do surgimento do direito ao
desenvolvimento na esteira da expanso internacional dos direitos humanos, sendo
que, ademais, ser investigado o fenmeno dos Estados fracassados, bem como
enfatizadas algumas alternativas tericas para essas entidades estatais atualmente
em condio de fracasso.
Nas consideraes finais retomado o percurso feito no trabalho, sendo
afirmadas com maior clareza as consequncias negativas da existncia dos Estados
fracassados. Nesse sentido, reafirma-se que o mote do trabalho sempre foi atrelado
ao ser humano e efetivao dos seus direitos. Isso significa que a dissertao
esteve continuamente preocupada com aquelas parcelas da populao desprovidas
de liberdade e submetidas a privaes econmicas, sociais e polticas de grande
significado, em consequncia da ausncia, no seu dia a dia, dos benefcios do
desenvolvimento. Nesse contexto, a presente dissertao destaca a importncia da
efetivao do direito ao desenvolvimento e da construo de novas possibilidades
de cooperao internacional, em especial diante da emergncia de problemas que
somente podem ser resolvidos em escala planetria e da constatao de que todos
ns vivemos, hoje, no mesmo mundo.
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1. A SOCIEDADE INTERNACIONAL MODERNA CLSSICA E SEUS
CONTORNOS
Os estudos concernentes temtica da sociedade internacional se mostram
cada vez mais relevantes diante da crescente complexidade que o contemporneo
cenrio global apresenta. Nesse contexto, faz-se imprescindvel apreender alguns
aspectos relativos sociedade internacional moderna, que precede a sociedade
internacional atual, chamada contempornea. A sociedade internacional moderna
forma-se com a constituio dos Estados modernos, afirma-se com a Paz de
Vestflia (1648) e expande-se, posteriormente, de maneira gradual da Europa para o
resto do mundo.
Entende-se, nessa linha, que o perodo que vai dos tratados da Paz de
Vestflia at o nascimento da Organizao das Naes Unidas (1945) e a
Declarao Universal dos Direitos do Homem (1948) o perodo tpico da sociedade
internacional moderna. Esta sociedade marcada pela presena de um nico ator, o
Estado moderno, e pelo conceito de soberania. Tal conformao se modifica aps a
criao da ONU e a publicao de sua Declarao de Direitos, em 1948, tornando
as relaes internacionais muito mais complexas, possibilitando, por conseguinte,
com a ecloso de novos atores internacionais e com o advento da globalizao a
formao de uma nova sociedade internacional: a sociedade internacional
contempornea.
Nesse contexto, o presente captulo tem incio com a anlise da formao
histrica do Estado moderno e de suas principais caractersticas. Em seguida, so
abordados o nascimento e os principais elementos constitutivos da sociedade
internacional moderna. Ao final, buscar-se- descobrir se a sociedade internacional
moderna pode ser mesmo denominada de sociedade, ou seria mais adequado
denomin-la de anarquia internacional ou at mesmo de uma verdadeira
comunidade.
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1.1 A Sociedade Internacional e sua Conformao Histrica
A sociedade internacional moderna (ou clssica) surge em virtude do
aparecimento e da afirmao do Estado moderno. Por tal razo, imprescindvel por
primeiro destacar alguns aspectos referentes ao Estado moderno, concentrando
somente depois o estudo nas questes relativas gnese e consolidao da
sociedade internacional moderna. preciso realar que o entendimento albergado
por este trabalho de que esses dois fenmenos esto nitidamente imbricados, o
que por bvio impede a compreenso de um sem se levar em conta o outro. Sendo
assim, a separao em tpicos aqui efetuada apenas por questes metodolgicas,
no havendo um real isolamento desses fenmenos ou categorias.
1.1.1 O nascimento do Estado Moderno e suas caractersticas centrais
Segundo Gilmar Antonio Bedin (2008), o processo que deu origem entidade
estatal moderna principiou entre os sculos XIII e XIV, tendo sido concludo nos
sculos XVI e XVII. Dessa forma, aps o esgotamento dos pressupostos e dos
fundamentos da sociedade feudal, como tambm da prpria Idade Mdia (BEDIN,
2008, p.49), ocorre o florescimento das cidades e do comrcio, rompendo-se
gradativamente com o predomnio das formas de sociabilidade agrrias ou rurais,
propiciando o surgimento dos primeiros traos que levariam ecloso do Estado
moderno.
Nesse nterim, necessrio frisar que no h data precisa delimitando a
passagem do feudalismo (ou da forma estatal medieval) para o capitalismo, onde
comea a surgir o Estado Moderno em sua primeira verso (absolutista) (2000,
p.22), como advertem Lenio Luiz Streck e Jos Luis Bolzan de Morais. O mais
sensato afirmar que por sculos conviveram na Europa Ocidental e Central o
descendente modo de produo feudal e o ascendente modo de produo
capitalista. Sendo assim, a decadncia do feudalismo em face do capitalismo,
ocorrida a partir da Baixa Idade Mdia,1 deu-se de modo lento e gradual, delineando
1 Para fins historiogrficos, conforme Bedin (2008), costuma-se dividir a Idade Mdia em quatro
perodos distintos: Primeira Idade Mdia ou Antiguidade Clssica Tardia (sc.V a VIII), Alta Idade
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aos poucos os contornos sociais, polticos, econmicos, culturais e tericos que
resultariam no surgimento do Estado moderno.2
Acentuou-se naquele momento histrico uma dinmica social nova, com
gradativas mutaes na percepo, crenas e valores do homem medieval. Assim,
os trabalhadores campesinos vo gradualmente rompendo com os processos de
identificao com a terra e com os laos de dependncia (BEDIN, 2008, p.60),
fazendo o modelo urbano de sociabilidade prosperar em detrimento do sistema de
cunho feudal tpico da Idade Mdia.
que o sistema poltico e socioeconmico medieval (tipicamente organicista),
com uma rgida hierarquia baseada nas ordens tradicionais (status), na qual cada
pessoa tinha um lugar predeterminado no que se acreditava ser a ordem natural
das coisas foi, aos poucos, cedendo espao para as mudanas trazidas pela
modernidade, com as consequentes alteraes da advindas. A ideia do indivduo
autossuficiente, o incipiente mercado, a descoberta do Novo Mundo, contribuem de
forma invarivel para a constituio do novo homem que ser o alicerce do Estado
moderno nascente.
Nesse quadro o Renascimento (concentrado entre os sculos XIV e XVI), a
Reforma Protestante e tambm a Contra-Reforma da Igreja Catlica (ambas a partir
do sculo XVI) so trs importantes elementos que contriburam sobremaneira para
a centralizao poltica caracterizadora do Estado moderno (BEDIN, 2008). Desse
modo, faz-se imprescindvel destacar a seguir, ainda que brevemente, esses trs
elementos.
Dessa maneira, destaca-se que o Renascimento aprofundou as diversas
tendncias iniciadas na Baixa Idade Mdia, seja em termos polticos, com o
fortalecimento do poder secular; seja em termos econmicos e sociais, com o
fortalecimento do comrcio e das cidades; seja na forma de compreenso do
Mdia ou Idade Mdia Mdia (sc.VIII a X), Idade Mdia Central (sc.X a XIII) e Baixa Idade Mdia (sc.XIII a XIV). 2 oportuno ressaltar Perry Anderson, o qual sinaliza que a longa crise socioeconmica europeia
ocorrida durante os sculos XIV e XV marcou as dificuldades e os limites do modo de produo feudal do ltimo perodo da Idade Mdia (1998, p.15).
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mundo, com a libertao e valorizao do ser humano (BEDIN, 2008, p.71),
marcando o incio da sociedade moderna.
Sendo assim, mesmo que se tenha como correta a afirmao de que a
Renascena no uma total anttese da etapa medieval, pois, como declara Vincius
Soares de Campos Barros (2010), certo grau de individualismo e realismo j se
encontrava gestado no medievo, possvel mencionar, entrementes, que o
Renascimento mostra-se como um cenrio novo e sedutor, em que o homem
encontra-se consigo mesmo em suas potencialidades criativas e se v como senhor
de sua prpria histria (CAMPOS BARROS, 2010, p.17). Tamanhas mutaes na
condio existencial humana propiciam uma certa atitude intelectual prpria:
humanista, individualista, racionalista e voltada para a Antiguidade Clssica
(BEDIN, 2008, p.68).
Nesse sentido, o perodo renascentista3 fortaleceu a crena nas iniciativas
humanas e na liberdade do homem frente Religio, o que no significa ser tal fase
uma apologia a vises antirreligiosas ou anticrists da existncia, mas sim que, ao
confiar na plena possibilidade de construir o seu prprio destino, o homem livra-se
de determinismos e pode ento tornar o seu espao sociopoltico sensivelmente
mais laico. Razo e cincia buscam assim emancipar-se das amarras do
dogmatismo religioso e escolstico, ocorrendo a gradativa separao entre a moral e
a poltica (Maquiavel), entre a teologia e a filosofia, dando-se nfase a uma nova
concepo do saber com a observao sistemtica dos fatos e a experimentao
cuidadosa (BEDIN, 2008, p.69).
O Renascimento, desse modo, como uma fase de transio entre o velho e o
novo, em que, ao modo de produo feudal, sobrevm o capitalismo, fazendo, por
conseguinte, surgir novas realidades tcnicas e um forte desenvolvimento
econmico propulsor do reaparecimento das cidades (CAMPOS BARROS, 2010,
pp.17-18), impulsionou por tudo isso inmeras mudanas sociais, polticas e
3 Cabe mencionar Edith Sichel, que define o Renascimento como um movimento, uma revivificao
das capacidades do homem, um novo despertar da conscincia de si prprio e do universo - um movimento que se alastrou pela Europa Ocidental e (...) deixando atrs de si um mundo novo, parece-se mais com um fenmeno da natureza do que com uma corrente da histria - mais uma atmosfera envolvendo os homens do que um rumo definido sua frente (1963, p.7).
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econmicas relacionadas ao surgimento e a consolidao do Estado moderno. Entre
tais mudanas, destaca-se a laicizao da poltica, ocorrendo a gradual diminuio
do poder da Igreja diante do nascente modelo estatal da modernidade, com os
monarcas absolutistas afirmando cada vez mais os seus poderes em face do
papado.
O segundo elemento mencionado, a Reforma Protestante, tambm exerceu,
como se alegou, profunda influncia na ascenso do Estado moderno. que com os
ideais reformadores propagados por seus principais expoentes, Martin Lutero (1483-
1546) e Jean Calvino (1509-1564), emerge a noo de que as autoridades
eclesisticas no possuem qualquer jurisdio ou poder nos assuntos temporais
(BEDIN, 2008, p.75), e de que as prticas oficiais e a riqueza da Igreja violavam os
preceitos cristos dos primeiros tempos (BEDIN, 2008, p.74). Alm disso, a
Reforma afirmou a liberdade de interpretao da bblia, buscando compatibilizar
humanismo e razo com Religio, aproveitando a recm-descoberta imprensa para
a divulgao de suas ideias. Como consequncia do movimento reformista, houve o
enfraquecimento do poder da Igreja e do papado e o fortalecimento do poder
secular (BEDIN, 2008, p.76), pois a Reforma deu fim unidade religiosa da Idade
Mdia e, em grande medida, fomentou a separao da poltica em relao esfera
da Religio.
No que se refere Contra-Reforma da Igreja Catlica, ocorrida a partir do
Conclio de Trento e tendo como instrumento bsico a Companhia de Jesus
(Ordem dos Jesutas), criada por Incio de Loyola (1491-1556), em 1534 (BEDIN,
2008, p.77), pode-se afirmar que ela contribuiu para a ascenso do Estado moderno
na medida em que, ao tentar enfraquecer a Reforma Protestante aliando-se a reis
catlicos, auxiliou no processo de centralizao poltica da entidade estatal
moderna. Portanto, a Reforma Protestante e a Contra-Reforma da Igreja Catlica
no causaram somente modificaes que afetaram a sociedade e o cenrio
religioso, mas contriburam tambm de maneira bastante considervel para o
nascimento e a consolidao do Estado moderno, haja vista ambas terem se unido a
monarcas absolutistas no intuito de fortalecer as suas respectivas posies relativas
ao cristianismo.
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Interessante neste ponto acrescentar Ren-Jean Dupuy, o qual afirma que
enquanto a Reforma recusa a autoridade do Papado, a constituio de Estados
poderosos, enriquecidos com o ouro da Amrica, arruna a suserania do Imperador
(1993, p.11), desmoronando a organizao poltica medieval e propagando o ento
incipiente Estado moderno. Dessa maneira, as transformaes continentais da Baixa
Idade Mdia fazem emergir o Estado Absolutista, que a primeira forma tomada
pelo Estado moderno, passando os poderes dispersos existentes na organizao
poltica medieval para a pessoa de um nico monarca. Nesse sentido, ocorre uma
concentrao de poderes, sendo que, nas palavras de Hermann Heller, a evoluo
levada
[...] a efeito, no aspecto organizador, para o Estado moderno, constitui em que os meios reais de autoridade e administrao, que eram domnio privado, se transformassem em propriedade pblica e em que o poder de mando que se vinha exercendo como um direito do indivduo se expropriasse em benefcio do prncipe absoluto primeiro e depois do Estado (1968, p.163).
Frisa-se que o processo de nascimento do Estado moderno demandou a
superao dos poderes locais e universais, ou seja, os monarcas dos embrionrios
Estados europeus precisaram subjugar internamente os senhores feudais, clrigos,
corporaes de ofcio e demais ordens inferiores e, externamente, a Santa S e o
Sacro Imprio Romano-Germnico.4 Em outras palavras, tendo
submetido os poderes locais - senhores feudais e autoridades eclesisticas inferiores e fragilizado os poderes supranacionais Igreja e Sacro Imprio Romano-Germnico , as monarquias modernas e, em conseqncia, o Estado moderno vo, aos poucos, tornando-se as principais unidades polticas da nova etapa da trajetria da humanidade (BEDIN, 2008, p.81).
Ocorrem assim os fenmenos da centralizao e da concentrao do poder
estatal, com a gradativa especializao do aparelho burocrtico-administrativo,
chamando o Estado para si uma populao alm de um territrio bem definido,
sobre o qual exerce soberania, com os inmeros monoplios caractersticos do
modelo estatal da modernidade (uso legtimo e institucional da violncia fsica,
justia, arrecadao de tributos, moeda etc.). Frisa-se que o monoplio que mais
4 Apesar do nome, o Imprio ou Sacro Imprio Romano-Germnico no constitua uma fora poltica
suficiente para fazer frente aos monarcas do perodo, porquanto no passava, de fato, de uma fico poltica, uma espcie de estrutura institucional sem monoplio da violncia, o que no lhe conferia qualquer hiptese de efetividade prtica (BEDIN, 2011, p.18).
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bem define o Estado moderno o do uso legtimo e institucional da violncia fsica,
constituindo de forma efetiva a autoridade central dessa entidade.5
Aps a derrocada de sua fase absolutista, o Estado moderno atravessa por
uma fase liberal e por uma social (e tambm por outra imbuda de farto
neoliberalismo), constituindo-se a etapa atual objeto de inmeras controvrsias e
tida por muitos como a fase ps-moderna do Estado (e, portanto, ao menos em tese,
j para alm da modernidade). No oportuno adentrar no estudo dessas etapas,
cumprindo to somente ressaltar que o surgimento e a consolidao do Estado
moderno demarcam-no como a unidade bsica da ento nascente sociedade
internacional moderna, sendo a partir disso que esta vai se definindo como uma
sociedade tipicamente interestatal, em que estaro presentes, pelo menos
inicialmente, apenas os Estados soberanos (BEDIN, 2001, p.176).
Dessa forma, dadas as disposies centrais acerca da formao do Estado
moderno, bem como esboada de maneira brevssima as suas principais
caractersticas, interessa determinar melhor o surgimento e os caracteres nucleares
da sociedade internacional moderna. o que ser desenvolvido no prximo tpico,
buscando-se, logo depois, descobrir se a expresso sociedade internacional
realmente a mais adequada, ou se a condio internacional da modernidade seria
mais bem designada por anarquia ou ainda por comunidade internacional.
1.1.2 A formao da sociedade internacional moderna e seus principais
elementos constitutivos
Com o nascimento do Estado moderno cria-se a precondio para que seja
possvel uma sociedade internacional nos moldes da modernidade.6 Fica assim
5 Nas palavras de Paulo Bonavides: O Estado moderno racionalizou (...) o emprego da violncia, ao
mesmo passo que o fez legtimo. De modo que, valendo-se de tais reflexes, chega Max Weber, enfim, ao seu clebre conceito de Estado: aquela comunidade humana que, dentro de um determinado territrio, reivindica para si, de maneira bem sucedida, o monoplio da violncia fsica legtima (2009, p.70). 6 O avano da sociedade internacional moderna foi, portanto, diretamente proporcional ao avano do
Estado moderno, com ambos sedimentando as caractersticas ou princpios centrais da poltica internacional da modernidade.
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aberto o caminho para que o formato estatal desse perodo possa ser
gradativamente incorporado ao cenrio, firmando-se como o principal ator das
relaes internacionais e promovendo as caractersticas basilares que iriam compor
a sociedade internacional moderna. habitual designar a Paz de Vestflia (1648)
como o marco histrico principal relativo origem dessas caractersticas, a qual,
alm de determinar o fim da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648),7 teria tambm
consolidado uma nova conjuntura,8 sendo esta livre de determinaes supraestatais
quer seja da Santa S ou do Imperador, perfazendo assim o marco inicial da
formao da sociedade internacional do mundo moderno (BEDIN, 2001, p.174).
Dentro dessa perspectiva, Adam Watson afirma que o
[...] Acordo de Vestflia legitimou uma comunidade de Estados soberanos. Marcou o triunfo do Stato, detentor do controle de seus assuntos internos e independente em termos externos. Essa era a aspirao dos prncipes em geral e especialmente dos prncipes alemes, tanto os protestantes quanto os catlicos, com relao ao imprio. Os tratados de Vestflia lanaram muitas das regras e muitos dos princpios polticos da nova sociedade de Estados e proporcionaram provas do assentimento geral dos prncipes a esses princpios e regras. O acerto foi realizado para prover um estatuto bsico e abrangente para toda a Europa (2004, p.263).
Est implcito que tais mudanas no panorama internacional decorreram de
um longo processo histrico, podendo-se compreender o sistema de normas
7 A Guerra dos Trinta Anos foi um imenso conflito dinstico-religioso que envolveu praticamente toda
a Europa e esteve em princpio localizada na parte central europeia, especificamente nos Estados alemes. Tal guerra foi consequncia direta do episdio em que o Sacro Imprio Romano-Germnico intentou arruinar os protestantes da Bomia. Quando houve repercusses vizinhas, a guerra se deu numa luta entre o Imprio e os Estados alemes, na qual o carter religioso, segundo Heber Arbuet Vignali, opunha uma ustria monrquica e catlica aos Estados alemes, feudais e protestantes (Trad. livre do autor) (1993, p.163). Saram vitoriosos do conflito a Sucia e os Estados protestantes (incluindo os Estados imperiais, que passaram a ter mais autonomia e liberdade religiosa) e, principalmente, a Frana, que se tornou a grande potncia europia do perodo (BEDIN, 2001, p.171). Perderam a guerra, basicamente, o Sacro Imprio Romano-Germnico, a Santa S e a Espanha. importante observar que o longo perodo de negociaes diplomticas entre os participantes do conflito deu origem aos tratados que culminaram na Paz de Vestflia. Das negociaes, consubstanciadas em determinadas Conferncias de Paz, resultaram trs princpios fundamentais: a) o princpio da liberdade religiosa dos Estados; b) o princpio da soberania dos Estados; c) o princpio da igualdade entre os Estados (BEDIN, 2001, p.173). Esses trs princpios inauguram a sociedade internacional moderna, surgindo igualmente, conforme Ekkehart Krippendorff, o direito internacional pblico, a institucionalizao da diplomacia e as conferncias de cpula, o intento de reduzir as guerras, a aceitao do princpio da integridade territorial, o conceito de equilbrio de poderes (Trad. livre do autor) (1993, p.80), afora outros princpios e determinaes conceituais que foram caracterizando a sociedade internacional moderna. 8 No mesmo sentido, Robert H. Jackson e Georg Sorensen afirmam que o entroncamento do final
histrico da Era Medieval e do ponto de partida do sistema internacional moderno , frequentemente, identificado com a Guerra dos Trinta Anos (1618-48) e com a Paz de Vestflia, acordo responsvel pelo trmino do conflito (2007, p.38).
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codificado em Westfalia como um sistema que criou uma trajetria normativa no
direito internacional, que s veio a receber sua articulao mais completa no fim do
sculo XVIII e incio do XIX, conforme indicam David Held e Anthony McGrew
(2001, p.27). Assim que, no decorrer de todo esse perodo (de Vestflia at o incio
do sculo XIX), teria gradualmente se solidificado na conjuntura europeia a
conformao moderna da sociedade internacional.
Por outro lado, os mencionados caracteres polticos da modernidade europeia
vo gradativamente se espalhando pelo mundo inteiro. Nas palavras de Jackson e
Sorensen:
[O] sistema de juno de Estados territoriais comeou a ser estabelecido, na Europa, no incio da Era Moderna. E, desde ento, o sistema estatal tem sido uma caracterstica central, seno determinante da modernidade. Embora o Estado soberano tenha surgido na Europa, tambm foi adotado na Amrica do Norte, no final do sculo XVIII, e na Amrica do Sul, no comeo do sculo XIX, em seguida difundiu-se pelo mundo em paralelo prpria modernidade. E, aos poucos, a estrutura do Estado soberano influenciou todo o mundo. A frica subsaariana, por exemplo, permaneceu isolada do sistema estatal em expanso at o final do sculo XIX, e s constituiu um sistema estatal regional independente aps a metade do sculo XX (2007, p.30).
Portanto, pode-se perceber a Paz de Vestflia como um importante marco
histrico concernente a um longo e complexo processo de surgimento e
consolidao do Estado moderno e da sociedade internacional moderna. De tal
processo brotaram as caractersticas nucleares dessa ordem, e que so, no dizer de
Held e McGrew, a soberania territorial, a igualdade formal entre os Estados, a no
interveno nos assuntos internos de outros Estados reconhecidos e o
consentimento do Estado, como pedra fundamental dos acordos jurdicos
internacionais (2001, p.27). Nesse sentido, tm-se erigidas as bases para o que
segundo Liszt Vieira seria a constituio do sistema internacional de Estados
(2001, p.95), consistindo a Paz de Vestflia no divisor de guas que aponta para a
ascenso dos seguintes princpios normativos centrais: a) territorialidade; b)
soberania; c) autonomia e d) legalidade (VIEIRA, 2001, p.95).
importante acrescentar tambm que, de acordo com Odete Maria de
Oliveira, a Paz de Vestflia propiciou a difuso da idia de uma Europa de
multiplicidade de Estados independentes e de requerer de seus numerosos
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constituintes no mais do que um acatamento nominal aos simples interesses do
Santo Imprio Romano, reconhecendo-se o direito dos prncipes de seguirem livres
e independentes as polticas externas, conclurem tratados, trocarem representantes
diplomticos e de fazerem a guerra (2001, p.142). Propiciou, alm disso, a recusa
ortodoxia religiosa, bem como a representao dos Estados nas discusses da
Conferncia Geral da Paz, o que criou a presuno de que as matrias diretamente
importantes a algumas das partes poderiam ser, tambm, a preocupao geral de
todas as partes (OLIVEIRA, 2001, p.142).
Todo o aporte delineado a respeito dos tratados vestfalianos demonstra que
eles constituram-se como ponto de partida para a materializao de uma sociedade
interestatal de ndole moderna e de abrangncia praticamente mundial. As
caractersticas ou princpios nucleares de tal sociedade j foram traados de
maneira concisa, mas importante repisar os principais caracteres da sociedade
internacional moderna a fim de ilustr-la melhor, aferindo de maneira mais precisa a
sua especificidade. Nesse sentido, Bedin elenca as seguintes caractersticas:
a) uma sociedade universal, porque abrange todas as entidades polticas soberanas do globo terrestre; b) uma sociedade aberta, pois toda a nova entidade poltica reconhecida como soberana passa a fazer parte, imediata e automaticamente, de sua organizao; c) uma sociedade igualitria, ou seja, todos os seus membros possuem os mesmos direitos e as mesmas obrigaes, uma vez que todos os seus membros constituem entidades polticas soberanas; d) uma sociedade sem um poder supranacional, isto , cada membro da sociedade rbitro legtimo de suas prprias convices; e) uma sociedade descentralizada, pois o poder exercido de forma dispersa pelos vrios participantes da sociedade; f) uma sociedade que no estabeleceu o monoplio da coao fsica legtima e nem rgos centralizados para exercer as funes derivadas desse eventual monoplio; g) uma sociedade que possui uma moral e um direito muito especficos, diferentes de todas as disposies ticas e jurdicas de cada uma das entidades polticas que participam da sociedade (2001, pp. 185-186).
Obviamente que essa no a nica maneira pela qual a sociedade
internacional moderna possa ser caracterizada. Nesse norte, Martin Wight (1985)
menciona quatro peculiaridades inerentes a tal panorama: 1) A sociedade
internacional uma sociedade nica, composta por outras chamadas de Estados,
sendo estes os seus membros principais e imediatos; 2) Como consequncia, o seu
nmero de membros sempre pequeno se comparado aos membros das
sociedades nacionais, compostas por milhes de seres humanos; 3) Os seus
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integrantes so mais heterogneos do que aqueles das sociedades nacionais, fato
acentuado pelo seu pequeno nmero. De fato, existe uma grande disparidade entre
eles em tamanho territorial, posio e recursos geogrficos, populao, ideais
culturais e organizao social (WIGHT, 1985, p. 86); 4) Os membros da sociedade
internacional podem ser referidos como imortais, pois, mesmo que eventualmente
um morra ou desaparea, em comparao com os indivduos eles perduram por um
tempo consideravelmente maior, consistindo em parcerias dos vivos com os mortos
e com a posteridade (WIGHT, 1985, p.86).
Essas foram algumas maneiras de se elencar as caractersticas principais ou
nucleares atinentes sociedade internacional moderna. Outros elementos ou
conceitos caracterizadores de tal conjuntura tambm so deveras esclarecedores e,
por isso, podem ser mencionados os seguintes: a poltica de poder, as razes de
Estado e o equilbrio de poder. muito importante abord-los, haja vista tais
conceitos operacionais dotados pela sociedade internacional clssica revelarem as
particularidades dessa sociedade, ajudando na sua compreenso e do mesmo modo
na sua especificao.9
Na dinmica das relaes internacionais clssicas, isto , das relaes entre
Estados soberanos ocorridas na esfera da sociedade internacional moderna, a
poltica de poder constitui um elemento bastante relevante, sendo muito elucidativo
da conjuntura ou da organizao dessa sociedade.10 Tal elemento sugere a
existncia de unidades polticas independentes que no reconhecem superior
poltico e que se consideram soberanas, e que existem relaes contnuas e
organizadas entre elas (WIGHT, 1985, p.15). Essas relaes podem ter carter de
9 Alm desses conceitos operacionais, a sociedade internacional moderna (ou clssica) desenvolveu
importantes instituies que lhe deram funcionalidade, tais como as seguintes: a diplomacia, as alianas e a guerra. 10
No interessa ao mbito deste trabalho explicitar as mincias relativas ao conceito de poder em si mesmo ou de poder poltico, bastando asseverar que este ltimo, no entendimento de Hans Morgenthau, refere-se s relaes mtuas de controle entre os titulares de autoridade pblica e entre os ltimos e o povo de modo geral (2003, p.51). Outra conceituao dada por Raymond Aron, afirmando que o poder poltico est na capacidade estatal de impor sua vontade a outros Estados soberanos, sendo, portanto, no um valor, mas uma relao, podendo se materializar atravs da guerra (apud BEDIN, 2011). importante esclarecer, alis, que no se deve confundir o poder poltico com o uso puro e simples da fora, porquanto este consiste muito mais no mero controle, faltando-lhe o elemento institucional que d particularidade ao poder poltico.
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guerra ou de paz, diplomtico ou comercial, tendo enorme relevncia a busca pelo
poder e a preservao do interesse nacional. Por isso, Hans Morgenthau classifica a
poltica de poder em trs tipos: a) poltica de defesa do status quo, a qual visa
manter o poder poltico de uma determinada potncia e sustentar a atual condio
internacional vigente; b) poltica de imperialismo, que tenciona ampliar o poder,
orientando a poltica externa de um Estado alterao da estrutura de poder em
vigor no cenrio internacional; e c) poltica de prestgio, que significa uma poltica
externa de ostentao ou ritualizao, com o Estado demonstrando atravs dela o
poder que possui (MORGENTHAU, 2003).
No que se refere ao conceito de razes de Estado, importa ressaltar que tal
caractere visa outorgar legitimidade ao Estado na sua relao com outras estruturas
polticas. Pode-se resumir o significado de razes de Estado na definio dada por
Jonathan Haslam, que o delimita como a crena em que, no que concerne s
relaes [polticas], os interesses do Estado prevalecem sobre todos os outros
interesses e valores (apud BEDIN, 2011, p.56). Dessa forma, tal conceito afasta a
prevalncia de interesses pessoais ou setoriais em relao aos interesses do
Estado, tendo sido, alis, uma categoria de suma importncia quando da afirmao
estatal nos primrdios da modernidade. Destarte, as razes de Estado so
nitidamente instrumentais para a justificao dos atos da entidade estatal no cenrio
internacional, haja vista que, sendo o Estado responsvel pelos valores sociais
bsicos de segurana, liberdade, ordem, justia e bem-estar (JACKSON;
SORENSEN, 2007, p.22), ele est de certo modo autorizado a defender a
manuteno de tais valores para sua populao em face dos outros Estados,
mesmo que isso implique no uso da fora. Cria-se assim o conhecido dilema de
segurana, que o paradoxo pelo qual os Estados so tanto uma fonte de
segurana quanto uma ameaa segurana dos seres humanos (JACKSON;
SORENSEN, 2007, p.21).
O ltimo conceito caracterizador da sociedade internacional moderna a ser
abordado o de equilbrio de poder. Partindo de uma generalizao ou abstrao do
que seria a configurao real da poltica internacional em um determinado contexto,
a ideia de equilbrio de poder surge para colaborar com a interpretao de tal
conjuntura. Desse modo, faz-se uma analogia das potncias como pesos sobre os
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pratos de uma balana (WIGHT, 1985, p.135), na qual mentalmente extramo-las
de seu contexto geogrfico e arrumamo-las de acordo com suas alianas e
afinidades, conscientes da ideia subjacente de combinar seu peso moral com sua
fora material (WIGHT, 1985, p.135). Por isso, o equilbrio de poder pode ser
tambm denominado de balana de poder. Sobretudo, interessa ao entendimento
desse conceito operacional da sociedade internacional moderna a noo de que ele
uma doutrina e um arranjo pelo qual o poder de um Estado (ou grupo de Estados)
controlado pelo poder compensatrio de outros Estados (JACKSON;
SORENSEN, 2007, p.21). Nota-se assim que tal conceito visa cumprir
importantssima funo na manuteno da ordem e da paz no panorama da
sociedade internacional clssica.11
Ainda no que se refere ao conceito em comento, em um raciocnio pelo qual
os Estados procurariam efetivar os seus interesses to somente em termos de poder
(perfazendo a aludida poltica de poder), o equilbrio ou balana de poder seria o
nico meio eficaz para que a ordem e a paz fossem mantidas, haja vista que, nesse
sentido, s o poder de um Estado (ou grupo de Estados) poderia frear o poder de
outro(s) Estado(s), mantendo-se assim a estabilidade no cenrio poltico
internacional. Dessa maneira, pode-se perceber que o sistema de equilbrio de
poder se configura numa tentativa de estabelecer a paz nas relaes internacionais
que pode ser denominada de conservadora (BEDIN, 2011, p.59). Entretanto, isso
no significa que o cenrio internacional no tenha se modificado e albergado vrios
sistemas especficos de equilbrio de poder com o decorrer do tempo,12 e que os
Estados, como afirma Adriano Moreira, no tenham inclusive recorrido ameaa ou
guerra para defender ou restaurar a balana dos poderes (1996, p.210).
Portanto, a sistemtica do equilbrio de poder deu relevante funcionalidade
sociedade internacional moderna. Isso pelo fato de que, haja vista essa sociedade
no possuir um poder supranacional com o monoplio legtimo da violncia fsica
11
No se poder olvidar que, como afirma Eugenio Diniz, a ideia de equilbrio ou balana de poder bastante antiga, e pode ser remontada at Tucdides e a Histria da Guerra do Peloponeso, passando ainda por autores como David Hume (2007, pp.16-17). 12
Existiu, segundo Bedin, no perodo da sociedade internacional clssica, pelo menos quatro grandes momentos polticos do sistema de equilbrio de poderes: o Sistema de Vestflia, o Sistema de Viena, o Sistema de Versalhes e o Sistema de Yalta (2011, p.58).
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como ocorre no interior dos Estados, o sistema de equilbrio de poder seria a melhor
maneira para manter a ordem, a segurana e a paz nesse panorama poltico, sendo
mesmo a forma por excelncia de construo de um cenrio de paz em tal
sociedade (BEDIN, 2011, p.12). preciso, no entanto, fazer a ressalva de que
essa situao de paz pode ser considerada como precria, ou seja, ela sempre
frgil e provisria (BEDIN, 2011), porquanto cada Estado possui, como afirmado,
permisso para recorrer ameaa ou guerra no intuito de defender ou restaurar o
equilbrio de poderes. O problema se torna ainda mais sensvel quando o conceito
de equilbrio de poder operado com o fito de implementar interesses estatais
particularistas, corrompendo o elemento teleolgico do conceito, fato muito comum
no panorama da sociedade internacional clssica, no qual os Estados tomam as
suas decises considerando principalmente os raciocnios caractersticos da poltica
de poder (e das razes de Estado).13
Esses foram trs conceitos operacionais importantssimos para um
entendimento mais aprofundado a respeito da sociedade internacional moderna.
Importa agora buscar descobrir se a expresso sociedade internacional realmente
a mais adequada, ou se a condio internacional da modernidade seria mais bem
designada por anarquia ou ainda por comunidade internacional. Em outras palavras,
ao falar do panorama internacional da Era Moderna, o qual surgiu a partir do
advento da entidade estatal e tem o Estado como o seu principal (seno nico) ator,
seria melhor referi-lo como Anarquia, Comunidade ou Sociedade Internacional? Tal
o questionamento a ser desenvolvido no prximo tpico.
1.2 A Sociedade Internacional e sua Denominao: Comunidade, Sociedade ou
Anarquia Internacional?
Como j afirmado alhures, para o presente trabalho o perodo que vai dos
tratados da Paz de Vestflia (1648) at o nascimento da Organizao das Naes
Unidas (1945) e a Declarao Universal dos Direitos do Homem (1948) aquele
13
Assim que, hipoteticamente, determinadas potncias podem se utilizar do equilbrio de poder para ganhar posio de supremacia no sistema internacional, mesmo que afirmem estar se esforando por preservar tal sistema. Alis, o prprio Hedley Bull denota que, em nome desse princpio ou conceito, podem ocorrer violaes s noes corriqueiras de justia ao sancionar a guerra contra um estado cujo poder ameaa tornar-se preponderante, sem haver praticado qualquer transgresso legal ou moral (2002, p.108).
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marcado pela sociedade internacional moderna (ou clssica). importante, dessa
maneira, tentar apreender a melhor forma de se denominar tal perodo, isto , se
mesmo correto cham-lo de sociedade internacional ou se, por outro lado, seria
melhor design-lo por anarquia ou ainda por comunidade internacional.
Antes de abordar tal questo, no entanto, importa ressaltar determinadas
caractersticas de trs paradigmas ou perspectivas tericas relativas disciplina das
Relaes Internacionais, denominadas de escola realista, escola idealista e escola
inglesa. Isso se faz necessrio na medida em que a primeira se identifica com a
noo de anarquia internacional, a segunda preconiza ser necessria uma evoluo
do atual cenrio at o ponto em que este se torne uma verdadeira comunidade
internacional na qual reine a situao denominada de paz perptua, e a ltima, a
escola inglesa, identifica-se com a ideia de sociedade internacional.
Iniciando pela escola realista, necessrio acentuar os seus principais
predecessores, Nicolau Maquiavel14 e Thomas Hobbes.15 O primeiro afirmou a
autonomia e a especificidade da esfera poltica e alegou que, no exerccio do poder,
os fins justificam os meios (BEDIN, 2000, p.69). Alm disso, Maquiavel inspirou o
conceito de razo (ou razes) de Estado, conquanto no tenha sido o autor da
expresso, j que ela s foi consagrada definitivamente no famoso tratado de
Giovanni Botero intitulado Della Ragion di Stato (1589) (CAMPOS BARROS, 2010,
p.64). O segundo (Hobbes) trouxe tona o conceito de estado de natureza,16
demonstrando a partir deste a necessidade de implementao do corpo poltico
14
Principalmente atravs de sua obra mais importante, intitulada O Prncipe (1513). 15 Cabe mencionar como a principal obra de Hobbes o conhecido Leviat (1651). 16
Adverte-se que a ideia de estado de natureza aparece correntemente como mera hiptese lgica negativa, ou seja, sem ocorrncia real. uma abstrao que serve para justificar/legitimar a existncia da sociedade poltica organizada (STRECK; MORAIS, 2000, p.35). oportuno aludir tambm Joo dos Passos Martins Neto, o qual alega que no estado de natureza hobbesiano os ingredientes da vida do homem se configurariam em cada qual movido por desejos e medos inesgotveis, bens e recursos nem sempre abundantes, igual capacidade de luta, tendncia ao egosmo, crena nas possibilidades do confronto, liberdade sem limites, perigo eterno, desconfiana recproca, leis morais dbeis, leis civis inexistentes, direito de agir conforme as recomendaes do juzo particular, sede de poder, guerra de todos contra todos (2006, p.67).
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31
estatal (Leviat), o qual no entender de Hobbes tem de ser o legtimo portador da
unidade do poder ou do monoplio da violncia.17
Entretanto, apesar da ordem interna que poderia ser obtida com o Estado,
Hobbes no cr que tal ordem seria passvel de adaptao no que tange ao cenrio
internacional, porquanto neste continuaria reinando a aludida conjuntura definida
pelo conceito de estado de natureza, com os Estados permanecendo em uma
situao de guerra perptua, numa contnua viglia de armas, com as fronteiras
fortificadas, os canhes apontados para todos os pases que os cercam e dispostos
a ampliar o seu territrio e a se apossar dos bens dos demais Estados (BEDIN,
2000, p.104). Essas so as concepes mais importantes trazidas pelos
predecessores da teoria realista da disciplina das Relaes Internacionais.18 No
sculo XX, destacaram-se entre outros os seguintes tericos realistas: Hans
Morgenthau, Raymond Aron, Edward H. Carr e Henry Kissinger.
Nesse contexto, importa ao presente trabalho realar os pressupostos e os
caracteres basilares da perspectiva realista. Partindo de algumas premissas bsicas
a respeito da natureza humana, das relaes entre os Estados, bem como de um
modo especfico de perceber a relao contida entre a poltica e o poder, os realistas
afirmam que o homem um ser essencialmente mal e egosta; que as relaes
interestatais so necessariamente conflituosas; que tais conflitos normalmente se
resolvem por meio da guerra; que por consequncia os valores da segurana e da
sobrevivncia estatal so tidos como preponderantes em relao aos valores e
ideais pacifistas; e que, portanto, deve-se encarar com extremo ceticismo a ideia
segundo a qual a vida poltica do interior dos Estados possa ser transposta para o
cenrio internacional (JACKSON; SORENSEN, 2007). Alm disso, para o realismo,
conquanto a moral exista, ela no est necessariamente ligada ao fenmeno
poltico, sendo que a poltica
17
No dizer de Darcy Azambuja, para Hobbes, ante a tremenda e sangrenta anarquia do estado de natureza, os homens tiveram que abdicar em proveito de um homem ou de uma assemblia os seus direitos ilimitados, fundando assim o Estado (2001, p.91). Percebe-se, portanto, que Hobbes afirma um estado de natureza em que os homens estariam em constante situao de luta ou de guerra de todos contra todos, como ilustra o seu multicitado adgio o homem o lobo do homem. 18
relevante mencionar tambm, como predecessor, o ateniense Tucdides, com o seu renomado e
influente estudo sobre a Guerra do Peloponeso (conflito que vai do ano 431 ao ano 404 a.C.).
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32
[...] internacional, como toda poltica, consiste em uma luta pelo poder. Sejam quais forem os fins da poltica internacional, o poder constitui sempre o objetivo imediato. Os povos e os polticos podem buscar, como fim ltimo, liberdade, segurana, prosperidade ou o poder em si mesmo. Eles podem definir seus objetivos em termos de um ideal religioso, filosfico, econmico ou social. [...] Contudo, sempre que buscarem realizar o seu objetivo por meio da poltica internacional, eles estaro lutando por poder (MORGENTHAU, 2003, p.49).
Nota-se implcita a pungente separao que o realismo faz da esfera poltica
em relao esfera moral, preconizando uma viso das relaes internacionais na
qual vigora a preponderncia praticamente exclusiva do elemento poder.19 Alm
disso, tambm podem ser elencadas as seguintes caractersticas bsicas do
realismo em Relaes Internacionais: a) possui uma concepo estadocntrica, pois
entende que s os Estados soberanos so os verdadeiros atores das relaes
internacionais; b) afirma uma viso que individualiza a poltica interna da poltica
externa, tornando uma independente da outra. Dessa forma, possvel fazer
secundrios os princpios morais que norteiam a poltica interna (baixa poltica),
dando prevalncia s questes de poltica externa concernentes ao poder e
segurana nacional (alta poltica); c) assume um entendimento que configura o
sistema internacional como essencialmente anrquico e conflitivo, haja vista a
inexistncia de um poder central com o monoplio da violncia, vigorando assim no
panorama internacional um verdadeiro estado de natureza nos moldes daquele
indicado por Hobbes. Tal situao pode ser caracterizada como um estado de
guerra constante de todos os estados contra todos os estados, em que o uso da
fora e o recurso violncia um instrumento legtimo na defesa dos interesses
nacionais, definidos a partir de uma poltica de poder e de uma viso estratgica da
segurana individual de cada pas no cenrio internacional (BEDIN, 2000, p. 105).
Cabe mencionar que o paradigma realista tido como o mais proeminente
das Relaes Internacionais, podendo por isso ser denominado de clssico, e tendo
o paradigma do idealismo na qualidade de seu principal antagnico.20 E a respeito
19
Em outras palavras, a perspectiva realista atesta que enquanto na poltica domstica a luta pelo poder governada e circunscrita pelo molde das leis e instituies, a sociedade internacional governada pelos interesses nacionais dos Estados e pela luta pelo poder (BEDIN, 2011, p.40). 20
oportuno relatar, ademais, que o idealismo teve um breve perodo de proeminncia, ocorrido nos
anos do entre-guerras (1919-1939).
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33
do idealismo que se passa agora a discorrer, comeando pelos predecessores do
modelo. Em tal sentido, Shiguenoli Miyamoto traz baila o filsofo italiano Marslio
de Pdua, autor da obra Defensor Pacis (O defensor da Paz), de 1324, a qual trata
de como a paz civil existe e se mantm, alm das causas da luta e a melhor forma
de bloque-la e suprimi-la. Nessa obra, o autor italiano igualmente expe a sua ideia
de comunidade perfeita (a civitas), com forte influncia de A Poltica (Aristteles),
indicando que o ser humano procura espontaneamente por uma vivncia pacfica, j
que possui, segundo o autor, propenso natural vida em comum (MIYAMOTO,
2000). Alm de Marslio de Pdua, podem tambm ser citados como predecessores
da perspectiva idealista o ingls Thomas More, o Abade de Saint-Pierre, o jurista
holands Hugo Grotius e o filsofo prussiano Immanuel Kant. A seguir, ser feita
uma breve explanao concernente a cada um deles.
Principiando por Thomas More, sua principal obra intitula-se A Utopia (1516),
que poderia ser caracterizada como diametralmente oposta obra O Prncipe, de
Maquiavel. Em A Utopia, so tecidas consideraes axiolgicas a partir da descrio
de uma ilha imaginria, na qual reinaria a paz, as leis e as instituies, sendo a
guerra considerada uma verdadeira abominao - em que pese a ressalva a respeito
da questo da guerra justa, a qual os utopianos poderiam levar a cabo em caso de
defesa prpria ou para fazer justia aos amigos invadidos (MIYAMOTO, 2000).
Quanto ao Abade de Saint-Pierre, sua obra de maior relevncia denomina-se
Projeto para tornar perptua a paz na Europa (1713), a qual passou praticamente
despercebida nos primeiros anos, ganhando certa visibilidade somente a partir da
anlise redigida por Jean-Jacques Rousseau. Pode-se mesmo afirmar que ela s
alcanou mrito visvel no final do sculo XX, tentando-se estabelecer sua
contribuio para a histria do pensamento poltico e identificando-se a influncia
exercida, muitas vezes inconscientemente, na construo das instituies
internacionais, conforme alega Ricardo Seitenfus (2003, p.XXIV). Vale lembrar que
o objetivo central da obra, de acordo com Miyamoto, era
[...] compreender as primeiras fontes do mal e, por reflexes prprias, verificar se esse mal estava ligado natureza das soberanias e dos soberanos e se era absolutamente sem soluo. Dispunha-se a escavar o assunto para descobrir os meios praticveis para alcanar sem guerra todos os diferentes futuros, entre eles, a Paz Perptua (2000, p.29).
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Dessa maneira, ao longo de setecentas pginas, entre outros pontos o Abade
procura reforar a idia de formar uma sociedade permanente de todas as
soberanias crists da Europa (MIYAMOTO, 2000, p.30). Revela-se assim a
atualidade de sua obra, pois, de modo similar Unio Europeia e demais
organizaes intergovernamentais contemporneas, ela configura-se em um
esforo para enquadrar a moral e a poltica dos Estados, mormente os mais
influentes, em parmetros jurdicos que venham a proteger os mais fracos,
concedendo maior previsibilidade s relaes internacionais (SEITENFUS, 2003,
p.XXXIV).
Acentua-se agora o holands Hugo Grotius. A influncia deste deveras
marcante para o idealismo, principalmente atravs de sua obra O Direito da Guerra
e da Paz (1625). Em tal texto, Grotius aborda o que guerra justa e injusta, quais
so as causas, como se comportar de frente a tais situaes, e como alcanar e
manter a paz (MIYAMOTO, 2000, p.31), entre outros questionamentos. Todavia,
preciso frisar que Grotius pode ser classificado muito menos como um pacifista21 e
muito mais como um jurista, porquanto a proposta de seus estudos enquadra-se na
busca pela normatizao do comportamento dos indivduos, dos soberanos e dos
estados, feitos utilizando-se basicamente os instrumentos do Direito (MIYAMOTO,
2000, p.31).
De qualquer modo, segundo Bertrand Badie, Grotius proclama uma moral
humanista que anuncia um direito internacional que deixa de ser a projeco da
simples vontade soberana dos Estados (1999, p.27). So consolidadas as bases
tericas para uma exposio sistemtica do jus gentium, ou direito das gentes,
encontrando-se elementos tendentes a conduzir, de acordo com Arno Dal Ri Jnior,
a uma doutrina que valorizasse a paz como bem fundamental da sociedade
internacional (2003, p.118). Nesse contexto, o mencionado jus gentium foi definido
pelo autor holands como um produto da associao humana, que se manifesta
21
Deve-se atentar para o fato de que a expresso pacifismo somente surgiu no incio do sculo XX, cunhada por mile Arnaud.
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primordialmente por meio dos tratados, estabelecendo normas entre os Estados
(DAL RI JNIOR, 2003, p.120).
Grotius apresenta assim a comunidade internacional como independente,
no podendo ser submetida a nenhuma outra autoridade. As normas que a regem,
segundo ele, devem ser emanadas pela prpria comunidade, iluminada pela justa
razo (DAL RI JNIOR, 2003, p.122). Atravs dessa nova concepo, a
comunidade internacional passa a adquirir em si um valor eminente, assim como os
seus interesses passam a ser superiores aos dos Estados que a constituem (DAL
RI JNIOR, 2003, p.122).22
Partindo agora para o estudo de outro pensador de extremo relevo, ressalta-
se o filsofo iluminista Immanuel Kant, tendo aqui relevncia suas ideias a respeito
da instituio da paz perptua entre os Estados. Na obra Sobre a Paz Perptua
(1795), Kant aborda questes nas quais ele demonstra maior preocupao com o
cenrio internacional e com as relaes entre os Estados. interessante (...) o fato
de a obra ter sido elaborada (...) na forma de um imaginrio tratado internacional,
voltado a concretizar um antigo sonho europeu, o de conseguir chegar a uma
condio estvel de paz no Velho Continente e no resto do planeta (DAL RI
JNIOR, 2003, p.140). Para Kant, esclarece ainda Dal Ri Jnior, o Direito
Internacional (Volkrecht) s vigoraria enquanto no se consolidasse o preceituado
em seu tratado, dado este ser mais completo e exaustivo, com recursos mais aptos
produo de uma efetiva sociedade cosmopolita.
Dividido em duas partes, o aludido tratado contm na primeira os artigos
definidos pelo autor como preliminares, redigidos no intento de remover as
circunstncias que o filsofo prussiano considera possam favorecer o
desencadeamento das guerras (DAL RI JNIOR, 2003, p.141). Na segunda parte,
contendo os
[...] artigos chamados pelo autor como definitivos, pode-se constatar, pela maneira como estes vm redigidos e pelo contedo dos mesmos, um claro
22
Por esse prisma, a teoria grociana no se coaduna com o elemento razes de Estado, haja vista as razes de Estado permitiriam, por exemplo, que as normas do jus gentium fossem ignoradas por um determinado espao de tempo, colocando em risco a segurana da paz e do prprio Estado (DAL RI JNIOR, 2003, p.123).
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desejo de Kant em lanar as bases para a edificao da paz perptua segundo um modelo terico fundamentado em pressupostos racionais (DAL RI JNIOR, 2003, p.141).
Da anlise dos artigos preliminares, chega-se constatao geral de que a
guerra somente poderia ser considerada como um instrumento vlido no estado de
natureza, no qual no h legalidade que solucione as controvrsias. Assim, seu
projeto cosmopolita abrange um contrato que teria o condo de proibir a guerra
como maneira de dirimir os conflitos. J os artigos definitivos so trs. O primeiro
preconiza que a constituio civil de todo Estado deve ser republicana. O segundo
declara a teoria sobre o federalismo de Estados livres. E finalmente o terceiro artigo
definitivo preceitua que o Direito cosmopolita deve se limitar s condies de
hospitalidade universal (DAL RI JNIOR, 2003, p.148), o que no exprime
filantropia, de acordo Immanuel Kant, mas sim o direito albergado pelo estrangeiro,
por conta de sua chegada terra de um outro, de no ser tratado hostilmente por
este (2008, p.37).
Percebe-se assim a importncia de Kant como predecessor do paradigma
idealista das Relaes Internacionais, pois, como denota Soraya Nour (2004), ele
ligou o problema da paz ao da ordem ou organizao internacional e,
consequentemente, ao direito, praticamente fundando a filosofia da paz. Vale
colocar em relevo, nesse nterim, que Kant condena o uso de mtodos escusos,
desonrosos, como lanar mo de assassinos; isso porque possivelmente mgoas
permanecero e prejudicaro, destarte, a confiana recproca que deve permear as
relaes entre os diversos agentes do sistema internacional (MIYAMOTO, 2000,
p.33).
Esse foi um breve histrico a propsito dos principais predecessores do
idealismo em Relaes Internacionais. Cabe citar alguns pensadores idealistas
propriamente ditos, os quais se destacaram no sculo XX, e que foram, entre outros,
os seguintes: Alfred Zimmern, Woodrow Wilson e Norman Angell. Frisa-se que a
disciplina das Relaes Internacionais surge somente aps a Primeira Guerra
Mundial, com o idealismo configurando uma reao aos horrores de tal conflito.
Nesse sentido, o idealismo perdurou, como afirmado, na qualidade de principal
corrente das Relaes Internacionais somente nos anos do entre-guerras, tendo
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sido depois acusado de ter provocado a ecloso da Segunda Guerra Mundial, como
trouxe tona Edward H. Carr em sua obra Vinte Anos de Crise: 1919-1939 (BEDIN,
2001). No cabe aqui adentrar em tal problemtica, sendo oportuno aduzir apenas
que a perspectiva idealista manteve-se quase sempre em um plano inferior aps o
segundo ps-guerra, mesmo em face das exigncias da paz em virtude da iminncia
de destruio total tornada possvel pelos armamentos nucleares.
No que concerne aos pressupostos e caracteres principais da perspectiva do
idealismo, necessrio ressaltar Reinaldo Dias, o qual alega que enquanto a
doutrina realista procura limitar-se a identificar a situao real, concreta, tal como se
apresenta, e no como deveria ser, sem a preocupao com reformas idealizadas
que acredita no serem possveis (2010, p.20), a concepo idealista busca
transformar a realidade internacional atravs de propostas que visam estruturao
do mundo (DIAS, 2010, p.20). Apresenta assim um carter jurdico-poltico em regra
propenso a transpor para o panorama internacional a conjuntura institucionalizada
contida no interior dos Estados.
Desse modo, a diferena fundamental entre idealismo e realismo em
Relaes Internacionais se refere ao fato de que o primeiro tem a paz na qualidade
de seu valor-vetor basilar, preocupando-se assim com formulaes terico-prticas
que possibilitem a obteno da paz atravs do direito. J o segundo prioriza o valor-
vetor segurana, a ser garantido atravs da luta pela obteno e manuteno do
poder, luta que conforma a condio por excelncia das unidades estatais no
cenrio internacional para a doutrina realista.23
Nesse contexto, faz-se necessrio mencionar as premissas bsicas da
perspectiva terica do idealismo, e que so, segundo Bedin, as seguintes:
a) a natureza humana no movida, nica e exclusivamente, por instintos de dominao e de licenciosidade; ao contrrio, os instintos originais do homem so bons, positivos e caminham na linha da sociabilidade
23
Isso porque os realistas, ao taxarem o cenrio internacional como anrquico e a natureza humana como essencialmente m e egosta, no se inclinam pela paz que pode ser obtida atravs da confiana, mas sim pela prudncia tendente segurana, tornando as propostas idealistas semelhantes a sonhos ingnuos e irrealizveis, ao menos sem uma mudana brusca no que o realismo acredita ser a natureza humana e o panorama internacional (BEDIN, 2011).
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democrtica do ser humano e, por isso, se for permitido que prevaleam, haver condies de se estabelecer a paz entre as naes; b) h formas de sociedades, como a democrtica, que induzem a um comportamento internacional eminentemente pacfico e que, portanto, nem sempre o sistema internacional pode ser caracterizado como um estado de guerra de todos contra todos; c) possvel construir instituies de abrangncia mundial e regras e preceitos tico-jurdicos universais, que possam dar estabilidade s relaes internacionais e disciplinar, de forma cada vez mais slida e efetiva, a convivncia entre os diversos Estados soberanos (2001, pp.220-221).
Se para o realismo vige uma situao caracterizada pelos jogos de soma-
zero, em que os interesses dos Estados no possuem pontos de convergncia, pois
o que beneficia a um automaticamente prejudica a outro, para o idealismo as
divergncias entre os Estados podem ser mediadas de maneira institucional, abrindo
caminho para que tendncias integrativas e pacficas sejam implementadas. nesse
sentido, alis, que Miyamoto alega ser o idealismo predisposto a convencer os
diversos agentes de que em um mundo onde imperem a igualdade, a justia e o
respeito s normas internacionais todos s tero a lucrar, eliminando-se, portanto,
os jogos de soma-zero (2000, p.53).
Aps esse sucinto transcurso pelo idealismo, interessa neste momento
tracejar alguns pontos acerca da escola inglesa das Relaes Internacionais,
tambm conhecida como teoria da sociedade internacional.24 Nesse sentido,
indicando os principais expoentes da perspectiva em comento, cabe mencionar
Martin Wight e Hedley Bull. Sem a pretenso de fazer um estudo aprofundado a
respeito de tais autores, oportuno referendar que o primeiro, segundo Martin
Griffiths (2004), preconiza que o objeto central de anlise da teoria internacional
deve ser a sociedade internacional, do mesmo modo que o objeto principal da teoria
poltica o Estado. Sendo assim, a principal pergunta que se deve fazer em teoria
internacional : o que sociedade internacional? A partir desse questionamento,
Wight declara a existncia de trs tradies para a teoria internacional, tendo por
base as obras de Maquiavel, Grotius e Kant, as quais, dentro dessa perspectiva,
inserem-se respectivamente nas tradies realista, racionalista e revolucionista.
24
Vale lembrar que as ideais principais na configurao dessa corrente surgiram no Reino Unido durante os anos da dcada de 1950 (DIAS, 2010, p.30).
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Segundo Jackson e Sorensen (2007), a tradio realista da escola inglesa
das Relaes Internacionais enfatiza o aspecto da anarquia internacional; a tradio
racionalista enfoca o intercurso e o dilogo internacional; e a tradio revolucionista
acentua a unidade moral internacional, preconizando uma comunidade mundial de
seres humanos para alm dos Estados e das relaes interestatais. As trs
tradies, para Wight, no estariam isoladas umas das outras, mas sim em uma
constante conversao, pois todas se mostrariam igualmente necessrias a um
entendimento mais equilibrado das relaes internacionais. Todavia, cabe afirmar
que h uma tendncia dos tericos da sociedade internacional de prestarem mais
ateno ao racionalismo moderado grotiano (JACKSON; SORENSEN, 2007,
p.204). Isso torna clara a razo pela qual a escola inglesa admite a existncia de
uma sociedade internacional acima dos elementos anarquia e comunidade,
posicionando-se em uma espcie de meio termo entre os j abordados paradigmas
do realismo e do idealismo.25
Na mesma linha, o segundo autor mencionado, Hedley Bull, sustenta haver
uma sociedade internacional na qual os Estados, mesmo que no admitam a
existncia de um poder superior, no estariam contudo em uma situao tal que
possa ser caracterizada simplesmente por anarquia. Dessa forma, os Estados se
encontrariam to somente em uma sociedade sem governo, semelhante situao
dos indivduos no estado de natureza preconizado por John Locke,26 panorama
muito distante da total ausncia de ordem vigente no estado de natureza hobbesiano
(BULL, 2002). Assim, Bull concebe a expresso sociedade anrquica, a qual indica
haver uma sociedade internacional mesmo em uma situao de relativa anarquia,
sendo a anarquia, enfatiza-se, muita mais prxima da perspectiva lockeana do que
daquela preconizada por Hobbes. Dessa maneira, torna-se mais palpvel a razo
pela qual o autor afirma o seguinte:
25
Nesse nterim, necessrio advertir que, em geral, a corrente idealista enxerga o elemento
comunidade como um devir e no como uma realidade j posta, contrariamente ao que se poderia inferir do texto. 26
Locke entende que o estgio pr-social e poltico dos homens, ou seja, sua vida em natureza, se apresentava como a sociedade de paz relativa, pois nele haveria um certo domnio racional das paixes e dos interesses (...); aqui o homem j se encontra dotado de razo e desfrutando da propriedade (vida, liberdade e bens); no h, todavia, na eventualidade do conflito, quem lhe possa pr termo para que no degenere em guerra e, ainda, tenha fora coercitiva suficiente para impor o cumprimento da deciso (STRECK; MORAIS, 2000, pp.35-36).
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Existe uma "sociedade de estados" (ou "sociedade internacional") quando um grupo de estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade, no sentido de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto comum de regras, e participam de instituies comuns. Se hoje os estados formam uma sociedade internacional [...] porque, reconhecendo certos interesses comuns e talvez tambm certos valores comuns, eles se consideram vinculados a determinadas regras no seu inter-relacionamento, tais como a de respeitar a independncia de cada um, honrar os acordos e limitar o uso recproco da fora. Ao mesmo tempo, cooperam para o funcionamento de instituies tais como a forma dos procedimentos do direito internacional, a maquinaria diplomtica e a organizao internacional, assim como os costumes e convenes da guerra (2002, p.19).
Assim, partindo do estado de natureza lockeano, Bull concebe uma sociedade
internacional mesmo sem a existncia de um governo mundialmente
institucionalizado e com monoplio da violncia, haja vista a sociedade anrquica
albergar certo tipo de ordem ainda que no possua um governo centralizado. Cabe
aqui a ponderao de Wight a respeito do conceito de anarquia, pois se ele significa
to somente a ausncia de um governo comum, ento esta precisamente a
caracterstica do cenrio internacional. Mas se anarquia significa a desordem
completa, ento esta no uma descrio verdadeira das relaes internacionais
(WIGHT, 1985, p.85).
Pelo exposto, pode-se referir que a escola inglesa situa-se, como afirmado,
num plano intermedirio entre os paradigmas realista e idealista, pois busca evitar
as escolhas entre (1) o egosmo estatal e o conflito, e (2) a benevolncia humana e
a cooperao (JACKSON; SORENSEN, 2007, p.197). Apesar de se aproximar do
realismo ao concordar, segundo Williams Gonalves, que os Estados so os
principais atores (2002, pp.60-61) no cenrio internacional, admite no entanto a
existncia de interesses, regras, instituies e organizaes comuns criados pelos
Estados para ajudar a constituir a interao entre eles (JACKSON; SORENSEN,
2007, p.199).27
27
Importa apor a diferenciao entre sistema de Estados e sociedade internacional
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