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TRAÇOS DA FORMAÇÃO SOCIOECONOMICA
DO OESTE CATARINENSE
Gentil Corazza
Universidade Federal da Fronteira Sul
gentilcorazza@gmail.com
Resumo: O texto procura analisar os principais traços da formação econômica e social da região
oeste catarinense, tais como a ocupação tardia do território e os conflitos de fronteira, o longo
isolamento e a posterior integração da economia regional na economia estadual e nacional, os ciclos
de formação e desenvolvimento econômico da região e os conflitos que perpassaram a formação
social e a estrutura da sociedade regional.
Palavras-chave: região oeste catarinense; formação econômica; formação social.
1) Introdução
A formação socioeconômica do Oeste Catarinense resulta de um longo e peculiar
processo histórico. Talvez o traço principal desta formação socioeconômica tenha sido seu longo
isolamento e sua tardia incorporação à economia nacional, que ocorreu pouco tempo antes da
incorporada ao território brasileiro, poucos anos antes da incorporação do Acre. Durante este longo
período de isolamento, a região se caracterizou por ser um corredor de passagem entre o Rio
Grande do Sul e São Paulo, primeiro, através do “caminho das tropas” e depois pela “estrada de
ferro”. Em segundo lugar, a região foi palco de intensos e prolongados conflitos de natureza
política, social e cultural, cuja expressão maior foi a Guerra do Contestado, finda em 1917, mas que
se prolongou depois no processo de colonização. Por último, após um demorado processo de
ocupação e povoamento, o acelerado processo de integração com a economia nacional e de
desenvolvimento, experimentado na segunda metade do mesmo século XX.
O objetivo deste texto consiste em tentar caracterizar a formação socioeconômica da
região oeste catarinense, ressaltando seus principais traços. Do ponto de vista econômico, pretende-
se caracterizar a ocupação do território e a evolução das atividades econômicas, em suas diversas
fases e ciclos, como foi o da ocupação dos campos com as grandes fazendas de criação pecuária, a
ocupação das matas para a extração da erva-mate, a atividade madeireira, o processo de colonização
e o desenvolvimento da agricultura familiar e, finalmente, a formação e o desenvolvimento dos
complexos agroindustriais. Do ponto de vista social, pretende-se analisar a formação e as
características das sociedades que ali se estruturaram a partir tanto das relações de propriedade e de
trabalho, como das relações étnico-culturais entre os povos que habitaram a região.
Para atingir seus objetivos, o texto se estrutura da seguinte maneira. Após esta
Introdução, o item 2 analisa o início da ocupação dos campos por fazendeiros paulistas, ao longo
dos “caminhos das tropas”. No item 3, analisa-se a conquista das matas através da exploração
econômica da erva-mate e das atividades da agricultura de subsistência da população cabocla. O
item 4 aborda o papel da ferrovia no desenvolvimento do Oeste, ressaltando exploração da madeira
e o processo de colonização. O item 5 descreve a conhecida “Viagem de 1929”, que se traduz como
a conquista política do Oeste. O item 6 trata da formação e das relações de dependência entre a
agricultura familiar e o complexo agroindustrial. Já o item 7 procura caracterizar a formação social
da região. No final, procura-se ressaltar as principais questões surgidas ao longo do texto.
2) O caminho das tropas e a ocupação dos campos
A região do Oeste Catarinense esteve inicialmente ocupada pelos povos indígenas,
especialmente os Xoklengs e os Kaingangs, ocupação esta que se estende até meados do século
XIX. A primeira incursão externa pelas terras indígenas do Oeste Catarinense teria sido feita por
Ulrich Schmidel, um militar alemão a serviço do Governo paraguaio, que, seguindo os caminhos
indígenas chamados “Peabirus”, chegou ao rio Peperi-Guaçu, entre os anos de 1552 e 1553. Por
essa época, jesuítas provenientes do Paraguai também incursionaram pela região. No século XVII,
por volta de 1609, teriam sido fundadas aldeias na região de Guarapuava. Depois, entre os anos de
1628 e 1630, bandeirantes paulistas estiveram visitando a região à procura de minas de ouro e de
índios. Há notícias de que mais de 60 mil índios foram levados como escravos para trabalhar em
São Paulo. As incursões de bandeirantes paulistas pela região se estendem ao longo do século
XVIII. Assim, por volta de 1720, passa por ali o bandeirante Zacarias Dias Cortes, e depois, em
1736, o Major José de Andrade Pereira. No final do século XVIII, por volta de 1775, uma comissão
mista de Portugal e Espanha também percorreu a região, visando colocar em prática o Tratado de
Madrid, assinado em 1750.
Do ponto de vista econômico, por muitos anos, o Oeste Catarinense não passava de um
corredor de passagem entre São Paulo e Rio Grande do Sul. Por ali passava o chamado “Caminho
das Tropas”, que conduziam o gado xucro dos campos gaúchos, para alimentar os trabalhadores do
café e da mineração. Ao longo desses caminhos foi se dando a ocupação do território, através das
fazendas de criação de gado e o estabelecimento dos primeiros povoados.
Foi nessa época, por volta de 1728, que teria sido aberto o primeiro “Caminho das
Tropas”, ligando os campos de Viamão, no Rio Grande do Sul, a Sorocaba, em São Paulo, passando
pelos campos de Lages. Sorocaba era o maior centro comercializador de animais entre o Sul e o
Sudeste, chegando a reunir, em algumas ocasiões, mais de 200 mil cabeças. Lages desempenhava
um papel central nesta economia pecuária catarinense.
Como acentua, ainda, Poli (1995, p. 76), durante muitos anos, este “foi o único caminho
para o trânsito das tropas, e, no seu trajeto, foram se formando fazendas e vilas, iniciadas
principalmente nos locais de pouso, que se espalharam ao longo de toda a estrada”. Da mesma
forma, mais tarde, surgiram vilas como as de Curitibanos, Campos Novos e São Joaquim, junto às
quais se formaram também as maiores fazendas do Planalto Catarinense.
A ocupação do território em torno desse primeiro caminho durou quase um século.
Nesse meio tempo, por volta de 1810, novas fazendas foram criadas nos campos de Guarapuava, e
por volta de 1838, inúmeras outras já se haviam formado nos campos de Palmas, terras que até
então pertenciam ao Estado de São Paulo. A partir daí, as fazendas avançaram mais para Oeste,
atingindo as terras onde atualmente se situa Campo Erê. Como acentua Rossetto (1995, p. 11), “por
volta de 1839, a região Oeste de Santa Catarina vinha sendo ocupada por fazendeiros” vindos de
Guarapuava e Palmas.
Cabe salientar aqui, que, em 1820, Lages, que até então pertencia à província de São
Paulo, foi incorporada à Santa Catarina e passou a cobrar impostor pela passagem do gado. A partir
deste fato e do avanço das fazendas para o Oeste, procurou-se abrir um novo caminho, que ao
mesmo tempo representasse um aprofundamento da ocupação do Oeste, um encurtamento da
distância ligando o Rio Grande do Sul a São Paulo e, ao mesmo tempo estivesse livre da tributação
imposta pela comerca de Lages. Ao mesmo tempo, este novo “Caminho das Tropas” passava por
uma região onde eram mais abundantes os ervais nativos, cuja extração começou a se tornar
atrativa, especialmente para a população sertaneja, que tinha nela sua principal forma de
sobrevivência. O trânsito mais intenso de tropas pelas terras do Oeste propiciou a formação de
novos pousos, a partir dos quais surgiram novas vilas e a penetração mais intensa de brasileiros em
busca da exploração da erva-mate. A ocupação das terras do oeste com fazendas era importante,
tanto para a produção de alimentos como por questões de segurança do território e as fazendas eram
a forma mais rápida e barata de ocupação.
Poli (1995, p. 80) considera a fase de formação das fazendas e abertura dos caminhos
como a “fase pecuária”, que promoveu uma aproximação bastante grande com a região, tendo,
inclusive, conseguido a maior e mais profunda penetração populacional no Oeste. Do ponto de vista
dos colonizadores portugueses, as fazendas de gado cumpriam duas funções importantes na época:
de um lado contribuíam para produzir alimentos, para a região dos cafezais e, de outro, eram uma
forma segura e rápida de tomar posse da Região Oeste. Para fixar esses fazendeiros, o governo fazia
concessões de terras aos seus ocupantes.
Mas, os fazendeiros não se preocupavam em colonizar as áreas que ocupavam, em
função das dificuldades que isto implicava. Por isso, as fazendas formavam como que arquipélagos
naquela paisagem, deixando grande parte daquela imensa área, especialmente as matas, ainda
despovoadas. Por isso, a agricultura pouco se desenvolveu nesta fase pecuária.
Como lembra Renk (2006, p. 35), por volta de 1870, “o ciclo das tropas entra em
declínio, concomitantemente com as fazendas de criar, resultando num movimento de dispersão da
família fazendeira e fragmentação de grandes áreas, pelas heranças e partilhas".
O ciclo da pecuária corresponde ao período inicial de ocupação e povoamento da região,
e talvez este tenha sido seu principal papel, pois sua contribuição para a acumulação de capital e o
posterior desenvolvimento econômico foi muito reduzida. O capital circulante era escasso, em geral
associado à comercialização de gado e de alimentos. Diferentemente do que ocorreu no Rio Grande
do Sul, no Oeste Catarinense não vingou nem a indústria das charqueadas, nem a pequena indústria
do couro. A marca desse ciclo da pecuária foi o latifúndio e a expulsão da população indígena que
ali vivia. De qualquer modo, o ciclo da pecuária foi importante para o início da formação
econômica da região e seu posterior desenvolvimento. É preciso notar, também, que foi a partir
dessa ocupação do território com grandes fazendas que depois foram se abrindo meios de transporte
e melhorando os meios de comunicação.
Depois da ocupação dos campos, vinda do norte, se deu a ocupação das matas, pela
população cabocla, e por fim a ocupação pela colonização, como veremos nos próximos tópicos.
3) A Erva-mate e a ocupação das matas
O aprofundamento da ocupação do território em direção ao Oeste, saindo dos campos
em direção às matas, propiciou também o descobrimento de uma nova riqueza nativa, a erva-mate, e
uma nova atividade econômica, que se mostrou de fundamental importância para o
desenvolvimento da região. Nos seus primórdios, a economia da erva-mate era uma atividade de
coleta, nômade e extensiva, no interior das matas. O Oeste Catarinense foi um grande fornecedor de
matéria-prima para outros mercados consumidores, pois o mercado consumidor local era pequeno,
dado que os moradores locais, em geral, produziam a erva para seu próprio consumo.
O povoamento nas áreas florestais, não ocupadas anteriormente, foi feito por brasileiros
ou caboclos, população formada pela miscigenação entre bancos luso-brsileiros e índios, que vinha
como excedente das fazendas e passou a ocupar as zonas das matas e a explorar a erva-mate. O
povoamento caboclo se deu inicialmente ao longo do caminho das tropas.
A exploração da erva-mate era feita nas matas pelos caboclos, que levavam vida
rudimentar, viviam em pequenos ranchos, produziam alimentos, criavam pequenos animais, porco,
galinha, gado e mudavam constantemente de residência. Por isso, a extração de erva-mate nativa
pode ser considerada uma atividade nômade e sazonal, levando cerca de três anos, entre uma
colheita e outra. A atividade agrícola ficou conhecida como roça cabocla, em clareiras abertas na
mata, através de queimadas.
Como planta nativa, era explorada no Oeste Catarinense, mas comercializada no Paraná,
no Rio Grande do Sul e, sobretudo, na Argentina. A comercialização para esses mercados era feita
quase livremente, sem cobrança de impostos, pois havia pouca presença e controle do governo
nessa região, no final do século XIX e início do século XX.
Mas o comércio mais intenso era feito com a Argentina, em geral feito em lombo de
mulas, em bruacas, tornando o produto vulnerável à chuva e ocasionando perda de qualidade, até a
cidade de Baracón, cidade fronteiriça, onde a população do extremo oeste catarinense se abastecia
de produtos como sal, banha e munição, indispensável para a vida nos campos, bem como, para
aqueles que se embrenhavam nas matas à procura de erva mate. A abertura de estradas, o
beneficiamento em monjolos e pilões mecânicos dinamizou ainda mais a produção ervateira no
oeste catarinense, a qual era exportada para outras regiões. Em Chapecó, Palma Sola e Campo Erê
chegaram a se desenvolver alguns sistemas de beneficiamento, mas que não prosperaram.
Assim, a erva-mate sempre foi um produto de exportação, mais explorado por
paranaenses e argentinos que por catarinenses. Como acentua Renk (2006, p.180), "a economia
ervateira sempre esteve atrelada ao mercado externo, o principal consumidor de erva-mate para o
chimarrão", apesar de o produto brasileiro ser considerado de baixa qualidade e por isso pouco
competitivo no mercado externo.
O ciclo da erva-mate, como atividade econômica relevante, foi relativamente longo,
pois, pois, "a erva-mate surgiu como possibilidade de atividade rentável após 1850" (RENK, 2006,
p. 38), com a chegada de exploradores argentinos e paranaenses. O desenvolvimento da indústria da
erva ocorre ainda no final de século XIX e se estende até o final das primeiras décadas do século
XX. Em 1928, o Brasil exportava cerca de 88 mil toneladas. Em 1930, a produção chegava a 280
mil toneladas. Mas, a crise da economia da erva-mate já começa algum tempo antes. A partir de
1910, a Argentina desenvolve o plantio de ervais na Província de Missiones, diminuindo então a
demanda do produto brasileiro, que começa a entrar em declínio.
Nesse período de predomínio da economia da erva-mate, como acentua Poli (1995, p.
80) a população da região era formada quase exclusivamente de caboclos, que além da extração da
erva-mate, se dedicava ao plantio de pequenas roças para a produção de alimentos necessários a sua
sobrevivência, e de índios, normalmente deslocados de seus grupos e já pouco arredios a presença
de brancos. Os caboclos cultivavam suas pequenas roças de subsistência e criavam alguns animais
soltos como, galinhas, porcos e algumas cabeças de gado. A roça cabocla era dividida em terras de
plantar e terras de criar. As terras de plantar localizavam-se distantes da casa e o método adotado no
cultivo consistia na derrubada do mato e a queima. Após a queima, era feito o plantio em covas
abertas com a ponta da foice ou com uma cavadeira feita de madeira. Não era necessário a capina
da roça, pois a terra fértil favorecia o rápido crescimento do milho ou feijão, assim o mato não
competia com os produtos. Já as terras de criar ficavam próximas da casa. Criavam-se animais
domésticos como: porcos, galinhas, cavalos, bovinos e plantava-se milho, feijão, mandioca, batata,
arroz. Sempre para o consumo próprio, pois se tratava de uma economia de subsistência, que não
gerava excedente e, portanto, nem comércio e nem moeda de troca.
Esses caboclos levavam uma vida muito simples e rudimentar, quase nômade, isolada
em pequenas comunidades no interior das matas, distante de tudo, a justiça era feita por eles
mesmos, viam seus familiares nascer, crescer e morrer no meio do nada. Abandonados à própria
sorte.
Para o governo brasileiro, no entanto, a ocupação cabocla, extraindo erva-mate não se
mostrava nem uma forma segura nem eficiente de ocupação de uma região, que ainda era disputada
pela Argentina. Com efeito, na segunda metade do século XIX, intensificam-se as incursões
argentinas na região à procura da erva-mate e a notícia da presença de argentinos visando a
estabelecer colônias na região começa a preocupar as autoridades brasileiras. Em 1865, processa-se
a abertura da estrada de Corrientes, que partia de Palmas, passava por Campo Erê, e pretendia
alcançar a Argentina. O governo brasileiro reagiu a essas investidas argentinas instalando Colônias
Militares na região. Entre suas funções estava também o poder de distribuir terras aos colonos que
as quisessem ocupar e cultivar. A distribuição era gratuita, com a condição de a ocupação e cultivo
se efetivassem no prazo de um ano, o que evidencia a urgência da ocupação.
A primeira delas, a Colônia Militar de Chapecó, foi criada em 1859, mas sua instalação
só veio a ocorrer efetivamente em 1882, na Campina do Xanxerê, em meio à intensificação da
disputa diplomática. Sua implantação e seu comando estiveram a cardo do Capitão José Bernardino
Bormann. Mas a colonização promovida pela Colônia Militar foi precária, pois os caboclos eram
pobres, não tinham meios para demarcarem as terras nem para cultivá-las de forma eficiente. Foi,
então, que o governo decidiu promover a colonização da região.
4) A estrada de ferro, as madeireiras e a colonização
Uma ferrovia não cai do céu, por acaso, mas resulta de um conjunto de fatores internos
e externos. No caso da ferrovia que atravessou o Oeste Catarinense, no início do século XX,
provavelmente foi muito mais difícil do que havia sido na Inglaterra, nos Estados Unidos e em
outros países, pois ali no Oeste as condições tecnológicas e geográficas eram muito mais difíceis.
Em todos os casos, como assinala Hobsbawn (1979), construir uma ferrovia nessa época era uma
verdadeira epopeia, que, em cada dormente, deixava as marcas de uma verdadeira tragédia humana.
No Oeste Catarinense, as condições para a sua construção eram muito mais difíceis e as
consequências foram muito mais amplas e profundas.
Trágica epopeia, por um lado, progresso máximo da tecnologia e símbolo de
desenvolvimento econômico, por outro, as estradas de ferro cortaram a Europa e os Estados Unidos
nas primeiras décadas do século XIX e chegaram ao Oeste Catarinense no início do Século XX.
Espig (2011, p. 28) assinala com cores muito fortes o que ela significou:
Imergindo vastos espaços em uma lógica capitalista até então desconhecida, os
caminhos de ferro abriram caminho nos mais distantes sertões, uniram as mais
longínquas localidades, provocaram a imaginação de grandes populações e acalentaram
sonhos de desenvolvimento e felicidade. A dura e inexorável realidade, porém, desfazia
quimeras e exibia uma face até então impensável: alterações de valores, mudança de
comportamento, quebra de rotina, expulsões de terra, agressões e perda de identidade.
Foi assim, na Europa e nos Estados Unidos. Foi assim, também, no Oeste Catarinense. A
partir de 1910, quando pela primeira vez o trem percorria os trilhos que ligam Taubaté a Marcelino
Ramos, o Oeste Catarinense inaugurava uma nova fase de sua história. Com efeito, a Estrada de
Ferro São Paulo – Rio Grande do Sul, (ESSPRS) resultou da combinação de um conjunto de fatores
de ordem externa e interna.
Do ponto de vista externo, o final do século XIX era um período de expansão do
capitalismo mundial, com exportações de capital e conquista de novos mercados, processo
associado à II Revolução Industrial, um período de concentração econômica, com o surgimento das
grandes corporações multinacionais e a formação de trustes e cartéis. Grandes mudanças também
ocorriam nas comunicações, com o telégrafo, e nos transportes, com o navio a vapor e o trem de
ferro, como o carro-chefe do desenvolvimento, abrindo novos mercados e valorizando produtos
antes inacessíveis. É nesta perspectiva que se coloca o financiamento para a construção de ferrovias
nos países da periferia capitalista, onde as taxas de juros e as oportunidades de lucro eram muito
mais atrativas do que nos países centrais.
Do ponto de vista da economia brasileira e da Região Oeste Catarinense, além do
motivo estratégico de ocupação de um território de fronteira, a ferrovia servia ao propósito da
integração da economia nacional, pois na passagem do Império à República o Brasil ainda era um
país fragmentado, com muitos conflitos regionais, carente de investimentos externos, especialmente
para desenvolver sua infraestrutura e fortalecer o mercado interno. Assim, como nos demais
lugares, no Oeste Catarinense, também, o capitalismo chegava através dos trilhos da estrada de
ferro, com todas as suas consequências: conquista, progresso, desenvolvimento, civilização,
miséria, contradições e conflitos. O trem de ferro transformou o Vale do Rio do Peixe em um
verdadeiro formigueiro humano.
Embora as negociações efetivas para a construção desta ferrovia só tenham acontecido
após a incorporação do território do Oeste Catarinense ao território brasileiro, em 1895, sua história
começa um pouco antes, em novembro de 1889, às vésperas da proclamação da República, quando
o engenheiro João Teixeira Soares recebeu a concessão de Dom Pedro II. Teixeira Soares,
possuidor de extraordinária visão estratégica, visava interligar as redes ferroviárias e as regiões
brasileiras, ligando-as também à malha ferroviária dos países vizinhos, como Argentina, Uruguai e
Paraguai. Credenciais não faltavam a este engenheiro, empresário, financista e proprietário de
terras, pois antes já havia construído o difícil trecho que vai de Curitiba a Paranaguá. Logo após
receber a concessão, ainda em 1890, Teixeira Soares criou a Compagnie Chemins de Fer Sud Ouest
Brésilien, com capitais belgas e franceses, visando captar recursos para a construção da ferrovia.
Mais tarde, surge a EFSPRS, cujo traçado de 941 km ligava Itararé a Marcelino Ramos,
passando por Porto União. Outro trecho, já no Rio Grande do Sul, ia de Marcelino Ramos ao centro
ferroviário de Santa Maria. Os trabalhos iniciaram em 15 de novembro de 1895 e o primeiro trecho,
de 228 km, foi inaugurado em 16 de dezembro de 1899. Em abril de 1904, a ferrovia chegou às
margens do Rio Iguaçu, na divisa com Santa Catarina. Neste momento, estava em operação todo o
trecho paranaense, além do gaúcho, entre o Rio Uruguai e Santa Maria, faltando concluir apenas o
trecho catarinense entre os rios Iguaçu e Uruguai, que tinha 347 km.
Em 1908, a EFSPRS, que passava por dificuldades financeiras, foi vendida para o
poderoso grupo norte-americano de Percival Farquhar, dono da Brazil Railway Company (BRW). O
Grupo Farquhar era um conglomerado de empresas de vários ramos e em vários países. Percival
Farquhar era engenheiro, financista e deputado. Foi quando vendia máquinas agrícolas com seu pai
a países da América do Sul, que percebeu as grandes oportunidades de investimentos lucrativos,
expandindo seus negócios para os países da América do Sul. Tinha fama de “caçador de
concessões”. Na América Central e do Sul, operou em Cuba, Argentina, Uruguai e Bolívia. Em
1904, passou a operar no Brasil, com a Light, no Rio e São Paulo. Além da eletricidade, seus
negócios se estendiam a vários outros ramos de negócios, gás, portos, companhias de navegação,
trens e bondes. Tinha empresas de navegação na Amazônia, controlava os portos de Belém, Rio,
Rio Grande e Paranaguá, foi a responsável pela construção da conhecida estrada de ferro Madeira-
Mamoré e chegou a controlar quase metade da malha ferroviária nacional. Manteve, também,
relações estreitas com governos e políticos, com quem operava negócios e negociatas, para não falar
nos atos de corrupção, que geralmente acompanham a realização desses interesses. Farquhard
sonhava com o controle dos transportes na América Meridional, abrangendo Argentina, Uruguai,
Paraguai e Brasil. Tinha a visão imperialista, caracterizada pelo amplo controle do mercado e pela
associação do capital financeiro com o capital industrial. No Oeste catarinense, seus negócios não
se limitaram à ferrovia, pois abrangeram também os negócios de terras e a indústria e comércio da
madeireira. O Grupo Farquhar criou também uma subsidiária, a Southern Brazil Lumber &
Colonization Company, com a finalidade de explorar a madeira e colonizar a faixa de terras e matas
de 15 quilômetros de cada lado dos trilhos, que recebeu como parte do pagamento pela construção
da ferovia.
Para a construção do trecho que cortava o Oeste Catarinense, foram recrutados muitos
operários na própria região e em algumas cidades brasileiras. Muitos outros operários
especializados também vieram do exterior. No auge da construção, o contingente de mão de obra
chegou a atingir 8.000 trabalhadores, distribuídos ao longo de 347 km do trecho catarinense. A
estrada foi construída na base da picareta, a um ritmo alucinante de 516 metros por dia. O trecho de
Porto União a Taquaral Liso foi inaugurado pelo presidente Afonso Pena, em 03 de abril de 1909. A
inauguração final da obra só veio a ocorrer em 17 de dezembro de 1910.
O Império Farquhard, que representou um poderoso braço do capital financeiro e industrial
internacional no Oeste Catarinense, desmoronou com a Primeira Guerra Mundial e com isso,
interrompeu-se o fluxo de capitais para os países subdesenvolvidos, inclusive o Brasil. A EFSPRS
foi encampada pelo Governo Federal, na década de 1940 e, depois, em 1996, devolvida à iniciativa
privada no contexto das privatizações do período.
Antes da construção da ferrovia no Oeste Catarinense, a madeira era explorada de forma
artesanal, pelos caboclos e colonos, que a beneficiavam através de engenhos de serrar, hidráulicos
ou de tração animal, com fins de utilização doméstica. Além desse uso doméstico, a
comercialização da madeira bruta era feita através do rio Uruguai, durante os períodos de cheia. As
toras de madeira eram embarcadas em forma de jangadas e levadas para a Argentina, seu grande
mercado consumidor.
Autorizada a funcionar em 1909, a Lumber chegou a possuir nada menos do que 276
mil alqueires de terra, o equivalente a 669 mil hectares, cobertos de matas, onde havia mais de
quatro milhões de pinheiros e mais dois milhões de árvores nobres, como imbuias e cedros,
chegando muitos deles a 30 metros de altura e mais de metro de diâmetro. Sua principal serraria era
a Madeireira de Três Barras, a maior da América Latina na época, que tinha a capacidade de serrar
300 m3 por dia, ou o equivalente a 1.200 dúzias de tábuas e contava com mais de 800 empregados.
Junto à Serraria de três Barras ela construiu um núcleo urbano de 250 casas pra abrigar seus
funcionários mais graduados.
Com suas modernas máquinas realizava o trabalho de mais de cinco mil trabalhadores
com equipamentos convencionais de serrar amadeira. Para facilitar o trabalho de derrubada,
avançou trilhos até 32 km mata adentro. Seus guindastes com longos cabos de aço alcançavam um
diâmetro de até 200 metros. A Lumber tinha também uma serraria em Calmon, mais ao norte,
próximo a Porto União, na divisa com o Paraná.
A exploração da madeira, que era feita de forma artesanal, para consumo doméstico,
recebe um forte impulso com a construção da ferrovia, em 1910. Mas durante a Guerra do
Contestado, 1912 a 1916, a atividade madeireira volta a cair, para se consolidar como atividade
econômica dominante, na década de 1920, e também como um dos principais itens de exportação
catarinense, integrando a economia estadual ao restante do país. Desde o fim da Guerra do
Contestado e durante toda a década de 1920, a Lumber foi hegemônica na extração e
comercialização de madeira. No decênio seguinte, com o surgimento de grande número de
pequenas serrarias, um novo impulso foi dado à atividade. Em 1936, três estações de trem se
destacavam em volume transportado: Caçador, Canoinhas e Três Barras. Em 1940, o montante
exportado de madeira representou 19,10% da totalidade das exportações catarinenses, com enorme
contribuição da Região do Contestado. Aproximadamente 80% da produção local de madeira era
destinada aos centros consumidores do país, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro. O restante
da produção seguia para a Argentina e Uruguai.
O ciclo da madeira alcança seu auge entre 1930 e 1950 e se termina uma década mais
tarde, com o esgotamento dos pinhais de corte e de outras madeiras nobres. As madeireiras
contribuíram também para o povoamento e urbanização, através das vilas rurais, onde residiam os
trabalhadores das serrarias. Muitas dessas vilas, depois se transformaram em municípios. No
entanto, o ciclo da madeira deixou como herança apenas 2% das matas, que antes cobriam esse
imenso território.
Além de contribuir enormemente para as atividades madeireiras, a ferrovia foi uma
ferrovia colonizadora, pois a história da colonização do Oeste Catarinense confunde-se com a
história da ferrovia. O Decreto de Concessão feito por Dom Pedro II a João Teixeira Soares, ao lado
dos privilégios que concedia, impunha tamém o compromisso de transportar gratuitamente os
futuros colonos, com seus utensílios e sementes. Como acentua Espig (2011:130), tratava-se de um
verdadeiro plano de colonização embutido na concessão da EFSPRS, segundo o qual deviam ser
assentadas dez mil famílias de agricultores, recebendo cada família um lote de dez hectares, com
casas, escolas e igrejas. Durante o processo de assentamento, os colonos receberiam ajuda, em troca
de trabalharem 15 dias por mês para a mesma Companhia.
A ferrovia foi, sem dúvida, o acontecimento mais importante do início do século XX no
Oeste Catarinense, pois além de seu papel estratégico-militar de defesa territorial, ela desempenhou
um papel econômico fundamental, contribuindo para o avanço da colonização e o desenvolvimento
da indústria ervateira e madeireira, facilitou o transporte de mercadorias, as ligações entre cidades e
a integração do Oeste ao território e à economia nacional. Em torno das estações do trem formaram-
se núcleos urbanos e atividades econômicas variadas, irradiando o processo de mudança e
desenvolvimento da região.
Para Goularti Filho (2009, p.105) foi através dos trilhos do trem de ferro que o
capitalismo chegou ao Oeste Catarinense, com todas as suas contradições: a decomposição da
economia de subsistência, o extermínio dos indígenas e a marginalização dos caboclos, que
habitavam aquele território, rompendo os antigos métodos de exploração do território e do trabalho
e inserindo a relação de propriedade privada da terra e o trabalho assalariado na região.
Nodari (1999, p. 13) também acentua que a “inserção de parte da economia de Santa
Catarina no mercado nacional e internacional ocorreu a partir da construção da estrada de ferro”,
pois ela influenciou de maneira profunda e permanente o desenvolvimento econômico do Oeste
Catarinense, alterando a estrutura de propriedade das terras e a forma de exploração dos recursos
naturais da região. A ferrovia trouxe consigo também novos valores, ligados a velocidade e à
aceleração do tempo, na região.
Ao lado da BRC e da Lumber atuaram muitas outras Companhias Colonizadoras,
promovendo a colonização do restante da área não desbravada pela ferrovia. O sistema de
colonização das empresas colonizadoras funcionava mais ou menos da seguinte maneira: o governo
concedia grandes porções de terra a essas empresas, que deveriam reparti-las em pequenos lotes e
vendê-los aos colonos, ficando também as mesmas responsáveis pela construção de estradas para o
transporte e deslocamento dos colonos. As empresas colonizadoras, antes de venderem os lotes de
terra para os colonos, exploravam as madeiras mais nobres, em serrarias próprias ou em associação
com a Lumber, e só depois vendiam as terras aos colonos.
O processo de colonização trouxe grandes transformações para o Oeste Catarinense, não
apenas em relação à ocupação e povoamento do território, mas também no tocante às relações
sociais que se desenvolveram nas novas colônias, alterando modo de vida, lazer, trabalho, uso da
terra e o cotidiano cultural dos colonos. É importante ressaltar que este processo de colonização não
foi espontâneo, mas induzido pelo governo, que julgava pouco eficiente a forma de ocupação pré-
existente, feita por grupos sociais diversos, como os índios, caboclos e fazendeiros. Assim que se
estabeleceram, com seus costumes, crenças, formas de vida e, especialmente seu ethos do trabalho,
os colonos passaram a se constituir como grupo social dominante.
Radin (2009, p. 84) ressalta os fins mercantis que comandaram o processo de
colonização do “sertão” catarinense, em contraste com a forma de vida e de trabalho da população
cabocla que habitava a região. A criação da ideia de “sertão”, como espaço vazio, foi um artifício
útil para justificar a ocupação de uma terra já habitada. No imaginário social, o “sertão” catarinense
ficou associado à ideia de caos, terra de bandido, barbárie, coronelismo e terra de ninguém. Para
caboclos e índios, a terra tinha apenas valor de uso e não valor comercial. “Normalmente, a
expulsão dos posseiros ocorria à revelia da justiça e dos órgãos oficiais do Estado, sendo as disputas
resolvidas no âmbito privado e à força” (RADIN, 2009, p. 85).
A colonização do Oeste, que inicia após a Guerra do Contestado, se intensifica a partir
de 1940, com a chegada de novas levas de colonos do Rio Grande do Sul, alemães e italianos e
poloneses, que traziam consigo uma larga experiência no cultivo da terra. A intenção
governamental era ocupar as terras com uma população de origem europeia, pois entender que
somente com uma nova filosofia seria possível desenvolver a região.
Em conclusão, pode-se dizer que, ao contrário do que havia acontecido com o ciclo da
pecuária, o ciclo da erva-mate e o ciclo da madeira, que se mostraram incapazes de iniciar um
processo de acumulação de capital (BARARESCO, 2003), a colonização do Oeste foi capaz de
iniciar um processo acumulação de capital, com excedentes da agricultura familiar, que se
transformou no motor do desenvolvimento do complexo agroindustrial, hoje um dos mais
dinâmicos da economia catarinense.
5) “A Viagem de 1929” e a ocupação simbólica do Oeste
Uma vez definidas as fronteiras externas com a Argentina, em 1895, resolvido o
conflito das fronteiras internas com o vizinho Estado do Paraná e, uma vez supostamente pacificado
o território com o término da Guerra do Contestado, em 1916, o governo do Estado de Santa
Catarina precisava realizar a ocupação política do Oeste. Esta ocupação política foi feita de forma
pouco usual, através de uma viagem de reconhecimento, que ficou conhecida como “A Viagem de
1929”. Durante 31 dias, entre 17 de abril e 18 de maio, o Presidente do Estado, Rodolfo Konder e
um comitiva de 20 pessoas percorreram três mil km, de Florianópolis, no litoral, a Dionísio
Cerqueira, junto à divisa com a Argentina.
Foi uma verdadeira marcha para o Oeste, uma tomada de posse de um espaço
desconhecido do poder público, que pelo seu significado deixou marcas profundas nos sentimentos
e na imaginação popular. A comitiva era grande e diversificada, pois incluía, além da figura do
Presidente do Estado, historiadores, chefe de polícia, agrimensores, consultor jurídico e deputados,
dentre outros. Na viagem foram usados todos os meios de transporte disponíveis, como automóvel,
lanchas, trem e mula de carga. Além de conhecer o território, a viagem procurava abrir estradas,
abrir escolas, agência postal, telégrafo, integrar o território, impor a ordem e disciplina no Oeste,
transformando uma “terra da barbárie” em “terra do trabalho”.
Flores e Serpa (2005, p. 130) complementam esses objetivos, dizendo que a viagem
procurou exercer a soberania sobre as terras do Oeste, incentivar a construção da brasilidade,
preencher o vazio demográfico e apagar os últimos vestígios dos velhos rancores, originados dos
muitos conflitos que dominaram a região. Tratava-se, no fundo, de levar o processo civilizador para
o interior, fazendo com que “as fronteias econômicas, geográficas e culturais coincidissem com as
fronteiras políticas”.
Nas palavras de um membro da comitiva (BOITEUX, 1931, p. 7-8), a região era
“inculta e desconhecida”, mas que, como uma “nova Canaan, convida, assegurando remuneradores
resultados, a cooperação da inteligência e do braço do homem disposto a trabalhar”. Outro membro
da comitiva oficial (COSTA, 1929, p. 8) afirma que a Viagem visava a “implantação da ordem, o
respeito às leis, ao fomento econômico, à civilização, enfim, de uma região assolada pelos
movimentos revolucionários e pelo banditismo”. Basta lembrar que, dois anos antes, em 1927, a
Coluna Prestes havia passado pela região e o banditismo reinante no sertão, como o representado
pelo conhecido “Bando de Leonel Rocha”, que exterminava famílias inteiras, deixava a população
muito insegura e exigia uma ação enérgica das autoridades.
Por esse motivo a Viagem propiciou, também, um encontro entre Vargas e Konder, em
Iraí, ocasião em que foi procedida a ratificação do “acordo policial” entre o Rio Grande do Sul e
Santa Catarina, que permitia à polícia de cada Estado perseguir bandidos, que se refugiavam no
território do Estado vizinho.
A chegada da comitiva nas povoações era sempre bem preparada e sempre recebida
com festas pela população. No entanto, ao chegar à fronteira com a Argentina, na cidade de
Dionísio Cerqueira, a comitiva constata que a cidade estava se desnacionalizando, pois tudo ali era
argentino, os produtos consumidos eram argentinos, as crianças frequentavam escolas argentinas,
falavam o espanhol e, quando perguntadas pelos heróis nacionais, respondiam apontando figuras da
história argentina. Assim, como assinalam Flores e Serpa (2005, p. 133):
“À medida que a Bandeira avançava, ia deixando sinais de sua passagem: marcas da civilização, da
organização administrativa, da ordem pública na inauguração de escolas, de praças, na promessa da
construção de rodovias, na mudança de nomes de colônias, na nomeação de lugares topográficos”.
Para muitos analistas, no entanto, como Renk (2005) e Flores e Serpa (2005), a Viagem
de 1929 teve um sentido mais simbólico do que real. Como uma nova Bandeira desbravadora,
representou um verdadeiro rito de conquista do território e de reconhecimento da soberania pública
sobre uma região desconhecida, uma espécie de ato inaugural de sua incorporação simbólica. Uma
viagem patriótica dos novos bandeirantes da brasilidade.
6) A agricultura familiar e o complexo agroindustrial
A agricultura familiar colonial deu origem à agroindústria e a relação entre ambos veio
a constituir-se na base do dinâmico e bem sucedido modelo de desenvolvimento do Oeste
Catarinense. Efetivamente, foi a partir dos pequenos estabelecimentos comerciais que lidavam com
produtos agropecuários, excedentes da agricultura familiar, que se formaram as grandes empresas
do complexo agroindustrial característico da região.
Ainda na década de 1920, os primeiros imigrantes, dedicados à pequena agricultura
familiar, começaram a desenvolver atividades agropecuárias, em especial a produção de trigo,
milho e de suínos. Na década de 1930, a produção de suínos afirma-se como uma atividade mais
rentável que as outras e começa a tornar-se dominante. A crescente demanda de suínos e de banha
provinha de São Paulo e foi intensificando o comércio da região catarinense com o centro do país.
Foi a partir dessas atividades centradas na criação de suínos que se desenvolveram as primeiras
casas primeiras comerciais de imigrantes e iniciou o processo de acumulação de capitais gerados na
própria região. Na esteira da produção de suínos, que aos poucos foi se consolidando como a
principal atividade econômica da região foram se desenvolvendo outras atividades complementares
como a cultura do milho, do feijão, do arroz e da mandioca.
Na década de 1930, com o enfraquecimento do comércio de suínos vivos para São
Paulo, as casas comerciais começam a processar a matéria-prima na própria região, fazendo surgir
assim os primeiros abatedouros de suínos. Assim, no início da década de 1940, a partir dos capitais
comerciais acumulados a nível local, foram fundados três frigoríficos de suínos, todos no Vale do
Rio do Peixe. Com efeito, em 1940, foi criado o frigorífico da Sadia e o da Perdigão. Em 1952, o
Chapecó, e em 1956, o Seara. Já, em 1962, foi a vez do Frigorífico Itapiranga e, em 1969, a
Cooperativa Central Oeste Catarinense, em Chapecó. De início, o principal produto industrial era a
banha, enquanto a carne era vendida na forma de linguiça ou como carne salgada. A partir de sua
relação privilegiada com a agricultura, o capital comercial passa, então, a envolver-se com a
indústria, processando-se sua metamorfose de capital comercial para capital industrial. Foi assim
que a agricultura começou a industrializar-se, formando as primeiras agroindústrias. Como relata
Bavaresco (2003, p. 77):
O comerciante passou a ser o centro dos negócios nas vilas ou pequenos núcleos
coloniais. É nesses pontos que o colono repassava seu excedente como: feijão, fumo,
banha até mesmo o suíno vivo e, em troca se abastecia de sal, querosene, tecidos,
ferramentas e medicamento. Raras vezes o colono recebia dinheiro em troca dos seus
produtos, preferindo deixar em conta junto ao comerciante.
Como podemos observar, o desenvolvimento do complexo agroindustrial do Oeste
Catarinense foi um processo muito tardio, ocorrido depois da década de 1940, devido a fatores
como a falta de suporte financeiro, a baixa capacidade de acumulação e a desarticulação econômica
da região. No relato de Piva (2010, p. 24):
É na década de setenta, portanto, que este novo modelo de produção se assenta
plenamente, ao passo que a interdependência entre indústria e agricultura é tão sentida
que o antigo caráter autônomo da agricultura, assim como a capacidade decisória dos
grupos sociais rurais, se abala e perde força. Dessa forma, muda-se o modo até então
predominante de se produzir, combinando elementos antigos como terra e trabalho aos
insumos e serviços industrializados.
Goularti Filho (2006) também afirma que o mencionado sistema agroindustrial ganhou
impulso no Oeste Catarinense por conta de resultados comerciais, que, escorados no forte
crescimento da demanda por alimentos, asseguravam o escoamento do excedente da produção das
propriedades. O suíno tornou-se, nesse processo, o principal produto comercializado pelas unidades
familiares da região e, como decorrência, passou a constituir-se na base da reprodução destas
unidades familiares.
As agroindústrias haviam começado a integrar esse sistema a partir do final da década
de 1960, mas foi nos anos 1980 que esse movimento se intensificou. No início, o processo baseava-
se em contratos que estipulavam, para as empresas, o fornecimento de insumos, medicamentos e
assistência técnica e também a compra da produção. Para os agricultores, as obrigações envolviam a
adesão às orientações técnicas e o pagamento dos insumos e medicamentos quando da entrega dos
suínos às empresas. Mas, entre 1962 e 1990, com a integração e a consolidação do capital industrial,
o desenvolvimento econômico do Oeste Catarinense passa a ser conduzido pelas grandes e médias
empresas do setor alimentício, como Perdigão, Sadia, Chapecó, Aurora, Seara, dentre outros. Nesse
processo, a indústria de alimentação catarinense, centrada na região Oeste do Estado, contempla as
principais empresas brasileiras do setor.
O processo de integração da agricultura familiar no complexo agroindustrial foi lento,
pois, ainda na década de 1980, a produção de suínos era organizada na forma conhecida como ciclo
completo, em que o processo é integralmente controlado pelo agricultor, proprietário dos meios de
produção. Nesse modelo de ciclo completo, a relação que o agricultor mantinha com as empresas
agroindustriais era de natureza comercial, abrangendo a aquisição de medicamentos e insumos e a
venda dos suínos prontos para o abate. Produzir milho e outros insumos na propriedade era a
principal estratégia para diminuir custos e aumentar a margem de ganho do produto.
Mas o processo de concentração da produção, que se acentua a partir dos anos 1980,
logo resultou em apurada seleção dos suinocultores. Também surgiram pressões para o aumento da
produção nas propriedades. A imposição inicial era que o agricultor tivesse no mínimo três matrizes
ao se integrar, mas esse patamar mínimo foi sendo gradativamente aumentado. Neste estágio da
integração, pode-se dizer que o conhecimento, a capacidade produtiva e a organização da produção
ainda “pertenciam” aos agricultores, que exerciam diretamente o controle e o comando do processo
produtivo. Note-se que o desempenho das propriedades traduziu primeiro a expansão da quantidade
produzida, tendo só posteriormente refletido o incremento na produtividade outorgado pela
incorporação de novas técnicas, raças de suínos e estruturas. Mas, as alterações efetuadas
gradualmente, mudaram as necessidades em termos de instalações e equipamentos, de relações com
o mercado e com as empresas agroindustriais e também em relação à quantidade produzida para
fins comerciais.
Mas, a evolução do processo não parou. Como destaca Mior (2005, p. 87), nos anos
1990, houve uma profunda reestruturação na agroindústria do Oeste Catarinense, afetando as
relações entre agroindústria e agricultura familiar em torno da suinocultura e provocando o
abandono dessa atividade por milhares de agricultores, muitos dos quais engrossaram o fluxo
migratório em direção a outras regiões. As empresas líderes, Sadia e Perdigão, efetuaram
reorganizações societárias e procuraram se instalar junto aos grandes mercados consumidores do
País, assim como fortaleceram sua inserção internacional. Efetivamente, a agroindústria regional
trilhou o caminho da concentração, com surgimento da Brasil Foods, pela fusão entre Sadia e
Perdigão. Atualmente quatro grandes empresas dominam o setor, a saber, Bunge, Brasil Foods,
Aurora e Marfrig (que incorporou a Cargill e a Seara. Contudo, ao lado e à margem dessa estrutura
concentrada, atuam também frigoríficos pequenos e médios voltados à industrialização de suínos e
aves.
Na verdade, a formação socioeconômica do Oeste Catarinense, como qualquer outra
formação, não estancou no modelo tradicional da inserção da agricultura familiar no complexo
agroindustrial. Como bem acentua Mior (2005, p. 18-19) a propósito das novas mudanças
socioeconômicas no Oeste Catarinense:
“Com efeito, nos anos 90, a agricultura familiar assume novas formas de inserção socioeconômica, agora
como protagonista do processo de agroindustrialização. Assim, a análise dos padrões de desenvolvimento
rural e regional ganhou complexidade, haja vista que, além da convencional integração às grandes
agroindústrias, tem que dar conta da agricultura familiar como processadora de matéria-prima às novas
pequenas e médias agroindústrias. Um estudo das novas formas de integração promovidas pela grande
agroindústria convencional ou, no outro extremo, das novas formas de agroindustrialização
protagonizadas pela agricultura familiar poderia ser frutífero”.
O mesmo autor desenvolve um aprofundado estudo dessas mudanças que estão
ocorrendo na formação socioeconômica da região Oeste (MIOR, 2005) e conclui que ambas as
formas de integração da agricultura familiar estão significativamente inter-relacionadas. Apesar da
relevância desta questão, não é possível analisá-la neste texto. Trata-se, agora, após esta breve
análise histórica da formação econômica do Oeste Catarinense, de fazer uma breve análise da sua
formação social.
7) A formação social do Oeste
Por formação social entendemos o processo de constituição de uma determinada
sociedade, com características próprias, em termos de relações de propriedade e de trabalho, seus
laços de solidariedade e coesão, sua visão de mundo, suas crenças e costumes, bem como suas
contradições e conflitos internos. Entendemos, ainda, que tanto o processo de constituição como o
de mudança são provocados mais fortemente por fatores internos do que externos, assim como
também nos parece que os fatores de ordem econômica internos à ordem social possuem uma força
explicativa preponderante sobre outros fatores de ordem cultural ou simbólica.
Nesta perspectiva, uma formação social se constrói em estreita relação com a formação
econômica de uma região, embora não possa ser explicada pela unicamente pelos fatores de ordem
econômica. Outros fatores de ordem cultural, religiosa ou simbólica devem também ser levados em
conta. No caso da região Oeste Catarinense, analisar a formação social significa caracterizar as
diversas classes, camadas ou estratos sociais, bem como as identidades dos povos que habitaram ou
ainda habitam a região no período de sua formação socioeconômica. Para tanto, procuramos
caracterizar esta sociedade do Oeste Catarinense em três momentos de sua história econômico-
social, deixando de lado as sociedades indígenas, pela sua especificidade e complexidade.
Assim, primeiro, tentamos esboçar alguns traços comuns da sociedade primitiva e
cabocla, num período que vai desde as primeiras ocupações do território do Oeste até
aproximadamente 1930, quando se intensifica o processo de colonização propriamente dita, com
colonos de origem europeia, italianos, alemães e polacos. Num segundo momento, esta “formação
social primitiva e cabocla” começa a ser substituída por uma outra formação, que podemos
denominar de “formação social colonial”, a qual mescla traços da formação social anterior com
traços de uma sociedade familiar-capitalista. Uma terceira formação pode ser denominada de
“formação social capitalista” e se constitui juntamente com a formação e o desenvolvimento do
complexo agroindustrial.
Nesta perspectiva, de modo geral, nos períodos de transição, preponderam elementos da
antiga e da nova formação social, quando os traços da antiga formação ainda não desapareceram e
os da nova ainda não se tornaram dominantes. De forma resumida, pode-se afirmar que a “formação
social cabocla” se caracteriza por seus traços nitidamente não capitalistas, a “formação social
colonial” mescla traços de uma formação social familiar com traços de uma formação social
capitalista e na “formação social capitalista”, embora persistam traços de uma agricultura familiar,
predominam os elementos tipicamente capitalistas.
Como já assinalamos acima, não é o objetivo nem nos é possível fazer aqui uma análise
das sociedades indígenas originárias, que habitaram o Oeste, pois isto demandaria tempo e
conhecimentos de que não dispomos no momento. Por isso, iniciamos com a formação social
cabocla, que resulta do processo de ocupação e desbravamento do território do Oeste Catarinense
propriamente dito
A partir de meados do século XIX, quando se esgota a fase preponderante da ocupação
indígena, como acentua Poli (1995, p. 75), “o contingente populacional predominante era de luso-
brasileiros denominados caboclos”. Com efeito, o luso-brasileiro “foi o verdadeiro pioneiro na
penetração e desbravamento do sertão catarinense”, afirma o autor. Os caboclos, na sua grande
maioria, viviam isolados no interior e nas matas da região, numa espécie de solidão natural, longe
dos recursos que a modernidade proporcionava às pessoas dos centros maiores. Suas principais
atividades econômicas resumiam-se à extração da erva-mate, ao tropeirismo e à roça cabocla, onde
cultivavam produtos de subsistências e criavam alguns animais para o próprio consumo.
A partir da forma de vida e de trabalho que levavam caboclos, a “formação social
cabocla” pode ser caracterizada pela dominância de um “ethos comunitário”, quase como condição
necessária para a sobrevivência de seus membros em meio à floresta. “A solidariedade constituiu
uma blindagem contra a insegurança e a instabilidade e, em última instância, condição necessária
para a sobrevivência do próprio tecido social (grifos originais)”.(EIDT e TEDESCO, 2012, p.
1). Como acentuam ainda os mesmos autores, esta sociedade cabocla estava organizada com base
na pequena propriedade de subsistência, utilização da mão de obra familiar, formando pequenas
comunidades, ligadas por acentuado espírito comunitário, que, por sua vez, estava cimentado por
valores da igualdade e solidariedade.
Na sua cultura de subsistência, merece ser destacada sua relação com a natureza, cuja
transformação não tinha objetivos mercantis, mas tão somente “garantir a sobrevivência das
comunidades”. Nessa economia de subsistência praticamente não circulava a moeda, por que a
produção não tinha fins comerciais, o que ressalta o papel das bodegas, como organizações centrais
de uma verdadeira economia de escambo, onde se trocava “fumo, milho, feijão e erva-mate, por sal,
bebidas, querosene, pólvora, e instrumentos de trabalho”.
Poli (1995, p. 98) caracteriza o caboclo da seguinte forma:
O caboclo sempre teve sua vida à margem da sociedade, servindo de mão de obra a
fazendeiros, ervateiros e madeireiros. Embora representassem a maioria da população,
os caboclos sempre foram despossuídos. Raramente conseguiam obter a propriedade de
uma pequena área de terra, onde pudessem manter-se com suas pequenas roças
caboclas.
Algumas características a mais completam esse retrato do caboclo esboçado pelo
mesmo autor: o caboclo, criado no sertão, tem hábitos sertanejos, pele escura, vive em ranchos, é
mestiço, de origem portuguesa, resulta de miscigenação. Mas, “a conceituação de caboclo é muito
mais social e econômica do que racial”. Sua condição era ser pobre e viver toscamente. Os caboclos
sofreram uma discriminação étnica e sociocultural, dificultando ainda mais a socialização no
extremo Oeste Catarinense.
No entanto, esta formação social cabocla começa a mudar completamente, depois da
Guerra do Contestado, em 1916, com a intensificação do processo de colonização e especialmente
com a vinda das Companhias Colonizadoras, pois a Colonização do Oeste se inseria num processo
essencialmente capitalista, movido pela conquista e apropriação privada da terra, ainda que marcada
pela pequena propriedade familiar e por uma formação social com fortes traços comunitários. O
fato é que esse processo significou o aniquilamento dos povos da floresta, índios e caboclos, que
possuíam a posse coletiva da terra. Embora movido por fins mercantis, o processo de colonização,
ao introduzir a pequena propriedade familiar, ajudou a criar um “profundo sentimento comunitário e
religioso”. Numa região em que a presença do Estado não existia, “o caráter coletivo e comunitário
da colonização do Oeste de Santa Catarina foi condição necessária para a reprodução da família
camponesa”. Bavaresco (2003, p. 53) acentua alguns traços desse processo, a partir das mudanças
ocorridas nas relações socais de produção:
As transformações que se processam no Extremo Oeste Catarinense, a partir do período
da colonização, estão intimamente ligadas às relações sociais que se desenvolveram nas
novas colônias. Essas relações se verificam no modo de vida, lazer, trabalho, uso da
terra, ou seja, no cotidiano dos colonos. Então, ao refletir sobre as transformações na
paisagem do Extremo Oeste deve-se observar a construção da paisagem cultural, fruto
dessas relações.
É importante frisar que a colonização trouxe novas relações de propriedade e de
trabalho, diferentes das que tinham os caboclos. Muitas outras diferenças havia entre caboclos e
colonos, além das culturais, a começar pelo objetivo da produção familiar, pois enquanto os
caboclos produziam para seu próprio consumo, mantendo pouco contato com o mercado, a
produção dos colonos de origem “se organizou, em grande medida, em função do mercado” (POLI,
2001, p. 35). Embora isso não fosse válido para toda a produção colonial, pois, com o tempo, algum
produto passou a ser produzido, não mais em função do consumo, mas para atender “as
necessidades do mercado”. Tal situação levou a que a produção colonial fosse se integrando
“mesmo que de forma parcial e imperfeita, ao mercado capitalista, embora ainda mantivesse em
relação a ele uma considerável parcela de autonomia” (POLI, 2001, p. 36).
Ao contrário do que se passava com parte da economia colonial, que reforçava cada vez
mais seus laços com a economia de mercado, a agricultura itinerante e o nomadismo dos caboclos,
associados ao caráter sazonal de suas atividades, mantinham a economia cabocla desligada do
mercado. Além disso, “fatores de origem cultural impediram a integração efetiva dessas populações
caboclas ao mercado”.
Efetivamente, o caboclo trabalhava em harmonia com a terra, onde buscava apenas a
sobrevivência, praticando uma agricultura rudimentar, enquanto os colonos buscavam enriquecer,
através do trabalho. Trabalhar era uma questão de sobrevivência, pois se constituía no único meio
para gerar o excedente necessário para pagar a terra e melhorar de vida. Mas, ao lado de um ethos
do trabalho que cultivava a ambição da riqueza, existia também uma espécie de ethos comunitário,
como um valor fundamental da vida dos colonos.
Mas, na medida em que a colonização avançava, o caboclo ia sendo empurrado para o
interior. A relação dos colonos com os caboclos foi, sobretudo, de conflito e rivalidade, devido a
seus modos de vida e concepção de trabalho, que eram diferentes em vários aspectos. Embora a
causa básica do conflito tenha sido a ocupação das terras caboclas pelos colonos, Poli (1995, p. 91 e
92) acentua que “a principal diferença era cultural, pois o colono considerava o caboclo inferior,
pouco afeito ao trabalho e desordeiro”, e o tratava com desprezo. Por esse motivo, continua o autor,
“o contingente de caboclos foi diminuindo cada vez mais, em função da penetração implacável da
colonização, com a propriedade privada da terra, o estabelecimento de divisas e a produção de
excedente”.
Renk (1995, p. 223) também acentua que, antes da colonização, a população cabocla do
Oeste vivia no sistema de posse da terra, a partir de meados do século XIX, levando um modo de
vida tradicional, com agricultura de pequena escala e o extrativismo da erva-mate. E conclui: “Com
o processo de colonização, principalmente a partir de 1930, será expropriada da terra
desestruturando o seu modo de vida peculiar”.
Esses caboclos expropriados voltam-se, então, para o trabalho assalariado, extraindo
erva-mate, por tarefa. O que aconteceu foi uma mudança bastante acelerada, pois os valores
introduzidos com a colonização forçavam a população local a adaptar-se ao novo sistema de
propriedade e de trabalho ou a ficar excluída daquela sociedade, mas a adaptação significava a
desestruturação do modo de vida anterior à colonização. Campos (1987, p. 69) também reforça o
que foi acima colocado, ao afirmar que: “Com a progressiva colonização da região os caboclos
tornavam-se os primeiros deserdados da terra. A ocupação progressiva e o escasseamento das terras
virgens, as cercas e o poder instituído” provocaram a destruição de suas tradicionais condições de
vida.
Ao mesmo tempo, o processo de colonização, que se desenvolveu nas matas do Oeste
Catarinense, aos poucos foi formando verdadeiras “ilhas europeias” de colonos italianos, alemães e
poloneses, num espaço natural, em meio à mata densa e fechada, mais voltados para si mesmos e
para a natureza, do que para o mundo externo, uma economia quase autossuficiente, forçando as
famílias a produzirem quase tudo o que precisavam e a desenvolverem uma ajuda mútua, na forma
de mutirões para superar tanto as insuficiências individuais, quando a falta do Estado. Assim, como
acentua Poli (2001, p. 32), as comunidades coloniais formaram “padrões culturais, organização
produtiva e modos de vida significativamente diferentes” das populações rurais que ali habitavam.
Uma das principais diferenças se refere aos objetivos da produção, que se organizou basicamente
em função do mercado. Os colonos de origem se integram, assim, mesmo que de forma parcial e
imperfeita, ao mercado capitalista, mas estabelecem ao mesmo tempo fortes laços de solidariedade
e convivência social.
A colonização se fez na base da propriedade familiar e da produção de subsistência,
embora em um contexto econômico tipicamente capitalista. Ou seja, tanto o trabalho como a
produção se organizavam na forma familiar e direta de propriedade dos meios de produção, mas se
inseriam cada vez mais na lógica de uma economia de mercado.
Uma “formação social capitalista” se consolida no Oeste Catarinense, na segunda
metade do século XX, a partir da “formação social colonial”. Nesse sentido, pode-se dizer que, a
partir da década de 1970, a evolução da organização econômica começou a produzir uma ruptura
nesse modelo de organização familiar da propriedade e da produção de subsistência, que
caracterizavam a “formação social colonial”, através da formação dos complexos agroindustriais,
que transformaram aquele espaço natural, rompendo a sociabilidade tradicional e integrando a
região aos circuitos internacionais da produção, do comércio e das finanças capitalistas.
Com a inserção da agricultura familiar no complexo agroindustrial, o espaço regional do
Oeste abriu-se e fortaleceu seus laços externos, integrando as atividades locais em cadeias globais.
Em consequência, como acentuam Eidt e Tedesco (2012, p. 12): “A interação cultural e econômica
transformou o espaço fechado. A entrada mais agressiva do capitalismo rompeu com os laços de
solidariedade que soldavam até então o tecido social”.
Dessa forma, com a consolidação das grandes empresas agroindustriais de suínos, aves
e leite, promotoras da modernidade na região, mudaram as relações sociais no campo, substituindo
a solidariedade horizontal pela verticalidade das relações, subordinando os trabalhadores, que antes
se valiam dos seus próprios meios de trabalho para produzir sua subsistência, à lógica exploradora
do capital. Como acentuam ainda os mesmos autores, a penetração das empresas capitalistas, além
de modernizar das atividades agrícolas, mudou drasticamente a forma de vida de suas populações.
O aumento da competitividade destroçou antigas solidariedades horizontais e implantou a
verticalidade nas relações de trabalho, transformando filhos de antigos camponeses em operários
das agroindústrias, no interior dos frigoríficos. Mas o processo de transformação não terminou aí,
pois mesmo os colonos remanescentes da agricultura familiar, que se transformaram em
empresários rurais, viram sua antiga autonomia subordinada às regras da racionalidade capitalista. E
assim, seus antigos “hábitos, normas, conduta e comportamento” passaram também a ser ditados
pelas empresas capitalistas e pela sociedade de consumo.
Desse modo, mudanças na organização econômica acabaram por afetar a própria
identidade social de agricultor e o habitus camponês do Oeste Catarinense. Como acentua Mello
(2006, p. 4), o espaço “fechado em que estava inserida a agricultura familiar do Oeste Catarinense
até final dos anos 1970, dá lugar, de forma relativamente rápida, a uma abertura objetiva e subjetiva
do espaço social e econômico”.
No entanto, como já sugerimos acima, não se pode atribuir as mudanças da formação
social unicamente às mudanças da ordem econômica, pois muitos outros fatores acabam
interferindo. Pode-se entender facilmente que a crescente subordinação da economia camponesa à
lógica do mercado não seja suficiente, por si só, para determinar as profundas transformações do
mundo rural sem que outros fatores de ordem cultural ou imaginária tivessem atuado para
enfraquecer a autonomia ética dos camponeses e sua escala de valores, enfraquecendo, assim, sua
capacidade de resistência. Sem a contribuição desses fatores culturais, seria difícil explicar que,
num lapso de tempo tão curto, se processassem mudanças tão acentuadas na forma de vida e nos
valores da vida camponesa.
Niederle e Exterckoter (2012) salientam que, a partir da década de 1970, o complexo
agroindustrial, que se formou no Oeste Catarinense, se fortaleceu, acarretando a perda de autonomia
por parte dos agricultores. Até o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, o poder da
agroindústria era mais fragmentado e as empresas agroindustriais eram menores e em maior
número, e a produção era de inteira responsabilidade do agricultor, o que lhe conferia certa
autonomia relativa no processo produtivo. Além disso, obtinha maiores ganhos por unidade
produzida, sem ter que se preocupar com uma escala mínima para ofertar ao frigorífico.
Mas, a partir dos anos 1990, o fortalecimento da agroindústria aprofundou a sua
integração com a agricultura familiar, rompendo o equilíbrio entre os dois polos da integração,
subordinando cada vez mais os agricultores aos métodos e à lógica produtiva capitalista e, ao
mesmo tempo, excluindo muitos deles do próprio circuito produtivo. Essas mudanças, que foram
interpretadas por alguns como uma crise e esgotamento do sistema de integração e por outros, como
aprofundamento do próprio sistema, provocaram novas configurações sociais, em que os
agricultores estariam recuperando parte de sua autonomia relativa face ao complexo agroindustrial,
através de suas estratégias de agroindustrialização familiar. A pergunta, que deve ser colocada aqui,
diz respeito à própria emergência da agroindústria familiar: em que medida ela resgata e fortalece a
autonomia dos agricultores, ou, por outras palavras, em que sentido e em que medida a
agroindústria familiar afeta a formação social capitalista no Oeste Catarinense?
8) Considerações finais
Como salientamos no início, o principal objetivo deste texto consiste em identificar
alguns traços relevantes da formação socioeconômica do Oeste Catarinense. Na própria Introdução,
foram apontados alguns desses traços, mais gerais e amplos, que marcaram a história econômica e
social da região. Agora, no final, desejamos apurar um pouco mais a análise e apontar algumas
questões mais específicas, que perpassam esta evolução histórica e deverão constituir-se em objeto
de análise de outros trabalhos. Talvez as questões específicas mais relevantes que tenham sido
levantadas ao longo deste texto e que possam vir a ser aprofundadas posteriormente estejam
relacionadas aos momentos de transição e ruptura entre os diversos ciclos de desenvolvimento
econômico e as diversas formações sociais, que acompanharam a evolução econômica.
Nesta perspectiva, poderíamos inicialmente considerar os fatores internos e externos
que explicam a dinâmica e a transição entre as diversas fases do processo de formação econômica.
Procurar caracterizar a transição entre essas fases da evolução econômica significa também analisar
a superposição de elementos comuns a cada um delas, bem como a emergência de novos elementos
e as rupturas entre cada uma dessas fases. Importa, sobretudo, analisar a questão mais relevante
desse processo histórico que é a transição, ainda inacabada, entre a agricultura familiar e a
agroindústria, por se constituir no ponto culminante e atual do mesmo processo.
Do mesmo modo, em termos da formação social, as questões específicas a serem
aprofundadas dizem respeito à transição e a superposição de elementos entre as formações sociais
cabocla, colonial e capitalista. Além dos fatores de ordem econômica que se colocam na base da
mudança social, há que agregar também fatores de ordem cultural para explicar as mudanças e a
transição entre as diferentes formações sociais. E da mesma forma como apontamos a articulação
entre a agricultura familiar e a agroindústria, como questão relevante a ser aprofundada, do ponto de
vista social, é a transição entre a formação social colonial e a capitalista que merece ser realçada.
Na sociedade atual, que caracteriza o Oeste, ao mesmo tempo em que se aprofundam as
características tipicamente capitalistas, parecem reafirmar-se traços da formação social colonial.
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