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Universidade Federal do Par
Instituto de Cincias Jurdicas
Programa de Ps-Graduao em Direito
Ricardo Evandro Santos Martins
A ATUALIDADE HERMENUTICA DA CINCIA DO DIREITO: uma
interpretao hermenutico-filosfica da crise do estudo cientfico do Direito
Belm
2017
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Ricardo Evandro Santos Martins
A ATUALIDADE HERMENUTICA DA CINCIA DO DIREITO: uma
interpretao hermenutico-filosfica da crise do estudo cientfico do Direito
Tese de Doutorado como requisito
parcial para a obteno do ttulo de
Doutor em Direitos Humanos pelo
Programa de Ps-Graduao em Direito
da UFPA, sob orientao do Professor
Doutor Paulo Srgio A. Costa Weyl e
co-orientao do Prof. Dr. Saulo de
Matos.
Belm
2017
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Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
Biblioteca do Instituto de Cincias Jurdicas da UFPA
Martins, Ricardo Evandro Santos
Ttulo/ Ricardo Evandro Santos Martins; orientador, Paulo Srgio A. C. Weyl. Belm, 2017.
Tese (Doutorado) Universidade Federal do Par, Instituto
de Cincias Jurdicas, Programa de Ps-Graduao em Direito. Belm,
2017.
1. Direito - Filosofia.- 2. Epistemologia jurdica. 3. Gadamer,
Hans-Georg, 1900-2002.- I. Costa, Paulo Srgio Weyl Albuquerque.- II. Universidade Federal do Par. Instituto de Cincias Jurdicas. Programa de Ps-Graduao em Direito. III. Ttulo.
CDDir :340.1
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Ricardo Evandro Santos Martins
Tese apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Direito da Universidade
Federal do Par como requisito para a
obteno do grau de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Srgio A. C.
Weyl.
Banca Examinadora:
_____________________________________
Prof. Dr. Paulo Srgio A. C. Weyl Orientador - UFPA
_____________________________________
Prof. Dr. Saulo Monteiro M. de Matos
Co-Orientador - UFPA
_____________________________________
Prof. Dr. Ricardo de Arajo Dib Taxi
UFPA
_____________________________________
Prof. Dr. Ernani Chaves
IFCH PPGFIL - UFPA
_____________________________________
Prof. Dr. Roberto Wu
PPGFIL UFSC
Apresentado em: 28/03/2017.
Conceito: Aprovado.
Belm
2017
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A fera
Das cavernas do sono das palavras, dentre
os lbios confortveis de um poema lido
e j sabido
voltas
para ela - para a terra
malevel e amante. Dela
de novo te aproximas
e de novo a enlaas firme sobre o lago
do dilogo, moldas
novo destino
Firme penetra e cresce a aproximao
conjunta
E ocupa um centro: A morte, a fera
da vida
te lambendo
(Pra ter onde ir, 1992. Max Martins)
Dedico este trabalho a todas as pessoas que
perdi,
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AGRADECIMENTOS
Deixo aqui meus agradecimentos a minha famlia e aos meus amigos. Dos meus
amigos, especialmente agradeo aqueles que apostaram e confiaram na realizao desta tese,
mas mais especialmente aqueles que me deram suporte emocional e amor para enfrentar a parte
mais irracional de todo o processo filosfico e cientfico: a solido da escrita.
Agradeo ao meu orientador e seu apoio sempre incondicional, amplo e geral, e
tambm ao meu co-orientador, pelo cuidado com os caminhos desta investigao. Sem este
apoio, esta tese seria impossvel.
Agradeo ao investimento da CAPES e do CNPq, instituies que financiaram meus
estudos desde a bolsa de doutorado (2015-2017).
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RESUMO
A tese sobre a atualidade do debate oitocentista sobre a epistemologia das Cincias
Humanas (Dilthey-Rickert) e os impactos do giro ontolgico sobre este mesmo debate.
Especificamente, ns estamos interessados em saber sobre as consequncias do giro
ontolgico no pensamento regional sobre a Cincia do Direito a partir da Hermenutica
Filosfica desenvolvida por Hans-Georg Gadamer no seu Verdade e Mtodo (1960).
Nosso interesse pelo tema ser justificado em tpico prprio. Portanto, a problemtica
geral desta atual investigao pode ser manifesta pela seguinte pergunta central: Diante da
crise das Cincias denunciada por Heidegger e a partir de sua interpretao existencial
da Cincia, quais so os impactos da Hermenutica Filosfica de Hans-Georg Gadamer
na Cincia do Direito vista como Cincia Humana? No Captulo 1, tratamos sobre como
a tradio jurdica cientificizou a antiga jurisprudentia romana. Esta tradio tem seu
pice no sculo XIX, quando o Positivismo cientificista alcana as Humanidades. No
Captulo 2 passamos a tratar sobre o momento de crise das cincias que Husserl e
Heidegger identificaram no incio do sculo XX. Exploramos o conceito de crise e
tambm de niilismo. Falamos sobre como este perodo significou um momento de
declnio cultural (Spengler), mas tambm de perdas significativas na relao cincia
e vida. A partir disto, problematizamos a concepo de verdade tradicional, enquanto
adequao, correspondncia, e o modo como o Ser se desvela para a Cincia, enquanto
Positum, aquilo que fora dado como objeto de estudo cientfico, derivado da verdade
originria enquanto altheia. No Captulo 3, aprofundamos a noo de Positum e
mostramos que a Cincia do Direito poderia ser reinterpretada a partir das descobertas
de Heidegger a fim de recuperar a perda do carter prtico de seu conhecimento. Esta
interpretao existencial somente ganhou corpo argumentativo quando invocamos a
Hermenutica filosfica de Gadamer, enquanto desenvolvimento da Fenomenologia
hermenutica aos status de Filosofia, preocupada com o acontecimento da compreenso
na arte, nas Cincias Humanas e na Linguagem.
Palavras-chave: Cincia do Direito; Cincias Humanas; Heidegger; Gadamer; Crise
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ABSTRACT
The thesis is about the current debate on the epistemology of the Human Sciences
(Dilthey-Rickert) and the impacts of the ontological debate on this same debate.
Specifically, we are interested in knowing about the consequences of the ontological turn
in regional thinking on the Science of Law from the Philosophical Hermeneutics
developed by Hans-Georg Gadamer in his Truth and Method (1960). Our interest in the
subject will be justified in topic itself. Therefore, a general problem of this situation can
be presented following a central question: In the face of the "crisis of the sciences"
denounced by Heidegger and from his existential interpretation of Science: which are the
impacts of Hans-Georg Gadamer's Philosophical Hermeneutics on Science of Law seen
as Human Science? In Chapter 1, we deal with a scientific legal tradition of ancient
Roman jurisprudence. This tradition has its apex in the 19th, when the scientific
positivism reaches as Humanities. In Chapter 2 we turn to the moment of the "science
crisis" that Husserl and Heidegger did not identify at the beginning of the 20th. We
explore the concept of "crisis" and also of "nihilism". We talk about how this period meant
a time of cultural "decline" (Spengler), but also of significant losses in the relation
"science" and "life." From a traditional de facto conception, as suitability, correspondence
and similarity, it is necessary to consider that there is an object of study. In Chapter 3 he
adopted a notion of Positum and showed that Law Science could be reinterpreted from
Heidegger's "discoveries" in order to recover a loss of the practical character of his
knowledge. This interpretation exists only when it comes to a hermeneutic philosophy of
Gadamer, while the development of the hermeneutic Phenomenology for the state of
Philosophy, concerned with the "happening" of understanding in art, in the Human
Sciences and in Language.
Keywords: Legal Science; Human Sciences; Heidegger; Gadamer; Crisis.
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RESUM
La thse porte sur le dbat actuel sur l'pistmologie des sciences humaines (Dilthey-
Rickert) et les impacts du dbat ontologique sur ce mme dbat. Plus prcisment, nous
sommes intresss connatre les consquences du virage ontologique de la pense
rgionale sur la Science du Droit partir de l'Hermneutique Philosophique dveloppe
par Hans-Georg Gadamer dans Truth and Method (1960). Notre intrt pour le sujet sera
justifi dans le sujet lui-mme. Un problme gnral de cette situation peut donc tre pos
la suite d'une question centrale: face la crise des sciences dnonce par Heidegger
et de son interprtation existentielle de la Science: quels sont les impacts de
l'Hermneutique philosophique de Hans-Georg Gadamer sur Science du droit vue comme
science humaine? Dans le chapitre 1, nous traitons une tradition juridique scientifique de
la jurisprudence romaine ancienne. Cette tradition a son sommet au 19me, quand le
positivisme scientifique atteint comme humanits. Au chapitre 2, nous nous tournons vers
le moment de la crise scientifique que Husserl et Heidegger n'ont pas identifis au dbut
du XXe sicle. Nous explorons le concept de crise et aussi de nihilisme. Nous parlons
de la faon dont cette priode a signifi un temps de dclin culturel (Spengler), mais
aussi de pertes importantes dans la relation Science et vie. D'une conception
traditionnelle de fait, comme adquation, correspondance et similitude, il faut considrer
qu'il y a un objet d'tude. Dans le chapitre 3, il a adopt une notion de Positum et a montr
que Law Science pourrait tre rinterprt de Heidegger "dcouvertes" afin de rcuprer
une perte du caractre pratique de sa connaissance. Cette interprtation existe seulement
quand il s'agit d'une philosophie hermneutique de Gadamer, tandis que le dveloppement
de la Phnomnologie hermneutique pour l'tat de Philosophie, concern par le
"happening" de la comprhension dans l'art, dans les sciences humaines et dans la langue.
Mots-cls: Science juridique; Science humaine; Heidegger; Gadamer; Crise.
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SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................................10
1 A CINCIA DO DIREITO ENQUANTO CINCIA HUMANA..........................18
1.1 O NASCIMENTO DAS CINCIAS HUMANAS E A BUSCA POR UMA CINCIA
DO DIREITO NO SCULO XIX....................................................................................18
1.1.1 Reao ao Idealismo alemo e o nascimento das Cincias Humanas.................18
1.1.2 A Cincia do Direito no sculo XIX: entre o naturalismo positivista e o
historicismo jurdico......................................................................................................26
1.1.3 A Jurisprudncia dos Conceitos como ltimo paradigma..................................31
1.2 HANS KELSEN E O PROJETO DE UMA CINCIA DO DIREITO
AUTNOMA..................................................................................................................38
1.2.1 Fases do pensamento jurdico de Hans Kelsen e seus principais conceitos
tericos............................................................................................................................38
1.2.2 Os dois limites metodolgicos para a Cincia do Direito....................................43
1.2.3 As teses centrais da Cincia do Direito de Kelsen................................................52
2. A CRISE TRIPLA DAS CINCIAS ACUSADA POR MARTIN
HEIDEGGER.................................................................................................................65
2.1. HEIDEGGER E AS TRS CRISES DA CINCIA..................................................65
2.1.1. Crise da Cincia?..................................................................................................65
2.1.2. A crise tripla da Cincia no tocante sua posio no todo de nosso Dasein
histrico-social...............................................................................................................71
2.1.3. A crise na relao do indivduo com a prpria prtica......................................78
2.2 ONTOLOGIA FUNDAMENTAL E CONCEPO DE VERDADE ENQUANTO
DESVELAMENTO.....................................................................................................80
2.2.1 Ontologia fundamental: diferena ontolgica e as estruturas existenciais do
Dasein..............................................................................................................................80
2.2.2 Da essncia da verdade: altheia..........................................................................89
2.2.3 A apropriao de Aristteles por Heidegger e o precedncia da prtica sobre a
teoria...............................................................................................................................92
3. A CINCIA DO DIREITO COMO UMA PRTICA OU COMO TEORIA
SOBRE A PRXIS?: UMA QUESTO HERMENUTICO-FILOSFICA......102
3.1 A ESSNCIA DA CINCIA E A INTERPRETAO EXISTENCIAL DAS
CINCIAS E DA CINCIA DO DIREITO...................................................................102
3.1.1 A essncia da Cincia desde a verdade enquanto desvelamento......................102
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3.1.2 A perda do carter prtico da Cincia e da Cincia do Direito........................108
3.1.3 Interpretao existencial da Cincia do Direito................................................112
3.2 O IMPACTO DA HERMENUTICA FILOSFICA NA EPISTEMOLOGIA DAS
CINCIAS HUMANAS................................................................................................119
3.2.1 Gadamer e a questo da Cincia.........................................................................119
3.2.2 A Hermenutica filosfica de Gadamer e o debate com Betti...........................127
3.2.3 Hermenutica filosfica e formao de conceito...............................................134
3.3. A CINCIA DO DIREITO COMO CINCIA PRTICA.................................145
3.3.1 A reabilitao da retrica e da prudncia na Cincia do Direito.....................145
3.3.2 A Cincia do Direito e a verdade retrica..........................................................155
CONSIDERAES FINAIS......................................................................................163
REFERNCIAS ..........................................................................................................167
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10
INTRODUO
Esta pesquisa um desenvolvimento da nossa tese de mestrado, quando estudamos os
fundamentos neokantianos, do projeto de Hans Kelsen, de dar autonomia epistemolgica para
a Cincia do Direito a partir de sua Teoria pura do direito (1934). Agora, nossa tese de
doutorado sobre a atualidade do debate oitocentista sobre a epistemologia das Cincias
Humanas (Dilthey-Rickert) e os impactos do giro ontolgico sobre este mesmo debate.
Especificamente, ns estamos interessados em saber sobre as consequncias do giro ontolgico
no pensamento regional sobre a Cincia do Direito a partir da Hermenutica Filosfica
desenvolvida por Hans-Georg Gadamer no seu Verdade e Mtodo (1960). Nosso interesse pelo
tema ser justificado em tpico prprio. Por isto, neste Tpico acerca da problemtica de nossa
pesquisa, urgente j adiantar o nosso questionamento central.
Portanto, a problemtica geral desta atual investigao pode ser manifesta pela
seguinte pergunta central: Diante da crise das Cincias denunciada por Heidegger e a partir
de sua interpretao existencial da Cincia, quais so os impactos da Hermenutica Filosfica
de Hans-Georg Gadamer na Cincia do Direito vista como Cincia Humana?
Apresentado o problema da nossa pesquisa, que questiona sobre quais seriam os
impactos da Hermenutica filosfica sobre a Cincia do Direito enquanto Cincia Humana,
resta-nos justificar a importncia desta pesquisa. Aqui, a tarefa responder o porqu de estudar
as transformaes que a Cincia do Direito possivelmente sofre com a Hermenutica filosfica,
enquanto desenvolvimento do giro ontolgico forjado por Heidegger.
Assim, para deixarmos os termos padronizados, vamos chamar tal giro,
desenvolvido por Gadamer, simplesmente de giro hermenutico na Filosofia, pois esta
expresso aparece de maneira muito acertada como ttulo da edio espanhola de Hermeneutik
im Rckblick (1995), traduzida como El giro hermenutico, pela Editora Catedra. A obra, em
verdade, trata-se de uma coletnea de trabalhos e, dentre eles, h um do qual partiremos para
desenvolver as nossas justificativas da relevncia desta pesquisa de doutorado, pois justifica e
incentiva as investigaes acerca do conhecimento produzido pelas Cincias Humanas.
No texto traduzido para o espanhol, que ficou intitulado como Sobre la transformacon
de las cincias humanas (1985), Gadamer traa uma breve reconstruo histrica da tradio
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das Cincias do Esprito. O filsofo alemo parte dos grandes nomes da epistemologia do sculo
XIX que trataram do tema, como Mill, com seus estudos sobre as Cincias Morais, Dilthey,
inserido na tradio idealista herdeira de Kant e de Hegel, com seu estudo paradigmtico sobre
as Cincias do Esprito, e Rickert, com o seu Neokantismo de Baden, debruado sobre a
epistemologia das Cincias Culturais.
Mas Gadamer avana, fala sobre como os estudos sobre os fundamentos das Cincias
Humanas sofreram impacto nas primeiras dcadas do sculo XX. Segundo Gadamer,
influenciados pela tomada da conscincia histrica, de Dilthey; pela exaltao da existncia,
vinda por Kierkegaard e, j no sculo XX, pelo mtodo fenomenolgico, de Husserl, autores
como Weber, Jaspers e Heidegger tambm tiveram forte parcela de influncia nas Cincias
Humanas (GADAMER, 1995, p. 127).
Desses autores citados no pargrafo anterior, Weber, com o seu neokantismo, foi
determinante para Kelsen, quando na elaborao de uma Cincia do Direito normativa e
autnoma, e Heidegger, por sua vez, foi determinante para romper com as amarras
neokantianas, colocando, em suspenso (epoch), aquilo que ele mesmo chamava de Faktum da
Cincia, ao elaborar a noo de que h um conhecimento mais originrio que o teortico-
cientfico aqui, estamos falando dos primrdios da filosofia heideggeriana, do tempo da
chamada Fenomenologia crtica, que foi avanando at se tornar Fenomenologia hermenutica
a partir de Ser e tempo (1927).
Assim, diz-nos Gadamer, Heidegger pde fazer uma crtica s Cincias, inclusive s
Humanas, ao mostrar um tipo de conhecimento mais originrio do que o cientfico. Algo
semelhante ele mesmo fez, seu ilustre aluno, o prprio Gadamer, quando em Verdade e mtodo
explorou a experincia das Cincias Humanas como algo menos ligado a um eventual produto
de descrio dos fatos psicofsicos (Dilthey), avalorao de valores transcendentais
(Rickert) ou imputao de valores jurdicos impressos nas normas jurdicas ordenadas
(Kelsen), e mais como algo ligado experincia da arte e do jogo.
Contudo, mesmo com tantas tentativas de avanos, nos estudos das Cincias Humanas
nas primeiras dcadas do sculo XX, Gadamer foi categrico ao afirmar que esta progresso de
estudos sofreu uma dura interrupo depois dos acontecimentos de 1933 na Europa
(GADAMER, 1995, 126-127).
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Mas, afinal, do que Gadamer est se referindo? E quais seriam os motivos que
causaram este dura interrupo no progresso das Cincias Humanas? E quais seriam as
consequncias desta interrupo?
Todas estas questes levar-nos-o a responder, finalmente, o porqu seria importante
dar continuidade aos estudos sobre Cincias Humanas, conforme o prprio Gadamer, neste
texto de 1985, defendeu, justificando-se, deste modo, esta pesquisa. Numa passagem
importante, Gadamer vem nos dizer que, quando as consequncias nefastas do ano de 1933 se
fizeram notar sobre as Cincias Humanas, estas consequncias foram muito piores do que nas
Cincias Naturais (GADAMER, 1995, p. 127).
Gadamer no muito claro nesta afirmao. Parece pressupor que o leitor j sabe qual
foi o fato de 1933 que causou consequncias nefastas. Ns entendemos que ele se refere
nomeao de Hitler como chanceler da Alemanha, mas, de modo implcito, est tambm se
referindo filiao de Heidegger ao partido nazista e ao fato de se tornado reitor da
Universidade de Freiburg.
Gadamer, ento, sugere que estes fatos afetaram fortemente a continuidade da tradio
das Cincias Humanas, pois este foi um perodo de perseguio e de emigrao intensa de
investigadores judeus de renome internacional, tanto nas Cincias da Natureza, quanto nas
Cincias Humanas. E, alm deles, muitos outros humanistas abandonaram a Alemanha, levando
as razes romnticas da tradio das Cincias Humanas para o novo mundo isto , para os
Estados Unidos (GADAMER, 1995, p. 127).
Assim, Gadamer afirmou que as Cincias Humanas necessitam de continuidade e que
seria preciso dcadas para a superao do trauma de 33. Gadamer afirma, tambm, que as
Cincias Humanas, desde ento, tem mudado bastante nas ltimas dcadas, restando, portanto,
a tarefa de se lograr que a relacon de fuerzas de las diferentes tendncias, de peso variable,
alcance um nuevo equilbrio, y al final, nuevos conocimentos sobre el mismo ser humano,
conocimentos que hagan honor al trmino ciencias humanas (GADAMER, 1995, p. 129).
E este diagnstico de Gadamer, que gera este chamado para a continuidade da tradio
e do avano nas Cincias Humanas, reflete-se na tradio das Cincias do Direito. Pois,
conforme Gadamer (1995, p. 128) disse neste mesmo texto, as Cincias filolgico-histricas
terem sido as nicas que puderam, aps 33, reconectar-se com a tradio viva das Cincias
Humanas, defendemos que a tradio da Cincia do Direito tambm foi afetada e nunca mais
recuperou seu lugar de destaque, nem entre as Cincias Humanas, nem como estudo possvel
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das normas jurdicas. Sobre isto, basta lembrarmo-nos das durssimas crticas ao maior
representante desta tradio no mundo jurdico: Hans Kelsen e sua doutrina pura do Direito.
De acordo com Moreira, sobre o Positivismo jurdico normativista de Kelsen, devido a
sua Tese da separao no mbito da validade e no estudo das normas jurdicas pela Cincia do
Direito, no foi difcil para que seus crticos culpassem estas ideias pelo surgimento do Nazismo
ou, ao menos, pela indiferena dos juristas-cientistas quanto validade de normas
flagrantemente injustas. Conforme a acusao muito conhecida no tempo do ps-II Guerra, no
seu texto, 5 minutos de filosofia do direito, Radbruch atribuiu parcela de culpa para o
positivismo jurdico de Kelsen quanto ao sucesso do totalitarismo nazista na Alemanha
(MOREIRA, 2008, p. 235).1
Acreditamos que estes fatos, aliados a um outro no menos relevante, que foi a
emigrao de Kelsen para os Estados Unidos, podem ser alguns dos motivos que causaram uma
estagnao nos avanos dos estudos jurdicos enquanto Cincia.
Acreditamos que isto, inclusive, deu espao para o predomnio, no mundo anglo-saxo,
do debate pertencente tradio da Filosofia Analtica sobre o Direito, e, no mundo continental
e Amrica Latina, de teorias crticas ao cientificismo de Kelsen como os estudos ps-
coloniais, desconstrucionistas, ps-estruturalistas, de teoria crtica, Critical legal studies etc.
Assim, nascida em Roma como jurisprudentia e depois transformada em Cincia
teortica pelo cientificismo moderno, mesmo tendo sido diversificada com as tentativas de
Dilthey em garantir a autonomia epistemolgica das Cincias Humanas, ficou a tradio da
Cincia do Direito estagnada no ps-II Guerra at os dias de hoje.
Contudo, acreditamos que, com a publicao de Verdade e mtodo, em 1960, Gadamer
pde renovar a tradio das Cincias Humanas. Ainda que Gadamer tenha dito expressamente
que no era sua inteno retomar o debate entre Cincias Humanas e da Natureza ou mesmo
refundar os fundamentos filosficos das Humanidades, defendemos que sua Hermenutica
filosfica acabou por ultrapassar estes limites.
Uma prova disto foi o fato de Gadamer ter ficado impressionado pelo jurista e
epistemlogo italiano, Betti, logo que Verdade e mtodo fora publicado. Mas os reflexos e as
1 Sobre Radbruch e a sua prpria noo de Cincia do Direito e de interpretao, indicamos o artigo do Prof. Dr.
Saulo de Matos, quando publicou na RECHTD o artigo A hermenutica jurdica de Gustav Radbruch, publicado
neste ano de 2016.
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polmicas sobre as Cincias Humanas, causadas pela Hermenutica filosfica de Gadamer, no
um fato apenas detectado por Betti, tampouco pela nossa modesta investigao.
O tema sobre a relao entre Cincias Humanas e Hermenutica filosfica tem estado
presente no pensamento filosfico mais contemporneo. Segundo nossa pesquisa bibliogrfica,
encontramos os seguintes autores e suas respectivas obras que trataram da relao entre a
Hermenutica filosfica e as Cincias Humanas, desde a publicao de Verdade e mtodo, em
1960. S para citar os mais conhecidos e de debate mais frutfero, seguindo uma ordem
cronolgica:
1) Betti, com o seu Lermeneutica storica e astoricit dell'intendere (1961);
2) Hirsch, com o seu Validity in interpretation (1967);
3) Apel, em Analytic philosophy of language and the Geisteswissenschaften (1967);
4) Rorty, em Philosophy and the mirror of nature (1979);
5) Habermas, em Zur Logik der Sozialwissenschaften Erweiterte Ausgabe II
Hermeneutik (1982);
6) Vattimo, em La finne de la modernit (1985);
7) Warnke, em Gadamer: hermeneutics, tradition and reason (1987);
8) Bernstein, em Beyond objectivism and relativism (1988);
9) Stein, em Racionalidade e existncia: o ambiente hermenutico e as cincias
humanas (1988);
10) Taylor, em Gadamer on human sciences (2002);
11) Grondin, com o seu The philosophy of Gadamer (2003);
12) Figal, com o seu Gegenstndlichkeit (2006).
Desse modo, acreditamos que pensar as Cincias Humanas a partir da Hermenutica
filosfica, no uma empresa antiquada, ou mesmo extica, vinda de uma investigao
feita na Amrica Latina, no sculo XXI. Em verdade, trata-se de uma importante discusso que
vem sendo travada, desde o primeiro ano da publicao de Verdade e mtodo, tendo sobrevivido
at o sculo XXI, como se pode ver pelas datas das obras mencionadas.
Por isso, retomar esta discusso para tratarmos da tradio da Cincia do Direito se
justifica porque se trata de um empreendimento jus-filosfico sobre a atualidade e a relevncia
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15
de uma tradio que tambm formou a tradio jurdica brasileira, por exemplo, mas que vem
perdendo espao, j h algumas dcadas, para o predomnio do debate de matiz analtico/anglo-
saxo. Assim, esta tese trata-se, portanto, de uma tentativa de se dar continuidade tradio
dogmtica e doutrinria que nos formou historicamente, no Brasil, por meio:
1) da influncia da jurisprudncia alem neokantiana no pensamento de Tobias
Barreto, no sculo XIX;
2) pela influncia positivo-naturalista, mas de matiz continental, no incio do sculo
XX, com Pontes de Miranda;
3) pela influncia direta de Kelsen no Brasil, nos anos 1930;
4) e pela verso brasileira da Jurisprudncia dos valores, de traos egolgicos (Cssio),
por Reale, nos anos 1960.
E tambm estamos cientes que esta tese no tem sua originalidade no fato de estudarmos
o Direito e sua compreenso a partir da Hermenutica filosfica de Gadamer. Pois, lembramos
aqui que, mesmo no mundo analtico/anglo-saxo, Dworkin, no seu famoso Laws empire
(1986), ainda que de modo bem breve, mencionou Gadamer, lembrando do giro hermenutico
como um dos pressupostos de seu interpretativismo jurdico.2
E j por aqui, no Brasil, Streck, com o seu Verdade e consenso (2011), de modo mais
robusto e substancial, tratou dos problemas brasileiros de hermenutica jurdica, mostrando a
necessidade de se reformular a Teoria da deciso no Brasil, desde a Hermenutica filosfica.
Deste modo, a partir do breve histrico e de uma generalizao do estado atual da Cincia do
Direito, a originalidade e a importncia de nossa tese reside, de modo central, seguindo
Gadamer, no nosso estudo sobre o evento que sobrevm enquanto experincia de verdade
(altheia) na Cincia do Direito, e, de modo secundrio, no estudo das alteraes possveis no
processo de formao de conceitos jus-cientficos.
A pesquisa ser feita primeiro pelo recolhimento da literatura bsica sobre a tradio
da Cincia do Direito, Fenomenologia e Hermenutica. E do ponto de vista dos procedimentos
tcnicos, a pesquisa ser baseada na reviso de literatura sobre o trabalho de Hans-Georg
Gadamer, a fim de encontrar bases ontolgicas para apoiar as Cincias Humanas desde a
atualizao hermenutica, especialmente, considerando o tema central sobre a cincia jurdica.
2 Sobre esta possvel, ou no, relao entre Dworkin e Gadamer, indicamos o artigo do Prof. Me. Andr Coelho,
quando publicou o artigo Dworkin e Gadamer: qual conexo?, na revista Peri, em 2014.
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16
A partir disso, a pesquisa pode chegar a uma concluso, confirmando, ou no, as
hipteses. No entanto, preciso estabelecer, aqui, o mtodo a ser utilizado para a confirmao
destas hipteses. E isto um ponto de tenso nesta pesquisa, uma vez que ele meta-
epistemolgico.
Aqui, partindo da prpria suspenso (epoch) hermenutico-fenomenolgica que
Gadamer, inspirado em Heidegger, fez em relao ao conhecimento cientfico das
Humanidades, tambm no poderamos nos escusar de realizar o mesmo, at por uma questo
de no nos contradizermos.
Assim, partindo do pressuposto hermenutico-fenomenolgico da verso do giro
hermenutico desenvolvido por Gadamer em Verdade e mtodo, a "verdade", em Cincias
Humanas, tem menos a ver com esta metodologia inspirada no Idealismo moderno, e muito
mais a ver com a experincia do desvelamento da verdade (altheia), que vem sem a
necessidade de mtodo. No entanto, isto tambm no significou uma rejeio de qualquer
mtodo para as Humanidades por Gadamer.
Mas, mesmo para tratar desta hiptese, precisamos, aqui, deixar claro o modus
operandi de nossa investigao. O mtodo de estudo sobre o mtodo. Por isto, o mtodo,
aqui, aparece entre aspas. Pois o ato de compreenso do objeto da pergunta-guia desta
investigao, Quais os impactos da Hermenutica Filosfica forjada por Hans-Georg
Gadamer, enquanto desenvolvimento do giro ontolgico, na Cincia do Direito vista como
Cincia Humana?, muito mais um modo de ser-no-mundo do nosso Dasein, do que um
procedimento metdico, como se defendia no sculo XIX.
Como se v, nossa formao de conceito, aqui, dar-se- sobre o prprio tema da
formao de conceito em Filosofia, partindo do pressuposto hermenutico-fenomenolgico na
verso de Gadamer. Ou seja, para sermos rigorosos com as nossas prprias hipteses,
consideramos que a verdade a ser produzida por esta investigao ocorre por um abrangente
evento pelo qual nossos preconceitos da tradio da Filosofia continental e das Cincias
Humanas, bem como da Cincia do Direito, sero explicitados e confrontados, considerando a
linguisticidade de toda compreenso, com o que diz a coisa do texto das obras em estudo e
tambm com a atualidade histrico-hermenutica de nossas prticas jus-cientficas, mostrando.
Nossa tarefa, aqui, colocar em suspenso (epoch) os conceitos fundamentais de
Cincia Humana e de Cincia do Direito para, ao fim, construir argumentos fundamentados na
nossa reconstruo histrica da tradio jurdica que pode, ou no, confirmar nossas hipteses
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j apresentadas. Assim, nossa tentativa de investigar e responder a nossa problemtica se dar
por 3 Captulos, dividimos de modo resumido da seguinte forma:
1) o Captulo 1 tratar da tradio da Cincia do Direito at Hans Kelsen, explorando
a perda do seu carter prtico, passando pelo processo de cientificizao do Direito,
naturalizao da Cincia do Direito at a tentativa kelseniana de aferir autonomia
epistemolgica por meio de sua doutrina pura do Direito;
2) o Captulo 2 tratar da crise das Cincias que Husserl brilhantemente j escrevera
sobre, mas, essencialmente, tratar da crise tripla que as Cincias sofreram no fim do sculo
XIX e incio do sculo XX, conforme Heidegger denunciou no seu Introduo filosofia;
3) por fim, no Captulo 3, ltimo parte desta tese, finalizaremos nossa construo
histrica e a apresentao da crise das Cincias sobre a qual Heidegger se debruou para, de
modo original, propor uma interpretao existencial da Cincia do Direito e estabelecer seus
limites e o modo como Gadamer reinterpretou as Cincias Humanas e a Cincia do Direito a
partir de sua Hermenutica filosfica, para que, assim, possamos mostrar de que modo h
atualidade da Cincia do Direito enquanto Cincia Humana, desde o paradigma hermenutico
gadameriano.
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1 A CINCIA DO DIREITO ENQUANTO CINCIA HUMANA: DELIMITANDO A
PROBLEMTICA
1.1 O NASCIMENTO DAS CINCIAS HUMANAS E A BUSCA POR UMA CINCIA DO
DIREITO NO SCULO XIX
1.1.1 Reao ao Idealismo alemo e o nascimento das Cincias Humanas
Marcado pelo Idealismo Transcendental, de Kant, e pelas suas tentativas de
fundamentar filosoficamente as Cincias Naturais, procurando pelas condies de possibilidade
de se produzir juzos sintticos a priori a partir de toda experincia possvel, a Filosofia no
sculo XIX estava preocupada com os pressupostos epistemolgicos do conhecimento
cientfico. Mas esta nova configurao da Filosofia somente se tornou essencialmente uma
espcie de filosofia das cincias com a crise daquele Idealismo que, a despeito do Idealismo
de Kant, tentou reinstaurar o santurio da Metafsica. Estamos falando do Idealismo Absoluto,
de Hegel.
A Filosofia, enquanto Doutrina das Cincias, preocupada com as suas limitaes e
possibilidades e que gerou consequncias interessantes quanto diversidade da abordagem
filosfica, bem como muitas correntes filosficas do sculo XX, dividida entre Filosofia
Continental e Filosofia Analtica, somente surgiu aps a crise do Idealismo hegeliano, reagente
ao Idealismo de Kant. Trata-se do perodo iniciado aps a morte de Hegel em 1840.
Em seu After Hegel (2014), Friedrich Beiser, explica-nos que as trs primeiras dcadas
do sculo XIX foram algumas das mais criativas de toda a Filosofia Moderna, pois foi o tempo
em que coincidiram a formao e a consolidao da tradio idealista de origens cartesianas
com o desenvolvimento de um dos mais influentes movimentos intelectuais, que ficou
conhecido como Romantismo Alemo. A questo que mesmo ambas as tradies, idealista e
romntica, acabaram por se estabelecer nas universidades e, na conscincia pblica europeia
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nos primeiros anos do sculo XIX, o declnio da tradio idealista, que tambm levou consigo,
para o crepsculo da romntica, marcando um tempo de desordem e de confuso na Filosofia.
Por outro lado, Beiser tambm vem nos dizer algo de que no poderamos jamais discordar e
que justifica o ponto de partida deste presente trabalho, o fato de que a decadncia do Idealismo,
de um modo geral, com a morte de Hegel em 1840, tambm foi responsvel pelo surgimento
de uma nova era para a Filosofia, era de intensa criatividade, como veremos ao longo deste
tpico (BEISER, 2014, p. 2-3).
Sobre a criatividade da segunda metade do sculo XIX, podemos afirmar que
compreend-la de extrema importncia para se traar o ponto de partida de nossa investigao.
Pois se se quiser ir a fundo na tentativa de se reconstruir a tradio cientfica do Direito, ao
ponto de poder lidar com tal tradio a partir da Hermenutica Filosfica, e, com isto, buscando
saber os impactos da Filosofia de Gadamer na Cincia do Direito, mostrando como seria
possvel responder crise tripla das Cincias apontada por Heidegger em Introduo
Filosofia, para que se possa, ao fim, tentar atualizar a Cincia do Direito enquanto Cincia
Humana, preciso compreender as diversas direes que a Filosofia tomou no tempo ps-
hegeliano.
Gonzlez Porta consegue nos mostrar, pelo menos, quatro direes principais da
Filosofia depois de Hegel: a) a virada faticidade do hegelianismo de esquerda, de
Feuerbach, Marx e outros; b) o irracionalismo, de Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard e
outros; c) o Positivismo Filosfico francs e britnico; e d) a reao idealista de carter
antimaterialista e antipositivista, a saber, a promovida pelos neokantianos e suas Escolas
(GONZLEZ PORTA, 2011, p. 16-17).
De modo um pouco distinto, Beiser traa as diferentes direes tomadas pela Filosofia
ps-hegeliana da seguinte maneira, mostrando que estes seriam os maiores desenvolvimentos
ps-1840: a) o surgimento do Neokantismo, que foi um movimento filosfico dominante na
Alemanha de 1860 ao ano de 1914; b) A controvrsia do Materialismo, que foi uma das disputas
mais importantes deste mesmo perodo; c) O nascimento do Historicismo, enquanto um dos
maiores movimentos filosficos oitocentistas que, como veremos oportunamente, ter
impacto importante na epistemologia jurdica, e no apenas na Escola Histrica do Direito; d)
As razes da lgica de Frege inaugurando, aqui, os primeiros passos da Filosofia Analtica; e
e) O nascimento do pessimismo na Filosofia, conjuntamente com a intensa discusso sobre o
valor da vida em outras palavras, o movimento filosfico que tambm pode ser chamado de
Vitalismo o qual teve Nietzsche como interlocutor (BEISER, 2014, p. 8).
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Dos dois espectros de escolas e movimentos filosficos surgidos a partir da decadncia
do Idealismo e do Romantismo alemo, destacamos trs movimentaes do pensamento para
reconstruirmos a tradio da Cincia do Direito como via aberta para trabalharmos no propsito
central deste trabalho, que saber sobre os impactos da Hermenutica Filosfica na Cincia do
Direito. Destacamos: i) o Positivismo, de Comte e Mill; ii) o Historicismo de fortes traos
hegelianos, vitalistas e neokantianos, de Dilthey; e o Neokantismo, de Rickert (Escola de
Baden). Mas por qual motivo nos interessa falar sobre estas trs direes ps-hegelianas?
Pelo decorrer do trabalho, no tocaremos no tema da relao entre Cincias Humanas
e Filosofia Analtica, herdeira da lgica de Frege, assim como da relao entre Cincias
Humanas e crtica das ideologias, tpico do Materialismo marxista. A questo : deixaremos
estas correntes de fora, porque Comte, representando o Positivismo, Dilthey, representando
certo de tipo de Historicismo e de Vitalismo, e Rickert, representando o Neokantismo, pensado
pela Escola de Baden, j formam teorias fundamentais para a devida compreenso do
surgimento das Cincias Humanas, que se deu neste perodo ps-Hegel.
Sobre Dilthey, como vamos sustentando desde a Dissertao, entendemos que a
primeira caracterstica a ser dita aqui sobre o epistemlogo alemo que sua Filosofia
marcada pelo hibridismo (MARTINS, 2014, p. 35). Pois traz consigo o fetiche cientificista do
Positivismo, quando tenta elevar as Humanidades ao nvel de estudo cientfico, a preocupao
historicista com o conhecimento objetivo da histria e o transcendentalismo do Neokantismo,
j que tal preocupao com a cognio dos fatos histricos se trata da tarefa de se fazer uma
crtica da razo histrica, estabelecendo-se as condies de possibilidade do conhecimento
histrico. E, por meio da busca por estas condies de possibilidade, Dilthey estabelecer o
mtodo e o objeto de estudo no apenas da Cincia da Histria, mas tambm de todas as
Cincias Humanas, como a Psicologia (Analtico-descritiva), Sociologia e Cincia do Direito.
O mtodo e o objeto das Cincias Humanas no poderiam ser os mesmos das Cincias
Naturais. Quanto ao objeto, Dilthey fala-nos sobre um mundo que no seria constitudo por
fatos naturais, fenmenos da natureza enquanto objeto de estudo de Cincias Naturais, como a
Fsica, por exemplo, quando estuda o fenmeno da dilatao dos metais. O mundo a ser
estudado pelas Cincias Humanas o mundo scio-histrico, um mundo que desponta do
mundo natural, mas que no dado pela natureza, tampouco regido pelo Princpio da
Causalidade. Por isto, o mtodo tambm no ser o da explicao, que procura pela causa
dos fenmenos naturais, mas o da compreenso dos fatos histricos, um processo cognitivo
o qual opera de modo bem distinto do da explicao cientfica e sua busca por Leis Naturais.
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Dilthey acreditava que havia um segundo centro de realidade. Este outro centro o
mundo histrico-social, ou, ainda, tambm podendo ser chamado de mundo espiritual. Neste
segundo centro de realidade o lugar abstrato onde ocorre um retorno. O retorno do homem
para o interior da vivncia. No mundo espiritual, a natureza nunca poderia se ausentar. Ela o
palco da Histrica, da Cultura.
No entanto, somente no mundo espiritual, que h espao para significao. O mundo
histrico-espiritual tambm o lugar exclusivo da significao. O lugar de valores e de
finalidades. Tal mundo o interior do homem, enquanto que o mundo natural externo.
Dilthey est nos dizendo que no mundo espiritual que o sistema de fins, valores, memrias
etc, que a humanidade e suas organizaes sociais ganham unidade.
Desse modo, aos moldes de Kant, quando escrevera a Crtica da razo pura, na poca,
preocupado com as Cincias Naturais, o projeto de uma crtica da razo histrica,
empreendida por Dilthey, a tarefa que implica saber quais so as condies de possibilidade
de todo conhecimento possvel deste mundo histrico-espiritual pelas Cincias Humanas. Esta
empreitada faz-se pela distino das faculdades particulares que operam simultaneamente para
a realizao das conexes internas no mundo espiritual.
Um exemplo muito interessante, usado pelo prprio Dilthey, das Confisses, de
Santo Agostinho. Segundo Dilthey, caso se queira compreender a vida de Santo Agostinho, a
sua vivncia, no incio da Cristandade, o desafio ter a cincia de que a compreenso de sua
vida se realiza na relao entre as partes dessa vida e a concretizao de um valor absoluto
(DILTHEY, 2006, p. 177).
Com essa citao do pargrafo anterior, estamos tentando mostrar como Dilthey
buscou resolver o problema de se conectar ao passado com a objetividade que um
conhecimento cientfico exige. O exemplo de Santo Agostinho, usado por Dilthey, importante,
porque elucida muito bem a sua proposta de uma Cincia Histrica enquanto Cincia Humana,
capaz de fazer com o que o sujeito do conhecimento se conecte com o passado. Conforme
Dilthey, a vivncia particular de Santo Agostinho, em sua poca, nica, singular e impossvel
de ser repetida.
Ao menos de um ponto de vista pretensamente antimetafsico, como o de Dilthey,
no se vive de novo, nem a Histria se repete. Mas a despeito disto, a Cincia da Histria seria
possvel, porque o acesso ao passado se daria pela via da empatia com o esprito de Agostinho
via a objetividade do Esprito que se objetiva nas suas Confisses, o que possibilitaria um
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retorno ao passado com objetividade, caso, por exemplo, queira-se saber o processo de
converso do Santo vida catlica.
E esse processo de revivncia, empatia, que se d por meio da compreenso
(Verstehen), viabilizada pela interpretao da vivncia do passado, trata-se do prprio legado
da teoria geral de interpretao, de Schleiermacher. Influenciado por Trendelenburg,
Schleiermacher desenvolve um mtodo de interpretao que, em verdade, trata-se de um
processo de recriao do processo de criativo do autor que se est interpretando.
Essa recriao uma revivncia. Um ato de conexo que, por vezes, exige um retorno
ao tempo de criao do autor. Tal ato feito de modo espontneo pelos gnios. Eles conseguem
superar a singularidade de suas conscincias, suas subjetividades, para atingir a universalidade
e a objetividade do sentido produzido pelo autor de sua interpretao no momento da criao.
Dilthey foi relevante para o incio do sculo XX na Filosofia. Sua apropriao de
Schleiermacher foi muito importante para dar no apenas continuidade sofisticao da
tradio hermenutica, mas tambm por ter facilitado o processo de construo da
Fenomenologia, de Husserl; a Fenomenologia hermenutica, de Heidegger e, tambm, a
Hermenutica filosfica, de Gadamer.
Conceitos, como mundo da vida (Lebenswelt), importantssimo para se entender a
Fenomenologia na fase transcendental de Husserl, foram criados por Dilthey. E seu papel
tambm foi o de intensificar o movimento de autonomizao da epistemologia das Cincias
Humanas. Dilthey acabou por influenciar e tambm criar oposio sua prpria Epistemologia
por parte dos neokantianos, como Windelband e Rickert.
Como se v, o projeto de se garantir autonomia epistemolgica para as Cincias
Humanas no esteve sob o monoplio de Dilthey. O Neokantismo de Baden, desenvolvido por
Windelband e Rickert, procurou refutar o Historicismo de um modo geral. Quanto ao
Neokantismo, de Rickert, especificamente, o filsofo da Escola de Baden tentou refutar no
apenas o Positivismo e o Historicismo mais arcaico (Herder, Droysen e Rank), mas tambm a
Filosofia de Dilthey, mais diretamente. Rickert acreditava que Dilthey e o Historicismo, de um
modo geral, no teriam conseguido desenvolver bases seguras para uma Epistemologia das
Cincias Humanas que consiga fugir do relativismo e que garanta objetividade. Mas qual foi,
ento, a proposta oferecida por Rickert, no avano dos fundamentos das Cincias Humanas?
Rickert props uma sada contra o relativismo e a falta de objetividade nas Cincias
Humanas, recorrendo a uma abordagem epistemolgica para, agora, chamada Cincias
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Culturais, por meio de um aporte formal, teortico. E o neokantiano fez isto partindo de uma
Filosofia dos valores. O que antes era chamado por Dilthey de Geisteswisseschaften, ou seja,
Cincias do Esprito, conforme os traos hegelianos renascentes em Dilthey, Rickert passa a
chamar estas Cincias no-naturais de Cincias Culturais, de Kulturwissenschaften. Esta
mudana no aleatria. Estas Cincias, agora, no mais se relacionavam com conceitos to
hegelianos como Esprito objetivo.
Tais Cincias passam a se referir a um mundo no-natural, como pensava Dilthey.
Porm, este mundo no-natural ser designado por Rickert como mundo cultural, um mundo
dos valores culturais, que no possui existncia, mas validade. O mundo da cultura um
mundo formal, transcendental, universal e necessrio. Assim, Rickert pensava conseguir
garantir a objetividade necessria para um tipo de conhecimento no-naturalista que quisesse
se presentar como cientfico, rigoroso. Sua via foi uma alternativa Metafsica por demais
hegeliana, de Dilthey.
No entanto, tambm no podemos deixar de perceber que Rickert aposta no Idealismo
transcendental, ao seguir o retorno a Kant, iniciado por Trendelenburg, desenvolvido pela
Escola de Marburg e continuado no sculo XX pelo prprio Rickert, mas ligado a Baden,
Cassirer e Vahinger que parecia no pertencer nem a Marburg, nem a Baden.
Em Cincia cultural e cincia natural (1899), Rickert via a Cincia como um tipo de
conhecimento que deveria descobrir o mundo como tal. A questo problemtica, todavia, era
que a realidade emprico-natural dada, d-se (es gibt) para o sujeito cognoscente como uma
incalculvel multiplicidade. O que isto significa?
Seguindo Kant, Rickert afirmava que a mnima parcela desta realidade multifacetada
de modo incalculvel muito mais complexa do que a capacidade do homem, na sua finitude,
poderia apreender. Logo, baseado no Construtivismo, de Kant, Rickert sabe que o mero ato de
reproduzir a realidade, reduzindo-a em conceitos, juzos ontolgicos, no seria possvel.
Assim, Rickert afirmava que, caso se queira ostentar o produto de uma investigao
cientfica como tal, seria preciso assumir que a tarefa de descrio cientfica no a da
reproduo. A tarefa da Cincia no seria a da produo de conceitos que mimetizam a
realidade, porque ela irreprodutvel, no-conceituvel. A Cincia no seria a da mera
descoberta pura e simples daquilo que se d no real, como poderiam pensar os ingnuos
positivistas e os historicistas mais tradicionais. A tarefa das Cincias seria, portanto, a de
transformao. Pois toda subsuno da realidade pelos conceitos cientficos seria, em verdade,
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uma simplificao do no-simplificvel. Diante da incalculvel multiplicidade do real, no
poderia o cientista traduzi-lo pelos seus conceitos descritivos reprodutivos (RICKERT, 1922,
p. 33-34).
A concluso que Rickert levado a chegar a parir desta impossibilidade de se
apreender a realidade por meio de conceito reprodutivo feito pela Cincia corresponde a uma
compreenso bastante kantiana, a de que a realidade seria, em tese, irracional, justamente
devido impossibilidade de subsumi-la a conceitos (RICKERT, 1922, p. 34).
Entretanto, Rickert exigiu uma maior reflexo sobre esta impossibilidade. E a sada
oferecida pelo filsofo neokantiano foi a de pensar que os conceitos/juzos cientficos poderiam
construir a realidade, transformando-a de irracional para racional. Mas isto somente poderia
ser possvel a partir de uma nova compreenso da atividade cientfica, ou, ao menos, uma
retomada do construtivismo kantiano, que transformaria a realidade natural de heterogeneous
continnum em homogeneous continnum.
Assim, para Rickert, atravs da ruptura conceitual entre heterogeneidade e
continuidade que pode ser possvel construir conceitualmente a realidade, como um mundo
racional. A realidade contnua, pois est no tempo, s pode ser subsumida por um conceito
cientfico se for transformada em uma realidade homognea, isto , em uma realidade em que
a multiplicidade, a sua devenincia contnua, posse ser vista como se fosse dotada de
homogeneidade.
Mas isso vale apenas para as Cincias Naturais. Pois so as Cincias que buscam
encontrar o universal na natureza. Elas buscam reconstruir conceitualmente o real, que uma
continuidade heterognea no sentido que estamos dizendo aqui. O mesmo no ocorre com o
que Rickert chamou de Cincias Culturais. E quando se fala da Cincia do Direito, Rickert
formula um outro Princpio. Por enquanto, temos que dizer que Rickert formula outro Princpio
de Formao de Conceito para as Cincias Culturais, porque estas encaram a realidade que lhe
objeto de estudo, de modo diverso da heterogeneidade contnua que o mundo natural. As
Cincias Culturais tambm transformam o real em racional, mas fazendo da sua
heterogeneidade contnua uma discrio heterognea (RICKERT, 1922, p. 36). O que isto
quer dizer?
De acordo com Bambach, Rickert estabeleceu que havia dois caminhos para a
existncia de conhecimento cientfico: 1) um transformaria a realidade a partir de um conceito
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universal; e 2) o outro transformaria a realidade desde um conceito particular (BAMBACH,
1995, p. 98).
De modo mais simples, como as Cincias Culturais da Histria, por exemplo, no
lidam com a natureza e sua contnua heterogeneidade, at mesmo porque seu objeto de estudo
no contnuo. Pois um fato passado no se repetir, como a Revoluo Francesa ou a recusa
da coroa prussiana por Frederico Guilherme IV, no h o que se falar em um conceito cientfico
que permaneceria com a noo de continuidade, mesmo tornando o real homogneo, universal
e necessrio.
Assim, no caso da Histria, a tarefa de seu cientista a de somente atribuir um valor
histrico-cultural a um fato ou a um ato, transformando o que h de contnuo em discreto,
discrio heterognea, conforme o Princpio de Formao de Conceitos cientficos prprios
das Cincias Culturais.
A questo mais importante, contudo, que a Cincia do Direito ocupa, segundo
Rickert, um lugar intermedirio entre os princpios de formao conceitual. Pois a Cincia do
Direito produz um conceito universal e necessrio, como so os das Cincias Naturais, mas, ao
mesmo tempo, realizam a tarefa de atribuio de valor a um ato ou a um fato, como os conceitos
discretos das Cincias Culturais. E isto foi muito influente em Kelsen.
Mas veremos isto no subtpico a seguir, no qual mostraremos como Kelsen produziu
uma alternativa neokantiana para o naturalismo positivista e para o historicismo idealista de sua
poca, sempre no intuito de salvar a Cincia do Direito de teorias psicologizantes ou
sociolgicas por meio de uma Epistemologia que pudesse fazer do conhecimento cientfico um
conhecimento no-emprico, mas que seu envolvimento com os valores respeitassem o carter
formalista do Direito, teortico, descritivo.
A grande questo saber como seria isto possvel. E Rickert foi quem possibilitou tal
feito paras as Humanidades, tendo influenciado no apenas Kelsen, mas, essencialmente,
Weber (quem tambm influenciou Kelsen), nesta tarefa de se fundamentar uma Cincia que
produzisse juzos de avalorao, que so juzos que envolvem valores, mas que, ao mesmo
tempo, so valorativamente neutros (Wertbeziehung).
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1.1.2 A tradio da Cincia do Direito: entre o naturalismo positivista e o historicismo
jurdico
O historiador alemo Wieacker, em seu Histria do direito privado (2010) alemo,
mostra que a tradio jurdica deste perodo do surgimento das Cincias Humanas, que foi a
segunda metade do sculo XIX, marcada pelo Positivismo Filosfico, tambm chamado de
Cientfico, originado por Comte. possvel dizer que o Positivismo formou uma Viso de
mundo.
O Positivismo primava pelo mtodo cientfico causalista, mas acabou por ser um tipo
de pensamento ampliado, fazendo com que a explicao da vida natural sempre estivesse sob a
perspectiva do Empirismo cientificista. Muitos pensadores e cientistas foram influenciados pelo
Positivismo, como, por exemplo, a influncia sobre as descobertas de Charles Darwin e,
inclusive, com algumas restries, tambm sobre a Filosofia de Nietzsche e sua confiana na
Cincia. Assim, no foi difcil para que o Positivismo Filosfico adentrasse na agenda da teoria
do Direito.
Desse modo, as vias de pensamento sobre o Direito, nesta segunda metade do sculo
XIX, ainda que incompatveis entre si, podem ser definidas como modos de pensar com uma
base em comum positivo-cientificista, como, por exemplo: 1) a Jurisprudncia Analtica de
Bentham at Mill, que criticaram o Idealismo e o Realismo conceitual da poca por meio do
Utilitarismo; 2) a Jurisprudncia nacionalista, herdeira do Jus-historicismo e da Jurisprudncia
dos Conceitos, que tinha carter autoritrio, conservador e nacionalista, de base hegeliana; e 3)
a crtica socialista, que tinha sua verso cientificista, fundamentada no Materialismo histrico-
dialtico, de Karl Marx (WIEACKER, 2010, p. 513).
Assim como no contexto essencialmente filosfico, sobre a tradio jurdica, interessa-
nos, aqui, muito mais a corrente oitocentista da Filosofia germnica do Direito. No contexto
oitocentista da Filosofia alem do Direito, na segunda metade do sculo XIX, a ideia de
codificao estava fora de questo. Resistindo codificao francesa, os povos germnicos
tinham uma compreenso romntica e historicista sobre o Direito. Eles se diziam herdeiros do
Direito Romano, via Sacro Imprio Romano-Germnico.
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Por causa do Cdigo de Justiniano, os juristas tedescos dispensavam o impulso
codificador apesar de Thibout, que representava a defesa de um Cdigo Civil para os alemes.
Nascido do movimento romntico e hermenutico, o Historicismo jurdico, pertencente
Escola Histria do Direito, era contrrio s abstraes e ao universalismo iluministas, bem
como a sua culminao, dada com o Code Napolon, que codificou os Direitos (subjetivos)
Naturais na Frana de Bonaparte.
A Escola Histria do Direito encontrava-se em dificuldades quanto aos fundamentos
filosficos da onda codificadora iniciada pelo Code Napolon, de 1804. O Jus-historicismo
ops-se ideia de Homem em geral. Esta ideia era tipicamente iluminista. Vinha de uma
noo de Razo natural universalista e de um ideal de progresso material constante, que
resultaria na emancipao do Homem e na ruptura com a tradio.
Desse modo, do mesmo jeito que possvel dizer que o Racionalismo jurdico tem o
Iluminismo como fundamento, a Escola Histrica do Direito tem no apenas o Historicismo,
mas tambm o Positivismo e o Romantismo alemo como bases epistemolgicas.
Sobre as razes do Historicismo jurdico, temos que retornar ao pensamento do
primeiro romntico e, ao mesmo tempo, o primeiro historicista: Herder. Ele foi um pensador
alemo do incio do sculo XIX, responsvel pela formulao do conceito mais bsico da Escola
Histrica do Direito: a noo de Esprito do povo (Volksgeist). Foi a partir desta ideia,
obviamente legatria do Idealismo de Hegel, ainda que com tantas ressalvas, que o Jus-
historicismo, de Hugo e de Savigny, puderam se desenvolver.
Assim, Herder pde permanecer com a idade de progresso dos iluministas
posteriormente, apropriado pelo Positivismo de Comte , mas tambm pde tentar abandonar
a noo de que a histria possui uma evoluo. Alm disto, Herder tambm rejeitava a noo
de progresso material como sinnimo de evoluo histrica. Herder traz consigo traos do
Idealismo, de Hegel, como dissemos, mas a composio filosfica do Historicismo
antimetafsica e antirracionalista. Muito antes do Historicismo, Kant j havia feito sua crtica o
Racionalismo, de Wolff. Logo, o contexto de Herder criticista.
O historiador do Direito Alemo, Wieacker, mostra-nos que o Historicismo, de Herder,
fundamentou a Escola Histrica do Direito, causando alguns impactos na tradio jurdica. A
Escola Histria do Direito fundamentou-se nas trs crticas kantianas para desenvolver a sua
prpria concepo de Cincia do Direito. E as consequncias disto se refletiram nas concepes
antijusracionalistas de que: 1) o Direito diferente de uma tica abstrata e universalista; e 2)
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que, tambm, a Cincia do Direito autnoma em relao ao Direito Positivo (WIEACKER,
2010, p. 402).
A primeira (1) consequncia trata-se da influncia no Historicismo jurdico da
distino feita por Kant, em sua Doutrina do direito, entre tica e Direito. Para o filsofo de
Kningsberg, a tica o conjunto de leis que faz de uma ao um dever. Alm disto, o motivo
desta ao, que a fundamenta, tem que ser o prprio dever. J quanto ao Direito, Kant
entendia tratar-se de um conjunto de leis o qual faz da ao tambm um dever, mas o seu motivo
fundamentador jamais seria o prprio dever, pois, em se tratando de questes jurdicas, o
motivo que fundamenta uma ao pautada em uma lei jurdica deve ser um motivo externo,
um motivo que constranja o sujeito, que exera fora coerciva o suficiente para faz-lo agir de
acordo com o dever previsto pela lei jurdica. A partir deste raciocnio, Kant pde nos dar um
conceito de Direito: Direito a soma das leis as quais constrangem coercitivamente a ao
humana, formando, tal soma de leis, a Doutrina do Direito Positivo (KANT, 2008, MC, 71-72;
75-76).
Desse modo, 1.1) como j vamos falando desde trabalhos anteriores, queremos e
sustentamos a tese de que a Escola Histrica do Direito adotara a distino paradigmtica entre
Direito e tica. E esta desidentificao explica o interesse cientfico dos jus-historicistas sobre
o Direito Positivo, sobre o Direito criado. Todavia, mesmo essa aproximao entre historicistas
jurdicos e a Filosofia do Direito de Kant limitada. Levando em conta outro texto importante
de Kant, a Metafsica dos costumes, esta relao, aparentemente prxima entre Kant e a Escola
Histrica do Direito, finda quando o filsofo do Idealismo transcendental quis fundamentar o
Direito sobre os Princpios a priori da Razo pura prtico-jurdica. Esta pretenso de Kant, que
garantiria um carter universal para o Direito, no poderia ser endossada pelos jus-historicistas,
j que concebiam a ideia de Esprito do povo como parmetro legitimador/fundamentador
das fontes do Direito, que relativo, histrico, contextual, em vez de Princpios a priori,
universais e necessrios.
J a segunda consequncia (2) de Kant sobre a Escola Histrica do Direito, trata-se da
influncia do carter construtivista do Idealismo kantiano no Jus-historicismo. Com esta
Escola, a Cincia do Direito ganha autonomia cientfica, distanciando-se do mero Empirismo
naturalista. O kantismo, em Savigny, far com que sua Escola entenda que os conceitos
jurdicos surgem da espontaneidade do sujeito transcendental. A realidade passa a ser
construda na Cincia do Direito. Este o papel produtivo do cientista do Direito. Aliado a isto,
o cientista do Direito produz conceitos jurdicos que so fontes do Direito. Assim, a doutrina,
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produzida pelos juristas, no se trata mais de mera cpia da dogmtica jurdica. Os juristas
produzem a prpria dogmtica jurdica. Dessa forma, um avano proporcionado pela Escola
Histrica do Direito foi a de ter elevado a antiga jurisprudentia romana ao status estado de
Cincia do Direito autnoma. Os positivistas j tinham tornado a jurisprudentia uma Cincia,
mas foram os jus-historicistas quem a tornaram algo mais distante do naturalismo, via
fundamentao no Esprito do povo. O cientista do Direito seria, agora, capaz, de conectar
com a essncia da tradio jurdica alem.
Com a Escola Histrica do Direito, ensina-nos Mario Losano que a Cincia do Direito
pde sair da fase dogmtica para a fase da construo jurdica. A construo de conceitos.
Segundo o mestre italiano, esta transformao j tinha sido feita por Savigny por meio de sua
outra obra de juventude, chamada de Das Recht des Bestzes (O direito das posses), de 1803
(LOSANO, 2008, p. 330). E, na sua obra magna, o Sistema de direito romano atual, Savigny
dizia que os jurisconsultos, que constroem a doutrina, influenciavam fortemente o Direito
Positivo. Assim, era a Doutrina a verdadeira fonte do Direito. E este direito, construdo pelos
juristas, era chamado de Direito cientfico, o Direito dos jurisconsultos (SAVIGNY, 1878,
p. 49). Um Direito produzido pela Cincia, que possibilitava a conexo entre o jurista e o
passado, entre uma conscincia particular e uma tradio, um Esprito geral, mas que tambm
era relativo cultura germnica e ao seu passado romano.3
Um ltimo impacto (2) o qual consideramos que fora causado pela Escola Histrica
do Direito, foi o da tomada da conscincia histrica na tradio jurdica. Pois a ideia
herderiana de Esprito do povo absorvida por Savigny, o maior jurdico continental do
sculo XIX. Savigny entendia que o Esprito do povo a fonte verdadeira do Direito alemo.
3 Enquanto nas demais naes o direito romano era aplicado de modo subsidirio, nos territrios alemes, este direito tinha autonomia, sendo aplicando ora subsidiariamente ao direito local, ora com peso hierrquico maior.
De acordo com Losano, o Digesto, que pode ser chamado tambm em grego como Pandectas, teria sido encontrado
pelo Imperador do Sacro Imprio Romano-Germnico, Lotrio III, em 1137 (LOSANO, 2007, p. 56). Assim, o
Sacro Imprio Romano-Germnico importantssimo para a devida compreenso da tradio da civil law. No
apenas por esta tradio levar o nome deste Imprio, mas porque a sua histria explica a sistematizao que o
direito romano sofrer no sculo XIX pela Escola Histrica, de Savigny, e pela Jurisprudncia dos Conceitos, de
Puchta e de Jhering. Este Imprio dizia-se herdeiro do Imprio Romano Ocidental. Mas, agora, numa verso
santa, em que o imperador seria o represente do mundo espiritual e secular. O Sacro Imprio tambm pode ser
conhecido como o I Reich, que durou um pouco mais de mil anos, entre 800 d.C e 1806, findando no perodo das
guerras napolenicas. A Alemanha, como estado nacional, ainda no existia. Ela era dividida em principados e,
dentre eles, o Sacro Imprio, reunindo povos germnicos. Losano ensina-nos que o mito da descoberta do Digesto,
por Lotrio III, em verdade, mistifica a formao dos juristas germnicos em Bolonha, onde aprenderam sobre
direito romano na verso bizantina. Assim, de modo gradual, o direito romano estabeleceu-se como o direito
comum entre os povos germnicos, tendo sido, (...) portanto, aplicado no territrio do Sacro Imprio Romano-
Germnico no atravs da atividade legislativa, mas atravs da atividade de jurisprudncia (LOSANO, 2007, p.
57).
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Assim, o Direito passa a ser fruto do Esprito, que se objetiva na tradio histrico-cultural
do povo germnico (WIEACKER, 2010, p. 405-406).
Wieacker, ento, vem nos ensinar que, como Cincia histrica, a Cincia do Direito
exploraria feita pelos juristas adviria do Esprito do povo. O objeto de estudo, agora, j estaria
determinado, mas no pelas abstraes via more geomtrico do jus-racionalistas ou pelo
Cdigo. A pr-determinao do objeto de estudo do Direito dar-se-ia pela tradio romana
atualizada pela ao do Esprito. O jurista estudaria o passado romano, o Direito do Cdigo de
Justiniano, que o Sacro Imprio Romano-Germnico herdou, construindo, ao mesmo tempo,
conceitos jurdicos aplicveis na atualidade de sua era (WIEACKER, 2010, p. 403).
Para a Escola Histrica de Savigny, no haveria de se falar em um Direito universal.
Cada povo, cada cultura, tem sua tradio, seu Esprito de fundo. O Esprito a essncia de
cada povo. Ele, ao mesmo tempo em que d unidade a um povo, sob um nome s, tambm o
particulariza, individualizando o povo numa universalidade restrita. A universalidade restringe-
se ao povo e a sua histria. Segundo o prprio Savigny, o Direito Romano era anlogo ao Direito
Comum Alemo. Alis, to anlogo, que este Direito no seria outra coisa seno o prprio
Direito Romano aplicado desde os anos do Sacro Imprio. Deste modo, o objetivo de Savigny,
no seu Sistema de direito romano atual, seria investigar, na essncia do Direito Romano, os
Princpios fundamentais do Direito que fundamentam o Direito Alemo atualizado na sua
poca (SAVIGNY, 1878, p. 23-24).
De tudo o que falamos sobe o Historicismo at aqui, o que mais nos interessa, neste
subtpico, so as origens de um pensamento relativista que dominou o sculo XIX, tendo
reflexos determinantes no antijusnaturalismo da doutrina pura do Direito, de Kelsen via Max
Weber e Georg Simmel. Ainda que o Neokantismo tenha intermediado o Culturalismo
historicista mais puro e as formulaes metodolgicas das Cincias do Esprito, de Dilthey por
Weber, entendemos que o preceito de que vivemos em um mundo de pluralidade de vises de
mundo, e que nenhuma destas vises estaria em um patamar ontolgico superior aos demais,
fruto da tradio historicista.4
4 Neste sentido, lembramos de Leo Strauss, quando alega que a rejeio contempornea do Direito Natural pelo argumento histrico no est baseada exatamente na evidncia histrica que defende a impossibilidade de se
pensar um universalismo diante das diferentes vises de mundo na histria e entre as culturas. Strauss entende que
tal rejeio advm de uma crtica filosfica prpria possibilidade ou cognoscibilidade do Direito Natural. De
certo modo, alinhado com o Cientificismo, o pensamento historicista no acreditava que se poderiam extrair
normas do decurso histrico. Assim, o processo histrico acabou por se revelar sem sentido para os historicistas.
Strauss diz-nos que, baseado nesta concepo, o Historicismo culminou no Niilismo, uma vez que os nicos
padres que permaneceriam no tempo estariam ligados subjetividade do terico recaindo, deste modo, em um
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Assim, todos estes pressupostos sero, ainda que indiretamente, considerados na
construo da Doutrina pura do Direito, de Kelsen. Seguindo os passos da construo de uma
Epistemologia das Cincias do Esprito sobre bases neokantianas da Escola de Baden, bem
verdade que Kelsen buscou fugir dos reducionismos positivistas e historicistas do sculo XIX.
1.1.3 A Jurisprudncia dos Conceitos como ltimo paradigma do sculo XIX
O papel jus-criativo do cientista do Direito ganha fora com Savigny. Ento, a Cincia
do Direito passou a ser uma fonte jurdica importante devido noo do construtivismo. Esta
noo permanecer, mesmo com a decadncia da Escola Histrica do Direito. Foi com Puchta,
ilustre aluno de Savigny, que a construo seguiu entre os juristas germnicos, tendo sido
expandida, inclusive, aliando-se at, paradoxalmente, com o racionalismo e o formalismo
exegtico francs. Assim, Puchta conseguiu fazer impor o [F]ormalismo conceitual rigoroso
da pandectstica (WIEACKER, 2010, p. 455).
Mesmo tendo herdado o construtivismo de Savigny, Puchta foi mais alm. As normas
jurdicas confundiam-se com os conceitos construdos. O cientista, que o jurista, o
doutrinador, estava autorizado a criar normas jurdicas em formas de conceitos. Desse modo,
Puchta entendia que as normas jurdicas formavam um conjunto de conceitos jurdicos
hierarquicamente ordenados. Estes conceitos formavam tambm verdadeiros axiomas.
Uma imagem aqui introduzida na Cincia alemo do Direito, que a imagem da
pirmide. Ela ser passada herdada por Kelsen no sculo XX, mas foi Puchta quem a elaborou
primeiramente e com a significativa diferena sobre o contedo da pirmide. Enquanto Kelsen
fala de uma pirmide de normas jurdicas, que seria objeto de estudo da Cincia do Direito,
produtora de conceitos a partir destas normas, Puchta entendia que tal pirmide era formada por
ceticismo quanto possibilidade de se poder julgar algum fato histrico ou mesmo uma escolha individual a partir
de um critrio seguro, imutvel, a-histrico (STRAUSS, 2014, p. 14-15).
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conceitos criados pelos juristas e que tinham normatividade, sendo, como j dissemos, as
prprias normas.
Com isso, Puchta inaugurou a Jurisprudncia dos Conceitos. Mesmo tendo sido
formado no Jus-historicismo, o aluno de Savigny forma uma nova Escola, que relaciona o
construtivismo com o rigor lgico do Racionalismo jurdico exegtico francfono. As normas
jurdicas seriam deduzidas de conceitos construdos pela Cincia do Direito e, destas normas,
deduzir-se-iam decises jurdicas.
Estamos com Wieacker, quando defende que o pensamento de Puchta a prpria
consumao da essncia da Escola Histrica do Direito. Puchta teria, com sua Jurisprudncia
dos Conceitos, aberto caminho, por meio de suas obras Pandekten (Pandectas) e Cursus der
Institutionen (Curso de instituies), para a retomada do Princpio metodolgico da deduo
lgica das normas jurdicas a partir de conceitos abstratos, prprio do Racionalismo exegtico,
j mencionado no pargrafo anterior (WIEACKER, 2010, p. 456-457).
claro que esta relao entre Puchta e o Racionalismo jurdico muito limitada.
Puchta historicista. E, como tal, ele ps-kantiano. Sua Jurisprudncia no cairia nos
raciocnios pr-criticistas. Puchta no defenderia, por exemplo, qualquer ideia jusnaturalista.
Como historicista, o Direito contextual. Assim, defendemos que Puchta est na transio entre
a decadncia da Escola Histrica do Direito e o surgimento da Jurisprudncia dos Conceitos na
sua verso mais madura e densa. Que verso esta? A desenvolvida por Jhering, Gerber,
Laband e Jellinek.
A Alemanha ainda no havia se unificado. Tampouco o BGB existia. A unificao e o
Cdigo civil alemo ocorrem quase que ao mesmo tempo. A Jurisprudncia dos conceitos
antecede tudo isto. Alis, podemos dizer que ela contribuiu para o surgimento tardio da
codificao germnica. E Jhering e Gerber estavam neste contexto histrico. Ambos elaboraram
uma abordagem original sobre a Cincia do Direito. Gabriel Nogueira Dias vem nos ensinar
que a Jurisprudncia dos Conceitos, de Jhering e de Gerber, pde ser caracterizada como a
Jurisprudncia da Construo, ou, simplesmente, como o Positivismo Jurdico-cientfico do
sculo XIX do contexto teutnico (DIAS, 2010, p. 94).
Ainda com Dias, possvel dizer que este construtivismo da Jurisprudncia dos
Conceitos teve duas fases: 1) a da delimitao e a da abstrao: ponto de partida da
abordagem construtivista. o momento em que se analisam os conceitos jurdicos, os costumes
e as decises, conjuntamente com a histria jurdica de cada objeto estudado para que se possa,
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ento, conhecer os Princpios condutores do Direito; e 2) a da fase cientfica: momento em
que o material reunido, a partir da interpretao histrica em torno da gnese dos conceitos
jurdicos, uniformizado de maneira sistemtica, transformando-se em institutos jurdicos
organizados lgico-hierarquicamente (DIAS, 2010, p. 95).
Um dos grandes nomes da Jurisprudncia dos conceitos foi Jhering, mesmo que, em
fase tardia, tenha seguindo uma postura sociolgica. Sua posio, mesmo na juventude, era
nebulosa. Losano ensina-nos que Jhering procurou concretizar um sistema de Cincia do
Direito rigoroso, sem necessariamente relacionar a Jurisprudncia com uma Cincia Natural na
sua totalidade. Esta aproximao da Cincia jurdica com as Cincias Naturais tinha a ver com
os objetivos jheringianos de trazer o rigor metodolgico da linguagem cientfico-natural de
sua poca ao estudo do Direito (LOSANO, 2008, p. 353-356).
O que importante destacar, aqui, que tal pretenso de rigor cientfico possibilitou o
descarte de elementos no-cientficos. Assim, a Jurisprudncia do sculo XIX estava a caminho
de sua autonomia epistemolgica. Deste modo, seguindo o cientificismo positivista e, antes
disto, o impulso moderno pela cientificizao e desencantamento do mundo (Weber), foram
excludos da Cincia do Direito elementos que j tinha sido essncias para a antiga arte do
bom e do justo, como, por exemplo, questes filosficas (ticas) ou polticas (ideolgicas).
Mas a pretenso de garantir autonomia epistemolgica para a Cincia do Direito foi
um processo que se deu por etapas. A excluso das preocupaes filosficas e polticas, na
agenda dos objetivos de estudo da Cincias do Direito, no foi radical. Isto s iria se concretizar
com Kelsen. Assim, no final do sculo XIX, a perspectiva formalista da Jurisprudncia dos
Conceitos convivia com elementos psicologizantes, ainda que o estudo tenha se voltado para o
Direito Pblico.
A Alemanha oitocentista vivenciava um perodo de conservadorismo poltico, alm de
um processo de industrializao iniciante e tardio. Por isto, Gabriel Nogueira Dias vem nos
dizer quer a Alemanha continuou predominantemente agrria at, pelo menos, o ano de 1873
(DIAS, 2010, p. 103). Deste modo, Jurisprudncia dos Conceitos, que formava a Pandectstica
alem, foi quem teve de garantir a unidade poltica da nao germnica por meio do Direito.
Enquanto a Escola Histrica acabou por atrasar a unificao jurdica da Alemanha, a
Pandectstica alem (Jurisprudncia dos Conceitos) garantiu a unidade da dogmtica jurdica,
do ensino e do prprio estudo cientfico do Direito. A Pandectstica chegou a antecipar a
unidade jurdica que, mais tarde, o Cdigo Civil alemo, o BGB, finalmente, alcanou, em 1900.
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Paulatinamente, o Positivismo Jurdico construtivista da Jurisprudncia dos Conceitos
foi perdendo espao para o Positivismo Jurdico legalista, mais preocupado com a interpretao
e aplicao do Cdigo Civil alemo (BGB). claro que a Pandectstica j havia facilitado tal
mudana devido ao seu formalismo, inspirado na Escola da Exegese, mas foi somente com a
unificao que o Direito alemo ganha unidade.
Essa mudana refletiu nas fontes do Direito: por causa da perda da fora da Doutrina
feita pelos pandectistas, o Direito positivado pelo Estado que passou a ser a fonte central.
Como diz Wieacker, tal fato coincide com a mudana no estudo jurdico, pois, o que Savigny e
Puchta tinham conquistado com o construtivismo, agora cede lugar para a vontade do povo
presente na lei (no Cdigo e na Constituio) via deduo lgica (WIEACKER, 2010, p. 505;
525).
Representando a ltima gerao de cientistas do Direito, anterior a Kelsen, Gerber,
Laband e Jellinek formaram o movimento jurdico nascido do Construtivismo da Jurisprudncia
dos Conceitos, mas, agora, preocupados com o Direito Pblico. E, paralelamente a eles,
encontramos um dos maiores juristas do sculo XIX, junto com Savigny, algum que
desenvolveu uma escola paralela a esta Jurisprudncia dos Conceitos publicista, estamos
falando do Jhering tardio, daquele que fundara uma Jurisprudncia sociologizante, a
Jurisprudncia dos Interesses.
Quem chamamos de Jhering tardio tambm conhecido como segundo Jhering.
Mrio Losano denomina estas duas fases do pensamento jurdico de Jhering como Jhering
pandectista, referindo-se a sua fase ligada Jurisprudncia dos Conceitos, e de Jhering
sociologizante, referindo-se fase da Jurisprudncia dos Interesses (LOSANO, 2008, p. 352).
Nossa tese a de que Jhering foi to importante para a Teoria do Direito do sculo
XIX, que ele chegou ao ponto de ter causado uma verdadeira bifurcao na Histria do Direito
germnico oitocentista. Jhering dividiu a Jurisprudncia juspositivista de sua poca entre: a) os
que seguiram a Jurisprudncia formalista preocupada com o Direito Pblico (Gerber, Laband e
Jellinek); e b) os que aderiram e desenvolveram as crticas feitas pelo Jhering sociologizante
ao Formalismo jurdico da Jurisprudncia dos Conceitos, como a Escola do Direito Livre,
encabeada por Kantorowicz.
Sobre essas duas ramificaes surgidas da Escola Histrica e da Pandectstica, de
Puchta, tanto a Jurisprudncia dos publicistas alemes, Gerber, Laband e Jellinek, quanto a
Jurisprudncia dos interesses e a Escola Livre do Direito, de Jhering e de Kantorowicz, so
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chamadas pelo Prof. Gabriel Nogueira Dias de Pseudo-Juspositivismo. Ele denomina-as
assim, porque misturam elementos alheios ao Direito Posto (Jhering e Kantorowicz) ou porque
no conseguiram se livrar das amarras psicologistas (Gerber, Laband e Jellinek).
Comeando com os que seguiram adiante com a Pandectstica, mesmo que
preocupados com o Direito Pblico, Losano ensina que Gerber, o qual fora aluno de Jhering,
quando este ainda era ligado Jurisprudncia dos conceitos, foi quem sistematizou a doutrina
do Direito Pblico Alemo. Porm, de maneira distinta dos pandectistas, que antecederam, a
preocupao de Gerber voltava-se para o desafio de aferir unidade ao Direito Pblico Positivo
Alemo.
Como a unificao alem ainda no tinha ocorrido, o projeto de um Cdigo Civil e de
uma Constituio da Alemanha ainda estava por ser realizado. O maior problema para a
concretizao deste projeto era a fragmentao do Direito pelas naes alems ainda no
unificadas. E o publicismo alemo, ao menos, pde oferecer sistematizao do Direito para a
futura codificao (LOSANO, 2008, p. 381-382).
Na obra chamada de Princpios de um sistema do direito pblico, de 1865, Gerber
buscou reconstruir o Direito Pblico Alemo ainda fragmentado por meio da Cincia do Direito.
Segundo Losano, como Gerber tinha uma posio poltica conservadora, este projeto cientfico
sobre o Direito Pblico, por mais que tivesse a neutralidade como pretenso de rigor
metodolgico, em verdade, desempenhava a funo de legitimar a monarquia alem.
Desse modo, Gerber pde aplicar o Princpio cientfico privatista da Jurisprudncia
dos conceitos, que fundamentava o Direito na vontade individual do sujeito de Direito, para a
sua construo publicista. Assim, a vontade individual transformou-se em vontade geral. O
conceito de organismo torna-se o modelo de compreenso do sistema pelo qual o Direito do
Estado se apresenta. Gerber, portanto, tinha uma perspectiva psicorgnica do Direito Pblico
Alemo. Sua teoria organicista via o Estado como um organismo vivo, volitivo. E o Direito
Pblico seria a expresso do Soberano.
Direito Pblico pode ser conceituado, ento, como sendo o conjunto normativo
formado pelo Direito Constitucional e que poderia ser considerado produto do poder do Estado,
visto como ponto de expresso de vontade. Segundo Gerber, a tarefa da Cincia do Direito
seria, ento, a de descrever o sistema de Direito Pblico Positivo. Os juristas descrevem o
Direito posto pelo Estado, deduzindo conceitos (LOSANO, 2008, p. 381-384; 401-406; 409).
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A Jurisprudncia dos Conceitos possibilitou no apenas a unificao jurdica por meio
dos Cdigos e da Constituio, mas tambm passou a ser a doutrina jurdica oficial. Dias lembra
que a Jurisprudncia publicista alem estava to ligada ao poder monrquico germnico, que a
Teoria de Laband ganhou o estatuto de opinio oficial do Imprio (DIAS, 2010, p. 102).
Fica claro, portanto, que as Teorias de Gerber e a de Laband so teorias juspotivistas.
O Direito posto o objeto de estudo. E o Estado representa uma pessoa, ainda que fictcia, que
possui vontade. Assim, o Estado, enquanto sujeito volitivo, representa tratado como a
Jurisprudncia dos Conceitos tratava a pessoa fsica individual. Estado e cidado tem o mesmo
estatuo jurdico: so pessoas dotadas de juridicidade e de vontade. Estas teorias podem ser
consideradas como psicologistas, pois o Direito surge de algum, de uma psich, mesmo que
por fico.
E esta linha, herdeira do Pandectismo, como j dissemos, conviveu com a linha
desenvolvida pelo Jhering tardio. Este Jhering sociolgico fez a abertura terica da Teoria
do Direito para a facticidade. Dias ensina que isto se deu porque Jhering se desencantou. O
construtivismo da Pandectstica alem no lhe parecia suficiente para explicar os fins do Direito
e sua relao com a sociedade. Tal desencantamento levou Jehring a estabelecer a finalidade
do Direito como o ponto de partida do estudo cientfico do Direito.
Assim, podemos resumir as teses centrais deste segundo Jhering pelos seguintes
pontos:
1) A Jurisprudncia dos Conceitos havia se afastado da vida real. Jhering
acreditava que a Jurisprudncia dos Conceitos ficara presa ao mundo abstrato e
irreal dos conceitos, mundo que ele tambm denominava de mundo da
abstrao conceitual;
2) Deste jeito, Jhering formulou uma Jurisprudncia pela qual os juristas se
libertariam da abstrao jurdico-conceitual da tradio jus-formalista alem,
redirecionando, desde ento, os juristas para o estudo daquilo que concreto, que
vem da sociedade. Jhering achava que seria preciso que estes mesmos juristas
subissem ao chamado cu do jurista prtico, lugar posterior formao dos
conceitos. Um cientista do Direito deveria estar pronto para ter o contato com o
real, com os fatos.
Para Jhering, um jurista s pode ser considerado criador de conceitos jurdicos
abstratos caso suba ao mundo dos fatos, alcanando o objetivo central que o de alcanar a
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mesma finalidade do ato de vontade juscriativo das normas. Sobre esta finalidade da ao
legisladora, Jhering alerta para que o cientista no confunda o seu prprio interesse com o da
Lei. A finalidade dos interesses de um jurista deve ser a mesma da vinda do Legislador.
Logo, Dias mostra-nos que o Direito passa a ser visto como instrumento de garantia
da existncia da sociedade. E o Estado asseguraria os interesses da sociedade por meio da
regulao do seu poder coativo. Assim, percebemos que o segundo Jhering foi responsvel
por ter inserido, nos estudos jurdicos germnicos, a noo de que o Formalismo da
Jurisprudncia dos Conceitos, isto , do Pandectismo alemo e de sua verso publicista, no era
suficiente para explicar o fenmeno jurdico na sua inteireza social e finalstica.
De acordo com Jhering, a Cincia do Direito no se limita formao de conceitos
abstratos. Ela tem o real interesse da sociedade como elemento essencial de sua tarefa de
estudo rigoroso. Para o segundo Jhering, a Jurisprudncia rigorosa e completa aquela que
traz consigo uma anlise sociolgica sobre a finalidade social (ou dos interesses) sobre os
conceitos jurdicos construdos pela doutrina. Esta anlise sociolgica feita pela Cincia do
Direito torna-se, ento, a porta de entrada para a faticidade na Jurisprudncia alem (DIAS,
2010, p. 105).
Como se v, a encruzilhada da Cincia do Direito continental estabelece-se entre os
herdeiros da Jurisprudncia dos Conceitos. De um lado, os formalistas preocupados com o
Direito Pblico, e, de outro, Jhering e a Kntorowicz preocupados com a finalidade, interesse e
sociedade. Temos, aqui, tentativas ou psicologizantes (Gerber, Laband e Jellinek), ou
sociologizantes (Jhering e Kantorowicz).
Assim, foi justamente contra ao que Gabriel Nogueira Dias chamou de Pseudo-
Juspositivismo, que Kelsen voltou suas crticas, elaborando uma doutrina do Direito purificada
dos aspectos sociolgicos e psicologistas sobre a Cincia do Direito. Foi o Mestre de Viena
quem tentou estabelecer limites para a garantia da pureza metodolgica da Cincia do Direito,
livrando tal estudo das amarras positivo-naturalistas, finalsticas e psicologistas, por meio de
uma Cincia normativa e cultural do Direito, de acordo com a suas bases neokantianas (Rickert
e Weber).
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1.2 HANS KELSEN E O PR
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