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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS – SCH
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PEDRO HENRIQUE FRASSON BARBOSA
Alimentação e transformação: notas etnográficas sobre os Aché de Cerro Morti
(Paraguai)
CURITIBA
2017
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS – SCH
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PEDRO HENRIQUE FRASSON BARBOSA
Alimentação e transformação: notas etnográficas sobre os Aché de Cerro Moroti
(Paraguai)
Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Ciências
Sociais, curso de Ciências Sociais do Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do
Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Miguel Alfredo Carid Naveira
CURITIBA
2017
3
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meu pai e minha mãe, Sidney e Mari. Sem eles, absolutamente nada teria sido
possível: a graduação, a monografia, a vida em Curitiba e em qualquer lugar.
À minha irmã, Malu, e às minhas duas avós, Maria Senir e Maria Aparecida, também ficam
minhas lembranças. O mesmo vale para meu tio, Sérgio, e meus primos, Luana, Douglas, Tiago,
Marcieli e Andrey.
Agradeço aos Aché da comunidade de Cerro Moroti, que me trataram sempre tão bem. Sem
a colaboração de algumas pessoas esta monografia não poderia ter sido escrita. Devo toda minha
experiência a Francisco Mbepegi, Ana Pikugi e família. Também a Eloy Chachugi, Suni Nambugi,
German Pachagi e família. Professor Manuel e família se esforçaram para me receber, e por isso
fica registrada minha lembrança. Cornelio Mbykagi e Simon Pychangi são dois ótimos amigos, e
por isso deixo aqui meu obrigado e meu respeito. Alejo Ojeda deu sinal de ser um grande ser
humano desde o momento que o conheci: agradeço por toda a sua ajuda.
Um salve ao meu chapa Ricardo Fei Storniolo, com quem dividi apartamento durante a
maior parte da graduação. Tamo junto! Aos amigos e amigas das Ciências Sociais, um beijo e um
abraço: Barbara Ribas, Gustavo Anderson, Zahara, Gian Carlo, Tiagão, Barbara Tamilin, Paulinho,
Camilo Lord, Lucas Strugala, Fernando Lajus, Leonardo Leléo Micheleto, Ivã, Mayra Resende,
Luana Maria, Fi Ribeiro, Matheus Kich, Marcus Paulo, Raphael Da Lua, Lalo e Mãozinha. Às
pessoas que se aproximaram nos últimos meses da graduação e que se mostraram tão especiais, fica
a minha lembrança. Um beijo doce como paçoca em cada uma delas!
Um abraço aos companheiros da época de Coletivo Quebrando Muros, sobretudo ao eterno
Núcleo Sociais: Adolf Punk Fischer, Francisco Chicop Pinto, Lucas Punk Carvalho, Julia
Laurentino e Felipe Tarifa0 Alves. Pessoas e situações que me ensinaram muito!
Aos colegas do PET Ciências Sociais, experiência longa e importante em minha formação,
fica meu reconhecimento e gratidão.
Merece destaque nestes agradecimentos a querida Sandra Mara, secretária do curso de
Ciências Sociais, que fez com que tudo fosse sempre mais fácil.
Registro meu agradecimento a Eva-Maria Roessler e a Warren Thompson, pessoas que estão
com os Aché já há algum tempo, e que sempre foram muito pacientes comigo, que estou apenas
começando.
Um agradecimento especial ao professor Ricardo Cid Fernandes, por toda a amizade,
paciência e inspiração. À professora Ciméa Beviláqua, outro agradecimento! Também pela
inspiração, pelas aulas sempre tão bem ministradas e pelas duas experiências de trabalho nas
monitorias.
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Um muito obrigado à Patrícia Carvalho, que gentilmente aceitou o convite de participar da
banca.
Agradeço ao professor Miguel Alfredo Carid Naveira, pela orientação livre e paciente. O
trabalho sempre voltou melhor das reuniões de orientação. Sem seus direcionamentos a escrita da
monografia teria sido ainda mais difícil. Muito obrigado!
Um abraço aos amigos e amigas de Foz do Iguaçu, principalmente àqueles que têm o
estranho gosto por Açaí com cerveja.
Um beijo em Luciana, Leandro, Luan, Luiz e na querida Lazinha, pessoas que me ajudam
desde antes de minha chegada em Curitiba.
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Menino caçando passarinho é cego para o que não for passarinho
(Dalton Trevisan)
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SUMÁRIO
RESUMO.............................................................................................................................8
INTRODUÇÃO........................................................................................................................9
CAPÍTULO 1 – Situação atual dos povos indígenas no Brasil e no Paraguai.................12
CAPÍTULO 2 - Sobre como pensar o inevitável: alimentação e transformação na sociedade
indígena.......................................................................................................................................17
2.1 - Do espanhol, estrategia.....................................................................................................18
2.2. - Os vetores da comensalidade..........................................................................................19
2.3 – A alimentação como técnica xamânica de comunicação. O que se come e o que se deixa
de comer....................................................................................................................................20
2.4 - A carne de caça.................................................................................................................21
2.5 – Os alimentos do roçado...................................................................................................24
2.5.1 – O conceito de Tekoá......................................................................................................25
2.6 - Os roçados, o milho e a reprodução cosmológica...........................................................25
2.7 - Modos de fazer, proibições, modos de comer e distribuir..............................................28
2.7.1 - Modos de fazer................................................................................................................28
2.7.2 - Preparações de milho e preparações de trigo..............................................................30
2.7.3 - Modos de consumo e distribuição.................................................................................33
7
CAPÍTULO 3 - Transformações: por uma política da alimentaç.ão Aché....................36
3.1 - Uma oposição fundamental........................................................................................37
3.3 - O trabalho na chácara................................................................................................38
3.4 - Os alimentos de mercado............................................................................................41
3.5 - A atividade cinegética.................................................................................................47
3.6 - Outro tipo de agricultura...........................................................................................48
3.7 - Os Aché na imprensa..................................................................................................50
3.8 - Notícias mais encontradas.........................................................................................56
3.9 - O genocídio: diferentes interpretações....................................................................61
3.10 - Diferentes relações com o mesmo Estado..............................................................63
3.11 - Esquecimento...........................................................................................................64
10. 12 - Avaliações históricas.............................................................................................68
Considerações finais.......................................................................................................72
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................76
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RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo discutir as transformações recentes ocorridas entre os
Aché, etnia indígena localizada na região oriental do Paraguai. Estas mudanças dizem respeito
sobretudo a alimentação e à política. Após uma experiência de campo de aproximadamente 25 dias,
na comunidade de Cerro Moroti, percebeu-se que os alimentos que os indígenas ali consumiam em
muito se assemelhavam aos que nós, não indígenas, consumimos. A interpretação deste fato é feita à
luz de autores da etnologia guarani, que nos sinalizaram a importância de prestar atenção às
maneiras indígenas em cada momento que eles se relacionam com os alimentos: no plantio,
passando pelo preparo, chegando a distribuição e ao consumo. O argumento principal é o de que os
Aché indigenizam os elementos forâneos através de suas ações, suas práticas. Embora até os anos
1960 os Aché não a desenvolvessem, a agricultura já há algum tempo ganhou espaço entre os
indígenas da etnia, constituindo hoje sua principal atividade. A maneira como ela acontece no
aldeamento de Puerto Barra nos parece singular. Ao invés da pequena atividade agrícola, lá os
indígenas plantam soja para a grande exportação. Após a análise de diferentes sites de notícia, uns
que tematizam a sojam outros que versam sobre o genocídio enfrentado pelos Aché nos anos 1950,
1960 e 1970 (assunto controverso), sugerimos que o plantio de soja é uma entre outras maneiras
pelas quais os Aché avaliam e se relacionam com a sua história, com a sociedade envolvente e o
Estado paraguaio.
Palavras-chave: Aché, Guarani, alimentação indígena, política indígena, agricultura, soja,
sociedade envolvente, Estado Paraguaio
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INTRODUÇÃO
Os Aché ficaram conhecidos na literatura antropológica como caçadores e coletores
nômades, que viviam em pequenos bandos nas florestas tropicais paraguaias. São conhecidos
basicamente por causa dos trabalhos de Pierre Clastres e suas discussões sobre antropologia
política, sobre a chefia indígena e sobre a “sociedade contra o Estado”. O trabalho de campo de
Clastres foi realizado junto a dois destes grupos, em 1962.
Fiquei durante 25 dias em companhia dos Aché, na comunidade1 de Cerro Moroti. A aldeia
se encontra oficialmente dentro dos limites da cidade paraguaia de San Joaquín. Este município
pertencente ao departamento (estado) de Caaguazú, se localizando a 210 km de Foz do Iguaçu e a
844 km de Curitiba. O entorno da comunidade é de fazendas médias, com diversificadas plantações.
Os Aché com quem me relacionei parecem conhecer bem estas pessoas que vivem em volta de seu
território.
Hoje, aproximadamente 300 pessoas vivem na comunidade de Cerro Moroti, que é a
primeira “comunidade” Aché oficialmente criada, no ano de 1968. A aldeia é constituída de uma
área central, com um campo de futebol, uma escola, um posto de saúde e uma igreja. Em um
segundo anel, digamos assim, estão as casas, em volta dessa primeira área central. Na frente de cada
casa, feita de material, há uma rua de areia, por onde também circulam as pessoas (uma vez que há
atalhos para todos os lugares, que não necessariamente passam por todas essas vias de areia). Atrás
das casas, constituindo outro espaço, existem as plantações, as chácaras. Depois, por fim, mais
distantes das roças está a região onde nada é plantado, há apenas árvores, mato, até o limite da
comunidade. Cerro Moroti tem 1358 hectares.
Há pouco mais de 38 casas na aldeia, sendo que em cada uma delas moram uma ou mais
famílias. Não fiquei em nenhuma dessas casas, pois em momento algum me apareceu esta
oportunidade (conversando com outros pesquisadores, vi que isso é comum). Da primeira vez me
receberam na escola e na segunda em um pequeno quarto construído justamente para os visitantes
que direto estão na aldeia.
A ideia de estudar algo relacionado aos Aché veio após a leitura de Pierre Clastres na
disciplina de Laboratório Etnográfico, ministrada pela professora Ciméa Bevilaqua. Pesquisei sobre
a etnia na internet e vi que uma aldeia se localizava a pouco mais de 80 quilômetros de Foz do
Iguaçu, cidade onde nasci e cresci, e onde meus pais ainda residem (era “perto de casa”, podemos
dizer). Procurei por notícias, por nomes, e acabei encontrando vários indígenas Aché com perfis no
1 É dessa maneira que os Aché se referem ao lugar onde moram, pelo menos quando falam em
espanhol. Em Aché, o lugar onde se mora é chamado de “chupa”, algo como “comunidade”... Mas
“chupa” também significa “pueblo”. Chupa Pou é o nome de outra comunidade Aché.
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facebook. Solicitei algumas amizades, enviei algumas mensagens e recebi resposta apenas de
Francisco Mbepegi.
Começamos a conversar e, após alguns dias, apresentei a vontade que tinha de conhecer a
aldeia em que ele morava, perguntei se isso era possível e Francisco me orientou a falar com
algumas pessoas e disse que ia conversar com o cacique. Estas conversas aconteceram e fui
informado que poderia ficar alguns dias em Cerro Moroti. Foi esta a primeira oportunidade que tive
de ir a aldeia, em fevereiro de 2015. A experiência foi bastante interessante, sobretudo por ser algo
que eu nunca havia feito. Os choques foram grandes e algumas expectativas foram quebradas.
Naquela altura eu não tinha nenhuma leitura de etnologia guarani e sabia apenas algumas poucas
coisas sobre os Aché. Conforme registra Evans-Pritchard, aquilo que se tem de resultado de um
trabalho de campo muito tem a ver com o que se levou para ele (2005:244). Em termos de trabalho
de campo, portanto, essa primeira experiência na aldeia foi bastante inicial. Serviu mais para
conhecer as pessoas, para saber onde estava pisando, do que para entender o que estava se
passando.
No primeiro semestre de 2015 cursei na graduação a disciplina de Laboratório Etnográfico
II, ministrada pela professora Fernanda Azeredo. É nesta matéria que começamos a discutir as
ideias de monografia, os projetos. Ao final da disciplina, com a ida ao Paraguai na cabeça, escolhi
como objeto de estudo uma política pública que seria desenvolvida pelo Estado paraguaio na
comunidade de Cerro Moroti, o PRODERS (projeto de desenvolvimento rural sustentável). O que
me chamava a atenção nesse política pública paraguaia era que, ao mesmo tempo, outra
comunidade Aché plantava soja. Como se combina desenvolvimento rural sustentável com
produção de soja? O mesmo Estado que incentivava a produção sustentável aqui, incentivava a
grande produção acolá. Também pensava: o que é desenvolvimento rural sustentável? Como os
indígenas viveriam este projeto?
Durante o ano todo mantive o contato com Francisco e com outros indígenas que conheci
nessa primeira vez, sempre manifestando vontade de passar novamente um tempo na aldeia. Esta
vontade se realizou por fim em novembro de 2015, quando fiquei 20 dias na comunidade. Neste
período, pude acompanhar com mais calma as coisas acontecendo, pude viver um pouco mais entre
e com as pessoas, comer de sua comida, passar horas sem fazer nada junto. Em relação às questões
que me chamaram a atenção a respeito do PRODERS, elas todas foram pensadas antes desta
segunda ida a campo. Entretanto, tanto as questões quanto o projeto vieram abaixo, mostraram-se
impossíveis.
O PRODERS havia sido implementado em Cerro Moroti apenas três meses antes dessa
minha segunda visita a aldeia. Quando cheguei, eram novidades por lá os seguintes “itens”: dois
galinheiros, algumas novas construções (banheiros, casa de visitantes), cavalos, muitas vacas, toda
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uma estrutura para tratar destes animais (curral, carroça, carro de boi), sementes (espécies nativas e
estrangeiras) etc. O problema foi justamente este: como dar conta de tudo isso em tão pouco tempo?
Fiquei bastante perdido em campo durante todos os dias. Mesmo assim, passei os dias em campo
registrando aquilo que percebia, o que pensava estar acontecendo, o que suspeitava ser importante.
Lendo o diário, alguns meses depois, percebi que se destacava de minha experiência a
questão da alimentação. Mesmo que em pequenas doses, mas lá e cá, a alimentação se fez presente
em toda a minha experiência. No registro de alguns aspectos das práticas alimentares, na questão
dos roçados, no que dizia respeito às novidades relacionadas aos PRODERS, na própria dificuldade
que tive em me alimentar (e tudo que isso envolvia). Lendo trabalhos da etnologia guarani, pude
perceber, também, que seria possível tirar alguma coisa de minha experiência se olhasse meus
registros com algumas referências na cabeça.
O presente trabalho pretende pensar um aparente paradoxo. A história recente do Paraguai é
marcada pelo avanço das frentes de expansão, que pouco a pouco foram “colonizando” áreas do
país que até então eram ocupadas somente por populações indígenas. Nestes avanços, florestas
foram derrubadas, surgiram as lavouras de erva mate, de soja e de milho, ganhou bastante espaço à
pecuária etc. Este longo processo teve como um de seus resultados, registram os Aché, práticas
genocidas contra a etnia, cometidas pelo Estado e pela sociedade envolvente paraguaia. Há pelo
menos 40 anos os Aché batem nesta tecla. O paradoxo aparente reside no fato de atualmente existir
uma aliança bastante significativa entre os Aché e o plantio de soja e, de alguma maneira, entre os
Aché e algumas partes do Estado paraguaio e o modelo econômico por ele promovido.
Para tanto, se impõe uma reflexão sobre o significado dos alimentos, da agricultura, do
trabalho e das relações com o Estado. Organizamos estas reflexões em três capítulos, assim
distribuídos. Em um primeiro capítulo, faremos um breve sobrevoo sobre a história das relações
entre as populações indígenas do Brasil e do Paraguai e seus respectivos Estados. Pensamos que
isso tem bastante a ver com a maneira com que os Aché vivem suas vidas nos dias de hoje. No
segundo capítulo, falaremos sobre algumas referências teóricas deste trabalho, autores da literatura
guarani que nos ajudarão a pensar os dados que possuo sobre os Aché. No terceiro e último
capítulo, apresentaremos os registros da alimentação dos Aché de Cerro Moroti, falaremos a
agricultura na comunidade de Puerto Barra e faremos uma reflexão mais geral a respeito da história
recente dos Aché. Depois deste último capítulo há uma conclusão, retomando alguns dos
levantamentos feitos ao longo do trabalho.
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CAPÍTULO 1 – SITUAÇÃO ATUAL DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL E NO
PARAGUAI
O objetivo deste capítulo é apresentar alguns pontos das relações entre os povos indígenas e
as sociedades não-indígenas no Brasil e no Paraguai. Queremos destacar que o contato sempre
existiu e que, ao longo das décadas, ele passou a ser cada vez mais mediado por instituições estatais,
jurídicas. No Brasil, temos a constituição de 1988 e no Paraguai a de 1992, ambas outorgando uma
série de reconhecimentos e garantias aos povos indígenas.
Os mbyá guarani da aldeia de Tekoa Marangatu falam do contato e das relações com os
brancos de uma maneira bastante diferente da que nós, não-indígenas, geralmente abordamos este
assunto, conforme nos conta Nádia Heusi Silveira (2011) em sua tese de doutorado. Diz-nos a
autora que o encontro entre índios e brancos não é visto pelos Mbyá como um signo de mudança
definitiva, pois os indígenas afirmam que a história das relações entre índios e brancos é antiga e
bastante oscilante, às vezes pacífica, às vezes conflitiva. Deste modo, interpreta a autora, mais do
que um vai e vem, uma aproximação ou um distanciamento, a narrativa a respeito do contato dada
pelos mbyá põe mais ênfase na questão da continuidade, como se essas relações fossem algo que
sempre existiu.
O trecho da tese de Rubia Giordan (2012, p. 40) que trata da formação política e econômica
inicial do estado do Paraná é expressiva de como se deram estas tais relações que sempre existiram
entre os povos indígenas e a sociedade nacional no Brasil. A autora informa que grandes áreas de
floresta originalmente ocupadas pelos guarani foram exploradas no começo do século XX por
empresas mateiras e madeireiras, tais quais a Companhia Maripá e a Companhia Mate Laranjeiras.
A atividade destas empresas durou até 1940, segue a autora, mas não sem antes destacar o
argumento de Maria Dorothea Post Darella, de que já há muitos séculos os guarani precisam
deslocar-se “forçada e estrategicamente” (Darella, 2004, apud. Giordani 2012, p. 40) nas áreas de
mata atlântica, sempre em fuga das frentes de expansão, dos colonos e dos desenvolvimentismos de
cada século.
Para o caso dos Aché, também não devemos pensar o contato como a maior das novidades,
porque ele não é. É possível conferirmos uma faceta da história desse contato na crônica etnográfica
que Pierre Clastres (1995) escreveu a respeito dos indígenas desta etnia. Lá o autor nos fala sobre
como “os Aché espreitavam os brancos”, sobretudo a partir dos anos 1950, quando as regiões sem
floresta, de savana, à época começaram a ser densamente ocupadas pelos agricultores paraguaios.
A descrição que Clastres faz da cena (1995, p.40) de alguns caçadores Aché que passaram
horas a fio observando os brancos – com o coração batendo forte, o corpo gélido e as mulheres
soluçando – nos dá um pouco de dimensão de como se deram esses primeiros contatos: quais os
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sentimentos e sensações que eram experimentados, e que davam a tônica da situação, pelo menos da
parte dos indígenas.
O antropólogo norte-americano Warren Thompson nos fala sobre estes mesmos pontos em
uma comunicação a respeito da dinâmica da fé evangélica entre os Aché da comunidade de
Kuetywy (Thompson, 2013). Segundo ele, com o aumento da migração de colonos do centro para a
região leste do Paraguai, no começo do século XX, uma região de fronteira, de floresta densa, os
encontros entre os brancos e os bandos Aché passaram a ser cada vez mais comuns. O antropólogo
destaca que apesar de ser grande a violência que caracterizava estes contatos, tal violência era
assimétrica, tornando a existência dos Aché algo cada vez mais difícil, até que o primeiro bando
saiu de vez da floresta, em agosto de 1959, para ir morar, justamente, com um fazendeiro branco.
Sabemos que hoje é bastante difícil que os povos indígenas vivam sem minimamente entrar
em contato com a sociedade nacional (e as etnias que optaram por se distanciar, por não entrar em
contato conosco, sabemos, enfrentam sempre dificuldades2). A distância entre as comunidades
indígenas e os centros urbanos, diferentemente das situações clássicas de pesquisa, não é nada
grande. O contato, portanto, maior ou menor que seja, é inevitável.
Desde os anos 1970, mas principalmente após a constituição de 1988, no caso do Brasil,
cada vez mais as diferentes etnias indígenas se aproximaram e perceberam ter interesses em
comum, e que poderiam cobrar uma série de direitos da sociedade nacional. Grupos que até então
não se entendiam, que possuíam relações conflitivas, passaram a se aliar politicamente contra
aqueles que prejudicam seus direitos. Os indígenas brasileiros passaram cada vez mais a perceber
que suas posições dentro e fora da sociedade nacional têm importância, repercussão, consequências,
efeitos.
Assim sendo, como destacam Silveira e Tempass, há uma faceta de valorização do contato
com o mundo dos brancos: a troca de experiências, saberes, o aprendizado das regras do jogo, da
mediação política. Nádia Silveira apresenta em seu trabalho de doutorado o registro de uma fala do
professor da escola indígena de Marangatu, Eduardo Silva, a respeito da luta para se ter nas escolas
da aldeia também as séries finais, o ensino médio. O que o professor Eduardo sinaliza é que para
fortalecer a aldeia é necessário saber dos conhecimentos não indígenas, e que para se tornar
liderança é preciso saber conversar com estes não indígenas, e é dentro da escola que se aprende a
conversar (Silveira, 2011, p. 137 e 138).
Seguindo nesse sentido, da valorização do contato com algumas esferas do mundo branco,
alguns personagens, como os antropólogos, são bastante valorizados. A partir de 1988, na então
2 Afinal, quantas reportagens, notícias de jornal etc sobre “tribos isoladas” existem? Por exemplo:
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwi_i-
H_y5fUAhXIFpAKHW3WAHkQFggoMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.bbc.com%2Fportuguese%2Fbrasil-
38399604&usg=AFQjCNHfJKY_9_6Ptyt7z5qJap9alRx8Jw&sig2=95oYITacZiqknDyIUda6sA
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nova conjuntura brasileira, os antropólogos vêm desempenhando papéis importantes nas
demarcações das terras indígenas no Brasil. A etnologia indígena brasileira, sabemos, é até hoje
uma área da antropologia bastante engajada com as questões dos povos com quem estuda. Seu
surgimento e sua consolidação no Brasil, inclusive, estão bastante atrelados às demandas do
indigenismo do século XX, e os próprios indígenas, desde há muito tempo, sabem disso e por isso
geralmente enxergam positivamente a presença de antropólogos (Silveira, 2011, p. 104). Tal fato,
evidentemente, não exclui das relações entre indígenas e não indígenas os não ditos, os mal
entendidos, os segredos e os conflitos.
Sobre estes direitos garantidos, mas mais especificamente sobre esse algo que vem do
mundo dos brancos, Giordan (2012, p. 121) nos fala de uma perspectiva interessante. Os direitos
garantidos na constituição tais quais os benefícios de programas sociais (bolsa família), as
aposentadorias, as escolas e os postos de saúde nas comunidades (cargos, funções, salários), o apoio
de órgãos estatais e não estatais no fomento à produção agrícola e à venda dos produtos – por causa
de sua necessária relação com o universo dos brancos, dos juruá – são vistos pelos mbyá de Itamarã
como uma união de opostos: ao mesmo tempo em que há interesse em todas estas coisas, e que no
geral elas sejam bem vistas, nos conta a autora que há também a leitura de que o mundo dos brancos
é “nocivo e pernicioso, levando a corrupção da pessoa” devido ao fato de se chocar com aquilo que
os indígenas denominaram “sistema do índio”, isto é, sua maneira de viver, distribuir aquilo que
ganham – diferente da maneira dos brancos.
Sobre as relações entre indígenas e não indígenas no Paraguai, de acordo com Sarah
Villagra, cientista-política espanhola que estuda o tema, houve mudanças constitucionais
significativas a partir de 1992. Na nova constituição deste país, resultado da então recente abertura
democrática, direitos sociais, culturais e econômicos passaram a ser garantidos aos povos indígenas,
isto é, o direito à identidade, à participação política, à propriedade comunitária, à educação, à saúde,
etc. Mesmo assim, ainda com Villagra, a consolidação dos direitos indígenas no Paraguai ainda é
insuficiente e ineficiente (2013, p. 92). Para sustentar esta posição a autora apresenta dados
produzidos pelo CAPI – Censo Nacional de Pueblos Indígenas, a respeito da consolidação dos
serviços de saúde, do acesso à educação formal, do nível de analfabetismo entre os indígenas e
daquilo que a autora denominou “discriminación laboral”. O acesso à saúde, ainda que tenha
crescido (muito lentamente) de 1992 para cá, é bastante prejudicado pelas distâncias entre os postos
de saúde, os hospitais e as comunidades indígenas. O ingresso à educação formal também registra
níveis baixos, pois as instituições de ensino promovem sua formação pautada principalmente em
15
valores da cultura paraguaia, sem nenhum diálogo com “los valores y las tradiciones nativas”3
(2013, p. 111). Resulta que o nível de analfabetismo entre os povos indígenas do Paraguai4 varia de
38% a 51%. Por fim, a autora fala daquilo que chama de discriminação laboral, que é o preconceito
que a sociedade paraguaia possui em relação aos indígenas, exemplificado nos vínculos
empregatícios entre os indígenas e os patrões não indígenas. De acordo com dados do CAPI, “65%
de los indígenas entrevistados manifiestan que reciben una compensación injusta o inferior a la de
sus pares paraguayos” (Cerna Villagra, 2013, p. 102).
A respeito das relações entre indígenas e não indígenas nos anos anteriores a nova
constituição do Paraguai, em 1992, o assunto não é menos complexo que no caso brasileiro.
No Paraguai, os povos indígenas deixaram de existir juridicamente em 1848, voltando a
aparecer novamente na constituição em 1981, com o “estatuto das comunidades indígenas”, através
da Lei 904/81. Tal desaparecimento começou em 1767, registra Malinowski apoiada nas ideias de
Wayne Robins (Malinowski, 2004, p. 31 apud Robins, 1994, p. 103), com a expulsão e com o fim
das reduções jesuíticas. Em 1825, por sua vez, um dos ditadores da história do Paraguai, de nome
Rodrigues Francia, ordenou que todos os habitantes do país apresentassem os documentos de suas
terras, caso contrário elas passariam a ser de posse do Estado. Apenas 21 terras indígenas à época
foram mantidas, mas não por muito tempo, pois em 1848, por fim, outro ditador, este de nome
Carlos Antônio López autorizou um decreto que tirava a condição de indígena e transformava todos
em “cidadãos paraguaios”.
O que é irônico nesse caso é que a pessoa que estampa uma das notas do “guarani”, o
dinheiro corrente no Paraguai, é Carlos Antônio López. A imagem do ditador paraguaio está
impressa em todas as notas de “cinco mil guaranis” que circulam no país.
É claro que o retorno dos povos indígenas à constituição, em 1981, e o consequente
reconhecimento de sua condição diferenciada resultaram não da boa vontade do ditador paraguaio
Alfredo Stroessner, à época a frente do país, mas sim devido a pressões internas e externas como
denúncias em cortes internacionais, a publicação de obras denunciando genocídios5, etc.
Sobre a relação entre os antropólogos e os grupos indígenas no Paraguai, essa alteridade
muitas vezes desejada, algo parecido com o Brasil aconteceu, de acordo com Maria Izabel
Malinowski. Em sua dissertação de mestrado “A antropologia no Paraguai: uma redução às
avessas?” (2004) a autora defende que a formação da antropologia paraguaia, como a brasileira, se
deu profundamente imbricada com a questão da identidade nacional – intimamente ligada à questão
3 Em minha experiência de campo conheci alguns indígenas que faziam faculdade. Um deles fazia agronomia,
dois outros faziam enfermagem e outra fazia jornalismo (“periodista”). Duas dessas pessoas faziam também um curso
de “facilitação jurídica”.
4 No Brasil, de acordo com dados do CENSO 2010, o índice varia de 23,3 a 32,3.
5 Os antropólogos Mark e Christine Münzel, juntamente com Bartolomeu Melià e Luigi Miraglia, publicaram
em 1973 a obra “La agonia de los Aché-Guayaki”, denunciando o caso específico dos Aché.
16
indígena, a luta por visibilidade, direitos etc. É dessa interpretação que sai a brincadeira do título:
no Paraguai, os antropólogos é que foram reduzidos, e não os indígenas. Lá a redução se deu às
avessas. As populações indígenas, por sua importância e número no país, acabaram fazendo com
que a antropologia paraguaia se desenvolvesse principalmente preocupada com o estudo destes
grupos, que fizeram sua palavra ser ouvida pela escrita e pela voz dos antropólogos. Pesquisadores
como León Cadogan, Bartolomeu Melià, Branislava Susnik e Miguel Chase-Saardi são exemplos de
antropólogos que dedicaram a vida toda aos guaranis do Paraguai: ao estudo, a luta por melhores
condições etc. Os inúmeros museus6, institutos e sociedades paraguaias surgidas no século XX
também são exemplos de como a discussão antropológica no Paraguai sempre esteve atrelada à
questão indígena.
Podemos perceber, por este brevíssimo histórico das relações entre as populações indígenas
e as sociedades nacionais, que muito dificilmente esta história se desenrolaria sem nenhuma
influência de uns sobre outros. É de mudança também que estamos falando. Mudança na vida
dessas populações, dos entornos de suas aldeias, das realidades nacionais, dos objetivos etc. Tais
mudanças refletem também na alimentação dos indígenas.
6 Museu Etnográfico Andrés Barbero (fundado em 1929), Associação Indigenista do Paraguai (fundada e 1942),
Centro de Estudos Antropológicos - CEADUC (fundado em 1950 junto ao Instituto Ateneo Paraguaio, depois, porém,
integrado a Universidad Católica Nuestra Señora de la Asunción).
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CAPÍTULO 2 – SOBRE COMO PENSAR O INEVITÁVEL: ALIMENTAÇÃO E
TRANSFORMAÇÃO NA SOCIEDADE INDÍGENA
É difícil falar da relação que as populações indígenas estabelecem hoje com os alimentos
não indígenas – de uma perspectiva interessante – se nos apegarmos a noções muito engessadas de
ideias como “cultura” e “tradição”. A própria história das relações entre indígenas e não indígenas é
importante por isso. Se não refletirmos sobre estes pontos, corremos o risco de concluir que a
alimentação dos povos indígenas, na atualidade, “não é mais o que deveria ser”, que ela “se foi”,
“se perdeu” e coisas deste tipo.
No mundo de hoje, diferente de um mundo de décadas atrás, a alimentação das populações
indígenas é também diferente do que era no passado, e os motivos nós bem conhecemos.
Primeiramente, como marcamos logo acima, trata-se de uma questão básica de antropologia: as
culturas são dinâmicas, elas se transformam, mudam. A alimentação dos indígenas nunca deixou de
mudar primeiramente porque ela, fazendo parte daquilo que entendemos como cultura, sempre
muda.
A diferença na alimentação que nos interessa e que vamos tratar neste trabalho se refere
precisamente à relação que os povos indígenas na atualidade estabelecem com os alimentos dos
brancos, vindos da sociedade não indígena, envolvente. Os porquês da alimentação indígena se
misturar com os alimentos não indígenas nós também conhecemos: a ausência de terras, a inevitável
proximidade e aproximação ao mundo dos não indígenas - coisa que, aliás, acontece há mais de 500
anos – e até mesmo um fascínio por este universo e suas possibilidades de troca e intercâmbio. Este
conjunto de discussões nos ajudam a organizar um pouco melhor esta questão da alimentação dos
povos indígenas na atualidade, a presença de alimentos não-indígenas na dieta. Entendemos, é
claro, que todos estes elementos, que nos servem de premissas, precisam ser demonstrados
etnograficamente, afinal as populações indígenas tecem diferentes relações conosco, não-indígenas.
O ponto que aqui queremos enfatizar é que para estudar a alimentação dos povos indígenas,
hoje, se quisermos dar valor ao material que se produz em campo, devemos seguir a pista de Nádia
Heusi Silveira (2011) e enxergar a aparente semelhança e proximidade que as populações indígenas
tem conosco, não indígenas, mais como uma miragem que como um indício de sua
“desindianização” ou de seu “enbranquecimento”, pois, ainda com a autora, nas cenas mais triviais
do cotidiano nós podemos enxergar a diferença, a “maneira indígena” de se pensar e viver este
mundo.
Neste sentido, optei por analisar o material produzido em campo a partir de algumas
“chaves” encontradas em dois autores da literatura Guarani. Antes de anunciarmos estes autores,
porém, gostaria de refletir por um momento sobre a ideia de “chaves”. Podemos nos referir a estas
“chaves” também como “modelos de compreensão”, no sentido proposto por Márcio Goldman
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(Goldman, 2006, p. 460). Goldman sugere que ainda que algumas reflexões sejam produzidas em
um contexto específico, estas podem operar como “matriz de inteligibilidade” em e para outros
contextos. Estas chaves da etnologia guarani, portanto, nos auxiliarão não apenas a dialogar com os
dados produzidos em campo, mas também a olhar para este material um modo positivo,
antropológico, isto é, buscando a diferença, a sócio-lógica ou a maneira indígena em cada
experiência.
Retornando aos dois autores, ambos, cada um a partir de seu trabalho de campo, tematizam a
alimentação dos Mbyá Guarani em duas aldeias, cada uma em um estado da região sul do Brasil:
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. São eles Nádia Heusi Silveira, que fez trabalho de campo entre
o Mbyá Guarani de Marangatu, Santa Catarina, e Mártin César Tempass, que estudou junto aos
Mbyá da aldeia de Itapuã, no Rio Grande do Sul.
Na medida em que os autores e as discussões forem sendo apresentados teremos uma maior
clareza do que cada um especificamente trabalha e o que cada pesquisa contribui para a presente
discussão.
Escolhemos organizar a exposição dos trabalhos da seguinte maneira: i) apresentaremos o
trabalho de Nádia Heusi Silveira a partir de alguns pontos: os vetores da comensalidade, a
alimentação como uma técnica xamânica de comunicação e os modos de consumo e distribuição.
Tal apresentação será permeada, sobretudo ao final, pela discussão realizada por Mártin César
Tempass em sua dissertação de mestrado, a respeito da alimentação mbyá ser também um
demarcador étnico desta etnia.
2.1 – DO ESPANHOL, ESTRATEGIA
Daremos inicio a esta seção tratando de como a relação entre os alimentos advindos do
mundo não indígena é tematizada nos dois trabalhos. Nádia Heusi Silveira registra em sua tese de
doutorado que a monetarização da economia Mbyá Guarani acontece devido a dois motivos: a
necessidade que os Mbyá possuem de completar a produção de seus roçados e a crescente demanda
por produtos industrializados (2011, p. 30). Mártin César Tempass aborda o assunto de maneira
semelhante, sinalizando que a produção das roças não dá conta de garantir a totalidade da
alimentação mbyá, trazendo a necessidade de dinheiro para que alimentos sejam comprados nos
mercados. O artesanato – sua produção e venda – conclui o autor, é o modo mais utilizado pelos
indígenas para conseguir este dinheiro.
Silveira segue seu argumento nos dizendo que o fato dos mbyá se alimentarem basicamente
de alimentos advindos de mercados dos entornos das aldeias não é, no entanto, motivo para
concluirmos que a dieta mbyá se “regionalizou” ou “ocidentalizou”. E é neste ponto do trabalho que
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Silveira nos apresenta sua ideia de “guaranização”7 da “comida regional”, dos “artefatos juruá”, isto
é, a aproximação dos alimentos e elementos forâneos que é feita pelos mbyá através do
estabelecimento de proibições a alguns destes alimentos, da incorporação de outros, da nominação
indígena destas comidas, do prestar atenção às técnicas culinárias que são empregadas nas
preparações, nos utensílios que são utilizados; a diferença da comida industrializada, proveniente
do mundo não indígena, acaba sendo neutralizada por estes processos, escreve Silveira (2011, p.
242), e a oposição entre os produtos das plantações mbyá e os produtos industrializados acaba
sendo organizada mais como uma gradação; gradações de uma mesma culinária mbyá.
Mártin César Tempass nos fala de modo semelhante a respeito dos mbyá de Itapuã. Para o
autor, os alimentos mbyá, do momento de sua obtenção até seu consumo estão intimamente
relacionados às percepções de mundo desta etnia, a seu modo de viver (2005, p. 146). O título da
dissertação de mestrado de Tempass contém o termo “orerémbiú”, que significa “nossa comida”,
que o autor enxerga como “sinal diacrítico” que os mbyá utilizam para diferenciar seus alimentos
dos alimentos de outros povos.
No capítulo de apresentação de sua tese de doutorado, Nádia Heusi Silveira nos fala da
contribuição de seu trabalho para as discussões a respeito da etnologia dos povos ameríndios (2011,
p. 35). De acordo com a autora, são pelo menos duas: (i) uma é a percepção dos modos de consumo
dos alimentos pelos mbyá de Marangatu, que a autora denominou como “vetor centrífugo” e “vetor
centrípeto” da comensalidade, e a outra é o enxergar a comida como uma técnica xamânica de
comunicação, de produção de estados corporais específicos, de aproximação dos outros seres que
povoam o universo e das divindades.
2.2. – OS VETORES DA COMENSALIDADE
O que Silveira denominou como “vetor centrífugo” e “vetor centrípeto” da comensalidade
relaciona-se com o modo como os mbyá se inserem numa “ampla rede de relações” (2011, p. 35)
com os indígenas do grupo residencial, do grupo local, do multi-local e com grupos mais amplos, de
não indígenas. Esta rede de relações acontece e se atualiza também por meio da alimentação e,
conforme nos coloca a autora, “comer nunca é algo para se fazer sozinho” (Silveira, 2011, p. 76).
É desse modo que, segue argumentando Silveira, quando se presta atenção ao cotidiano
mbyá em torno das práticas alimentares, percebem-se vetores ora direcionados para o interior do
grupo de pessoas mais próximas, os parentes, e vetores ora direcionados para o exterior, para o
grupo local e as alteridades mais distantes, como os não indígenas.
7 “Guaranização” remete, me parece, ao conceito popularizado por Sahlins de ‘indigenização da modernidade’, bem
trabalhado pelo antropólogo norte-americano no texto “O pessimismo sentimental”, publicado na revista Mana e
disponível na internet.
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O que a autora se refere como “vetor centrípeto” da comensalidade diz respeito a este
movimento ao interior da parentela, ao grupo mínimo, de residência. Tal movimento produz
diferença no seio do grupo residencial, assegurando as preferências pessoais.
Por sua vez, o que a autora chama de “vetor centrífugo” da comensalidade diz respeito às
relações alimentares que se desenrolam em sentido ao exterior do grupo de parentes mais próximos,
como nos mutirões e nas festas, em que são agregados às refeições os grupos locais (filhos, netos),
multi-locais (outras parentelas) e eventualmente os não indígenas. O movimento orientado para fora
do grupo mínimo, conclui Silveira (2011, p. 35), ao invés de reforçar as diferenças entre os grupos
participantes, reforça a semelhança entre eles.
Por ora, guardemos esta primeira contribuição de Silveira na cabeça. Falaremos sobre ela em
uma seção mais oportuna deste trabalho.
2.3 – A ALIMENTAÇÃO COMO TÉCNICA XAMÃNICA DE COMUNICAÇÃO. O QUE SE
COME E O QUE SE DEIXA DE COMER.
A outra contribuição8 que a pesquisa de Nádia Heusi Silveira dá ao campo de estudos da
etnologia diz respeito a enxergar a alimentação como uma “técnica xamânica de comunicação”,
como um conjunto de escolhas e práticas capazes de colocar os mbyá em contato com as demais
potências que povoam seu universo (Silveira, 2011, p. 35).
O argumento sustentado por Silveira é de que o conhecimento sobre o cosmos e as práticas
alimentares entre os mbyá são dimensões associadas, e isto significa que a ingestão de certas
substâncias, a interdição de determinados alimentos em períodos específicos, o consumo de
alimentos dos próprios roçados, presentes dos deuses, e o demasiado gosto pela carne, por exemplo,
implicam em estados corporais particulares, que colocam os mbyá em contato ora com as
divindades, ora com as outras potências que povoam o universo. Comportamentos alimentares
distantes dos preceitos desta etnia justamente distanciam os indígenas de suas divindades e da
própria possibilidade de divinização, ao passo que os aproximam de perigos como a transformação
em animal, ou ojepotá – a perda da condição humana. A cosmologia mbyá, de acordo com Tempass
(2011, p. 33), bem como a cosmologia de várias etnias das terras baixas da América do Sul, divide o
mundo em três planos ou domínios: o sobrenatural, o humano e o animal. Manter-se como um ser
humano, ascender à condição divina ou transforma-se em animal são todas possibilidades factíveis.
É este o sentido de “técnica” utilizado por Nádia Heusi Silveira. Técnica como uma “escolha
adequada” de substâncias (2011, p. 35), feita pela pessoa, que propicia estados corporais
específicos. Lembremos que ainda que exista a figura do xamã nas aldeias mbyá, o xamanismo
8 O assunto não é novidade, porém. Citamos como exemplo o compêndio organizado por Kensinger e Kracke,
lançado em 1981, chamado “Food taboos in Lowland South-America”.
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desta etnia é distribuído entre todos, no sentido de que todos têm possibilidade de se comunicar com
as divindades e com os demais seres que povoam o cosmos, a depender da vida que se leva, dos
estados corporais e das atitudes que se desenvolve.
Os mbyá guarani da Marangatu, de acordo com Silveira, estão inseridos numa ampla rede de
relações, associados aos animais e às plantas do mato, aos donos destes animais e destas plantas e às
divindades do panteão mbyá. Silveira, no mesmo trecho do trabalho (2011, p. 182), coloca que
ouviu repetidas vezes em campo que “tudo tem dono”, e o que a autora interpreta destas declarações
é que nada, nesse sentido, pode ser retirado do ambiente sem que se tenham implicações. Para os
mbyá de Itapuã, nos conta Mártin César Tempass, após criarem as plantas e os animais, as
divindades ensinaram a eles o que podia ou não ser comido, quando e como a agricultura devia ser
praticada, quando a colheita devia se realizar, como devia ser partilhada etc. (2005, p. 99). Os
deuses são os responsáveis pelos alimentos provenientes da agricultura, da caça e da coleta.
O comedimento no uso dos recursos ambientais é explicado pelos indígenas de Marangatu
como um “respeitar os donos”, segue a autora, dizendo que isso se relaciona diretamente com as
normativas mbyá que sinalizam os perigos dos excessos, pois eles provocam riscos à condição
humana (Silveira, 2011, p. 182). O excesso de caça, a morte demasiada de animais, o excesso de
apetite por carne e o desperdício de alimentos, por exemplo. O trabalho de Rubia Giordan entre os
mbyá de Itamarã nos fala também sobre como o desperdício é um comportamento que os indígenas
daquela etnia atribuem aos brancos, que por exemplo matam os animais sem a intenção de comê-los
(Giordan, 2012, p. 167). Tempass, por sua vez, coloca que os mbyá de Itapuã dizem se diferenciar
dos brancos porque comem pouco, ao passo que os brancos comem muito (2005, p. 12; p. 145). O
trabalho de Carid e Godoy, que falaremos adiante, também nos fala sobre as características de
excesso e exagero atribuídas aos brancos pelos Mbyá.
2.4 - A CARNE DE CAÇA
A antropóloga Rubia Giordan coloca que para os mbyá da aldeia de Itamarã, no Paraná, a
comunicação da pessoa guarani com a divindade de quem receberá a caça – o dono do animal – é
algo sempre presente nas narrativas sobre a atividade cinegética (2012, p. 170). Onório Benite,
cacique e xamã da referida aldeia, é citado por Giordan para falar das atividades que todo caçador
que se preze deve praticar e desenvolver se tem o desejo de que suas empreitadas no mato deem
resultado: a reza diária, a participação nas danças rituais na casa de reza e a consulta ao xamã da
aldeia, que domina o conhecimento daquilo que existe e que o caçador encontrará no mato (2012, p.
170).
Para o caso dos mbyá de Marangatu, Nádia Heusi Silveira informa que a comunicação entre
o caçador e o dono do animal pode ser realizada sem a mediação de um xamã. Sobre o modelo de
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relação entre divindade, caçador e caça, opina a autora, ele nos lembra menos o modelo da guerra -
da predação violenta, da perseguição, característico de muitas cosmologias amazônicas – e mais um
modelo afetuoso (2011, p. 185). O afeto, ao invés da ira, é a tônica da relação: é o próprio dono do
animal que o coloca na rota do caçador. Philippe Descola, em seu artigo “Estrutura ou sentimento: a
relação com o animal na Amazônia” (1998), dedica algumas páginas ao tema. Chamando este
modelo que se caracteriza pelo afeto ao invés da ira de “modelo da dádiva” 9, o autor nos fala das
etnias do tronco linguístico Aruaque que habitam a região central dos Andes do Peru, como os
Matsiguenga e os Asháninka (no trabalho citados como Campa). Descola registra que entre estas
etnias, após serem solicitados pelo caçador, os animais se oferecem aos mesmos, demonstrando
“boa disposição com os índios” (1998, p. 38). Nada de contrapartidas rituais, nada de sentimentos
de vingança dos animais em relação aos indígenas; de acordo com o autor a dádiva aqui significa
que os animais oferecem sua existência aos humanos “de maneira deliberada”.
O estatuto da carne é bastante ambíguo entre os mbyá guarani. Embora a carne seja um
produto valorizado, seu excessivo consumo, ou seu consumo em desacordo com os preceitos mbyá
fazem dela algo ao mesmo tempo perigoso. Os motivos dessa ressalva nós podemos começar a
compreender a partir da fala do cacique da aldeia de Marangatu, Seu Geronimo (Silveira, 2011, p.
141). Informa o cacique que mesmo que valorizada, a carne de caça não é e nunca foi a principal
comida, o principal alimento dos mbyá. Este produto não é imprescindível no dia a dia. O milho –
tópico do qual falaremos mais adiante – tem um prestígio muito maior, por exemplo, e sabemos que
ele se relaciona de modo íntimo à questão da identidade mbyá guarani (Silveira, 2011, p. 141). Mas
apenas isso não nos ajuda a entender esta certa “desconfiança” que os mbyá têm em relação à carne
de caça.
A respeito deste tópico, quando Silveira fazia suas questões sobre os porquês da evitação das
carnes dos grandes animais, os mbyá respondiam que estes animais maiores são agressivos, pois
possuem sangue. A antropóloga argumenta que esta resposta está muito próxima ao estilo “pan-
amazônico” (2011, p. 207). É da presença de sangue que surgem as precauções e os cuidados em
relação ao preparo e ao consumo de carne: estamos falando de batismos, benzimento e outras
atividades. Tempass comenta que os mbyá de Itapuã estabelecem diversas dicotomias dentro de seu
sistema alimentar. Uma delas é a entre alimentos do esqueleto e alimentos da carne e do sangue
(2005, p. 144). Os primeiros são as espécies vegetais, cujo consumo é recomendado aos mbyá a fim
de se produzir um corpo leve. O segundo conjunto de alimentos é representado pelas carnes, cujo
consumo excessivo produz, inversamente, corpos pesados, distantes dos preceitos mbyá de leveza,
estado corporal propício à comunicação com as divindades.
9 Outros dois modelos são trabalhados pelo autor, o modelo da reciprocidade e o modelo da predação.
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À presença de sangue e à agressividade do animal soma-se uma condenação do desejo
excessivo pela carne de caça. O assunto é sempre mencionado quando o tema são as evitações.
Silveira explica que entre os mbyá, alimentar o desejo pela carne estabelece um canal de
“comunicação e atração” com as potências animais (Silveira, 2011, p. 210). A comida, nesse
sentido, é vista como um “catalisador” de uma relação que já existe entre os animais e cada mbyá, e
que não precisa ser cultivada. É preciso estar constantemente atento àquilo que se come e àquilo
que se deixa de comer.
Qualquer mbyá pode sofrer ações das potências invisíveis, sobretudo se se está em estados
específicos, delicados: a recém cura de uma doença, a transição entre a fase da infância e da
adolescência e o nascimento de uma criança no grupo residencial (Silveira, 2011, p. 190), por
exemplo, são situações em que a transformação em animal, a perda da condição humana – ou o
ojepotá –, se torna mais possível de acontecer.
O consumo de carne se relaciona da seguinte maneira com estes “períodos transitórios”. O
nascimento de uma criança e a interdição à carne que se faz neste período, chamado de couvade,
constitui verdadeiro conjunto de regras. Nas primeiras duas semanas, nenhuma carne de animal
pode ser consumida. Nos meses seguintes os animais de grande porte continuam a ser evitados
(Silveira, 2011, p. 205). A carne de aves e de peixes – animais que para os mbyá não possuem
sangue – são reinseridos na dieta nesses meses seguintes ao parto. Outras proibições estão correlatas
a esta de não consumir carne: no primeiro mês, entre os mbyá de Marangatu, os pais do recém-
nascido bebem somente chá ou água amornada. Além disso, não compartilham nem o cachimbo
nem a cuia de chimarrão. Há também a restrição de algumas atividades: o pai fica um tempo inicial
em repouso, e a mãe e o bebê ficam nos primeiros meses sob o cuidado de alguma parenta. A mãe
não cozinha e o bebê não pode nem chegar perto de sentir o cheiro da carne (Silveira, 2011, p. 205).
O cuidado para tornar o corpo limpo e leve para o aprendizado e a prática xamânica também
é um dos momentos em que o consumo de carne é restringido. Para se aprender a ser xamã, busca-
se viver uma vida apoiada nos preceitos mbyá que favoreçam a comunicação com as divindades do
panteão desta etnia. Silveira, no mesmo trecho (2011, p. 215), cita uma fala do indígena Inácio da
Silva para falar sobre o quão pequena é a “iniciação formal ao xamanismo”. Seu Inácio disse ter
recebido orientações a respeito da maneira correta de se fumar o tabaco, as informações necessárias
a respeito das restrições alimentares e direcionamentos quanto à interpretação dos sonhos Depois,
disse Inácio, está tudo com a pessoa, com o aspirante a xamã. As capacidades xamânicas se mantêm
com a continuidade das práticas de sobriedade: o consumo de alimentos do roçado, do tabaco e a
prática da dança. É desse modo que se produz um corpo limpo e leve.
O período de reclusão, marcado pelo inicio da puberdade, pode ser elencado como uma fase
em que a dieta proscreve o consumo da carne dos grandes animais como cateto, queixada e veado.
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Pequenos peixes e pássaros, animais sem sangue, logo são liberados, ainda que para alguns eles
devam ser ingeridos apenas depois de um batismo. Para o consumo nesta fase são recomendados
alimentos vegetais como a mandioca, milho, batata-doce e arroz (Silveira, 2011, p. 194).
Por fim Tempass nos conta que os mbyá não cozinham nem comem carne na floresta (2005,
p. 106). A mata, ainda que algo importantíssimo aos mbyá guarani (e a todas as outras populações
indígenas, é claro), é também o espaço onde moram espíritos ruins, seres malignos, animais
perigosos. O mato desperta medo e cuidado. Cozinhar ou comer carne na mata atrai espíritos ruins.
2.5 – OS ALIMENTOS DO ROÇADO
Falamos até agora a respeito das relações que os mbyá possuem com a carne de caça.
Passaremos agora a falar sobre as relações que estes indígenas estabelecem com os alimentos
provenientes de suas plantações, de seus roçados.
Os mbyá guarani são profundamente associados à agricultura. E tal identificação, nos diz
Nádia Silveira, é ainda mais interessante quando se percebe que os roçados, mais do que garantir a
reprodução biológica dos mbyá, em um sentido estrito, nutricional e energético, garantem, acima de
tudo, a reprodução cosmológica desta etnia (Silveira, 2011, p. 122).
Para entendermos melhor este ponto, é preciso que falemos antes da ideia de “imitação” que
possuem os mbyá guarani. Diz Silveira que a ideia de “imitação” é o modelo de conduta dos mbyá,
“modelo da práxis” (Silveira, 2011, p. 123). Os indígenas desta etnia acreditam que a vida de hoje e
a vida de um passado mítico sofrem mútua inflexão, influência. Tais imagens são chamadas pela
autora de “espaço-tempo mítico” e “espaço-tempo presente”.
Dito isso, segue argumentando Silveira, quando a práxis mbyá imita a práxis das divindades,
estas divindades ficam contentes. E o que se entende por práxis mbyá que imita a práxis divina é a
prática do xamanismo, aquilo que os indígenas descreveram como “ficar lembrando de Nhanderu”.
A agricultura, defende a autora, é também uma atividade que deixa as divindades contentes
(Silveira, 2011, p. 124), é uma prática que está em conformidade com o modo de ser dos mbyá.
Tempass (2005, p. 71-72) transcreve a fala de um indígena Mbyá a respeito do modo como
os Mbyá praticam a agricultura, que embora hoje seja diferente do modo como os brancos plantam,
no passado era igual, uma vez que foram os próprios Mbyá que ensinaram os brancos a plantar.
“O Branco acha que ... acha que o Guarani não sabe plantar. Só porque planta diferente. [...]
Mentira! Isto é uma mentira. [...] Nos plantamos diferente do branco ... mas no passado era igual ...
é que ... vou te contar essa história! ... Antigamente vocês não sabiam plantar. [...] não tinha nem
terra onde plantar. [...] Nós ... nosso deus, deixou os juruá, os brancos, plantarem nos campos. [...]
então nós ficamos com pena do branco, de vocês, e ensinamos como é que planta. Vocês
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aprenderam com nós. Plantavam igualzinho... como nós. [...] Agora é diferente, mas antes era
igualzinho” (Mbyá-Guarani, 06/10/2005)
2.5.1 – O CONCEITO DE TEKOÁ
Sinalizamos alguns parágrafos acima que a prática da agricultura é bastante associada ao
modo de ser dos mbyá guarani. Silveira afirma que a atividade agrícola se relaciona de modo íntimo
com a ideia de “tekoá”, conceito que para nós, brancos, tem o sentido de aldeia, o local onde vivem
os indígenas (Silveira, 2011, p. 124). A imagem que temos de tekoá como uma aldeia explica-se,
escreve Silveira, a partir do argumento de Valéria Assis (Assis, 2006, p. 47 apud Silveira, 2011, p.
124), devido aos recentes usos da palavra nos processos de demarcação de terras indígenas. Embora
entendamos que isto seja positivo, afinal, ao menos os processos de demarcação estão acontecendo,
não devemos perder de vista que o conceito de tekoá é muito mais complexo. É polissêmico, como
pontua Silveira, tendo muitos significados (Silveira, 2011, p. 124).
Mais do que um espaço natural, diz Seu Inácio, indígena da comunidade de Marangatu, o
tekoá abrange “tudo que se vê na aldeia: mata, água, casa e inclusive as pessoas” (Silveira, 2011, p.
124). Levi Pereira (Pereira 2004, p. 46 apud Silveira, 2011, p. 125), que fez trabalho de campo entre
os Kaiowá e Guarani do centro oeste do Brasil, pensa o tekoá mais como um “modelo de relações”
entre as pessoas que como uma “unidade sociológica” com território delimitado. Por fim,
Bartolomeu Melià, importante antropólogo paraguaio, coloca que o sentido etimológico da palavra
tekoá é “el lugar em que vivimos según nuestras costumbres” (Melià, 2008, p. 131 apud Silveira,
2011, p. 124).
2.6 - OS ROÇADOS, O MILHO E A REPRODUÇÃO COSMOLÓGICA
A aldeia de Tekoá Marangatu tem menos de 70 hectares distribuídos em 19 moradias, o que
não é tanta terra assim, de acordo com Nádia Silveira (mais do que isso, é um espaço ínfimo). Há na
aldeia de Marangatu um espaço reservado para a mata nativa, há a escola, o posto de saúde
(construções de uso coletivo) e os pátios de cada conjunto residencial (2011, p. 127). Para plantar,
de fato, há pouco espaço.
Os seguintes alimentos eram encontrados na roça de Seu Augusto, cabeça de uma das
parentelas da aldeia de Marangatu: variedades de feijão, batata doce, melancia, amendoim e vários
tipos de milho, um alimento fundamental para os mbyá guarani (Silveira, 2011, p. 128-129).
Homens e mulheres trabalham na roça entre os mbyá. Silveira pontua que ainda que exista
entre os indígenas tarefas específicas para homens e para mulheres, uma boa parte dos trabalhos do
dia a dia pode ser desempenhada por ambos os sexos (2011, p. 114). Plantar é uma dessas
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atividades, e Silveira sinaliza a íntima ligação – o papel destacado – que as mulheres possuem no
plantio do milho mbyá (2011, p. 118).
Há também em Marangatu a roça coletiva, em que o trabalho é feito na modalidade de
mutirão. Quando Silveira esteve em campo havia feijão e milho plantado nesta roça coletiva, ambas
as sementes advindas dos brancos (2011, p. 128). Uma parte destes roçados é geralmente destinada
à venda e outra é distribuída entre os moradores da aldeia.
A respeito do tamanho das plantações, Silveira argumenta que mesmo que em pequenos
espaços, os moradores de Marangatu ainda plantam suas sementes guarani anualmente, mais para
multiplicá-las que para consumir os produtos resultantes destes plantios (2011, p. 127). Sobre o
modo como isso – o tamanho dos roçados – se relaciona com a ideia de tekoá, Maria Inês Ladeira,
citada por Silveira (Ladeira, 2007, p. 94 apud Silveira, 2011, p. 122) nos fala que é a qualidade e
não a quantidade do tekoá que garante que a reprodução cosmológica aconteça. Mais do que muitas
roças, roças boas, roças bonitas, em acordo com os preceitos mbyá.
Falamos no inicio desta seção que os roçados, além de garantirem a reprodução nutricional e
energética dos mbyá, garantem a reprodução cosmológica desta etnia.
A dimensão cosmológica da agricultura é analisada por Silveira no trabalho principalmente a
partir da relação que os mbyá de Marangatu possuem com o milho. Escreve a autora que o milho é
um alimento de fundamental importância para os mbyá guarani, tendo um alto valor simbólico
(2011, p. 141). O registro de Tempass corrobora esta colocação, pois diz o autor que o milho é o
produto de maior importância na alimentação mbyá (2005, p. 68). Silveira segue nos informando
que além de constituir a base alimentar desta etnia, o milho é uma semente vista pelos indígenas
como um presente dos deuses. As conexões entre “milho” e “gente” foram percebidas por Silveira
em seu trabalho de campo em Marangatu. Mesmo assim, ainda que o cultivo do milho e o cuidado
em fazer com que as crianças cresçam saudáveis sejam práticas percebidas pela autora como
análogas, Silveira afirma nunca ter ouvido esta associação sair da boca de um indígena Mbyá
(Silveira, 2011, p. 224) de um modo literal. Tal conexão, tal associação foi percebida pela
antropóloga enquanto esta se atentava as práticas desta etnia, como o ritual de nominação das
crianças mbyá.
O ritual mbyá de nominação das crianças, chamado “nhemongarai”, evidencia a conexão
entre milho e gente ao associar o “fazer levantar” das crianças com o “fazer levantar” o milho.
Silveira cita a fala do xamã Inácio da Silva (2011, p. 237), que diz que “o milho é como criança,
que quando é pequena se cuida com as mãos”. Tempass (2011, p. 75) também nos fala sobre o
“mandar levantar as plantas” que diziam os mbyá de Itapuã.
Em resposta às questões de Silveira a respeito do milho, os indígenas de Marangatu diziam
que o milho foi deixado aos mbyá pelas divindades (2011, p. 226). O amendoim, a mandioca, a
27
batata doce e o tabaco igualmente o foram, segue a autora, mas não podemos dizer que estes outros
cultivos possuem o mesmo valor e importância que o milho para os mbyá.
O milho entre os mbyá é batizado três vezes. Um primeiro batismo acontece antes de a
semente ser plantada e é chamado de “batismo das sementes”. Um segundo batismo se dá quando as
primeiras espigas são colhidas dos roçados, e é chamado de “batismo dos alimentos”. Por fim há
uma terceira etapa de batismo, que acontece junto ao rito de nominação das crianças de que já
falamos, o “nhemongarai”. É necessário o consumo de um conjunto de preparações de milho
guarani para que o ritual de nominação aconteça. Silveira coloca que a terceira etapa do batismo e o
consumo de milho são práticas “análogas e interdependentes”, isto é, não acontece o batismo sem o
consumo do avaxi ete, o milho guarani verdadeiro.
Cada uma destas etapas de batismo pede uma boa produção, uma boa colheita e, diz
Silveira, pede-se que as famílias mantenham as sementes de milho guarani verdadeiro (2011, p.
230), que elas o guardem.
Os três momentos em que o milho e outros alimentos são batizados envolvem canto e dança
na casa de rezas da comunidade, na “opy”. Ademais, a perpetuação das sementes de milho guarani,
a coordenação do plantio nos roçados, a colheita e o preparo dos alimentos de milho são atividades
ligadas ao feminino, às mulheres mbyá. Todas estas atividades, argumenta Silveira, unem várias
mulheres, produzem “sociabilidade feminina” (2011, p. 228). Tempass coloca que entre os mbyá de
Itapuã todas as mulheres do conjunto residencial cozinhavam e, caso houvesse apenas uma mulher,
ela cozinharia sozinha (2005, p. 131-132). Os homens dizem saber cozinhar, ainda com Tempass, e
de vez em quando até ajudam suas esposas. Mesmo assim, reiteramos que a atividade de cozinhar
está inteiramente ligada à esfera do feminino.
O ciclo ritual do milho – o que se faz antes, o que se faz depois, quais pessoas e grupos ele
põe em relação – tem como aspecto central o cuidado, coloca Silveira (2011, p. 240). O cuidado
recíproco entre os próprios mbyá e entre os mbyá e suas divindades. A conexão que mulheres e
homens estabelecem na produção do ciclo ritual do milho se assemelha à relação estabelecida entre
os mbyá e suas divindades. Valendo-se de uma citação de Bartolomeu Melià, Silveira pontua que “o
ciclo do milho é a epítome da economia de reciprocidade guarani” (Melià, 1989 apud Silveira,
2011, p. 230), isto é, é aonde a reciprocidade mbyá atinge seu ponto máximo. É a partir da
observação do ciclo do milho que vemos como os mbyá se relacionam com suas divindades, como
tais relações estão longe de possuírem um caráter violento. Mais que uma ordem dos mbyá à seus
deuses, ou uma benevolência gratuita destes aos mbyá, no ciclo do milho vemos como a relação se
dá em termos de uma atenção e um cuidado recíproco, uma amistosidade.
Em resumo, a produção social dos rituais do milho, ao mesmo tempo em que estimula a
sociabilidade mbyá do dia a dia, ao colocar homens e mulheres em relação (sem homens e mulheres
28
trabalhando juntos o “nhemongarai” não acontece), coloca os mbyá em relação também com suas
divindades. Em cada plantio, colheita, batismo e ritual de nominação as relações entre os mbyá e
suas divindades se atualizam, se renovam, pois é a partir do ciclo do milho que a reprodução social
acontece. O milho está profundamente associado a identidade mbyá e, não a toa, o principal ritual
realizado pelos indígenas desta etnia coloca em relação o milho, o tabaco e suas divindades.
2.7 – MODOS DE FAZER, PROIBIÇÕES, MODOS DE COMER E DISTRIBUIR
Os alimentos de mercado fazem parte do dia a dia dos moradores de Tekoá Marangatu. Os
mbyá conhecem todas as mercearias e vendas do entorno da aldeia e recorrentemente vão à cidade
em busca de mercados maiores. Também, as sementes plantadas em seus roçados muitas vezes não
são “sementes guarani”, mas sim sementes doadas pela FUNAI.
Ao longo desta apresentação do trabalho de Silveira ficamos sabendo que o que se produz
hoje nos roçados mbyá e o que se caça hoje nas matas das aldeias não é suficiente para garantir a
totalidade da alimentação dos indígenas. Há também, conforme colocado por Silveira, uma
mudança na relação dos povos indígenas no geral com a sociedade nacional, uma proximidade e
uma aproximação. O trabalho de Mártin César Tempass também nos fala disso, sabemos.
O dilema, de acordo com Silveira, é pensar como os mbyá equacionam a produção de um
corpo e de relações sociais que estejam de acordo com os preceitos mbyá, mas isso em um mundo
de intenso contato com os não indígenas. O argumento de Silveira é o de que ocorre uma
“guaranização” dos alimentos de fora, como brevemente já comentamos neste trabalho. Tempass
nos fala das “estratégias” utilizadas pelos mbyá para contornar semelhante situação. Trataremos
deste tema nesta seção.
2.7.1 – MODOS DE FAZER
Produtos como o arroz, o feijão, o macarrão, o óleo, o frango e a erva mate se fazem
diariamente presentes nas residências dos mbyá guarani da aldeia de Marangatu. São estes os
alimentos comumente mais adquiridos nos mercados pelos indígenas desta etnia. O alimento mais
comprado, entretanto, é a farinha de trigo, de acordo com Silveira (2011, p. 142). O fubá – isto é, a
farinha de milho – também era adquirida pelos mbyá, porém em menor quantidade. Diante das
perguntas de Silveira a respeito desse assunto, afinal o milho possui muito mais importância para os
mbyá do que o trigo, os mbyá se mostravam “surpresos e embaraçados” (2011, p. 142-143), conta a
antropóloga.
Intrigada com o assunto, Silveira dedicou uma parte de sua pesquisa ao problema.
Primeiramente a autora nos conta que os mbyá, como já registrado anteriormente, não deixam de
fazer diferença entre sua comida e a comida dos não indígenas, dos brancos. Tempass também
29
percebeu uma série de dicotomias no sistema alimentar mbyá. Comentamos brevemente a
dicotomia estabelecida entre os “alimentos do esqueleto” e os “alimentos da carne e do sangue”.
Outra dicotomia é a entre “orerémbiú”, nossa comida, dos mbyá, e a comida dos outros grupos, dos
brancos (2005, p. 144). A comida como um elemento marcador de identidade já foi tema de outros
trabalhos (não apenas da área de etnologia indígena), como a pesquisa de doutoramento de Janine
Collaço, “Saberes e Memórias: cozinha italiana e construção identitária em São Paulo” (Collaço,
2009), e o artigo de Peter Fry, “Feijoada e soul food: notas sobre manipulação de símbolos étnicos e
nacionais” (Fry, 1977).
Dito isso, prossegue Silveira informando que no dia a dia da aldeia as preparações culinárias
dos mbyá não se parecem com as preparações culinárias que nós, não indígenas, fazemos, ainda que
eles utilizem os mesmos ingredientes. O modo de preparo segue um conjunto de técnicas culinárias
mbyá, elemento que se liga intimamente ao que a autora chamou de “transmissão e circulação dos
saberes culinários”, que ocorre entre as mulheres. Silveira coloca que os mbyá de Marangatu fazem
parte de uma rede de relações que agrupa não apenas diversas aldeias mbyá, mas também alguns
não indígenas da região. Os contatos entre as aldeias – com os parentes, amigos, entre as lideranças
– faz com que muitas coisas circulem, como os saberes culinários.
O modo como as mulheres mbyá aprendem a cozinhar assemelha-se bastante ao modo de
transmissão de qualquer outro saber entre os mbyá guarani, e provavelmente em muitas outras
sociedades indígenas. É necessário que aquela que aspire a cozinheira tenha interesse no assunto,
tenha dedicação. O mesmo vale para o aspirante a caçador, o aspirante a xamã, a artesão etc.
A indígena Iliana conta que começou a cozinhar com mais ou menos 11 anos de idade,
quando um dia tentou fazer um pão de trigo, depois de muito prestar atenção em como sua avó
fazia. Ao começar a misturar água morna e fermento em um recipiente, Iliana conta que sua avó
chegou e começou a explicar a ela o que devia ser feito, qual ingrediente devia ser adicionado em
qual momento, em qual quantidade etc (2011, p. 147-148). O aprendizado sob os olhos da avó
durou aproximadamente duas semanas, quando esta percebeu que Iliana já sabia fazer pão. O modo
como Iliana prepara o pão caseiro é diferente do modo como sua mãe o prepara. Por ter aprendido a
fazer com sua avó, sua maneira de fazer é diferente da de sua mãe. Silveira sinaliza este fato para
nos dizer que ainda que seja mais comum que as mulheres aprendam a cozinhar com sua mãe ou
com sua avó, o aprendizado da culinária mbyá pode acontecer a partir de várias outras relações, não
dependendo exclusivamente do vínculo consanguíneo. Iliana disse ter aprendido a cozinhar com sua
avó, sua mãe, sua sogra e com a mãe de seu segundo marido, por exemplo.
Já a mãe de Iliana, por sua vez, chamada Dona Tereza, conta a Silveira que aprendeu alguma
coisa sobre a culinária mbyá com sua mãe e um pouco com sua avó (2011, p. 149). O ponto da
história, porém, é que Dona Tereza aprendeu bastante sozinha também, através da tentativa e do
30
erro, isto é, da experimentação. Sua mãe era uma requisitada parteira na região de Ibirama, Vale do
Itajaí, em Santa Catarina, e a sua avó morreu quando Dona Tereza era ainda muito jovem. Deste
modo, era ela quem ficava responsável, desde os 10 anos de idade, pela preparação das refeições
nas ausências da mãe. Fato interessante também é que poucos anos mais tarde Dona Tereza
começou a trabalhar com os colonos e, neste período, aprendeu com uma mulher branca a preparar
algumas iguarias “de branco” como o pão caseiro, bolos e outros alimentos de trigo.
A construção deste “repertório culinário”, argumenta por fim Silveira (2011, p. 150), não
pode ser vista como algo limitado e imutável. As mulheres, à medida que circulam nas redes de
relações em que os mbyá estão inseridos – com outras aldeias, outros grupos indígenas e também
com os não indígenas –, vão aprendendo novas preparações, novas formas de fazer as receitas já
conhecidas, prestam atenção a detalhes, ensinam, aprendem. Compartilham, enfim, experiências.
2.7.2 – PREPARAÇÕES DE MILHO E PREPARAÇÕES DE TRIGO
O milho, ainda que seja um alimento com um significado cosmologicamente relevante para
os mbyá, é muito pouco consumido nas casas ao longo do ano, coloca Silveira (2011, p. 151). À
exceção do período de colheita, em que obviamente as preparações de milho abundam, ao longo do
ano o trigo está presente em grande parte das receitas. Sobre a relação entre os dois alimentos,
Silveira coloca, inicialmente, que uma preparação de milho nunca é misturada a uma preparação de
trigo, assim como não se mistura a carne de caça com as carnes provenientes da pesca.
Com o objetivo de traçar um paralelo tanto entre o milho e o trigo quanto entre os mbyá e os
brancos, Silveira dedicou algumas páginas de seu trabalho a comentar as preparações feitas de
milho e as preparações feitas de trigo. Em uma tabela (2011, p.152), listou 11 preparações. São elas:
1.mbyta (milho)
2. kaguijy (milho)
3. mbaipy (milho)
4. mbeju (milho)
5. mbojape (milho)
6. mbojape (trigo)
7. jopara (feijão e milho)
8. hu’i (milho e amendoim)
9. rora (milho)
10. reviro (trigo)
11. xipa (trigo)
31
Cada uma destas comidas tem uma técnica específica de preparo, um tipo particular de
cocção e um produto final. Comentaremos a fabricação dos números 1. mbyta (milho) e 10. revíro
(trigo). Escolhemos estes alimentos porque eles são feitos ou exclusivamente de farinha de milho,
como no caso do mbyta, ou apenas de trigo, no caso do reviro.
O modo como vou apresentar estas preparações está organizado de modo semelhante ao da
tabela colocada por Silveira em seu capítulo 4 (2011, p. 152).
1. mbyta (milho)
O mbyta, de acordo com Silveira, foi preparado em algumas casas de Marangatu
principalmente no mês de fevereiro, em que ocorreu a colheita da roça coletiva (2011, p. 159). O
resultado final desta preparação foi descrito pela antropóloga como bolo ou pamonha.
Para preparar esta receita é necessário que uma mulher descasque e limpe o milho verde
recém colhido. Tudo é feito com as mãos, sem o auxílio de objetos cortantes. É assim que a colheita
se procede e é assim que acontece no preparo do mbyta. O milho, depois de descascado e limpo, é
ralado em uma meia lata com pregos, espécie de ralador improvisado.
A massa de milho ralada é então embalada nas folhas de uma árvore chamada caeté. O
trabalho de embalar esta massa, escreve Silveira, requer cuidado para que as folhas desta árvore não
se rompam. É preciso embrulhar e amarrar delicadamente, “quebrar delicadamente as nervuras”
(2011, p. 160). Uma vez esta etapa concluída, coloca-se o mbyta sobre as cinzas do fogo de chão do
conjunto residencial.
Dona Tereza, mencionada alguns parágrafos acima, disse a Silveira que o mbyta feito de
milho guarani, axavi ete, é mais gostoso que o comumente feito das sementes híbridas, doadas pela
FUNAI ou provenientes de outros lugares do mundo dos brancos (2011, p.160). O mbyta com
milho guarani fica mais doce, conclui Dona Tereza, e dependendo da variedade usada ela fica de
branco, avermelhado ou arroxeado.
Técnica utilizada na preparação: descascar, limpar e ralar o milho. Embalar o milho
ralado em embrulho de caeté.
Tipo de transformação empregada na preparação: assado sob as cinzas do fogo de chão
do conjunto residencial ou dentro de uma panela, com cinzas colocadas em cima e em baixo do
recipiente
Produto final: bolo ou pamonha
32
10. revíro (trigo)
O revíro é feito da mistura de farinha de trigo hidratada e frita em uma boa quantidade de
óleo.
Técnica utilizada na preparação: adição de água morna, massa de tipo consistente e não
homogênea
Tipo de transformação empregada na preparação: assar sob o fogo com o auxílio de uma
panela
Produto final: variedade de farofa
O argumento de Silveira, de que os alimentos em que o trigo é o ingrediente principal
acabam tornando-se semelhantes às comidas preparadas com milho devido ao modo de feitura
(2011, p. 170-171), torna-se agora bastante claro. Perceber que os produtos culinários mbyá que
utilizam trigo não se parecem em nada com a culinária da região, por fim, acaba sendo bastante
fácil, sugere Silveira, afinal, um bolinho de trigo enrolado em uma folha de caeté e assado sobre as
brasas do fogo do conjunto residencial não lembra em nada a comida regional não indígena.
O nome dos alimentos entre os mbyá, de acordo com Silveira, se refere ao modo como estas
comidas são preparadas (2011, p. 163). Tenho argumentado, baseado em Silveira, que a maneira
pela qual se prepara os alimentos produz gradações de uma mesma culinária mbyá, a depender se as
preparações levam ou não ingredientes mbyá, pelo modo de preparo, pelos utensílios que se utiliza
etc. Os nomes, deste modo, parecem seguir a marcação feita na comida pelo modo de preparo.
A respeito dos utensílios, Tempass coloca que os mbyá de Itapuã possuem poucos utensílios
culinários (2005, p. 137). Os que existem, segue dizendo, muitas vezes são improvisados: latas de
óleo são perfuradas com pregos e viram raladores, facas servem como garfos, panelas como pratos e
pedaços de madeira como colher para mexer as preparações. O uso que os indígenas fazem destes
utensílios, também, é bastante distinto do uso que nós não indígenas fazemos. Os talheres são
usados somente quando indispensáveis. O mesmo vale para os pratos, para as panelas de alumínio,
os utensílios de plástico etc. Sobre os hábitos à mesa, Tempass fala que para o caso dos mbyá isso é
uma “bobagem”, uma vez que estes indígenas não se alimentam sentados em cadeiras ao redor de
uma mesa.
Não menos importante, acerca deste assunto Tempass conclui que quando os não indígenas
se fazem presentes nas refeições com os mbyá, estes últimos se esforçam para que a refeição
33
aconteça ao estilo dos brancos. Portas improvisadas viram mesas, e Tempass nos conta que, na
medida em que foi se aproximando dos mbyá de Itapuã, mais e mais utensílios provenientes dos não
indígenas eram trazidos às refeições.
2.7.3 – MODOS DE CONSUMO E DISTRIBUIÇÃO
Em uma primeira seção deste capítulo apresentamos outra contribuição de Nádia Heusi
Silveira ao campo da etnologia indígena, os “vetores da comensalidade” que a autora chamou de
“vetor centrípeto” e “vetor centrífugo”. O modo como se come no conjunto residencial, entre
parentes, e o modo como se come entre pessoas de outras parentelas e com a alteridade máxima, os
não indígenas, produz diferentes efeitos.
Primeiramente, o que aqui chamamos de “modos de consumo e distribuição” se refere ao
modo “como se come” e “como se partilham os alimentos” entre os mbyá. Isto é, um prestar
atenção a como se come diariamente nos conjuntos residenciais e como se come em eventos
coletivos (mutirões e festas), um se atentar ao sentido das trocas alimentares (por quais mãos e por
quais lugares os alimentos passam). É pressuposto do trabalho de Silveira, sabemos, o entendimento
de que a alimentação é uma dimensão que nos dá boas pistas a respeito de como se organiza uma
determinada experiência social. Pensar nas rotinas alimentares é por isso importante.
Por fim, lembremos. Quando o consumo alimentar orienta-se para o conjunto residencial, de
parentes próximos, ele dá abertura às preferências individuais de cada membro do conjunto
residencial, aos gostos de cada pessoa, ao mesmo tempo em que garante sua diferença em relação a
outros conjuntos residenciais e parentelas. Come-se não necessariamente ao mesmo tempo e nem
sempre se come a mesma coisa.
Por sua vez, quando o consumo orienta-se para fora do conjunto de pessoas mais próximas,
ocorre um movimento no sentido de produzir semelhança entre grupos que são minimamente
diferentes, como as outras parentelas, e grupos cuja alteridade é máxima, como os não indígenas.
Come-se da mesma comida e ao mesmo tempo.
O vetor centrípeto da comensalidade pode ser verificado em operação na descrição da autora
da rotina da residência de um dos casais principais de sua etnografia, os indígenas Augusto e Maria.
Enquanto esteve hospedada junto aos dois, nos conta Silveira (2011, p. 77), era raro o dia em que
alguém de outro conjunto residencial não passasse pela casa do casal para fazer alguma refeição.
Quando Francisca, nora do casal, começava a fazer a refeição que seria consumida pelos nove
moradores da residência, outras pessoas já se encontravam em torno do fogo, se aquecendo ou
tomando um café. Quem passasse no momento que Francisca estava servindo as pessoas ou que
estas pessoas já estivessem comendo também era convidado a comer: um filho, um neto. Silveira
34
sinaliza que as refeições do conjunto residencial não acontecem necessariamente ao mesmo tempo
e, quando disponível, há grande interesse daquela que cozinha em satisfazer gostos individuais.
O que Silveira nos apresenta como vetor centrífugo da comensalidade foi percebido pela
autora nas festas ao “estilo juruá” e nos mutirões, onde acontecem também refeições coletivas.
Estas ocasiões são marcadas pelo modo como a comensalidade acontece: diferentemente da rotina
das casas, nestes eventos todos comem de uma mesma comida e ao mesmo tempo. Nas festas que
acontecem em Marangatu, estilo que os indígenas se referem como sendo coisa de branco, são
consumidos alimentos como maionese, churrasco, refrigerantes, cerveja e vinho.
Há um coral10 na aldeia de Marangatu, coordenado à época do trabalho de campo de Silveira
pelo indígena Hugo. O grupo de canto, conta Silveira, recebia propostas de apresentação conforme
os moradores da Marangatu estabeleciam contato com os não indígenas. Estes contatos existiam,
eram frequentes, e vez ou outra o grupo viajava aos municípios locais para se apresentar (2011, p.
135). Nestas viagens as regras de comensalidade, diz a autora, ganharam uma tonalidade diferente:
quem comprava um lanche, comia sozinho; quem, no contexto da aldeia, praticava a abstinência
alimentar noturna, fora da aldeia não necessariamente a praticava.
Ao prestar atenção no modo como os alimentos são preparados, consumidos e distribuídos,
Silveira nos chama a atenção para a relação entre a alimentação e os atributos étnicos dos Mbyá
Guarani. Vimos que a produção dos alimentos dentro da aldeia, ainda que com ingredientes
forâneos, em nada se parece com os alimentos produzidos pelos moradores não indígenas da região.
Também registra Silveira que as atitudes dos Mbyá de Marangatu em relação ao consumo e a
distribuição dos alimentos se altera em diversas situações: de acordo com a presença ou não de
semelhantes e conforme o local que se está, se dentro ou se fora da aldeia.
Tempass, por sua vez, ao nos falar das inúmeras dicotomias produzidas pelos Mbyá de
Itamarã, dá destaque a divisão entre “nossa comida” (orerembiú) e a “comida dos outros”, e sinaliza
que este é um dos sinais diacríticos acionados pelos indígenas para marcar sua identidade étnica
frente aos não indígenas. Os utensílios que são utilizados no preparo e no consumo dos alimentos,
de acordo com o autor, demonstram um esforço de aproximação dos indígenas à maneira como nós
não indígenas os produzimos e os consumimos. Tal esforço nessa direção, por fim, demonstra o que
é que os indígenas entendem como sendo característico deles, e o que é que eles entendem como
sendo característico de nós, não-indígenas.
10 Silveira argumenta que o coral, no contexto da aldeia, expressa as relações entre as parentelas mais constituídas
(Hugo casado com uma neta do casal cabeça de parentela Augusto da Silva e Maria Guimarães); fora dela, o coral
expressa a relação que os mbyá de Marangatu, no geral, estabelecem com a alteridade não indígena, fazendo com que a
“cultura” mbyá seja visibilizada, algo que Silveira enxerga como uma estratégia política diante dos avanços
constitucionais pós 1988 (Silveira, 2011, p. 135-136).
35
Ideia importante neste capítulo é a de que a vida das populações indígenas muda com o
tempo. Quando concordamos com os autores que há uma maneira indígena de se fazer as coisas,
não estamos querendo defender que as populações indígenas continuam exatamente as mesmas,
como se fossem avessas às mudanças. Ao contrário, queremos sinalizar que a mudança faz parte da
vida de qualquer coletivo humano, e não é por isso que os grupos ou pessoas deixam de ser quem
são.
36
CAPÍTULO 3 – TRANSFORMAÇÕES: POR UMA POLÍTICA DA ALIMENTAÇÃO
Para o caso dos Aché, essa discussão da mudança é bastante válida. Desde a saída da floresta
a maneira de viver dos Aché se transformou bastante. Conforme sinaliza Thompson (2013, p. 1), a
eleição de lideranças atualmente ocorre de maneira formal e desde há muito que os indígenas são
adeptos do cristianismo. Além disso, a caça e a coleta, outrora principal atividade de produção
masculina e feminina, célebre em todos os trabalhos mais antigos sobre os Aché Guayaki, ocupa
hoje pouco espaço dentro do dia a dia das pessoas.
A agricultura à maneira Mbyá, por sua vez, que os Aché não praticavam – ou que haviam
esquecido, como argumenta Clastres –, hoje se constitui como uma atividade bastante importante
dentro das comunidades. As chácaras11, como dizem as pessoas, constituem grande parte do terreno
das aldeias e tomam muito da vida dos indígenas. Seu tempo, sua dedicação, seu trabalho. Cada
conjunto residencial possui uma ou mais chácaras onde se planta algo para o consumo e há também
a chácara coletiva, comunitária.
Ainda que não a desenvolvessem, a existência da agricultura obviamente não era
desconhecida pelos Aché. De acordo com Pierre Clastres, durante séculos os Aché roubaram
mandioca e milho das plantações dos mbyá guarani e, posteriormente, dos cultivos dos brancos
(1995, p. 87). Quando questionados por Clastres acerca da agricultura, em 1962, os indígenas
responderam “beeru rõ wyaraia wate rekopa; ure Aché reko iã”, traduzido para o português como
“são os brancos que possuem a mandioca e o milho, nós mesmos Aché não temos nada” (1995, p.
87).
Pierre Clastres enxerga o desconhecimento da agricultura pelos Aché de pelo menos três
pontos de vista, complementares, sequentes. Primeiro em termos de uma “renúncia”, explicada pelo
autor como resultado de um “choque de civilizações desiguais”. Clastres argumenta que encontros
entre os Aché e os mbyá ao longo dos séculos fizeram com que cada vez mais os Aché, sempre em
menor número, abandonassem hábitos minimamente regulares como a agricultura, pois os conflitos
com os mbyá – estes sempre existindo em maior número – não permitiam tais práticas (1995, p. 73-
74). Indo cada vez mais em direção à floresta densa, os Aché teriam por este motivo renunciado a
prática agrícola em algum momento de sua história.
Uma vez apresentada esta ideia de “renúncia da agricultura”, eis outro ponto de vista
adotado pelo autor da “Crônica dos índios Guayaki”: o “do esquecimento” da atividade agrícola.
Em 1962, ano em que Pierre Clastres ficou entre os Aché Gatu, o verbo “plantar” não constava no
vocabulário dos indígenas, e não existia também nenhuma lembrança de atividade agrícola
11 No Brasil chamamos as “chácaras” de “roça”. Em aché as “chácaras” são chamadas de “YVY TIRONGI” e em
guarani se diz “KOKUE”.
37
realizada por seus ancestrais. Por fim, Clastres nos fala de um terceiro ponto de vista: é o da ideia
de “regressão cultural” (1995, p. 87). .
A agricultura que pude acompanhar em Cerro Moroti foi a pequena atividade agrícola,
desempenhada por homens – embora nem todos – do conjunto residencial. Poucos homens
trabalhando em pequenos pedaços de terra.
Não consegui ao longo dos dias em campo acompanhar regularmente algum indígena
trabalhando na chácara. Os homens com quem conversei sobre esse assunto, os mesmos que me
levaram para caminhar sobre as chácaras, nunca deram espaço para que eu os acompanhasse ao
trabalho, ainda que fosse para ficar de longe, observando. Falava-se sobre o trabalho nas chácaras,
mostrava-se as chácaras, mas não se acompanhava os homens trabalhando nestes espaços. Cornelio
Mbykagi levou a conversa para outros rumos todas as vezes em que cheguei no assunto e German
Pachagi, esposo da filha do cacique Eloy, disse que a roça de sua família estava feia naquele
momento e que me “mostraria” a de outro conjunto residencial. Os exemplos abundam. Mesmo
assim, conforme já registrado, pude conversar com os Aché sobre o trabalho na chácara, pude
caminhar com eles entre elas, fiz perguntas, observei os homens passando em horários específicos,
trajando um determinado tipo de roupa, prestei atenção aos dias de descanso, aos dias em que as
pessoas que mais consegui me aproximar iam ou não trabalhar etc.
3.1 – UMA OPOSIÇÃO FUNDAMENTAL
O argumento principal de “O arco e o cesto”, trabalho de Pierre Clastres publicado em 1966,
é o de que existe uma oposição que “organiza e domina” a vida dos Aché. Trata-se da divisão entre
homens e mulheres, que Clastres apresenta como polos opostos e complementares. Dizendo de
outra maneira, homens e mulheres, entre os Aché, formam “dois campos” (Clastres, 2003, p. 119)
em que cada sexo desempenha uma determinada atividade, realiza uma tarefa diferente. Rotinas
distintas, mas complementares. Os homens caçam e as mulheres coletam. O arco, para os homens, e
o cesto, para as mulheres. Cada um destes símbolos representa um lado da oposição, e não por
menos Clastres os escolheu para nome de seu texto.
Ao falar sobre o arco e o cesto, os objetos representativos da oposição, Clastres registra que
as mulheres não tocavam nos arcos dos homens e os homens não encostavam nos cestos da
mulheres. Arcos e cestos eram carregador por seus donos aonde quer que estes fossem, e eram
queimados junto ao corpo de seu proprietário no momento do funeral. Homens e mulheres,
caçadores e coletoras, arco e cesto.
O modo como a agricultura acontece entre os Aché segue algumas direções, assim como o
seguem as eventuais caçadas e saídas para coleta. Tal direção é esta apresentada por Clastres, a
38
oposição entre “arco” e “cesto”. Este trabalho de Clastres nos ajuda a entender alguns aspectos da
experiência agrícola vivida pelos Aché.
Entre os Aché são os homens que plantam, que colhem, e são as mulheres que recebem o
alimento e o preparam. As mulheres vão às chácaras apenas para carpir, e jamais vi um homem
arrumar as panelas para começar a cozinhar. Lembremos que os Aché são uma parcialidade
Guarani, e que entre os mbyá, por exemplo, homens e mulheres trabalham nos roçados. Silveira
(2012, p. 114) sinaliza que ainda que existam entre os mbyá tarefas específicas para homens e
tarefas específicas para mulheres, grande parte das atividades pode ser desempenhada por homens e
mulheres, e às vezes ao mesmo tempo. Clastres registra (2003, p. 119) que o mesmo não vale para
os Aché, isto é, não existe nenhuma atividade que seja desempenhada conjuntamente por homens e
mulheres.
Certa vez ouvi uma história de Eva-Maria Roessler, doutoranda em linguística pela
UNICAMP, que de alguma maneira trata deste tema. Quando Fernando Anegi, Ricardo
Mbekrorongi e um terceiro indígena (de quem Eva não se recorda o nome) foram a Campinas, em
razão do tratamento hospitalar de Anegi, Eva-Maria os recebeu em sua casa. Cozinhou, lavou e
passou roupa para os três indígenas durante algum tempo, até que a situação se tornou insustentável.
Quando os chamou para falar sobre o assunto, os convidando a pensarem em uma solução conjunta,
Eva-Maria conta que os três indígenas passaram a noite conversando sobre o tema. Na manhã
seguinte, após horas de reflexão, comunicaram a Eva que trariam uma mulher Aché para Campinas,
cuja vinda poria fim ao problema.
Conversei sobre as atividades na chácara com várias pessoas ao longo da estadia em Cerro
Moroti. Em alguns pontos dessas conversas os assuntos me pareceram como dado, como se
estivéssemos falando de coisas comuns. Em outras conversas, nem tanto. Ao passo que os homens
trabalham na chácara, as mulheres ficam em casa, também trabalhando: cuidam dos filhos,
cozinham. A atividade feminina não é considerada menos trabalho por isso. Francisco Mbepegi
sinalizou várias vezes o quanto “las mujeres aché son muy trabajadoras” e Silveira (2012, p. 112),
fazendo sua reflexão a partir de ideias de Joanna Overing, entende que o trabalho de cozinhar a
produção da chácara é tão trabalho quanto plantar as sementes.
3.3 – O TRABALHO NA CHÁCARA
As pessoas acordam cedo em Cerro Moroti (ver ANEXO B). Por volta das 6h da manhã já é
possível ver algumas luzes surgindo nas residências. Inicialmente os moradores não saem de suas
casas, fazem isso somente quando o dia mostra que amanheceu de verdade. Uma ou outra pessoa
circula pela comunidade, um ou outro barulho pode ser percebido, mas o silêncio é predominante
nessas primeiras horas da manhã.
39
O trabalho na chácara também é algo que começa cedo na aldeia. Excetuando-se os dias de
chuva, em que não se vai à chácara, às 7h da manhã as atividades já começam. Passam os homens,
vestindo camisas de manga longa, calças e meias compridas, boné e calçado fechado, carregando
uma enxada ou outro instrumento utilizado nas atividades12. A empreitada de trabalho se estende até
aproximadamente 9h da manhã, quando acontece uma pausa para o descanso e para o terere. O
momento de descanso é realizado na própria terra onde se está trabalhando, os indígenas não voltam
para casa. Ficam na maioria das vezes em baixo de alguma árvore, na sombra, tomando terere e
conversando.
Seja uma garrafa pet simples ou uma garrafa térmica, um copo comum ou uma cuia, o terere
acompanha as pessoas de Cerro Moroti – e do Paraguai em geral – aonde quer que elas estejam.
Pode-se pensar: nada mais justo que tomar terere, uma bebida gelada, no intervalo do trabalho na
chácara, um local quente. Mas não é bem assim. Alejo Ojeda trabalhou durante alguns anos em
fazendas de soja na cidade paraguaia de Santa Rita, região onde vivem muitos brasileiros. O café,
ao invés do terere, era bastante consumido nos intervalos de trabalho, e consumido por paraguaios,
indígenas e brasileiros. Alejo ficava sem entender: por que tomar uma bebida quente em um
ambiente como aquele?
Após esta pausa, as atividades retornam e seguem até aproximadamente 11h. Pouco antes do
horário de almoço é possível ver os homens voltando das chácaras, cobertos por roupas compridas.
Camisas de manga longa, calças e bonés. Mesmo assim os indígenas voltam vermelhos de tanto sol.
É entre esse horário e o horário de retorno que eles se alimentam do que suas esposas, mães ou
irmãs prepararam. Às 14h, aproximadamente, voltam ao trabalho, fazem mais uma pausa para o
descanso e terere, e a jornada tem fim perto das 17h.
As chácaras geralmente se localizam atrás das residências, mas vi casos de pessoas que
possuem suas chácaras em outros locais da comunidade. Era esse o caso de Francisco, que não tinha
a chácara atrás de casa porque era ali que os bois da comunidade ficavam, em um curral. As
chácaras da família de Eloy se encontravam atrás de sua residência, bem como a da família de
Manuel. A comunidade de Cerro Moroti possui 1358 alqueires de tamanho. Uma parte desse terreno
concentra o campo de futebol, a escola, o posto de saúde e as residências ao redor. Uma segunda
parte é formada pelas chácaras, mais ou menos próximas das residências. E uma terceira parte é
constituída pelos espaços onde não há habitação nem cultivos. Trata-se da pequena área de mata
ciliar, de uma área de declive que leva ao rio que passa por Cerro Moroti, e por um trecho de 15
minutos de caminhada, que se inicia do outro lado do rio e que leva até a cerca que marca o fim da
área da comunidade.
12 A produção em Cerro Moroti é inteiramente manual: não há máquinas, caminhões. Desde agosto de 2015 a
comunidade conta com dois carros de boi, comprados com o dinheiro do PRODERS.
40
O tamanho das chácaras, portanto, não é muito. Seu limite é o trabalho de uma família: às
vezes apenas uma pessoa dessa família dá conta de todo esse trabalho.
Na casa de Cornelio Mbykagi, ainda que a família seja grande (oito pessoas), é seu pai,
Dionicio Tykurangi, e um de seus irmãos, Napoleon Wachupurangi, que trabalham na chácara. Seus
outros irmãos ou moram fora, ou já são casados com outras mulheres, tendo portanto sua própria
chácara para cuidar. Mbykagi estava cursando uma faculdade em 2015, ficando grande parte do
tempo fora de Cerro Moroti, sem portanto contribuir com a atividade agrícola realizada por sua
família.
A respeito da residência de Francisco Mbepegi, uma situação interessante acontece.
Francisco é professor e coordenador da escola da comunidade de Cerro Moroti. Relata que trabalha
na chácara quando “tem tempo”, quando pode, mas registra que são seus filhos as pessoas que
desempenham a atividade agrícola em sua família. A regularidade do trabalho na chácara da família
de Francisco certamente é diferente da de outras famílias. Quando cheguei a Cerro Moroti, em
dezembro de 2015, Santiago Mbejyvagi, o segundo filho de Francisco, acabara de voltar de uma
temporada de três meses de trabalho no chaco paraguaio. Reinaldo Urugi, seu filho mais velho, já
há três anos passava os cinco dias úteis da semana na cidade de San Joaquin, cursando o ensino
médio, o que o impossibilitava de realizar trabalho na chácara nos dias de semana. Francisco
comprava em mercados quase tudo o que consumia em sua casa.
A atividade agrícola realizada pela família de Eloy Chachugi pode ser apresentada de quatro
maneiras, a depender de quem for o interlocutor e qual for o momento da conversa. Quando pela
primeira vez perguntei a Eloy sobre este assunto, ele respondeu que era ele mesmo quem trabalhava
em sua chácara, que plantava e que colhia. Em outra ocasião, no mesmo dia, fiz a mesma pergunta a
Suni Nambugi e German Pachagi, filha e esposo da filha de Eloy, e ambos responderam que não era
Eloy que trabalhava na chácara da família Miranda, mas sim German, que desempenhava as
funções de plantar, cuidar e colher. Dias mais tarde, porém, tomando terere com German, por outra
vez fiz essa pergunta obtive uma terceira resposta: o trabalho na chácara era realizado por German e
Timoteo Vachagi, irmão de Eloy e Ana Pikugi, esposa de Francisco. As chácaras da família de
Timoteo e de Eloy se localizam lado a lado. Dias mais tarde, ligando alguns pontos, percebi que
German também estivera por três meses trabalhando no chaco, junto de Reinaldo. Nos últimos
meses, portanto, era Timoteo quem estava desenvolvendo atividade agrícola nas duas chácaras.
Pude perceber a partir das conversas que tive e dos alimentos que consumi junto a estas e
outras famílias que o que se consome na aldeia não varia em grande quantidade. Planta-se mais ou
menos as mesmas coisas, como a mandioca, o poroto e alguma espécie de fruta (banana, abacaxi,
melancia, melão...). Parece-me que grande parte das famílias cultivam a mandioca e o poroto, pelo
menos. Em uma chácara que Mbykagi me levou estavam plantados milho, melancia, almeirão,
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mandioca, batata e poroto. Nas chácaras da família de Eloy estavam plantados apenas feijões.
Nenhum outro cultivo. Mbepegi, uma vez questionado sobre os cultivos em Cerro Moroti, falou
sobre plantações de algodão, banana e cana de açúcar.
Em razão de meu primeiro interesse de estudo ter sido o PRODERS, política pública
paraguaia que concedeu a algumas populações indígenas dinheiro para a compra e realização de
uma série de melhorias nas aldeias, conversei bastante com Francisco a respeito deste tema. Em
uma dessas oportunidades, em sua casa, Ana Pikugi – sua breko, esposa – estava sentada à mesa
conosco. Naquele dia fiquei sabendo que com o dinheiro do PRODERS as pessoas de Cerro Moroti
compraram também sementes de cultivos alimentares, de árvores nativas e de árvores frutíferas não
nativas. Naquele momento da conversa, ainda que minhas questões fossem direcionadas13 a
Francisco, o próprio precisou consultar Ana todas as vezes que eu perguntei a respeito das tais
sementes que a comunidade havia adquirido. As árvores nativas, de acordo com Ana Pikugi, foram
o tajy, o guajayvi, o yvyrapytã, o alecrin e o cedro. Sementes de palmeira, planta conhecida pelos
Aché há muitíssimo tempo14, e de manga, também foram adquiridas. Perguntada, Ana falou também
das árvores frutíferas nativas: o pacuri, o guariju, o auatiku, o ingá e a guabira.
De acordo com Francisco, a maior parte do que se planta em Cerro Moroti é para consumo
dos próprios indígenas. O que não é consumido é guardado em forma de semente, para que se tenha
o cultivo do próximo período. E uma pequena parte das plantações é destinada a venda para os
agricultores locais, do entorno de Cerro Moroti. O comércio com estes agricultores já acontece há
algum tempo, segundo relata Francisco. Acredito que sobretudo o algodão seja comercializado com
estas pessoas.
3.4 – OS ALIMENTOS DE MERCADO
Como para o caso dos mbyá de Marangatu e de Itapuã de quem nos fala Silveira (2012) e
Tempass (2005), não apenas os alimentos dos cultivos compõem a alimentação dos Aché de Cerro
Moroti. A estes se somam os adquiridos nas vendas que existem na comunidade e nas pequenas
mercearias e mercados que existem no entorno da aldeia, variando de alguns a muitos quilômetros
de distância.
O consumo de arroz e macarrão, amplamente disseminado na comunidade, por exemplo, se
dá basicamente porque os indígenas adquirem estes alimentos nas vendas da comunidade. O mesmo
vale para a carne de frango, de longe a carne mais consumida15, que é comprada nos mercados.
13 Eu nunca passei um tempo sozinho com Ana e quase nunca conversei com ela. Barreira de gênero, de idioma
(Ana fala muito pouco espanhol)...
14 Em razão do palmito, é claro, mas também do “cultivo” de larvas no tronco das palmeiras, o buchu.
15 A primeira refeição que fiz com Francisco em fevereiro de 2015 continha frango. Nessa ocasião, fui eu que
comprei o frango, a pedido de Francisco. Em novembro do mesmo ano, certa vez Eloy comprou um pedaço de
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Embora exista criação de galinhas na comunidade, as galinhas de Cerro Moroti são “galinhas
ponederas”, como fala Manuel.
Questionado a respeito da origem dos alimentos em sua residência, Francisco Mbepegi disse
que em Cerro Moroti as coisas acontecem como em outros lugares: uma parte do que se consome
vem das chácaras e outra parte vem da compra em mercados.
(nota de campo do dia 19 de novembro de 2015)
“...perguntei a Francisco sobre os alimentos de sua casa, se eram comprados ou se todos vinham
da chácara. [...] ele respondeu, levemente alterado, que era como em outros lugares: se comprava
alguns, como arroz e macarrão, e se tirava outros da chácara. [...] em seguida disse o mesmo que
em fevereiro, que não se comia três vezes ao dia em Cerro Moroti... as vezes uma, as vezes duas, as
vezes nada por um ou dois dias, mas tudo que tem é dividido. [...] ele disse que era algo diferente
dos não indígenas, pois os não indígenas compram comida apenas para a própria família,
enquanto que os indígenas dividiam o que tinham. Francisco disse que essa questão da
alimentação é algo a ser investigado por nós antropólogos. [...] ele também fez questão de dizer
que não é por falta de trabalho que não se tem alimento, mas é que o trabalho na chácara não dá,
as vezes... é preciso esperar... mas tudo é dividido sempre!...”
Em apenas uma pergunta obtive uma resposta definitiva e ao mesmo tempo uma crítica à
maneira como nós, não indígenas, nos relacionamentos com as pessoas que são do “nosso mundo”.
Mbepegi estava me dizendo aquilo que ele percebe como diferente em nós, brancos, em relação a
ele, sua maneira de encarar as coisas. A maneira dos indígenas, dos Aché.
Realizei várias refeições com Francisco, dentro e fora da aldeia, com mais ou menos
pessoas. Por vezes Mbepegi falou dessas refeições como “compartir”, algo que sempre me pareceu
bastante importante, com um sentido específico. Mais que um almoço ou uma janta, era comer
junto. Silveira sinaliza que comer, para os mbyá guarani, não é algo para se fazer sozinho (2012, p.
77). Mesmo que apenas uma pessoa esteja comendo, relata a autora, esta pessoa está sempre junto
de outras, conversando.
As refeições (baku-pyre ou “comida”, em aché) na casa de Francisco sempre foram
preparadas (baku ou “cozinhar”) por Ana (bakuty ou “cozinheira”). A cozinha (baku endaty) de sua
residência se localiza em uma construção de tábuas, anexa a parede dos fundos da casa, que é de
alvenaria. O espaço da cozinha é divido em dois, separado por uma parede de tábuas. No primeiro
frango, pediu para Ana cozinhar, e enviou até mim. E em dois eventos coletivos da aldeia foram feitos arroz e
frango, cozidos juntos. Eloy foi quem comprou todo o alimento.
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espaço consta um fogão a lenha, algumas madeiras que seriam usadas como lenha e uma prateleira
contendo algumas roupas sujas e uma lata de óleo. Do lado de lá da cozinha, depois da parede de
tábuas, encontra-se grande quantidade de lenha para o fogão.
Não tive a oportunidade de ver Ana cozinhando. Vi ela circulando de um lado para o outro,
passando com panelas, fazendo fogo, sentindo o cheiro da fumaça, mas não pude ficar observando
de perto o passo a passo de suas preparações. Sempre que comi na residência de Francisco eu estava
com ele e ele me fez companhia todos os momentos. Como nessa situação:
(nota de campo do dia 25 de novembro de 2015)
“ [...] Ana então levantou e acho que foi fazer a comida... [...] antes, porém, foi buscar (em outra
casa) aquela mesma tigela prateada que eles haviam me mandado a sopa... Vi que ela voltou da
casa ao lado com a tigela em mãos (ou então a tigela não é dela). [...] o filme continuou rolando
[...] uns minutos mais e Francisco foi na cozinha e pegou um pedaço de mandioca e sentou na
mesa. [...] um ou dois minutos depois vi que Ana foi ao armário branco que existe na parte do meio
da casa e pegou um prato... em seguida ela apareceu e colocou na mesa este prato com dois
pedaços de mandioca, que só eu e Francisco comemos, praticamente um pedaço cada um. [...]
Piragi ficou olhando, mas não comeu ... Depois que a mandioca acabou, Francisco falou "Mirian"
e algo mais em aché e empurrou o prato, como se fosse para ela levar... [...] algum tempo depois
passou e Ana passou com mais um prato vazio [...] ela entrou no quarto que ela e Francisco
dormem, onde fica guardado o pacote de arroz de cinco quilos, e colocou arroz cru dentro desse
prato, até o prato ficar bem cheio, passando um pouco da boca. [...] saiu e foi para a cozinha: ela
começaria a cozinhar...
[...] algum tempo depois, eu, Santiago e Francisco, ainda vendo o filme, Ana foi no mesmo armário
e pegou dois pratos vazios. [...] voltou para a parte de trás da casa, onde cozinha, e voltou
novamente para onde estávamos, com dois pratos de arroz. Colocou um para mim e outro para
Francisco. Francisco trocou de prato comigo, pois o que Ana havia colocado para mim tinha mais
comida. Eu não estava sentado perto da mesa e Francisco me chamou para sentar-se com ele, que
já estava lá. Eu então me aproximei, sentei na cadeira e comecei a comer. [...] logo Ana reapareceu
e entregou um prato de comida a Santiago, também com arroz. [...] aos poucos as outras pessoas
da casa foram pegando seus pratos de comida, entregues por Ana, que foi a última a começar a
comer. [...] Francisco não comeu toda a comida de seu prato: metade ficou com Ana.”
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Em algumas ocasiões apenas eu e Mbepegi comemos. Em outras, todos comeram. Outros
dias, ainda, as pessoas comeram em momentos diferentes. Santiago chegava sempre mais tarde e
pegava sua comida no armário. A residência de Francisco, bem como a maioria das residências de
Cerro Moroti, não possui geladeira. Os alimentos são feitos e consumidos em não muito tempo. No
caso da casa de Francisco, quando não eram inteiramente consumidos os alimentos eram guardados
no mesmo armário onde ficam os pratos.
Em um dado momento do período em campo comecei a dividir meus alimentos com a
família de Mbepegi. O arroz que havia trazido de Foz, alguns temperos prontos e macarrão.
Os trabalhos de Nádia Heusi Silveira e Mártin César Tempass foram apresentados no
capítulo 2 desta monografia. Um dos argumentos de Silveira, lembremos, é o de que ocorre entre os
mbyá Guarani uma “guaranização” dos alimentos advindos dos brancos da região através da
atribuição de proibições, da utilização de técnicas e utensílios específicos, de maneiras de consumir,
de nominações etc. O que para nós aparece como uma oposição, sinaliza Silveira, para os mbyá
aparece como gradações de uma mesma culinária mbyá. Tempass por sua vez nos fala que a
alimentação dos mbyá está profundamente relacionada com as percepções da etnia.
O modo como os alimentos são consumidos em Cerro Moroti obviamente me pareceu
bastante distinto da maneira como nós comemos no Brasil. Por vezes, como já escrito, eu e
Francisco comemos sozinhos, com várias pessoas ao redor. O mesmo aconteceu na casa de Eloy e
de professor Manuel. Os cardápios das refeições, ainda que em diferentes casas, com frequência se
repetiam. Muita mandioca e muito poroto, produções comuns na comunidade.
Não pude nunca acompanhar os alimentos sendo preparados nas residências. O local onde se
cozinha quase sempre é afastado, um pouco disfarçado. O acesso ao espaço da cozinha talvez me
tenha sido dificultado porque a cozinha é espaço das mulheres. Nas refeições, os pratos vinham
prontos da cozinha, diretamente para a mesa. Não haviam panelas para as pessoas se servirem. Uma
quantidade de comida vinha para cada pessoa e aquele era o tanto que cada pessoa comeria. Em
uma nota de campo da segunda ida a Cerro Moroti isso fica bastante claro:
(nota de campo do dia 20 de novembro de 2015)
“...saí e vim aqui para a casa de visitas [...] buscar 10.000 guaranis para comprar coquito no
armazém do pai de Clara, o professor Manuel. [...] chegando lá pedi coquito para Clara e para o
professor Manuel, mas ambos disseram que não havia. [...] perguntei se no outro armazém teria, e
Clara, obviamente, disse que não sabia. [...] nisso o professor Manuel falou algo em aché e Clara
levantou e entrou na casa. [...] o professor Manuel disse então para eu sentar. [...] Clara voltou
com um prato com três grandes pedaços de mandioca e quatro daqueles “disquinhos” daqueles
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fritos que o irmão de Francisco, Javagi, já havia me dado. [...] a diferença era que o oferecido por
Manuel não tinha era composto apenas por farinha, mas também queijo, me explicou professor
Manuel. [...] várias vezes enquanto comia estendi o prato para que Manuel também comesse, mas
ele recusou todas, dizendo que já havia comido [...] ele só tomava terere (e pelo o que percebi
estava no intervalo de algum trabalho). [...] sua esposa (que não é indígena), suas filhas e seu filho
estavam ali próximos de nós, as mulheres descascando poroto, bem como os cachorros e alguns
galinhos, todos interessados na comida...”
E na mesma ocasião, alguns minutos depois
“...nisso Cornelio chegou ao campo e sentou no meio, junto de outro menino que estava na deitado
no sol. Clara se juntou aos dois em seguida e todos estavam comendo ingá. O mais novo dos três
irmãos, Salomon, também apareceu por lá. [...] Cornelio foi embora depois de dois minutos que eu
cheguei... o outro jovem que estava também se foi... e Clara saiu na sequência, ficando somente eu
e Salomon... mas Clara logo apareceu e disse: “Pedro, minha mãe está te invitando a comer
poroto”. eu levantei e disse a Salomon que estava saindo e ele disse “uma vez más” (ou algo
assim) a Clara... [...] cheguei em baixo da sombra e professor Manuel estava organizando o local
onde sentaríamos... as cadeiras eram daquelas de fio e havia também uma mesinha... [...] meu
prato de poroto chegou junto a uma grande bacia com mandioca. Falei para professor Manuel
comer comigo e ele recusou. Fiquei bastante sem jeito, mas em seguida chegou o prato dele. [...]
comemos e conversamos. [...] o professor Manuel não acabou o prato dele... o final foi dado para
uma menina pequena comer, uma criança.”
Tempass registra que os mbyá de Itamarã utilizam poucos utensílios culinários (2005, p.
139). O mesmo pude perceber entre os Aché. Os utensílios são usados apenas em alguns casos, a
depender do que se está consumindo, por exemplo. Em minha primeira refeição na casa de Manuel,
em que comi sozinho mandioca e bolinho de farinha, nenhum talher me foi oferecido. Na segunda
refeição que fiz com Manuel, uma colher nos foi trazida junto da comida. O poroto exigia o seu uso.
Quando comi com Francisco apenas mandioca e linguiça, por exemplo, apenas o prato com a
comida nos foi dado. O mesmo para as refeições na casa de Eloy, em que o uso de colheres foi
dispensado: mandioca, coquito e ovo cozido foram comidos com as mãos.
Igualmente, Tempass nos fala da não utilização de mesas pelos mbyá em seu dia a dia. O uso
deste objeto entretanto acontece, afirma o autor, quando os indígenas estão em presença de não
indígenas como o próprio Tempass. O autor relata na etnografia que a cada refeição que fazia com
os mbyá ele percebia que mais e mais utensílios eram trazidos a estas refeições, até o dia que uma
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mesa foi improvisada a partir de uma porta velha. Silveira trata do assunto em seu trabalho quando
nos fala das dinâmicas de consumo, que dependem das pessoas que estão compondo as refeições e
do local em que elas estão acontecendo. No caso de pessoas diferentes, distantes, como no caso do
encontro entre os mbyá e Tempass, Silveira afirma que as diferenças tendem a ser diminuídas e há
por parte dos indígenas um esforço de assemelhamento. Esta maneira de consumo (e seus efeitos) é
chamada pela autora de “vetor centrífugo da comensalidade”.
Entre os Aché percebi diferenças e semelhanças. As casas geralmente possuem mesas e os
indígenas as utilizam, ainda que em menor frequência que nós não indígenas. Nas refeições que fiz
na casa de Francisco, por exemplo, nós dois éramos os únicos que comiam com os pratos apoiados
na mesa. O restante de sua família estava espalhada, em diferentes locais. Um sentado no degrau
que dá acesso a residência, outra em algum banco do lado de fora etc. Vi mesas sendo utilizadas em
Cerro Moroti, mas não existe nenhuma obrigatoriedade de todos se sentarem as mesas. E também,
não existem tantas cadeiras assim nas casas.
À semelhança de Tempass, percebi que em alguns momentos os indígenas tentavam
incrementar a refeição, o ambiente etc. Ana Pikugi, esposa de Francisco, certo dia colocou uma
toalha de mesa feita de cortina na mesa de sua casa, no momento da refeição. O tecido era branco,
bastante brilhoso, e ficou na mesa até o final da refeição. Em outras ocasiões, a própria refeição é
que era incrementada. Os indígenas tinham o orgulho de oferecer suco ou refrigerante. Na casa de
Mbykagi tomamos sucos artificiais várias vezes. Tomei “gaseosa” junto a Eloy por algumas vezes.
Certo dia levei algumas sopas instantâneas para a residência de Francisco e Ana, sopas em pó. Ana
gostou tanto que utilizou o tempero em todas as refeições seguintes. Como comíamos basicamente
arroz branco puro, a sopa dava outro sabor a comida. Quando as sopas acabaram, Francisco pediu
mais alguns.
Poucos utensílios são utilizados durante as refeições. Geralmente se come usando somente
uma colher, quase nunca garfo e faca. Os pratos e talheres são passados de uma pessoa para outra,
pelo menos nas residências. Todas as vezes que comemos, apenas comemos, e não bebemos. Bebia-
se sempre depois. Percebi que em alguns casos as pessoas compartilhavam o mesmo copo, como na
casa de Francisco. Quanto a mim, recebia sempre um copo separado.
Para cozinhar vi os indígenas usando poucas panelas. No mutirão, por exemplo, apenas duas
panelas foram utilizadas. As duas foram usadas para cozinhar arroz e frango, ao mesmo tempo.
Uma mesmo colher de pau grande foi usada para mexer as duas panelas. Um facão foi usado por
Ana para cortar grossamente os pedaços de frango. Descrevi esta cena no caderno de campo:
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(nota de campo de 12 de novembro de 2015)
“...a esposa de Francisco, Ana, e mais uma outra mulher foram as que ficaram responsáveis por
fazer a comida. Por isso é que a esposa de Francisco havia ido ali mais cedo... As duas começaram
a cortar muito frango em cima de uma mesa que tem na parte de fora deste espaço, sobre o telhado
de zinco. A mesa é para isso mesmo: tem cerca de 2 metros de cumprimento, um de largura e cerca
de 1 metro e 50 ou mais de altura. Ana e essa outra mulher começaram a cortar o frango e a
coloca-lo numa grande panela, que durante dias ficou do lado de fora do espaço para
confraternizações, com água até a metade, de molho. A panela foi lavada, diferentemente da mesa
aonde o frango foi cortado e não sei se o facão utilizado pela mulher de Francisco para cortar o
frango o foi. Enquanto elas cortavam o frango, os cachorros (alguns dos cachorros da
comunidade) ficaram em volta e em baixo da mesa, lambendo a água do frango que caia. Já vi isso
acontecer aqui uma série de vezes. A esposa de Francisco, Ana, cortava, empurrando o frango para
o lado, e a outra mulher o colocava dentro da grande panela redonda, de cor preta (estava preta
porque já havia isso ao fogo muitas vezes). No total, cortaram frango suficiente para encher dois
baldes, que foram levados para dentro da cozinha do espaço. A lenha utilizada para cozinhar tudo
isso e o arroz, que também foi feito, foi a lenha que Alejo me trouxe outro dia e que eu não utilizei.”
Nas casas, pude reparar que muitas coisas são emprestadas. Ana, a depender do que vai
fazer, pega emprestado o utensílio necessário. Quando foi fazer o bolo, por exemplo, emprestou a
forma de sua vizinha. O forno utilizado para assar foi trazido da casa de Eloy (foi uma das duas
vezes vi um forno ser usado em Cerro Moroti, o outro foi na escola da comunidade). Emprestar é
também dividir, gostaríamos de lembrar.
3.5 – A ATIVIDADE CINEGÉTICA
A caça é muito pouco praticada como atividade para se adquirir alimentos. Em Cerro
Moroti, apenas uma vez apenas vi um rapaz mirando num passarinho com um estilingue, em uma
árvore pequena, baixa. A respeito desta atividade, Mbepegi nos dá alguns elementos:
(nota de campo de 10 de novembro de 2015)
“...aproveitei a ocasião perguntando sobre a caça aqui em Cerro Moroti, se ela acontece e tal.
Francisco diz que sim, mas que não é assim toda hora. Perguntei aonde as pessoas iam caçar e ele
me disse que vão nos locais com grandes bosques, na região, muitas vezes na propriedade de
grandes fazendeiro. Lembrando agora, me recordo de Francisco falando que a caça está rareada
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também por causa disso; onde caçar se não há mais bosques? Quando a caça acontece, segue
Francisco, os Aché pedem autorização desses fazendeiros, que possuam grandes propriedades de
terra, e armam suas armadilhas para pegar os bichos. Questionei se eles ainda caçavam com arco
e flecha e ele disse que não, pois aqui em Cerro Moroti não há material para a confecção do arco e
das flechas. Cada um desses materiais – arco, flecha e fio – é feito de uma coisa que não existe
mais aqui. O arco, por exemplo, é feito de alecrim. Perguntei então se as pessoas aqui caçavam
com arma de fogo, pois quando retornei do arroyo com Cornelio pela primeira vez eu vi um homem
na casa dele – não sei se seu pai – segurando uma espingarda de um cano. Francisco confirmou e
disse que sim, que se caçava também usando armas de fogo, além das armadilhas...”
A respeito da coleta, como não há bosques no entorno de Cerro Moroti, pouco vi mulheres
saindo para coletar. Em algumas ocasiões, na primeira vez em campo, a mão de Francisco voltou da
chácara com um cesto cheio de ingá, árvore frutífera nativa da região. A respeito do bucho, que é
um misto de criação e coleta, atividade feminina, portanto, Mbepegi informa:
(nota de campo de 12 de novembro de 2015)
“...perguntei sobre os buchu que Ana havia viajado para buscar naqueles meus primeiros dias aqui
em Cerro Moroti... ele disse que ela foi buscar em outra propriedade, numa fazenda, há cerca de 20
ou 30 km de distância daqui... perguntei se ela havia ido sozinha, e ele disse que não, diz que ela foi
junto a sete ou oito mulheres. Há buchu aqui também, mais próximo, perto do Cerro, há uns quatro
quilômetros de distância... é preciso que se tenha floresta e palmeira...”
3.6 – OUTRO TIPO DE AGRICULTURA
A atividade agrícola acontece de maneira diferente em outras comunidades Aché. Em Puerto
Barra, por exemplo, aldeia localizada no município de Naranjal16 (a cerca de 80 km de Foz do
Iguaçu), a produção de soja atingiu em 2014 a marca de 875 toneladas (ver ANEXO A). Os
indígenas dão conta dessa produção valendo-se de tratores e de caminhões emprestados por
fazendeiros da região, muitos deles brasiguaios. Em Cerro Moroti o assunto é comentado com
entusiasmo e aprovação.
Conversei sobre este tópico com algumas pessoas durante a estadia na aldeia. Na maioria
das vezes o assunto veio naturalmente, quando perguntava sobre a atividade agrícola de uma
maneira geral. Alejo Ojeda, certo dia me contando a respeito de seu pai, que mora em Puerto Barra,
16 Moram hoje em Puerto Barra cerca de 400 pessoas, em uma área total de 1050 hectares.
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me mostrava fotos da comunidade. Seus destaques eram para os tratores John Deer que apareciam
nas imagens, nos vídeos. Alejo trabalhou durante anos nas fazendas dos brasiguaios, em Santa Rita,
tem contato com a grande produção. Em dezembro de 2015 trabalhava em fazendas próximas a
comunidade de Cerro Moroti, cuidando de gado. Quando falou dos tratores, sinalizou que a
comunidade de Cerro Moroti teria muito menos trabalho na colocação de arados, por exemplo.
O colega de sala de aula de Francisco, professor Manuel, também foi uma pessoa que falou
da importância das máquinas para a comunidade de Cerro Moroti. Chegamos a esse assunto em dois
momentos diferentes. Uma vez, conversando a respeito do PRODERS, Manuel disse que um
primeiro passo já estava dado: Cerro Moroti, desde agosto de 2015, possuía vacas e porcos. O que a
comunidade precisava então era de máquinas e tratores. Em outra ocasião, após uma refeição que
fizemos juntos (descrita acima), Manuel falou de seus “sonhos” pessoais, que de alguma maneira se
associam a comunidade de Cerro Moroti. O indígena falou da necessidade de uma “fábrica de pão”,
para que os “niños da comunidade” possam se alimentar melhor17, da melhoria das estradas do
entorno da comunidade e da importância de tratores, de mecanização. Nessa segunda conversa
Manuel ficou bastante interessado em saber se haviam grandes plantações e criações perto de Foz
do Iguaçu, minha cidade natal, que é conhecida no Paraguai.
O jovem indígena Pedro Mbejywagi, morador da comunidade de Ypetimi, estava passando
uns dias em Cerro Moroti, em novembro de 2015. Era a primeira vez que ele estava na comunidade,
e durante a festa de 15 anos de Blanca me falou sobre as diferenças que havia percebido em relação
à comunidade que vivia. Primeiramente, e de uma maneira bastante confusa, Mbejywagi falou que
não há bailes em Ypetimi. Coisas como som alto, bebida alcoólica, “vexames” e o uso motocicletas
são muito mais regrados, existindo inclusive multas para o caso de desrespeito. Depois, falou de
dois pontos que penso serem muito importantes para o tema desta monografia. Diz Mbejywagi que
os Aché são muito ”trabajadores”, e que nunca os veremos nas ruas pedindo dinheiro, como fazem
os Mbyá. Diferentemente dos mbyá, segue Mbejywagi, os Aché pedem terra para trabalhar, e é por
isso que eles são respeitados pelo governo do Paraguai, pois são “luchadores”. O tom de Pedro
parecia o de uma liderança indígena, ideia atrás de ideia. Por fim, e entre outras coisas, Pedro disse
que em Ypetimi não há tratores nem máquinas, mas que isso vai ser conseguido através da luta.
Possuo um perfil no site de relacionamentos facebook. Tenho muitos amigos indígenas e
percebi que eles valorizam bastante essa relação, a vinculação virtual. Nos perfis dessas pessoas,
sobretudo em homens mais jovens, é grande a presença de fotos, notícias, e temas que tocam a
grande agricultura. Nas páginas das lideranças indígenas e não indígenas, umas mais e outras
menos, a produção da soja pelos Aché é celebrada.
17 Lembremos: de 300 pessoas em Cerro Moroti, 185 tem menos de 15 anos.
50
Os Aché se relacionam com a soja já a algum tempo, de diferentes maneiras. Colocamos na
introdução que isso nos coloca diante de um falso paradoxo, afinal, se no inicio do estopim da
agricultura no Paraguai, com a derrubada das florestas, com as plantações de erva mate, de soja, de
milho, os Aché enfrentaram enormes dificuldades, hoje em dia a relação que eles tem com a soja, o
milho, as grandes produções e o Estado é bastante distinta.
Realizamos uma busca de notícias de internet que falam sobre os Aché e a produção de soja.
Nestas notícias podemos perceber que a proximidade dos Aché com a soja é bem vista por uma
série de motivos, tais quais a autonomia e a sobrevivência da etnia, bem como sua modernização.
3.7 – OS ACHÉ NA IMPRENSA18
Faremos a análise de duas notícias de internet. Os periódicos analisados são de dois países:
Brasil e Paraguay.
No site do jornal curitibano Gazeta do Povo os Aché viraram notícia em abril de 2013, com
uma matéria chamada “Soja dá suporte à sobrevivência de índios no Paraguai”. A autora da
reportagem se chama Denise Para. Podemos dividir o registro em três partes.
A primeira parte tenta introduzir o leitor a dois pontos: como os Aché da comunidade de
Puerto Barra se iniciaram no cultivo da soja e como eles o desempenham hoje.
O primeiro parágrafo dessa sessão registra que a agricultura é hoje um “motor da
sustentabilidade” entre os Aché de Puerto Barra, e quando se trata da soja, os indígenas são
reconhecidos como exímios produtores do grão. São nos parágrafos seguintes que aparecem dados a
respeito da produção dos Aché de Puerto Barra. Em 2013 foram colhidas 875 toneladas de soja,
plantadas em 209 hectares de terra. Sementes de milho também foram plantadas em 18 hectares, e
10 toneladas deste grão foram colhidas. É a mecanização da produção, de acordo com a notícia, que
garante aos indígenas sobreviver sem o auxilio de cestas básicas ou ajudas governamentais.
A história do plantio da soja é então apresentada. Registra a autora da matéria que a pratica
da “lavoura” “começou cedo” em Puerto Barra, desde 1976, com a chegada do missionário Bjarne
Rolf Fostervold. Outros cultivos e criações são desenvolvidos na comunidade, mas a soja é o
principal de todos. Tudo o que é vendido é repassado às famílias por um grupo responsável por
“gerir”, termo empregado pela autora da matéria, aquilo que é arrecadado com a produção.
Para que estes cultivos aconteçam, os Aché de Puerto Barra se utilizam de maquinário
agrícola: de tratores, plantadeiras e caminhões. Todos estes equipamentos são “cedidos” pelo
produtor brasileiro Miro Shuster, que na notícia é apresentado como “especialista” no cultivo da
soja. Shuster mora no Paraguai há mais de 40 anos, e desde 2011 dá assistência “técnica e
18 As notícias de jornal são dados de outra natureza; são diferentes do material produzido em campo (minha experiência)
ou das fontes da literatura etnológica (Silveira, Tempass, Clastres).
51
financeira” aos Aché. Uma única fala de Shuster está presente em toda a reportagem. É quando o
produtor diz, falando em relação aos Aché, que quer “ensiná-los a trabalhar” (“Eu quero ensinar
eles a trabalhar”,).
Ao final desta primeira sessão é apresentado José Anegi, indígena de 26 anos. De acordo
com a notícia, Anegi aprendeu a mexer com a terra desde criança, com seu pai, e já se considera
agricultor. Duas únicas citações literais de Anegi são registradas na reportagem. Primeiro o jovem
agricultor diz que muitas pessoas ainda querem viver caçando e coletando, uma vida que terminou e
que só leva a pobreza. Depois comenta que os indígenas podem ser agricultores, pois hoje a
tecnologia facilita a vida no campo.
A segunda seção é bastante curta, constituída apenas de dois parágrafos (a parte anterior
possui seis, por exemplo). O objetivo da seção é apresentar a escola que existe na comunidade de
Puerto Barra, sinalizando a maneira como ela se relaciona com a comunidade. Caracterizada como
“estruturada”, pelo menos uma vez por semana nessa escola as aulas das crianças acontecem no
campo, em campo. Em tempos de colheita (como a do amendoim), e a depender da atividade
agrícola realizada na comunidade naquele momento, as crianças também participam. Rosa Brevi,
professora, fala que estes trabalhos são importantes para que os alunos “aprendam a lidar com a
terra”. Os próprios gostam e reconhecem a importância, continua a professora, pois entendem que
estas atividades são fundamentais para que eles possam comer. Fernanda Kambigi, jovem de 15
anos, aparece no final da sessão para dizer que gosta destas tarefas e que “quer trabalhar para a
comida crescer”. Atividades do mesmo tipo são realizadas na mata, o que de acordo com o jornal é
a “manutenção da tradição silvícola dos ancestrais”.
A terceira parte da notícia trata brevemente da história de Puerto Barra. Das tentativas de
contato de Bjarne Fostervold e seu pai, da saída da floresta (sedentarização), dos primeiros cultivos,
dos anos de aprendizagem. O plantio de soja hoje pelos Aché só acontece por causa de um domínio
de diversas técnicas de produção que o grão exige, afirma a reportagem, algo que é bastante
positivo. Tais técnicas, segue a notícia, são por exemplo o controle das ervas daninhas através do
uso de defensivos, a escolha da melhor semente se plantar no solo que se possui, a vigilância
constante do terreno sobretudo quando estão próximas as épocas de plantio, o suprimento das
necessidades do solo, os “pontos fracos”.
O último parágrafo da notícia merece ser citado integralmente. São duas linhas e meia a
respeito da origem dos Aché.
“Com tradição nômade, a origem dos achés ainda é desconhecida. Algumas hipóteses indicam que
eles são descendentes de vikings, japoneses ou dissidentes do povo guarani, mas não há
comprovação científica.”
52
O site da Gazeta do Povo, pelo menos na sessão em que a matéria saiu, a de agronomia,
possui duas cores. O branco do plano de fundo contrasta com o verde erva mate dos detalhes e do
preto e cinza das letras.
Há apenas uma foto em toda a reportagem, em que dois indígenas – um homem e uma
mulher – aparecem colhendo amendoim. Outras pessoas podem ser visualizadas na fotografia, mas
a mulher e o homem estão em primeiro plano. A mulher indígena está sentada, com uma blusa cor
de rosa e uma saia preta comprida, de estampa de bolinhas brancas. Usa um chapéu na cabeça,
desses de aba mole. Está próxima a um balde cheio de amendoins, onde adiciona uns grãos. O
homem está em pé, curvado. Veste uma camiseta metade azul e metade vermelha. Bermuda
camuflada e boné bege na cabeça, desbotado. É possível ver o que ele está usando nos pés: botas
brancas, daquelas de açougueiro. Podemos visualizar ao fundo desta fotografia uma área de mata
não muito densa. As árvores fazem divisa com um escampado, que por sua vez chega aos pés de
amendoim.
Nessa foto a legenda diz “indio aché com pé de amendoim. Renda da soja dá autonomia à
comunidade”, mesmo tendo duas pessoas na fotografia.
A segunda notícia que analisamos foi publicada no portal paraguaio Víve lo Hoy, no final de
2014. Ela se chama “Indígenas de Paraguay incursionan en el prometedor cultivo de la soja” e o
autor do texto é Hugo Olazar. Basicamente, três são os temas desta reportagem: a produção de soja
pelos Aché da comunidade de Puerto Barra, algo da história desses indígenas e dessa comunidade
(algumas falas nativas são bastante interessantes), e um pequeno desfecho sobre uma grande
questão relacionada a comunidade Aché de Kwetuwy, o problema de terra. A reportagem está na
sessão “mundo” do site Vive lo Hoy.
O artigo de jornal se inicia com o autor do texto falando que uma tribo resolveu seguir o
exemplo de seus vizinhos, os brasiguaios, e deu inicio ao plantio de soja em uma região na qual há
menos de 50 anos só existiam florestas. No parágrafo seguinte ficamos sabendo quem é essa
“tribo”, pois os Aché da comunidade de Puerto Barra são apresentados. O “guayaki”, termo
considerado pejorativo pelos Aché, é utilizado neste e em outros momentos da notícia. O emprego
desta expressão é usual no Paraguai até hoje19, pelo menos pelas pessoas menos inteiradas destes
assuntos, das questões indígenas. O termo ainda possui força.
Direções são dadas (perto de onde e a qual distância de Assunção) e dados nos são
oferecidos. São 850 hectares de terra divididos entre vários cultivos (milho, melancia, amendoim),
19 Uma empresa estrangeira de erva mate produz sob este nome, inclusive. Erva Mate Guayaki. Há no youtube
um vídeo de quase 30 minutos em que pessoas da empresa conversam com os Aché.
53
sendo o maior deles o da soja. Tudo é feito de maneira comunitária. De acordo com Daniel Itagui,
então cacique de Puerto Barra, 300 hectares são mecanizados.
O autor do texto argumenta que os Aché são hoje agricultores de um país que em 2013
aumentou e muito o seu PIB, 13%, graças da produção e exportação de soja. O governador do
departamento de Alto Paraná, Justo Zacarias, afirma que os Aché são um exemplo digno de
imitação, pois numa mesma experiência conjugam “o desenvolvimento de uma agricultura de alta
tecnologia” com a tradição, a cultura e a língua. A aldeia de Puerto Barra se localiza em Naranjal,
cidade do departamento paraguaio de Alto Paraná.
Nos dois parágrafos seguintes, de quatro linhas, é feito um breve comentário a respeito da
saída forçada da floresta por parte dos Aché. Olazar, o autor do texto, refere-se aos Aché como
“bravos guerreiros da outrora impenetrável selva paranaense” que foram “praticamente forçados a
se integrar a civilização”. Na opinião de qualquer Aché, não tenho dúvidas, o “praticamente” da
última frase se faz totalmente desnecessário. O motivo dessa saída forçada é associado ao
desenvolvimento da região da tríplice fronteira, com a construção da Usina Hidroelétrica de Itaipu.
Para o caso dos Aché de Puerto Barra, que saíram da floresta em 1976, e que se localizam próximos
a Foz do Iguaçu, isso faz total sentido.
Na segunda parte desta notícia, novamente são apresentados dados a respeito da produção e
da exportação de alimento e soja pelo Paraguai. A venda de alimentos para fora do país tornou o
Paraguai o quarto maior exportador mundial deste segmento. A produção da última safra, do país
todo, chegou a 16 milhões de toneladas, o que de acordo com a reportagem é suficiente para
alimentar o país todo dez vezes (não sei se o dado é correto, desconfio).
Dois indígenas Aché são citados neste trecho da matéria. O cacique, Daniel Itagui, e
Lorenzo Puapurai, estudante de direito e “assistente” do cacique. Itagui registra que além de soja,
milho e demais grãos para exportação, Puerto Barra produz também para o auto sustento, além da
criação de vacas e peixes. Puapurai opina que a agricultura de exportação “es la salida al progresso”
e que a situação da comunidade, que já vai bem, vai ficar ainda melhor.
Nesta etapa da notícia alguns elogios ao cultivo de soja são feitos, ao mesmo tempo que
parece haver uma tentativa de diferenciar os Aché de outras etnias indígenas. Lorenzo, de acordo
com a notícia de jornal, “constata” que as outras etnias indígenas do Paraguai “usan sus tierras para
recolectar o cazar como sus ancestros y esperan ayuda de las organizaciones indigenistas”. Para ele
os Aché se deram conta que podem manter suas tradições, sua cultura, e mesmo assim se adaptar ao
que está acontecendo ao seu redor, nos dias atuais. É isso, por exemplo, que permite que os Aché
não estejam como outros grupos indígenas que estão próximos a áreas urbanas e que pedem “en los
semáforos o en la terminal de ómnibus, mezclados en el vicio de la droga y la prostitución”.
54
Uma breve apresentação da comunidade de Puerto Barra é feita, abordando a localização
geográfica da aldeia, os rios que a cortam, e registrando que as transformações nessa comunidade se
devem em grande medida a Rolf Fostervold, pai de Bjarne, que ensinou os Aché daquela localizada
a atividade agrícola.
A última parte da reportagem tem inicio com uma fala de Puapurai, que diz que os Aché de
Puerto Barra possuem um bosque de 400 hectares onde podem ir caçar como “passatempo
ancestral”. Olazar, autor da reportagem, se vale deste trecho para falar que nem em todos os lugares
a situação é essa, como na comunidade de Kwetuvy.
Constantes invasões de território ocorrem na comunidade de Kwetuvy, que são levadas a
cabo por pessoas do entorno, que entram área de 4600 hectares da comunidade para extrair madeira
e plantar maconha. De acordo com o cacique Martín Wachupurangi, as autoridades paraguaias não
fazem nada para mudar esta situação. Wachupurangi registra que caso nada seja feito os Aché de
Kwetuvy vão lutar contra o que está acontecendo com as únicas armas que possuem: seus arcos e
suas flechas. A notícia se encerra com o registro de que organizações indigenistas (não falando
quem) prometeram ajudar os Aché de Kwetuvy a seguir os passos de seus parentes de Puerto Barra.
Há apenas duas fotos na matéria inteira e elas se localizam logo no começo do texto. As
duas fotos são iguais, as mesmas, e mostram uma enorme plantação de soja. Não é possível ter
certeza se a foto é da aldeia de Puerto Barra, mas é mais provável que não seja, pois na legenda a
origem está como sendo do Getty Images, banco de fotos pagas da internet. A mesma legenda está
nas duas fotos, e ela versa sobre o fato do Paraguai ser o quarto exportador de alimentos no mundo.
O cabeçalho do Víve lo Hoy é vermelho e cinza. As letras de todo o site ou é preta, como no
caso do título, ou é cinza, como no restante da matéria toda (cabeçalho, ícones e letra do texto). O
fundo do site é inteiramente branco. As tags da notícia são “agricultura”, “indígenas” e “paraguay”.
Após a apresentação destas reportagens fica claro que estes sites estão em acordo com esta
incursão dos Aché ao mundo da soja. Há uma ideia de autonomia, de progresso e de
desenvolvimento presente nessas notícias: como se a soja fosse emancipar os indígenas. As falas
nativas que aparecem nos sites vão todas nesse sentido.
O Estado paraguaio não é citado diretamente ao longo dos artigos, mas lembremos que este
país é o quarto maior exportador de soja do mundo. O departamento onde os Aché de Puerto Barra
se localizam é uma região famosa por ser grande produtora de soja (esta produção é coordenada
pelos brasiguaios). É interessante para o país que os indígenas continuem produzindo soja. Também
questionamos: os Aché produzem toda esta quantidade de soja utilizando agrotóxicos. É difícil
pensar em autonomia e desenvolvimento quando nos defrontamos com estas práticas,
disseminadíssimas por todo o Paraguai.
55
A respeito da entrada de indígenas na agricultura, há autores da antropologia que podem nos
auxiliar. Eduardo Viveiros de Castro enxerga que sempre existiu no Brasil um esforço de fazer com
que os indígenas deixassem de sê-lo (Viveiros de Castro, 2008). Sob a justificativa da
modernização, a ideia era transformar o indígena em algo que ele não é, em branco: de gente que
não faz nada, não produz, a gente proletária, indiferenciada. O autor dá destaque ao “ainda”,
presente na frase “ainda tem índio”, como se a condição de indígena fosse uma etapa a ser superada.
O problema disso tudo, segue Viveiros de Castro, é que a transformação nunca se completa, nunca
termina. Deixa-se de ser indígena (de ter sua condição reconhecida) porque se está “vivendo como
branco”, mas não se virá branco, porque branco não é ex índio, bugre. O indígena vira pobre,
trabalhador, pequeno agricultor.
Se no passado os Aché sofreram com a grande agricultura, no presente eles a desenvolvem.
No entanto, temos noção de que os motivos que levam os Aché a plantarem e venderem soja
certamente são diferentes dos motivos pelos quais os jornais e as diferentes faces do Estado tem
interesse na produção deste grão. O argumento de Viveiros de Castro é uma crítica potente a
maneira como “o Estado” e a “sociedade envolvente”, de maneira geral, enxergam as populações
indígenas, o que elas deveriam ser, fazer etc., e não aos motivos que levam as populações indígenas
a desenvolverem estas e outras atividades ou a presença de indígenas em situações concretas em
que isto acontece.
O argumento de Nádia Silveira a respeito da “guaranização” dos elementos vindos do
mundo dos não indígenas nos parece oportuno neste momento. Elementos do mundo juruá são
articulados em relações sociais propriamente indígenas, eles acontecem segundo maneiras
indígenas. Marshall Sahlins refletiu sobre este tema no artigo “O pessimismo sentimental”, de 1997.
Lá Sahlins registra que o capitalismo não está acabando com a cultura, com o loca, com a diferença,
pois as experiências etnográficas mostram que os “grandes quadros do capitalismo”, apesar de tudo,
existe localmente, se articulam localmente; possuem características peculiares. A ideia de que “a
cultura” está morrendo diz mais respeito a nós mesmos, antropólogos, que não estamos bem
informados etnograficamente.
O que estamos querendo dizer é que o resultado só poderia ser outro, no caso dos Aché
plantando soja. Para sabermos como eles se relacionam com o grão, é preciso fazer pesquisa sobre
isso. São necessários mais dados para a discussão. E isso inclui estudar também a maneira como o
“Estado” e os demais setores da sociedade desempenham e se relacionam com a produção de soja.
O que podemos fazer neste trabalho é organizar melhor alguns elementos.
Os Aché se relacionam de maneiras distintas com o Estado e a sociedade envolvente
paraguaia. Os plantios de soja, a produção para a grande exportação: tudo isso nos mostra apenas
uma faceta dessas relações.
56
Soja dá suporte à sobrevivência de índios no Paraguai
http://www.gazetadopovo.com.br/agronegocio/agricultura/soja-da-suporte-a-sobrevivencia-de-
indios-no-paraguai-eo094qqeexyd0nnj0wn5cr03u
Indígenas de Paraguay incursionan en el prometedor cultivo de la soja
https://www.terra.com.ar/economia/indigenas-de-paraguay-incursionan-en-el-prometedor-cultivo-
de-la-soja,5a65d21bd5f88410VgnCLD200000b2bf46d0RCRD.html
3.8 – NOTÍCIAS MAIS ENCONTRADAS
Outras maneiras dos Aché se relacionarem com o Estado e com a sociedade paraguaia
podem ser verificadas abundantemente nos sites de internet. Se o leitor realizar uma rápida busca no
google sobre os Aché verá quais são os temas mais abordados pelos sites de notícia. Nas pesquisas
que realizei, sites de diferentes países apareceram, principalmente do Paraguai, do Brasil, da
Argentina, dos Estados Unidos e da Inglaterra. Uma das temáticas mais comuns em todos esses
sites diz respeito à “história” e a “cultura” dos Aché, isto é, informações mais gerais, já conhecidas,
disseminadas. A questão da caça e da coleta, bem como a da vida nômade, por exemplo, são temas
presentes nestes portais.
No geral, porém, o assunto principal da maioria das notícias encontradas na rede é a questão
do genocídio. Como já registramos, este tema é conhecido internacionalmente pelo menos desde a
década de 1970, com a obra de Mark Münzel. Nesse tempo todo, também, os Aché jamais deixaram
de falar sobre aquilo que viveram.
Analisamos a maneira com que este acontecimento é tratado em alguns dos sites
pesquisados. Escolhemos três, um em inglês (dos Estados Unidos), um português (do Brasil) e um
em espanhol (do Paraguai).
Um dos sites encontrados, chamado Dissident Voice, todo em inglês, anuncia em seu
cabeçalho que é “a radical newsletter in a struggle for peace and social justice”. Este endereço não é
simplesmente um site de notícias de uma empresa de comunicação, de um jornal como os demais
que iremos analisar, mas sim o site de uma organização que tenta fazer justamente o contrário. No
“quem somos” do jornal isso fica bastante claro, pois o texto institucional registra que o DV se
dedica a “chellengig the distortions and lies of the corporate press”. O fundador do site de chama
Sunil K. Sharma, músico e ativista.
57
No cabeçalho do site há a foto de um menino desenhando o mesmo símbolo no chão várias
vezes. O símbolo rabiscado é aquele que é comumente associado aos “hippies” da década de 1960,
associado à paz. A cor de fundo do site é branca, os detalhes, como ícones, hiperlinks e botões, são
em marrom, e a cor das letras dos textos é preta.
A notícia em questão foi publicada no Dissident Voice em 2014, e se chama “Aché sue
Paraguay’s government over historic genocide”. A autoria da notícia, entretanto, é da Survival
International. Para os que não sabem, como era meu caso, há no final da página uma breve
explicação (institucional) de quem é a Survival International. Trata-se de uma organização inglesa
fundada em 1969 para oferecer suporte as etnias indígenas que enfrentavam grandes problemas
mundo a fora. Chama a atenção qual foi o pontapé inicial da organização: “Survival International,
founded in 1969 after an article by Norman Lewis in the UK's Sunday Times highlighted the
massacres, land thefts and genocide taking place in Brazilian Amazonia”. O artigo de Lewis chama-
se “Genocide in Brazil” e foi publicado em 1968.
A notícia escrita pela Survival International e publicada no Dissident Voice tem inicio
informando que os “sobreviventes” de uma “tribo” sul-americana “dizimada” nos anos 1950 e 1960
estavam levando o Paraguai à corte por causa de um genocídio sofrido.
Um breve histórico dos últimos 50 anos dos Aché é apresentado na notícia. Os temas
lembrados são os que comumente são tratados quando o assunto é o “genocídio”: a saída forçada da
floresta, a questão dos raptos, sequestros e vendas de indígenas, a denúncia de muitos antropólogos
(citando Mark Münzel) e o fato do Estado paraguaio, a época comandado por Alfredo Stroessner,
ter negado que tais eventos estivessem acontecendo no Paraguai.
Este breve histórico é realizado para que os leitores possam entender a notícia propriamente
dita. Como o Estado paraguaio não olhou para as próprias ações, os Aché resolveram dar inicio a
outro processo contra o país na Argentina. De acordo com o texto, o princípio acionado pela
organização que tomou a frente do acontecimento, a National Aché Federation, é o da “jurisdição
universal”, que julga crimes contra a humanidade fora do país em que estes casos ocorreram.
Uma liderança aché é citada em duas linhas: Ceferino Kreigi, que diz que os Aché estão
pedindo por justiça, pois no passado (“there was”) houve perseguições e torturas, e que “we can no
longer bear the pain we have suffered”. O advogado da federação também aparece no texto, em
cinco linhas. Juan Maria lembra que os Aché eram caçados como animais, colocados em guetos e
suas crianças e mulheres eram vendidas como escravas. Encerra-se aí a participação de ambos na
publicação.
O artigo de jornal é finalizado com um dado de população. O número de indígenas entre os
Aché tem aumentado cada vez mais, afirma a notícia, ainda que as florestas onde os indígenas
viviam tenham sido derrubadas e substituídas por fazendas, e que eles tenham sido “almost totally
58
destroyed”. As marcações do texto, caixinhas em que a notícia pode ser encontrada no site do
Dissident Voice, são “anti-slavery”, “genocide”, “original peoples” e “paraguay”.
Duas fotos em preto e branco estão presentes na matéria do site. Ambas datam de 1972 e
mostram um homem e uma mulher, separadamente, logo após serem retirados das florestas
paraguaias. O homem está sentado, seminu, com algumas penas brancas coladas no peito. Sua perna
está visivelmente ferida e sua expressão é de susto, como se não soubesse o que estava acontecendo.
Atrás de suas costas há uma parede de tábuas, parcialmente quebrada, com um furo, em que é
possível enxergar os olhos e a boca de uma criança indígena.
A mulher indígena da fotografia está deitada de lado, com um dos braços esticado e o outro
em baixo da cabeça, como quem faz um apoio. Podemos ver que há algo enrolado em torno de sua
cintura e um pano em baixo de seu corpo. A expressão pouco visível da indígena é a de uma pessoa
que dorme.
Esse mesmo acontecimento foi noticiado em cinco outros sites no mesmo período, na época
em que o fato aconteceu. No Brasil, o site da AJI – Associação dos jovens indígenas de Dourados
foi um dos divulgadores. O Brasil de Fato foi outro site brasileiro que soltou uma reportagem.
O nome da notícia publicada no AJI é “Aché povo do Paraguai: Conferência de Madrid
sobre um genocídio esquecido”. Dois são os temas principais da matéria: a conferência de Madrid e
a denúncia que a “Aché Federação Nativa do Paraguai” (que no Dissident Voice estava como
“National Aché Federation”) fez contra o Estado paraguaio na corte argentina.
A “Conferência de Madrid” foi um evento que aconteceu no dia quatro de julho de 2014, na
Espanha, em que os crimes praticados contra os Aché foram discutidos, tematizados. O objetivo da
conferência, de acordo com os organizadores20, é o de promover ações em favor da “verdade,
justiça e reparação” para os Aché. A reparação seria através do uso de mecanismos atuais do
Direito, como a ideia de “jurisdição universal”. Grande parte dessa primeira sessão da matéria é
dedicada à conferência: quais organizações estarão compondo, quem de qual entidade vai falar
sobre o que etc.
Em um segundo momento da notícia algumas linhas são dedicas ao processo iniciado pelos
Aché na Argentina. Ainda que pequena, os detalhes da ação judicial são aqui muito melhor
explicados do que a notícia publicada no Dissident Voice. Sabemos o número do processo, qual a
corte que ele vai correr, a Corte Federal Argentina de número 5, as datas de seu inicio e os dias em
que os Aché da Federação Aché Nativa do Paraguai darão seus depoimentos.
20 Dois organizadores e dois apoiadores: “Paraguai resiste en Madrid” (Resistência Paraguai em Madrid) e “Plaza
de los Pueblos” ('Praça dos Povos), com o apoio do “International Work Group for Indigenous Affais” (Grupo
Internacional de Trabalho para os Assuntos Indígenas - IWGIA), do “Instituto de Estudos Políticos de América
Latina (IEPALA)”, da “Baltasar Garzón Foundation International (FIBGAR)” e da “Cátedra UNESCO de
Liberdades Públicas e dos valores cívicos” da Universidade Carlos III de Madrid. Informação disponível na própria
reportagem.
59
A terceira e mais longa parte da matéria é dedicada a um breve histórico recente dos Aché,
como sempre possuem estas notícias. São cinco parágrafos grandes, abordando primeiro o hábito
caçador coletor, depois a saída forçada da floresta e por fim o tema do genocídio – a liquidação
forçada por parte do Estado paraguaio. As denúncias feitas por inúmeras pessoas (além de Mark
Münzel, desta vez Bartolomeu Melià também é citado) e as ações recentes dos Aché são então
tematizadas, pondo fim à reportagem. Assunto encerrado, há apenas uma nota com a data, a hora e o
local da Conferência de Madrid, junto de uma lista com as organizações que realizam e apoiam o
evento.
Apenas uma foto é veiculada em toda a notícia. Trata-se do cartaz da Conferência, que
posteriormente virou capa do livro resultado de todos estes debates, a obra “Los Aché del Paraguay:
discusión de un genocídio”, referência desta monografia. O site da Associação dos jovens indígenas
de Dourados é inteiramente branco. Os ícones são em cinza claro e as letras tem cor cinza escuro.
Três banners, que não dão acesso a outros sites, são vistos no topo da página. O primeiro é o da AJI,
que possui quatro flechas e um cocar em seu entorno. O segundo cartaz é o da IWGIA, a
International Work Group for Indigenous Affais, que já apresentamos. E o terceiro cartaz é o do
“grupo de apoio aos jovens indígenas”.
A terceira notícia que iremos analisar foi publicada pelo jornal paraguaio Ultima Hora em
julho de 2014. Seu título é “El genocidio del pueblo aché y el pedido de justicia universal”. Pela
primeira vez o autor da notícia se identifica. O jornalista que escreveu o texto se chama Miguel H.
Lopez. Como no caso das duas outras reportagens, podemos dividir esta notícia em mais ou menos
três eixos, três assuntos.
O primeiro eixo fala sobre os 40 anos das denúncias feitas por antropólogos em relação ao
que acontecia aos Aché no Paraguai. O nome de Alfredo Stroessner é citado, bem como o de
Manuel Jesus Pereira, o fazendeiro-sargento que com sucesso conseguiu “sedentarizar” os indígenas
naqueles fins de anos 1950. Pela primeira vez numa notícia há a diferenciação entre os bandos Aché
que viviam nas florestas paraguaias. Fala-se em Aché Gatu, Aché Wa e Aché Pura.
Uma curta seção é iniciada e ela tem o título de “reparação”. É contada a história de
Margarita Mbywângi, indígena que quando pequena foi sequestrada e vendida como escrava.
Mbywângi voltou a viver com seu povo apenas após os 18 anos e hoje é liderança entre os
indígenas.
O Congresso de Madrid é então tematizado, sob o título de “impacto internacional”. São
citadas algumas organizações que nos anos 1970 sinalizaram a existência de crimes contra a
humanidade direcionados aos Aché: a IWGIA, os parlamentos estadunidense, dinamarquês e
norueguês, o New York Times, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e as Nações
Unidas. Nenhuma dessas denúncias fez com que alguma providência séria fosse tomada, conclui o
60
jornalista autor do texto. O Congresso de Madrid parece vir nesse sentido. Levantar a questão que
há muito tempo existe e vem sendo ignorada pelo Estado paraguaio. A comissão da verdade
instaurada naquele país, concluída em 2013, cita a notícia, registra que houve omissão de proteção e
garantia de direitos por parte do Paraguai, além da falta de “investigação, sanção e reparação”.
Como na notícia do Dissident Voice, há um breve comentário a respeito de um dado
demográfico. Na época da notícia os Aché somavam 2,000 pessoas e possuíam a maior taxa de
natalidade indígena do Paraguai. Viviam em quatro departamentos paraguaios, Canindeyú,
Caaguazú, Caazapá e Alto Paraná.
A reportagem é finalizada com a divulgação de um encontro que aconteceu em 17 de julho
de 2014. O objeto do evento foi reunir “sobreviventes” e descendentes das vítimas do genocídio
Aché. Representantes das comunidades, advogados e demais especialistas em direito se
encontraram em Assunção para discutir esta questão. A Conferência de Madrid havia acabado de
acontecer, então várias das discussões ocorridas na Espanha foram retomadas no evento. Neste
mesmo encontro ocorreu uma exposição fotográfica tematizando os Aché: foram intercaladas fotos
atuais e do passado.
Há, ao mesmo tempo, uma e quatro fotos em toda a notícia. Trata-se de uma foto, um
quadro, dividido em quatro. Todas as fotos são do ano de 1972, dos primeiros momentos de um
bando aché recém saído da floresta, capturado. Sobre as quatro fotos está escrito “genocidio aché:
justicia universal para los cantores de su agonía”, referência a “La agonia de los Ache-Guayaki:
historia y cantos”, obra de Bartolomeu Melià publicada em 1973.
O site do Ultima Hora tem cor branca, com ícones em vermelho. A corda da fonte é ora
preta, ora cinza, e em alguns casos é preta. É o único dos três sites analisado em que é possível
deixar um comentário, conectado direito ao facebook. As marcações utilizadas pela reportagem são
três: “asunción”, “aché” e “bartolomeu melià”.
Aché Sue Paraguay’s Government over Historic Genocide
http://www.survivalinternational.org/news/10264
Aché povo do Paraguai - Conferência de Madrid sobre um genocídio esquecido
http://www.jovensindigenas.org.br/eventos/ache-povo-do-paraguai-conferencia-de-madrid-sobre-
um-genocidio-esquecido
El genocidio del pueblo aché y el pedido de justicia universal
http://www.ultimahora.com/el-genocidio-del-pueblo-ache-y-el-pedido-justicia-universal-
n812037.html
61
3.9 – O GENOCÍCIO: DIFERENTES INTERPRETAÇÕES
O tema do genocídio não foi abordado de maneira ampla no primeiro capítulo desta
monografia por motivos estratégicos. Optamos por apresentar e apontar alguns aspectos sobre este
tema agora porque ele se liga diretamente ao que iremos trabalhar na sequência, a saber, as relações
que os Aché hoje estabelecem com o Estado paraguaio. Conforme já registramos, o tema do
genocídio se liga ao da alimentação, da agricultura por causa da história recente entre os Aché e a
sociedade envolvente paraguaia, bastante relacionada as plantações de soja, milho, erva mate, à
grande produção etc.
Falamos de genocídio nesta monografia apenas uma vez. Foi quando tratamos da
antropologia paraguaia e argumentamos que ela se desenvolveu profundamente comprometida com
as dificuldades enfrentadas pelos grupos indígenas daquele país. A palavra genocídio apareceu
naquele momento como exemplo do comprometimento dos antropólogos com a questão indígena
paraguaia. Em uma nota de roda pé citamos a obra de Mark e Christine Münzel, Bartolomeu Melià
e Luigi Miraglia, chamada “La agonia de los Aché-Guayaki”, publicada em 1973, bastante
importante.
O que é chamado de “genocídio” pelos Aché é o conjunto de práticas, de ações, de crimes
que foram cometidos contra a etnia desde o final dos anos 1950. A saída forçada da floresta, o
transporte de muitos em caminhões, amarrados, os acampamentos em péssimas condições, as
caçadas aos indígenas, os raptos, os sequestros, as doenças, as mortes a tiro, a total ausência de
amparo com relação a questões básicas etc.
A derrubada das florestas, o avanço da agricultura paraguaia, a monocultura de erva mate,
milho e soja, bem como a criação de animais (como o gado, por exemplo), como já registramos, fez
com que os Aché fossem cada vez mais encurralados. Fazendeiros paraguaios nessa época se
tornaram caçadores de Aché. Manuel Jesus Pereira, que mais tarde ficou responsável pelos Aché
sedentarizados, tinha como ocupação justamente esta prática.
O Estado paraguaio, na época uma ditadura chefiada por Alfredo Stroessner, permitiu ou que
tais práticas acontecessem, ainda que elas fossem denunciadas de diferentes lugares por pessoas e
instituições. A cientista política espanhola que já citamos nesta monografia, Sarah Villagra, sinaliza
que na Declaração de Barbados21 os antropólogos que redigiram sua carta registram que o Estado
paraguaio, tanto pela ação quanto pela omissão, é responsável por uma série de crimes cometidos
contra as populações indígenas daquele país.
O trabalho de Mark e Christine Münzel, Bartolomeu Melià, Leon Cadogan, Pierre Clastres,
dentre outros, fez com que a complicadíssima situação dos Aché fosse conhecida
21 Simpósio sobre “fricção interétnica na América do Sul” realizado em Barbados, em 1971.
62
internacionalmente. A publicação de boletins, artigos e livros que tratavam entre outras coisas deste
assunto sedimentou certa compreensão do genocídio praticado contra os Aché.
A cientista política espanhola que já citamos nesta monografia, Sarah Villagra, registra em
um de seus trabalhos que o Estado paraguaio, tanto pela ação quanto pela omissão é responsável por
uma série de crimes cometidos contra as populações indígenas daquele país (Villagra, 2012, p. 94).
O antropólogo norte-americano Warren Thompson manifesta certa desconfiança a respeito
dos trabalhos de alguns antropólogos que produziram e produzem a respeito deste tópico, como
Mark Münzel. Este último, alemão, se tornou conhecido por causa de seu envolvimento com os
Aché nesses primeiros anos da década de 1970. Segundo consta em seu currículo, Münzel fez
trabalho de campo com os Aché por apenas dois anos, em 1972 e 1973. Desde esses anos,
entretanto, fala sobre o genocídio dos Aché. É referência no assunto, publicou bastante sobre o tema
e organiza eventos e obras coletivas que abordam estas práticas.
Thompson justificou suas desconfianças citando erros na tradução e na interpretação de
lamentos e choros (o que fez com que muita bobagem sobre os Aché fosse dita), imprecisões quanto
a termos e uma discordância quanto às conclusões de Münzel e demais antropólogos a respeito do
Estado paraguaio. Ainda que as práticas do Estado paraguaio tenham sido violentas com relação aos
Aché, nada justifica, segundo Thompson, que havia uma política oficial de extermínio dos Aché,
coisa que organizações como a Survival International sustentam e espalham por aí até hoje.
Na primeira vez que estive em Cerro Moroti conversei sobre este assunto com Francisco
Mbepegi. Como havia pesquisado na internet sobre os Aché antes de ir para a aldeia, eu conhecia
sobre a história do genocídio. Também, conforme vimos, o tema do genocídio é um dos motivos
pelos quais os Aché são conhecidos, ou como são conhecidos, representados. É fácil saber deste
assunto quando se pesquisa sobre os Aché na internet.
Meus registros de campo daquele momento são pouco claros, mas tratam justamente do bê-
á-bá do genocídio.
(nota de campo do dia 6 de fevereiro de 2015)
“...antes de termos ido ao arrojo, quando estávamos apenas eu e Francisco conversando, perguntei
para ele a respeito do “genocídio” Aché. Ele respondeu que o Estado paraguaio é responsável
direto pela morte de mais de 500 Aché, que foram retirados de seu “lugar de origem” e colocados
em outro lugar com total ausência de amparo... diz Francisco que é acordo entre todos os Aché a
questão do genocídio... o Estado devia ter pensando nisso, mas não pensou... doenças levaram
muitas pessoas a morte...”
63
Minhas estadias em Cerro Moroti sempre foram negociadas com o cacique Eloy. Da
primeira vez foi Francisco que falou com Eloy sobre minha estadia na aldeia. Em novembro de
2015, na segunda vez na aldeia, a negociação aconteceu de maneira distinta. Logo nos primeiros
dias de minha Francisco me levou até a casa de Eloy, para que nós três pudéssemos falar sobre
minha permanência na comunidade. O genocídio também foi tema daquela conversa, na parte final.
(nota de campo do dia 9 de novembro de 2015)
“...foi então que Francisco começou a falar sobre minha permanência por um mês na comunidade
com Eloy, tudo em aché. [...] eu não entendi nenhuma palavra em aché, mas ouvi “um mês” e
“tesis” no diálogo, entendendo qual era o assunto. [...] a expressão de Francisco era a de alguém
que conversa algo serio e a de Eloy era a de sempre, de sério para muito sério. Francisco numa
dada altura me perguntou sobre meus projetos para a comunidade [...] eu disse esperava que com
os resultados de meus estudos eu pudesse ajudar os aché de Cerro Moroti no sentido de
informação, de algo a mais na luta das comunidades. Foi então que Francisco começou a entrar
no assunto do genocídio dos aché, de como muitas pessoas haviam morrido devido a mudança
brusca de ambiente, de como o governo não tinha pensado nisso [...].”
Senti que o que Eloy e Francisco estavam me dizendo ali é que eu tinha que levar essa
história do genocídio aonde quer que eu fosse; divulga-la, passa-la para frente.
De maneira geral, percebi que esta crítica ao Estado é bastante geral entre os Aché. Nas
entrevistas, nas notícias, nas falas políticas para fora da comunidade, nas conversas com as pessoas
de fora a questão do genocídio é sempre abordada, sempre lembrada. Conforme vimos logo acima,
até hoje os Aché buscam seus diretos com relação ao que aconteceu no passado.
3.10 – DIFERENTES RELAÇÕES COM O MESMO ESTADO
Não podemos enxergar a relação que as populações estabelecem com o Estado de seus
países de maneira monolítica. Ao longo da história estas relações se transformam e muitas vezes
coexistem tipos de relação que do nosso ponto, não indígena, se analisamos de maneira apressada,
podem ser classificados como contraditórias, paradoxais. Justamente é esse o falso paradoxo. Será
que é, do ponto de vista deles?
Não é objetivo desta monografia fazer uma grande apresentação do que foi o genocídio pelo
qual passaram os Aché. Para o que queremos fazer, basta que levemos em conta que ele aconteceu e
que foi bastante violento, marcante para a história de toda uma etnia. Colocamos acima que os
indígenas não esquecem o que aconteceu e que falam sobre isso quando é preciso falar.
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Uma das relações que os Aché enquanto etnia estabeleceram com o Estado paraguaio,
portanto, foi a de conflito, de crítica. Durante anos a situação foi desfavorável aos Aché.
Ao mesmo tempo, observando a produção de soja pelos Aché de Puerto Barra, isso sugere
que outras relações com o Estado paraguaio também são possíveis, ainda que em tempos recentes.
Se no passado os cultivos de erva mate, milho e soja foi causador de enormes problemas, a perda de
tantas vidas, hoje, como no título da reportagem publicada na Gazeta do Povo, a soja dá
sobrevivência a uma “tribo indígena do Paraguai”.
As reflexões realizadas por Carlos Fausto, de um lado, e Miguel Carid Naveira e Godoy
Godoy, de outro, nos serão bastante importantes nesta etapa deste trabalho. De Fausto, traremos a
discussão sobre a influência colonial e a consequente desjaguarificação dos Guarani. De Carid e
Godoy guardaremos os argumentos a respeito das maneiras que memória e esquecimento se
articulam nas avaliações históricas feitas pelas etnias indígenas. Tais considerações, no entanto,
serão por nós mobilizadas de outra maneira.
Ao passo que Fausto, Carid e Godoy fazem suas proposições a partir da leitura de materiais
históricos e etnográficos de parcialidades Guarani que passaram pela experiência colonial, nós
discutiremos os argumentos destes autores relacionando-os a história dos Aché, que enfrentaram a
experiência colonial de maneira distinta.
3.11 – ESQUECIMENTO
Tendo em mente tanto as relações que os Aché atualmente tecem com o Estado paraguaio
quanto as que eles desenvolveram ao longo das décadas, pensamos poder interpretar essa dinâmica
a partir de uma chave oferecida por Carlos Fausto.
Em "Se Deus fosse jaguar: canibalismo e cristianismo entre os Guarani (Século XVI-XX)",
Carlos Fausto reflete sobre a experiência de contato dos povos do tronco linguístico Guarani com as
reduções jesuíticas e a experiência colonial no geral. O argumento central do texto é o de que
ocorreu o que o autor chamou de "desjaguarificação", que é a crescente negação por parte dos
Guarani do canibalismo como prática de reprodução social, ao passo que a ideia de "amor", central
no mundo cristão, tornou-se um conceito-chave para os indígenas desta etnia.
Uma primeira reflexão que Fausto faz neste trabalho é a respeito da maneira como a
"religião Guarani" foi retratada na literatura da etnologia indígena do século XVI até o século XX.
Segundo o autor, dois foram os caminhos escolhidos por aqueles que pensaram sobre o assunto: ou
os Guarani foram descritos como povos que aceitaram docilmente o cristianismo, a catequese e,
enfim, a civilização, ou a imagem mais difundida foi a de que eles na realidade teriam "preservado"
sua religião de qualquer influência externa, ainda que aparentemente tivessem se tornado cristãos.
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Ou o "milagre da conversão", nas palavras do autor, ou uma espécie de "criptopaganismo", uma
identidade que nunca se transforma, nunca se abre a mudança e a alteridade.
Mais do que simplesmente escolher um destes polos – ou mudou tudo, ou nada mudou –
Fausto pensa que entre estas duas imagens há um terreno de dúvida e de incertezas que certamente é
mais produtivo. Ainda, argumenta o autor, a etnologia dos povos indígenas da Amazônia, sobretudo
aquela de inspiração estruturalista, colocou como algo central na análise das sociedades ameríndias
a abertura a mudança e a diferença. Levando isso em conta, Fausto se questiona a respeito dos
Guarani, que na etnologia do século XX, uma vez mais, foram representados como sociedades que
em nada se modificaram, que não sofreram nenhuma influência no contato com outras sociedades.
Ora, as fontes da época da colonização – crônicas quinhentistas e seisentistas – informam
que a relação que os Guarani estabeleceram com as figuras cristãs do período eram bastante
complexas; ocorreu uma constante apropriação e reinvenção dos conteúdos à época trocados.
Práticas, palavras, crenças e objetos eram negociados e reelaborados a todo o momento. Como é
então que a experiência das reduções e o processo histórico do colonialismo não deixaria marcas na
cosmologia Guarani? Mais ainda, por que é preciso negar a transformação de uma cultura e a
influência de outra para afirmar uma identidade?
É no momento em que fala destes contatos entre os Guarani e a experiência colonial – das
transformações – que Fausto nos apresenta o argumento da "desjaguarificação". Defende o autor
que ocorreu uma separação, na cosmologia Guarani contemporânea, de elementos que em outras
cosmologias indígenas se articulam intimamente. O sangue e o tabaco e o guerreiro e o xamã, por
exemplo. Enquanto em cosmologias amazônicas o caçador caracteriza-se muitas vezes pela
predação violenta, pela perseguição do animal, e o xamã é auxiliado por predadores que colocam
medo, entre os Guarani contemporâneos, conforme já trabalhado no capítulo 2, o caçador estabelece
uma relação quase que afetiva com suas presas, e o xamã é por excelência aquele que se alimenta
basicamente de alimentos leves, vegetais, que facilitam a comunicação com as divindades. Seus
auxiliares, por sua vez, são seres com atributos muito distantes da agressividade que caracterizam os
seres auxiliares dos xamãs amazônicos.
Tal separação teve reverberação também na noção de pessoa Guarani, que se divide em uma
alma celeste e uma alma terrena – uma divina e outra animal. A alma divina é aquela que precisa ser
cultivada através do canto, da reza, da ingestão de alimentos leves e do consumo de tabaco, ao
contrário da alma terrena, que não deve, mas é cultivada a partir do momento em que o indígena se
distancia dos preceitos Guarani e realiza, por exemplo, o consumo exagerado de carne (e o exagero,
de maneira geral, conforme já sinalizado no capítulo 2).
Toda esta longa transformação na cosmologia Guarani – do canibalismo ao amor – parece
não ter deixado pegadas, como registra Carlos Fausto (p. 404). Se pensarmos na questão da não
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necessidade de negar uma mudança para se afirmar uma cultura ou uma identidade, parece ter sido
esse o modo que os Guarani escolheram para pensar todas estas transformações. Em outras
palavras, os signos de uma cultura-Outra na cosmologia Guarani não fez com que os indígenas
desta etnia passassem a ser pensar como Outros ou como menos indígenas. Ao contrário, os Guarani
fizeram desta diferença a sua própria singularidade, sua própria cultura.
Parece-nos bastante importante falar no papel que o esquecimento possui em todo esse
processo histórico. Ao refletir se esse esquecimento foi puramente resultado de uma sociedade sem
escrita (uma falha de memória) ou se ele foi um fenômeno ativo, intencional (uma maneira de
produzir memória coletiva) (p. 402), Fausto nos lembra que a experiência colonial contribuiu em
grande medida para que esta espécie de olvido viesse a existir. Migrações forçadas, epidemias,
mestiçagem, mudanças radicais nas amplas redes transmissão de saberes, memórias, a própria
descontinuidade da experiência colonial, de seus ciclos, reinvenções culturais: tudo parece ter
contribuído para que o fenômeno acontecesse.
A história da experiência colonial e a etno-história, por fim, também se relacionam com o
tema do esquecimento. Pelo fato da história oficial e a etno-história terem se concentrado apenas em
momentos específicos, argumenta Fausto (p. 404), ficou a impressão de que ou a história do contato
é a simples imposição lenta de um modelo de vida a outros povos e sociedades, ou ela é a recusa
total destas diferenças, contra qualquer forma de transformação. Ou é a história dos Outros, vinda
dos outros, ou é a história do Mesmo, feita pelos indígenas sem a presença de mais ninguém: ambas
contrárias a alteridade inerente à própria história.
As ideias de Fausto podem ser amarradas às proposições de Miguel Carid Naveira e Gustavo
Godoy. Destes dois últimos autores, pensamos ser importante a ideia de “avaliação histórica”.
O artigo escrito por Carid e Godoy, intitulado "A diferença que faz a diferença: originais e
cópias Guarani-Mbya", tem por objetivo central a análise das categorias de "original" e "cópia"
presentes em um conjunto de narrativas míticas que empregam esta oposição. Levando em
consideração a correspondência entre mito e história, os autores argumentam que é possível
encontrar nestas narrativas uma avaliação da experiência colonial pela qual passaram os Mbya.
As personagens principais das narrativas míticas selecionadas pelos autores para realizar a
análise são Kuaray e Xariã. Kuaray aparece nestes mitos sempre associado aos Mbyá e aos deuses.
É sempre representado como criador de coisas originais, sóbrias, sem muitos detalhes, e sobretudo
boas aos Mbya. Xariã, por sua vez, é sempre associado ao mundo dos brancos. É mal, funesto,
imitador, exagerado, atrapalhado e criador de condições nocivas aos indígenas.
A narrativa utilizada pelos autores para apresentar a oposição entre "original" e "cópia" diz
respeito à criação de Nhanderu do segundo mundo. Quando Nhanderu estava concluindo seu
trabalho, decidiu fazer um cesto para ser usado pelos Mbya. O cesto foi produzido de taquara e
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imbê, com duas cores e motivos simples. Xariã, ao ver a invenção de Nhanderu, decidiu imitá-lo,
mas fez sua cestaria com motivos muito mais elaborados, além de utilizar mais cores, que imitavam
a pele de animais como a cobra e a borboleta. Nhanderu, ao ver esta imitação, bastante diferente da
original, ficou furioso.
O mito continua e conclui-se com Nhanderu criando o homem e a mulher. Para os objetivos
de nosso texto, porém, basta que fiquemos por aqui.
A história de Kuaray e Xariã – os "originais" e as "cópias" – e como ela se associa ao mundo
dos brancos pode ser notada em várias outras extensões da vida Mbya.
Segundo os autores, existe na produção de objetos mbya a oposição entre utensílios para o
"autoconsumo" e itens para a comercialização, as "mercadorias". Enquanto os primeiros são simples
nos detalhes, sóbrios na coloração, os fabricados para a venda são sempre coloridos, vistos pelos
mbya como exagerados. O objetos para consumo são obra de Kuaray, de Nhanderu, ao passo que os
para venda são criações de Xariã, cópias exageradas. (citar falas indígenas)
Há também nos planos botânico e zoológico esta diferenciação entre as criações de Kuaray e
Xariã. Os autores argumentam que nestes domínios a relação entre "originais" e "cópias" se atualiza
e são realizadas especulações sobre as características morfológicas e ontológicas dos animais,
plantas e peixes (p. 112). O exagero nas formas, nas cores e na mistura mais uma vez se fazem
presentes, sempre ao lado de Xariã.
Na narrativa mítica escolhida pelos autores para demonstrar esta especulação, fala-se sobre
as plantas, animais e peixes criados por Nhanderu e Xariã no primeiro mundo. Entre os vegetais
podemos citar o "avaxi ete", ou milho verdadeiro, a mexerica, algumas espécies de banana e o mel.
Entre os animais, o tatu, a queixada, o quati, a onça pintada, a galinha silvestre, o papagaio e as
espécies de cobras não venenosas. Entre os peixes estão o bragre, a tainha, o lambari e as carpas
brancas.
Xariã, sempre imitador, como no caso das cestarias, quis ser mais criativo que Nhanderu.
Entre os vegetais criou os coloridos, tais quais a beterraba e a cenoura. O milho híbrido também é
sua invenção, além das plantas folhosas, como a couve e o repolho, que são imitações das plantas
criadas por Nhanderu, que originalmente são utilizadas como medicamento. Entre as frutas estão a
manga, o abacaxi e o limão. Entre os animais, Xariã, que também é conhecido como Anhã, criou as
cobras venenosas e os animais que são caracterizados como sendo de "criação" dos brancos: as
galinhas, o gado, os porcos, cavalos e animais não presentes no mundo indígena, como leão e a
zebra.
Uma das reflexões gerais do artigo de Naveira e Godoy refere-se à própria existência da
oposição entre "originais" e "cópias". Os autores chamam a atenção para o fato desta oposição se
organizar de maneira hierarquizada e valorativa, isto é, de relegar aos brancos, e não aos indígenas,
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as características negativas de existência, associadas a Xariã – o que no texto Naveira e Godoy
denominaram de "lugar cosmologicamente marcado".
O argumento da "desjaguarificação", apresentado por Carlos Fausto em artigo de 2005, é
trazido para a discussão pelos autores na parte final do trabalho. A reflexão de Fausto é inserida no
debate pelo fato de o autor dar valor as transformações da cosmologia Guarani motivadas pelo
contato com a experiência colonial. Tecendo um paralelo entre o canibalismo e o amor
(transformação argumentada por Fausto) e Kuaray e Xariã, Naveira e Godoy argumentam que a
troca do canibalismo pelo amor não apenas faz com que o excesso de carne, de predação e violência
sejam desprezados, mas também que seres excessivos – em qualquer sentido – também o sejam.
Neste caso, os seres excessivos são os não indígenas, suas produções e seus modos de viver –
sempre associados a Xariã, aos brancos.
Ainda seguindo a reflexão realizada por Fausto, Carid e Godoy também entendem que o
esquecimento possui grande importância no processo de constituição da tradição Guarani. Mas os
autores sinalizam que ainda que as pegadas do jaguar tenham sido apagadas, conforme coloca
Fausto no artigo de 2005 (p. 404), nem por isso os Guarani não desenvolveram a capacidade de
avaliar de maneira independente a experiência histórica pela qual passaram. A capacidade de
memória e de esquecimento dos Guarani, apontada por Fausto, ainda que em situação desfavorável,
como a situação colonial, não perdeu a capacidade examinar os acontecimentos conforme os valores
mbya de "experiência e avaliação histórica" (p. 124).
Em outros termos, ainda que a relação entre os Guarani e a experiência colonial de um modo
geral tenha provocado transformações na cosmologia dos Guarani, tais transformações não se
deram sem que os Guarani as percebessem, as avaliassem, as criticassem. Houve transformações,
conforme demonstra o artigo de Fausto, mas os Guarani souberam muito bem se posicionar em
relação a estas mudanças.
10. 12 – AVALIAÇÕES HISTÓRICAS
Com estes trabalhos em mente e pensando em relação à experiência dos Aché, creio que
alguns apontamentos podem ser feitos. Podemos enxergar que a raridade da caça e da coleta como
forma de produção da alimentação seja um esquecimento por parte dos Aché. A figura do caçador e
do guerreiro, outrora explicitamente importante, identitária, hoje existe de maneira distinta. A
entrada no mercado da soja, de algum ponto de vista desatento, pode ser enxergada como um
esquecimento por parte dos Aché de quem o Estado realmente é. A pessoa desatenta pode pensar:
como os Aché podem plantar soja, milho e praticarem a monocultura, coisa que no passado os fez
enfrentarem diversos problemas? Nos questionamos se o paradoxo, aqui, realmente existe.
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Se historicamente as etnias escondem algumas pegadas, alguns elementos de seu passado, e
aqui pensando com Fausto, elas ao mesmo tempo realizam avaliações históricas, elas possuem
opinião sobre as coisas que aconteceram, e aqui levando em conta as reflexões de Carid e de Godoy.
Os Aché, obviamente, não esqueceram de seu passado apenas porque plantam soja. São diferentes
avaliações das relações que eles teceram e tecem com o Estado e a sociedade envolvente paraguaia.
O argumento principal de Pierre Clastres no artigo “A sociedade contra o Estado” (1974) é o
de que sociedade Aché era produtora de um mecanismo sociológico que impedia a separação
política entre quem manda e quem obedece, que ela era contra a existência de um “corte” entre
aqueles que têm e aqueles que não têm poder. É por este motivo que as “sociedades primitivas” não
eram sociedades sem Estado, mas sociedade “contra” o Estado. Em outro trabalho, reforçando este
argumento, Clastres registra que não é preciso experimentar a alienação política para recusá-la
(1980, p. 202 e 203).
A maneira como os indígenas mantém essa indivisão de sua sociedade se dá através do
controle da chefia, que ao invés de mandar em todos, lembrando-nos a figura do déspota, é
mandado por todos, pela própria sociedade. O chefe deve falar a todos, mesmo que ninguém lhe dê
ouvidos, deve ser generoso, deve ser apaziguador sem tomar nenhum dos lados. O chefe se doa à
sociedade.
Francisco falou sobre isso quando o assunto foi a chefia:
(nota de campo de 13 de novembro de 2015)
“...a comida destas festas é comprada pelo cacique, como no caso do mutirão. Comentei que tinha
que ser generoso para ser cacique e Francisco concordou, dizendo que “tem que se dedicar a
comunidade para ser cacique, às vezes deixando a família de lado, igual a uma prefeitura”.
Cabe ao cacique da sociedade indígena também outra atividade: organizar as expedições
guerreiras. O prestígio do chefe após as vitórias era grande, mas tais empreitadas eram
imediatamente esquecidas.
Nesse sentido, em “Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas”, artigo
póstumo publicado em 1980, Pierre Clastres faz uma reflexão a respeito da guerra nas “sociedades
primitivas”. Para este autor, a guerra não é resultado de trocas malsucedidas, como por exemplo
registra Lévi-Strauss em seu “o princípio da reciprocidade”, capítulo das “As estruturas elementares
do parentesco”, de 1949. A troca é que é uma tentativa de evitar a guerra, argumenta Clastres. A
guerra nas “sociedades primitivas” era a condição permanente de relação com os Outros, com as
70
outras populações indígenas. Mas a guerra contra todos não é possível, pois não se pode ter apenas
inimigos. É preciso ter aliados, ter amigos, com quem se troca.
O que caracteriza a sociedade indígena, escreve Clastres, é a sua característica de indivisão e
de diferença em relação a outras sociedades, indígenas ou não. A “sociedade primitiva” é contra o
Estado, contra a divisão entre quem manda e quem obedece, e é contra a dissolução de sua
“diferença” em um mar de semelhança, isto é, contra a amizade de todos contra todos, pois isto
resulta em um tipo de unificação.
Na notícia da Gazeta do Povo, por duas vezes a autora escreve que a soja dá autonomia a
comunidade de Puerto Barra. No corpo do texto isso está escrito, registrando que é a soja que
permite que os indígenas vivam sem cestas básicas e auxílios governamentais. Na notícia do Vive lo
Hoy o indígena Lorenzo Puapurai faz uma avaliação de que a situação dos Aché está bem melhor
que a de outras etnias indígenas, que estão “en los semáforos o en la terminal de ómnibus,
mezclados en el vicio de la droga y la prostitución” ou então que “usan sus tierras para recolectar o
cazar como sus ancestros “y esperan ayuda de las organizaciones indigenistas”.
Mencionei que quando conversei com Pedro Mbejywagi na festa de 15 anos de Blanca,
Pedro o mesmo me disse que os Aché são bastante trabalhadores e que nunca os veremos nas ruas
pedindo dinheiro, como fazem os Mbyá. Os Aché são lutadores, pedem terra para trabalhar.
Cornelio falou algo nesse sentido em um dos primeiros dias em campo, contrapondo os Aché aos
Guarani. Tanto Mbejywagi quando Mbykagi destacaram o “ficar pedindo nas ruas” como algo ruim,
que não se faz. Francisco Mbepegi, em uma conversa qualquer, falou quase a mesma coisa.
(nota de campo de 16 de novembro de 2015)
“...Francisco falou sobre como nunca veremos um Aché na rua pedindo coisas... os Aché pedem
terra, e pedem para trabalhar, porque “os Aché são muito trabalhadores”... Mbepegi disse que as
seis comunidades são muito solidárias umas com as outras, quando uma pede ajuda para qualquer
coisa eles se organizam e vão ajudar... interessante esse discurso do “trabalho”, da “comunidade”,
da “união”, da “solidariedade”... o que as pessoas daqui escolhem iluminar?”
Levando em conta as reflexões de Clastres sobre a característica de indivisão e de
manutenção da diferente das “sociedades primitivas”, lembro-me de alguns elementos da história
recente dos Aché.
A produção de soja, as distintas maneiras de relação com o Estado, as avaliações da
experiência histórica contida nas falas, os destaques em relação a outras etnias, as perspectivas de
futuro, não estão nos sugerindo certo desejo dos Aché de se manterem independentes em relação
71
aos que não consideram seus amigos, seus aliados? Se “independentes” parece bastante exagerado,
podemos pensar em uma maneira dos Aché pautarem um outro tipo de relação com esses ora
“inimigos” ora “aliados”. Trata-se de estratégia.
Estas últimas linhas nos ocorrem como hipóteses, conjecturas. É preciso fazer mais pesquisa
para entendermos o que é que está acontecendo. Podemos porém sinalizar que as relações com o
Estado e a sociedade envolvente são dinâmicas, se transformam, coexistem.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um dos dias em campo, após algum tempo em silêncio, Francisco e eu conversamos
sobre os alimentos de sua casa. A emoção tomou conta: Francisco falou baixo e devagar, como se
estivesse desabafando. E ao final fez um pedido: “você deve falar coisas boas dos Aché aos seus
professores”. Espero ter cumprido a vontade de Francisco, isto é, ter respeitado os Aché de Cerro
Moroti e de outras localidades.
Ao longo desta monografia falamos sobre a situação das populações indígenas no Brasil e
no Paraguai. Como as relações entre os grupos e as sociedades nacionais aconteceram ao longo da
história, como elas mudaram etc. Vimos que hoje há uma série de garantias aos povos indígenas
(constantemente em risco), coisa que aproxima todos nós. Para estudar os povos indígenas hoje,
portanto, não podemos ter em mente a ideia de que essas populações vivem como totalidades
isoladas. Estivemos em campo no leste do Paraguai, em 2015, e não em Trobriand.
Na sequência, falamos de algumas referências da etnologia guarani. Nádia Silveira e Mártin
Tempass nos auxiliaram, a partir de suas reflexões sobre os mbyá, a olhar para os dados a respeito
dos Aché de uma maneira otimista, procurando as maneiras indígenas nos comportamentos, nas
ações. A ênfase aqui é na ação. Entre os Aché, diferentemente de como ocorre entre os mbyá,
apenas os homens vão as chácaras para o trabalho. As mulheres ficam em casa, preparam as
refeições, cuidam dos filhos. A maneira como os alimentos são preparados, distribuídos e
consumidos entre eles se mostrou distinta da forma como nós não indígenas fazemos estas mesmas
atividades, ainda que muitas vezes o mesmo ingrediente seja utilizado. Já falamos sobre as
conexões entre o argumento de Silveira e de Sahlins. As culturas se transformam ao mesmo tempo
em que não deixam de ser o que são, e a experiência etnográfica sustenta esta afirmação. A
“guaranização” dos alimentos e artefatos dos não indígenas seria a indigenização do que vem de
fora, a aproximação daquilo que veio do Outro pela prática, pela ação, pela vida.
Refletindo sobre o modo como a agricultura acontece em Cerro Moroti, percebemos que ela
também acontece de maneira diferente em outra comunidade, a de Puerto Barra. Toneladas de soja
são plantadas e exportadas pelos Aché residentes no departamento de Alto Paraná. Os jornais
paraguaios e de outros países aprovam a situação, e nos parece que é esta também a posição do
Estado paraguaio. Ao mesmo tempo, esta situação contrasta quando o assunto tratado é o genocídio
cometido contra os Aché, que a etnia, em geral, não esquece. Selecionamos e analisamos notícias
que versam sobre a soja e reportagens cujo assunto principal é o genocídio. Elas nos apresentam
distintas maneiras dos Aché se relacionar com o Estado e com a sociedade envolvente paraguaia.
Amparado em Fausto, Carid e Godoy, entendemos que os Aché tem plena noção do que lhes
aconteceu no passado e que sabem avaliar criticamente a sua história.
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Registramos em alguns momentos deste trabalho que o fato dos Aché incursionarem na
produção da soja pode parecer paradoxal, afinal, como estes indígenas plantam hoje aquilo que no
passado os vitimou? Como fazem algo que os distingue tanto da condição clássica de indígena? E
como se alinham as diretrizes econômicas do Paraguai, isto é, desenvolver a monocultura, a
agricultura de exportação?
Entendemos que estas são questões apressadas, e de maneira nenhuma queremos nos
aproximar a este tipo de raciocínio. Preferimos pensar que são distintos os motivos que levam os
Aché a adentrarem nesse mundo da grande agricultura, da exportação, da soja. Estado, sociedade
envolvente e imprensa – se que é da para falar disso com alguma precisão utilizando apenas estes
termos – não se comportam da mesma maneira, porque é que os Aché se comportariam como
qualquer um deles? Preferimos olhar para estas experiências dos Aché como um dos modos da ação
indígena.
Levantamos, ao final do trabalho, alguns pontos da reflexão realizada por Pierre Clastres
sobre a “autonomia” e a “garantia da diferença”, pontos importantes, segundo o autor, na vida das
“sociedades primitivas”. Embora seja necessário mais pesquisa, nos perguntamos: não seria a
entrada no universo da soja, por parte dos Aché, uma tentativa de se manterem minimamente
autônomos em relação a aqueles que antes eles em grande medida dependiam? O plantio de soja
não pode ser visto como uma tentativa de garantir a independência, a distintividade?
Esperamos poder trabalhar estas questões – e mesmo ver se elas são pertinentes – em um
trabalho de maior fôlego, em uma próxima etapa.
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ANEXO A
Região de Naranjal, onde se encontra a comunidade de Puerto Barra.
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ANEXO B
Região de San Joaquin, onde se localiza a comunidade de Cerro Moroti.
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