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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
Programa de Estudos Pós Graduados em
Educação, Arte e História da Cultura
ANA CARMEN NOGUEIRA
Lygia Clark - Uma experiência de arte na vida de jovens cegos
São Paulo
2010
N778L Nogueira, Ana Carmem Franco Lygia Clark : uma experiência de arte na vida de jovens cegos / Ana Carmem Franco Nogueira – São Paulo, 2010 185 f. :33 il. ; 30 cm + 1DVD-ROM, CD-ROM Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2010. Referências bibliográficas: f. 145-151.
1. Arte. 2. Deficiência visual. 3. Cego. 4. Educação.
5. Clark, Lygia. I. Título.
CDD 371.911
ANA CARMEN NOGUEIRA
Lygia Clark - Uma experiência de arte na vida de jovens cegos
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Estudos Pós Graduados em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura
Orientadora: Profª. Drª. Elcie F. Salzano Masini
Agencia Financiadora: Mackepesquisa - Fundo de Apoio à Pesquisa da Universidade Presbiteriana
Mackenzie
São Paulo
2010
ANA CARMEN NOGUEIRA
Lygia Clark - Uma experiência de arte na vida de jovens cegos
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Estudos Pós Graduados em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura
Aprovada em
Banca Examinadora
_____________________________________________________________
Profª. Drª. Elcie F. Salzano Masini
Universidade Presbiteriana Mackenzie - Orientadora
_____________________________________________________________
Profª. Drª. Mirian Celeste Martins
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_____________________________________________________________
Profª. Drª. Eliana Ormelezi
Laramara – Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual
Gracias a la vida
Composição: Violeta Parra
Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me dió dos luceros que cuando los abro
Perfecto distingo lo negro del blanco
Y en alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes el hombre que yo amo
Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me ha dado el oído, que en todo su ancho
Traba noche y dia grillos y canarios
Martirios, turbinas, ladridos, chubascos
Y la voz tan tierna de mi bien amado
Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido y el abecedario
Con él las palabras que pienso y declaro
Madre, amigo, hermano y luz alumbrando
La ruta del alma del que estoy amando
Gracias a la vida,que me ha dado tanto
Me ha dado la marcha de mis pies cansados
Con ellos anduve ciudades y charcos
Playas y desiertos, montañas y llanos
Y la casa tuya, tu calle y tu patio
Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me dió el corazón que agita su marco
Cuando miro el fruto del cerebro humano
Cuando miro el bueno tan lejos del malo
Cuando miro el fondo de tus ojos claros
Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto
Gracias a la vida
Obrigada à meu pai que me ensinou a me maravilhar com a vida
Obrigada à minha mãe que me ensinou a lutar
Obrigada ao meu marido que me ensinou a confiar
Obrigada à minha filha que me ensinou a amar incondicionalmente
Obrigada a meus alunos que me ensinaram a viver
Obrigada à minha orientadora que me desafiou a continuar
Obrigada ao Mackenzie e ao Mackepesquisa que acreditaram em mim
Obrigada à Lygia Clark que me presenteou arte como vida e a vida como arte
Obrigada aos poetas e filósofos que me alimentaram
Obrigada aos amigos que me acalentaram.
Obrigada à vida que me deu tanto;
tristezas, enganos, ilusões e incertezas
mas também amores, amigos, sonhos , promessas e esperança.
Obrigada à vida.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem e há os que se perdem por te achar,
ó desatino ó verdade, ó fome
de vida!
Ferreira Gullar
Resumo
O presente trabalho investiga o significado de uma experiência de arte
baseada nas obras de Lygia Clark, ocorrida em um ateliê para deficientes visuais,
em parceria com o Projeto Acesso: Centro de Apoio Pedagógico Especializado ao
Deficiente Visual, na cidade de São Paulo, Brasil. O objetivo da pesquisa foi o de
analisar o que os alunos realizaram no ateliê de artes no período de fevereiro a
junho de 2008 e por meio de entrevistas realizadas após dois anos da experiência
no ateliê, colher depoimentos de dois jovens cegos congênitos sobre essa
experiência artística, e o significado da mesma em suas vidas. A fundamentação
desta dissertação contém uma revisão teórica sobre as concepções de experiência,
experiência estética e o corpo na experiência de espaço, com base em teóricos que
seguiam a mesma linha de pensamento da fenomenologia de Maurice Merleau-
Ponty. Para compreender o mundo da pessoa cega, baseamo-nos na abordagem
fenomenológica acerca da pessoa com deficiência visual de Elcie Masini. O projeto
Lygia Clark foi fundamentado em pesquisadores que elaboraram estudos de suas
obras e suas ligações com a fenomenologia merleaupontiana, com descrição do
contexto do ateliê de artes e o desenvolvimento de materiais adaptados a pessoas
deficientes visuais. A análise das entrevistas – cuja linha diretriz foi experiência
perceptiva dentro do ateliê – evidenciou que os alunos compreenderam a proposta
do projeto Lygia Clark e foram capazes de inventar novas formas de expressão. As
reflexões sobre os significados da experiência no ateliê para os sujeitos da pesquisa
permite afirmar que, para eles, a arte foi importante como abertura para o mundo e
ampliação de conhecimento.
Palavras chaves: arte; deficiência visual; cego; Lygia Clark; educação.
Abstract
The present study investigates the meaning of an experience of art based on
works by Lygia Clark, held on a studio for the visual impaired, in a partnership with
Projeto Acesso: Educational Support Center Specialized in the Visual Impaired, in
Sao Paulo city, Brazil. The research objective was to, through interviews conducted
after two years of experience in the studio, receive testimony of two young
congenitally blind people about this artistic experience, and its meaning in their lives.
The rationale behind this thesis contains a theoretical review on the concepts of
experience, aesthetic experience and the experience of space in the body, based on
theorists who followed the same line of the phenomenology of Merleau-Ponty. To
understand the world of the blind people, we rely on phenomenological about the
person with visual impairment of Elcie Masini. The Lygia Clark project was based on
researchers who produced studies of her works and their connections with the
merleaupontinian phenomenology, describing the context of the arts studio and the
development of materials adapted to visually impaired persons. The interviews
analysis - whose main line was perceptual experience within the studio - has shown
that students understood the Lygia Clark project proposal and were able to invent
new forms of expression. The reflections on the meanings of experience in the studio
for the research subjects have shown that, for them, art was important as an opening
to the world and to expand knowledge.
Keywords: art; visual impairment; blind; Lygia Clark; education.
Lista de ilustrações
Figura 1: Publicado em: Novi Orbis Indiae Occidentalis, 1621: Various incarnations of the "Land Down
Under". .................................................................................................................................................. 30
Figura 2: Atividades de compreensão da passagem do tridimensional para o bidimensional. ............ 58
Figura 3: Mesa paleta. ........................................................................................................................... 59
Figura 4: Fotos de Orientação e Mobilidade. ........................................................................................ 64
Figura 5: Unidade Tripartida, 1948/49 de Max Bill. .............................................................................. 70
Figura 6: Fita de Moebius em xilogravura de M.C. Escher 1961. .......................................................... 74
Figura 7: Fotos do workshop Lygia Clark para professores (fotos: Ana Carmen Nogueira). ................ 75
Figura 8: Duas obras da artista Lygia Clark............................................................................................ 78
Figura 9 Josef Albers. Structural Constellation, Transformation of a Scheme No.12 1950. ................. 79
Figura 10: Espaço Modulado (1958). ..................................................................................................... 80
Figura 11: Casulo. Lygia Clark ................................................................................................................ 81
Figura 12: Bicho ponta. Lygia Clark, 1960. ............................................................................................ 84
Figura 13: Obra Mole. Lygia Clark. ........................................................................................................ 86
Figura 14: Dentro e fora. Lygia Clark. .................................................................................................... 86
Figura 15: Fotos de obras adaptadas. ................................................................................................... 90
Figura 16: Esquerda: Composição nº 5, série Quebra da moldura; Lygia Clark, 1954. Direita: Obra
adaptada. .............................................................................................................................................. 94
Figura 17: Esquerda: Superfície modulada nº 2, Lygia Clark, 1955. Direita: Obra adaptada. ............... 94
Figura 18: Esquerda: Planos em superfície modulada nº 1, Lygia Clark, 1957. Direita: Obra adaptada.
............................................................................................................................................................... 95
Figura 19: Esquerda: Planos em superfície modulada nº 5, Lygia Clark, 1957. Direita: Obra adaptada.
............................................................................................................................................................... 95
Figura 20: Esquerda: Espaço Modulado nº4, Lygia Clark, 1958. Direita: Obra adaptada. .................... 96
Figura 21: Esquerda: Espaço Modulado, Lygia Clark, 1958. Direita: Obra adaptada. ........................... 96
Figura 22: Descoberta da linha orgânica. .............................................................................................. 97
Figura 23: Descoberta da linha orgânica. .............................................................................................. 97
Figura 24: Plano em Superfície Modulada. ........................................................................................... 98
Figura 25: Alunos explorando as obras adaptadas. .............................................................................. 99
Figura 26: Imagens dos trabalhos desenvolvidos pelos alunos. ......................................................... 101
Figura 27. Imagens de casulos elaborados pelos alunos. ................................................................... 104
Figura 28: Imagens da produção dos bichos de papel. ....................................................................... 106
Figura 29: Bichos de papel dos alunos. ............................................................................................... 107
Figura 30: Imagens dos bichos de madeira. ........................................................................................ 108
Figura 31: Imagens dos bichos moles.................................................................................................. 110
Figura 32: O banco de pedra do Asilo Saint Remy. Van Gogh. Obra, trabalho adaptado e trabalho
conjunto. ............................................................................................................................................. 124
Figura 33: Imagens da exposição, Todos os Cantos. ........................................................................... 128
Sumário
Antecedentes ...................................................................................................................................... 11
Introdução ............................................................................................................................................ 15
1. O que é experiência? ................................................................................................................. 20
1.1. A experiência estética ........................................................................................................... 24
1.2. A experiência e a pessoa deficiente visual ....................................................................... 29
1.3. A experiência estética da pessoa cega ............................................................................. 36
1.4. Corpo – experiência de espaço .......................................................................................... 44
2. O ateliê: percurso do contato do cego com arte .................................................................... 50
2.1. O ateliê: potencialidades no encontro do cego com a arte ............................................. 64
2.2. Lygia Clark: a arte como vida, a vida como arte .............................................................. 69
2.3. Os materiais adaptados ........................................................................................................ 89
2.4. Os trabalhos desenvolvidos pelos alunos ......................................................................... 99
2.5. Casulos ................................................................................................................................. 102
2.6. Bichos e outros bichos ........................................................................................................ 105
2.7. Obras Moles ......................................................................................................................... 109
2.8. Exploração do espaço externo .......................................................................................... 111
3. A pesquisa de campo: dois anos depois .............................................................................. 114
3.1. Sujeitos ................................................................................................................................. 116
3.2. Procedimentos ..................................................................................................................... 117
3.3. Local ...................................................................................................................................... 118
3.3.1. Entrevista com os sujeitos da pesquisa, após dois anos das atividades
desenvolvidas no ateliê. .................................................................................................................. 118
3.4. Materiais e equipamentos .................................................................................................. 120
3.5. Procedimentos para a análise das entrevistas ............................................................... 120
4. Análise da experiência do ateliê na perspectiva dos alunos ............................................. 122
4.1. Aprender ................................................................................................................................ 122
4.2. Compartilhar .......................................................................................................................... 128
4.3. Aproximar ............................................................................................................................... 130
4.4. Colaborar ................................................................................................................................ 131
4.5. Transformar ............................................................................................................................ 133
4.6. Reflexão sobre a experiência do ateliê na perspectiva dos alunos ....................................... 135
Considerações finais ........................................................................................................................ 141
Referencias Bibliográficas ............................................................................................................... 145
Anexo 1 – Questionário básico para entrevista com os alunos ................................................ 152
Anexo 2 – Transcrição das entrevistas com os alunos .............................................................. 153
Antecedentes
Formada em artes plásticas em 1981, durante um período dei aula para crianças e
adolescentes, fiz desenho de estamparia e montei um ateliê de artes. Por alguns anos me
afastei da área e fui trabalhar em um bureau de artes gráficas.
Em 2000, entrei no curso de Direito. Neste curso tive como colega de classe Paula.
Paula tinha baixa visão e sofria muito com a incompreensão de todos em relação ao que era
capaz de ver e não ver. Foi meu primeiro contato com uma pessoa com deficiência visual.
O curso de direito, não terminei, ficou para trás por uma série de dificuldades que a
vida nos traz, mas a esse curso posso agradecer ter tido a oportunidade do primeiro contato
com outro modo de perceber o mundo. Aprendi muito, principalmente a estudar, graças a
meu professor de direito penal Prof. Ivan Martins Motta.
No turbilhão de uma crise que teve início em 2000, foram surgindo questões de
quem era eu nesse mundo, e o que estava fazendo de minha vida. Quem precisava de
mim? E no final, quem eu acreditava que precisava de mim foi quem me salvou.
A vida parece ser uma espiral girando em torno de um ponto central, afastando-se ou
aproximando-se. Ela se centra, retorce, desce, sobe sobre si mesma trazendo ecos e
vibrações daquilo que vivemos. Nosso ponto de partida pode retornar como ponto de
chegada renovado pela nossa vivência no mundo. Assim, a arte e a educação voltaram à
minha vida.
Em 2003, iniciei a especialização em educação especial com aprofundamento em
deficiência visual, após ler a tese de doutorado de Nely Garcia “Programas de Orientação e
Mobilidade no Processo de Educação da Criança Portadora de Cegueira”, defendida na
Universidade de São Paulo, em 2001. Nessa tese Nely falava sobre o curso de
especialização da Universidade Cidade de São Paulo. Fiz esse curso de Educação
Especial. Minha busca era compreender como uma criança cega se desenvolvia neste
mundo tão visual. Como trabalhar artes com crianças deficientes visuais? Como ela
descobria os espaços e se locomovia?
O curso de Educação Especial abriu novas fronteiras e aguçou minha necessidade
de saber mais. Durante o curso fizemos a transcrição de um livro infantil, de nossa livre
escolha, para o Braille. Tínhamos, também, que transformar as ilustrações em ilustrações
táteis e, a partir daí nasceu um grande interesse pela questão da acessibilidade à arte visual
pela pessoa com deficiência visual. O curso não se preocupou em fazer um aprofundamento
maior nas questões das ilustrações táteis e muito menos na questão da arte para pessoa
com deficiência visual. Essa era minha busca pessoal.
Comecei a estudar sobre ilustrações táteis e de como elas podiam contribuir para o
desenvolvimento intelectual e sensorial desse grupo. Através de artigos, publicações e anais
de congressos disponíveis na Internet, fui aprendendo cada vez mais sobre este campo tão
interessante. Encontrei vários materiais relacionados à arte e pessoas com deficiência
visual. Aprendi sobre técnicas de elaboração de ilustração de livros e adaptação de
materiais. Infelizmente, encontrei pouca coisa sobre este assunto no Brasil, principalmente
sobre a arte.
Fiz o Curso de Extensão “Ensino da Arte na Educação Especial e Inclusiva”, na
Pinacoteca do Estado de São Paulo. Foi Amanda Tojal, coordenadora do curso, quem abriu
novos caminhos de conhecimento. Nesse curso foram estudadas as Inteligências Múltiplas
na visão de Howard Gardner e Celso Antunes. Descobri a Didática Multisensorial do
espanhol Miguel Albert Soler. Uma das propostas do curso era a de elaborar em equipe um
Roteiro de Planejamento de Curso ou Programas de Artes para públicos Especiais ou
Inclusivos. Faziam parte do grupo: Maria Carolina Tiengo, Maria Elisa Rizzi, Regina Maria
Gabriel e eu. Apresentamos o “Projeto Ronda” que tinha por objetivo possibilitar o acesso à
vida cultural e histórica do centro de São Paulo, para o público de pessoas com deficiência.
O roteiro que desenvolvemos pré-estabelecia que um percurso seria feito a pé, utilizando os
vários meios da multissensorialidade, para conhecer os espaços arquitetônicos do centro
que refletissem a história da capital paulista. Atenderíamos pessoas com e sem deficiência,
grupos que denominamos de “grupos inclusivos”. Pretendíamos atender pessoas com
deficiência (visual, auditiva, intelectual e física, desde que possuíssem algum meio de
locomoção) e pessoas que não tinham nenhum tipo de deficiência compartilhando novos
saberes da cidade. Embora jamais tenha saído do papel, o projeto nos foi extremamente
gratificante e acreditávamos que poderia ter sido um sucesso caso fosse implementado.
Ao término do curso trabalhei como voluntária no “Programa Ação Educativa para
Públicos Especiais” da Pinacoteca do Estado de São Paulo, coordenado por Amanda Tojal.
Como voluntária, acompanhava as visitas dos grupos de pessoas com deficiência e ajudava
na mediação entre as obras daquele equipamento cultural e esse público.
Em agosto de 2004 apresentei uma proposta de ateliê de artes para pessoas
com deficiência visual ao “Projeto Acesso: Centro de Apoio Pedagógico
Especializado ao Deficiente Visual”, na cidade de São Paulo, Brasil. Com
experiência restrita em trabalhar com pessoas com deficiência visual fui me
aprimorando através de várias leituras sobre o cego e a pessoa com baixa visão,
como Berthold Lowenfeld, Our blind children: growing and learning with them; Art
Beyond Sight: A resource guide to art, creativity, and visual impairment; Soledad
Ballesteros, La batería de habilidades hápticas: un instrumento para evaluar la
percepción y la memoria de niños ciegos y videntes a través de la modalidad
háptica; Maria José Lobato Suero, et al. El desarrollo de habilidades en las personas
con necesidades especiales, e muitos outros.
Com Ostrower (1983) em seu livro Universos da Arte, vislumbrei a
possibilidade de traçarmos um caminho parecido com o que ela havia feito com seus
alunos operários de uma fábrica, a Encadernadora Primor, no Rio de Janeiro, em
1972. Se aqueles operários, que não conseguiam “enxergar” a arte pela falta de
contato, não pela falta do sentido da visão, aos poucos foram aprendendo a
compreender esse universo, supus que, com as mesmas ferramentas “adaptadas” à
pessoa com deficiência visual poderíamos encontrar um caminho. “[...] não se
tratava de transformar os operários em artistas. O máximo que eu poderia me propor
seria educar sua sensibilidade” (OSTROWER, 1983, p. 21).
A questão da percepção da pessoa cega se mostrou importante e a busca por
um caminho que não fosse do ponto de vista do vidente se tornava cada vez mais
clara. No Rio de Janeiro, no I Colóquio Ver e não Ver: Cognição e Produção de
Subjetividade com Portadores de Deficiência Visual, em outubro de 2007, assisti à
palestra da professora Elcie Masini Experiências do Perceber, que falava do
perceber sem a visão, da importância da interação com o meio e com o outro para
compreensão do mundo, e me apresentou pensadores como Vigotski e Merleau-
Ponty, além de alguns pesquisadores brasileiros sobre a aquisição de
conhecimentos pelo cego congênito.
Nesta busca de conhecer melhor a pessoa com deficiência visual, o trabalho
dentro do ateliê de artes foi se transformando e tomando consciência de que era
necessário verificar constantemente se as informações que eram passadas estavam
sendo realmente compreendidas e, se todos os conceitos eram entendidos ou
apenas aceitos. O trabalho passou então a ser avaliado diariamente e a busca de
compreender o outro se tornou uma meta.
Em 2008, no ateliê dentro do “Projeto Acesso”, introduzimos Lygia Clark e a
poesia concreta. Trabalhamos a poesia concreta em parceria com a “Oficina da
Palavra” que também funcionava dentro do Projeto sob a orientação da professora
Rosanna Bendinelli. Fechamos o semestre com uma grande exposição junto com a
“Associação O Mundo” de Lygia Clark. O trabalho foi tão rico que Rosanna e eu
inscrevemos nossa experiência no “Programa Rumos Educação, Arte e Cultura
2008-2010”, no qual fomos premiadas.
Novos caminhos foram surgindo e me desliguei do “Projeto Acesso” para
entrar em um período de análise e aprofundamento teórico da experiência dos
quatro anos de atividades junto à pessoa com deficiência visual.
Ainda em 2008 escrevi livros voltados ao público infantil com deficiência
visual. Eram quatro pequenos livros com pequenos textos escritos em Braille e em
tinta, os textos eram acompanhados de ilustrações táteis muito simples, como
pontos e linhas. Nos livros eram trabalhados: estruturas de lateralidade, orientação
espacial, temporal, coordenação motora, atenção e percepção tátil. Dei o nome de
“Coleção Traça Traço”. Participei com esta coleção do Concurso de Apoio a Projetos
de Publicação de Livros no Estado de São Paulo, no qual fui premiada. Os livros
foram publicados em 2009.
O programa de mestrado “Educação, Arte e História da Cultura”, da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, veio ao encontro de meu interesse de
desenvolvimento acadêmico. Nos dois anos do programa tive a oportunidade de
participar de seminários, congressos e encontros com trabalhos desenvolvidos a
partir dos referenciais teóricos que foram apresentados nas disciplinas do curso em
consonância com meu foco de pesquisa sobre arte e a pessoa com deficiência
visual. Além disso, faço parte do Grupo de Pesquisa em Mediação Cultural –
“contaminações e provocações estéticas”, sob coordenação da Profª Dra. Mirian
Celeste Martins. Participei com um capítulo do Livro Aprendendo Significativamente
organizado pelas professoras Profª Dra Elcie Masini, Profª Dra Maria de los Dolores
J. Peña. Fui convidada pelo Prof Dr Marcos Rizolli para participar da Exposição
Biblioteca Sensorial: Livros de Artistas, no Centro Histórico Mackenzie, onde
apresentei o livro tátil Ressonâncias murmuradas.
Minha pesquisa teve o apoio do Fundo de Apoio à Pesquisa da Universidade
Presbiteriana Mackenzie com Bolsa Mérito MACKPESQUISA. Com a Reserva
Técnica MACKPESQUISA, apresentei o trabalho Livros Táteis para crianças
deficientes visuais no I Congreso Internacional “Arte, Ilustración y Cultura Visual em
Educación Infantil y Primaria: construcción de identidades” em Granada, Espanha.
Introdução
Nosso interesse nesta dissertação foi analisar o significado da experiência de
arte para jovens cegos congênitos, em ateliê de artes, durante o período em que nos
aprofundamos no estudo da artista plástica Lygia Clark.
Esta pesquisa é um recorte dos quatro anos nos quais trabalhamos com
pessoas com deficiência visual no “Projeto Acesso: Centro de Apoio Pedagógico
Especializado ao Deficiente Visual”, na cidade de São Paulo, Brasil. Selecionamos,
desse período de quatro anos de trabalho no ateliê, os seis meses nos quais
trabalhamos o projeto “Lygia Clark”. Durante esse período, os alunos desenvolveram
diversas produções artísticas, que constituíram referência para as entrevistas
analisadas nesta pesquisa.
Para nos respaldarmos teoricamente, realizamos levantamento bibliográfico
acerca dos significados de uma experiência estética, e dentre estes destacamos os
significados propostos por Benjamin (1994), Chauí (2008), Fisher (1984), Larrosa
(2001), Merleau-Ponty (2004; 2006) e Ostrower, (1997). Também foi realizada revisão
de literatura a respeito da relação do indivíduo com deficiência visual e o
conhecimento, destacando-se Amiralian (1997), Garcia (2001) Masini (1994, 2007,
2008), Ormelezi (2000, 2008), Vygotski (1997), e sobre a importância da arte para
pessoas com deficiência visual, com destaque para Oliveira (2007), Kastrup (2010),
Kennedy (1993), Löwenhielm (2000), Bardisa (1992), Duarte (2008), S. Ballesteros
(2006) e D. Barsida (1992).
Optamos por não discorrer sobre as especificidades históricas e clínicas da
deficiência visual, uma vez que diversas produções já discorreram sobre essa
temática, como Masini (1994), Ormelezi (2000) e Amiralian (1997). Nossa análise está
voltada para a percepção do aluno com deficiência visual, bem como para sua
compreensão de mundo e sua relação com a arte. Buscamos compreender este ser
que habita o nosso mundo, percorre os mesmos caminhos que percorremos, escuta
as mesmas músicas que escutamos, age e reage, que está no mundo como todos
nós, mas que o percebe de uma forma muito peculiar: pelo tato, sentidos háptico e
cinestésico, audição, olfato e paladar.
Nesse sentido, refletimos sobre a questão da arte para a pessoa com
deficiência visual e sua importância como abertura para o mundo à luz de idéias de
pensadores como Masini (1994, 2007, 2008), Merleau-Ponty (2004; 2006), Vygotski
(1997). Procuramos analisar o “viver” pelas obras da artista Lygia Clark segundo
Brito (1999), Farina (2005), Maluf (2007), Milliet (1992) e Rolnik (1999). Por fim,
investigamos os significados desta experiência no ateliê para os jovens cegos.
Ao iniciarmos nossa pesquisa sobre a questão da experiência de arte de
nossos alunos com deficiência visual, tínhamos consciência de que esta seria uma
questão bastante interessante, mas não tínhamos a compreensão de que iríamos
nos deparar com algo tão fundamental.
Nosso desconhecimento de um pensar mais aprofundado sobre a experiência
limitou, durante um determinado período de tempo, um olhar diferenciado sobre o
significado da experiência de artes dos jovens cegos.
Seria, então, a experiência o tema de investigação desta dissertação? Essa
questão nos aterrorizou na elaboração do projeto de pesquisa e na qualificação, mas
também foi uma mola propulsora para uma reflexão de pesquisador, e não de ator
de um movimento. Chegamos, assim, à seguinte questão: A experiência artística
pode ampliar o conhecimento do mundo de jovens cegos?
O objetivo deste estudo, dessa forma, definiu-se pela reflexão sobre a
experiência de arte para jovens cegos ocorrida no ateliê. Consideramos que os
dados registrados e analisados poderiam contribuir favoravelmente para as práticas
pedagógicas imbricadas nas práticas artísticas, possibilitando espaços de formação
capazes de acolher pessoas que se situam no mundo por diferentes vias
perceptuais. Neste caminho, objetivamos um espaço freiriano, cuja “decência e
boniteza” andassem de mãos dadas, onde pudéssemos oferecer um caminho de
“possibilidades para sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p.
47).
Para analisar a experiência nos apropriamos dos pensadores, poetas e
filósofos citados anteriormente, bem como outros que serão citados no desenrolar
da pesquisa. Utilizamos o termo apropriação como uma forma de empoderamento,
no sentido freiriano de fortalecimento e evolução pessoal. Leila de Castro Valoura
nos apóia nesta decisão, ao esclarecer o conceito de empoderamento de Paulo
Freire: uma pessoa “empoderada é aquela que realiza por si mesma, as mudanças e
ações que a levam a evoluir e se fortalecer” (VALOURA, 2006, s/n).
Parafraseando Bachelar (2008), ao nos apropriarmos desses autores,
sentíamos muitas vezes que poderíamos ter criado aquelas palavras, ou que
deveríamos tê-las criado, pois elas se enraizaram, repercutiram e nos
transformaram. O compositor e cantor Milton Nascimento, alguns anos atrás, ao
comentar sobre a música O que será que será, de Chico Buarque, dizia que gostaria
de tê-la escrito. E foi assim que nos sentimos nessa forma de querer, de querer para
si. Relacionamo-nos com os textos de teóricos e poetas que falam aquilo que
queríamos falar, e ao falar, falam como se fosse por nós, e falando por nós nos
oferecem caminhos de empoderamento e sabedoria.
Esses devaneios mostram-nos que, para compreender nosso objeto de
estudo, foi necessário dar um tempo para cada pensamento, para cada passo. Foi
também preciso observar da plateia e voltar ao palco para então observar a plateia;
ser ator e público, ativo e passivo, e nesses exercícios de divisão e indivisão fica
claro que, primeiro, é preciso desvendar os mistérios da experiência. O termo
indivisão é aqui utilizado no sentido de que não é possível haver divisão entre
“sujeito e objeto, alma e corpo, consciência e mundo, percepção e pensamento”
(CHAUÍ, 2008 p. 153).
Nesta pesquisa propomo-nos compreender o significado da arte como
conhecimento do mundo para a pessoa cega, por meio dos trabalhos de nossa
construção de saberes, realizados em parceria com os alunos no ateliê de artes, nos
quais foram propostas algumas questões: “Como são os caminhos e as estratégias
que favorecem o contato e a apropriação da arte?”, “Como essas pessoas
compreendem arte?”, “Como fazer ações que possam ser transformadoras?”,
“Como ampliar o seu repertório da arte?”, e ainda “O que pessoas cegas percebem,
pensam e o que necessitam na relação com a arte e o mundo?”.
Para compreender o mundo da pessoa cega, nos baseamos na abordagem
fenomenológica acerca da pessoa com deficiência visual de Masini (1994, 2007, 2008,
2010). Essa pesquisadora nos indicou que, para compreender a pessoa com
deficiência visual, é necessário compreender seu referencial perceptivo, seu modo
de estar no mundo. Masini indicou ainda que, além disso, é preciso atuar em
conjunto com o deficiente visual na construção de saberes, respeitando seu ritmo,
sua bagagem cultural, sua vivência social e suas representações de mundo.
Tais indicações nos levaram a outras questões, como os caminhos que
devemos percorrer para a construção de saberes nas artes, e como podemos
potencializar a aprendizagem e a construção de sentidos no fazer artístico.
Ampliar horizontes é intensificar ações que produzam experiências, reflexões
sobre o habitar o mundo, estar no espaço e explorá-lo, inventar e reinventar. Em quê
e como um projeto de arte pode auxiliar estes desenvolvimentos, que são tão
diferenciados de pessoa para pessoa?
Durante nossos anos no ateliê, acumulamos fotos, vídeos e gravações que
nos auxiliaram na compreensão da experiência artística dos jovens cegos.
Procuramos relacionar esse material com os referenciais teóricos da arte, educação
e educação especial.
No primeiro capítulo deste trabalho, intitulado O que é experiência?,
percorremos os significados desse termo e o que pode ser entendido como
experiência estética, bem como as questões relacionadas à percepção da pessoa
com deficiência visual e do corpo no mundo. Refletimos sobre as questões da
experiência, experiência estética e o corpo na experiência de espaço, com base em
teóricos que seguem a mesma linha de pensamento da fenomenologia de Merleau-
Ponty.
No segundo capítulo, O ateliê, apresentamos o ateliê de artes para pessoas
com deficiência visual, seguindo a sua trajetória de ampliar o conhecimento da
pessoa com deficiência visual sobre a percepção-arte-corpo-espaço. No item 2.1
focamos no projeto Lygia Clark que foi desenvolvido entre fevereiro e junho de 2008.
Essa artista trazia consigo inquietações que eram semelhantes às que
encontrávamos em nossos alunos: o espaço, os materiais, a ideia de ligar arte com
a vida. Assim, neste capítulo aprofundamo-nos no estudo do pensamento dessa
artista e na sua busca de ligar a arte com a vida, bem como compreender as
questões do espaço e nosso habitar o mundo. Para nos auxiliar no conhecimento
sobre esta grande artista, apoiamo-nos em autores de extensos estudos de suas
obras e suas ligações com a fenomenologia merleaupontiana.
No terceiro capítulo, apresentamos o estudo desenvolvido, os sujeitos e os
procedimentos de análise de material. Apresentamos uma análise das entrevistas
sobre os trabalhos realizados no ateliê, à luz dos teóricos que se fundamentam na
fenomenologia de Merleau-Ponty, assim como em pesquisadores que estão abrindo
discussões sobre a arte e a pessoa cega. Nesta análise, a linha central refere-se à
experiência perceptiva dentro do ateliê para os sujeitos da pesquisa. Coerentemente
com o objetivo desta investigação, o foco da análise foi a experiência sob o ponto de
vista dos alunos, bem como o que eles apreenderam durante as aulas e os
significados resultantes das experiências de arte.
No quarto capitulo fazemos uma análise das entrevistas com os jovens cegos,
seguida de uma reflexão sobre o que apresentou ser a experiência de arte para
essas pessoas. Nos Comentários Finais, apoiamo-nos nos depoimentos das
entrevistas e seus significados para os sujeitos da pesquisa e, buscamos refletir
sobre a importância da arte como abertura para o mundo e ampliação de
conhecimento.
20
1. O que é experiência?
Larrosa (2004, p. 154) inicia-nos na reflexão sobre o que é experiência com a
seguinte colocação: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que
nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”.
O mesmo autor, comentando o texto Experiência e pobreza de Benjamin diz
que “nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara”,
completando sua reflexão sobre a perda da experiência lembrando-nos que “a
informação não é experiência”, é quase uma “antiexperiência” (LARROSA, 2004, p.
154). Ao nos tornamos “informantes e informados” as coisas deixam de nos
acontecer, deixam de nos tocar, não passam por nós.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA 2004, p. 160).
Acreditamos que sabemos ver, ouvir, sentir, não prestamos mais atenção ao
que está ao nosso redor naquele momento, não deixamos as coisas passarem por
nós. Não nos damos um tempo para observação e muito menos para a escuta.
Chauí (2002, p. 161) esclarece o que é experiência e o que a experiência não
pode ser:
(experiência) significa um sair de si rumo ao exterior, viagem e aventura fora de si, inspeção da exterioridade (...) não passividade receptiva e resposta aos estímulos externos, nem atividade de inspeção do mundo (...) iniciação aos mistérios do mundo.
A experiência assim seria um tornar-se cúmplice e observador. Cúmplice no
sentido de colaborar em uma ação, e observador no sentido de um exame atento,
apurado de um fato ou evento. A experiência é o nosso modo de ser no mundo.
Chauí (2002), como foi visto, e Larrosa (2001), como veremos a seguir,
oferecem-nos como metáfora a experiência como viagem, passagem, travessia,
perpassada por perigos, insegurança, por um devir de esperança e medo. Por ser
um momento de passagem é um momento que nos encontramos em estado de
21
fragilidade, atenção, procura e indeterminação, momento de percepção do estar no
mundo.
A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. [...] Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo (LARROSA 2004, p. 160).
Mas quem é esse sujeito da experiência?
Larrosa (2004) esclarece que o sujeito da experiência não é o sujeito da
informação, da opinião, do fazer, do julgar, do querer. O sujeito da experiência é o
que se encontra disponível, apto à travessia, exposto aos riscos e que pode se ferir.
É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre (LARROSA, 2001. p.25 ).
Assim, o sujeito da experiência é um sujeito que está no mundo para sentir,
sofrer, ser feliz, observar, que se expõe em um espaço desconhecido cheio de
obstáculos.
Lá no oceano, velejando por aí, Mal posso esperar Para te ver crescido Mas acho que nós dois teremos que ser pacientes Porque ainda temos um longo caminho pela frente Uma dura estrada para vencer Sim um longo caminho pela frente Mas, enquanto isso Antes de você atravessar a rua Pegue a minha mão A vida é o que nos acontece Enquanto estamos muito ocupados fazendo outros planos. (LENNON, John. Beatiful boy (Darling boy). Tradução Camila Brettas), 1980)
1
1 Out on the ocean sailing away
I can hardly wait To see you come of age But I guess we'll both just have to be patient 'Cause it's a long way to go A hard row to hoe Yes it's a long way to go But in the meantime Before you cross the street Take my hand Life is what happens to you
22
Lennon, ao oferecer esta canção ao filho, oferta-lhe a esperança de um porvir,
e a experiência do pai em fazer presente algo que quer compartilhar com seu filho. A
vida é aquilo que acontece conosco, que passa conosco, que nos afeta, toca-nos e
emociona, e nos oferece sentido. E assim, durante sua travessia, preste atenção,
tome cuidado, há incertezas, muitas coisas podem acontecer. Podem ser coisas
boas ou ruins, mas não devemos deixar de percorrer nosso caminho, dentro de
nosso tempo.
Larrosa (2001, p. 27), confirmando a poética da canção de Lennon, diz que “O
saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana”. Com
grande delicadeza, Lennon tenta mediar seu conhecimento de vida com o
conhecimento de seu filho, ainda menino. Seus saberes de vida, com os saberes de
seu filho. Compartilha o seu modo de estar no mundo, o estar no mundo de
incertezas, onde não é possível prever o que irá acontecer. A experiência é algo
particular, que cada um vive e compreende de uma maneira.
Nessa postura diante da vida que a música de Lennon descreve, percebemos
a importância da mediação dos saberes entre pais e filhos, educadores e
educandos. Apresentar o mundo ao outro, aberto ao conhecimento, caminhar junto,
criar oportunidades para novas experiências, são preocupações constantes de um
educador em relação a seus alunos.
Paulo Freire (1996, p. 26) enfatiza a importância de “reforçar a capacidade
crítica do educando, sua curiosidade e insubmissão”. Nessa relação educando-
educador, o autor sugere que compartilhemos a parceria como instigadores,
curiosos e inquietos.
Faz parte das condições em que aprender criticamente é possível a pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve e continua tendo experiência da produção de certos saberes e que estes não podem a eles, os educandos, ser simplesmente transferidos (FREIRE, 1996, p. 26).
Como nos ensina Freire (1996), os educando vão se transformando em
sujeitos da construção e reconstrução de saberes junto com o educador, sendo que
a tarefa do educador não é apenas a de ensinar os conteúdos, mas ensinar a
pensar.
While you're busy making other plans
23
Ostrower (1997) esclarece que o pensar só se tornará imaginar criativo pelo
ato de se fazer algo, com a sua execução. Sem isso, o pensar não consegue agir
como transformador nem para o individuo que pensa nem para as outras pessoas,
“o imaginar - esse experimentar imaginativamente com formas e meios -
corresponde a um traduzir na mente certas disposições que estabeleçam uma
ordem maior, da matéria, e ordem interior nossa” (OSTRWER, 1997, p. 32).
Experimentar imaginativamente através das formas e dos meios nos fornece uma
ordenação do mundo interior e exterior.
Desde as primeiras culturas, o ser humano surge dotado de um dom singular: mais do que "homo faber", ser fazedor, o homem é um ser informador. Ele é capaz de estabelecer relacionamentos entre os múltiplos eventos que ocorrem ao redor e dentro dele. Relacionando os eventos, ele se configura em sua experiência de viver e lhes dá um significado. Nas perguntas que o homem faz ou nas soluções que encontra, ao agir, ao imaginar, ao sonhar, sempre o homem relaciona e forma (OSTRWER, 1997, p. 9).
Ostrower (1997), ao falar do homem como um ser informador, o faz no sentido
do homem que faz algo, que dá forma, que realiza um ato expressivo. Ao fazer algo,
o homem se descobre e descobre o mundo. Formando a matéria, ordenando-a,
configurando-a e dominando-a, bem como se ordenando interiormente, o homem
experiencia. O sentido atribuído a informador por Ostrower é diferente do sentido
atribuído ao sujeito da informação de que fala Larrosa (2001), quando afirma
“informantes e informados” quer dizer que as coisas deixam de nos acontecer,
deixam de nos tocar. Divergem esses autores quanto ao sentido de Informador,
contudo parecem concordar quanto ao sentido de experiência: Ostrower focaliza a
experiência naquele que faz algo, que configura, domina, ordena e se ordena;
Larossa focaliza - a na atitude de sentir, demorar-se nos detalhes, cultivar a atenção
e a delicadeza, falar sobre o que nos acontece, escutar os outros. Está implícita em
suas concepções de experiência o homem presente à situação em que se encontra,
atento ao mundo que o cerca.
Merleau-Ponty afirma “[...] o mundo está ao redor de mim, não diante de mim”
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 33). Esse autor discorre, em sua obra Fenomenologia da
Percepção (1945) que a experiência do mundo está ligada ao modo como o
percebemos: “homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 6).
24
A experiência abre-nos para aquilo que se mostra; é um abrir-se para o
mundo. Ela é diferenciadora sem ser divisora. “O mundo é simultaneidade de
dimensões diferenciadas” (CHAUÍ, 2002, p. 165). A arte ensina à filosofia que
devemos nos mover porque a experiência e o pensamento constituem um fluxo
contínuo que estabelecemos com e dentro do outro e do mundo. Sendo assim, a
arte ensina que não é possível um pensamento distanciado, que paira sobre o
mundo, um pensamento de sobrevôo.
É oferecendo seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura. Para compreender essas transubstanciações, é preciso reencontrar o corpo operante e atual, aquele que não é uma porção no espaço, um feixe de funções, que é um trançado de visão e de movimento (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 16).
Merleau-Ponty refere-se à singularidade do perceber, decorrente do corpo
próprio – o corpo que cada um possui – que mantém a unidade do percebido na
situação em que está ao vivenciar e explorar o que o cerca. Toda percepção de um
objeto é acompanhada pela percepção do próprio corpo e dos sentidos que
percebem o objeto – é uma estrutura que se comunica no mundo sensível. É um ser
ativo que descobre o mundo e que se descobre em sua experiência perceptiva – é
um aprender sobre o mundo, aprendendo a sentir o próprio corpo. Aos educadores
vale ter presente o que nesse sentido diz Merleau-Ponty (2006, p. 278):
[...] será preciso despertar a experiência do mundo tal como ele nos aparece enquanto estamos no mundo por nosso corpo, enquanto percebemos o mundo com nosso corpo [...] se percebemos com nosso corpo, o corpo é um eu natural e como que o sujeito da percepção.
Entendemos, portanto, que a experiência é a situação pela qual passamos e
que tem a capacidade de nos transformar. Ela nos traz instabilidade, mas ao mesmo
tempo nos move, nos dá insegurança, mas oferece descobertas. A experiência é o
abrir-se ao desconhecido, estabelecer relacionamentos, elaborar novas conexões e
tecer novos conhecimentos. Mas nem toda experiência vem a ser uma experiência
estética, e é sobre isso que refletiremos a seguir.
1.1. A experiência estética
Para Duarte Jr (2008, p. 57), “a experiência estética é a experiência da beleza”
(grifo do autor). Mas o que seria essa beleza que experimentamos na experiência
25
estética? Esse autor explica que o belo não surge em função dos objetos ou na
consciência; o belo é o encontro entre a consciência e o objeto. “A beleza habita a
relação.” (2008, p.57-58)
Na experiência estética suspendemos nossa “percepção analítica”, “racional” para sentir mais plenamente o objeto. Deixamos fluir nossa corrente de sentimentos, sem procurar transformá-la em conceitos, em palavras. Sentimos (Grifo do autor) o objeto e não pensamos nele. No momento dessa experiência ocorre como uma “suspensão” da vida cotidiana, uma “quebra” nas regras da “realidade” (DUARTE, 2008, p. 58-59)
Quando vivenciamos uma experiência estética, ensina Duarte (2008), nosso
cotidiano fica em estado de suspensão para estarmos inteiramente naquele
momento. Deixamos de lado nossa percepção racional do mundo para compreender
a verdade contida no objeto estético, não em sua utilidade e nem em sua relação
com outros objetos. Diante de um objeto estético nossos sentimentos se
concretizam, interpretamos e damos sentido ao que estamos vivenciando, e assim a
obra se completa.
Duarte (2008b, p. 92) esclarece que, na percepção estética, “o „ser‟ do objeto é
o seu aparecer”. O prazer estético está no próprio ato de perceber o objeto, e em
razão disso, a percepção estética seria uma percepção desinteressada, não estando
à procura de uma verdade sobre o objeto, mas sim estando interessada na verdade
do objeto, assim como ele se mostra no sensível. A experiência estética seria como
um espelho que reflete nossos sentimentos, e é através desses sentimentos que nos
tornamos um indivíduo. A arte tem a capacidade de nos oferecer sentidos “não
conceituáveis e irredutíveis a palavras” (DUARTE, 2008b, p. 93). Ela abre
potencialidades de múltiplas maneiras de ser.
A origem da arte na experiência humana vem do prazer que se vive no
cotidiano, nas coisas que se faz e se admira.
As origens da arte na experiência humana serão aprendidas por quem vir como a graça tensa do jogador de bola contagia a multidão de espectadores; por quem notar o deleite da dona de casa que cuida de suas plantas e o interesse atento com que seu marido cuida do pedaço de jardim em frente à casa; por quem perceber o prazer do espectador ao remexer a lenha que arde na lareira e ao observar as chamas dardejantes e as brasas que se desfazem (DEWEY, 2010, p. 62).
26
Para Fischer (1979) o homem quer ampliar-se com algo que seja mais do que
apenas ele próprio, ultrapassar parcialidades com coisas que sejam exteriores a ele
mesmo, num anseio de alçar à plenitude sua individualidade.
[...] o homem quer ser mais do que apenas ele mesmo. Quer ser um ser total (Grifo do autor). Não lhe basta ser um indivíduo separado; além da parcialidade da sua vida individual, anseia uma plenitude que sente e tenta alcançar, uma plenitude de vida que lhe é fraudada pela individualidade e todas as limitações; uma plenitude que busca um mundo mais compreensível e mais justo, um mundo que tenha significações (FISCHER, 19979, p.12).
Segundo Fisher (1979) o homem sente que tudo que é da humanidade lhe
pertence. Ferreira Gullar, quando comemorava o Prêmio Camões da edição 2010,
disse que ficava muito feliz em ver como as pessoas ficavam contentes ao
cumprimentarem-no, como se também elas houvessem sido premiadas. Assim, a
arte, como bem esclarece Fisher (1979, p. 13), seria uma maneira das pessoas
colocarem em “circulação suas experiências e ideias”. Para esse autor, “a obra de
arte deve apoderar-se da plateia não através da identificação passiva, mas através
de um apelo à razão que requeira uma ação e decisão” (FISCHER, 1979, p. 15). Ao
entrarmos em contato com uma obra de arte, esta deve se apoderar de nós, não por
uma identificação passiva, mas por nos levar a novos pensamentos que podem ser
transformadores; ao lermos uma poesia, as imagens poéticas nos levam a novos
pensamentos e reflexões.
Como afirma Bachelar (2008, p. 6) “a poesia é um compromisso da alma”. A
poesia nos traz imagens poéticas de experiências vividas que são os ruídos de
nosso passado incorporado ao nosso presente se abrindo para o futuro. “É
necessário estar presente, presente à imagem no minuto da imagem” (BACHELAR,
2008, p. 1). Esse filósofo defende a poetização do cotidiano, da capacidade criativa e
afetiva do ser humano.
Para esclarecer filosoficamente o problema da imagem poética, é preciso chegar a uma fenomenologia da imaginação. Esta seria um estudo do fenômeno da imagem poética quando a imagem emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma do ser homem tomado em sua atualidade (BACHELAR, 2008, p. 3).
Bachelar reitera assim a concepção de fenomenologia de Merleau-Ponty
(2006, p. 1): “uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se
possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua
27
“facticidade”. A Fenomenologia da Percepção ensina sobre a experiência original do
corpo – experiência do mundo - que percebe e por meio do qual se situa. “Buscar a
essência do mundo não é buscar aquilo que ele é em ideia, uma vez que o
tenhamos reduzido a tema de discurso, é buscar aquilo que de fato ele é para nós
antes de qualquer tematização” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 13). Em concordância
com essa concepção, assevera Bachelar (2008, p. 3), “só a fenomenologia – isto é, a
consideração do início da imagem numa consciência individual – pode ajudar-nos a
reconstituir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sentido da
transubjetividade da imagem”. A imagem poética é criada a partir dos movimentos
de nossas experiências. “Numa imagem poética a alma afirma a sua presença”
(BACHELAR, 2008, p. 6).
Merleau-Ponty (2004, p. 128) ilustra o que ficou exposto nas afirmações dos
autores citados, em seu ensaio sobre a busca de Cézanne: “a inteligência, as ideias,
as ciências, a perspectiva, a tradição novamente em contato com o mundo natural”.
Esse filósofo dizia que não há conhecimento do mundo que não se produz por meio
do corpo; assim, o artista é um corpo no mundo, sua experiência no mundo é
também experiência do corpo. O corpo se encontra engajado no ato de perceber o
mundo, e isso se dá em um movimento ativo de ver e ser visto, perceber e ser
percebido. O pintor Paul Klee (2001, p. 45) refletindo sobre seu processo reitera
essa concepção quando afirma: “No começo está o ato. Entretanto, mais além se
encontra a ideia”.
Klee (2001b, p. 61) diz que a “arte só se consuma quando surge uma
complicação [...] alguma coisa se tornou visível, que, sem o esforço para torná-la
visível, nunca seria vista”. Mas ao passarmos para o domínio da arte devemos
pensar na finalidade de se fazer visível, se é apenas para recordar o que se viu ou
para revelar o invisível, e esse é o “ponto essencial de toda criação artística”.
Chauí (2002, p. 165) retomando a visão merleaupontiana de experiência e arte,
afirma que “o artista ensina ao filósofo o que é existir humano. A experiência é esse
fundo que sustenta a manifestação da própria experiência”. E é nessa figura que se
torna fundo, que ocorre a ausência que pede uma presença. Essa autora relembra
que Guimarães Rosa “dizia-se falado pela linguagem que o „empurrava‟ a escrever”
(CHAUÍ, 2002, p. 167), e completa “Experiência: algo age em nós quando agimos,
como se fôssemos agidos no instante mesmo em que somos agentes” (CHAUÍ, 2002,
p. 167). O artista busca a origem das coisas no mundo e torna visível algo que não
28
tínhamos visto. Ao penetrar o mundo familiar, tocando-o, habitando-o de um modo
novo, torna palpável o impalpável, visível o invisível e desvela mistérios e belezas de
um mundo desconhecido.
Um corpo esta aí quando, entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar até que um acidente do corpo desfaça o que nenhum acidente teria bastado para fazer... (MERLEAU-PONTY, 2004, p.18)
Ostrower (1997) explica que a experiência estética se traduz na capacidade de
se ordenar aquilo que percebemos e que é transposto para formas, que não são
necessariamente visuais, mas que seriam compreendidas mentalmente, sendo-lhes
então oferecido um sentido. Já a imaginação criativa seria “um pensar específico
sobre um fazer concreto” (OSTROWER, 1997, p. 38). Neste sentido, encontramos uma
declaração de Beuys que vem nos auxiliar na compreensão do que seria uma
experiência estética.
A arte me levou ao conceito de uma escultura que começa na palavra e no pensamento, que aprende a construir ideias com palavras, e a transferir, para as formas, o sentir e o querer. Se o pensamento não falhar nessa tarefa, aparecerão as imagens que espelham o futuro. As idéias tomarão forma (Joseph Beuys
2. A revolução somos nós. SESC Pompéia, SP.15/09 a
28/11/2010).
Para Beuys, se o pensamento não falhar, e se for possível uma ordenação
das coisas interiormente, as ideias serão transformadas em forma, em expressão de
algo. Serão assim as ressonâncias internas de coisas que captamos do exterior, que
internalizamos e que são repercutidas para o mundo.
Klee (2001) utiliza a metáfora da árvore para que possamos entender como o
artista observa, percebe e vive o estar no mundo. O artista, diz Klee (2001), organiza
os fenômenos que observa na natureza de acordo com suas próprias experiências,
e essa organização, mundo e vida, seriam as raízes da árvore. São dessas raízes
que aflui a seiva vital que irá passar por ele. Portanto, o artista é o tronco. A seiva
vital que passa por ele pressiona, tensiona para o que ele vislumbra ser a obra de
arte, que como uma copa de árvore desdobra-se para todos os lados, no tempo e no
espaço, e tudo o que o artista faz é “recolher e encaminhar aquilo que vem das
2Joseph Beuys (1921-1986). Joseph Beuys – A revolução somos nós exposição, que leva 250 obras
no SESC Pompéia (São Paulo).
29
profundezas da terra. Não servir nem dominar: apenas comunicar” (KLEE, 2001,
p.53). “E a beleza da copa não lhe pertence, apenas passa através dele” (KLEE,
2001, p. 53).
Fisher (1979, p. 14) explica que para “ser um artista é preciso dominar,
controlar e transformar a experiência em memória, a memória em expressão, a
matéria em forma”. A arte deriva de uma experiência com a realidade ao nosso
redor, e ela é construída objetivamente. A cada manifestação artística os nossos
horizontes ampliam-se. Dilatar os horizontes oferece ao ser humano liberdade para
fazer diferentes conexões, e amplia nossa visão da vida. O sentimento de beleza, de
algo que nos é belo, é algo que é desenvolvido por meio dessas experiências
completas, que produzem algo visível, audível ou tangível.
São as nossas experiências que nos ajudam a compreender o mundo, são
nossas referências pessoais que dão suporte para nossa análise e reflexão. A
maneira como interagimos, como as coisas nos tocam, nos emocionam e nos
envolvem depende de nossa bagagem cultural e do meio no qual vivemos.
A experiência estética está ligada à experiência de criar, e envolve todos os
sentidos. Assim, a experiência estética encontra-se intimamente ligada ao ato de
fazer algo, de observar e de ser observado, de ser e estar no mundo. A experiência
estética envolve todos nossos sentidos, envolve nosso corpo no mundo e como nós
o percebemos. Foi com a ajuda desses teóricos, artistas e pensadores que nos
voltamos para as questões da pessoa com deficiência visual e de sua capacidade de
compreensão do mundo e apropriação da linguagem da arte. A seguir, vamos
detalhar na experiência e a pessoa com deficiência visual.
1.2. A experiência e a pessoa deficiente visual
Como pensar a experiência das pessoas com deficiência visual?
Se pensarmos na metáfora da experiência como um momento de passagem,
de travessia, perpassada por perigos e insegurança, quais seriam os desafios para
uma pessoa que não enxerga?
Amiralian (1997, p. 22) diz que quando pensamos na pessoa cega a
associamos a “[...] uma pessoa sofrida que vive nas „trevas‟ e em eterna „escuridão‟”.
Para as pessoas que enxergam a cegueira é escuridão, dificuldade de locomoção,
30
sentimento de perda e desolação. O sujeito cego é visto como um ser incapaz de
agir, que vive na “escuridão” total, tanto no sentido físico quanto no psicológico.
A imagem que sempre nos vêm à mente quando pensamos na travessia sem
o sentido da visão é a imagem que o homem do final da Idade Média possuía do
mundo. Isto é, para além daquilo que era conhecido. Nos confins do mundo havia
um domínio de monstros perigosos e ocultos, prestes a atacar. O desconhecido era
muito perigoso.
Figura 1: Publicado em: Novi Orbis Indiae Occidentalis, 1621: Various incarnations of the
"Land Down Under"3.
Descrição da figura gravura criada pelo cientista-artista Honório Philopobus em 1621 que foi originalmente publicada pela, Novi Orbis Indiae Occidentalis. Atualmente foi publicada no livro de Joseph Nigg, The Book of Fabulous Beasts. A gravura é um mapa que conta a lenda de São Brandão que saiu da Irlanda em uma embarcação junto com alguns monges em busca do paraíso. No centro tomando grande parte da gravura encontramos a baleia Jasconius, um peixe gigante do tamanho de uma ilha. Sua cabeça está voltada para a margem direita. Do alto de sua cabeça jorram dois jatos de água em direção ao continente europeu e africano. Na frente da baleia perto do canto superior direito encontramos parte do mapa da Europa representando a península ibérica. No canto inferior direito entramos parte do mapa da África Ocidental, onde se encontram a Mauritânia e o Senegal. No centro perto da margem inferior está um barco com três homens. O barco esta voltado para a diagonal esquerda na direção oposta à África. Dois homens estão sentados de costas para o continente Africano. Eles têm aparência de monge, cabeça raspada no alto e roupas característica dos franciscano ou beneditino, ambos leem um livro. O terceiro homem está de pé com um remo na mão. O homem pé possui barba e cabelos longos e uma auréola em volta de sua cabeça, que tradicionalmente representa uma santidade. Ele está na frente dos dois monges, no lado oposto do barco. Acima de sua cabeça está a baleia-ilha. No dorso das costas da baleia vemos várias figuras ajoelhadas em semicírculo, no centro há uma figura de costas com paramentos de padre, à sua frente um altar com um crucifixo. Mais para a esquerda seguindo o corpo da baleia Jasconius, está uma caravela atracada sobre o dorso da baleia perto de seu rabo. Acima da caravela atracada, na sua
3 Unsual and Marvelous Maps. Disponível em: <http://www.webofentertainment.com/2009/08/unusual-
and-marvelous-maps.html> Acesso em: 20/08/2010
31
parte central da margem superior encontramos a ilha de São Brandão. Seguindo a margem superior em direção ao canto esquerdo há duas caravelas apontando para direção da diagonal esquerda. Entre o rabo da baleia e o centro da margem esquerda encontramos mais uma caravela. Abaixo da caravela, entre a ilha baleia e o canto inferior esquerdo estão as ilhas canárias e a ilha da fortuna. No canto esquerdo encontramos uma caravela navegando para o lado esquerdo.
A pessoa com deficiência visual parece ser alvo constante de interrogação
por parte daquele que possui o sentido da visão.
Como ela consegue? Como ela entende? Como ela aprende?
Esses pensamentos nos remetem ao nosso interesse em propiciar
experiências diferenciadas à pessoa com deficiência visual, mais explicitamente em
oferecer oportunidades de conhecer o mundo e o mundo cultural. Então, como dar
acesso às poéticas artísticas, às experiências do mundo, tendo como referencial não
a percepção da pessoa com visão, mas sim a dos demais sentidos?
Estar diante de uma pessoa cega ou com baixa visão é estar diante de
experiências distintas das nossas, e este contato coloca-nos diante de diferentes
percepções, diferentes maneiras de perceber o mundo.
Masini salienta que “para poder saber do DV (deficiente visual), é, pois,
necessário aproximar-se de seu corpo e da experiência que ele tem através dos
sentidos de que dispõe, de maneira total e não fragmentada” (MASINI, 1994, p. 91).
Para que uma pessoa com deficiência visual organize-se no mundo, é preciso
fornecer oportunidades para a exploração de todas as experiências perceptivas.
Por ser a visão o sentido que mais nos coloca em contato com as coisas, principalmente a distância e em detalhes, parece no mínimo intrigante pensar como o cego estrutura seu mundo mental e como se apropria do conhecimento das coisas que não pode vivenciar pelo tato, olfato e audição – como o conceito de lua e nuvem, por exemplo. (ORMELEZI 2000, p. 37).
Então, qual é a chave de acesso para tornar visível o invisível, dizível o
indizível, pensável o impensável?
Em nossa mente, o não-ver é identificado com a incompreensão,
incompetência, ou incapacidade de compreender e conhecer com profundidade
verdades do mundo.
Tenho claro na memória a lembrança do momento em que olhei para meu bebê cego e pensei: O que faço agora? Como poderei me comunicar com ele? Qual forma de educá-lo? Como ele irá conhecer o mundo, aprender com as outras crianças, sem enxergar? (SIAULYS, 2007, p. 180).
Segundo Vygotski (1997), o que realmente decide o destino de uma pessoa
não é a deficiência em si, mas sim as consequências sociais e as representações
32
psicossociais. Em vista disso, é preciso saber de seu passado para traçar-lhes um
futuro, o que significa a “necessidade dialética de compreender os fenômenos em
eterno movimento, descobrir suas tendências e seu porvir determinado por seu
presente” (VYGOTSKI,1997, p. 45). “Assim como a vida de todo organismo está
orientada pela necessidade de adaptação biológica, a vida da pessoa está orientada
pelas necessidades do ser social”4 (VYGOTSKI, 1997, p. 45, tradução nossa).
Pensando nestas questões levantadas por Vigotski, da maneira como
encaramos a deficiência como uma insuficiência, uma carência de algo que não
pode ser restabelecido, o não-ver pode vir a significar para muitos dos videntes o
fracasso nas relações humanas e no desenvolvimento profissional e intelectual. A
representação da falta de visão habitualmente é a de falta de possibilidades, e se
alguém não enxerga não aprende, não convive com o outro, não se preocupa com.
Temos a impressão de que é muito difícil compartilhar as coisas do mundo com
pessoas que possuem uma deficiência sensorial.
Ormelezi (2008, p. 152) afirma: “muitas vezes, pais, professores e a sociedade
confundem a não visão com a não existência, pondo em dúvida a capacidade de
aprender, desenvolver-se e relacionar-se”.
Vygotski (1997) assinala que uma criança com alguma imperfeição não é
inevitavelmente uma criança deficiente. O grau da sua imperfeição e da sua
normalidade irá depender da compensação social. Esse autor é enfático em afirmar
que, dos pontos de vista pedagógico e psicológico, uma criança cega ou surda não
difere em nada de uma criança normal. O cego ou surdo é capaz de ter uma vida
ativa como todas as pessoas; o que difere é a ausência de uma das vias que
percebe e analisa os elementos exteriores da natureza. Portanto, em sua educação
deve haver uma substituição de uma das vias por outras, para que possam analisar
o ambiente exterior, reordenar o mundo em partes singulares com as quais estão
vinculadas nossas reações ao meio, que são os vínculos condicionados.
O tato no sistema de conduta do cego, e a visão no surdo, não desempenham o mesmo papel nas pessoas que vêem e escutam normalmente: as obrigações e funções do tato e da visão em relação ao organismo são outras: eles devem criar uma enorme quantidade desses
4 [...] “la exigencia dialéctica de comprender los fenómenos en eterno movimiento, descubrir sus
tendencias y su porvenir, determinado por su presente.” “Así la vida de todo organismo está orientada
por la exigencia biológica de la adaptación, la vida de la personalidad está orientada por las
exigencias de su ser social”.
33
vínculos com o ambiente – vínculos que nas pessoas normais recorrem a outras vias-. Daí é que vem a sua riqueza funcional – adquirida pela experiência – que, erroneamente, acreditavam ser inata própria da estrutura orgânica
5 (VYGOTSKI, 1997, p. 77, tradução nossa).
Seguindo o pensamento de Vigotski, entendemos que a pessoa cega não se
sente imersa nas trevas, que a cegueira não é uma desgraça, mas que se converte
em desgraça em função da reação social. “A cegueira é um estado normal e não
patológico para a criança cega, e ela a percebe apenas indiretamente,
secundariamente, como resultado de sua experiência social refletida nela”6
(VYGOTSKI, 1997, p. 79, tradução nossa).
Somente a cegueira ou outros defeitos parciais não transformam o indivíduo
em deficiente. A deficiência perturba o curso normal do contato da criança com a
cultura de seu meio. Cultura essa que está adaptada a uma pessoa sem defeitos, ou
problemas, físicos ou mentais. O que torna uma pessoa cega, ou com baixa visão,
deficiente, é sua exclusão da sociedade, do mundo cultural, do convívio com os
outros. Esse mesmo autor (VYGOTSKI, 1997) coloca que a cegueira não é apenas a
falta de visão, mas uma reestruturação de todo o organismo e da personalidade.
Desta forma a cegueira, ao criar uma nova configuração da personalidade, oferece
nova força e reorganiza de forma criativa e orgânica a psique do homem. Por isso, a
cegueira não é um defeito, mas uma fonte de revelação, uma abertura para novas
possibilidades.
Se colocarmos em dúvida as capacidades de construção e reconstrução de
saberes desses indivíduos, estamos restringindo as oportunidades de contato com o
mundo, com as coisas e com a sociedade. Restringem-se também as possibilidades
desses indivíduos tornarem-se sujeitos formadores, com capacidade de agir e
transformar, limitando-os a sujeitos da informação que apenas recebem, como se
nada passasse por eles.
5 El tacto en el sistema de la conducta del ciego, y la vista en el sordo, no desempeñan el mismo
papel que en las personas que ven y oyen normalmente: las obligaciones y funciones del tacto y de la
vista con respecto al organismo son otras: deben crear una enorme cantidad de tales vínculos con el
ambiente – vínculos, que en las personas normales, recorren en otras vías-. De ahí proviene su
riqueza funcional –adquirida en la experiencia- que erróneamente se tomaba por innata, propia de la
estructura orgánica.
6 La ceguera es un estado normal y no patológico para el niño ciego, y él lo percibe sólo
indirectamente, secundariamente, como resultado de su experiencia social reflejada en él.
34
Masini (2007) e Siaulys (2007) concordam que, para que uma pessoa com
deficiência visual possa ter oportunidades de conhecer o mundo, de se iniciar nos
mistérios do mundo, é preciso compreender seu modo de estar no mundo. “Faz-se,
pois, necessário acompanhá-la na totalidade de sua maneira de ser: como age,
como se comunica e se expressa, como sente, como pensa” (MASINI, 2007, p. 21).
Siaulys (2007) fala da importância da intervenção precoce como forma de
oferecer oportunidades de experimentações do mundo, de aguçar a curiosidade e
colocar a pessoa cega dentro do mundo familiar, explicando, descrevendo e
compartilhando modos de conhecimento.
Foi com brincadeiras, conversas, contato corporal e sua participação em tudo o que acontecia ao redor que fomos encontrando o caminho, juntas. Procurava brinquedos e inventava brincadeiras, conversávamos, explicava-lhe tudo o que acontecia em casa. (SIAULYS, 2007, p. 181).
Anaute e Amiralian (2007) esclarecem-nos sobre a importância da intervenção
precoce como forma de propiciar aos pais uma orientação de como se relacionar
com seu filho com deficiência, oferecendo um “contato adequado, eficaz e autêntico
com o meio que os circunda, permitindo, assim, que venham a desenvolver um
sentido real de eu, do outro e da realidade”. Essas autoras acreditam que é pela
mediação nas relações sociais que o homem se constrói. “Acreditamos que o bebê
necessita da presença segura da mãe, que lhe inspire a fé em si mesmo e no
mundo. O bebê só tem a possibilidade de usar os seus mecanismos mentais se o
contato com a mãe-ambiente for suficientemente bom” (ANAUTE e AMIRALIAN, 2007,
s/n). A qualidade do ambiente no qual esse bebê cresce é que será geradora das
suas possibilidades de desenvolvimento. “A formação da identidade dessas crianças
só se dará por meio da interação com os outros” (ANAUTE e AMIRALIAN, 2007, s/n). O
que se busca é que essas pessoas tornem-se seres capazes, responsáveis, e que
consigam explorar todas as suas habilidades e potencialidades, conseguindo ainda
interagir na sociedade de forma afirmativa e positiva.
[...] Construir um ser como indivíduo total, integrado, habitando um corpo, tendo capacidade de se relacionar com outros seres humanos respaldado por um ego fortalecido, é o objetivo fundamental dessa intervenção precoce com os pais, que serão instruídos a propiciar essas condições, permitindo, assim, a entrada dessas crianças no mundo e na sociedade (ANAUTE E AMIRALIAN, 2007, s/n).
35
Quando isso não é possível de acontecer, pessoas com deficiência visual
muitas vezes acabam sendo encarceradas dentro de seu próprio mundo, deixam de
se interessar pelo que acontece fora do seu alcance. Pais, professores, todas as
pessoas que convivam com pessoas cegas ou com baixa visão devem se preocupar
em proporcionar oportunidades de descobertas do mundo, de experiências
compartilhadas para que efetivamente todos façam parte ativa da sociedade.
Masini (2003) propõe uma Aprendizagem Totalizante para que as pessoas
com deficiência sensorial compreendam aquilo que lhes é transmitido. Essa
aprendizagem considera a pessoa e sua experiência para oferecer condições de
compreender aquilo que lhe é ensinado, e está ligada estreitamente aos conceitos
da Aprendizagem Significativa da Teoria da Aprendizagem Significativa de Ausubel
(TAS) e do Aproximar-se, da Daseinsanalyse.
A aprendizagem Significativa “é aquela que ocorre quando o aprendiz
organiza, elabora e compreende o que é ensinado” (MASINI, 2003, p. 237).
Masini (2008) afirma que, de acordo com Ausubel, para que a aprendizagem
tenha significado é preciso perceber, compreender e elaborar as informações que
lhe são transmitidas. Além disso, é necessário “saber quais são as representações,
e/ou os conceitos e/ou ideias que o aprendiz já dispõe, para que ele possa elaborar
a nova informação a partir do que já conhece”. (MASINI, 2003, p. 238).
Masini (2003, p. 238), citando Boss, oferece-nos o conceito de aproximar-se –
“estar aberto para o que se mostra do outro, levando-se em conta a totalidade de
seu comportamento comunicativo” – e explica:
Aproximar-se na Aprendizagem Totalizante é estar aberto para o que o aprendiz revela de sua experiência vivida, dos objetos incorporados na sua vida, das brincadeiras com amigos, da sua linguagem e hábitos familiares. Envolve condições existenciais e não apenas o aspecto intelectual. Neste sentido é do aproximar-se das relações motivacionais da sua vida, que depende a possibilidade de alcançar os seus significados para propiciar-lhe uma aprendizagem significativa (MASINI, 2003, p. 238).
Masini (2008), ensinando sobre o Aproximar-se, chega ao conceito de
solicitude oferecido por Heidegger, que seria ter consideração e paciência com o
outro.
Consideração e paciência entendidos como a maneira como se vive com os outros por meio das experiências e expectativas de algo que possa vir a acontecer, do que foi vivenciado e experienciado. O ter paciência sempre pressupõe uma expectativa. Há duas maneiras extremas de solicitude ou de cuidado com o outro, onde existem, obviamente, também inúmeras
36
variações. Uma delas é o cuidar do outro pondo-o no colo, mimando-o, fazendo tudo pelo outro, dominando-o, ou manipulando-o, ainda que de forma sutil. A outra maneira de cuidado com outro é colocar-se diante do outro, propiciando que este assuma seus próprios caminhos, cresça, amadureça e encontre-se consigo mesmo. Esta é uma solicitude que propicia emancipação (MASINI, 2008, p. 70. Grifo do autor).
Por meio de sua pesquisa na Aprendizagem Totalizante, Masini chega à
conclusão de que esta forma de contato entre educando e educador é capaz de
oferecer sentido às coisas e de aproximar os dois polos, educando e educador, em
um movimento dinâmico de troca de experiências, respeito mútuo e de
desenvolvimento intelectual, pessoal e social.
Se for por meio de nossas experiências que compreendemos o mundo, e se
são as nossas experiências que nos dão suporte para análise e reflexão, como é
pensar a experiência estética da pessoa com deficiência visual? Podemos pensar
em uma experiência estética sem o sentido da visão? O que é belo para o cego?
Como ele percebe? Como ocorre a fruição por meio da arte? Como afirmar a
potência criadora da arte para todas as pessoas? No item a seguir iremos nos
aprofundar mais nesse assunto.
1.3. A experiência estética da pessoa cega
A pele não serve apenas para nos envolver e proteger do meio externo, ela
faz a comunicação entre o meio externo e o interno. É através do sentido do tato que
a pessoa deficiente visual adquire um conhecimento concreto e preciso do mundo
que a cerca. Só o tato e a exploração tátil estão em condições de fornecer
informações exatas acerca da forma de um objeto, de suas dimensões, seu peso,
sua dureza, das características da sua superfície e sua temperatura. Soler (1999)
afirma que é por meio do tato que nosso cérebro recebe um grande número de
informações sobre o mundo que nos cerca, pois os receptores deste sentido estão
espalhados por toda a superfície cutânea, e estão conectadas com as vias nervosas,
para enviar ao cérebro sinais codificados.
Lowenfeld (1956, p.160-161) reitera essas informações, quando afirma:
O conhecimento real do mundo dos objetos pode ser adquirido unicamente através da observação completa pelo tato. Essa observação nem sempre é possível. Se os objetos são demasiado grandes, os modelos podem representá-los em formato reduzido; se são demasiado pequenos, os modelos podem representá-los em formato aumentado; se são demasiado frágeis, os modelos devem ser resistentes ao tato.
37
Oliveira (2007) comenta que Tomás de Aquino acreditava que o tato era um
sentido primitivo, menos importante que os olhos e os ouvidos, tidos como sentidos
superiores, ligados à racionalidade e ao espírito. No entanto, completa Oliveira, os
sentidos superiores não servem para nos diferenciar dos animais, visto que
Anaxágoras7 definia o homem como o animal que tem mãos.
Primeiro sentido a se desenvolver no embrião, o tato espalha-se pelo nosso corpo, funcionando a pele como fronteira entre ele e o mundo exterior. Embora as limitações sejam muitas, o tato pode propiciar experiência estética no campo das esculturas (OLIVEIRA, 2007, p. 149).
Esse autor, no entanto, prossegue seu pensamento afirmando que no campo
das artes plásticas o tato não é capaz de superar a visão. Ele acredita que a
percepção tátil é subalterna à visualidade não apenas culturalmente, mas também
fisiologicamente, uma vez que sua capacidade preceptiva é bastante limitada. Para
que aconteça a percepção tátil é preciso tocar o objeto.
O tato é o sentido do contato, um dos sentidos de proximidade.
O olhar não toca. Os olhos, para verem, têm que estar distantes da pele. O olhar promete, anuncia, ou o carinho ou o soco. Mas o olhar não é nem carinho nem soco. Carinho e soco são entidades do tato. (ALVES, 2005, p. 49).
A percepção tátil são as informações que os estímulos adquirem apenas
através contato da pele. Na percepção tátil é o objeto que se move. Quando a mão
se move livremente para explorar o estímulo, temos a percepção háptica. (SOLER,
1999).
Carneiro (2006, p. 15) ensina que “o termo háptico está diretamente associado
ao sentido do tato. No ser humano, este sentido possui dois componentes
independentes: cutâneo e cinético”. O componente cutâneo tem relação com os
sensores localizados na superfície da pele, responsáveis pela sensação de pressão,
temperatura, vibração e dor. Já o componente cinético está relacionado aos
músculos, tendões e juntas, e é responsável pelo movimento e força. A percepção
háptica propicia informações que adquirimos por meio dos movimentos livres das
mãos.
Ainda que toda a superfície corporal tenha sensibilidade tátil, a mão é o órgão natural do tato porque está adaptada para manipular objetos. Seus
7 Filósofo grego do período pré-socrático
38
sensores cutâneos e cinestésicos estão articulados com os mecanismos motores, e o que faz com que a manipulação fique mais eficiente são os movimentos coordenados dos dedos e das mãos, a que chamamos de percepção háptica. O sistema háptico é uma modalidade perceptiva complexa capaz de codificar a informação que chega ao cérebro pelos mecanorreceptores da pele e pelos receptores cinestésicos dos tendões, músculos e articulações.
(BALLESTEROS, 2003, p. 9).
Quando estamos explorando um objeto, ou padrões de linhas ou pontos,
estamos realizando com nossas mãos uma série de movimentos exploratórios
voluntários.
A percepção da forma através do tato, em comparação com a percepção
visual, é menos precisa e mais lenta. Portanto, o tato necessita de um maior espaço
de tempo para explorar e organizar as informações. Isso fica mais esclarecido ao
considerarmos que, por meio do tato, precisamos perceber traços, fazer relações
uns com os outros e algumas vezes com referências internas ou externas ao objeto.
O tato pode parecer inferior à visão, pois sem a visão pode torna-se difícil encontrar
um referencial para codificar a forma, como assinala Ballesteros (2003, p. 9 tradução
nossa): “A percepção da forma depende da organização espacial. Para codificar uma
forma, seus traços percebidos por meio do tato é preciso relacioná-lo um com outro
ou com algum marco referencial interno ou externo8”.
Diaconu (2006) explica que o sentido háptico, que engloba a sensação de
toque, temperatura, dor, movimento e força, o sentido do olfato e do paladar têm
sido tradicionalmente negligenciados na história da estética. Essa autora esclarece
que, mesmo que pudessemos aceitar a existência de formas de arte com base no
sentido háptico, do olfato e do paladar, é muito difícil elaborar um discurso crítico
sobre eles e uma teoria estética em razão das terminologias pobres e vagas usadas
para descrever a experiência. Masini (2007) corrobora esta afirmação quando nos
esclarece que a predominância da visão,
[...] está tão arraigada que nos tornamos desatentos ao fato de criarmos linguagem visual para descrever o que nos cerca. Assim, vivendo em uma cultura de videntes, pela familiaridade e senso comum, a predominância da visão e de suas representações passa despercebida, ocultas pelo hábito, da mesma forma que a prevalência na linguagem de uma terminologia própria do que é visual (MASINI, 2007, p. 20).
8 La percepción de la forma depende de la organización espacial. Para codificar una forma, sus
rasgos percebidos através del tato hay que relacionarlos unos con otros, o con respecto a um marco
de referencia interno o externo
39
Como nos afirma Diaconu (2006), a estética dos sentidos requer uma meta-
estética, uma reflexão sobre a própria linguagem. Para Huchet (2004, s/n), a meta-
estética é uma ética do sentido “que cria as linhas de fuga, as vertentes e as
declinações de uma liberdade que nos exige, conforme Deleuze, percorrer todas as
individualidades, para extrair-lhes um evento único do qual nascerá o indivíduo”.
Vindo ao encontro à proposta de criação de uma nova linguagem estética que
abrangesse o sentido háptico, Almeida, Carijo e Kastrup (2010) propõem uma
estética tátil.
Cabe inventar novas maneiras de produzir sentido estético tanto através da forma quanto da textura, do peso e das propriedades materiais em geral. Só assim será possível, finalmente, abandonar os padrões estéticos puramente visuais que impregnam as artes plásticas, permitindo-nos criar e recriar obras de arte de uma maneira mais condizente com o modo de perceber das pessoas cegas. O respeito pelo universo cognitivo das pessoas cegas não implica, como às vezes se pensa, numa restrição do campo estético, mas em sua ampliação (2010 s/n).
Esses autores fazem uma análise dos diversos materiais que procuram dar
acesso a obras de arte para pessoas cegas em museus ou instituições culturais.
Iniciam sua análise sobre a questão do que se está buscando oferecer, se
informativo ou propriamente estético. Segundo eles, o acesso informativo pode ser
facilmente resolvido, com a descrição verbal da obra de arte por meio de um texto
em Braille, áudio-descrição ou por meio da mediação de um educador, ou alguém
que se disponha a explicar verbalmente a obra. Se a opção for para o estético, é
necessário analisar se as opções escolhidas são realmente as que têm potencial de
acesso ao universo da obra de arte, uma vez que “é comum oferecer ao toque obras
que o tato, enquanto sistema perceptivo, nem sempre é capaz de apreender”
(ALMEIDA, CARIJO e KASTRUP 2010, s/n).
Yvonne Eriksson (1999) explica que a visão pode distinguir diferentes padrões
de uma pintura, enquanto que o tato pode perceber as diferenças entre texturas. Um
relevo que possua vários tipos de texturas pode ser muito difícil de ser interpretado.
Para que uma imagem seja inteligível pelo tato, ela deve ser clara e simplificada.
Deve ser reproduzida de tal modo que toda sua forma seja facilmente identificável. A
imagem não deve conter sobreposições, representações em perspectivas ou objetos
incompletos, e não deve estar baseada no referencial da percepção visual.
Tojal (1999) levantou algumas pesquisas desenvolvidas com pessoas com
deficiência visual que frequentam museus e apresentou duas categorias de sentido
40
em relação à forma de percepção. São as categorias de sentidos comuns – tato,
audição, gosto e olfato – e de sentidos específicos – ecolocalização, memórias
espacial, temporal e cinestésica. O tato é o sentido mais investigado pelos museus,
no desenvolvimento de materiais, adaptação de obras de arte e disponibilização de
peças ao toque. A audição, dentro do espaço museológico para pessoas com
deficiência visual, está sempre associada ao tato, e age como um complemento
deste. O sentido do olfato e o gustativo têm sido negligenciados pelos profissionais
dos educativos em museus, tendo poucas ações das quais fazem parte.
Os sentidos específicos possuem elementos significativos que devem ser
explorados durante as visitas às exposições de museus e instituições culturais. Tojal
(1999) salienta a importância de cada um desses sentidos como forma de
compreensão, apropriação e fruição das obras de artes e do ambiente em que a
pessoa se encontra. A ecolocalização, explica essa pesquisadora, propicia à pessoa
cega identificar ambientes abertos ou fechados, bem como localizar obstáculos
durante o seu percurso.
Esta faculdade, desde que associada ao sentido da audição, transmite uma sensação acústica capaz de permitir a percepção de deslocamentos de ar, ecos ou ondas sonoras, cujo referencial adquirido em experiências anteriores possibilita uma localização física e espacial destas pessoas no ambiente em que se encontram. (TOJAL, 1999, p. 19).
Bleier e Kisk (2000, s/n) esclarecem que a Ecolocalização é a habilidade de
transmitir um som e perceber as qualidades do eco refletido. Foi identificado nos
morcegos, e posteriormente nos golfinhos, que utilizam extremamente bem esta
habilidade ao navegar pelos oceanos.
Os dois pesquisadores ensinam que o sistema visual percebe o meio
processando complexos padrões de luz, quando esta é refletida dentro do olho, a
partir de superfícies ao seu redor. Se pudéssemos ver apenas fontes de luz e
escuridão, nossos olhos nos dariam poucas informações sobre a natureza que nos
rodeia. Percebendo e interpretando padrões de luzes refletidas extremamente ricas
e detalhadas, podemos obter informações sobre características do espaço ao nosso
redor e dos objetos que aí se encontram.
O som pode trabalhar de forma muito parecida. Bleier e Kisk (2000) afirmam
que a visão e a audição podem processar ondas de energias refletidas. A visão
processa ondas de luz, enquanto viajam desde a sua fonte, rebatem na superfície
41
pelo meio ambiente e entram nos olhos. Da mesma forma, o sistema auditivo pode
processar ondas sonoras, viajando desde a sua fonte, rebatendo na superfície
através do meio ambiente e entrando no ouvido. Ambos os sistemas podem extrair
muitas informações sobre o meio ambiente, interpretando os complexos padrões de
energia refletida que recebem. No caso do som, estas ondas de energia refletidas
chamam-se ecos.
Os ecos e outros sons podem transmitir informação espacial, que é
comparável em muitos aspectos à transmitida pela luz. Com os ecos, a pessoa com
deficiência visual pode perceber informações muito complexas, detalhadas e
específicas de grandes distâncias que estão fora do alcance de uma bengala ou de
seu braço.
O outro sentido específico que deve ser explorado dentro dos espaços
culturais é o sentido cinestésico. A cinestesia é o sentido do movimento corporal e
da tensão muscular, provocados pelas forças mecânicas que influenciam os
receptores nos músculos, tendões e articulações. Este sentido torna consciente a
posição e o movimento do corpo.
Segundo Tojal (1999) memórias espacial e cinestésica devem ser exploradas
dentro do espaço museológico, e vistas como fonte de informações capazes de
garantir às pessoas cegas ou com baixa visão experiências diferenciadas nas
atividades dos diversos equipamentos culturais. Assim, estaremos incentivando as
pessoas com deficiência visual a exploração do mundo, oferecendo-lhes
oportunidades de experiências múltiplas.
A diversidade de experiências deve ser proporcionada desde cedo, visando
um desenvolvimento de uma estética própria. Soler (1999) aponta que a
discriminação de textura deve ser incentivada desde o início da vida do indivíduo
com deficiência visual, pois assim o bebê será motivado a tocar no seu próprio
corpo, nos objetos e nas pessoas, e isto irá contribuir para o desenvolvimento de um
esquema mental com forma e sentido geométrico.
A distinção de formas e tamanhos fará com que a criança conheça os objetos
que a rodeiam, e auxiliará no aprendizado do Braille quando estiver maior. Soler
(1999) mostra também a necessidade de se desenvolver uma estética tátil, pela qual
a pessoa possa diferenciar texturas, formas e tamanhos, nas diversas
representações bidimensionais ou tridimensionais. Soler (1999, p. 60), citando
Custsforth, diz que “há uma beleza tátil e um significado que não se mostra
42
visualmente [...] e por outro lado, grande parte da beleza visual e significado do
objeto escapam completamente do tato”.
É preciso cuidar precocemente da beleza tátil. Não são todas as texturas que
são agradáveis ou positivas. A criança deve conhecer o maior número de texturas
possíveis, mas, continua este autor, devem predominar as que tragam experiências
agradáveis e boas. As sensações positivas geram experiências táteis positivas, e as
negativas geram experiências táteis negativas. Para que uma pessoa possa
desenvolver um sentido estético do tato é necessário que desde muito cedo tenha
experenciado maior número de experiências táteis positivas do que negativas.
Esse autor argumenta que o tato é um sentido que percebe as sensações por
meio de contato direto com o objeto, planta, animal ou pessoa, e por isso carrega
com ele um componente afetivo transcendental para total desenvolvimento do
indivíduo. Em vista disso, quando cuidamos da educação do tato, formamos
pessoas que encerram uma ou mais dessas características:
[...] tem curiosidade em tocar nas coisas; tem facilidade em mostrar afeto e estima mediante o contato direto; se sentem e fazem com que os outros se sintam próximos; são cuidadosos e hábeis; conseguem fazer descrições considerando as características morfológicas e táteis das coisas; proporcionam sensações táteis positivas aos demais; produzem aprendizagens táteis com significado próprio (SOLER, 1999, p. 62, tradução nossa
9).
A criança cega percebe muitos outros estímulos do tipo auditivo, olfativo, tátil
e gustativo procedentes de seu meio, através dos quais, assim que começar a se
deslocar com autonomia, descobrirá o meio que a rodeia, mediante percepções
sensoriais não visuais.
A multissensorialidade no ensino de ciências proposta por Soler (1999) pode
ser direcionada também para o ensino de qualquer outra disciplina, inclusive de
artes. Neste método, o tato, a audição, o paladar, o olfato e a visão atuam como
canais de entrada de informações muito valiosas nas observações. Como vimos
anteriormente, a experiência estética encontra-se intimamente ligada ao ato de fazer
algo, de observar e de ser observado, de ser e estar no mundo. Então, pode-se dizer
9 [...] experimentan curiosidad por tocar las cosas; tienen facilidad para mostrar su afecto y estima
mediante el contacto directo; se sienten y hacen sentir próximos a los demás; cuidan las cosas y son
duchos; hacen descripciones considerando las características morfológicas y táctiles de las cosas;
proporcionan sensaciones táctiles positivas a los demás; producen aprendizajes táctiles con
significado propio.
43
que esta proposta pode proporcionar um caminho para uma experiência
diferenciada, que pode ser estética.
Todas as informações, mesmo entrando por canais diferentes, têm um único
destino, que é o cérebro, e aí adquirem um sentido único, que é o de aprendermos,
compreendermos e refletirmos sobre nós e o mundo. Para que a “aprendizagem seja
completa e significativa, é necessário que não esqueçamos nenhum canal sensorial
de entrada, pois desta maneira estaríamos limitando a informação com que nosso
cérebro irá elaborar o conceito final que aprendemos” (SOLER 1999, p. 18). Quando
nos falta um dos sentidos, obtemos as informações do nosso meio através dos
outros sentidos. Estas informações podem vir separadas ou em conjunto, o que
Soler chama de multissensorialidade.
Quando falamos em observar, logo pensamos em ver ou olhar, uma
observação basicamente visual. Esse autor esclarece a relevância da observação
multissensorial, ao afirmar que,
na perspectiva da didática multissensorial, a pessoa que observa deve captar o meio com um número máximo de informações através de todos os sentidos que possui (...) devemos obter dados de todos os nossos sentidos que estão em funcionamento, mas devemos saber „sentir‟ essas informações (SOLER 1999, p. 32-35).
Devemos relacionar, através de operações mentais de comparação,
semelhança, contradição, interdependência, complementação e indução, entre
outras. Com a realização destas operações lógicas retomamos mais uma vez Soler
(1999, p. 36), conforme segue:
A curiosidade é um dos pilares de todo descobrimento (...) todas as crianças pequenas, cegas ou não, manifestam uma curiosidade multissensorial para descobrir o ambiente em que estão: olham, escutam, chupam, tocam.
Esse autor acredita que a multissensorialidade proporciona uma imaginação
mais criativa e desenvolvida, pois cria coisas, inventos mais completos que podem
atingir todos os sentidos, e em consequência disto servem para um número maior de
pessoas.
Nesta perspectiva podemos inventar como falavam Almeida, Carijo e Kastrup
(2010), um sentido estético para as experiências que não sejam apenas visuais, e
podemos começar a construir um pensamento estético que abarque os outros
sentidos, e não apenas a visão. Podemos elaborar um discurso crítico sobre todos
os sentidos, e uma teoria estética com terminologias apropriadas para descrever
44
essas experiências. Podemos pensar o corpo como uma grande razão estética que
oferece novos desafios para compreensão do mundo e do estar no mundo, nos
desprendendo do passado e abrindo-nos para o futuro?
1.4. Corpo – experiência de espaço
A percepção, segundo Merleau-Ponty (2006, p. 6) é a abertura para o mundo:
“o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece”. Cada um percebe o
mundo de acordo com a sua experiência, e através de seu corpo.
A cada momento, meu corpo perceptivo é preenchido de reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu situo imediatamente no mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações (MERLEAU-PONTY 2006, p. 5 -6).
Esse filósofo diz que o corpo não está no mundo, ele habita o mundo. Tudo o
que sabemos do mundo é por meio de nossa experiência de habitar o mundo:
“minha experiência não provém de meus antecedentes, de meu ambiente físico e
social, ela caminha em direção a eles e os sustenta, pois sou eu quem faz ser para
mim” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 3).
Perceber, compreender e acompanhar a pessoa com deficiência visual em
suas descobertas e experiências no mundo exige de nós uma abertura para
diferentes formas de perceber, compreender e vivenciar o mundo. Masini (2003) faz
uma interessante ligação entre a filosofia merleaupontiana e a pessoa com
deficiência visual. Essa autora esclarece que em Merleau-Ponty o sujeito no mundo
é o corpo no mundo. O corpo é a fonte de todos os sentidos, todas as relações feitas
pelo homem são feitas por meio do corpo que habita esse mundo. É o corpo que
trará significado das relações com os objetos, com o outro e com a natureza.
Para compreender a percepção é necessário considerar o sujeito da percepção e saber de sua experiência perceptiva. Neste sentido, diz-se que as coisas "se pensam" em cada pessoa, porque não é um pensar intelectual, no sentido de funcionamento de um sistema, mas sim do saber de si ao saber do objeto, já que, ao entrar em contato com o objeto, o sujeito entra em contato consigo mesmo (MASINI, 2003, p. 40).
A autora aponta os caminhos para melhor compreensão e conhecimento das
pessoas que não possuem o sentido da visão. Sendo a percepção o solo originário
45
de todo o conhecimento, para se compreender a pessoa com deficiência visual e
como ela habita o mundo, devemos saber de sua experiência perceptiva.
Em nossa cultura, a exploração do mundo por outros sentidos que não o da
visão muitas vezes pode ser dificultado, sendo quase proibitivo. Quantos “não
toque”, “não cheire”, “não pise”, “não sinta” nos são impostos sem que percebamos?
Nietzsche (2009), em Assim Falou Zaratustra, fala dos menosprezadores do
corpo. Quem são eles? Somos nós que muitas vezes o desconhecemos, o
esquecemos, o desprezamos.
O corpo do ser humano não é uma máquina a serviço do cérebro, ele é uma
totalidade.
A experiência perceptiva (que é corporal) não surge da associação que vem dos órgãos dos sentidos (tal como é vista pelos Empiristas), mas sim da relação dinâmica do corpo como um sistema de forças no mundo (MASINI, 1994, p. 84).
Como pensar na pessoa com deficiência visual que precisa desenvolver os
sentidos de que dispõe, estando imersa em uma cultura na qual o corpo é
esquecido, e o toque é considerado quase uma violação?
Observando pessoas-videntes e não videntes, muitas vezes temos a
impressão de que desconhecem seus próprios corpos, seus limites e possibilidades.
Aquelas nas quais a visão não é o sentido predominante podem deparar com
caminhos fechados para descoberta do mundo. se não o explorarem por meio do
próprio corpo na experiência de habitar o mundo (MASINI, 1994.).
Esse sentido é reiterado nas palavras do filósofo alemão Nietzsche, para
quem o corpo deve ser vivido e entendido, além de ser uma grande razão.
Tu dizes „Eu‟ e orgulhas-te dessa palavra. No entanto, maior – coisa que não queres crer – é o teu corpo e a tua razão grande. Ele não diz Eu, mas procede como Eu (NIETZSCHE, 2009, p. 44).
Para que uma pessoa com deficiência visual organize-se no mundo é preciso
fornecer oportunidades para que suas experiências perceptivas ocorram e possam
ser comunicadas, bem como ouvidas sem preconceitos sociais, religiosos, regionais,
ou conceituais. Requer que se esteja atento às outras vias perceptuais e sensoriais
para conhecermos o mundo no qual vivemos, uma vez que “há mais razão no teu
corpo do que na tua melhor sabedoria” (NIETZSCHE, 2009, p. 44).
46
Larrosa (2004), em O corpo da linguagem, analisa o mesmo aspecto da obra
de Nietzsche sobre os menosprezadores do corpo. Neste texto de Larrosa, o termo
menosprezadores do corpo que encontramos em Assim Falou Zaratustra, edição da
editora Martin Claret, é substituído por denegridores do corpo. Por ser uma diferença
entre traduções, escolhemos a palavra menosprezadores por acreditarmos traduzir
com maior força o texto de Nietzsche. Menosprezar é depreciar, diminuir o seu valor,
desprezar, enquanto que a palavra denegrir oferece-nos uma conotação um pouco
mais branda, de conspurcar, manchar, diminuir a pureza.
De qualquer forma, encontrar este texto de Larrosa permitiu-nos maior
embasamento e tornou mais claros pensamentos tão complexos da filosofia
nietzschiniana. “Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria”
(NIETZSCHE, 2009, p. 44).
O corpo é linguagem, e desprezar o corpo seria falar uma língua sem corpo.
“Porque assim como o homem, quando é inteiro, é corpo, também a linguagem
quando é inteira é corpo” (LARROSA, 2004, p. 168).
O homem é um vivente de palavra, de linguagem, de logos. E isso não significa que o homem tenha a palavra, ou a linguagem, como uma coisa, ou como uma faculdade, ou como uma ferramenta, mas que o modo de viver específico desse corpo ao mesmo tempo vivente e mortal (vivente porque mortal e mortal porque vivente) que é o homem se dá na palavra e como palavra (LARROSA, 2004, p. 170).
O corpo é a fonte dos sentidos, é por meio dele que o sujeito constrói sua
relação no mundo. O corpo desperta para as relações que faz no mundo com outros
corpos.
Por meio de nossos movimentos e interações com o derredor, vamos desenvolvendo nossas habilidades de perceber, experienciar, organizar e compreender o mundo onde estamos (MASINI, 2007, p. 20).
Estamos sempre construindo nosso próprio mundo. Cada um tem uma
maneira de perceber o que está ao seu redor e de organizar estas informações para
agir dentro dele.
O poeta Walt Whitman (1819-1892) falava que o corpo é a alma. Para ele,
segundo entende Lehrer (2009, p. 17), “nós não temos um corpo, nós somos um
corpo” (Grifo do autor), todos nossos sentimentos vêm da carne. O corpo é fonte de
significações da relação do sujeito no mundo. “Para compreender a percepção é
47
necessário considerar o sujeito da percepção e saber de sua experiência perceptiva”
(MASINI, 2007, p. 22).
Ao entrar em contato com um objeto, entramos em contato conosco. O corpo
vivo do sujeito no mundo, em contato com o outro, compartilha conhecimentos do
mundo.
Se ao perceber imagina, e se cada um possui uma maneira peculiar de
perceber o mundo, então, como afirma Masini (2007, p. 23) “é preciso partilhar com a
pessoa com deficiência visual o conjunto dos caminhos de seu corpo”, mas é
também importante que todos aprendam que os caminhos perceptivos são os
desencadeados pelos órgãos dos sentidos, para, assim, compartilhar as
experiências de outras formas de representação e compreensão.
Merleau-Ponty evidenciou ser a corporeidade a via de contato com o outro, no
mundo que habita. De acordo com esse autor (2006, p. 328), “o espaço não é o
ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a
posição das coisas se torna possível (...) potência universal de conexões”, onde o
corpo é no espaço. O corpo é no espaço e é com ele que se constrói uma imagem
corporal. “Ser corpo, [...] é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está
primeiramente no espaço: ele é no espaço. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 205).
Em Bachelard (2008, p. 26) encontramos a importância dos espaços da casa,
espaços protegidos que nos confortam e guardam nossos tesouros. A casa é nosso
primeiro universo, nela está ancorada nossa alma. “É corpo e alma. É o primeiro
mundo do ser humano” Sendo o primeiro mundo do ser humano, fazendo uma ponte
para o pensamento de Merleau-Ponty, esses espaços protegidos são nossa alma,
nosso corpo, somos nós.
Eu sou meu corpo, portanto sou espaço e sou tempo. É por meio de minha
experiência motora que tenho acesso ao mundo. Assim, o corpo móvel compreende
o mundo por meio das relações que faz com os objetos e com as outras pessoas. É
por meio da orientação que “eu o reconheço e tenho consciência dele como de um
objeto” diz Merleau-Ponty (2006, p. 341). O corpo reconhece o espaço e se
reconhece na sua orientação espacial por meio da consciência corporal.
Para Merleau-Ponty (2006, p. 206), “a espacialidade do corpo é o
desdobramento de seu ser de corpo, a maneira pela qual ele se realiza como corpo.
Ao procurar analisá-la, apenas antecipamos aquilo que temos a dizer da síntese
corporal em geral”. O espaço e o corpo encontram-se em uma relação de
48
encadeamento. Para vivermos a experiência espacial temos que viver a experiência
corporal.
Sendo que somos nosso corpo, ao mesmo tempo em que vemos e sentimos,
interpretamos nosso corpo próprio para assim conhecer o que nos é tocado.
Percebemos, por meio do movimento que fazemos com nosso corpo. Merleau-Ponty
(2006) aponta que a bengala para o cego é uma extensão dele próprio, pois deixa de
ser objeto para ser algo sensível, que em um movimento exploratório sabe do objeto
antes do objeto saber dele. É por meio do hábito que o cego aprende a compreender
o que é sentido através da bengala. Portanto, é por meio do movimento que o corpo
apreende o espaço. “O hábito exprime o poder que temos de dilatar nosso ser no
mundo ou de mudar de existência anexando a nós novos instrumentos” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 199).
O hábito, continua este filósofo, reside no “corpo mediador de um mundo”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 201). O corpo faz a mediação de conhecimentos do
mundo agregando novas informações, potencializando ações. O corpo é um espaço
expressivo, onde as nossas ações se encontram em potência.
A exploração com a bengala pela pessoa cega, além de ser um hábito motor,
é também um hábito perceptivo, pois se torna uma mediadora entre o cego e os
objetos no mundo. A bengala torna-se um instrumento perceptivo para o cego; ela
torna-se um apêndice do seu corpo. “A análise do hábito motor enquanto extensão
de existência prolonga-se, portanto em uma análise do hábito perceptivo enquanto
aquisição de um mundo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 2011). É por meio do corpo que
o hábito perceptivo vai fornecer significação. Assim, aprender a sentir as coisas é
aprender a enriquecer, reorganizar o esquema corporal. O corpo é um conjunto de
significações vividas, que se constrói por meio de nossa experiência no mundo.
Para o cego, ou a pessoa com baixa visão, experimentar o mundo através de
outros sentidos implica uma conexão com a cultura, a expressão, a comunicação. É
por meio da experiência, da invenção e da criatividade que o ser humano encontra
caminhos de comunicação com o visível e o invisível, dizível e o indizível, pensável e
o impensável.
Segundo Masini (2003, p. 42), “o que está sendo enfatizado, sempre, é a
importância do contato, no mundo que este ser precisa ter, com pessoas e objetos,
por meio dos sentidos de que dispõe sempre em interação e nunca separado,
apenas como um espectador”. Esta autora, com sua grande experiência em
49
pesquisas a respeito da percepção da pessoa com deficiência visual, ressalta a
importância do habitar o mundo, do estar como um agente capaz de uma ação e
relação com o outro, criando oportunidades de refletir e de sair de si para se
reconhecer.
No próximo capítulo iremos apresentar como se deu a evolução do contato
dos jovens cegos dentro do ateliê de artes. Vamos apresentar a evolução das
estratégias, propostas e as formas de contato com o mundo e com a arte do ateliê
de artes para as pessoas com deficiência visual e serão apresentados os teóricos
que apoiaram nosso caminhar.
50
2. O ateliê: percurso do contato do cego com arte
O ateliê de artes para pessoas com deficiência visual funcionava em parceria
com o Projeto Acesso: Centro de Apoio Pedagógico Especializado ao Deficiente
Visual, na cidade de São Paulo, Brasil. Esta parceria ocorreu de agosto de 2004 até
agosto de 2008. O Projeto Acesso tem por finalidade propiciar a inclusão escolar de
pessoas com deficiência visual na rede regular de ensino.
O ateliê de artes para pessoas com deficiência visual não tinha a finalidade de
atender as necessidades específicas da escola regular, sua preocupação era com a
construção do indivíduo como um todo, como ser atuante em prol da sociedade e do
mundo. Com esse pensamento, o ateliê procurava desenvolver um espaço onde
poderiam ser oferecidas oportunidades para superar as dificuldades de forma
criativa, potencializando melhores condições de aprendizagem em todos os
aspectos da vida. Em 2008 o ateliê de artes atendia oito pessoas com deficiência
visual: uma criança cega congênita, dois adolescentes cegos congênitos, dois
adolescentes com baixa visão, um adulto com baixa visão e dois adultos cegos
adventícios.
A expectativa do ateliê de artes era a de ampliar o contato com a arte e com o
mundo de seus frequentadores. As atividades artísticas podem ampliar o mundo das
pessoas, beneficiando-as com o desenvolvimento do pensamento crítico, da
expressão verbal, da aprendizagem cooperativa e do enriquecimento geral de suas
vidas. Os benefícios das artes estendem-se para pessoas que enxergam, assim
como para pessoas cegas ou com baixa visão.
A arte, segundo Ostrower (1989), é um fazer artístico intencional produtivo e
necessário, que amplia nossa capacidade de viver. Ela amplia o potencial criador
através do trabalho, fornecendo-nos soluções criativas. O ato criador faz-nos
compreender o mundo e nos possibilita relacionar, ordenar, configurar e significar.
Kastrup (2010, p. 60) comenta que as oficinas artísticas devem ser espaço de
uma aprendizagem inventiva, pois, segundo essa autora, a aprendizagem não pode
ser reduzida à resolução de problemas; pelo contrário, deve significar a invenção de
problemas, invenção de si e do mundo. As oficinas devem ser espaço onde se
trabalha coletivamente, transformando e criando. Por meio da arte, trabalha-se com
diversas técnicas e materiais. O ato de transformação possui mão dupla, pois é
51
capaz de transformar o transformador, criando e oferecendo novas significações,
revelando soluções e levantando questionamentos.
A criatividade é importante para o individuo. Como expressão do
desenvolvimento de um conjunto de recursos psicológicos, ela se constitui motivo de
satisfação, de usufruir, de realização pessoal.
O trabalho do ateliê de artes para pessoas com deficiência visual procurou
ampliar a compreensão e percepção do espaço, além de desenvolver um
vocabulário artístico.
A artista e educadora Fayga Ostrower (1983, p. 30) conta-nos que:
Descobrir o espaço e descobrir-se nele representa para cada indivíduo uma experiência a um só tempo pessoal e universal. [...] A percepção do espaço não é restrita à individualidade e nem mesmo a certas culturas. Através de nossa sensação de estarmos contidos num espaço e de o contermos dentro de nós, de o ocuparmos e o transpormos, de nele nos desequilibrarmos e re-equilibrarmos para viver, o espaço é vivência básica para todos os seres humanos.
Inspirados na experiência do curso de princípios básicos e de análise crítica
de Ostrower (1983) junto a um grupo de trabalhadores de uma gráfica, o ateliê de
artes para pessoas com deficiência visual iniciou o seu percurso. O tema central do
curso oferecido por essa artista era “Espaço”. Seriam trabalhadas noções essenciais
de espaço, a lógica do procedimento artístico e o vivenciar o fazer. Identificados com
a proposta da artista, vislumbramos aí um caminho para o desenvolvimento de
projetos junto com os alunos com deficiência visual: espaço, lógica dos
procedimentos artísticos e o fazer.
Ostrower (1983), em seu curso, visou demonstrar como a estrutura formal
afeta o conteúdo expressivo. Queria oferecer a ideia da arte em sua complexidade –
da riqueza espiritual que representa para a humanidade e da multiplicidade de níveis
e significados sempre renováveis. As imagens são portadoras da comunicação
artística, e nelas estão preservados os elementos de orientação espacial. É em
razão disso que as mensagens visuais de outras épocas e de outras culturas são
legíveis, possuindo sentido para nós. Os conteúdos expressivos de uma obra de arte
não são articulados verbalmente, mas por meio das formas. São sempre as formas
que se tornam expressivas. A expressão de ordem formal ocorre através de formas
visuais, auditivas ou visual-táteis, por meio da música, dança, arquitetura, escultura,
pintura, etc.
52
Para o desenvolvimento de seus encontros com esse grupo de operários,
Ostrower (1983) desenvolveu algumas estratégias:
Trabalhava a partir de questões que os próprios alunos traziam, através de
seus enfoques, suas dúvidas e curiosidades;
Buscou tornar um hábito a observação de quadros para formar um clima de
convivência com a arte, ampliando a sensibilidade das pessoas diante dos
fenômenos visuais;
Procurou demonstrar como e por que a arte pode ser considerada uma
linguagem universal. Como, e por que as linguagens artísticas atravessam
séculos e milênios, fronteiras geográficas e culturas das mais diversas,
conseguindo preservar significados para nós e, provavelmente, para outras
gerações;
Valorizou a arte como patrimônio da humanidade, arte como linguagem
natural dos homens.
Neste aspecto, os encontros de Ostrower nos envolveram e fomos
vislumbrando possibilidades de diálogos em nosso ateliê parecidos com os que essa
artista-educadora havia conseguido. O único diferencial era que teríamos que
valorizar outras formas de contato com a arte, além da visual. Mas, como ela já
havia dito, a obra de arte é feita de formas expressivas que possuem uma
orientação espacial. Formas e orientação espacial eram um bom caminho a seguir.
Essa autora nos esclareceu sobre as questões do espaço, que são questões
pertinentes a todo ser humano, na medida em que contemos o espaço e o espaço
nos contém. Nele nos equilibramos e nos desequilibramos. Construímos e
reconstruímos nossa relação com o mundo. Usamos imagens de espaço para
exemplificar qualidades de uma pessoa, como aberto ao mundo ou fechado, ou
introvertido, desligado, envolvente, atraente, repulsivo, distante, próximo. Usamos
imagens espaciais ao falarmos que algo nos afeta profundamente.
Os próprios verbos que usamos para indicar o conhecimento de fenômenos – COMPREENDER (com = junto, prender = preso), ENTENDER (en = em, tender = tensão) – revelam modos de ação que abrangem espaço (OSTROWER, 1983, p. 31. Grifo do autor).
Eram, portanto, enigmas possíveis de trabalharmos com alunos com deficiência
visual: espaço e formas. Ostrower (1983) é enfática ao demonstrar que trabalhamos
com elementos expressivos e é preciso compreender como se constituem essas
53
imagens. O trabalho com espaço, a descoberta do espaço do papel, a linha como
interferência e a possibilidade de criar novos espaços, foram investigações que
fizemos junto com os alunos a partir dos ensinamentos de Ostrower. Além disso,
sempre era investigado algum artista para descobrir os seus mistérios, como nos
ensinou essa educadora-artista.
Neste aspecto buscávamos desenvolver atividades em que trabalhássemos
juntos nas descobertas dos enigmas propostos pelas artes. Queríamos oferecer
possibilidades de trabalhos conjuntos, construindo um estar junto com.
[...] Construindo uma relação aditiva, que se produzisse a partir da interseção, levando em conta o referencial do outro, [...] uma intervenção que pudesse se fazer no espaço entre cegos e videntes, e não dos videntes para os cegos (MORAES, 2010, p. 28).
Para além dos mistérios das artes visuais queríamos também descobrir formas
para transpor o repertório de obras pictóricas para a percepção tátil. Tínhamos como
interesse, desde o curso de especialização em Educação Especial, desenvolver
ilustrações táteis que fossem compreensíveis para as pessoas com deficiência
visual, além de promover a pesquisa com desenho. Descobrimos vários
pesquisadores sobre esse assunto como Yvonne Eriksson (1999) que escreveu um
artigo como fazer ilustrações táteis compreensíveis para as pessoas com deficiência
visual. O site de arte educação para cegos Art Beyond Sight foi importante
ferramenta de pesquisa e esclarecimento sobre as questões das ilustrações táteis.
Nas primeiras tentativas de adaptação de obras de arte por meio de alto relevo
que eram apresentadas aos alunos, descobriu-se o que Moreira (2010) chama de
mal entendido. Nesses momentos de tentativa e erro os alunos se viram como seres
que estavam recebendo conhecimento e não construindo conhecimento. Estava
ocorrendo a lógica do “ou”, ou ele compreendia pelo referencial do vidente ou
fracassava. Quando em uma das aulas foi apresentada uma adaptação de uma obra
de arte pela concepção visocentrista, o aluno mostrou-se ineficiente, pois não
conseguia compreender o que era mostrado e assim ele se tornava deficiente. O
“ou” explica Moreira (2010) “é uma conjunção de exclusão”.
Assim, percebendo que não havia o caminhar um ao lado ao outro, foi preciso
modificar o modo de atuar, e conseguir reverter o mal entendido para um mal
entendido promissor. Moreira (2010, p.29) explica “o mal entendido promissor anuncia
novas versões do que o outro pode fazer, isto é, ele anuncia que o outro que
54
interrogamos é um expert, ele pode fazer existir outras coisas, no caso, outros
modos de ordenar a deficiência visual em articulação” com o fazer artístico. Esta se
mostra ser uma maneira de descobertas, de caminhar juntos, de aprender juntos, de
respeito mútuo, descobertas e pesquisas.
Nessas pesquisas encontramos J. M. Kennedy. Discípulo de James J Gibson10,
Kennedy, atualmente é professor da Universidade de Toronto. É um estudioso do
desenho da pessoa com deficiência visual. Pesquisa percepção e cognição. Sua
investigação é sobre a linha, contorno, percepção de figura-fundo, percepção de
contorno e percepção de relevo, tanto da visão como do tato. Esse autor defende a
ideia do desenvolvimento de habilidades de desenho e leitura de obras táteis
bidimensionais. Para ele, as imagens mentais das crianças cegas não diferem
significativamente das que formam as crianças videntes, e assim elas poderiam, em
um processo evolutivo chegar a realizar representações pictóricas semelhantes à
dos videntes.
A questão das imagens mentais nos é muito instigante e, Soler (1999, p.21,
tradução nossa) concorda com Kennedy:
(…) as imagens mentais que as pessoas cegas têm do mundo que as rodeia são iguais as das outras pessoas. Embora, as informações entrem por outros
canais receptores, o resultado final é o mesmo11
.
Para melhor fundamentar as questões da construção das imagens mentais
encontramos durante nossa pesquisa para essa dissertação Rosa Gratacós. Embora
ela não tenha sido referência durante os trabalhos do ateliê de artes a que se refere
essa pesquisa, ela traz fundamentação teórica ao que estávamos buscando. A
percepção, segundo Gratacós (2009), é o início do caminho para a construção do
conhecimento. Nossos sentidos estão conectados ao mundo interior e exterior. A
integração destas percepções é o elo inicial para a construção das imagens mentais.
As imagens mentais são construídas a partir das sensações, incorporando-se e
formando representações internas dos acontecimentos, e esta construção de
imagens intervém na memória. Essa é a base onde se constrói a criatividade e a
fantasia, que geram novas imagens.
Gratacós (2009) salienta que é possível a construção de imagens mentais do
espaço a partir das percepções de nosso corpo. A construção mental do espaço, 10
(1904 -1979) Um dos maiores psicólogos do século XX, foi um grande estudioso da percepção visual. 11
(...) las imágenes mentales que tiene una persona ciega del mundo que le rodea son iguales a las de la población general. A pesar de que la información entre por otros canales receptores, el resultado final es el mismo.”
55
como localização, orientação, direção, distância e representação, foram estudadas
por Piaget que acreditava que o sujeito constrói ao longo de toda sua vida uma
interação com o meio. Hatwell, citado por Gratacós (2009), afirmava que a criança
cega, mesmo que um pouco mais tarde, desenvolve uma organização lógica do
espaço.
Gratacós (2009) salienta ainda a importância da educação espacial da pessoa
com deficiência visual, integrando diferentes experiências que permitem
autoconhecimento, conhecimento do outro e do mundo ao seu redor, além de serem
ferramentas para o desenvolvimento autônomo, psicomotor e intelectual. É de
grande importância que lhes sejam propiciadas experiências corporais e a
simbolização “grafoplástica”, isto é, a elaboração de desenhos (GRATACÓS, 2009, p.
83).
Para nós, assim como para estes autores, trabalhar com pessoas cegas
levantou perguntas sobre percepção, representação, e conhecimento. Kennedy
(1993) afirma que nossa percepção se desenvolve porque conseguimos
compreender a geometria plana e as superfícies. Podemos perceber que os objetos
têm superfícies distintas, ambas visíveis e tangíveis. Nossos sistemas de percepção
retiram informação das superfícies por meio de nossos sentidos, e mais de um
sentido descobre o relevo formado pela conjunção de planos e superfícies, os seus
cantos, vértices, extremidades, e bordas.
Segundo esse autor, as propriedades espaciais das superfícies são
acessíveis através do tato e da visão. A mão pode sentir cantos e extremidades que
o olho pode ver. Se muitas propriedades são percebidas pelo tato e visão, então se
pode dizer que percepções táteis e visuais compartilham alguns princípios
operacionais para perceber a forma em nosso ambiente. Videntes e não videntes
convivem em um mesmo ambiente. Uma mesa é uma mesa visual e uma mesa tátil.
E, se o tato e a visão usam as mesmas estratégias para analisar o mundo, não seria
possível que pessoas videntes e pessoas cegas elaborem representações do mundo
de forma similar?
Partindo dessa questão de Kennedy iniciamos estudos das possibilidades de
compartilhar conhecimentos e representações por meio de ilustrações táteis e de
desenvolvimento das habilidades de desenhos de nossos alunos. Começamos a
estudar as estruturas das superfícies e dos sólidos geométricos. Estudamos juntos
alguns conceitos de geometria plana e de sólidos geométricos. Empenhamo-nos em
56
compreender cada conceito, o que nos fez ver a necessidade de um pensamento
complexo, onde os saberes sejam compartilhados e não compartimentados.
Segundo Morin (2002) aprendemos a analisar, a separar, mas não aprendemos a
relacionar, a fazer com que as coisas se comuniquem. No ateliê, trilhamos os
caminhos do espaço e da expressão, o conhecimento das linhas, das formas e sua
localização no espaço e no espaço bidimensional.
O cego, ao “ler” uma imagem através do tato, faz uma leitura fragmentada do
todo e necessita de uma elaboração maior para transformar estas partes em um
todo. Para completar as ideias de Kennedy, encontramos em Ballesteros (2003)
algumas lições de como trabalhar as habilidades hápticas no desenvolvimento das
crianças cegas. Segundo essa autora, essas habilidades podem estimular o
conhecimento do mundo ao redor, facilitando o aprendizado do Braille e a
compreensão de outros sistemas relacionados com a geometria e a geografia, entre
outros campos de conhecimento. Esses conhecimentos tornam-se o
desenvolvimento dessas habilidades, e devem fazer parte natural do aprendizado da
vida diária. Vemos que as habilidades a serem desenvolvidas conectam-se e criam
oportunidades para o maior conhecimento do mundo, melhorando as relações
sociais.
Suero (2003) garante que as atividades artísticas oferecem às crianças com
algum tipo de deficiência oportunidades de enriquecimento de seu mundo interior e
exterior, permitindo que elas expressem suas fantasias de diferentes formas:
desenhando, escrevendo, narrando um conto, compondo uma canção ou
movimentando seu corpo. Ao experienciar diversas atividades artísticas, descobrem
diferentes maneiras de expressão.
Essa autora acredita que o contato com artistas e com pessoas criativas é
uma maneira que possibilita ao artista transmitir sua própria experiência, seu contato
e vivência com a arte. Promover esse contato é, segundo ela, um ponto de apoio
para impulsionar o desenvolvimento criativo, social e pessoal (SUERO, 2003).
Foi com Suero (2003) que encontramos um caminho para explicar a
transformação de um objeto tridimensional em uma representação bidimensional,
seguindo o Método dos Elementos Básicos desenvolvido por Bardisa (1992)12,
12
Lola Bardisa, pioneira na inclusão de crianças cegas na rede regular de ensino da Espanha. É psicóloga especializada em crianças com deficiência visual no Centro de Recursos Educativos da ONCE – Madrid.
57
método que propicia maior compreensão das habilidades hápticas e das
representações bidimensionais. Bardisa tem seu livro fundamentado em suas
pesquisas de imagens mentais e desenhos da criança cega, disponibilizado no site
da ONCE13. Suero (2003), conforme Bardisa (1992), oferecia um caminho para a
compreensão do tridimensional para o relevo, e deste para o bidimensional. Inicia
com modelagem, que propõe três fases de exploração. Primeira fase:
reconhecimento mediante o contato múltiplo (dimensões, temperatura do material e
textura, entre outros). Segunda fase: familiarização com a argila ou massa. Esta fase
é sumamente importante porque nela a criança explora o material, investiga suas
qualidades físicas e elabora conclusões, entre outras coisas. Terceira fase:
modelagens tridimensionais de objetos simples para logo passar ao que mais lhe
interessem.
Para que os alunos cheguem ao conceito de relevo, Suero (2003) conta que
os professores afundam os objetos até a metade na areia, como se tivessem sido
cortados por um eixo simétrico. Desta forma, podem entender como ficam os
volumes cortados simetricamente na metade. As crianças trabalham em argila com
essas formas. Esta atividade leva as crianças a compreenderem um relevo, que
pode ser construído com argila ou massinha. O relevo, afirma a autora, é uma forma
de expressão tridimensional na qual a estrutura aplaina-se e vai aderindo à placa de
argila. Segue-se então às pesquisas e experimentações do conceito de achatar e
perceber os volumes nas suas bordas, para então chegar ao conceito de contorno e
signos gráficos, como linhas, curvas, traços e expressões em desenho. Os trabalhos
com relevo são uma ponte de compreensão entre o desenho e o tridimensional.
Por esse caminho, Bardisa (1992) e Suero (2003) encaminham os trabalhos
para elaboração de desenhos pelas crianças cegas. Para tanto, propõem que se
façam os desenhos em superfícies capazes de sofrer sulcos, como feltro, tela de
nylon ou borracha, para que consigam passando os dedos por cima do papel, sentir
o efeito produzido pelo lápis sobre este. A criança deve ser orientada a localizar com
os dedos da mão que não está desenhando um ponto da linha que está traçando,
que servirá de referência para realizar as linhas seguintes. Desta maneira, ela irá
desenvolver estruturas espaciais que orientarão em todo o processo.
13 Organización Nacional de Ciegos de España (em português, Organização Nacional dos Cegos da Espanha,
ONCE) é uma organização não governamental de solidariedade social e sem fins lucrativos espanhola.
58
Esses ensinamentos de Bardisa (1992) e Suero (2003) foram fundamentais
para o trabalho dentro do ateliê. Tendo como modelo essas autoras, fizemos várias
pesquisas com os sólidos geométricos, analisamos suas estruturas, recriamos em
argila e massinha, afundamos em caixa de areia e elaboramos vários estudos de
desenho de observação.
Figura 2: Atividades de compreensão da passagem do tridimensional para o bidimensional. Descrição da figura: Apresentamos quatro fotos de atividades de compreensão da passagem do tridimensional para o bidimensional. A foto 1 que se encontra no quadrante superior esquerdo, mostra uma caixa de areia onde estão enterrados dois sólidos geométricos. Ao lado da caixa de areia há duas caixas menores. Uma caixa estão os sólidos geométricos de madeira e na outra caixa, figuras geométricas em madeira. A foto 2, no quadrante superior direito, apresenta uma pessoa explorando a atividade na caixa de areia. A pessoa está em pé e só vemos seu torso, braços e mãos. Suas mãos estão suspensas no ar, acima da caixa de areia. Na caixa de areia temos duas fileiras paralelas com 3 figuras e sólidos que estavam dentro das cada caixas. Temos um retângulo ao lado de um prisma, um círculo ao lado de uma esfera, um retângulo ao lado de uma pirâmide. Na foto 3, quadrante inferior esquerdo, temos a caixa de areia com duas fileiras contendo um retângulo enterrado na areia ao lado de um prisma enterrado na areia, um círculo enterrado na areia ao lado de uma esfera enterrada na areia. Ao lado da caixa vemos um papel onde uma pessoa desenha os elementos que percebeu dentro da caixa. A foto 4, quadrante inferior direito, apresenta um detalhe de uma pessoa desenhando um retângulo.
Seguindo nossa necessidade de maior compreensão do universo de nossos
alunos, encontramos no livro “Comprensión del arte infantil” (1962) e “Aspectos e
técnicas da pinturas de crianças” (1974) do educador francês Arno Stern algumas
respostas para questões que iam surgindo em nosso caminho. As produções de
desenhos, o modo de segurar no lápis, as pesquisas que eram feitas, nos
59
lembravam dos primeiros desenhos infantis. Parecia que era necessário, mesmo
que fosse por um curto período de tempo, passar pelas etapas dos desenhos que
foram apresentadas para nós por Stern.
Stern (1962) (1974) apresentou sua maneira de trabalhar as artes e o espaço
físico necessário para o desenvolvimento de um ambiente propício à criação,
imaginação e invenção, levando-nos à preocupação em oferecer aos nossos alunos
um ambiente que fosse apropriado ao seu desenvolvimento autônomo e seguro.
Com a mudança das instalações do Projeto Acesso em 2007, o ateliê ganha
um espaço próprio. O espaço físico do ateliê foi baseado no Closlieu de Arno Stern.
“Clos" do francês, que significa incluso e "lieu", que significa lugar. O Closlieu é um
laboratório de pintura, onde a ação da pintura é voltada para a sua essência, a sua
simplicidade. Temos uma mesa paleta com 13 cores e uma mesa de mistura onde
se faz pesquisa. As tintas sempre estão disponíveis na mesa paleta no centro da
sala, e cada alumo deve se locomover da parede, onde está pendurado o papel, até
a mesa paleta, de forma independente buscando a cor que quer trabalhar. Cada
pote de tinta da mesa paleta possui uma etiqueta escrita em Braille à sua frente
indicando o nome da cor.
Figura 3: Mesa paleta. Descrição da figura: Foto mostra a mesa paleta. Da direita para esquerda seguindo uma linha diagonal, podemos ver os pequenos recipientes de porcelana com tinta preta, azul escuro, azul claro, verde escuro, verde claro, marrom, amarelo, salmão e uma parte do recipiente vermelho. Abaixo de
60
cada recipiente estão escritos em braile o nome das cores. Acima de cada recipiente há um copo de plástico com água. Do lado direito de cada pote de tinta encontra-se um pincel que corresponde àquela tinta. Na prateleira abaixo da mesa paleta estão os potes para armazenar as tintas.
A tinta que se usa é a tinta guache, cuja principal característica é possuir
muito pigmento o qual faz com que se cubram todas as possibilidades de trabalhos,
desde muito diluído em água sem perder a cor, até muito pastoso e com boa
cobertura. Trabalhamos com diferentes formatos de papel que são grudados na
parede. Em um canto da sala temos a mesa de apoio para o desenvolvimento de
outras técnicas. Esta mesa é forrada com uma placa de borracha de 3 mm que é
usada como suporte para trabalhos que envolvam desenhos. Com argila vermelha,
com alto grau de plasticidade e papel maché e uma grande diversidade de materiais,
desenvolvemos pesquisa com o espaço, volume e matéria.
Para todas as atividades desenvolvidas dentro do ateliê procuramos utilizar a
metodologia da multissensorialidade, onde o tato, a audição, o paladar, o olfato e a
visão, atuam como canais de entrada de informações muito valiosas nas
observações. O curso oferecido pela Pinacoteca do Estado de São Paulo “Ensino da
Arte na Educação Especial e Inclusiva” trouxe maior embasamento para as
atividades dentro do ateliê. Foi nele que entramos em contato com a metodologia
multissensorial proposta por Soler, estudamos as inteligências múltiplas e diversas
abordagens das metodologias contemporâneas no ensino da arte.
O curso de especialização em Arteterapia atuou para a abertura de novos
conhecimentos e para melhor compreensão do universo da arte e a deficiência
visual. Nele, foi reiterado que o ensino da arte deve ter como foco a exploração de
todas as faculdades sensórias do sujeito, sendo parte indispensável na vida criança.
É a partir da necessidade de cada um que se deve trabalhar o fazer artístico. Todos
os estudiosos em arte-educação e arteterapia são unânimes em dizer que o
importante é o processo, e não o resultado final, a obra concluída. Cada momento
de aprendizagem representa a possibilidade de apreender o sentido do
conhecimento. A autonomia e o pensamento livre estimulam o aprender a aprender.
Ser criativo implica em elaborar, construir novas estratégias frente a situações desconhecidas, desfiar o receio frente ao diferente, possibilitar e efetuar modernizações nas relações estabelecidas entre o sujeito e o ambiente (URRTIGARY, 2006, p. 39).
O educador deve ser sensível às necessidades de cada aluno, deve agir
como um facilitador que introduzirá o aluno no mundo seguro do ateliê, agindo como
61
uma presença positiva, mas não impositiva. Dentro do ateliê, pesquisamos. O
resultado não são obras de arte para serem observadas por outros, mas expressões
que oferecem prazer completo à pessoa que se permite produzi-lo. Cada pessoa
possui um desenvolvimento criativo, e por isso deve ser respeitado o seu ritmo.
Cada um segue sua linha evolutiva, e sua evolução só é válida para si próprio. No
ateliê devem ser oferecidas condições para que todas as pessoas sintam-se seguras
e confiantes.
Antecedendo às nossas experiências dentro do ateliê, o aluno descobria o
caminho para se chegar a ele. Eles caminhavam desde a recepção percebendo
cada local, a varanda, o jardim, a rampa que descia para o ateliê, o corredor de
entrada, a sala de relaxamento onde trabalhávamos a respiração, relaxamento, o
estar no mundo. Neste momento, muito da experiência com o yoga e das terapias
corporais desenvolvidas pela professora Vera Ferretti14 serviram de suporte.
Acreditávamos, como Morin (2000), que deveríamos ligar as coisas que
pareciam estar separadas. O conhecimento não mais poderia ser compartimentado,
separado por disciplinas ou áreas de conhecimento, pois saberes se completam e
oferecem novas formulações do mundo. Nos trabalhos com os alunos sempre
buscamos atentar-nos ao modo como compreendiam e se situavam no mundo.
Compreendíamos que para que houvesse o pleno desenvolvimento de todas
as potencialidades de uma pessoa, ela deveria ter o direito de viver no mundo de
forma autônoma e independente. Para isso, tínhamos como certeza que a
Orientação e Mobilidade eram fatores de grande importância no processo de
independência da pessoa com deficiência visual. A Orientação e Mobilidade têm o
objetivo de proporcionar ao cego e à pessoa com baixa visão autonomia na
locomoção, autoconfiança, aumento da autoestima e independência, elementos
estes, facilitadores na sua integração social. Todos os profissionais que trabalham
com pessoas com deficiência visual necessitam conhecer as habilidades básicas de
mobilidade.
Em nossa prática junto a esse grupo de pessoas, havíamos notado que o
desenvolvimento cognitivo muitas vezes era prejudicado pela falta de independência
14
Vera Rossetti Ferreti: Pedagoga, psicóloga, psicopedagoga, arteterapeuta, mestre em Psicologia,
professora e supervisora do curso de Psicopedagogia e Arteterapia do Instituto Sedes Sapientiae.
Supervisora de todo o trabalho desenvolvido no ateliê a partir de 2007.
62
e de conhecimento do mundo ao redor. Desta forma, ao pensarmos nas
necessidades de nossos alunos, estudamos e pesquisamos a percepção espacial
utilizando a multissensorialidade no aprendizado. Em nossas aulas de arte o
conhecimento corporal e do espaço se faz necessário para um desenvolvimento
pleno e criativo. Sendo assim, o trabalho corporal que antecedia o trabalho plástico
se mostrou bastante produtivo para todos os grupos de diferentes idades.
Acreditávamos que o fazer e o compreender arte junto com independência de
locomoção, eram maneiras de ampliar o mundo da pessoa com deficiência visual e
oferecer uma melhora na sua organização espacial e, consequentemente, uma
melhora em todos os processos de aprendizagem, favorecendo sua socialização
junto aos videntes.
Como sabemos o deficiente visual não dispõe automaticamente de uma maior
acuidade dos sentidos do tato, da audição, do olfato ou do paladar. Ele terá de
aprender a utilizá-los da melhor forma possível. A educação dos sentidos consiste
no desenvolvimento dos outros sentidos.
Na busca pela independência através da educação dos sentidos, iniciamos
com o sentido da audição. A audição envolve as funções de ecolocalização. O
ouvido é o único meio pelo qual a pessoa cega pode perceber a distância e a
profundidade em qualquer ambiente.
Pais e professores devem estar atentos para as inúmeras habilidades do
ouvido que ajudam às pessoas com deficiência visual a interpretarem o ambiente e a
se orientarem e movimentarem de forma mais segura, devendo ajudá-las para que
possam usufruir ao máximo desta importante via sensorial.
Foi na procura de respostas às questões que sempre nos foram surgindo no
decorrer dos trabalhos que conhecemos Daniel Kisk.
Kisk (2000) nos apresenta as várias possibilidades oferecidas pelos ecos ao
decifrar informações sobre a natureza e a localização de objetos e características
ambientais como algo pendurado, paredes, entradas e buracos, postes, rampas e
degraus, jardineiras, hidrantes, veículos estacionados ou em movimento, árvores,
folhagens e muito mais. Os ecos podem dar informações detalhadas sobre
localização dos objetos, dimensão e densidade.
Na realidade, os ecos fornecem imagens espaciais reais e concretas que Kisk
(2000) chama de imagens “auditivas” que possuem muitas das mesmas
características das imagens visuais. A informação contida nas imagens auditivas
63
permite ao cego ter uma percepção espacial muito maior sem perder o caminho. A
ecolocalização é um instrumento para melhorar o movimento autônomo das pessoas
deficientes visuais.
Foram feitos diversas intervenções utilizando as habilidades da audição para
que os alunos percebessem melhor o ambiente e conseguissem se movimentar com
maior segurança. Os exercícios com o corpo, postura e movimento tinham como
intenção relacionar o próprio corpo com o corpo do outro e com o espaço. As
atividades eram feitas em uma sala própria para o relaxamento. Um espaço vazio e
seguro. Nesse aspecto encontramos em Gratacós (2009) a experiência muito similar
à nossa. Conta essa pesquisadora que pedia que cada um, em silêncio e
tranquilidade, explorasse diferentes sensações do corpo. Os alunos deveriam girar o
corpo até a porta, andar para frente, para trás, acima, abaixo. Foi proposto explorar
as diferentes sensações corporais entre antes e depois do relaxamento.
Caminharam, pularam, saltaram, giraram, ficaram na ponta dos pés, pisaram forte e
suave. Procuravam descobrir onde estava o amigo e o localizava espacialmente.
Reconhecer pela voz quem estava à direita, quem estava à esquerda. Após essas
experiências os alunos trabalhavam plasticamente as suas percepções.
Gratacós (2009) conta que ao observar as produções das crianças pode notar
como passavam das representações realistas para outras mais simbólicas. O uso
dos símbolos, explica a autora, marca o passo da aprendizagem psicomotor para a
simbólica. Quando janelas, portas ou objetos são representados por quadrados,
retângulos ou linhas esta presente a capacidade simbólica, configuram-se as
representações mentais.
“No horizonte estão nossos sonhos, nossos desejos, nosso olhar com esperança de um mundo mais justo que possibilite a todas as pessoas o acesso à arte e à cultura com as mesma oportunidades de aprender
significativamente”15
. (GRATACÓS, 2009, p. 47 tradução nossa)
Assim Rosa Gratacós (2009) vem embasar nosso trabalho no ateliê de artes
para pessoas com deficiência visual, mostrando a importância de se ter um olhar
para além da deficiência, como pessoas com potenciais plenos de direito. Podemos
15
En el horizonte están nuestros sueños, nuestros deseos, nuestras miradas con la esperanza de un
mundo más justo que posibilite a todas las personas el acceso al arte y a la cultura con las mismas
oportunidades de aprender significativamente.
64
perceber que a questão do espaço não se encerra, continua, como um grande
enigma.
Figura 4: Fotos de Orientação e Mobilidade. Descrição da figura: Fotos de Orientação e Mobilidade. Foto 1, à esquerda. Bruno de bengala, saindo de dentro da sala do ateliê em direção à área coberta do quintal onde estavam trabalhando com a construção da ilha da Terra do Nunca, do projeto Peter Pan de 2007. Foto 2, à direita, Bruno trabalha em pé em uma mesa, sua ilha feita de isopor, à sua frente está Ricardo, sentado em outra mesa fazendo sua ilha.
2.1. O ateliê: potencialidades no encontro do cego com a arte
No ateliê, a cada ano, duas novas propostas eram apresentadas, uma para
cada semestre. No primeiro semestre de 2008, trilhamos os caminhos da artista
Lygia Clark, partindo de suas primeiras obras, que foram adaptadas para a
compreensão tátil.
O ano começou com discussões a respeito das inquietações referentes ao ser
e o mundo ao redor. Em 23 a 24 de outubro de 2007, participamos do I Colóquio Ver
e Não Ver, no Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. Foi neste colóquio que
aprendemos um pouco sobre Merleau-Ponty, na palestra Experiências do Perceber,
de Elcie Masini. Assim, com a influência do que havíamos escutado, estávamos
atentas ao modo como nossos alunos habitavam o mundo e a maneira de se
relacionarem com o outro, como se davam suas experiências e qual sua
compreensão a respeito delas. Masini (2007, s/n) assim nos indicava o caminho para
nos aproximarmos do universo dos alunos.
Assim, o receber informações do meio ambiente e das pessoas pelos sentidos que dispõem é acompanhado pelo sentimento de ser considerada, encorajando-a e ampliando seu interesse em identificar diferenças, usando todos os seus sentidos para explorar os objetos e a natureza. Dessa forma ela vai desenvolvendo suas habilidades de perceber, de experienciar, de organizar e de ampliar o conhecimento do mundo onde está. Seu interesse por identificar diferenças, é também influenciado pela atitude dos educadores – pais ou profissionais – de encorajar a criança a usar todos os seus sentidos para explorar os objetos e a natureza. Atitude que manifesta
65
o privilegiar a criança com suas características próprias em vez de focalizar a deficiência.
Foi assim que iniciamos o ano focando em como poderíamos, juntos,
desenvolver um trabalho que fosse significativo para videntes e não videntes. Foram
em nossos primeiros encontros que surgiram as discussões sobre o medo, espaço e
o porvir. Fizemos alguns levantamentos de projetos que poderíamos desenvolver,
quando nos deparamos com esta frase: “Tenho pavor do espaço, mas sei também
que através dele me reconstruo” (CLARK, Manuscrito s/d, apud ROLNIK, 1999).
Foi a partir deste pensamento de Lygia Clark que iniciamos a pesquisa para o
trabalho com os jovens com deficiência visual. Ao nos depararmos com esta frase,
parecia que Lygia estava falando diretamente conosco. Os jovens apresentavam
grande insegurança de locomoção e total dependência dos videntes. O espaço não
era algo no qual estavam integrados, não interagiam com ele, não havia troca de
informações. Tinham medo do espaço, mas era esse medo que poderia nos dar
forças para continuar e reconstruir. É por causa do medo, e não apesar dele, que
conseguimos perceber o mundo ao nosso redor. Tenho medo, mas ele me dá forças
para continuar e reconstruir.
Chauí (2002), analisando Merleau-Ponty, refere-se à falta, ao vazio, como um
propulsor para a experiência criativa. Chauí nos explica que o que faz amarrar a
experiência, a criação, origem e Ser, é o Espírito Selvagem e o Ser Bruto. Portanto,
era o Espírito Selvagem que procurávamos despertar nesses jovens. O Espírito
Selvagem sendo aquele que quer e que pode:
[...] agindo e realizando uma experiência e sendo essa própria experiência. [...] O Espírito Selvagem é uma atividade nascida de uma força “eu quero” “eu posso” – e de uma carência ou uma lacuna que exigem preenchimento significativo (CHAUÍ, 2002, p. 152-153).
Era preciso valorizar o Ser Bruto, que é a própria diferença e a indivisão.
Chauí (2002, p. 155) explica que o Ser Bruto não separa sujeito e objeto, alma e
corpo, consciência e mundo, percepção e pensamento. Esta díade é algo que não
se divide ao mesmo tempo em que mantém a diferença de cada uma das partes. Só
há luz porque há sombra, alto porque há baixo, visível porque há o invisível, dizível
porque há o indizível, pensável porque há o impensável, dentro porque há o fora. O
Ser Bruto e o Espírito Selvagem, juntos, formam a “polpa carnal do mundo, carne de
nosso corpo e carne das coisas”.
66
O medo do espaço, a dificuldade de se locomover nele, o modo como os
jovens o percebiam e como articulavam suas relações com o mundo exterior eram
instigantes para nós. A falta da visão nos lançaria para um mundo paralelo?
Sem a visão, acreditamos que o mundo se dilui, perdemos nossas
referências, não conseguimos nos localizar. Não conseguimos caminhar até os
locais que nos são habituais. Ao mesmo tempo em que o mundo se dilui, ele se
torna extremamente concreto em seus obstáculos. O buraco no chão, mesmo que
pequeno, pode nos derrubar, e ao cairmos teremos a impressão que nos quebramos
por inteiro, tendo a sensação de estarmos no fundo de um buraco hostil. Ao
caminharmos pela calçada, a janela aberta de uma casa pode ferir nosso rosto, e o
susto será tamanho que ficaremos congelados e trancados dentro de nosso próprio
corpo.
O corpo, esse corpo que nos faz sentir e perceber o mundo à nossa volta, aos
poucos vai se transformando, por insegurança e medo do desconhecido, numa
carapaça que nos protege das percepções e decepções exteriores. O poeta Walt
Whitman, em Folhas de relva, obra de 1885, cantava o corpo como uma fonte de
saber.
[...] Olha teu corpo compreende e é o sentido, o assunto principal, e contém e é a alma (WHITMAN, 1993
16 apud LEHRER, 2009, p.17).
Sendo teu corpo alma e o assunto principal, ele está e é espaço, e precisa
movimentar-se para compreender o mundo, expressar-se, amar, sofrer.
Compreender é possuir a consciência das características essenciais de algo.
Compreender a relação inseparável entre o corpo e o mundo, o corpo e os outros
corpos, a existência e as ideias. Para Merleau-Ponty (2006), devemos reaprender a
ver as coisas, como se as tivéssemos olhando pela primeira vez, em sua gênese.
Bachelar (2004) também fala da importância de um novo perceber o mundo. Esse
filósofo acredita que é o momento essencial da construção de uma imagem que irá
nos ajudar a “reconstruir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força,
o sentido da transubjetividade da imagem” (BACHELAR, 2004, p. 3).
Refletindo sobre quando observamos um quadro, vemos mais do que vemos
e que as imagens poéticas são ressonâncias do passado abrindo-se para o futuro.
16
WHITMAN, Walt. Leaves Grass: was somebody asking. The “Death-Bed Edition”, Nova Iorque: Random House, 1993.
67
Assim, fizemos uma conexão com nossa experiência pessoal para tentar
compreender o que Merleau-Ponty e Bachelar queriam transmitir. Assim, durante
viagem, no outono, aos Pirineus, fronteira natural de montanhas entre a França e a
Espanha, os quadros dos impressionistas tornaram-se mais claros. Os quadros de
Monet, por exemplo, tornaram-se muito mais compreensíveis e reverberaram dentro
de nós, porque caminhamos por locais parecidos com algumas paisagens
elaboradas pelo pintor. A luz, a cor, a vegetação da Europa são completamente
diferentes das que estamos acostumados. A luz e as cores do outono nos são
estranhas, nos deslumbram e intrigam. Que luz é essa? Que cores são estas que
não encontramos em nossa paleta de terra brasilis? O ar, a umidade, o cheiro, nada
faz parte do que vivemos como paisagem. Lilia Schwarcz 17, em sua apresentação
no Colóquio Internacional Brasil-França 2009, realizado em setembro de 2009 na
Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, conta que o pintor Nicolas-
Antoine Taunay, participante da Missão Artística Francesa que chegou ao Brasil em
1816, tinha muita dificuldade de compreender a paisagem brasileira, e reclamava da
luminosidade e do excesso de tonalidades de verde, pois tinha como referencial as
paisagens europeias, tão diferentes das paisagens do Rio de Janeiro do século
XVIII.
Vemos, então, que nossa percepção depende muito daquilo que já
conhecemos, de nossa bagagem cultural. Percebemos e relacionamos com
experiências passadas para compreender o algo percebido.
Eu teria muita dificuldade de dizer onde está o quadro que olho. Pois não o olho como se olha uma coisa, não o fixo em seu lugar, meu olhar vagueia nele como nos nimbos do Ser, vejo segundo ele ou com ele mais do que o vejo (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 18. Grifo do autor).
As coisas nos olham, o mundo nos fala. Informações captadas através das
coisas que estão à nossa volta. Estas informações são internalizadas e podemos
externar as coisas que sintetizamos. Podemos expressar o conhecimento do mundo
através do verbo, da pintura, do gesto, da forma.
17
Lilia Moritz Schwarcz é professora titular no departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e autora de O Espetáculo das Raças (Companhia das Letras, 2003), As Barbas do Imperador (Companhia das Letras, 1998), A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis (Companhia das Letras, 2002), O Livro dos Livros da Real Biblioteca, (Biblioteca Nacional/Odebrecht, 2003) e Registros Escravos (Biblioteca Nacional, 2006), entre outros livros.
68
Por meio da arte podemos decifrar o mundo a nós mesmos. A obra de arte e
o fazer artístico proporcionam a experiência criadora na qual nos diferenciamos e
nos encontramos: “o pintor traz seu corpo para ver o que não é ele, o músico traz
seu corpo para ouvir o que ainda não tem som, o escritor traz a volubilidade de seu
espírito para cercar aquilo que se diz sem ele” (CHAUÍ, 2002, p. 163). A arte
proporciona diferentes maneiras de perceber o mundo e é pela poética do artista
que se promovem nossos deslocamentos para tornar visível o invisível, pensado o
impensável.
Ao apresentar Lygia Clark para nossos alunos com deficiência visual,
tínhamos a intenção de apresentar a poética da artista desde seus primeiros
trabalhos. Tínhamos claro que era preciso compreender a busca do artista, a
compreensão do espaço pictórico, do plano e do espaço.
Carregávamos em nossa bagagem atividades de exploração com sólidos e
formas geométricas e do espaço ao redor, feitas de anos anteriores. Já havíamos
estudado o espaço do papel e descobrimos as linhas e suas capacidades
expressivas. Sabíamos que as nossas experiências significativas deveriam basear-
se na compreensão concreta do mundo.
As descobertas, as dúvidas, os caminhos e opções que cada um estava
trilhando eram compartilhados por todos, mesmo sendo de turmas e horários
diferentes.
Iniciávamos nossos trabalhos no ateliê de artes fazendo uma sondagem
sobre o que nossos jovens queriam, e também procurávamos entender quais eram
as suas dúvidas, temores e angústias.
Realizávamos discussões durante nossas aulas após a leitura de textos,
dentre os quais “Nosso medo mais profundo”, de Marianne Williamson, do livro
Return of Love, usado por Nelson Mandela no discurso de posse como primeiro
presidente negro da África do Sul em 1994, e a obra O medo, de Carlos Drummond
de Andrade.
A intenção, na leitura desses textos, era a de refletir sobre as potencialidades
e possibilidades de desenvolvimento, oferecendo ferramentas para ampliar a
reflexão do viver no mundo, atribuir novos sentidos, construir conceitos e ampliar as
ideias a partir do compartilhamento com o outro.
No ateliê de artes fazíamos primeiro uma sondagem, verificando como estava
cada grupo, para depois iniciarmos uma proposta de projeto.
69
Para apresentação da proposta do projeto Lygia Clark, os grupos já estavam
trabalhando com temas como espaço, tempo e sentidos, além das questões de
sentimento de vulnerabilidade, insegurança e medo. Nessas ações, estávamos
fazendo um levantamento dos problemas que poderiam ser trabalhados e os
desafiando para novos olhares.
O Projeto Lygia Clark surgiu em meio a diferentes maneiras de se perceber o
mundo e inquietações trazidas por nossos alunos assim como nossas próprias
inquietações.
Apresentamos o projeto Lygia Clark porque sentíamos que essa artista trazia
as inquietações que queríamos trabalhar com nossos alunos. Pensávamos em
oferecer oportunidades de compreender a trajetória da artista desde seus primeiros
trabalhos na fase concreta até os seus últimos trabalhos, os Objetos Relacionais.
Tínhamos a nosso favor a grande abertura de nossos alunos. No entanto, nosso
tempo era escasso, nossos encontros eram semanais e tinham duração de duas
horas. Mas era um grande desafio.
2.2. Lygia Clark: a arte como vida, a vida como arte
As questões estéticas levantadas pelos movimentos artísticos do início dos
anos de 1950 ofereciam caminhos interessantes e acessíveis aos nossos alunos.
Esses movimentos artísticos, que atuavam principalmente no eixo Rio - São Paulo,
tinham como ideologia o desenvolvimento cultural da América Latina. A estética
adotada era a do concretismo, que acreditava na arte não figurativa, abstrato-
geométrica.
O Grupo Frente foi fundado por Ivan Serpa em 1954. Faziam parte do grupo
Aloísio Carvão, Lygia Clark, João José da Silva Costa, Vincent Ibberson, Lygia
Pape, Carlos Val, Décio Vieira, Abraham Palatnik e Hélio Oiticica. Esse grupo, junto
com o Grupo Ruptura, de São Paulo, representava a vanguarda construtivista no
Brasil.
O construtivismo trouxe as primeiras formulações de ruptura com os
esquemas da arte dominantes no Brasil. Brito (1999) nos informa que, até então, a
arte moderna no Brasil não havia compreendido os efeitos do cubismo e suas
repercussões. Pintores como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Portinari são na
70
verdade pré-cubistas que incorporaram alguns elementos do cubismo em sua obra.
Esses artistas ainda estavam presos aos antigos esquemas de representação.
A arte moderna começa com a ruptura do espaço organizado a partir da perspectiva e segue como uma constante interrogação sobre a natureza da relação quadro/realidade. Cézanne levado adiante pelos cubistas é um questionamento dessa relação e funda uma nova posição do artista ante o quadro (BRITO, 1999, p. 35).
Esse autor segue informando-nos que, ao se romper com os esquemas
tradicionais de representação, a arte moderna desloca o eixo de observação sujeito-
artista, alterando-o da arte-realidade para artista-arte. No Brasil, foi a vanguarda
construtivista quem entendeu os conceitos fundamentais da arte moderna, e a partir
destes conceitos produzem os discursos concretos e neoconcretos com a intenção
de levá-los para frente. Querem levar à frente o trabalho de Maliêvitch, Mondrian e
Max Bill.
Figura 5: Unidade Tripartida, 1948/49 de Max Bill. Descrição da figura: Unidade Tripartida, 1948/49 de Max Bill. Premio da Primeira Bienal Internacional de São Paulo, em 1951. É uma escultura em forma de uma Fita de Moebius feita em aço inoxidável. A Fita de Moebius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após efetuar meia volta numa delas. A topologia é um ramo da matemática que estuda as características do espaço como convergência, conexidade e continuidade. Recebeu esse.nome dado em homenagem ao matemático alemão August Ferdinando Moebius (1790-1868) que estudou este objeto.
A arte concreta dos anos 1940-1950 tinha de ser racionalista, objetiva,
deveria privilegiar os procedimentos matemáticos e se integrar à sociedade, explica
Britto (1999). Assim, o artista era um pesquisador de formas que seriam aproveitadas
na indústria. A arte concreta queria atingir a coletividade indistintamente.
71
Britto (1999) diz que, no Brasil, o concretismo buscava as bases para a
pesquisa artística:
como o concretismo suíço era mais ou menos “cientificista”, não só a sua idéia de percepção visual e do campo óptico já estava informada pela teoria da Gestalt e suas leis como a concepção implícita em seu processo de produção se aproximava metaforicamente dos procedimentos colocados em prática pela ciência e pela tecnologia (BRITTO, 199, p. 39).
A arte concreta queria extrair o conteúdo da obra de arte. Os artistas
concretistas propunham que fosse extraído qualquer tipo de mensagem. Deveria ser
extraído qualquer tipo de subjetividade em favor da comunicação pela percepção
visual. A arte estava baseada no pensamento matemático, e voltada para uma
linguagem universal, o que acabou restringindo seu vocabulário plástico a formas
geométricas.
Já os neoconcretistas queriam trazer de volta o experimentalismo e a
subjetividade na arte por meio “da efetiva participação do público no processo de
criação e na manipulação de objetos interativos” (PÁSCOA, 2005, p. 8).
Segundo Britto (1999), o ponto central da polêmica criada entre os
concretistas e os neoconcretista gira em torno da linguagem (visual-literária).
Passou-se da semiótica saxônica (Peirce) e da teoria da informação (Nobert Wiener) para uma filosofia mais especulativa (Merleau-Ponty e Susanne Langer); passou-se do âmbito da rigorosa manipulação de elementos discretos para uma área que, sem renegar de todo esses postulados, recolocava questões ontológicas no centro das teorizações sobre linguagem (BRITTO, 1999, p. 55).
As críticas dos neoconcretistas aos concretistas são similares às criticas de
Merleau-Ponty à teoria Gestalt, continua esse autor. A teoria Gestalt não conseguia
“extrair todas as consequências conceituais de suas próprias descobertas
científicas” (BRITTO, 199, p. 56). No neocroncretismo, encontramos uma crítica ao
pensamento mecanicista em arte, mas não aos procedimentos tidos como mais
abertos, tais como as pesquisas da geometria não euclidianas, como a Fita de
Moebius.
Britto (1999) segue em sua comparação entre os dois movimentos irmãos,
esclarecendo que no concretismo o ser humano era incluído como agente social e
econômico, enquanto que o neoconcretismo colocava o ser no mundo e pretendia
pensar a arte nesta inter-relação.
72
Em meio a tudo isso, podemos notar que Lygia Clark possuía pensamentos
próprios na maneira de elaborar e viver arte.
Nunca fui considerada pintora concreta ortodoxa. Fiz parte de grupos para depois ajudar a rompê-los; o que eu queria era outra espécie de comunicação. Comecei a observar que a maneira de perceber uma obra concreta era dentro do que eu chamava de tempo mecânico. Fiquei preocupada em expressar um outro tempo que eu chamei depois de orgânico. Menos perceptivo, mas um tempo vivencial. Era como se o gráfico da visão da forma seriada dos concretos fosse percebida com o olho através deste desenho e o que eu propunha era que olho se abrisse e que o espectador penetrasse no espaço e fosse penetrado por ele (ROLNIK, 1999, p. 33 [manuscrito s/d, in Arquivo L. Clark]).
Essa artista se recusava a ser catalogada segundo movimentos estéticos ou
estilísticos, pois tinha necessidade de desenvolver uma poética de
“desrepresentação, de superação dos suportes, de deslocamento do privilégio do
olhar para uma ampla percepção sensorial, de integração do corpo na arte e da arte
no corpo coletivo” (Milliet, 1992, p. 14).
Nada está pronto, formula Merleau-Ponty (2004). É preciso olhar o mundo
como se tudo estivesse por ser feito. É preciso despertar o corpo para os outros
corpos, e é nessa realização contínua que iremos compreender o mundo.
É preciso que com meu corpo despertem os corpos associados, os “outros”, que são meus congêneres, como diz a zoologia, mas que me freqüentam, que freqüento, com os quais freqüento um único Ser atual, presente, como animal nenhum freqüentou os de sua espécie, seu território ou seu meio (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 14-15).
Assim como Merleau-Ponty, Lygia tem grande interesse nas associações dos
corpos, nos processos que vão surgindo durante a sua ação criadora e na
descoberta da interação com outros corpos. Milliet (1992) opina que, em Clark, a
atividade criadora está completamente ligada à sua vivência, ao ser no mundo. Sua
constante busca a leva a uma sequência lógica e orgânica, onde cada etapa antevê
a próxima.
Lygia Clark, com suas inquietações, foi a porta de entrada para a
compreensão e desvelamento de sua obra. Lygia apresenta uma lógica nos
processos de criação que tem início na Quebra da moldura e nas Linhas orgânicas,
obras de sua autoria que dividem os planos e cores, e se transformam em
Superfícies Moduladas. Estas ganham dobras sobre si, criando espaço interno,
destacando-se da parede e rompendo os limites da tela. São os Casulos, e neles se
desenvolvem os Bichos, com suas articulações, que se propõem a serem tocados e
73
transformados por quem os observa. Os Trepantes são uma decorrência dos Bichos,
só que agora não possuem mais articulações: são chapas de metal que precisam
estar enroscadas em algum objeto. As Obras Moles são uma variante dos
Trepantes, feitas de borracha, e abraçam os corpos. Desta sensação da obra com o
corpo, Lygia inicia sua pesquisa dos materiais e das sensações provocadas por eles,
criando um diálogo entre a obra e o corpo. São os Objetos Relacionais.
Maluf (2007, p. 26) observou que as obras de Lygia possuem certa
continuidade no desenvolvimento e compreensão do pensamento fenomenológico.
Passando de nomes que se referiam estritamente à construção espacial da
obra (Superfícies Moduladas, Espaços Modulados, Contra-relevos) para
títulos que se referiam a elementos da natureza (Ovo, Casulos, Bichos) até
chegar a uma nomenclatura viva, “em processo”, que fazia alusão à ação e
à continuidade (Caminhando, Respire Comigo, Diálogo, Objetos
Relacionais).
Essa trilha traçada por Lygia, sua procura por um diálogo com o espectador e
a absorção deste para dentro da obra conduziu-nos para uma abertura para o que
não éramos nós, e a um distanciamento de nós mesmos. A cada trabalho, a cada
obra, cada expressão nos levava a coisas já vividas, abrindo-nos para um novo
modo de perceber o mundo, provocando novas inquietações. São experiências,
mutações, experimentações, invenções, um movimento incessante que conduz essa
artista.
Exercendo a experimentação como disciplina do não conformismo, do estiramento de limites, realiza não apenas o já aceito, o reconhecível, mas ousa o transbordamento da arte para a vida, atingindo o “singular estado da arte sem arte” (Milliet, 1992, p. 15).
Assim como Lygia, partimos para nossas experimentações do sujeito para o
objeto. Do estar em um local para a exploração das superfícies. Do concreto para o
abstrato, da arte para a não arte. Percursos, processos e explorações que
evidenciam o interesse de Lygia e que Maluf (2007) apresenta como sendo o
interesse de toda a vida de Merleau-Ponty, traçando um paralelo entre os dois.
Segundo essa pesquisadora, Merleau-Ponty tinha grande interesse em acompanhar
como o ser humano compreendia o mundo, como ocorria o processo da criação
artística, como se dava o contato das pessoas com a obra de arte e com o mundo. O
interesse de Merleau-Ponty era na questão da experimentação e na experiência,
74
pois neles os resultados não estão prontos, existe uma instabilidade onde tudo pode
mudar.
O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não habita apenas no “homem interior”
18, ou antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é
no mundo que ele se conhece (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 6).
Lygia queria sua obra no mundo, como o homem estava no mundo, e desta
forma eles se reconheceriam. E assim fizemos dentro do ateliê, sua obra mostrou-se
viva e desencadeou novas percepções e inquietações. Em toda sua trajetória, Clark
queria incluir o espectador em sua obra, queria que ele saísse de sua posição
contemplativa e participasse da obra.
Com independência, Lygia adere ao movimento concreto, elaborando pinturas
geométricas que exploravam as possibilidades compositivas do plano e espaço.
Em relação à questão sobre o espaço, Farina (2005) informa-nos que as
questões levantadas pela Fita de Moebius influenciaram um grande número de
artistas do século XX, como M.C. Escher, Brancusi e Lygia Clark.
Figura 6: Fita de Moebius em xilogravura de M.C. Escher 196119
. Descrição da figura: Fita de Moebius em xilogravura de M.C. Escher 1961. A xilogravura é um processo de gravação em relevo que utiliza a madeira como matriz e possibilita a reprodução da imagem gravada sobre papel ou outro suporte adequado. Essa gravura possui duas cores, verde e vermelha. A fita de Moebius tem a propriedade de ter apenas um lado e uma borda. Se rastrear o caminho da fita irá perceber que está caminhando sempre do mesmo lado.
Farina (2007, p. 153, tradução nossa) explica que a Fita de Moebius, tira
bidimensional com uma volta no meio,
18
“In te redi; in interiore homine habitat veritas.” Santo Agostinho.
19 Disponível em: http://nuclear-imaging.info/site_content/2009/02/03/moebius-mobius-strip-in-art-and-
culture/. Acesso em 15/09/2010
75
[...] torce a imagem convencional do espaço colocando em paradóxica comunicação o dentro e o fora. Interior e o exterior passam a ser dimensão de um mesmo espaço, propriedades do espaço no qual se constitui um pensamento e uma estética. A fita de Moebius coloca em cena a torção da direção do sensível do século XX, tanto no campo discursivo como no estético
20.
Esse novo olhar provocado pela Fita de Moebius promove práticas estéticas
agora preocupadas com espaço, forma, abertura de limites, gesto e pensamento do
espectador. Essa nova direção leva a arte à procura de um novo pensamento, que
vai ligar a arte com a vida, e as práticas estéticas à composição pensamento-vida
(FARINA, 2005).
Em Lygia, encontramos na obra Caminhando (1963) seu momento de
exploração desse novo espaço proposto pela Fita de Moebius. Nesta obra, o objeto
deixa de possuir valor estético para oferecer vivências. A obra desmaterializa-se e
fica concentrada na ação do espectador.
A seguir, podemos constatar essa desmaterialização e a interação do
espectador com a proposta da artista, em workshops que oferecemos a professores
em diferentes ocasiões.
Figura 7: Fotos do workshop Lygia Clark para professores (fotos: Ana Carmen Nogueira). Descrição da figura: Fotos do workshop Lygia Clark para professores (fotos: Ana Carmen Nogueira). São três fotos. Foto 1 à esquerda mostra uma pessoa cortando uma Fita de Moebius seguindo à proposta da artista Lygia Clark na obra “Caminhando”. Foto 2, centro. Apresenta a mão de uma pessoa segurando o resultado do recorte da Fita de Moebius. Foto 3, direita. Resultado sobre a ação do recorte na Fita de Moebius.
Com esse trabalho, Lygia auto intitula-se “propositora”, mostrando o processo
de desestruturação das artes e transgressões que vivia essa artista.
“Caminhando” é o nome que dei à minha última proposição. A partir daí, atribuo uma importância absoluta ao ato imanente realizado pelo participante. O “Caminhando” tem todas as possibilidades ligadas à ação em si: ele permite a escolha, o imprevisível, a transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto (CLARK, 1964, s/n).
20
La cinta de Moebius tuerce la imagen convencional de espacio, poniendo en paradójica comunicación el dentro e el afuera. Interior y exterior pasan a ser dimensiones del mismo espacio, propiedades del espacio en el cual se constituye un pensamiento y una estética. La cinta de Moebius escenifica la torsión en el régimen de lo sensible del siglo XX, tanto en lo que se refiere al terreno discursivo como al estético.
76
É o ato do participante que fará com que a obra se realize. A arte não é mais
durável, ela é um processo de realização. Modificam-se os sistemas de
comunicação artística, as galerias e museus já não comportam as ações. É
necessária a abertura de novos canais de comunicação. O produto final já não
importa, o que importa são os processos. Esse momento radical de Lygia já era
sentido, de maneira sutil, nas suas primeiras obras de 1954, nas quais a artista
queria fazer com que o espectador entrasse na obra.
Toda a minha pesquisa começou, quando descobri a linha que aparece quando duas superfícies planas e da mesma cor são justapostas, esta linha não aparece quando as duas superfícies são de cores diferentes (CLARK 1954, s/n).
A linha orgânica foi uma descoberta que estruturou toda a obra de Lygia,
transformando o espaço e abrindo caminho para a tridimensionalidade. “Os planos
passam a ser justapostos por linhas, frestas que dinamizam a superfície [...]
Estamos aqui na fronteira entre pintura e escultura” (ROLNIK, 1999, p. 10). Milliet
(1992, p. 57) ressalta que a descoberta da linha orgânica encaminha para as
superfícies moduladas, que irão levar às descobertas tridimensionais.
Lygia Clark, neste período, investiga formas e a linha que divide os planos de
uma composição. As linhas orgânicas surgem quando estas dividem dois planos
com a mesma cor, cortando o quadro, criando espaço e tensão entre os planos.
Em 1954, Lygia apresenta Composição nº 5, onde encontramos a inclusão da
moldura no quadro, assim oferecendo um escape da pintura para fora da tela, que
toca a parede e encontra o mundo, produzindo uma nova superfície.
Essa nova superfície se torna possível pelo com-tato da tela com a parede, porque esta é geradora do plano de composição estética e do plano de composição com o mundo (FARINA, 2005, p. 156).
21
Essa pesquisadora esclarece que a moldura, apesar de ser um elemento que
não faz parte da pintura, acaba interferindo nela, uma vez que evidencia a pintura,
mas não é pintura. A moldura adere à superfície da pintura separando-a da
superfície da parede. Ela enquadra a superfície da pintura ao mesmo tempo em que
a isola. Para Farina (2005), Lygia sentia que, naquele momento, a moldura era a
21
Esa nueva superficie se hace posible por el con-tacto de la tela con la pared, porque es generadora
del plano estético de composición y el plano de composición con el mundo.
77
personificação física do enquadramento institucional da pintura: uma prótese do real.
A moldura não era moldura e nem era parede, não era a obra e nem era o mundo.
Os quadros de Lygia Clark não têm moldura de qualquer espécie, não estão separados do espaço, não são objetos fechados dentro do espaço: estão abertos para o espaço que neles penetra e neles se dá incessante e recente: tempo. Esta pintura não 'imita' o espaço exterior. Pelo contrário, o espaço participa dela, penetra-a vivamente, realmente. É uma pintura que não se passa num espaço metafórico, mas no espaço 'real' mesmo, como um acontecimento dele (GULLAR, 1999, p. 269).
Para esse autor, em Lygia não existe separação entre o espaço e a obra, pois
ela constrói o quadro como um objeto e como expressão. Em suas pinturas, a
superfície não é suporte, é a própria obra.
Lygia Clark, pintora, não utilizava a superfície a favor da pintura, em sua pintura, não falava sobre o mundo, mas sim pintava o mundo das superfícies do plano e os planos de superfície. Por isso, romper com a moldura para devolver a superfície do quadro para a superfície da parede significou abrir a pintura a outro plano, e o plano para outro espaço, significou poder se concentrar em seus problemas estéticos de superfície, plano e espaço (FARINA, 2005, p. 156-157, tradução nossa)
22.
Lygia Clark explora a superfície plana não como suporte da representação,
mas como objeto no espaço. Gradualmente, seu trabalho vai se transformando,
incorporando a moldura à obra, oferecendo o dilema figura/fundo para, depois, na
etapa seguinte, desarticular o quadro, permitindo que as formas se relacionem
diretamente com o espaço exterior.
A linha orgânica ganha corpo na obra de Lygia Clark, à medida que vai
organizando os espaços. É uma linha de espaço, uma linha entre corpos no espaço
e entre os espaços que construíam as disposições dos corpos.
Por meio do espaço que se abre pela linha se escuta o murmúrio do mundo. Cria-se um espaço de murmúrio por meio de uma linha de contato, do roçar entre a obra e o mundo, entre o plano de composição estética e a estética do mundo. A linha é um espaço de ressonância (FARINA 2005, p. 159, tradução nossa).
23
22
Lygia Clark, pintora, no utilizaba la superficie a favor de la pintura, no aludía al mundo en la pintura, sino que pintaba el mundo de las superficies: pintaba la superficie del plano y los planos de superficie. Por eso, romper la moldura para devolver la superficie del cuadro a la superficie de la pared, significó abrir la pintura a otro plano, y el plano a otro espacio, significo poder concentrar-se en sus problemas estéticos de superficie, plano y espacio. 23
A través del espacio que se abre en la línea se escucha el rumor del mundo. Se crea un espacio de rumor a través de una línea de contacto, del roce entre la obra y el mundo, entre el plano de composición estético y a estética del mundo. La línea es un espacio de resonancia.
78
O plano torna-se cada vez mais limpo com cortes geométricos dinamizados
por linhas e frestas, e começa a se distanciar da pintura tradicional.
A “superfície modulada” realizando a planimetria do tridimensional constitui um espaço articulado, não ilusionista. Na construção plana, a “linha orgânica” estrutura e energiza a superfície, atravessando-a de ponta a ponta, criando dinamismo incontido que tende a se propagar para o espaço externo. Nela está implícito o movimento, porque a organicidade da linha-espaço deriva do ajustamento de planos mantidos em repouso, colados sobre a superfície, entretanto sugerindo combinações hipotéticas como num quebra-cabeça (MILLIET, 1992, p. 58).
Lygia Clark reduz o uso de cores para preto, branco e cinza, descarta os
materiais tradicionais da pintura e passa a usar madeira, passando também a pintar
com tinta industrial.
Figura 8: Duas obras da artista Lygia Clark. Descrição da figura: Apresentamos duas obras da artista Lygia Clark. A imagem à esquerda mostra a obra Plano em Superfícies Moduladas nº 2 (1956). Essa obra foi feita com tinta industrial sobre madeira. Tamanho: 90,1 x 75 cm. Apresenta uma justaposição de módulos como fossem um quebra-cabeças formando um retângulo final. As peças se apresentam na horizontal e vertical. À direita está a obra Superfícies Moduladas nº 5 (1957), também há a ideia da justaposição de formas como um quebra-cabeças trabalhando com direções diagonais. Ambas as obras estão em preto e branco.
As Superfícies Moduladas são construídas como reestruturação da superfície,
fazendo com que o espaço externo a penetre e aja sobre ela. A linha orgânica é a
responsável pelo diálogo entre o espaço interno da pintura e o espaço externo. Lygia
Clark passa a se concentrar no plano construído pela “linha espaço”.
Passei a experimentar o que chamei de Planos em Superfície Modulada. O virtual sólido do último grupo de trabalhos será agora reduzido à superfície plana, a qual, entretanto, aparece curvada pela percepção do olho. [...] Na verdade, o que eu queria fazer era expressar o espaço em si mesmo e não compor dentro dele (CLARK 1958, s/n).
Essas transformações que Lygia vai realizando por meio da quebra da
moldura, na obra Composição nº 5, de 1954, a descoberta da linha orgânica em
79
Planos em Superfícies Moduladas, seguido pelos Casulos, pode ser considerada
uma tentativa de aproximação do espectador com a obra, esclarece Maluf (2007)
Lygia Clark, em seu texto de 1958, faz uma reflexão sobre a separação
espectador e obra e a necessidade de se criar um espaço orgânico para que a obra
fosse aberta àquele que a observa. Queria que o espectador entrasse no espaço
criado e o experimentasse como um organismo vivo. Lygia desafia-nos a olhar os
objetos segundo dois pontos de vista. O primeiro seria o ponto de vista orgânico, no
qual tomaríamos consciência de nós e o objeto, uma vez que pertencemos ao
mesmo espaço. O segundo ponto de vista é por meio de uma percepção “global”,
diferente, de olhar o objeto por uma sucessão de imagens.
Para Maluf (2007, p. 22), essa artista propunha uma nova maneira de perceber
a obra.
Lygia Clark propunha uma transformação da percepção da própria obra. Buscava um envolvimento fenomenológico, que levasse em conta todas as sensações e sentimentos que foram mobilizados e despertados diante e com relação ao objeto em questão, dando sentido e significado ao objeto de arte, fazendo dele um exemplo concreto da condição de ser-no-mundo.
As obras clarkianas vão se tornando cada vez mais limpas, sem cores,
apenas preto. As linhas orgânicas transformam-se em linha-externa, linha-luz, linha-
tempo. Aparecem os espaços modulados, totalmente negros, com frestas entre as
formas que ligam a superfície da obra ao espaço externo. Aqui, a linha orgânica é
um prolongamento do espaço da parede. Torna-se mais explícito a sua pesquisa do
dentro-fora. “O tema “dentro-fora” constitui linha importante para o entendimento
amplo de Lygia Clark tanto no sentido dialético homem/mundo quanto em sua
tradução plástica baseada numa percepção topológica” (MILLIET, 1992, p. 57).
Figura 9 Josef Albers. Structural Constellation, Transformation of a Scheme No.12 1950.
80
Descrição da figura: Josef Albers. Structural Constellation, Transformation of a Scheme No.12 1950. Gravura esculpida por uma máquina em chapa vinilica. A figura tem um fundo negro e está desenhada por finas linhas brancas. Representam vários retângulos, quadrados e cubos como se estivessem suspensos no ar em rotação sobre eles mesmos. Linhas diagonais à direita e à esquerda oferecem essa sensação de movimento etéreo..
24
Lygia era uma incansável pesquisadora. Em seu texto Influência de Albers, de
1957, essa artista demonstra o encantamento que teve ao conhecer a série de
litografia de Josef Albers, Constelações. A descoberta de um espaço que ela
chamou de pluridimensional ofereceu novos caminhos para exploração.
Neste período eu reduzi a cor o mais que pude, concentrando no desenho do espaço em si mesmo (Grifo do autor). As formas seriam virtualmente sólidas, porém capazes de sugerir uma ambigüidade de espaços, dependendo do ponto focalizado pelo espectador (CLARK, 1957, s/n).
Destes estudos surgiu a série intitulada Plano em Superfície Modulada. Clark
estava sempre buscando algo além, estava sempre buscando tornar o invisível
visível. Não se acomodou em fórmulas que deram certo. Para ela, cada trabalho traz
novos questionamentos.
Figura 10: Espaço Modulado (1958). Descrição da figura: Apresentamos duas figuras. À esquerda está a obra de Lygia Clark Espaço Modulado (1958). Essa obra é composta de 3 quadrados negros colocados na vertical diretamente sobre uma parede branca. Essas peças possuem uma distância milimétrica entre si, fazendo com que surja uma fresta entre elas. Desta forma a parede, com a sua linha branca, passa a fazer parte da obra. O quadrado de cima e o quadrado de baixo possuem as mesmas dimensões. O quadrado do meio possui alguns, milímetros a mais, provocando a sensação visual de que as laterais direita e
24
Disponível em http://artblart.wordpress.com/2010/04/01/exhibition-josef-albers-innovation-and-
inspiration-at-the-hirshhorn-museum-washington-d-c/. Acesso 15/10/2010.
81
esquerda parecem estar um pouco abauladas. Na figura à direta, vemos no quadrante inferior direito a artista Lygia Clark, que posa sentada em uma cadeira em frente às obras da série Unidade. No
restante da foto, vemos uma panorâmica da parede com a série Unidades. A foto é empreto e branco.
O tempo se espacializa, o espaço se temporaliza. Não há mais, nestas obras, desde a sua origem, qualquer distinção entre esses elementos básicos. Este quadrado preto é o lugar de uma precisa duração que é o tempo em que esse quadrado se realiza (GULLAR, 1999, p.281 ).
Clark (1959, s/n), em seu texto Mondrian, afirma a necessidade de questionar
os espaços e “criar formas vivas que fujam completamente do espaço
representativo, o qual pode ser usado apenas na medida que está expresso pelo
tempo da obra”. A obra já não suporta ficar presa ao plano. Era preciso criar relevos
que se incorporavam ao espaço. As superfícies do quadro não contêm figuras
geométricas, elas passam a ser a própria figura.
O cavalete não mais comporta o quadro, e o pensamento estético de Lygia
torna-se cada vez mais construtivo, assim como o plano cada vez mais autônomo,
conta Farina (2005). Sem perder o equilíbrio, o plano se desestabiliza e passa a ser
sustentado por um dos vértices – são os Casulos.
Os Casulos nascem da necessidade de a obra sair do plano. Esta série é
considerada obra intermediária entre a pintura e a escultura. O plano ganha volume,
incha, começa a desgrudar pelas pontas, “deixa entrever o espaço nele aprisionado”
(MILLET, 1992, p. 61). As suas dobras não separam por completo o interior do
exterior, e existe uma comunicação do dentro com o fora.
Figura 11: Casulo. Lygia Clark.
Descrição da figura: Casulo. Lygia Clark. Obra feita de Nitrocelulose sobre lata, 42,5 x 42,5 x 26 cm.
A figura mostra uma placa de metal dobrada sobre ela mesma formando um quadrado que está pendurado à parede por um dos vértices. A parte interna da placa é branca, a externa é preta. A placa que se dobra sobre a outra, possui uma dobra na vertical e um corte em sua ponta. A dobra na
82
vertical vai em direção à esquerda e o recorte se dobra para a direita. Com essas dobras e recortes, vão aparecendo espaços novos de dentro e fora, e a peça vai misturando partes em preto e partes em branco.
25
Farina (2005) conta que o plano estético passa a conter esse espaço de
comunicação. São vulcões de espaço, explica essa pesquisadora, fazendo um
paralelo entre Lygia Clark e o filósofo francês Gilles Deleuze. Vulcões que trazem
para a superfície temperaturas internas, que sopram o magma na temperatura da
dobra do plano. Temperatura que se torna movimentos do plano estético, e dá força
ao gesto da dobra. A linha está na dobra. A obra sai da parede, embora continue
presa a ela. “Na pintura de Lygia Clark o plano e a forma se coincidem; o plano é
forma, não faz ver uma forma”. 26
Farina (2005), discorrendo sobre a obra e a poética de Lygia Clark,
diz que elas são a transformação da forma. O plano não é fundo, não é
nada, não é base para uma figura. Ele é a figura e o fundo em sua
consciência total. O Casulo faz-se espaço, acolhendo uma nova forma que
nasce de um gesto estético.
O corpo do plano cresce para solicitar nosso corpo. O giro sobre si mesmo, que foi dado pelo plano, convoca o giro de nosso corpo ao redor do espaço que o abriga: o Casulo é o útero do espaço dinâmico
27 (FARINA, 2005, p.163, tradução nossa).
O que surge é a nova espacialidade na pintura, com uma busca
cada vez maior para o orgânico relacionado com a arte.
Neste momento Lygia passa a questionar o plano e diz que o plano foi
inventado pelo homem para satisfazer sua necessidade de equilíbrio. Essas criações
abstratas do homem lhes dão uma noção falsa da própria realidade e destroem o
sentimento de totalidade.
Marcando arbitrariamente limites no espaço, o plano dá ao homem uma idéia inteiramente falsa e racional de sua própria realidade. Daí conceitos opostos como o alto e baixo, o direito e o avesso, que contribuem para destruir no homem o sentimento da totalidade (CLARK, 1960).
25
Disponível em: http://www.passeiweb.com/saiba_mais/arte_cultura/galeria/lygia_clark/1#. Acesso em 15/10/2010 26
En la pintura de Lygia Clark plano y forma coinciden: el plano es forma, no da a ver uma forma. 27
El cuerpo del plano crecido pasa a solicitar nuestro cuerpo. El giro que había dado el plano sobre sí mismo, ahora convoca el giro de nuestro cuerpo alrededor del espacio que es y abriga: el Casulo es útero de espacio dinámico.
83
A artista, no seu texto A Morte do Plano, diz que, ao destruir o plano,
tomamos consciência da unidade como um todo vivo e orgânico. Ao mergulharmos
na totalidade fazemos parte do cosmos, e nossa maneira de estar no mundo se
modifica. É preciso aprender a nos equilibrarmos para sobreviver.
Podemos notar que Lygia têm seus pensamentos influenciados pelas ideias
de Merleau-Ponty. O autor de Fenomenologia da Percepção diz que a
fenomenologia é o relato do espaço, do tempo, do mundo vivido. O espaço deve ser
entendido em sua totalidade e cada pessoa possui sua própria experiência de
espaço.
Dissemos que o espaço é existencial; poderíamos dizer da mesma maneira que a existência é espacial, quer dizer, que por uma necessidade interior ela se abre para um “fora”, a tal ponto que se pode falar em espaço mental e de um mundo das significações e dos objetos de pensamento que nelas se constituem (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 394).
Para Lygia e Merleau-Ponty, o espaço da experiência é o espaço primordial, é
a experiência que trará conhecimento do mundo. Conhecimento por meio da
percepção, em um espaço vivido e percebido.
Farina (2005) salienta que o mesmo plano que foi até agora toda base de
pesquisa desta artista neste momento é desestruturado. Mais uma vez, Lygia rompe
com as estruturas formais que regem a arte. A primeira vez foi com a quebra da
moldura, e agora mexe com a sua estrutura da perspectiva, revolucionando o modo
de ver. A morte do plano é uma reação contra o sistema de racionalização do
espaço que oferece uma falsa percepção de estabilidade das formas do mundo.
Nesse momento, Lygia está envolvendo questões estéticas, éticas e políticas
ao discutir forma, espaço e percepção, acrescenta Farina (2005), uma vez que ética
e política compõem um espaço específico. Forma, espaço e percepção não são
apenas figuras estéticas, mas são políticas e éticas também, porque envolvem a
maneira que assumimos nossa própria realidade. Pressupõem uma nova maneira de
existir, de compreender a realidade. Lygia assim afirma o processo criador como um
ato de autonomia e libertação contra as forças dominantes de ordenação do espaço.
Com a Morte do Plano, Lygia inicia obras que interagem com o espectador.
Os Casulos se despregam da parede e nascem os Bichos. Eles são feitos de placa
de metal polido, unidas por dobradiças, compostos por planos geométricos que se
articulam no espaço.
84
Bichos – é o nome que eu dei às minhas obras desse período, pois o seu caráter é fundamentalmente orgânico. Além disso, a dobradiça que une os planos me faz pensar em uma espinha dorsal. [...] É um organismo vivo, uma obra essencialmente atuante. Entre você e ele se estabelece uma integração total, existencial. Na relação que se estabelece entre você e o “Bicho” não há passividade, nem sua nem dele (CLARK, 1960, Bichos).
Cria-se neste momento uma relação entre o espectador e a obra, entre o
gesto e a reação a ele. Os Bichos reagem à ação do espectador. É da ação que
depende o existir da obra. Os Bichos são mutáveis, exigem o movimento, operam na
dimensão espaço-temporal. Neles podemos nos desequilibrar, propor novas
posturas, revelar outros lados. Existe um movimento, uma inconstância, um porvir.
Existe aqui uma estrutura que depende do movimento.
Figura 12: Bicho ponta. Lygia Clark, 1960. Descrição da figura: Bicho ponta. Lygia Clark, 1960. Obra feita em alumínio. Construída por triângulos retângulos articulados pelos catetos por meio de dobradiças também de alumínio que oferecem diversas possibilidades de movimentos.
Para Maluf (2005), a estrutura nestas séries de Clark existe para que a obra
exista; ela está a serviço da “liberdade” proposta pela obra. Os bichos da obra
Bichos só existem por que possuem uma estrutura que os sustenta.
A participação do espectador como organismo na obra Bichos é fundamental
para que possa existir o espaço orgânico cheio de significados. A obra só estará
completa com a participação do espectador.
Com os Bichos, abrem-se novos caminhos para outras experiências dos
sentidos. Lygia irá procurar novas formas de olhar e perceber o mundo. As relações
entre a arte e o espectador tornam-se concretas. Surge a materialidade das relações
sensoriais que necessitam do corpo todo. A visão deixa de ser o canal perceptivo
mais importante.
85
Farina (2005) faz uma relação muito interessante com o pensamento de
Deleuze, dizendo que há um tipo de obra que pede o distanciamento do corpo para
que se tome consciência dela. Há outro tipo de obra que exige a proximidade para
que sejam despertos outros sentidos, outra propriedade da visão, mais tátil. Nestas
obras, a vista confunde-se e passa a ver pelo tato. Os olhos passam a ver pelo
corpo. Nos Bichos, a obra não pede apenas uma proximidade; ela pede para ser
tocada.
Na visão háptica deleuziana o tato é uma possibilidade da visão, e no tocar lygiano a visão é uma possibilidade do tato. É como se a retina se expandisse por todo o corpo. O tato vê na dinâmica do tocar. Vê a temperatura da luz, a textura da sombra, a consistência do instante, a densidade da ação (FARINA, 2005, p. 177).
O tocar nos Bichos é uma necessidade para que a obra aconteça e ofereça
suas possibilidades de ação. O diálogo só acontece mediante o contato. Ele reage a
um estímulo que vem do espectador, “a conjugação de seu gesto com a resposta
imediata do “Bicho” cria uma nova relação e isso só é possível graças aos
movimentos que sabe fazer: é a vida própria do “Bicho”” (CLARK, 1960 – Bicho s/n).
Os Bichos foram se transformando e perderam as dobradiças, e começaram a
se enroscar nas coisas para poderem sustentar-se. Surge o Dentro e o fora. Este
bicho já não tem coluna dorsal; ele abre caminho para os Trepantes e as Obras
Moles. Trepantes são feitos de chapa de metal que já não possuem estrutura,
enquanto que as Obras Moles são feitas de borracha. Essas obras necessitam da
estrutura do mundo, com grande organicidade, como elementos vivos. Elas pedem
para ser tocadas, podem ser penduradas, são seres mutantes.
86
Figura 13: Obra Mole. Lygia Clark. Descrição da figura: Obra Mole. Lygia Clark. São recortes espiralados em borracha preta. Aqui a
obra mole aparece apoiada em um grande cubo branco. 28
A instabilidade formal intrínseca a esses objetos estimula o toque do espectador, tornando reais as virtualidades subjacentes. A participação será intensificada daqui para frente, tornando-se o centro das proposições de Lygia Clark (MILLIET, 1992, p. 87).
As obras vão passando por constante mutação de propostas e materiais. Os
últimos Bichos tiveram uma mudança estrutural e orgânica. O Dentro e o fora, assim
como Antes e depois, são de aço inoxidável, mas são flexíveis e oferecem outro tipo
de movimento.
Figura 14: Dentro e fora. Lygia Clark. Descrição da figura: Dentro e fora. Lygia Clark. É uma Fita de Moebius modificada, feito em lata com as extremidades circulares, como fossem dois círculos conectados e cortados e faixa no seu interior. A figura mostra uma pessoa segurando a obra de frente para o observador. À direta de quem observa, vemos a pessoa esta fazendo uma pequena torção na fita de lata.
29
28
Disponível em http://www.passeiweb.com/saiba_mais/arte_cultura/galeria/lygia_clark/1#. Acesso
em 15/10/2010.
29 Disponível em http://esquizofia.wordpress.com/2010/10/ Acesso em 15/10/2010.
87
Maluf (2007) explica que essas últimas séries de Lygia, Bichos, Trepantes e
Obras Moles, têm como característica a abertura da obra, uma abertura temporal
que se estende durante a sua manipulação.
Um presente sem porvir ou um eterno presente é exatamente a definição da morte, o presente vivo está dilacerado entre um passado que ele retoma e um porvir que projeta. Portanto, é essencial à coisa e ao mundo apresentarem-se como “abertos”, reenviar-nos para além de suas manifestações determinadas, prometer-nos sempre “outra coisa para ver (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 447).
Maluf (2007) explica-nos que Merleau-Ponty, ao se referir ao porvir dos
objetos e do mundo, oferece-nos uma abertura para experimentação e novas
significações. Segundo essa pesquisadora, “a abertura temporal é a condição para a
existência, que só se dá no tempo e no mundo” (MALUF, 2007, p. 55).
Lygia mutante vai apontando, assim, para um novo modo de experienciar
arte. Lygia não quer mais um espectador, ela quer agora fundir com o outro. A arte e
o ato de fazer tornam-se inseparáveis. Sua duração é o ato, propaga a artista. Daqui
para frente, Lygia irá buscar a experiência da arte por meio do ato. O ato envolve o
corpo, e o corpo está no mundo. A liberdade é afirmada pela realização da obra
naquele instante, em cada gesto. A forma agora é o ato estético que vive na ação.
Pela primeira vez descobri uma realidade nova não em mim, mas no mundo. Encontrei em “Caminhando”, um itinerário interior em mim. Antes, o “Bicho” emergia em mim, jorrava em uma explosão obsessiva – por todos os meus sentidos. Agora, pela primeira vez, com o “Caminhando” – é o contrário. Percebo a totalidade do mundo como um ritmo único, global, que se estende de Mozart até os gestos do futebol na praia (CLARK, 1965 – Do Ato s/n).
Para Lygia, o ato é momento de experiência no mundo. Momento de
consciência que percebe e compreende o mundo por todos os sentidos. Merleau-
Ponty (2006) falava que, quando estamos abertos para o mundo nos comunicamos
com ele, e que compreender é apoderar-se das propriedades das quais as coisas
constituem-se. A consciência envolve atos de síntese do antes, agora e depois. A
obra agora se torna campo de presença, onde o ato necessita das sensações
corporais e afetivas.
Lygia afirma: “Eu sou o antes e o depois, sou o futuro e o presente. Sou o
dentro e sou o fora” (CLARK, 1965, Do Ato s/n). O objeto incorpora-se ao sujeito, que
participa da obra. As propostas são movimentos de acesso à consciência, modificam
88
o ser e operam transformações. É no ato de fazer que o participante reencontra-se e
se percebe no mundo. A totalidade é o vazio pleno, que contém as potencialidades.
Nós somos uma totalidade espaço-temporal. No ato imanente nós não percebemos limite temporal. Passado, presente, futuro se misturam. Existimos antes do depois – mas o depois antecipa o ato (CLARK, 1965, Do Ato s/n).
A partir de agora a artista passa a ser propositora, o espectador, participante,
e a obra, proposição. O objeto deixa de ter significado, a arte passa a ser
experiência e ação, “é o ato que engendra a poesia” (CLARK, 1965, A propósito da
Magia do Objeto s/n). O corpo agindo é expressão no mundo, e o artista funde-se no
mundo.
Nos Objetos Sensoriais, Lygia buscava a consciência do corpo por meio de
sensações táteis provocadas por objetos exteriores a ele. São objetos feitos de
diversos materiais, tais como sacos plásticos, pedras, elásticos e conchas, que
procuram despertar os sentidos e sensações corporais do participante.
Mais uma transformação começa a aparecer no trabalho de Lygia. Do ato do
participante passa para a sensação provocada pelo toque em um objeto. Assim, a
obra só vai existir na realização sensível entre o participante e a manipulação.
Em sua última obra, a idéia de Lygia Clark realiza-se plenamente: inventando os Objetos Relacionais, através dos quais opera a Estruturação do self, em seções regulares com uma só pessoa de cada vez, Lygia oficia um ritual de iniciação à visão da vida nas coisas em sua potência criadora. O fruidor desloca-se efetivamente de seu lugar de espectador (da obra de arte, mas também da vida): a arte conecta-se efetivamente com a vida, como dimensão fundamental do processo de subjetivação, seu princípio criador (ROLNIK, 1999, p. 29).
Lygia segue em transformação e mutação.
Nossa pesquisa não conseguiu seguir adiante, pela grande quantidade de
material que deveríamos estudar, analisar e relacionar, e devido ao curto espaço de
tempo de que dispúnhamos para finalizar nosso estudo. Continuamos fiéis à
proposta da pesquisa, que era a de estudar e analisar o trabalho desenvolvido
dentro do ateliê de artes com nossos alunos com deficiência visual, tendo
consciência de que estão abertas fendas para um estudo mais elaborado das
últimas obras dessa artista, que até hoje nos surpreende com sua obra
revolucionária e atemporal.
89
2.3. Os materiais adaptados
Para elaboração de materiais adaptados para o projeto Lygia Clark tínhamos
que ter um olhar muito cuidadoso sobre a compreensão das obras, seu sentido e o
que ela estava trazendo. Era preciso criar situações de aprendizagem que
contagiassem os alunos, que fossem provocativas e que aguçassem a sua
curiosidade. Era preciso construir momentos em que haveria um aprendizado
ensinando e haveria um ensinar aprendendo. Martins (2010, p.119) citando Murray
Louis, coreógrafo e bailarino, oferece-nos uma visão dos momentos significativos
dentro de uma sala de aula:
Na rede de significações do mundo da arte, de seus produtores e fruidores, o educador com “uma rédea no criativo, uma rédea no técnico, uma rédea no estético, uma rédea no processo de vida, uma rédea no futuro e uma no passado, todas elas puxadas ao mesmo tempo. Com habilidade de um auriga romano, ele manobra essa impressionante energia em direção a uma meta. As Musas se detêm para observar. Outra trajetória já foi percorrida; outra aula foi dada”
Para desvelar os mistérios da arte tínhamos também que desvelar os
mistérios do perceber da pessoa com deficiência visual. Queríamos iniciar nossa
trajetória a partir das obras bidimensionais de Lygia Clark e, para isso, era preciso
compreender e selecionar da melhor forma possível os materiais disponíveis. Além
disso, era nossa meta abrir caminhos de expressão e comunicação,
desenvolvimento de um pensamento independente capaz de comunicar ideias e
sentimentos. Era preciso ampliar a compreensão e percepção do mundo. Tínhamos
pouco tempo e o desafio de trazer mais próximo o universo da arte para nossos
alunos.
Durante muito tempo nos interessamos em conhecer as iniciativas de
adaptação de obras de arte que são oferecidas ao deficiente visual. Em 2004
tivemos a oportunidade de participar do curso da Pinacoteca do Estado de São
Paulo, “Ensino da Arte na Educação Especial e Inclusiva”, coordenado por Amanda
Tojal e Margarete Oliveira. Participamos, após o curso, como voluntária do Programa
Educativo para Público Especiais dessa mesma instituição. Essas experiências
foram fundadoras para o início de pesquisa na adaptação de obras de arte.
90
Figura 15: Fotos de obras adaptadas. Descrição da figura: Foto 1: Canto Superior esquerdo. Foto da obra São Paulo de Tarsila do Amaral (1924), óleo sobre tela. A obra retrata uma paisagem do centro da cidade de São Paulo. Trabalha com cores fortes e bem definidas, azul, vermelho, verde laranja, passando para um azul claro, um creme e um rosa pálido. A artista faz uma representação em três planos utilizando figuras geométricas para a representar as coisas. No primeiro plano à esquerda,próximo da margem inferior, temos um circulo verde sustentado por um pequeno retangulo marron na vertical, representando uma árvore. À direita da árvore temos uma bomba de gazolina. No canto direito esta um poste de luz. No plano hozontal do meio temos a representação de uma praça com uma oval verde. Um pouco acima econtramos duas torres paralelas como se fossem colunas de apoio de um viaduto. No ultimo plano horizontal superior, temos a representação de uma passarela de viaduto que descansa sobre as coluna paralelas que estão logo abaixo dela. Sobre essa passarela, próxima à margem direita vemos um vagão de trem. Em cima da passarela vemos prédios e seguindo na horizontal mais para o meio da pintura há um coqueiro. Após o coqueiro estão representados dois prédios que chegam até a margem esquerda. Foto 2: Centro superior. Foto da maquete da obra elaborada pela ação educativa da Pinacoteca do Estado de São Paulo - Programa PEPE. Foto 3: Canto superior direito. Foto mostrando as mãos de várias pessoa iniciando a montagem da obra São Paulo. Já colocaram a bomba de gazolina e o poste de luz. Foto 4: Canto inferior esquerdo. Continuação da montagem da maquete com adição dos prédios que estão à esquerda da obra. Foto 5: Centro inferior. Continuação da montagem da maquete com a colocação do viaduto no centro e dois prédio à direita. Foto 6: Maquete finalizada com a adição de um trinagulo verde representando a grama.(fotos Ana Carmen Nogueira 24/06/2004)
Para nós a experiência junto à ação educativa da Pinacoteca do Estado foi
muito importante por que dela não surgiram certezas, mas muitas interrogações e
dúvidas.
Como aquelas pessoas que iam visitar aquele espaço cultural eram
preparadas?
Como aquelas obras adaptadas os estava atingindo?
Que tipo de experiência eles estavam tendo?
Qual a compreensão do que estava sendo apresentado?
O que ocorria após a visita?
91
As visitas aos equipamentos culturais de uma cidade são muito importantes,
mas acreditamos que exigem uma preparação para compreender o que se está se
observando, sentindo e no caso da arte contemporânea, muitas vezes, participando.
Essa preparação é o que Martins (2010) chama de nutrição estética, cujo
objetivo é provocar leituras que desencadeiem um aprendizado de arte e propicie
fruição estética.
Seu foco principal está na percepção/análise e no conhecimento da produção artístico-estética: no entanto, o centro não está na informação dada, mas na capacidade de atribuir sentido, construir conceitos, ampliá-los pelas ideias compartilhadas entre os parceiros, com o professor e, se for o caso com os teóricos que também se debruçaram sobre essa obra, artista ou movimento. (MARTINS, 2010, 130)
Além desses pontos tão relevantes levantados por Martins, devemos também
saber de nossos alunos. Devemos ter um olhar voltado para a maneira como eles
estão compreendendo o mundo. Precisamos sair do mundo cujo paradigma é
marcadamente visuocentrista e deslocar para uma abertura de experiências
estéticas com referenciais nos outros sentidos.
Percorremos um grande caminho até chegarmos à adaptação das obras de
Lygia Clark. O universo estético da pessoa com deficiência visual não está restrito à
música e a literatura, é possível ao cego adentrar ao universo das artes visuais pelo
tato. No entanto, “a mera adaptação de uma pintura à percepção tátil (através da
equivalência entre cores e texturas) pode não ter sentido para uma pessoa cega
congênita.” (KASTRUP, 2010, p.64)
Oliveira (2002) ressalta que por meio dos sentidos podemos experimentar
diferentes sensações de prazer ou repulsa. Desfrutar da beleza é uma característica
essencialmente humana. O prazer estético vem de coisas que percebemos
exteriormente a nós, das vivências que o mundo nos proporciona. “Pertencendo o
fenômeno estético à esfera cognitiva, é natural que a vivência do belo inicie-se nos
sentidos e tenha seu momento conclusivo na inteligência” (OLIVEIRA, 2002, p. 129-
130). Esse autor acredita que é possível ao cego ter acesso às artes visuais, como
uma escultura, por sua tridimensionalidade, que oferece oportunidade de uma
apreensão tátil.
Para Oliveira, “a pintura, arte fundamentada na cor e que se desdobra na
superfície, é devido a essa mesma natureza, inacessível à pessoa que
absolutamente não vê” (OLIVEIRA, 2002, p. 202). Por outro lado, continua esse autor,
92
há ainda a possibilidade da pintura tátil, tendo em conta que o tato não percebe
cores e que é preciso ter relevos e contornos bem definidos.
Neste aspecto, Kastrup (2010, p.64) levanta uma questão: “Talvez sejamos
obrigados a reconhecer que algumas obras criadas para serem vistas não se
prestam efetivamente à percepção tátil direta”.
Almeida (2010) comentando sobre a adaptação de pinturas para a
compreensão tátil admite que o alto-relevo parece ser, para um grande número de
pessoas, uma solução adequada, pois pode tornar as formas acessíveis ao tato. As
linhas representadas bidimensionalmente, tornam-se táteis e assim a obra só estaria
perdendo a cor.
O principal problema das reproduções em alto-relevo talvez seja o fato de que, apesar de replicarem os quadros numa forma tangível, elas mantêm, apesar disso, sua forma visual. O alto-relevo geralmente pressupõe, por exemplo, que o percebedor domine as regras de transposição de formas em três dimensões para duas dimensões (HATWELL; MARTINEZ-SAROCCHI, 2000). Ocorre que estas regras são visuais, fazendo pouco ou nenhum sentido para o tato. (ALMEIDA, 2010, s/n)
Obras bidimensionais adaptadas para o tato podem ser muito difíceis de
serem compreendidas para quem nunca enxergou. Eriksson, (1999) lembra que
existem muitas obras de arte que mesmo pessoas que enxergam não conseguem
compreender e interpretar. Um objeto é diferente do outro por sua forma, tamanho,
material e cor. A forma é a característica principal do objeto. Podemos distinguir uma
bola de um cubo porque eles têm formas diferentes, material e cor são secundário,
completa essa pesquisadora. Para que uma criança cega consiga distinguir os
objetos no ambiente é preciso auxiliá-las em suas explorações.
Eriksson, (1999) afirma que crianças cegas não sabem se utilizar muito bem
da exploração dos objetos. Em vez de esquadrinharem o quadro com a ponta dos
dedos, usam a mão inteira batendo levemente no objeto. Elas gostam de escutar os
sons que esses objetos produzem. No entanto, os sons não são capazes de
oferecer a aparência desses objetos, não mostram a forma. Por isso a criança deve
ser guiada pelos objetos para a descoberta das formas que lhe são apresentadas.
Eriksson (1999) explica que compreendemos a forma por suas linhas gerais e
estas mesmas linhas formam o contorno da representação, por isso é importante
compreender a forma para conseguir compreender as linhas de contorno.
93
As pinturas que são adaptadas para compreensão tátil pedem um
conhecimento da percepção tátil, mas também da representação simplificada.
Erikson (1999) admite que a maioria das imagens possa ser transferida para imagem
tátil, no entanto apenas a reprodução de relevos não é suficiente para a
compreensão dessas imagens. Para a interpretação tátil é necessário que elas
tenham formas simples e claras.
Almeida (2010) faz uma reflexão de que a simples alteração de mídias não é
uma estratégia inclusiva, na verdade é preciso recriar uma obra de arte que se
adapte às necessidades da pessoa com deficiência visual.
Ao se propor a adaptar um romance para o cinema, o cineasta sabe que o livro não será transportado, ponto a ponto, para a tela. O que se tem pela frente não é um trabalho de reprodução; é um esforço de reinvenção. [...] Nosso verdadeiro problema não é, portanto, o acesso à estética visual, mas a criação e a disponibilização de uma estética tátil. (ALMEIDA, 2010, s/n)
Na primeira etapa do estudo das obras de Lygia Clark, nosso desafio era
desvendar com os alunos os mistérios de suas primeiras obras, e descobrir formas
para transpor o repertório das obras essencialmente pictóricas para a percepção
tátil.
Caminhamos, neste primeiro momento, seguindo o desenvolvimento das
ideias de Lygia Clark com estudos sobre as seguintes séries, que abarcam o período
concretista e neoconcretista: Linha orgânica; Quebra da Moldura; Superfícies
Moduladas e Espaços Modulados.
Enfrentamos o desafio de trabalhar as obras de Lygia Clark de seu período
concretista e neoconcretistas desenvolvendo obras adaptadas aos alunos com
deficiência visual.
94
Figura 16: Esquerda: Composição nº 5, série Quebra da moldura; Lygia Clark, 1954. Direita: Obra
adaptada.
Na Composição nº 5, de 1954, óleo sobre tela e madeira, a tela encontra-se
rodeada de uma estrutura em madeira em um mesmo nível. Esta obra demonstrou o
material a ser usado como suporte para adaptação ao aluno com deficiência visual:
a madeira.
Observando suas soluções compositivas, delimitamos os espaços a serem
compostos e o tipo de material que deveria ser coberto. A partir desta obra ficou
definido que o branco teria textura lisa de tinta acrílica, e o preto seria representado
pelo papel camurça preto colado à madeira. Ainda teria de ser incorporada uma
terceira cor, o vermelho, que foi descartado. O espaço vermelho foi então
representado por um espaço vazio dentro da composição.
Figura 17: Esquerda: Superfície modulada nº 2, Lygia Clark, 1955. Direita: Obra adaptada.
95
A madeira foi cortada como um quebra-cabeça no formato A4, com chapa
vinílica imantada em sua parte de trás e montado em uma placa de metal no formato
A3. Desta forma, os alunos podiam manipular com bastante liberdade, sem a
preocupação de desmontar a figura apresentada.
Figura 18: Esquerda: Planos em superfície modulada nº 1, Lygia Clark, 1957. Direita: Obra adaptada.
Todas as outras obras foram feitas a partir do referencial da primeira
composição. Placas de madeira cortadas de acordo com a obra que estava sendo
transposta, respeitando suas projeções e formas. O preto era representado pelo
papel camurça negro e o branco por tinta acrílica branca. A cor cinza foi
representada por um vinil texturizado com uma trama quadriculada, em cinza claro.
Figura 19: Esquerda: Planos em superfície modulada nº 5, Lygia Clark, 1957. Direita: Obra adaptada.
Estudávamos cada peça separadamente, verificávamos sua forma, textura e
localização dentro do espaço que havia sido proposto. Verificávamos se era alguma
figura geométrica conhecida ou se era uma junção de várias figuras. Por exemplo,
96
se era um retângulo –: “parece ser um retângulo, mas um dos lados possui uma
ponta” foi uma das observações surgidas durante os trabalhos. Assim, era proposto
montarmos uma figura parecida com aquela forma, utilizando um jogo de figuras
geométricas, o que fez com que surgissem observações como “ela usou um
retângulo grudado com um triângulo”.
Figura 20: Esquerda: Espaço Modulado nº4, Lygia Clark, 1958. Direita: Obra adaptada.
Após esta exploração do particular para o todo, voltávamos nossa atenção
para o aspecto geral da obra, e em como estavam organizadas as formas dentro da
superfície. Desta maneira, chamamos a atenção para o que Lygia denominou de
linha orgânica. Para o nosso grupo, deveríamos prestar atenção à linha-fresta que
se formava entre as peças quando as texturas eram iguais, a qual chamamos de
linha-fresta orgânica.
Figura 21: Esquerda: Espaço Modulado, Lygia Clark, 1958. Direita: Obra adaptada.
97
Em nossa pesquisa para a dissertação encontramos um material que na
época não tínhamos à mão. Esse material deixa claro como Lygia ia montando seu
espaço e elaborando concretamente suas questões. Ao pensar na linha orgânica,
Lygia, em seu diário de bordo, vai oferecendo o seu raciocínio por meio das imagens
que não são simples imagens. São imagens táteis. Essa preciosidade faz parte do
acervo da Associação o Mundo de Lygia Clark, disponível em seu site. Além disso,
ela vai dando instruções de como se devem observar essas imagens.
Figura 22: Descoberta da linha orgânica.
A seta está apontada para esta linha orgânica (uma linha organicamente formada pelo encontro dos dois quadrados pretos). Levante o quadrado e você verá a linha orgânica desaparecer. Ela foi absorvida pelo contraste entre o branco e o preto. Isto iniciou a busca que me levou a todo meu trabalho posterior (CLARK, 1954. Descoberta da linha orgânica s/n).
Lygia segue em frente ofertando-nos soluções estéticas táteis de grande
riqueza. A artista vai produzindo um sentido estético à medida que utiliza outras
matérias que oferecem ao tato a possibilidade de explorar e compreender algumas
de suas inquietações.
Figura 23: Descoberta da linha orgânica.
A faixa preta funciona como moldura: ao levantá-la você verá um ângulo reto marcado entre as letras A e B. abaixando a moldura (faixa preta) você sentirá melhor a linha orgânica, onde está marcado AB. O que eu quis fazer nesta experiência foi negar a relação do quadro dentro da moldura, integrando-o dentro da moldura através da cor. É por esta razão que a
98
moldura é tão larga, isto é, ela passa a ser parte integrante do quadro em si mesmo (CLARK, 1954. Descoberta da linha orgânica s/n).
Figura 24: Plano em Superfície Modulada.
O trabalho com as obras adaptadas com nossos alunos foi instigante e
prazeroso, e temos certeza que respeitamos as propostas da artista e também
trabalhamos a partir do que era importante para os nossos alunos. Experimentamos
de diversas maneiras os espaços proposto pela artista, e depois cada um criou sua
própria obra.
Essa porta de entrada ao universo de Lygia, por meio das obras adaptadas
dos períodos iniciais, proporcionou momentos de grande interesse e atenção. Além
disso, pudemos notar uma grande alegria na compreensão das formas, nas
montagens do quebra-cabeça e na descoberta de outras possibilidades de
apropriação do espaço e de fruição estética.
99
2.4. Os trabalhos desenvolvidos pelos alunos
Figura 25: Alunos explorando as obras adaptadas.
Outros olhares, muitos olhares que se delineiam, que se cruzam e se
interrogam a partir das experiências e reflexões que realizamos. Esses olhares são
feitos por todos os nossos sentidos. Esses olhares transcendem a visualidade para
se converter em imagens mentais. Olhares sobre a arte como espaço de
pensamento, prazer e que contribui para a construção da identidade. Olhares que
contribuem para que a pessoa com deficiência visual possa usufruir, pensar, sentir e
viver a arte como todas as pessoas. São os outros olhares de Gratacós (2009) que
nos auxiliam na reflexão sobre a construção de conhecimento de nossos alunos.
Utilizamos todos os sentidos para nossa exploração do espaço. O corpo no
mundo, aguçado, percebendo e explorando pedaço por pedaço. Da fragmentação
para a totalização. Não é um passar de mão desatento, rápido, mas inquisidor,
investigador, que necessita de respostas para construir novos questionamentos.
A princípio, para nossos alunos, tudo é um desafio. Apresentamos a artista.
Falamos sobre os seus questionamentos e os lançamos aos alunos. As propostas
os colocam frente ao desconhecido. Não há respostas prontas, apenas desafios a
100
novas soluções. Espaço, tempo e forma. Montam e desmontam as obras adaptadas.
Descobrem espaços, linhas, contornos, formas. Exploram as formas, as superfícies,
a matéria, a textura. Criam novos espaços com as formas. Depois, satisfeitos, voltam
ao espaço construído pela artista.
Com olhar de educador, nos emocionamos com aquelas mãos exploradoras.
Como são bonitas as mãos dos cegos quando estão em estado de fruição. Parece-
nos o mesmo momento de quando diante da obra de arte nos deixamos tocar por
ela. Assim se encontravam os alunos vivenciando uma experiência estética. A
proposta de Lygia os toca, os diferencia para se misturar a eles. Montam,
desmontam, recriam, questionam. Às vezes a respiração fica mais forte, o corpo
balança e o sorriso flutua. Como é bonito poder presenciar esses momentos.
Da exploração da obra da artista surge a necessidade de trabalhar o espaço,
fragmentando-o para depois totalizá-lo. Propomos que façam uma colagem
seguindo as considerações estruturais de Lygia Clark. Oferecemos como suporte
uma folha de cartolina. Peças de emborrachado E.V.A. cortadas em formas
geométricas simples são oferecidas. Cada aluno escolhe a cor que quer trabalhar,
as peças ficam disponíveis à sua frente separadas por cor, assim como a cola
branca. Lembrando que a artista trabalha com poucas cores até se limitar ao preto,
branco, cinza e depois só o preto.
101
Figura 26: Imagens dos trabalhos desenvolvidos pelos alunos.
Quando a pessoa cega trabalha com cor, está fazendo algum tipo de
associação com a “experiência abstrativa da cor”, explica Oliveira (2002 p 205).
Embora a cor não seja da experiência da pessoa cega, os alunos gostavam
de escolher as cores com que iam trabalhar. Para esse trabalho, Bruno escolheu
três cores, enquanto Paula escolheu duas. Exploravam as formas, selecionavam as
cores, percebiam as características do material, comparavam seus trabalhos com as
obras da artista e procuravam soluções para suas composições. Conforme Martins
(2010) é por meio da forma e da matéria que se faz o exercício do pensamento em
arte. As nossas ideias nascem daquilo que vivemos, das nutrições estéticas que
compartilhamos com o outro e com o mundo. Investigar é fomentar ideias e
102
descobrir novas perspectivas, além de levantar novos questionamentos. Os alunos,
ao elaborar uma composição, estavam solucionando problemas, e descobrindo
novos questionamentos. Ao observarem o trabalho do outro, analisavam as soluções
encontradas, comparavam com as suas e alimentavam seu conhecimento. Neste
aspecto, o corpo vivo do sujeito no mundo em contato com o outro compartilhava
conhecimentos do mundo.
Assim podíamos ver que cada um percebia de uma maneira singular à
medida que ia explorando o mundo. Lindamente iam se apropriando da obra,
explorando e vivenciando e transformando. Seus corpos vibravam, procuravam,
agiam, transformavam a matéria em expressão, expressão do espaço explorado,
vivenciado e percebido. Corpos operantes que aprendiam sobre o mundo,
aprendendo a sentir o próprio corpo.
Cada um percebia o mundo de uma maneira, e de diferentes maneiras o
imaginava. Os jovens, durante esses momentos em que podiam analisar o que
haviam feito, comparando com o trabalho da artista e com os do colega, estavam
compreendendo não apenas os seus caminhos perceptivos, mas também os
caminhos perceptivos do outro.
2.5. Casulos
O ateliê foi evoluindo dentro do pensamento de Lygia. Quando a obra não
conseguia mais se conter na superfície bidimensional, começava a inchar e sair da
parede. Não foram mais apresentadas obras adaptadas. A partir deste momento,
teriam que entender o que a artista falava e fazer nossas próprias criações. A partir
da série Casulos, os materiais foram desenvolvidos pelos alunos. Até esse
momento, haviam construído e desconstruído as obras de Lygia, agora, da mesma
forma que o quadro estava se desprendendo da parede, invadindo espaços, criando
novas linguagens, descobrindo novos mundos, tinham que pular para o
desconhecido e tornar visível o invisível.
Era um desafio para todos. A partir dos casulos, inventaram. Inventaram por
que já estavam nutridos, porque era hora de descolar e porque o espírito desafiador
de Lygia havia se apossado de todos. Eram, todos, pura exploração. Estavam
explorando o espaço ao redor, exploravam o espaço que ia surgindo da folha de
papel e cada um foi descobrindo e transferindo suas descobertas. Além disso,
103
descobriam as potencialidades das formas e da matéria e foram agregando novas
maneiras de expressar as poéticas propostas por Lygia. Descobriram que, muito
antes do Caminhado, já estavam trabalhando com a proposta. Casulo apresentou-se
como uma primeira proposta e foi extremamente prazerosa e reveladora de
possibilidades e potencialidades. Apropriam-se de Lygia; agora ela era de todos,
fazia parte de seu universo, e também enriqueceram o universo dela.
Acredito que mergulharam nas potencialidades, não apenas navegaram em
potencialidade, como fala Martins (2007); desbravaram, descobriram novas maneiras
de perceber e de expressar o espaço, o mundo, as ideias. Já não havia mais
diferença entre o educador e o aprendiz, todos estávamos aprendendo e ensinando,
e mais que tudo, construindo conhecimentos juntos.
Estavam vivendo uma experiência estética, como sugere Duarte (2008).
Estavam em estado de suspensão, por estarem inteiros naquele momento. Durante
a proposta de construção dos Casulos, os sentimentos estavam totalmente voltados
para o fazer, o descobrir, o explorar e vivenciar aquela obra. Conforme foram
descobrindo o casulo, sua construção, suas possibilidades, era ele que interessava,
aquele era o objeto, não era dobra de papel, era a construção do casulo que
acontecia.
Lygia Clark, em seu processo mutante, ofereceu possibilidades de
experiências que foram desencadeadoras de uma estética sensorial. Soler (1999)
lembra a importância de se desenvolver uma estética tátil na qual a pessoa possa
diferenciar texturas, formas e tamanhos nas diferentes representações
bidimensionais ou tridimensionais.
Com os casulos, entraram em um momento orgânico de criação. As obras
são seres que estão respirando. A linha orgânica que atravessava a superfície passa
a dobrá-la. Aparecem conceitos mais difíceis de serem percebidos pelas pessoas
cegas. São os conceitos de dentro e fora. Surgem muitos questionamentos, alguns
sofrimentos, alguns temores, algumas dúvidas. Abre-se a porta para a construção de
novos conhecimentos. Não tinham mais certezas, apenas dúvidas e um imenso
desconhecido à sua frente. Mas o que são casulos? O que está dentro e o que está
fora? Algo está lá dentro se transformando.
Para fazer os casulos era preciso conhecer o espaço. Era preciso trabalhar
com dobras, vincos. Era preciso se articular no espaço. A linha orgânica pulsa em
suas mãos.
104
O Casulo faz-se espaço, acolhendo uma nova forma que nasce de
um gesto estético. Gesto estético no corpo dos alunos. Corpo como fonte
de sentidos, expressando a sua compreensão do mundo. Neste momento,
o corpo desperta para se relacionar esteticamente com o mundo.
Ao se relacionarem esteticamente com o mundo, estão transformando,
fazendo visível o invisível, palpável o impalpável. Estão desvelando os mistérios do
mundo. Decifrando.
Figura 27. Imagens de casulos elaborados pelos alunos.
O corpo dança, dobra, percebe o dentro e o fora. A linha orgânica agora é
compreendida como “seiva vital”. Pode ser a “seiva vital” citada por Clark, quando
fala da linha orgânica que transborda do quadro e contamina os espaços, ou seria a
“seiva vital” de Paul Klee, que perpassa todo o corpo do artista e oferece a obra ao
mundo? Pode ser ambas!
105
Agora eles estão trabalhando com ela, e é ela que ajuda a criação de novos
espaços e a nova busca de equilíbrio. Na parede, os casulos pendurados aguardam
o momento de se abrir para o mundo.
O papel oferece uma série de possibilidades, a descoberta das dobras, a
maleabilidade e a docilidade. Com uma folha de papel descobrem potencialidades.
As dobras são feitas de diversas maneiras, e assim vão oferecendo novos espaços.
São inúmeros os casulos, nenhum é igual ao outro. Perduram na parede e
percebem que o casulo não se contenta em ficar grudado. O casulo quer sair da
parede para se abrir para o mundo. Do mundo fechado dentro dele mesmo existe
uma pulsão para se expandir.
2.6. Bichos e outros bichos
A partir deste momento era preciso procurar uma nova estratégia para o
nascimento dos bichos, e foi no livro de Renata Sant‟Anna e Valquíria Prates, Linhas
Vivas, que encontramos a solução deste problema. O livro oferece um esquema de
montagem dos Bichos em papel, e assim trabalhamos com o mesmo esquema,
onde mostrávamos como e onde deveriam ser feitas as dobras e os locais de
recorte.
Foi um grande desafio, grandes surpresas, algumas dificuldades, boas
soluções. Como todo nascimento, foi um momento mágico.
106
Figura 28: Imagens da produção dos bichos de papel.
A exploração torna-se intensa, não mais se restringe ao que era oferecido no
esquema do livro. Cada um procura sua própria articulação, sua expansão no
espaço. Os bichos agora são criações deles.
Assim, o espaço aparece como o “meio pelo qual a posição das coisas se
torna possível” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 328). É por meio do espaço que
articularam o conhecimento do mundo.
O processo criador é um momento conflituoso, mas de extrema beleza. A
experiência estética vivida pelos alunos não pode ser percebida apenas pelo produto
final. O corpo falava, pensava, sentia. Exigia agora uma produção própria. Neste
momento, o educador começa a receber orientações dos aprendizes. Quero que
corte até aqui. Esta parte deve encaixar neste ponto. Os bichos estavam ganhando
corpo vivo.
107
Figura 29: Bichos de papel dos alunos.
Os bichos personalizados precisavam de uma matéria mais forte. O papel,
como matéria, não estava mais respondendo às necessidades expressivas das
obras. Era preciso buscar um material mais adequado àquelas propostas. Foi então
oferecido a madeira. O inconveniente era que as peças teriam que ser apresentadas
em formas já cortadas, uma vez que cortar a madeira no ateliê era um processo
perigoso e demorado.
Analisando as peças que haviam sido criadas em papel, apresentamos peças
de madeira MDF, que pudessem propiciar uma gama grande de formas em sua
composição. Oferecemos triângulos isósceles de um único tamanho, e quartos de
circunferências com arestas do mesmo comprimento das arestas dos triângulos.
Trabalhavam montando as peças no plano. As articulações provocadas pelo
encontro das peças é que proporcionavam os movimentos que levavam os bichos a
ganharem a tridimensionalidade. As peças eram totalmente orgânicas, estavam
vivas. Pulsavam ao toque. Passaram a estudar as suas articulações. As dobras das
pernas, dos braços, da coluna dorsal. Questionavam: “Como ficamos de pé?”,
“Como dobramos o braço?”, ou “Que tipo de movimento é preciso?”. As respostas
estavam na obra. Era ela quem questionava, respondia e voltava a questionar. Era
preciso agora desvelar os seus segredos.
Tratavam então como organismos vivos que exigiam uma relação entre eles e
a obra. Farina (2005) apresentou-nos uma visão de Deleuze sobre a obra que exige
uma proximidade para despertar os outros sentidos. Assim os bichos dos alunos
exigem ser tocados para tomar vida, exigem que se criem mecanismos de
108
articulação para saírem da bidimensionalidade. Obras vivas que respiram e vão se
comunicando com o seu autor, por meio de cada peça que se agrega a ela para se
transformar e agir no espaço.
Figura 30: Imagens dos bichos de madeira.
Com os bichos, exploram várias possibilidades de articulação do espaço. Os
bichos propiciam novos olhares e novas descobertas. Dobram, desdobram, grudam
a fita crepe, agregam novas formas. Expandem dentro do espaço ideias e
movimentos. Os bichos necessitam do outro para se movimentarem. É preciso que
tenha uma ação para uma reação. Tudo está nas relações sensoriais. A obra vive
desta troca do corpo humano para o corpo da obra. Não enxergam com a visão,
enxergam com o tato. O [con]tato é que dá vida ao bicho.
São experiências estéticas que vivem por meio de seus corpos. Corpo que se
envolve, que percebe, que conhece, descobre, questiona e reflexiona. Corpo atento,
109
desperto. O desconhecido ainda assusta, mas não os enrijece. Assusta, mas
também os coloca em estado de curiosidade; é preciso desbravar. O coração bate
mais forte. Estão todos vivos.
2.7. Obras Moles
As obras estão vivas e mutantes. Vão se transformando em coisas cada vez
mais orgânicas. Agora elas não querem mais o contato com o corpo, elas querem o
corpo. As Obras Moles necessitam do corpo, elas absorvem o corpo para se
manterem em pé. Sem o corpo do outro elas achatam-se na superfície e ficam em
estado de latência.
A materialidade é outra. A obra não quer mais ser madeira. Ela quer outro
material. A obra exige algumas sutilezas para tomar vida. As obras já não têm mais
os mesmo nomes que as obras de Lygia. As obras não queriam se chamar Obras
Moles. Querem se chamar Bichos Moles.
Mais um desafio. Momentos de tensão, frustração, descontentamento, e, mais
que tudo, de superação. Trabalhar com tesoura é um desafio, uma grande
dificuldade. O primeiro material apresentado foi muito difícil de ser trabalhado. Era
um linóleo fino, mas que requer certa pressão e habilidade na hora de cortar com
uma tesoura. Retornam ao papel. Exploram as ideias de espiral. Fazem alguns
desenhos e passam a mão sobre a linha desenhada para tentar compreender essa
figura. Cortamos juntos e com surpresa descobrem outra forma que se enrosca no
corpo. Cortam sozinhos e como no desenho, uma mão corta e a outra vai dando a
direção. Uma superação que necessita de tempo.
110
Figura 31: Imagens dos bichos moles.
O papel já não era tão interessante, procuraram outro material, alguém
descobriu no emborrachado E.V.A. possibilidades maiores. As informações são
passadas. O E.V.A. passou a ser a matéria; ninguém mais se preocupa com a cor.
Fazia tempo que não falavam dela, desde as Superfícies Moduladas. O que
importava, então, era a matéria, a forma, o espaço, o tempo e a existência no
mundo.
Misturam-se com as transformações de Lygia, viraram mutantes com ela,
como ela os alunos buscam desbravar novas soluções para os novos
questionamentos que surgem. Inventam, estabelecem novos relacionamentos,
fazem novas conexões e tecem novos conhecimentos.
O ato de fazer estava presente, era a duração do ato que estava importando.
Estavam experienciando cada momento, cada descoberta com seus corpos. A arte
estava em todos.
O semestre estava acabando, não havia mais tempo para a experiência que
Lygia propunha para o futuro. Em suspenso, ideias, e aguardamos a visita da
Associação Cultural o Mundo de Lygia Clark ao ateliê.
Com o tempo que nos restava, trabalhamos com a professora Rosanna
Bendinelli algumas ideias da poesia concreta.
Os Objetos Sensoriais e Objetos Relacionais não foram trabalhados durante o
ateliê. Embora tenham vivenciado este período na exposição itinerária oferecida pela
111
Associação O Mundo de Lygia Clark, optamos por não considerar esses dados
nesta pesquisa.
2.8. Exploração do espaço externo
Lembramos que todas as atividades do ateliê eram precedidas por uma
exploração no espaço externo e de um momento na antessala, onde faziam
exercícios respiratórios, consciência corporal e relaxamento com o intuito de deixar o
corpo aberto para sentir e experimentar o mundo.
A exploração partiu do sujeito para o objeto. Do estar em um espaço para a
exploração de uma superfície, que era o objeto de estudo. Antecedendo às
experiências dentro do ateliê, o aluno descobria o caminho para se chegar a ele.
Eles caminhavam da recepção percebendo cada local, da varanda até a sala de
relaxamento onde trabalhavam a respiração, relaxamento, o estar no mundo. O
trabalho corporal antecedia o trabalho plástico. Acreditamos que o fazer e o
compreender arte, com independência de locomoção, era maneira de ampliar o
mundo do deficiente visual e oferecer uma melhora na sua organização espacial, e,
consequentemente, uma melhora em todos os processos de aprendizagem.
Com Gratacós (2009) encontramos a fundamentação para a proposta de
exercícios de orientação espacial. Esses exercícios têm como proposta colocar os
alunos em contato com o conceito de superfície. Queriam oferecer noção de:
continuidade, regularidade, estabilidade, relação e distância. Além de incorporarem
noções de direção por meio da localização dos objetos e percepção,
reconhecimento e localização espacial de formas.
A exploração do espaço foi um trabalho árduo e muitas vezes conflitante. Os
sujeitos não possuíam independência de locomoção. Ainda estavam trabalhando as
habilidades de orientação e mobilidade, e dependiam de uma pessoa vidente para
se locomoverem pelos espaços do ateliê. Foi elaborada uma série de exercícios
exploratórios para oferecer autonomia para os jovens. O ateliê seguia as propostas
de Morin (2000), de ligar as coisas que pareciam estar separadas. Assim,
conhecimento não mais poderia ser compartimentado, separado por disciplinas ou
áreas de conhecimento, pois saberes se completam e oferecem novas formulações
do mundo.
112
Gratacós (2009) observa que por meio dos exercícios de orientação espacial
era possível perceber como seus alunos passavam de uma representação realista
para mais simbólicas e esquemáticas. O uso dos símbolos, diz essa pesquisadora,
marca a passagem da aprendizagem psicomotora para uma aprendizagem
simbólica. Essa autora afirma que quando se representa uma janela, porta ou
qualquer outro objeto por formas geométricas ou linhas, se encontra presente a
capacidade simbólica que elaboram as representações mentais.
Pensava-se e possibilitar aos alunos uma ampliação de suas capacidades de
orientação e mobilidade e apropriação do espaço. Assim contribuir para a
construção de imagens mentais sobre o espaço.
Como vimos anteriormente foi Ostrower (1983, p.30) quem nos alertou para a
importância do espaço, de como o percebemos, como o compreendemos e como
nos apropriamos dele.
Através de nossa sensação de estarmos contidos num espaço e de o contermos dentro de nós, de o ocuparmos e o transpormos, de nele nos desequilibrarmos e re-equilibrarmos para viver, o espaço é vivência básica para todos os seres humanos.
Na rotina no ateliê de artes sempre havia a pesquisa sobre o espaço corporal,
e espaço ao nosso redor. Passeavam pelas salas da instituição, sempre percebendo
o som que cada local produzia através da voz e sons que eram produzidos ao andar.
Observavam os barulhos existentes em cada local. Exploravam as áreas externas e
a rua.
Todas essas ações visavam abrir caminhos para novos aprendizados, para a
conquista do espaço e construção de representações espaciais por meio da
experiência do agir e refletir no mundo.
A experiência no espaço oferecia assim noções de direção, orientação,
direção, distância, localização de objetos e reconhecimento do espaço e das formas.
A exploração do espaço pelos outros sentidos que não a visão seria como um
diálogo entre os jovens e o espaço, evocando, recordando, analisando movimentos,
cheiros, formas e matérias.
Podemos perceber que o medo do espaço, a dificuldade de se locomover
nele, o modo como os jovens o percebiam e como articulavam suas relações com o
mundo exterior deveriam ser explorados como potencializadores de um processo de
descobrimento e desenvolvimento pessoal. Durante as aulas, pesquisaram a
113
percepção espacial, utilizando a multissensorialidade no aprendizado com a
intenção de proporcionar um desenvolvimento pleno e criativo.
Nestas propostas de exploração espacial, interessávamo-nos em oferecer
ferramentas que possibilitassem uma maior orientação, apropriação do espaço e a
formação de mapas mentais. Essas habilidades desenvolvidas podem proporcionar
autonomia e independência, favorecendo assim o processo de aprendizagem e a
socialização da pessoa com deficiência visual.
114
3. A pesquisa de campo: dois anos depois
Esta pesquisa é um recorte da prática dos quatro anos de trabalho no ateliê
de artes com pessoas com deficiência visual, no Projeto Acesso: Centro de Apoio
Pedagógico Especializado ao Deficiente Visual, na cidade de São Paulo, Brasil.
Investiga o que foi a experiência de arte para jovens cegos congênitos e se a arte é
capaz de ampliar o conhecimento do mundo desses sujeitos.
Busca descrever e analisar a realização dos alunos no ateliê pautando-se
pela pesquisa qualitativa reflexiva, com o objetivo de identificar no ambiente
oferecido o que propiciou desenvolvimento de atividades criativas e interações
sociais, como a afirmação a seguir reitera.
[...] tanto o processo de construção da pesquisa quanto o processo de investigação do objeto fazem parte de um mesmo exercício interpretativo que busca penetrar nas relações socialmente construídas para compreendê-las, explicá-las e interferir em sua constituição (GHEDIN, 2008, p. 71).
Essas relações construídas durante o processo de ensino-aprendizagem
buscaram possibilitar uma aprendizagem significativa aos alunos com deficiência
visual. Masini (2008) afirma que, de acordo com Ausubel, para que a aprendizagem
tenha significado é preciso perceber, compreender e elaborar as informações que
lhe são transmitidas. Em vista disso, os educadores, e em particular os educadores
de pessoa com deficiência visual, não podem prescindir de uma compreensão
significativa das especificidades das vias perceptivas nos processos de construção
de conhecimento e da reflexão sobre sua prática.
Chauí (2002, p. 161), discorrendo sobre o pensamento merleaupontiano,
esclarece que a palavra experiência “significa um sair de si rumo ao exterior, viagem
e aventura fora de si, inspeção da exterioridade”. No entanto, a experiência não
pode ser “passividade receptiva e resposta aos estímulos externos” e nem “atividade
de inspeção do mundo”. A experiência é a nossa maneira de perceber o mundo,
“iniciação aos mistérios do mundo”. Merleau-Ponty (2006, p. 14), ao falar de nossa
vivência no mundo, diz que “o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu
vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o
possuo, ele é inesgotável”.
115
Esse autor sugere que cada um compreende o mundo da maneira que o
percebe. Portanto, para os educadores é fundamental entender como cada um
percebe e compreende o mundo. Requer entender como cada um dos seus alunos
está percebendo o mundo em que está inserido. Assim, nesta pesquisa, a proposta
é compreender como ocorreram as situações vividas por dois alunos e entender o
quê provocou recursos para novos saberes e descobertas.
O pesquisador reatualiza o mundo no objeto que investiga. A investigação é uma forma de ação que procura tornar visível o invisível, fazendo perceber o que não se percebe e ver o que normalmente não se vê. Esse exercício de desvelamento do mundo é o que permite o avanço no processo de humanização por meio do conhecimento sistemático e assistemático (GHEDIN, 2008, p. 78).
Essa afirmação constituiu diretriz para uma forma de ação que procurou
desvelar o que estava encoberto, ampliando o que se percebia do mundo e do
humano, por meio de uma construção do conhecimento sistematizado, nas etapas
da pesquisa sobre o assistemático da vivencia cotidiana do ateliê.
A metodologia da pesquisa, na abordagem reflexiva, caracteriza-se fundamentalmente por ser uma atitude crítica que organiza a dialética do processo investigativo; que orienta os recortes e as escolhas feitas pelo pesquisador; que direciona o foco e ilumina o cenário da realidade a ser estudada; que dá sentido às abordagens do pesquisador e as redireciona; que, enfim, organiza a síntese das intencionalidades da pesquisa (GHEDIN, 2008, p. 108).
Esta pesquisa foi realizada a partir da descrição e análise dos materiais
desenvolvidos e trabalhos produzidos por jovens cegos congênitos participantes do
ateliê de artes.
O cotidiano do ateliê de artes constituiu o contexto no qual as propostas de
arte foram elaboradas e desenvolvidas. Para analisar o que realizaram os sujeitos
da pesquisa, foram aprofundados estudos que propiciassem ter claros os
significados do que foi essa experiência para cada um dos sujeitos; refletiu-se sobre
a questão do corpo como abertura para o mundo e a importância de considerar as
especificidades do corpo da pessoa cega; foram retomados aspectos do “viver” para
a artista Lygia Clark, e, a partir de algumas de suas propostas, foram resgatados os
significados da experiência vivida em arte pelos sujeitos da pesquisa.
Reiterando o que foi exposto, a proposta desta dissertação de mestrado foi a
de fazer uma análise do realizado pelos sujeitos da pesquisa dentro do ateliê de
artes durante o período em que se aprofundaram estudos sobre a artista plástica
116
Lygia Clark, com o objetivo de identificar o que propiciou desenvolvimento de
atividades criativas e de interações sociais. Constituiu material para essa análise: o
que os sujeitos da pesquisa realizaram no ateliê, no período de fevereiro de 2008 a
junho de 2008 e o que significou para eles, a partir dos dados das entrevistas
realizadas dois anos após essa experiência.
3.1. Sujeitos
Os sujeitos da pesquisa foram dois jovens cegos que frequentavam o ateliê
desde o seu início. A escolha dos sujeitos deu-se por serem ambos cegos
congênitos e pela proximidade etária. Os outros seis alunos com deficiência visual
participantes do ateliê não foram selecionados porque possuíam algum resíduo
visual resultante de diferentes patologias que levaram à baixa visão.
Para melhor entender quem são esses sujeitos recorremos a Amiralian (1997),
que esclarece a importância de se compreender a diferenciação entre os cegos
congênitos e as pessoas com cegueira adquirida.
[...] o sujeito que nasce cego, que estabelece as suas relações objetais a partir da audição, do tato, da cinestesia, do olfato e da degustação, difere daquele que perde a visão após seu desenvolvimento já ocorrido (AMARILIAN, 1997, p. 32).
Os sujeitos da pesquisa são cegos congênitos desde o nascimento por
diferentes patologias, e nunca tiveram a experiência da visão, sendo que um deles
parecia diferenciar claro e escuro e dizia que conseguia ver a cor azul.
Ambos os sujeitos não possuíam independência de locomoção. Paula recebia
atendimento de orientação e mobilidade com um especialista, mas não possuía uso
adequado da bengala. Bruno não tinha feito treinamento em orientação e mobilidade
e não tinha uso adequado da bengala. Ambos possuíam leitura e escrita Braille e
tinham máquina Braille.
Sujeitos Sexo Data nasc. Escolarização em 2010 Instituição em que
estuda no ano de 2010
Paula F 20/12/1990 Cursando Superior Faculdade particular
Bruno M 18/10/1992 Cursando Ensino Médio Escola da rede pública.
117
3.2. Procedimentos
Realizada a escolha dos sujeitos, foi decidido o período do ateliê que seria
focalizado, bem como a seleção do material produzido. Foi, também, realizado
contato para autorização e agendamento de entrevista com os sujeitos da pesquisa,
por intermédio da direção do Projeto Acesso. Nessa ocasião foi apresentada a
pesquisa, seus objetivos e o porquê das escolhas dos jovens cegos congênitos, e
solicitada a permissão para gravação das entrevistas. Foi assegurado o direito de
anonimato, bem como o acesso às gravações e análise. À direção do Projeto
Acesso e aos jovens entrevistados deixamos clara a possibilidade de apresentarem
qualquer tipo de questionamento e busca de esclarecimentos que pudessem
desejar.
Os horários das entrevistas foram agendados segundo a disponibilidade de
cada sujeito.
No primeiro momento da entrevista foi feita a apresentação da pesquisa, no
sentido de esclarecer a sua finalidade e abrir espaço para um diálogo cordial.
Szymanski (2010, p. 21) alerta para importância de “assegurar-se da compreensão
das pessoas acerca dos objetivos de um trabalho de pesquisa”.
Cada entrevista foi feita individualmente e teve a duração aproximada de 30
minutos cada. Depois da apresentação da pesquisa e das devidas explicações sobre
seus objetivos, falamos um pouco a respeito de cada entrevistado. Este momento
tinha como objetivo criar um clima de descontração e segurança, além de ser um
momento importante para trazer informações sobre os participantes, como por
exemplo, o que estão fazendo agora, quais são os seus interesses atuais.
As entrevistas foram elaboradas a partir do que Szymanki (2010, p. 10)
apresenta como entrevista reflexiva “como uma solução para o estudo de
significados subjetivos e de tópicos complexos demais para serem investigados por
instrumentos fechados em um formato padronizado”. Assim, tivemos acesso às
opiniões, sentimentos, visões do passado de nossos entrevistados. A entrevista é
uma situação de interação social entre o pesquisador e o pesquisado, essa relação
influência o seu curso como as informações que irão aparecer.
O linguajar poderá se modificar no decorrer do processo relacional, em face das mudanças no suporte emocional em que ocorre. No conversar, portanto temos um contínuo ajuste de ações e emoções. (SZYMANKI 2010, p. 10)
118
3.3. Local
A pesquisa foi feita no Projeto Acesso: Centro de Apoio Pedagógico
Especializado ao Deficiente Visual, na cidade de São Paulo, Brasil.
3.3.1. Entrevista com os sujeitos da pesquisa, após dois anos das atividades
desenvolvidas no ateliê.
A entrevista foi organizada em um roteiro (anexo) que girava em torno da
pergunta da pesquisa A experiência artística pode ampliar o conhecimento do
mundo de jovens cegos?
Ao longo da entrevista, oferecemos questões focalizadoras, buscando um
aprofundamento nas questões da perspectiva do objeto da pesquisa. “A finalidade
dessas questões é de desenvolver uma reflexão, focalizando-se a relação eu-outro”
(SZYMANSKI, 2010, p. 51).
As entrevistas foram baseadas nos procedimentos oferecidos por Szymanski
(2010) em A Entrevista na Pesquisa em Educação: a prática reflexiva.
Foram feitas entrevistas individuais com cada um dos sujeitos da pesquisa, e
outra com a dupla de pesquisados. Nos dois momentos os sujeitos mostraram-se
bastante satisfeitos em estarem conversando a respeito da experiência do ateliê de
artes.
Bruno não sabia da entrevista e, portanto, não estava preparado para ela. No
final do primeiro semestre de 2010 desenvolveu a Doença de Behçet30 (DB) que deu
origem a uma trombose cerebral. Não temos informação da extensão desta doença,
nem se pode apresentar algum tipo de sequela. Ficou internado por um mês em
uma unidade hospitalar. À época de sua doença havíamos marcado uma entrevista,
à qual Paula compareceu. Conversamos sobre as questões que seriam colocadas e
resolvemos agendar nova data para a entrevista na esperança de que Bruno se
restabelecesse.
30 A doença de Behçet é entendida como uma vasculite sistêmica que envolve vasos de qualquer calibre. Ainda que
algumas manifestações sejam características, como a aftose bipolar, não existem alterações laboratorias ou histopatológicas definitivas da doença, sendo o diagnóstico dependente de uma avaliação clínica criteriosa. A doença de Behçet é potencialmente grave, especificamente quando da verificação de uveíte, envolvimento do sistema nervoso central ou de comprometimento inflamatório de grandes vasos, como aortite. http://www.drashirleydecampos.com.br/noticias/16617. Acesso em: 02/10/2010
119
Conseguimos agendar nova entrevista para sexta-feira, dia 01 de outubro de
2010. O agendamento de nova entrevista foi feito por intermédio da diretora da
instituição. Agendamos para um dia em que ambos frequentavam a instituição.
Paula atrasou-se para entrevista, o que ocasionou alguns desacertos para o seu
início.
Neste dia Bruno tem aula de orientação e mobilidade, e depois, aula de
música, na qual Paula é professora. Toda sexta-feira, além da aula com Bruno,
Paula oferece curso de canto coral para alunos, familiares e amigos do Projeto
Acesso. Nenhuma dessas atividades foi previamente desmarcada em razão da
entrevista, então tínhamos que usar os intervalos entre as aulas.
Começamos a entrevista com Paula, que logo foi interrompida com a chegada
de Bruno. Paula pede para continuar sua entrevista mais tarde, pois tinha que iniciar
a sua aula de canto coral. Desta forma, Bruno ficou para a entrevista. Após a
entrevista com Bruno foi feita a de Paula, e depois nos reunimos os três para o
fechamento de nossa conversa. Para que pudéssemos nos reunir os três, a aula de
música de Bruno foi suspensa.
Paula e Bruno estavam bastante felizes com a entrevista. Foi para todos uma
oportunidade de reencontrar e reviver momentos importantes de um passado
compartilhado. Bruno não tem muita facilidade de expressão, e algumas vezes
parece que lhe faltam palavras para expressar o que está pensando. Paula, ao
contrário, tem grande facilidade de expressão. Bruno necessita de mais tempo para
se sentir seguro e elaborar o seu relato, enquanto que Paula já tem um discurso
bem articulado.
Com ambos os entrevistados iniciamos a entrevista explicando o porquê
desta, e qual o foco de nossa pesquisa. Para que o ambiente ficasse mais
confortável iniciamos nossa conversa perguntando ao entrevistado sobre sua vida
atual, relembramos alguns fatos do passado, mostramos alguns trechos de
gravações de aulas e depois oferecemos uma pergunta desencadeadora: “O que
você se lembra do ateliê de artes?”.
Bruno e Paula trouxeram muitas lembranças do ateliê de artes. Bruno
precisou ser interrogado. Paula apresentou um discurso bastante seguro e com
muitas lembranças. Foram poucas as perguntas para Paula no meio de sua
narrativa.
120
Foi feita uma transcrição das falas dos sujeitos entrevistados de forma a
preservar o máximo possível como se deu a entrevista. Segundo Symanski (2010, p.
74), “este “primeiro” texto da fala do entrevistado deve ser registrado, tanto quanto
possível, tal como ela se deu”. Esta fase foi muito trabalhosa exigindo muitas horas
de escuta da gravação, leituras e releituras do texto, para conseguir captar todos os
detalhes da fala de nossos entrevistados.
Depois foi feito um texto referência, no qual foi feita uma limpeza nos vícios
de linguagem e do texto grafado segundo as normas ortográficas e de sintaxe, sem
substituir termos usados pelos sujeitos da entrevista. Procuramos manter o quanto
foi possível a espontaneidade e a originalidade da fala dos entrevistados.
Propusemo-nos fazer uma devolução do material coletado durante as
entrevista, e para isto apresentamos as entrevistas transcritas e uma pré análise do
material para as considerações de nossos entrevistados. Essa devolução tinha como
intuito estimular a reflexão sobre nosso tema de pesquisa, e desta forma enriquecer
os dados obtidos.
A cópia das transcrições com os nomes fictícios dos entrevistados está no
anexo ao final deste trabalho.
3.4. Materiais e equipamentos
O material utilizado na entrevista foi o gravador digital iPOD. O material
utilizado para gravações e registros fotográficos do ateliê foram: aparelho celular
Nokia N95; câmera fotográfica digital Sony; gravador digital Panasonic: câmera
filmadora digital Canon.
3.5. Procedimentos para a análise das entrevistas
Nosso objetivo na análise desses dados era desvelar experiências vividas
pelos sujeitos da pesquisa: o processo de compreensão do significado da
experiência da arte como abertura para o conhecimento do mundo de jovens cegos.
Retomando ao que foi apresentado no capítulo 1, a experiência é um abrir-se
para o mundo, estabelecer relacionamentos, elaborar novas conexões e tecer novos
conhecimentos.
121
Procuramos, na construção do capítulo 2, apresentar o que foi vivido no ateliê
de arte para maior compreensão do contexto do foi esta experiência nas palavras
dos sujeitos da pesquisa.
Nas análises das entrevistas procuramos refletir sobre a validade dos saberes
de cada um.
A análise das entrevistas foi realizada em etapas, conforme segue.
Em primeiro lugar, a pesquisadora fez uma transcrição das entrevistas
gravadas dos sujeitos da pesquisa. Depois estes textos foram lidos diversas vezes
com o intuito de captar a sua essência, em função de nossa pergunta diretriz da
pesquisa: A experiência artística pode ampliar o conhecimento do mundo de jovens
cegos?
Foram assinalados os itens enfatizados nas entrevistas de cada um dos
sujeitos.
Os aspectos reiterados nas entrevistas registradas por escrito constituíram o
referencial do que foi importante e foi significativo na experiência do ateliê para os
sujeitos da pesquisa, e passaram a constituir as categorias de análise. Cinco itens
foram assinalados: Aprender, Compartilhar; Aproximar; Colaborar e Transformar.
122
4. Análise da experiência do ateliê na perspectiva dos alunos
Focalizando cada uma das categorias foram feitos recortes dos depoimentos
ilustrativos de cada um desses itens na experiência do ateliê, conforme segue.
4.1. Aprender
Neste aspecto encontramos nos depoimentos de Bruno e Paula durante
nossa entrevista como a experiência da arte foi significativa para eles.
Bruno – eu gostei por que queira saber mais, não é? Eu queria, por causa do meu conhecimento, queria ampliar, não é. Eu queria saber por que a Lygia Clark fez essa obra, como o autor fez essa obra. Paula - O ateliê da Lygia Clark significou muito você ter trazido os quadros dela para a gente sentir como é que os quadros dela são de verdade. E a gente também poder criar obras em cima dos quadros dela com as figuras imantadas.
Bruno recordou que o trabalho de Lygia era com espaço e formas
geométricas. Paula ressaltou a importância de utilizar os vários sentidos no contato
com a obra e a importância de caminhar com independência e se apropriar dos
materiais conforme sua necessidade.
Nas palavras de Paulo Freire (1996, p.23) “quem ensina aprende ao ensinar e
quem aprende ensina ao aprender” e que o aprender precede o ensinar, e que
devemos estar sempre abertos ao aprender. Esse autor defendia uma relação onde
não existe o aluno e o professor, mas sim, uma relação humana onde encontramos
o diálogo de experiências humana compartilhada.
Aprendemos por meio da experiência. Aprendemos e ensinamos quando as
coisas tem significado para nós. Quando estamos trocando experiências estamos
aprendendo e ensinando.
Bruno focalizou a construção dos bichos como algo relevante. Os bichos
assim como as obras adaptadas foram lembrados com bastante facilidade. Algumas
etapas dos trabalhos com Lygia Clark foram lembradas com dificuldade. Talvez aqui
a elaboração da entrevista tenha sido falha. Deveríamos ter nos preocupado como a
pessoa cega ativa a sua memória. Se nossa memória é ativada por algo dos
sentidos que nos remete ao passado, como as "madeleines" de Proust, deveríamos
ter oferecido maiores oportunidades para que ocorresse essa ativação.
123
A nossa memória é constituída por alterações subtis na resistência das sinapses, o que faz com que seja mais fácil aos neurônios comunicarem entre si. O resultado final é que, quando Proust saboreia a madalena, os neurônios a ajusante do sabor bolo, aqueles que codificam Combray e Tia Leonie, se acendem.” (LEHRER, 2009, P.106)
Ficamos com a impressão de que deveríamos ter ofertado alguns materiais
que favorecessem essas sinapses. Para relembrar experiências vividas no ateliê,
muitas vezes falar sobre o material de que era feito foi detonador de lembrança.
Assim como os primeiros filósofos gregos que pretendiam encontrar a "matéria-
prima" de que são feitas todas as coisas a matéria seria uma das maneiras que o
cego usa para decifrar o mundo.
Ac – Você lembra dos trabalhos dos casulos, de dobrar os papéis? Bruno – Gostei também, achei interessante. Casulo. O que foi mesmo? Nós fizemos os casulos de que mesmo? Eu não me lembro. Ac – Da Lygia Clark então você gostou mais dos bichos? Eles eram feitos de madeira. Você lembra que a gente montava na madeira com fita crepe e ia montando? Bruno – Eu não estava me lembrando do material. Eu não me lembrava da madeira. Eu só lembrava que a gente fez, não do material.
Ainda dentro dessa categoria lembramos que aprender é compreender, é
construir caminhos. Paula relembrou os momentos angustiantes diante do trabalho
pronto no qual não conseguia compreender o que estava sendo representado:
124
Figura 32: O banco de pedra do Asilo Saint Remy. Van Gogh. Obra, trabalho adaptado e trabalho conjunto. Descrição da figura: Canto superior à esquerda: O banco de pedra do Asilo Saint Remy. Van Gogh. Canto superior à direita: linhas principais a serem trabalhadas. Imagem inferior: produção elaborada junto com a aluna. (fotos Ana Carmen Nogueira, 2005)
Paula - Agora o que eu não gostei foi ter passado o tridimensional para o bidimensional. Bidimensional não é fácil mesmo, você não entende, você vai à Pinacoteca, pega aqueles exemplos dos tridimensionais, a gente entende tudo, agora o bidimensional é uma coisa que realmente é mais difícil de ser entendida. O que eu não gostei foi aquele dia que eu peguei o quadro e eu pegava várias vezes, tocava nele e representei aquele quadro do Van Gogh do Banco de pedra do Asilo de Saint Remy no papel, aquilo foi super difícil, não foi nada fácil.
Ac – Eu acho que não foi nada fácil e foi errado. Aí você tem toda a razão, que também eu estava aprendendo a trabalhar com você. Eu acho que foi uma experiência que não deu certo. Eu acho que a gente estava trabalhando de uma maneira errada. Impossível fazer aquele quadro ser compreensível. Do jeito que foi feito. Foi legal para passar as várias experiências táteis que podiam ter naquelas tintas, mas não daria realmente. Voce tem toda a razão, aquilo lá foi muito difícil mesmo.
125
Relembrou com sofrimento a não construção do conhecimento. Estava
ocorrendo a lógica do “ou”. Lembrando Moreira (2010) que nos ensinou no capítulo 1,
ou ela compreendia pelo referencial do vidente ou fracassava. A proposta do
trabalho foi toda baseada no referencial do vidente, onde se acreditava que a
simples transposição do bidimensional para o relevo seria compreensível ao cego.
Neste momento foi preciso modificar a atuação do educador, perceber o outro,
compreender as suas necessidades, aprender juntos.
Lembrando Almeida (2010) no capítulo 2, onde esclarece que a alteração das
mídias não é uma estratégia inclusiva que na verdade é preciso fazer uma recriação
da obra adaptada às necessidades da pessoa cega.
Vimos também como a exploração do espaço foi um trabalho que gerou
conflitos e dúvidas. O medo do espaço, a dificuldade de se locomover nele, o modo
como os jovens o percebiam e como articulavam suas relações com o mundo
exterior foi ressaltado durante a fala dos sujeitos.
Paula - Na aula de artes, o que eu não gostava era da localização do espaço, sem bengala, porque o espaço de baixo eu não tinha muito acesso. Mas foi muito bom para mim porque agora eu tenho um mapa totalmente programado do que é a sua sala, do que era a sala da Rosanna, que hoje em dia é a de música. Eu não gostava muito disso, mas eu aprendi que isso foi assim muito fundamental para mim, depois. Hoje em dia, se você me colocar para andar aqui dentro eu sei. Isso me ajudou, por que qualquer desafio que você enfrente na vida, não é só o que você gosta. No que você gosta tem muita coisa que você não gosta também. Tem que enfrentar, faz parte do desafio cotidiano, que você tem que enfrentar.
Bruno - A professora de Orientação e Modalidade está trabalhando com o espaço interno. Eu já sabia daqueles espaços. Já sabia o que tinha. Aí eu fui descrevendo.
É no processo do aprender que descobrimos ser possível ensinar.
Aprendemos pela relação que se cria por compartilharmos conhecimentos e
descobertas do mundo.
Cada pessoa compreende o mundo de uma maneira, cada grupo irá evoluir
de acordo com a bagagem que carrega e com aquilo que vai procurando ao longo
de seu caminho. A experiência com a artista Lygia Clark, assim como outros projetos
que foram desenvolvidos no ateliê, foram ampliadores de mundo.
Bruno foi lembrado sobre o Projeto Peter Pan. O projeto Peter Pan começou
com a leitura do livro “Peter Pan” de J.M. Barrie, traduzido por Ana Maria Machado.
O projeto foi desenvolvido de forma interdisciplinar entre o ateliê de artes, a oficina
126
da palavra da professora Rosanna Bendinelli e a aula de inglês com a professora
Cristiana Mello Cerchiari. No ateliê de artes, criaram um mundo tridimensional, com
suas formações de terra e água, baseado no imaginário de cada aluno e na história
de J.M. Barrie. Cada um criou sua própria Terra do Nunca.
AC – A gente fez um vulcão, lembra? Bruno – Eu lembro, mas... é, cada ilha tinha um vulcão. AC– Você lembra como você fez o vulcão? Bruno – Com argila. AC – O que mais? Como é que se fazia a erupção? Bruno – com copo. A gente colocou um copo embaixo e usou bicarbonato de sódio, vinagre e detergente. Quando entrava em erupção caía espumando.
Como dissemos no capítulo 2, o ateliê de artes para pessoas com deficiência
visual tinha a preocupação na construção do indivíduo como um todo. Procurava ser
um espaço de provocação e inventividade, procurando retirar o sujeito do seu
conforto para enfrentar desafios. Neste aspecto podemos notar pela fala de Paula
que ao retirar as pessoas da zona de conforto muitas vezes criam-se conflitos.
Paula – O que não era muito fácil é que eu achava que vinha para aula de artes só para pintar, para desenhar, para realizar as obras que eu queria realizar, e eu via que de repente não era assim.
Trabalhar com arte, com projetos de artes, é trabalhar com potencialidades de
expressões, caminhos, matérias, espaços. Para um projeto de artes, é preciso
observar as necessidades do grupo, mapear os questionamentos, instigar ideias e
criar redes de conhecimento.
Os trabalhos de desenho e de pintura foram lembrados por ambos como
momentos de aprendizagem de grande importância.
Paula - Gostei muito da mesa paleta, porque nela eu pegava as tintas que eu queria. Eu escolhia as cores que eu queria sem ninguém falar nada. Eu podia sujar o dedo, eu podia colar, podia pintar, eu podia fazer o que eu bem quisesse.
Oliveira (2002) ressalta que embora a pintura não seja acessível para o cego
ele pode desfrutar da alegria de pintar. Citando Rona Shaw31 “para a criança cega o
divertido [do ato de pintar] não está no produto acabado, mas sim no processo
utilizado”.
31
Rona Shaw. The Creative Arts, in Geraldine T. Schnoll et alii. Foudantions of Education for Blind
and Visual Handcapped Children and Youth. Theory and Practice, p.392
127
Bruno – Eu gostava de pegar o papel e uma caneta e desenhar coisas, não é. Coisas simples que tem no céu, na terra. Ac – Como isto te ajudou a perceber mais o mundo? Você acha que o ateliê de artes te ajudou a perceber melhor o mundo? Bruno – Me ajudou muito. Me ajudou até como representar as coisas, que eu não conseguia desenhar, não conseguia fazer nada. Graças ao ateliê me
ajudou muito na parte de desenhar. Representar o mundo.
Pensando ainda diversidade de experiência que se deve proporcionar visando
uma estética tátil, Bruno relembrou um momento de desconforto e ao mesmo tempo
de superação. Logo nas primeiras aulas dentro do ateliê de artes em 2005,
proporcionamos a exploração de vários tipos de massa como argila, papel maché e
massa de farinha. A massa de farinha era feita pelo aluno com o auxílio da
professora. Em uma bacia colocava-se a farinha e aos poucos iam adicionando água
até chegar à consistência ideal. A mãe de Bruno já havia alertado sobre as
sensações negativas que causavam esses materiais em seu filho. No entanto,
sabíamos também dos benefícios que a exploração e investigação desses materiais
podiam oferecer, como vimos com Suero (2003) e Bardisa (1992) no capítulo 2.
Bruno - O único trabalho que eu não gostei muito é o da massinha. Tinha que ficar mexendo assim. É que eu não gostava de mexer assim com a mão. Ac – você não gostava de mexer com a mão ou não gostava de mexer com a massinha? Bruno – não, mexer com a mão não. Com a massinha. Bruno –Foi o único que eu não gostei. Ac – Qual massinha era? Aquelas que a gente fazia de farinha? Bruno – Que a gente fez de farinha e depois colocou no forno. Ac –Porque a massa ficava grudada na mão, não é? Bruno – É. Depois nós colocamos no forno e ela endureceu. A gente colocou sal. Ac – Nós comemos? Bruno – Eu comi uma. Ac – Comeu? Estava boa? Bruno – Estava muito salgada.
Bruno não gostava da sensação da massa grudando em suas mãos. Ele
odiava sentir as mãos sujas, mas depois trabalhou a massa e a transformou em
alimento. Por sua vez, Paula mostrou uma experiência diferente em relação às
massas.
Paula – Os trabalhos que foram bastante significativos foram tudo que eu fiz com massa, sempre. Manipular massa é muito bom, você trabalha sua mão para fazer exercício, sua tristeza passa tudo.
Verificamos assim na fala dos entrevistados que as atividades artísticas
oferecem oportunidades de enriquecimento de seu mundo interior e exterior,
128
permitindo que se expressem de diferentes formas: desenhando, escrevendo, ou
movimentando seu corpo. A experiência artística oferece diferentes maneiras de
expressão.
4.2. Compartilhar
Um dos trabalhos que Paula e Bruno trouxeram foi da exposição Todos os
Cantos de dezembro de 2006. Esse trabalho foi muito significativo por ter sido o
primeiro trabalho que foi elaborado por eles para que o vidente compreendesse seu
universo. O trabalho foi baseado nas suas experiências perceptivas sobre o mundo.
Na sala do ateliê montaram vários cantos, onde cada um tinha um significado. Em
cada canto queriam mostrar algum sentimento, ou como eles percebiam o mundo. O
primeiro canto era o canto do medo. Escolheram máscaras de bruxas, teias de
aranha artificial, modelos de borracha de insetos, caveira de borracha. Além disso,
selecionaram as músicas que compuseram a trilha sonora dos cantos. Havia ainda o
canto das pessoas especiais, canto das alegrias, canto de como sentimos e o canto
das lembranças.
Figura 33: Imagens da exposição, Todos os Cantos. Descrição da figura: Seis fotos da exposição: Superior esquerdo: Canto do medo. Centro superior: Canto das pessoas especiais; Superior direito: Canto das Alegrias; Inferior esquerdo: Canto das alegrias. Inferior central: Como sentimos; Inferior direito: Lembranças (fotos Ana Carmen Nogueira)
Paula - Significou bastante os cantos que nós fizemos. Os cantos dos medos, os cantos das pessoas especiais das nossas vidas. Lembramo-nos das músicas que marcaram a infância, das pessoas que marcaram a infância. Nossa aquele ano significou bastante para mim aquela apresentação Dos cantos. As pessoas especiais... AC- Foi a primeira apresentação que a gente fez. Vocês que fizeram para apresentar para as pessoas do jeito que vocês sentiam. As pessoas tinham que estar cegas também, não é?
129
Paula – É tinham. Foi muito legal, porque deu para perceber que as pessoas gostaram do que estava acontecendo. A primeira vez que fizemos uma apresentação dos trabalhos foi em julho de 2006. A exposição Todos os Cantos foi a segunda, em dezembro de 2006. A primeira nós estávamos presos, nesta não, estávamos soltos. Nós corremos atrás de tudo.
Bruno - Na primeira apresentação que tinha aquela música do eco, das taquaras. Cada canto tinha um desenho, se eu não me engano. Não desenho, não. Acho que a gente pegou uns bonecos e montou em um canto. Canto do medo, canto de coisas assim, canto das coisas que a gente gosta. O canto do medo tinha uma caveira, não é? Tinha umas caveirinhas, eu acho que eu me lembro do canto do medo. Eu me lembrei de uma coisa. Tinha teia. A gente fez com cola, a teia? Foi bom mostrar os trabalhos, porque, assim as pessoas veem que podemos fazer as coisas. E daquela apresentação para frente só foi melhorando. Nós temos capacidade para conseguir nosso objetivo.
Bruno e Paula ressaltaram a importância de compartilhar seus conhecimentos
e descobertas com as outras pessoas como uma maneira de demonstrar suas
capacidades e em contrapartida receberem o reconhecimento da sociedade como
pessoas além de suas deficiências.
Compartilhar é partilhar algo com alguém.
Larrosa (2001, p. 27), diz “O saber de experiência se dá na relação entre o
conhecimento e a vida humana”. Compartilhamos o nosso modo de estar no mundo,
ao compartilharmos nosso conhecimento de mundo com o outro, devemos estar
abertos ao conhecimento, devemos caminhar juntos, criar oportunidades para novas
experiências. Devemos, como sugere Paulo Freire (1996) compartilhar a parceria
como instigadores, curiosos e inquietos.
Vimos em Vygotski (1997) que para a pessoa cega, a falta da visão perturba o
curso normal do contato com a cultura de seu meio. O que torna uma pessoa cega,
ou com baixa visão, deficiente, é sua exclusão da sociedade, do mundo cultural, do
convívio com os outros.
Outra lembrança comum e também bastante importante foi o projeto "Egito
Antigo" (2007). Para ambos o projeto Egito Antigo foi um momento de homenagem e
de bastante conhecimento e descobertas. A questão da mortalidade surgiu pela
grande dificuldade e o sentimento de desolação diante da morte que os jovens
tinham. Fizemos um estudo sobre o Egito Antigo com o texto “A Questão da
Imortalidade: Tesouros do Egito Antigo” baseado no Family Guide to The Quest for
Immortality Treasures of Ancient Egypt - National Gallery of Art, Washington.
Durante o processo de elaboração do conhecimento do Egito Antigo, criaram
o seu próprio Egito, sua mitologia e assim compreenderam o mundo ao redor e o ser
130
humano. Os jovens partiram de estudos teóricos, elaboraram as informações e as
transformaram. Além disso, tiveram a possibilidade de compartilhar conhecimento e
emoções com outras pessoas. Como diz Vygotski (1997, p.110), o cego supera sua
deficiência pela compensação social por meio da linguagem, por meio da
comunicação com o vidente, pela observação, análise e compreensão das
diferenças.
Paula - Mas eu também gostei do Egito. Porque depois eu pude colocar para fora tudo o que eu estava sentindo, da tristeza da morte da minha avó. Eu fiz a múmia dela. Eu achei lindo esse trabalho que eu fiz. Eu gostei muito e, gostei muito também, que o Bruno e o Ricardo gostaram da minha ideia e o legal é você dividir experiências com as pessoas. O Bruno e o Ricardo na época também tinham perdido pessoas queridas. Então pude compreender que não era só eu que sentia aquela tristeza com a perda de uma avó. Então, aquela apresentação também foi maravilhosa.
Bruno - Um dia eu fiz um trabalho que eu recordei da minha avó. Eu lembro até que eu trouxe uma letra das músicas que ela gostava que era Roberto Carlos. A gente estudou os deuses. O Rá que era o sol, que de manhã ele nascia, criança, por volta de meio dia ele era adulto, e a tarde ele ficava velho. Tinha que enfrentar uma serpente. Ele morria, tinha que pegar um barco para renascer de novo. Foi muito legal ter estudado os deuses. Tinha a deusa do inferno que eu esqueci o nome. Maat, que ela ia pesar o coração de quem morria. Se ficasse maior que a balança dela, ela devorava a pessoa.
4.3. Aproximar
As vozes de Bruno e Paula expressaram a experiência de proximidade vivida
no ateliê, no contato com o material adaptado das obras de Lygia Clark e do que
cada um criou.
Bruno – Eu lembro que a gente fez o trabalho da Lygia Clark. Eu lembro que a Lygia Clark não desenha, acho que ela brincava com os espaços. E uma vez nós fizemos um bicho. Eu não me lembro de que material. Ele tinha articulação, ele se mexia. Eu me lembro desses bichos. Eu fiz dois ou três bichos. Eu me lembro que ela se preocupava com os espaços, ela não se preocupava em desenhar coisas. Ela brincava com a forma geométrica. O que eu gostei mais de fazer foi o trabalho dos bichos. Eu gostei muito. Paula – O ateliê da Lygia Clark significou muito. O que significou foi ter trazido os quadros dela para a gente sentir como é que os quadros dela são de verdade. E a gente também poder criar obras em cima dos quadros dela com as figuras imantadas. Eu nunca me esqueço do trabalho que eu criei chamado “superfícies planas”, que criei a partir das “superfícies moduladas”. Significou bastante para mim o quadro “quebra da moldura”, os bichos, os casulos dela, eram bem legais. E ela também nos ensina a valorizar qualquer material que seja barato, material como, por exemplo, a areia, plástico, pedra, que são materiais simples de se encontrar. Arte não precisa ser só de material sofisticado, caríssimos, que você tem que pagar uma fortuna para comprar. Não, a partir de um saco plástico e de bolinhas de ping-pong, por exemplo, você realiza uma obra que você sente as bolas de ping-pong na sua mão. A partir
131
de um saco e de uma pedra você sente o que é um pulmão respirando. Você tem o aparelhinho do “respire comigo” que os escafandristas usam bastante, que é muito legal. Você tem “mãos” de diferentes estilos. Uma “mão” toda áspera, uma lisa, uma macia, que você pega a bola com essas diversas “mãos”. Você pega a bola de tênis, com essas diversas “mãos” para você poder sentir.
Aproximar é estar aberto para o outro, ensinou-nos Masini (2003). Estar aberto
para o outro parece ser um dos exercícios mais difíceis e desafiadores, pois requer
que estejamos atentos à experiência do outro. Em um sair de si para um olhar no
que não somos nós. Para o trabalho com pessoas cegas, o aproximar significa estar
aberto ao mundo do outro e compreender suas vivências, bem como seu habitar o
mundo. Aproximar é respeitar sua bagagem e criar novas relações que lhes
ofereçam significados.
Aproximar é também “Ativar culturalmente, é fazer circular, é dar acesso,
aproximar. É impulsionar a potencialidade de obras e artistas submersos nos livros,
nos museus, nos sites, nas reproduções esquecidas que fazem parte de nosso
acervo de professores, para além daquelas sempre escolhidas” (MARTINS, 2003, p.8).
Conhecer Lygia Clark tão profundamente foi uma oportunidade de ampliar
olhares sobre o mundo. Lygia proporcionou a possibilidade de experimentação de
uma grande diversidade de materiais e maneiras de explorar e expressar
esteticamente. Para nossos alunos, foi uma ampliação de modos de sentir e
expressar. A maior contribuição neste projeto foram as possibilidades de
descobertas que foram feitas por eles. O professor era o propositor, passando a
proposta que era da artista. Nossa função era apenas a de auxiliar nas suas
descobertas. As descobertas eram compartilhadas entre eles, e assim havia uma
ampliação de conhecimentos. Os jovens comparavam suas obras com as obras da
artista, refletindo sobre as soluções compositivas de cada um. Este foi o momento
ativo de perceber e ser percebido.
4.4. Colaborar
Bruno e Paula afirmaram ter sido o trabalho com a poesia concreta o melhor.
Ambos recordaram das suas poesias e das poesias dos outros participantes do
ateliê. Para os jovens, este foi o melhor momento de colaboração, construção e
compartilhamento de conhecimentos de mundo e vida. Segundo Bruno foi o mais
completo. Trabalharam com sons, com palavras, ideias, construção concreta
132
fechando um ciclo de pesquisa e desenvolvimento. O projeto Poesia Concreta foi o
último trabalho desenvolvido no primeiro semestre de 2008.
Paula – Não esqueço também da poesia concreta que a gente acabou fazendo. Do “coma muito chocolate”. Que eu fiz a partir do “beba coca-cola”. Eu preciso até lembrar como ela era. Mas eu acho que era assim: Coma muito chocolate, coma muito chocolate, como chocolate muito, como late choco muito, coma, coma, coma, coma. Coma muito chocolate, coma muito chocolate... Bruno – Aquela da bola? Ah, bola. Aquela, bola, de fora, bola fora. Que eu tinha falado para você gravar um gol do Santos. Que eu falei para por uns efeitos para o eco, para a torcida. Eu me lembro disso. Eu lembro até da poesia que o Ricardo fez do “Paralelepípedo”. A Paula fez a poesia do chocolate, que tem aquele barulhinho, tem “I eat”, e barulho da maçã e o monstro, UAHHHH. Gostei muito desse trabalho. Gostei porque foi mais trabalhoso. A gente fez muito bem, que colocou tudo perfeito. Ficou tudo perfeito.
A construção de suas poesias foi uma síntese de tudo que haviam vivenciado
naquele semestre. Suas poesias circularam entre eles, cada um sabia a poesia do
outro. Acompanharam as sonorizações e as montagens. Quando ela se tornou
concreta foi explorada auditiva e tatilmente por todos.
Paula relembrou também, o trabalho que fez junto com Renata32. Neste
trabalho, estavam explorando o gesto como expressão em um trabalho colaborativo.
Renata segurava a mão de Paula, fazia um gesto com tinta no papel, depois as
posições eram trocadas.
Paula – O trabalho que eu fiz com a Renata, Cores e nomes, eu achei lindo, porque cada uma escolheu a cor que queria. E eu a mandava pintar e ela me mandava pintar também. Então acho que isso era muito lindo, isto que teve bastante significado. Paula - o que eu queria falar disso era que é muito legal saber que tem as pessoas videntes que tem desprendimento de querer aprender a fazer, a praticar as obras de arte num mesmo lugar que o deficiente visual também quer. Então acho que isso foi muito legal, porque a Renata era vidente. Ela me ajudava no que eu precisava, e eu por ser deficiente visual tinha também algumas experiências que eu ajudava também a Renata. Então eu acho que foi muito boa essa troca, minha com ela. Tenho bastantes saudades.
Colaborar é trabalhar com, e é este fazer com o outro que desencadeia um
sentimento de pertencimento. Pertencer é fazer parte de algo, de um grupo onde
atuamos e transformamos.
Só desfrutamos do sentimento de pertencer quando somos afetados pelo
outro. Pertencer requer um movimento que se completará quando for vivido com o
32
Renata, aluna vidente que fazia o ateliê junto com Paula.
133
outro. Além disso, colaborar provoca o diálogo, desperta sentimentos e sensações,
percepções, questionamentos que ampliam nosso conhecimento.
Ormelezi (2000, p. 37) aponta que é muito importante compreendermos como
a pessoa cega “estrutura seu mundo mental e como se apropria do conhecimento”.
Masini lembra que é preciso partilhar para compreender sua experiência perceptiva.
Com nossos alunos procurávamos compreender suas experiências e elaborar
esteticamente aquilo que vivenciavam.
O projeto da Poesia Concreta (2008) ilustra com clareza a colaboração. O
trabalho com a poesia concreta surgiu durante as discussões sobre o movimento
concreto no Brasil dentro do projeto Lygia Clark. A interpretação de poesias era uma
prática dentro do ateliê, sempre nos utilizamos dela como uma ferramenta para
elaboração dos trabalhos. Por meio da poesia sensibilizávamos a alma e o corpo
para podermos trabalhar o fazer artístico. O trabalho com a poesia concreta foi
diferente, a poesia não era mais um meio para se chegar a algo. A poesia, naquele
momento era a própria expressão. Foi um mergulho no desconhecido tanto dos
alunos como da professora. Arriscamo-nos em territórios poucos conhecidos para
colaborar na construção do conhecimento. A nossa postura era a de aprender
juntos, descobrir juntos, refletir juntos.
Vemos aqui a importância de colaborar, compartilhar conhecimentos, aguçar
a curiosidade e oferecer oportunidades de exploração do mundo para a formação de
uma pessoa independente e autônoma. Estas ações são potencializadoras das
habilidades e favorecem o desenvolvimento responsável e integral.
4.5. Transformar
A análise das entrevistas evidenciou de diferentes formas, a ênfase dada
pelos alunos ao que propiciava mudanças neles próprios.
Bruno referiu-se ao ateliê como um lugar de desenvolvimento pessoal que lhe
possibilitou muitas descobertas e contato com novos conhecimentos. Paula
ressaltou a possibilidade de autonomia que o ateliê proporcionou.
Paula –Trabalhei muito os medos, trabalhei muito as angústias, trabalhei muito a imaginação. Para o cego a arte tem um grande significado. Em uma escola, em uma sala de artes os professores nunca ensinam o que você, por exemplo, ensina para gente. Desenhar uma flor, exatamente do jeito que ela é. Desenhar as formas geométricas exatamente como são. Entender uma obra. Porque muitas vezes o professor da escola comum não tem paciência de ensinar, não tem paciência de nada, e você sempre teve com a gente. Eu consegui ver que tinha uma professora aí de artes, que se
134
preocupava em saber como a gente entendia as coisas. E depois comecei a querer sair mais, ficar mais social. Me ajudou muito mais a sua aula de artes a me interessar a ir nos museus. A arte me devolveu uma bela vida. Bom saber que você aprendeu muito com a gente, porque a gente também amou aprender com você. Bruno – Arte me ajudou muito. Me ajudou a representar as coisas, que eu não conseguia desenhar, não conseguia fazer nada. O ateliê me ajudou muito na parte de desenhar. Representar o mundo. Não sei, parece que eu fiquei mais curioso. Acho que mudei. Antes eu não era muito curioso, agora esse interesse me despertou mais. Eu não era muito curioso, acabei ficando. Eu lembro que se não fosse artes eu não sei como seria na escola. Porque as aulas de artes foram uma experiência muito boa para mim. A arte é muito importante para nós. O trabalho foi muito bom. Acho que só de pensar, acho que a gente não ia conseguir, não ia saber o que era arte mesmo. Foi uma troca de conhecimentos.
“[...] o mundo está ao redor de mim, não diante de mim.” (MERLEAU-PONTY,
2004, p. 33). A experiência artística lhes proporcionou uma maior abertura para o
mundo, para as possibilidades que se apresentavam a eles. Ampliaram seus
relacionamentos sociais e passaram a agir como produtores de suas ações culturais.
Bruno – Bom, lembra da apresentação de 2008 que a gente fez aqui? Que eu trouxe uns amigos para assistir? Em 2009 elas também vieram e também o meu amigo Leandro. É legal porque eu já fiz afinidade fácil com eles. Acabei gostando. Aliás, eu e o Leandro já temos uma banda. Paula - Eu estou em um momento muito bom da minha vida. Estou muito feliz, estou bem, estou namorando. Estou enturmada com os amigos. Eu nunca imaginei que fosse estar na fase que estou agora de me dar bem com todo mundo. Porque nunca aconteceu isso comigo no colégio.
A experiência pode nos abrir o mundo, pois o “homem está no mundo, é no
mundo que ele se conhece” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 6). O homem agindo no
mundo se conhece e conhece o outro. É por meio das oportunidades de
experiências diferenciadas que os jovens cegos conseguiram compreender o
mundo, analisar, refletir e assim fazer suas próprias escolhas. Quanto mais
oportunidades lhes forem oferecidas mais recursos terão para a percepção do
mundo, a imaginação criadora e maior a consciência de si e do mundo.
Transformar é tomar nova feição, é modificar-se, mudar mediante
transformação. Por isso, através de vários movimentos, várias reflexões sobre aquilo
que fazemos, sentimos e pensamos, vamos modificando e sendo modificados. É na
interação com o mundo e com o outro que nos conhecemos, reconhecemos,
inventamos e reinventamos. São essas transformações que oferecem novas
relações e um movimento do devir. Abrem-se novos caminhos, e ocorre uma
ampliação de mundo. Por meio de nossas vivências, de nosso habitar o mundo, de
possibilitar que algo nos aconteça, é que ocorre a transformação. “É experiência
135
aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e nos forma e nos
transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria
transformação”. (LARROSA, 2002, p.26)
4.6. Reflexão sobre a experiência do ateliê na perspectiva dos alunos
Esta reflexão retoma o que foi analisado das entrevistas à luz dos
pressupostos teóricos apresentados nos capítulos 1 e 2. Este item reitera a busca
para compreender as significações do ateliê para os sujeitos da pesquisa, frente aos
registros escritos dos seus depoimentos nas entrevistas e nas análises destes.
A análise de seus depoimentos mostrou que foi por meio das oportunidades
de experiências diferenciadas que os jovens cegos conseguiram compreender o
mundo, analisar, refletir e assim fazer suas próprias escolhas. Enfatizaram que as
oportunidades oferecidas contribuíram para ampliar a percepção do mundo, a
imaginação criadora e a consciência de si e do mundo.
Há um instante mágico na vida em que, nem mesmo sabendo por que, ficamos envolvidos num jogo. Num jogo de aprender e de ensinar. Fazemos parcerias. Não só com os outros, mas também parcerias internas nos propondo desafios. Porém só ficamos nesse estado de total cumplicidade com o saber se este tem sentido para nós. Caso contrário, somos apenas espectadores do saber do outro. (MARTINS, 2010, p.117)
Eles entraram nesse jogo para jogar, para aprender e descobrir juntos.
Aprenderam e compartilharam experiências e conhecimentos, construíram sentidos,
conceitos, valores. Lembrando Ostrower (1997), é no ato de fazer que o pensar se
torna imaginar criativo. Assim, experimentaram imaginativamente através das
matérias, das formas do corpo e ordenaram mundos – interior e exterior.
Transformaram e foram transformados. Despertaram para experiências do mundo
por meio de seu corpo no mundo.
Os jovens mostraram em suas entrevistas que foram diversos projetos que
proporcionaram experiências estéticas. Relembraram trabalhos dos primeiros anos
de atividades do ateliê, o que foi surpreendente. Deixaram claro que foi pelo fazer,
pela ação do corpo atuante, nas diversas expressões que lhes foi possível perceber
o belo. Lembramos aqui uma das questões levantadas por Almeida (2010) no que se
refere ao acesso da arte para pessoas com deficiência visual: pretende-se o acesso
informativo ou estético?
136
O depoimento dos sujeitos dessa pesquisa deixa claro que foram abertos
canais de acesso para as experiências estéticas. Provocados por uma diversidade
de experiências, ampliaram o modo de sentir as coisas, se enriqueceram e
reorganizaram o esquema corporal. Apresentados a problemas, procuraram
soluções e levantaram novos questionamentos.
“arte só se consuma quando surge uma complicação [...] alguma coisa se tornou visível, que, sem o esforço para a tornar visível, nunca seria vista”. Mas ao passarmos para o domínio da arte devemos pensar na finalidade de se fazer visível, se é apenas para recordar o que se viu ou para revelar o invisível, e esse é o “ponto essencial de toda criação artística”. (KLEE 2001b, p. 61)
Trouxeram à tona os conflitos, as dúvidas e as incertezas. Esses
deslocamentos provocaram novas maneiras de perceber e de estar no mundo.
Aprenderam a navegar por mares nunca antes navegados como cúmplices e
observadores, vivenciando momentos de passagens, em estado de fragilidade,
atenção, procura e indeterminação, momento de percepção do estar no mundo.
Vários projetos possibilitaram novos pensamentos, transformadores, que
levaram a novas reflexões. Percebe-se que o mundo se amplia por meio da arte.
Para que a “aprendizagem seja completa e significativa é necessário que não
esqueçamos nenhum canal sensorial de entrada, pois desta maneira estaríamos
limitando a informação com que nosso cérebro irá elaborar o conceito final que
aprendemos” (SOLER 1999, p.18).
Na perspectiva da multissensorialidade no ensino durante as aulas de arte, o
tato, a audição, o paladar, o olfato e o corpo atuaram como canais de entrada de
informações muito valiosos nas observações. Como vimos pelo depoimento dos
jovens, a descoberta de formas, espaços, matérias e o fazer, proporcionaram uma
experiência estética.
Suas experiências estéticas originaram-se na experiência do corpo no mundo.
Vygotski nos mostrou que o que torna uma pessoa cega ou com baixa visão,
deficiente, é sua exclusão da sociedade, do mundo cultural, do convívio com os
outros. Notamos pelo discurso dos sujeitos da pesquisa que eles foram capazes de
perceber, analisar e reordenar o mundo por meio das outras vias perceptuais que
dispunham. Verificamos a importância do tato, e sua capacidade de criar uma
enorme quantidade de vínculos com o ambiente, adquiridos por meio da experiência.
137
O tato no sistema de conduta do cego, e a visão no surdo, não desempenham o mesmo papel nas pessoas que vêem e escutam normalmente: as obrigações e funções do tato e da visão em relação ao organismo são outras: eles devem criar uma enorme quantidade desses vínculos com o ambiente – vínculos que nas pessoas normais recorrem a outras vias-. Daí é que vem a sua riqueza funcional – adquirida pela experiência – que, erroneamente, acreditavam ser inata própria da estrutura orgânica
33 (VYGOTSKI, 1997, p. 77, tradução nossa).
Por meio das entrevistas e fundado no que foi percorrido durante os quatro
anos de trabalhos no ateliê de artes, podemos notar que os jovens ampliaram a
capacidade de retirar conhecimentos pelo sentido háptico. Respeitando o ritmo mais
lento que requer a percepção pelo tato e retomando a importância da experiência
como a possibilidade de que algo nos aconteça, como nos falou Larrosa (2004), que
pede uma desaceleração, um gesto mais lento, os jovens cegos ensinaram a
importância de viver o corpo no mundo e abriram caminhos para uma compreensão
maior do estar no mundo.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA 2004, p. 160).
Notamos os conflitos, as incertezas e inseguranças que podem trazer as
questões da organização no espaço e sua importância fundante no desenvolvimento
da pessoa cega. Como corpos que habitam o mundo, a percepção da forma por
meio do sentido do tato depende das relações que faz o corpo no mundo.
Vimos com Paulo Freire que a construção do conhecimento é uma relação
dialógica. Nas palavras dos sujeitos da pesquisa foi muito bom ter construído juntos,
a experiência do ateliê de artes foi uma troca de conhecimentos.
Os jovens apresentaram a importância da educação espacial da pessoa com
deficiência visual, e podemos notar que foi a experiência dentro do ateliê de artes,
33
El tacto en el sistema de la conducta del ciego, y la vista en el sordo, no desempeñan el mismo
papel que en las personas que ven y oyen normalmente: las obligaciones y funciones del tacto y de la
vista con respecto al organismo son otras: deben crear una enorme cantidad de tales vínculos con el
ambiente – vínculos, que en las personas normales, recorren en otras vías-. De ahí proviene su
riqueza funcional –adquirida en la experiencia- que erróneamente se tomaba por innata, propia de la
estructura orgánica.
138
fundamentada por teóricos como Ballesteros, Bardisa e Gratacós, e outros citados
no capitulo 2, que proporcionaram uma ampliação do conhecimento de si próprios,
do conhecimento do outro e do mundo ao seu redor, além de serem ferramentas
para o desenvolvimento autônomo, psicomotor e intelectual.
Valorizaram as experiências tidas como inacessíveis à pessoa cega, como o
desenho e a pintura, o que nos faz retornar a Oliveira (2002) que afirma que mesmo
a pintura sendo inacessível à pessoa que não possuí a visão, esta pode desfrutar da
alegria de pintar. Citando Rona Shaw34 “para a criança cega o divertido [do ato de
pintar] não está no produto acabado, mas sim no processo utilizado”.
Percebe-se pelo depoimento dos jovens que os quatro anos de trabalho no
ateliê de artes foram uma construção de saberes e uma experiência coletiva
enriquecedora. Conheceram o espaço, desenvolveram as habilidades de se
locomover com segurança e usar os materiais com independência. Opinavam e
influenciavam no desenrolar dos projetos. A construção dos projetos procurava
refletir as inquietações e a necessidade de ampliação cultural e social de todos que
ali participavam. A cada projeto, durante toda a sua evolução foi observado o que
estava dando certo e o que não estava atingindo os seus objetivos. Os caminhos
sempre eram incertos, por isso sempre foi incentivado o questionamento, a
pesquisa, a curiosidade, a imaginação e a liberdade.
Deixaram claro que no projeto Lygia Clark, a proposta de “caminhar junto”
com a artista, descobrir suas inquietações, e o modo de perceber o mundo foram
uma grande oportunidade para a experimentação da sua poética. Mostraram que
não foram meros observadores de sua arte, mas mergulharam nela. Apropriam-se e
transformaram. Podemos perceber pela fala dos sujeitos que se tornaram pessoas
“empoderadas” no sentido que Freire dá a essa palavra, de pessoa que realiza, que
faz e assim se fortalece. Cada um se apropriou do conhecimento da arte e
expressou de uma maneira única e particular. Nos depoimentos de Paula e Bruno
notamos que foram muitos os projetos que os afetaram, que os fizeram refletir e
transformar. O que nos leva a acreditar no papel da arte como força inventiva e
criadora a ser explorada por todos os sentidos.
34
Rona Shaw. The Creative Arts, in Geraldine T. Schnoll et alii. Foudantions of Education for Blind
and Visual Handcapped Children and Youth. Theory and Practice, p.392
139
Poetizaram o cotidiano, experimentaram e experienciaram a criação artística.
Gratacós (2009) lembrou que os nossos sentidos estão conectados ao mundo
exterior e que a integração destas percepções é o elo inicial para a construção das
imagens mentais.
[...] será preciso despertar a experiência do mundo tal como ele nos aparece enquanto estamos no mundo por nosso corpo, enquanto percebemos o mundo com nosso corpo [...] se percebemos com nosso corpo, o corpo é um eu natural e como que o sujeito da percepção. (Merleau-Ponty, 2006, p. 278):
Merleau-Ponty esclareceu que toda percepção do objeto é também percepção
do próprio corpo, portanto, os jovens ampliam a consciência de si ao ampliarem a
percepção do mundo. Sendo a percepção o caminho da construção do
conhecimento, construíram imagens mentais por meio das sensações, incorporando
e formando representações internas do que lhes acontecia. Ao poetizarem o
cotidiano fizeram emergir imagens poéticas vividas que eram os ruídos do passado
incorporados ao presente que se abriram para o futuro. A poesia esteve presente em
diversas atividades do ateliê nutrindo os espíritos. A poesia foi um facilitador ao
sensibilizar o estar no mundo. Com ela refletiram, analisaram, reavaliaram. A poesia
foi um abrir de portas para um estar mais sensível no mundo. O corpo como
experiência do mundo, percebendo, assimilando e expressando o seu pensamento.
A poesia iniciou e fechou o semestre de 2008. Ela foi a síntese de tudo que
vivenciaram e afirmaram. “Numa imagem poética a alma afirma a sua presença”.
(BACHELAR, 2008, p.6).
Para Merleau-Ponty (2004) não há conhecimento do mundo que não se
produz por meio do corpo. Para os sujeitos dessa pesquisa fica evidente que a
experiência no mundo é também a experiência do corpo, e eles potencializaram
suas capacidades de perceber e serem percebidos. “A percepção é a fusão entre o
pensamento e sentimento que nos possibilita significar o mundo” (MARTINS 2010,
p.107).
Estar desperto para o mundo é estar aberto a ele e a todas as transformações
que possam surgir das relações estabelecidas entre o corpo, o mundo, o espaço, o
tempo, a vida. “[...] o mundo está ao redor de mim, não diante de mim.” (MERLEAU-
PONTY, 2004, p. 33). A experiência artística proporcionou aos sujeitos dessa
pesquisa uma maior abertura para o mundo, para as possibilidades que se
140
apresentavam a eles. Ampliou seus relacionamentos sociais e contribuiu para que
agissem como produtores de suas ações culturais.
A experiência pode abrir o mundo, pois o “homem está no mundo, é no
mundo que ele se conhece” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 6). O homem agindo no
mundo conhece-se e conhece o outro.
141
Considerações finais
O objetivo deste estudo foi o de compreender o significado da experiência de
arte, ocorrida no ateliê, para os jovens cegos. O interesse foi verificar, a partir da
percepção dos jovens participantes dessa experiência, o significado da arte em suas
vidas. A questão norteadora, “a experiência artística pode ampliar o conhecimento
do mundo dos jovens cegos?”, esteve presente em todas as etapas desta
dissertação, sobretudo na reflexão sobre a análise das entrevistas em que os
sujeitos discorreram sobre a experiência ocorrida no ateliê.
Consideramos que os objetivos propostos nesta pesquisa foram alcançados,
por meio dos dados registrados e analisados, que contribuíram para esclarecer
como as ações criativas desenrolaram-se durante as provocações propostas aos
alunos. Nessa análise, pudemos verificar aspectos que ofereceram estranhamento e
surpresas. Estranhamento por serem sempre um desafio a ser vencido, e surpresa
pela descoberta de suas potencialidades.
A pesquisa mostrou que os jovens cegos tiveram acesso à poética da artista
Lygia Clark, compreenderam sua proposta e foram capazes de inventar novas
formas de expressão. Evidenciou-se o movimento evolutivo criado na ação
expressiva que seguiu a própria evolução da artista. Se os primeiros trabalhos foram
quase de montagem de um quebra-cabeça, os últimos foram marcados pela
invenção, novas formas e encaixes. Por meio do discurso durante as entrevistas e
algumas fotos do ateliê foi possível perceber a emoção da fruição artística por meio
de gestos, da voz, da respiração que se alterava e do corpo que dançava. Havia um
pulsar muito grande no momento da criação. Pode ser observado que o processo de
exploração de materiais seguiu um ritmo evolutivo. Em um primeiro momento, na
exploração das obras concretas, como a Composição nº5, foi necessário o incentivo
à exploração e à descoberta de formas e materiais com os quais ela era feita. A
partir dos casulos, a exploração tornou-se bastante curiosa e inventiva, e o ritmo do
trabalho ficou bem mais acelerado. Além de estarem explorando as dobras do papel,
também exploravam materiais que podiam facilitar o vinco e descobriam novas
propriedades da matéria. Quando as obras tornaram-se mais orgânicas, elas
forneceram um impulso adicional à imaginação, maior do que na exploração do
espaço das primeiras obras. Conforme foram se desenvolvendo as propostas da
artista, mais os jovens desvincularam-se do educador, no sentido de precisar de
142
incentivo para a exploração, e mais foram ficando íntimos do vocabulário e da
poética da artista.
A aproximação do trabalho da artista Lygia Clark com as carências,
necessidades e inquietações de nossos alunos mostrou-se muito frutífera, pela
experiência que lhes foi propiciada de acesso ao seu universo. Surge, no entanto, a
questão: foi a obra de Lygia que propiciou esse desdobramento, essa potencia de
ações? Seria possível a construção de significados com outros artistas? Esse
diálogo que foi construído entre os jovens cegos e a obra de Lygia pode ser
ampliado para outras expressões artísticas?
Os depoimentos contidos nas entrevistas, dos jovens sujeitos dessa pesquisa,
assinalaram momentos de descobrimento e também de incertezas na experiência do
ateliê, nos quais surgiram dúvidas e questionamentos.
O ateliê trabalhava com projetos que eram propostos aos alunos. Assim, os
alunos tinham que explorar as propostas, as ideias que surgiam a partir do projeto
original; não eram apenas o livre fazer ou a livre expressão. O ateliê trabalhava com
as idas e vindas que podem gerar uma discussão de um projeto apresentado para
um grupo.
A análise das entrevistas permite afirmar que a experiência artística ampliou o
mundo desses jovens. Cada um à sua maneira enfrentou suas dificuldades, seus
temores, suas angústias e incertezas, criando um desejo de saber mais, de
descobrir e inventar.
Cada um se apropriou do conhecimento da arte e expressou de uma maneira
única e particular.
Para os jovens, a possibilidade de criar mundos, trabalhar em equipe e
compartilhar saberes mostrou serem estas experiências enriquecedoras de suas
vidas.
No capítulo 2, ao refletirmos sobre os materiais adaptados, apresentaram-se
questões a serem estudadas com mais profundidade, relativas aos próprios
materiais e ao acesso às obras de arte. Novos estudos acerca da melhor forma de
se fazer materiais devem ser feitos, sempre buscando o referencial da pessoa cega,
pois somente ela será capaz de indicar o melhor caminho para compartilharmos o
conhecimento do mundo. Como elaborar materiais de arte que sejam significativos à
pessoa cega? Que tipo de obra de arte pode e deve ser adaptada? Esse é, com
certeza, um campo instigante que ainda tem muito a ser explorado.
143
Aprendemos, muito com Masini e Ormelezi a compreender como o cego
percebe o mundo. Ler seus artigos e livros foi fundamental para que nosso modo de
agir como professora de pessoas com deficiência visual fosse mais atento.
Merleau-Ponty nos conduziu a compreensão de que é por nosso corpo que
compreendemos o mundo e que devemos estar atentos ao que percebemos do
mundo para além da visão. Com Merleau-Ponty nos poetizamos. Procuramos
respostas nas poesias, nas letras de música, nas obras de artes para as questões
que seus textos nos provocavam. Ao nos poetizar foi possível sentir a alma vibrar e
perceber os sussurros do mundo.
Modificamos nossa postura para um “estar entre muitos” que Mirian Celeste
Martins sempre prega. O estar entre para buscar uma experiência estética, vivendo
juntos intensamente nossas descobertas.
Adentrar ao universo da pessoa com deficiência visual por meio da arte
constituiu um grande desafio. A aventura da construção do conhecimento junto com
a pessoa com deficiência visual se apresentou como um dos maiores presentes que
a vida nos ofereceu. Lygia Clark se mostrou uma grande companheira nesta viagem.
Quando iniciamos nossa jornada, não conhecíamos profundamente suas obras e
não sabíamos ao certo como e onde iríamos atracar. Foram os questionamentos
levantados durante as aulas e as provocações de Lygia que instigaram a construção
do conhecimento.
Buscamos diferentes teóricos para compreendermos o que seria a
experiência, para entender que ela é aquilo que nos transforma que nos move para
conhecer mais. Embarcamos junto com os alunos na nossa nau rumo ao
desconhecido para compreender as suas experiências e deles saber pelo corpo,
pelos sentidos. Aprendemos que para pessoa cega a experiência estética é
multissensorial, que é através do sentido háptico que ela vai elaborando a sua
compreensão de beleza, que não é a mesma beleza que a visão produz. São
belezas distintas que temos que aprender a analisar e a refletir sobre elas.
Aprendemos a construir juntos conhecimentos, respeitar ritmos, desacelerar e
observar. Tornamo-nos mais observadoras das texturas, formas, pesos,
movimentos. Descobrimos nossas mãos curiosas, na busca de descobrir novos
caminhos e ferramentas para poder compartilhar conhecimentos. O olhar se tornou
mais atento aos detalhes e o vocabulário se aprimorou.
144
Cometemos enganos, e aprendemos com eles. Sofremos para conseguir sair
da posição de professora para uma perspectiva de pesquisadora. Foi um desafio
que nos instigou à busca de compreender quem é essa professora. Quem é essa
pesquisadora? O que separa a professora da pesquisadora? Quais os atritos e
ruídos que ofuscaram a construção do conhecimento na pesquisa? Como é o seu
perceber e o relacionar? Quais são os recursos que auxiliam a construção do
conhecimento junto aos alunos? O que provoca? O que instiga?
Chega-se ao final da pesquisa sobre a experiência da arte para jovens cegos
com uma contribuição sobre o pensar arte e a pessoa com deficiência visual. Neste
sentido, teríamos a dizer para professores que ensinar arte para as pessoas cegas é
uma experiência enriquecedora que nos ofereceu abertura para uma experiência
estética que abarcava todos os sentidos. A oportunidade de trabalhar com pessoas
com deficiência visual nos enriqueceu como seres humanos, e nos ofereceu a
oportunidade de perceber o habitar o mundo como agente de uma relação com o
outro, criando oportunidades de refletir e de sair de nós para nos reconhecermos. A
experiência dentro ateliê de artes para pessoas com deficiência visual, nos ensinou
a perceber as pessoas não pelas suas imperfeições, mas pelas suas
potencialidades. Acreditamos que o ensino da arte para as pessoas cegas é
fundamental para compreensão do mundo e abertura para possibilidades que a vida
apresenta. Lembrando que ensinar é uma construção conjunta onde “quem ensina
aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”. (FREIRE, 1996, p.23).
Espera-se que esta dissertação seja um estímulo a novas pesquisas e
descobertas. Fica clara a importância de se dar oportunidades à pessoa deficiente
visual de experienciar a arte em suas várias formas de expressão. Pensar arte em
um processo educativo é oferecer oportunidade de poetizar o cotidiano. É preciso
valorizar, potencializar as capacidades dos alunos cegos e melhor compreender
suas necessidades, interesses e habilidades.
Há muito que se trabalhar, há muito que estudar. Pensar arte para pessoas
com deficiência visual não é pensar artes visuais, é pensar arte como expressão
humana, como algo que nos é inerente e que deve ser acessível a todos.
145
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152
Anexo 1 – Questionário básico para entrevista com os alunos
O que você lembra do ateliê de artes?
O que você lembra do projeto Lygia Clark dentro ateliê ?
Você pode dizer qual trabalho você mais gostou de fazer?
O que você descobriu?
O que foi mais difícil?
O que você não gostou?
Como foi participar da exposição feita pela Associação O Mundo de Lygia Clark?
Como foi a exposição dos trabalhos para os pais e amigos?
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Anexo 2 – Transcrição das entrevistas com os alunos
Entrevista 01 10 2010
A entrevista foi marcada para as 14 horas. Paula chega a entrevista às 14:30. Paula
tem um grupo de coral à sua espera para dar aula. Então, embora tenha sido
agendado com a coordenação do Projeto o horário, este já estava comprometido
com outras atividades. Além disso, parece que a direção não conversou com o outro
entrevistado sobre nosso encontro.
Paula mostra-se bastante feliz em me encontrar.
Entramos na sala para dar início à entrevista. Mostro a localização do gravador.
AC – o gravador está aqui à sua frente.
Bom, vou te explicar porque que eu estou fazendo esta entrevista. Ela faz parte do
meu trabalho de dissertação de mestrado. A minha pesquisa está baseada no que
aconteceu no ateliê de artes durante o tempo que trabalhamos juntos. Eu fiz um
recorte em cima do trabalho com a Lygia Clark. Então, tudo que eu faço, eu faço
pensando muito em vocês, no quê nós construímos, o que nós descobrimos. Enfim,
tudo que foi pensado. Eu escolhi você e o Bruno pela proximidade etária e por
serem cegos congênitos. Desta forma, poderemos fazer uma análise interessante
sobre se a arte foi realmente importante para vocês ou não. A pergunta da minha
pesquisa é se a experiência artística pode ampliar o conhecimento do mundo dos
jovens cegos.
Eu gostaria de saber, como é que você se lembra e o que você se lembra do ateliê
de artes. Antes de você responder, eu trouxe duas gravações das nossas aulas que
eu gostaria de te mostrar alguns trechos antes. Elas são muito cumpridas, mas só
para lembrar um pouco como foi. Tem um primeiro momento que é quando
começamos a trabalhar. O Othon está junto, foi um momento bastante interessante.
Você tinha faltado na aula anterior e, ele e a Julia estão te mostrando o trabalho que
desenvolveram. Deixa-me ver se está bem alto. Se não estiver você me fala. Você
quer escutar?
Paula – claro, é bom recordar, não é.
Começa a passar a gravação da aula do dia 18 de março de 2008, mas está um
pouco baixa e fica difícil de entender. Não fui o bastante clara em relação à data da
aula o que acredito dificultou a compreensão da gravação.
AC – está lembrando disso?
Paula – eu não estou conseguindo escutar direito.
AC – ele está falando baixo, não é?
154
Escutando a gravação.
AC – isso foi quando nós fomos fazer um passeio lá fora de explorar o espaço
Paula – ah, lembro...
Paula – ah, lembrei...
AC – então, essa foi a primeira aula que começamos a conversar sobre Lygia Clark.
Primeiro, fizemos todo um trabalho com a questão do medo. Depois, começamos a
estudar o espaço, onde a gente estava para depois pensar na Lygia Clark.
Entra a diretora da associação, com o Bruno. Ela quer saber se ele pode fazer a
entrevista naquele horário e a Paula volta mais tarde, pois ela tem aula com a sua
turma de coral.
AC – Paula, o Bruno chegou. Eu havia pensado em fazer a entrevista com os dois
juntos, mas depois achei que um iria influenciar o outro. Se for possível, mais tarde
nós três nos reunimos, mas por enquanto eu queria que cada um tivesse sua própria
recordação.
AC – oi Bruno.
Bruno – oi. Tudo bem?
AC – tudo bem?
Bruno – faz tempo...
AC – muito tempo. Senta aí querido. Então vamos mudar a história. Então Bruno, é
o seguinte, você sabe porque eu estou aqui?
Bruno – porque você falou que ia fazer um livro não é?
AC – não. O livro eu já mostrei aquela vez, não é? Você sabe por que você veio aqui
conversar comigo?
Bruno – não.
AC – não? Então é o seguinte, Bruno. Eu estou fazendo um curso de mestrado no
Mackenzie, e eu estou escrevendo sobre vocês. Eu estou estudando o trabalho que
desenvolvemos aqui, juntos naqueles anos no ateliê e particularmente no último
trabalho que fizemos com a Lygia Clark.
Minha pergunta é: a experiência artística pode ampliar o conhecimento de mundo de
jovens cegos.
Eu estou estudando você e a Paula, porque os dois têm idade parecida e os dois
nasceram cegos. Nunca enxergaram na vida.
155
Gostaria de ter feito a pesquisa com todos, mas como ia ficar muito grande, nós
tivemos de diminuir.
Eu estou aqui para conversar com vocês porque eu quero escutar o lado de vocês.
Quero saber se o ateliê foi importante mesmo. O que vocês se lembram? O que
modificou a sua vida ter tido essa experiência com aula de artes?
Você se lembra que eu sempre gravava, sempre tirava fotos e filmava. Eu recuperei
essas memórias, que eu tinha guardado de vocês e achei algumas gravações suas.
Acho seria interessante, para começarmos, mostrar um pedaço. Assim, você pode
se lembrar de como foi. Você gostaria de escutar?
Bruno – Sim.
Bruno – Eu estou falando de como andar no ambiente, não é?
Bruno – Eu lembro. Estávamos no jardim.
AC – Depois você fez um desenho do jardim.
Bruno – O jardim da frente, não é?
AC – Agora você estava pergunta porque eu gravava as coisas, lembra?
Bruno – Acho que foi em 2007.
AC – 2008
Bruno – 2007 – 2008
AC – Você está em que ano agora Bruno?
Bruno – Primeiro.
AC – Já está no colegial! Que bárbaro!
Bruno – Mas está meio difícil, não é.
AC – Olha, é isso aqui que eu queria te mostrar.
Bruno – foi aquele dia que eu desenhei um passarinho? Ah, não... eu lembro desse
trabalho aí.
AC – Esse foi o primeiro trabalho que você fez em grupo.
Bruno – Eu estava pensando que era aquele texto da agulha e da linha.
AC – É o texto da agulha e da linha.
Bruno – É isso mesmo.
156
Bruno – Ah, está falando do livro O Homem nu. Eu lembrei, acabei de lembrar. É o
Homem nu, eu lembro.
AC – isso. Agora você está descrevendo o seu desenho.
Bruno – eu estava pensando que era o jardim da frente, mas não é não, não é?
AC – É o jardim da frente.
Bruno - Lá do Projeto, quer dizer, daqui mesmo. Ah, estou me lembro que tinha
desenhado isso.
AC- Então, isso foi antes de começarmos o trabalho com a Lygia Clark. Então me
fala um pouco como está a sua vida Bruno. Quer dizer que você está no primeiro
ano do ensino médio?
Bruno – Eu estou no primeiro ano do ensino médio.
AC – Está difícil?
Bruno – Bom, esta difícil. Matemática eu estou precisando da Rita. A Rita é uma
professora de matemática que dá aula aqui e ela me ajuda.
AC –Você está com orientação e mobilidade também?
Bruno – Estou. A Sumaia está trabalhando com o espaço interno. Não, espaço
externo, que é aqui dentro.
AC – Espaço externo é fora, interno é dentro.
Bruno – É o espaço interno que ela está trabalhando. Ela já me levou lá embaixo
para descrever tudo o que tinha na sala. Lembra da sala da Rosanna? Na sala da
Rosanna, na sala de relaxamento.
AC – Mas isso você já sabia, não sabia?
Bruno – Sabia não é, por que já conheço aqui. Faz quatro anos.
AC –Faz um tempão.
Bruno – Então, eu já sabia daqueles espaços. Já sabia o que tinha. Aí eu fui
descrevendo.
AC –Como é que está na escola? Está com bastante amigo? Como é que está?
Bruno – Bom, lembra da apresentação de 2008 que a gente fez aqui? Que eu trouxe
uns amigos para assistir?
AC –Eu não me lembrava mais. Quem que veio naquela vez?
Bruno – A Denise e a Gabriela.
157
AC – Isso é mesmo. Elas vieram para a apresentação do final do Lygia Clark, não é?
Bruno – Foi, e depois no final de 2009 elas também vieram e também o meu amigo
Leandro.
AC – E eles continuam seus amigos?
Bruno – Claro, não é?
AC – Que ótimo!
Bruno – É legal porque eu já fiz afinidade fácil com eles. Acabei gostando. Aliás, eu
e o Leandro já temos uma banda.
AC – Não me diga!
Bruno – Tenho, eu tenho uma banda.
AC – Que bacana. Você toca bateria?
Bruno – Toco.
AC – Quando é que você vai me convidar para escutar?
Bruno – Sabe, dia 18 é meu aniversário.
AC – Agora?
Bruno – E, dia 23 vai ter uma festa lá em casa.
AC –E você vai tocar?
Bruno – Vou. Não sei se você pode ir nesse dia?
AC – Você me dá o endereço que eu vou. Parabéns. Vai ser um baile? Você ainda
vai ser DJ? Porque tem uma gravação que você diz que vai ser DJ
Bruno – Ainda estou com essa idéia.
AC - Bruno, agora eu queria que você falasse um pouco do que se lembra e como
se lembra do ateliê de artes.
Bruno – Do ateliê?
AC –O que você se lembra do ateliê de artes?
Bruno – Mas, do que tem lá ou o que eu fazia lá?
AC – Do que você fazia.
Bruno – Com você ou com a Marisa?
AC – Comigo.
158
Bruno – Eu lembro já que a gente fez o trabalho da Lygia Clark. Eu lembro que a
Lygia Clark não desenha, acho que ela brincava com os espaços. E uma vez, nós
fizemos um bicho. Eu não me lembro de que material. Ele tinha articulação, ele se
mexia. Eu me lembro desses bichos.
AC – Você lembra quantos bichos fez?
Bruno – Eu fiz dois ou três bichos.
AC - O que você se lembra do projeto da Lygia Clark.
Bruno – Eu me lembro que ela se preocupava com os espaços, ela não se
preocupava em desenhar coisas. Ela brincava com a forma geométrica. É o que eu
lembro.
Ac –Você se lembra o que você gostava de fazer e o que não gostava?
Bruno – O que eu gostei mais de fazer foi o trabalho dos bichos. Eu gostei muito.
AC – Você lembra dos trabalhos dos casulos, de dobrar os papéis?
Bruno – Gostei também, achei interessante. Casulo. O que foi mesmo? Nós fizemos
os casulos de que mesmo? Eu não me lembro.
AC – Você se lembra que nós dobrávamos o papel?
Bruno – Eu lembro que a gente fez um casulo, mas não me lembro do que foi.
AC – Foi de papel. Você lembra que ia dobrando o papel e fazia várias dobras e
ficava encontrando ou que era dentro e o que era fora?
Bruno – Lembro. Foi legal.
AC – Você se lembra das obras da Lygia que tinha que montar desmontar?
Bruno – Qual?
AC – As “superfícies moduladas”, “composição nº 5”. Nós montávamos e
desmontávamos, elas estavam em uma placa de alumínio. Eram várias formas.
Bruno – Formas geométricas?
AC – Isso.
Bruno – Nós montávamos e desmontávamos, fazíamos várias coisas com a forma
geométrica não é?
AC – Depois vocês fizeram um trabalho. Vocês colaram, vocês cortavam no E.V.A e
colavam no papel. Você lembra?
159
Bruno – Eu lembro de um trabalho que fizemos com E.V.A.. Acho que foi esse
mesmo.
AC – O que você lembra?
Bruno – Eu lembro isso. Que a gente cortava as formas e colava em um papel.
AC – Você lembra da sua poesia?
Bruno – Poesia...
AC – que a gente fez junto com a Rosanna, poesia concreta?
Bruno – Aquela da bola?
AC – Isso.
Bruno – Ah, bola. Aquela, bola, de fora, bola fora. Que eu tinha falado para você
gravar um gol do Santos. Que eu falei para por uns efeitos para o eco, para a
torcida. Eu me lembro disso. Eu lembro até da poesia que o Vinícius fez do
“Paralelepípedo”.
AC – Isso. Só do Vinicius que você se lembra?
Bruno – A Paula fez a poesia do chocolate, que tem aquele barulhinho, tem “I eat”, e
barulho da maçã e o monstro, UAHHHH.
AC – Da Lygia Clark então você gostou mais dos bichos? Eles eram feitos de
madeira. Você lembra que a gente montava na madeira com fita crepe e ia
montando?
Bruno – Eu não estava me lembrando do material. Eu não me lembrava da madeira.
Eu só lembrava que a gente fez não do material
AC – O que mais que você consegue lembrar?
Bruno – Eu lembro que uma vez que a gente viu uma obra do Antonio Parreiras.
Aquela obra do caminho, que tem umas pedras e tem uma mulher que está com
medo e ela está no meio encolhida.
AC- A Ventania. Isso, é mesmo Bruno, você lembrou direitinho do Antonio Parreiras,
que legal! O que mais você consegue lembrar?
Bruno – Bom eu lembro, que quando foi no primeiro dia aqui.
AC – No primeiro dia que você veio aqui?
Bruno – Na primeira apresentação que a gente fez um trabalho que tinha aquela
música do eco , das taquaras.
AC –A exposição dos cantos. Aquela exposição onde cada canto tinha uma coisa?
160
Bruno – É
AC – Como é que era?
Bruno – Cada canto tinha um desenho, se eu não me engano.
AC- Eram desenhos?
Bruno – Não desenho, não. A gente tinha feito taquara. Acho que a gente pegou uns
bonecos e montou em um canto.
AC – Cada canto era uma coisa. Tinha o canto dos nossos medos. Você lembra o
que era o canto dos nossos medos?
Bruno – Eu não me lembro de muita coisa.
AC – O que gostou mais de tudo que você lembra? Da Lygia Clark ou o que for
Bruno – Da poesia concreta.
AC – Da poesia concreta. Foi o que você gostou mais?
Bruno – Gostei porque foi mais trabalhoso. A gente fez muito bem aquele trabalho,
que colocou tudo perfeito. Ficou tudo perfeito.
AC – Foi lindo mesmo aquele trabalho. Do bicho você também gostou. Você gostou
mais do bicho de madeira ou do bicho mole? Lembra do bicho mole?
Bruno – Eu lembro foi com papel não é?
AC- Foi com EVA.
Bruno – Ah, tá com EVA.
AC - Lembra que o bicho ficava enrolado em você? Que a gente colocou ele
enrolado em seu pescoço?
Bruno – Porque bicho com EVA, assim mole dá para mexer mais não é? Madeira
não mexia muito
AC – Madeira a gente tinha que colocar articulações, no mole não precisava. E você
se lembra da exposição?
Bruno – Da exposição da Lygia?
AC- A que veio o pessoal lá do Rio de Janeiro?
Bruno – Eu lembro, mas eu não lembro o que a gente fez.
AC- Não lembra nada Bruno?
161
Bruno – Eu só lembro que a gente ficou em um colchão. Eles mostraram uns bichos,
e ficaram falando da Lygia Clark.
AC – Não precisa ficar nervoso. Não é uma prova. Eu só quero saber o que você
lembra e o que você não lembra. Se você não lembra tudo bem.
Bruno – Eu não lembro que lugar que ela estudou.
AC – Quem?
Bruno – A Lygia Clark
AC – mas você não precisa se lembrar do lugar onde ela estudou. Você lembra que
as pessoas vieram aqui para a exposição e trouxeram um monte de material que
vocês ficaram experimentando um monte de coisas. Você lembra?
Bruno – Só que eu não me lembro dos materiais.
AC- Vamos tentar lembra? Nas mesas, lembra que você experimentou uma luva,
colocava a luva e segurava algumas coisas com ela. Tinha outra coisa que tinha um
saco.
Bruno – Tinha uma coisa que tinha que puxar, não é?
AC - Tinha o elástico.
Bruno – Isso, isso, isso.
AC – lembra da rede que colocava a rede em cima de todo mundo que ficava
puxado de um lado para outro. O que mais que tinha? Dê-me a sua mão. Tinha um
elástico que grudou você e a mão do Vinícius e vocês ficaram brincando.
Bruno – Nós ficamos ficou puxando, não é.
AC – um puxava de um lado o outro puxava do outro. Que mais que tinha? Tinha os
bichos que ela fez, só que os bichos dela eram de metal e o de vocês eram de
madeira. Tinha os casulos dela também eram diferentes dos nossos. O nossos eram
de papel e o dela era de um outro material que eu não me lembro qual era. Nossa,
ficamos horas. Depois nos ficamos deitados no chão e eles começaram a fazer
umas massagens...
Bruno – no chão ou no colchão? Eu lembro que era no colchão.
AC – era um tapete. A gente colocou um tapete no chão e vocês ficaram deitados e
a gente passava um saco cheio de ar , água,. Semente.
Bruno – pedra, semente, água.
AC – essas coisas foram legais para você? Você ter vivido essas coisas do ateliê de
artes mesmo que você não lembre profundamente das coisas. Você acha que foi
162
legal? O que você gostava, se você gostava de vir ao ateliê ou se não gostava.
Porque não gostava.
Bruno – eu gostei por causa que queira saber mais,não é? Eu queria, por causa do
meu conhecimento, queria ampliar, não é. Eu queria saber porque a Lygia Clark fez
essa obra, como o autor fez essa obra.
AC – você acha que as coisas que a gente fazia no ateliê, você conseguia entender
ou tinha alguma coisa que você não conseguia entender. O que você gostava de
fazer no ateliê e o que você não gostava. Pode ser qualquer coisa, e não precisa
ficar nervoso.
Bruno – tá.
AC – você pode falar o que quiser. Você tem que ser sincero.
Bruno – O único trabalho que eu não gostei muito é o da massinha. Tinha que ficar
mexendo assim. É que eu não gostava de mexer assim com a mão.
AC – você não gostava de mexer com a mão ou não gostava de mexer com a
massinha? Se você não gostar de mexer com a mão, como você vai fazer?
Bruno – não, mexer com a mão não. Com a massinha.
Risos.
Bruno –Foi o único que eu não gostei.
AC – Qual massinha era? Aquelas que a gente fazia de farinha?
Bruno – Que a gente fez de farinha e depois colocou no forno.
AC – Nossa, bem no começo. Foi um dos nossos primeiros trabalhos. Aliás você
odiou mesmo, ela ficava grudada. Odiou. Porque a massa ficava grudada na mão,
não é?
Bruno – É. Depois nós colocamos no forno e ela endureceu. A gente colocou sal.
AC – Nós comemos?
Bruno – Eu comi uma.
AC – Comeu? Estava boa?
Bruno – Estava muito salgada.
Risos
AC – E o que você lembra que você gostou, fora a poesia concreta, que você já
falou que foi um bom trabalho. O que mais você se lembra do ateliê?
163
Bruno – Eu gostava de pegar o papel e uma caneta e desenhar coisas, não é.
Coisas simples que tem no céu, na terra.
AC – Como isto te ajudou a perceber mais o mundo? Você acha que o ateliê de
artes te ajudou a perceber melhor o mundo?
Bruno – Me ajudou muito. Me ajudou até como representar as coisas, que eu não
conseguia desenhar, não conseguia fazer nada. Graças ao ateliê me ajudou muito
na parte de desenhar. Representar o mundo.
AC- você acha que você ficou mais curioso, ou já era igual, você sempre foi curioso?
Bruno – Não sei, parece que eu fiquei mais curioso. Acho que mudei. Antes eu não
era muito curioso, agora esse interesse me despertou mais. Eu não era muito
curioso acabei ficando.
AC – E o que era muito difícil para você Bruno? Lembra alguma coisa que era muito
difícil e você ficava aborrecido. O que era difícil?
Bruno – No ateliê não é? O que era difícil assim, como é que fala...
AC – Fique calmo, a gente não tem pressa. Você pode falar do jeito que quiser que
vou entender. Não é prova. É só uma conversa. Voce só está me ajudando. Esta
conversa que a gente está fazendo é porque foi tão importante esse trabalho que a
gente fez aqui, que só vai me ajudar a escrever melhor sobre vocês e, a gente poder
ajudar outras pessoas a fazer aulas bacanas como as que a gente tinha. Talvez até
melhorar as aulas, entendeu? Então é bom eu saber o que foi bom e o que não foi
bom.
Bruno – Era difícil na escola, quando o professor passava desenhos e eu não
conseguia fazer. Isso era difícil, e eu consegui superar. Agora se eu pegar alguma
coisa, um papel, eu vou saber fazer alguma coisa.
AC – Deixa eu ver se eu entendi o que você está querendo falar. Você está falando
que antes de você vir fazer o ateliê, você não conseguia fazer as aulas de artes é
isso?
Bruno – Isso.
AC – E agora, depois que você freqüentou o ateliê de artes, você acha que
consegue fazer melhor as coisas que se pede na aula de artes.
Bruno – Sim.
AC – Você tem aula de artes ainda?
Bruno – Eu tenho, mas às vezes o professor falta.
AC – E você agora no colegial tem história da arte, não é?
164
Bruno – É história da arte.
AC – O ano passado você tinha aula de artes na escola?
Bruno – Sim.
AC –Você tinha o caderno de artes?
Bruno – Tinha.
AC - Como você acompanhava as aulas de artes com o caderno de artes?
Bruno – Algumas vezes o professor pede para trazer o material de desenho, e
outras ele pedia para fazer uma poesia.
AC – A escola deu um caderno de artes em Braille?
Bruno – É, na verdade deram uma apostila de arte em Braille.
AC- E era legal?
Bruno – O problema é que a apostila é muito repetitiva nas perguntas. Mas era legal.
Eu gostei.
AC- Continua a fazer poesia?
AC – Depois daquela da bola, você fez mais poesia?
Bruno – Não. Só quando o professor pede.
AC – Você fez mais uma poesia quando o professor pediu?
Bruno – Eu fiz uma. Não ficou muito legal, mas a poesia é “a chuva”, mas eu não
lembro agora o que eu escrevi. A poesia era só sobre a chuva.
AC - O que você queria falar sobre a chuva?
Bruno – Que a chuva é um dia nublado... um dia nublado que o céu não está
azulado.
Risos
AC – Combinou, não é?
Bruno - É sim.
AC – Naquela exposição que você convidou os seus amigos, que eles vieram ver os
seus trabalhos. Como foi? Foi legal, você se sentiu orgulhoso? Foi bom mostrar os
trabalhos?
Bruno – Foi bom mostrar os trabalhos, porque, assim as pessoas vêem que
podemos fazer as coisas. E daquela apresentação para frente só foi melhorando.
165
AC –As pessoas estão acreditando mais na sua capacidade?
Bruno – Nós temos capacidade para conseguir nosso objetivo.
AC – O que você descobriu com tudo isso? O que ficou para você? Quando você
lembra do ateliê de arte, como é esse sentimento de lembrar?
Bruno – Eu lembro que se não fosse artes eu não sei como seria na escola. Porque
as aulas de artes foram uma experiência muito boa para mim. Ficou assim, a arte é
muito importante para nós e é mais importante para você representar o que você
queira, no papel.
AC – No papel ou não , não é?
Bruno – É
AC - Vocês tem ido ainda em exposições de artes? Vocês têm freqüentado museus
galerias, alguma coisa assim de artes, ou vocês nunca mais foram?
Bruno – Nós fomos à Pinacoteca.
AC – Aquela vez comigo ou vocês foram mais uma vez?
Bruno – Neste ano, a gente foi na Pinacoteca de novo.
AC - Vocês foram na galeria tátil?
Bruno – Fomos na galeria tátil. Nós vimos um vestido que mulher de antigamente
usava. Um vestido comprido. Não tinha...como é que fala? Os autores, na época
antiga eles se pintavam e eles pediam para os outros pintarem eles.
AC – As pessoas ricas contratavam os pintores para pintarem elas. É isso?
Bruno – Isso. É que eu não me lembro do nome disso. Eu acho que era retrato,
retrato alguma coisa. Auto-retrato. Auto-retrato e retrato. Auto-retrato é quando o
autor, o pintor se pinta...
AC – E o retrato eu pinto você. Vocês viram isso?
Bruno – Sim, a gente viu isso.
AC – Quem que levou vocês. Você lembra?
Bruno – foi a diretora aqui do Projeto. Fomos eu, a Marisa que é a outra professora
de arte, a Paula, o Vinicius e a Kika.
AC - A Kika dá aula aqui ainda?
Bruno – Ela dá aula de informática.
AC –E você tem aula de informática?
166
Bruno – Ainda não.
AC –Porque?
Bruno – Não sei. Ou é por falta de tempo, porque eu tenho muito trabalho de escola
para fazer
AC – O que você faz aqui no Projeto?
Bruno – Quarta-feira eu estou fazendo inglês com a professora Denise. Quinta-feira
eu faço matemática, química e física com a professora Rita e sexta-feira eu tenho
aula de orientação e mobilidade e depois de música.
AC- Hoje você tem aula e orientação e mobilidade?
Bruno – Tenho.
AC – E tem música com quem?
Bruno – com a Paula.
AC – Ela é boa professora?
Bruno – Ela é muito boa professora.
AC – Elas te ensina a tocar bateria? O que ela te ensina?
Bruno – Ela me ensinou já a tocar o pandeiro...
Bruno – O pandeiro se toca com o polegar com o dedo e com dedo e fica assim
Começa a batucar como se tivesse tocando pandeiro, na mesa.
Risos
AC - Está vendo como você gosta de mexer com a mão. Você não gosta de mexer
com a mão na massinha.
Risos
Bruno – Isso. Falou tudo. Ela já me ensinou as sete figuras musicais.
AC - Quais são as sete figuras musicais?
Bruno – A semibreve; que o ritmo dela é assim: batuca na mesa. Tem a mínima que
faz assim: batuca na mesa. Não semibreve faz assim: canta. E a mínima faz: canta.
Semínima que faz: batuca na mesa e canta. Aí vem a colcheia que faz: batuca na
mesa e canta. Depois vem semicolcheia que faz o dobro da colcheia que faz: batuca
na mesa. E vem a fusa que fazi o dobro que, ela faz assim: batuca na mesa, e a
semifusa que é assim faz: batuca na mesa.
167
AC - Que bacana.
Risos
Bruno – Já me perguntaram quantas mínimas cabe na semibreve? E eu falei duas
não é, porque ela é metade da semibreve. Vai indo de quatro em quatro a semínima.
Na semibreve são quatro, a colcheia são oito. A semicolcheia, dezesseis. A fusa, 32
e a semifusa 64.
AC - Quanta coisa você já sabe. E você vai fazer faculdade de música também?
Bruno – Vou.
AC – e o seu irmão está bom?
Bruno – Ele está fazendo aula de canto com a Paula.
AC - Hoje também?
Bruno – Toda sexta-feira.
AC - E a sua mãe também?
Bruno – minha mãe não gostou muito e saiu.
Risos
AC – Não é com ela isso.
Bruno – Só ficou meu irmão mesmo. Meu irmão queria fazer aula de canto.
AC- você queria falar mais alguma coisa para mim Bruno?
Bruno – Só tenho a agradecer. O trabalho foi muito bom. Acho que só de pensar,
acho que a gente não ia conseguir, não ia saber o que era arte mesmo.
AC – Agora vou chamar a Paula. Vou entrevistá-la e depois se der tempo nós três
vamos conversar mais sobre esse assunto. Depois se vocês quiserem eu passo
para vocês escutarem e as gravações e se vocês quiserem podemos marcar um dia
para conversar um pouco mais. Tá bom?
Bruno – Está.
AC – Bruno foi um prazer te ver de novo, moção, grande. Parece que você cresceu
mais, não é?
Bruno - Eu dei uma esticada.
AC – Obrigada Bruno, foi muito bom.
Bruno – prazer em revê-la.
168
Paula 01 10 2010
AC – eu estava conversando com o Bruno, e foi super legal. Se der tempo a gente
senta e nós três ficamos trocando algumas idéias, ou a gente marca para outro dia,
se vocês quiserem escutar as fitas.
Paula – Tudo bem dá tempo. Não tem problema não se eu não der aula para ele.
Será legal nós dois aqui.
AC - Eu também acho que seria uma experiência bastante interessante.
Paula – imagina Ana. Não tem problema ele está ótimo.
AC –Paula, você vai querer escutar de novo?
Paula – não. Vamos começar e depois eu escuto. Pode ser? Vamos começar a
minha parte.
AC - Você quer escutar aquela gravação que já tinha começado ou já vamos
conversar sobre o ateliê?
Paula – vamos conversar sobre o ateliê. Pode ser primeiro?
AC -. Pode.
Paula – Eu me lembro de muita coisa.
AC – você lembra, eu sei que você lembra. Você tem uma memória ótima.
Paula – Posso contar de antes do ateliê da Lygia Clark?
AC – o roteiro é assim. Você fala tudo o que você quiser. É interessante falar um
pouco sobre o que foi o ateliê da Lygia Clark, mas é interessante você contar o que
você se lembra do ateliê. O que foi importante para você. O que era bom, o que não
era bom. Enfim, todas essas coisas para gente fazer uma análise. Porque a gente
está refletindo sobre essa experiência. O que foi essa experiência do ateliê de artes.
Se ela foi significativa, se ela não foi. Se ela foi capaz de transformar a vida de
vocês ou não. Pode falar o que você quiser. Você quer que eu faça a pergunta?
Paula – quero.
AC – o que você lembra e como foi o ateliê de artes para você?
Paula - Eu lembro muito bem do ateliê de artes, mesmo antes de Lygia Clark, todas
as experiências que eu tive. Eu me lembro de muita coisa. Teve bastante significado
a arte para gente. É o que você está querendo saber no seu mestrado.
Para o cego a arte tem um grande significado. Em uma escola, em uma sala de
artes os professores nunca ensinam o que você, por exemplo, ensina para gente.
Desenhar uma flor, exatamente do jeito que ela é. Desenhar as formas geométricas
169
exatamente como são. Observar um céu, como ele é. A linha do horizonte como ela
é. Entender uma obra. Porque muitas vezes o professor da escola comum não tem
paciência de ensinar, não tem paciência de nada, e você sempre teve com a gente.
A arte mudou muito a minha vida. Eu pude expressar muito nos sentimentos, na
alegria, na tristeza. Descontei muita raiva em trabalhos que eu fiz.
O ateliê da Lygia Clark significou muito, porque, é uma pena que ela acaba não
sendo tão divulgada no trabalho tão maravilhoso que ela faz, mas é importante ter
uma artista que se preocupa com a gente, que se preocupa com todas as
deficiências. O que significou foi que você ter trazido os quadros dela para a gente
sentir como é que os quadros dela são de verdade. E a gente também poder criar
obras em cima dos quadros dela com as figuras imantadas.
Eu nunca esqueço do trabalho que eu criei chamado “superfícies planas”, que eu
criei a partir dos “superfícies moduladas”que ela fez, que ela realizou. Significou
bastante para mim o quadro”quebra de moldura” que eu nunca esqueço, o bichos,
os casulos dela, eram bem legais.
E ela também nos ensina a valorizar qualquer material que seja barato, material
como por exemplo a areia, plástico, pedra, que são materiais simples de se
encontrar. Arte não precisa ser só de material sofisticado, caríssimos, que você tem
que pagar uma fortuna para comprar. Não, a partir de um saco plástico e de bolinhas
de ping-pong, por exemplo, você realiza uma obra que você sente as bolas de ping-
pong na sua mão. A partir de um saco e de uma pedra você sente o que é um
pulmão respirando. Você tem o aparelhinho do “respire comigo”que os
escafandristas usam bastante, que é muito legal. Você tem mãos de diferentes
estilos. Uma mão toda áspera, uma lisa, uma macia, que você pega a bola com
essas diversas mãos. Você pega a bola de tênis, com essas diversas mãos para
você poder sentir.
Eu também nunca esqueço que depois tem as caixas de fósforos que você poderia
realizar a obra que você quisesse com isso. Aliás, eu não sei onde é que está essa
obra. Nunca esqueço que depois do ateliê eu fiz.
E também o desprendimento que teve. Não só da sua parte, de colocar a cara para
bater, correr atrás e também não é fácil conseguir o que você conseguiu. Conseguir
que a Associação Lygia Clark viesse aqui, no Projeto. Ter esse desprendimento de
nos explicar ainda mais, além do que você nos explicou, as obras inteiras dela. Tudo
que ela exatamente fez. Não é fácil, não é qualquer pessoa que doa esse tempo e
que doa todo esse desprendimento aí que eles doaram.
Eu nunca também esqueço dos relaxamentos nas nossas aulas, antes de começar
as obras. A gente já fazia o relaxamento para pensar nas obras.
Não esqueço também da poesia concreta que a gente acabou fazendo. Do “coma
muito chocolate”. Que eu fiz a partir do “beba coca-cola”.
170
AC – Você lembra da poesia ainda?
Paula – Lembro. Eu preciso até lembrar como ela era. Mas eu acho que era assim:
Coma muito chocolate, coma muito chocolate, como chocolate muito, como late
choco muito, coma, coma, coma, coma. Coma muito chocolate, coma muito
chocolate...
risos
AC - isso...
Paula – Eu nunca vou esquecer também dessa poesia.
O que não era também, fácil de fazer aqui, que eu gostava mais ou menos, que eu
vinha para aula de artes só para pintar, para desenhar, para realizar as obras que eu
queria realizar e eu via que de repente não era assim.
Na aula de artes, o que as vezes eu não gostava da localização do espaço, sem
bengala, porque o espaço de baixo eu não tinha muito acesso. Mas foi muito bom
para mim porque agora eu tenho um mapa totalmente programado do que é a sua
sala, do que era a sala da Rosanna, que hoje em dia é a de música. Sei for para o
teatro, sei ir. Aqui eu acabo não usando muito a bengala, embora eu saiba que ela é
minha segurança. Eu não gostava muito disso, mas eu aprendi que isso foi assim
muito fundamental para mim, depois. Hoje em dia, se você me colocar para andar
aqui dentro eu sei. Apesar de que eu não gostava muito de fazer isso, era a coisa
que eu menos gostava, mas eu aprendi muito. Isso me ajudou, por que qualquer
desafio que você enfrente na vida, não é só o que você gosta. Oba! Legal! Eu gosto
disso, eu vou fazer então. Quero me aprofundar nisso mais em frente. No que você
gosta tem muita coisa que você não gosta que também. Tem que enfrentar e que faz
parte do desafio cotidiano, que você tem que ver que tem que enfrentar.
Então é isso tudo. Trabalhei muito os medos, trabalhei muito as angústias, trabalhei
muito a imaginação. Foi muita coisa assim que eu tinha dentro de mim para fora, e
isso que é muito bacana também. É importante você trabalhar sua alegria. Hoje eu
estou muito feliz, está acontecendo muita coisa legal comigo, então vamos colocar
em uma obra de arte isso. Hoje está acontecendo isso comigo, estou triste. Não,
vamos colocar isso em uma obra de arte.
AC – O que você se lembra. Quais são os trabalhos que para você foram mais
significativos? E qual foi o trabalho que você não gostou?
Paula – O trabalho que eu não gostei? O trabalho que eu não gostei mesmo, não foi
o da Lygia Clark.
AC – Não precisa ser da Lygia Clark.
171
Paula – Os trabalhos que foram bastante significativos foram tudo que eu fiz com
massa, sempre. Manipular massa é muito bom, você trabalha sua mão para fazer
exercício, sua tristeza passa tudo.
Significou muito os desenhos que eu fiz.
Significou bastante os cantos que nós fizemos. Os cantos dos medos, os cantos das
pessoas especiais das nossas vidas. Lembramos-nos muito de músicas que
marcaram a infância, das pessoas que marcaram a infância. Nossa aquele ano
significou bastante para mim aquela apresentação.
AC – Qual?
Paula – Dos cantos. As pessoas especiais...
Ac- Foi a primeira apresentação que a gente fez. Vocês que fizeram para apresentar
para as pessoas do jeito que vocês sentiam. As pessoas tinham que estar cegas
também, não é?
Paula – É tinham. Essa foi muito legal, porque deu para perceber que as pessoas
gostaram do que estava acontecendo. E antes de falar de Lygia Clark eu não posso
deixar de citar isso. Não posso deixar de citar outras coisas que foram significativas,
porque não foi só dela, não é? Foram outras também. Aquela apresentação de junho
(2006), acho que foi a primeira que nós realizamos obras, não é?
AC – Qual?
Paula – A primeira apresentação dos trabalhos dos alunos, em 2006. Essa daí das
pessoas foi a segunda. A primeira nós estávamos presos, nesta não, estávamos
soltos. Nós corremos atrás de tudo.
AC – É escolhemos as músicas.
Paula – ah, então o que você acha disso? Ah, eu acho legal, ah, vamos fazer assim?
Ah vamos...
Significou bastante para mim o trabalho que eu fiz com a Júlia. Aliás, hoje em dia eu
tenho uma saudade dela.
AC – a Renata também.
Paula – é? Ai que bom!
AC – eu não sei se você escutou uma entrevista que eu fiz na radio Eldorado. Não
sei se a sua mãe te mostrou?
Paula – não. Aliás, você não me contou. Se você tivesse contato eu teria ligado.
AC – então, está no site, depois eu te mostro. A Julia escutou e ficou super
emocionada porque eu falo da época do ateliê...
172
Paula – Se você me der o site do youtube e me ensinar como entra, eu consigo
entrar até aqui nele. Eu entro e vejo.
AC - Ela escutou e ficou super emocionada me mandou um e-mail falando assim:
que legal, porque eu participei disso, foi tão legal. Eu aprendi tanto com a Paula,
aprendi tanto com vocês. Foi super bacana... e ela vai fazer faculdade de música
também.
Paula – Pôxa Ana, olha que legal, dessa eu não sabia. Até, depois eu queria entrar
em contato com ela.
Bom, mas o que eu queria falar disso era que é muito legal saber que tem as
pessoas videntes que tem desprendimento de querer aprender a fazer, a praticar as
obras de arte num mesmo lugar que o deficiente visual também quer. Então acho
que isso foi muito legal, porque a Julia era vidente. Ela me ajudava no que eu
precisava, e eu por ser deficiente visual tinha também algumas experiências que eu
ajudava também a Julia. Então eu acho que foi muito boa essa troca, minha com ela.
Tenho bastantes saudades.
Tenho saudades também das poesias que você lia sempre para gente. No meio do
caminho tinha uma pedra, A arte de perder da Elizabeth Bishop, é linda mesmo essa
poesia.
Também gostei muito dos trabalhos que eu realizei com a própria Gabi. Achei
também linda aquela poesia que ela fez, que você gravou em uma aula que eu não
estava presente. Para a apresentação lá.
O trabalho que eu fiz com a Julia, Cores e nomes, eu achei lindo, porque cada uma
escolheu a cor que queria. E eu a mandava pintar e ela me mandava pintar também.
Então acho que isso era muito lindo, isto que teve bastante significado.
Gostei também de quando aquela escola Oki Doki veio aqui e nós pudemos fazer
bastantes trabalhos.
Gostei muito da mesa paleta, porque nela eu pegava as tintas que eu queria. Eu
escolhia as cores que eu queria sem ninguém falar nada. Eu podia sujar o dedo, eu
podia colar, podia pintar, eu podia fazer o que eu bem quisesse.
Agora, o trabalho que eu não gostei muito de ter feito, assim porque até que não é
fácil. Ah, não, deixa eu citar um que eu gostei também que foi o Ícaro. Ícaro do
Matisse, que a gente fez, em 2005, antes do acidente da minha mãe, porque é linda
a história do Ícaro, e muito triste. E eu achei legal porque eu estava aprendendo a
mexer com a massa corrida, neste trabalho.
Agora o que eu não gostei foi ter passado o tridimensional para o bidimensional.
Bidimensional não é fácil mesmo, você não entende, você vai à Pinacoteca, pega
aqueles exemplos dos tridimensionais, a gente entende tudo, agora o bidimensional
173
é uma coisa que realmente é mais difícil de ser entendida. O que eu não gostei foi
aquele dia que eu peguei o quadro e eu pegava várias vezes, tocava nele e
representei aquele quadro do Van Gogh do Banco de pedra do Asilo de Saint Remy
no papel, aquilo foi super difícil, não foi nada fácil.
AC – Eu acho que não foi nada fácil e foi errado. Aí você tem toda a razão, que
também eu estava aprendendo a trabalhar com você. Eu acho que foi uma
experiência que não deu certo. Eu acho que a gente estava trabalhando de uma
maneira errada. Impossível fazer aquele quadro ser compreensível. Do jeito que foi
feito. Foi legal para passar as várias experiências táteis que podiam ter naquelas
tintas, mas não daria realmente. Voce tem toda a razão, aquilo lá foi muito difícil
mesmo.
Paula - Foi muito difícil. Dava para entender no tridimensional as tintas, mas passar
aquilo para o papel...aí meu Deus.
AC – Foi difícil, e você tem toda a razão. Mas depois quando a gente começou a
fazer aquelas experiências com os sólidos geométricos e passar dos sólidos para as
figuras geométricas em madeira, foi mais fácil, não é?
Paula –Foi não só mais fácil como tinha mais sentido. Por mais que o sólido
geométrico que eu escolhi, aquele lá que é meio triangulo, meio paralelepípedo, que
depois a gente fez na massa, ficou meio parecido com um pedaço de bolo, que a
gente fez com argila. Lembra?
AC - Uma pirâmide?
Paula – Não foi a pirâmide. A pirâmide quem escolheu foi o Bruno. Não a pirâmide
eu acho que até seria mais fácil do que esse sólido que eu estou falando. É um que
fica que nem um pedaço de bolo mesmo. Um triângulo que fica como um pedaço de
bolo. Ele não foi fácil assim de fazer, mas foi bem gostoso. O que eu não gostei é
que eu queria que ficasse exatamente igualzinho o sólido, mas também aprendi que
não é tudo que dá para ficar igual o sólido. Não é? Então você tem que aprender,
você tem que entender, você tem que saber lidar com isso também. Então é uma
coisa assim terrível.
O que eu também não gostei, foi um dia que a gente fez aquele quadro do Cândido
Portinari, que acabou ficando sem tela, que as minhas amigas vieram aqui ver o
trabalho. Porque todas elas, não eram assim minhas amigas que eu tinha
verdadeiras. Eu sofria bastante com as amizades. Então eu não gostei muito disso,
mas eu infelizmente naquele dia eu precisava que isso acontecesse. E aconteceu.
Mas eu também gostei, que uma coisa que eu pude colocar bastante para fora, foi
do Egito, depois. Porque depois eu pude colocar para fora tudo o que eu estava
sentindo, da tristeza da morte da minha avó. Eu fiz a múmia dela. Como aqui era a
casa dela antes, eu não tive coragem de tirar daqui a múmia dela. Ela está aqui até
hoje. Não tive coragem. Eu achei lindo esse trabalho que eu fiz. Eu gostei muito e,
174
gostei muito também, que era uma coisa que eu não esperava. Que o Bruno e o
Vinicius gostaram da minha idéia e também o legal é você dividir experiências com
as pessoas. O Bruno e o Vinícius na época estavam também perdendo pessoas
queridas que eram as avós para eles. Então pude compreender que não era só eu
que estava sentindo toda a tristeza que estava sentindo com a perda de um avó.
Então, aquela apresentação também foi maravilhosa.
Eu acho que é isso. Consegui falar bastante.
AC - Então, para você, essa experiência do ateliê foi bastante importante, pelo que
você está falando.
Paula –Foi bastante importante e bastante significativa. É uma pena que quando
você está...depois que você saiu daqui que eu estava no segundo semestre do
segundo ano e no terceiro ano, a vida da gente na química, na física, na
matemática, é uma loucura para você depois entrar no vestibular. E você sabe que
para mim é duro não estar conseguindo dar continuidade a arte. Porque, olha se eu
pudesse, eu procuraria outro trabalho com arte e continuaria, porque a arte tem
muito significado. E se eu estou em uma faculdade hoje em dia e eu preciso
desenhar qualquer coisa, eu tenho noção de muitas coisas, mas eu ainda creio que
a arte foi tão importante para mim, que muita coisa eu ainda preciso aprender com a
arte. Entende?
AC –Você acha que a arte foi capaz de abrir novos caminhos para você? Você acha
que conseguiu descobrir mais coisas, ficar mais interessada pelas coisas do mundo?
Coisas que sejam fora de sua vida familiar? Que fique mais curiosa com as coisas?
Paula – Consegui muito. Eu consegui ver que tinha uma professora aí de artes, que
era você preocupada em saber como a gente entendia as coisas. E depois e
comecei a querer sair mais, ficar mais social. Me ajudou muito mais a sua aula de
artes a me interessar a ir nos museus. Principalmente aos museus mais acessíveis,
eu tenho muita vontade. E também aprender, aprender a desenhar as coisas, do
jeito que elas são. Exatamente como elas são. A arte me devolveu uma bela vida.
AC - Você freqüenta, você tem ido a museus, algumas coisas assim ou não?
Paula – Olha Ana, na verdade eu gostaria muito de ir mais em museus, porque é
uma correria eu acabo indo mais nos shows, porque agora estou sendo obrigada a
fazer 100 horas de estágio. Eu gostaria sinceramente de ir muito mais aos museus
do que tenho ido ultimamente, porque acho que estou indo muito pouco aos
museus, em relação ao que eu deveria ir. Eu acho que deveria ir mais. Eu quero e
vou resgatar isso. Quanto mais museus tiverem, eu quero ir. Eu quero ir com mais
calma ao museu da Língua Portuguesa, que não consegui ir com calma. Quando
você está com o colégio, é uma agitação muito grande. Eu adoro sempre, cada vez
que eu vou à Pinacoteca do Estado. Cada vez que eu vou lá é uma coisa diferente.
Quero ir nesse novo museu do perfume. Quero até que agende uma visita com todo
175
mundo do projeto. Até porque esse museu é um quarteirão da minha faculdade,
então quero muito conhecer esse museu. Quero
AC - Tem que ir na Bienal.
Paula – Quero ir à Bienal também.
AC - Tem uma exposição que eu queria tanto que vocês fossem. No museu de arte
moderna, esta com uma exposição de um artista que se chama Ernesto Neto. Ele
trabalha com muita coisa sensorial, com muito cheiro e textura. Dizem que está
fantástica essa exposição. Acho que valia a pena, vocês irem lá.
Paula – Acho que a gente podia combinar de ir todo mundo junto mesmo, até você ir
também. Eu acho que seria bacana combinar isso. Porque precisa, essas
oportunidades não podem se perder. Porque a gente, cada dia que vai, aprendemos
outras coisas. Então, por mais que eu faça a música agora, eu tenho que ser aberta
para o caminho da arte. Porque o caminho da arte é o que precisa me ensinar. Eu
não sei se você soube que a Pinacoteca está com um projeto de educar os surdos,
quer dizer ela quer receber todos os públicos. Então ela está com um projeto de que
uma surda seja educadora, também para os surdos. Não sei se você soube dessa?
AC- Já tem. É a Sabrina.
Paula – É a Sabrina, que me falaram. E me convidaram para ser a futura educadora
para os cegos.
AC- Eu não acredito!
Paula – Eu tenho até que fazer um projeto com arte e música Ana.
AC- Paula que lindo! Nossa estou super orgulhosa de você! Que bárbaro! Quem te
convidou a Amanda?
Paula – A Amanda.
AC – Que lindo, Paula! Nossa, você vai fazer o projeto?
Paula – Então, eu vou fazer não é. Esse ano eu estou com uma correria. Eu estou
querendo uma orientação de professores de música, para ver que músicas que eu
posso. E até é bom para eu falar um negócio mais do ateliê. Quando a gente
pesquisou a música na época do Van Gogh, quando a gente pesquisou a música na
época de Leonardo da Vinci, é um trabalho mais ou menos assim que eu estou
pensando em realizar, desenvolver.
AC – Me fala, eu te ajudo.
Paula –Vou falar com você, vou falar com meus professores da faculdade.
AC – Para quando que é?
176
Paula – Eu não sei ainda para quando seria, mas acho que é para daqui um ano,
mais ou menos, não é. Eu não sei se no primeiro ano da faculdade eu conseguiria ir.
Este ano eu estou no básico e o primeiro ano é muita coisa. Você tem que estudar
percepção uma vez por dia. Mas eu acho que eu quero fazer isso o quanto antes,
sabe?
AC- Mas faz com calma, porque aí você faz um projeto legal, faz bonito.
Paula – Eu quero fazer um projeto bacana.
AC –Você tem capacidade. Fiquei emocionada! Maravilhoso!
Paula – Já que tem surdo, porque não ter uma educadora cega.
AC - Quem melhor do que você, não é Paula?
Risos
Paula – ai Ana.
AC - Muito bonito, mesmo!
Paula – Eu estive lá recentemente. Eu estive lá no dia 2 de setembro, então fui
convidada. Foi bom ter adiado a entrevista.
AC –Foi ótimo! Que conversa linda essa!
Paula – Quanta coisa que você soube, não é?
AC – Então a sua vida está muito boa, não é?
Paula – olha Ana, eu acho que estou em um momento muito bom da minha vida.
Estou muito feliz, estou bem, estou namorando. Estou enturmada com os amigos.
Eu nunca imaginei que fosse estar na fase que estou agora de me dar bem com
todo mundo. Porque nunca aconteceu isso comigo no colégio. Nunca. Na faculdade
está acontecendo, eu agradeço a Deus todos os dias, pelos meus amigos. Por todas
as pessoas que passam e passaram pela minha vida. E também, eu espero que
esses quatro anos que eu esteja na faculdade continue acontecendo isso comigo.
Entendeu? Porque as pessoas estão interagindo mais. Elas estão interagindo muito
mais, são pessoas solícitas. Você não sabe também o que aconteceu. A festa julina
que teve aqui na associação, em julho, minha mãe estava desesperada atrás de
jovens que trabalhassem na barraca. Ela estava tentando falar com meus primos,
não conseguindo. Ah, Ana, não tive dúvida. Sabe o que eu fiz? Eu tomei a frente e
falei: mãe eu vou falar com a minha turma da faculdade. Ela falou: não, imagina para
quê você vai envolver a turma, coitados. Vai amolar eles. Eu disse: mãe, eu sei com
quem eu estou lidando lá dentro. Pode ficar tranqüila que eu vou arrumar gente da
faculdade. Porque se eu pedir eles vem ajudar. E não é que eu pedi e as pessoas
que eu pedi,vieram aqui. Vieram conhecer o nosso trabalho e vieram ajudar a gente.
177
AC – ai Paula, que lindo.
Paula – Ana, eu fiquei tão contente e ela também. Ela falou: eu não acredito o que
você conseguiu. Eu disse: mãe, eu sei com quem eu estou lidando na faculdade.
AC – que ótimo, Paula. Fico super feliz por você. Você não tem idéia como. Muito
feliz. Estou até emocionada.
Você tem mais alguma coisa que queira falar? A gente já falou da exposição, já falou
da participação na exposição. Como foi a exposição dos trabalhos dos pais e
amigos, como é que era isso.
Paula – Era muito legal. Eu já falei do Ícaro, já falei da música, já falei de tudo.
AC – Vamos chamar o Bruno?
Paula – Vamos.
178
Bruno e Paula
AC - Bruno – vamos conversar sobre o que foi importante. Vocês dois trocando
idéias sobre o ateliê de artes, sobre o que você lembra da Paula. Paula pode falar
como lembra de você. Eu acho que seria interessante a gente falar isso. Ai você
conta qual a experiência que foi mais significativa para você Paula. E o Bruno pode
contar qual foi a experiência que foi significativa. Então vamos começar. Bruno conta
o que você lembra da Paula. Você teve aula com a Paula?
Bruno – Comecei a ter esse ano.
AC –Não com ela professora, no ateliê. Lembra que você tinha aula junto com ela?
Bruno –Eu conheço ela, acho que desde a Tânia. Você conhece a Tânia?
AC – Conheço.
Bruno –Acho que eu tinha uns oito, nove anos uma coisa assim. Porque ela já foi
aluna da Tânia também.
AC – E no ateliê com ela?
Bruno – Eu me lembro dela no ateliê também, só que eu não me lembro o que a
gente fez, no ateliê.
AC – e você Paula?
Paula - Eu lembro de bastantes coisas. Lembro daquela vez que você trouxe aquela
feira de Recife e o Bruno adorou.
AC – vamos ver se ele lembra. Conta para como que era isso. Como que era a feira
de Recife. Conta para o Bruno.
Bruno – vamos ver se eu consigo me lembrar.
Paula – A feira de Recife tinha uma moldura que segurava ela, de palha. Tinha
vários abacaxis.
Bruno – Tinha um monte de frutas, nessa feira aí,não é?
AC – O que era essa feira? Eu trouxe uma feira, com gente fazendo feira aqui na
rua?
Bruno – não.
AC- O que era? Era um quadro? O que era?
Bruno – O que eu me lembro era um quadro. Não um quadro...
AC – Um painel...
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Bruno –Um painel, que tinha as frutas. Tinha o abacaxi, tinha um monte de frutas.
AC –O que vocês fizeram com isso?
Bruno – a gente...
Paula – Eu fui a vendedora de abacaxis, e ele adorou as ferramentas. Vendedor de
ferramentas.
AC – Tinha as ferramentas, é verdade.
Bruno – Lembrei do vendedor de ferramentas.
AC – você lembra das ferramentas?
Bruno – Tinha até barraquinhas, não é?
AC- Agora está lembrando. E o que vocês fizeram com isso? Além de um trabalho
de observação.
Bruno – eu lembro que a gente observou.
Paula – Nós criamos uma história com essa feira. Nós criamos uma história que
tinha
Bruno – Um casal...
Paula – Lembra que tinha um casal com bebezinho?
Bruno – ah, sei.
Paula – O casal veio da Argentina e foi passear...
Bruno – Eles queriam comprar ferramentas.
Paula – Comprar ferramenta, comprar fruta.
AC – Eles vinham da Argentina? Nossa, eu nem lembrava disso. Como é que era a
história?
Paula – Eles vieram da Argentina para o Brasil passear com o bebê e tinha mais
uma amiga que também era argentina, com eles. Eles vieram comprar ferramentas e
frutas
AC – O que mais você lembra Bruno?
Bruno – Lembro das barraquinhas que tinha de ferramentas.
AC – Que ferramenta que tinha?
Bruno – Tinha...não lembro se tinha martelo.
180
AC – Não era ferramenta de usar na terra?
Bruno – De cavar? Era uma picareta, é isso?
AC – Não sei, não lembro o nome disso.
Paula – Eu lembro que tinha um rastelo.
Bruno – Eu lembro também que a gente fez trabalhos eu, ela e a Gabriela. Foram
vários, só que não consigo me lembrar.
AC – Com o Vinicius?
Bruno – o Vinicius foi aquela poesia. Foi a poesia concreta, que cada um fez uma
poesia. O primeiro dia que a gente fez dos cantinhos. Canto do medo, canto de
coisas assim, canto das coisas que a gente gosta.
AC- Conte alguma coisa para o Bruno que você gostaria de contar, e quem sabe o
Bruno conta alguma coisa para você.
Paula – Bruno você se lembra que a gente ficava na sala de brinquedos feito dois
doidos caçando os bichos, caçando brinquedos, preparando todas as coisas para
cada canto. Canto do medo, canto das pessoas especiais
Bruno – Do medo era uma caveira, não é? Tinha umas caverinhas, eu acho, que eu
me lembro do canto do medo
Paula – não era só caveira.
AC – o que mais que tinha no canto do medo?
Paula – rato, aranha, sapo, máscaras.
AC- Tinha umas máscaras de bruxa e um monte de coisa de cenário que eu peguei
do meu cunhado.
Bruno – Eu lembrei de uma coisa. Tinha teia. A gente fez com cola, a teia?
AC – Não, a gente comprou. Não a gente não comprou. Ganhei do meu cunhado.
Era um negócio que parecia uma teia de aranha mesmo.
Bruno – A teia parecia caca de nariz.
Risos
Bruno – Eu estava tentando me lembrar de alguma coisa que parecia caca de nariz.
Agora lembrei. Era a teia de aranha
Paula – Eu lembro também que no canto das pessoas, no canto da recordação tinha
mamadeira, acho que tinha casca de árvore. Tinha também aquele brinquedo do seu
cunhado, que era meio que uma nuvem, que subia e descia.
181
Bruno – O vai e vem.
Paula – A bicicleta, não sei, se estava no canto das pessoas especiais.
AC – Estava no canto das alegrias.
Paula – Das alegrias. Tinha também a bengala. Os cantos das pessoas especiais
estavam os perfumes. Os melocotons que eu ganhei da minha madrinha e da minha
tia, que são pessoas muito especiais.
AC – e que outros trabalhos foram interessantes?
Bruno – E das recordações? Um dia eu fiz um trabalho que eu recordei da minha
avó. Eu lembro até que eu trouxe uma letra das músicas que ela gostava que era
Roberto Carlos.
AC – Você não lembra que trabalho era esse?
Bruno – Eu acho que era das pessoas especiais.
AC – Não era do Egito Antigo.
Bruno – Ah, do Egito, que a gente estudou os deuses. O Rá que era o sol, que de
manhã ele nascia, criança, por volta de meio dia ele era adulto, e à tarde ele ficava
velho. Tinha que enfrentar uma serpente. Ele morria, tinha que pegar um barco para
renascer de novo.
AC – Esse foi legal.
Bruno – Foi muito legal ter estudado os deuses. Tinha a deusa do inferno que eu
esqueci o nome.
AC – Maat
Bruno – Maat, que ela ia pesar o coração de quem morria. Se ficasse maior que a
balança dela, ela devorava a pessoa.
AC – Lembrou bem. Muito bem. Pode comentar Paula.
Paula – Eu falei tanto, que agora estou deixando mais ele falar. É a Maat era
mesmo, não é Bruno, a deusa da justiça.
AC – e do Peter Pan, vocês não lembram nada?
Os dois se lembraram da peça Peter Pan que fomos assistir.
Paula – É mesmo Peter Pan. Nossa aquela peça, eu nunca esqueço.
Bruno – Nossa aquela peça foi muito legal não é?
Paula – Nossa Bruno, você lembra quando a gente foi citado? Eu, você...
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Bruno – A gente foi citado sim. Foi pelo pirata.
Paula – Pelo Barrica.
Bruno – pelo Barrica, a gente foi citado.
AC- E fazer a terra do nunca. Você não fez, Paula?
Paula – eu acho que a Terra do Nunca, eu não fiz. Foi o Bruno e o Vinicius que
fizeram a Terra do Nunca. Eu fiz o trabalho com a Julia.
AC – Você lembra da maquete que a gente fez da Terra do Nunca?
Bruno – Eu me lembro de ter feito o começo da história.
AC- Lembra que cada um tinha a sua ilha?
Bruno – A gente desenhou um vulcão, ou não?
AC- A gente fez um vulcão, lembra?
Bruno – eu lembro, mas...é cada ilha tinha um vulcão.
AC- Você lembra como você fez o vulcão?
Bruno – Com argila.
AC – O que mais? Como é que ele tinha erupção?
Bruno – com copo. A gente colocou um copo em baixo e usou bicarbonato de sódio,
vinagre e detergente. Quando entrava em erupção caia espumando.
AC- fazia a maior meleca, não é?
Bruno – Ficava marcado quando saia.
AC – E da Lygia Clark? Vamos conversar um pouco sobre o ateliê da Lygia Clark?
Paula – Eu queria colocar uma coisa. Olha que interessante, Bruno. O negócio do
Peter Pan sabe que eu nem lembrava que vocês tinham feito a Terra do Nunca.
Bruno - É que a gente tinha feito a história, até o comecinho.
Paula – Foi bem bacana mesmo.
Bruno – É foi.
Paula – Aquela peça foi muito engraçada. Mas vamos conversar da Lygia Clark.
AC- Lembra o Bruno da Lygia Clark, do comecinho.
Bruno – Lembra que a gente tinha feito os bichos.
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Paula – Nossa eu lembro
Bruno – a gente fez os bichos de EVA e de madeira.
Ac- Vocês fizeram os bichos e só depois na exposição que vocês vieram conhecer
os bichos da Lygia Clark, lembra que eles eram de ferro? Lembra que vocês ficaram
comparando o bichos de vocês com os da Lygia?
Bruno – O do EVA tinha mais articulação. O metal tinha que ter articulação e o de
EVA se mexia, conforme você fazia o movimento.
AC – você lembra disso Paula?
Paula – Dessa parte eu realmente não.
AC- Eu também não.
Paula – Cada um teve que desenvolver um casulo, não é Bruno?
Bruno – Tinha que dobrar os papéis.
Paula – Você também adaptou os quadros da Lygia Clark? Você tocou nos
quadros?
Bruno – Eu toquei sim. Os quadros tinha uns casulos, não é?
Paula – Você montou também os quadros da Lygia Clark, Bruno?
Bruno – oi?
Paula – Você montou outros quadros da Lygia Clark?
Bruno – Que eu me lembre só foi o casulo.
AC - Bruno. Lembra que tinha os quadros que eram imantados?
Bruno – Que a gente tinha que montar e desmontar!
AC – Isso. Você tinha esses que eram uma cópia do trabalho da Lygia. Depois você
tinha que fazer o seu. Ela está perguntando se você fez isso. Se você recortou as
peças, se você colou.
Bruno – Sim, recortei, sim.
Paula – Eu fiz um com imantado mesmo, chamado “superfície planas”, eu que dei o
nome a partir do quadro superfícies moduladas.
Bruno – Eu acho que eu não cheguei a dar nome para o meu quadro.
AC – Você lembra como ele era?
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Bruno – Eu acho que ele era de EVA, que eu me lembre. Que eu me recorde eu
cortei o EVA e fui colando.
AC – conta para o Bruno o que você mais gostou e você conta para a Paula o que
mais gostou.
Paula – Bruno o que eu mais gostei foi de ver que a Lygia Clark realmente se
preocupava, fazia obras que realmente eram para ser tocadas, eram para a gente
sentir. Então, eu gostei das diferenças de tipos de mãos que tinham lá para a gente
tocar. Gostei dos quadros, dos bichos dela. Gostei também daquele livro que dava
para sentir, com borracha, com pedra. Gostei do pulmão, das bolinhas de ping-pong
que tinha um saco que dava para colocar na mão. E eu acho assim, interessante
não é, Bruno. Tem tanto artista que usa material tão sofisticado para realizar uma
obra de arte, ela não. Ela ensinou para gente que dos materiais mais simples, que a
gente compra com um real, o quanto que dá para fazer artes. São coisas simples
que muita gente não dá valor.
Bruno – O que eu mais gostei foi a ideia dela. Porque ela não se preocupava com o
desenho que ia fazer, se preocupava com o espaço. Ela brincava com o espaço. E
eu gostei também dos bichos, de montar e desmontar os quadros. Eu gostei muito
dessa ideia dela de brincar com os espaços, que eu acho que deve dar muito valor a
essa ideia.
Paula – Eu também acho, com certeza. Brincar com os espaços ela brincava
mesmo. Eu gostei também daquela obra no final que a gente realizou com as caixas
de fósforos. Você lembra?
Bruno – Que a gente tinha que montar elas?
Paula – É tinha que montar de acordo com o que você quisesse.
Bruno – Uma em cima da outra, do lado da outra.
AC – Você lembra Paula que na exposição do Projeto o Bruno convidou as amigas
dele?
Paula – Eu lembro, foi muito legal. Elas adoraram. Foi o dia que eu conheci elas,
não é Bruno?
Bruno – Foi o dia da poesia.
Paula – Sabe que eu lembro da sua poesia até hoje, Bruno.
Bruno – Eu lembro da sua poesia também. Do chocolate.
Paula – E a sua da bola, fora bola.
Bruno – tem o monstro, barulhinho de monstro.
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AC- eu queria que vocês me falassem quando vocês lembram do ateliê, você pensa
em que sabor?
Paula – Eu lembro assim de um sabor doce. Prazeroso.
AC- E você Bruno?
Bruno – Eu não tenho um sabor específico, mas eu sei que é uma coisa assim
gostosa e prazerosa.
AC- Vamos usar metáforas para pensar nas coisas. Se você pensar no que é a arte
para você, ela teria que cheiro?
Bruno – De maçã.
Paula – Para mim de chocolate.
Risos
AC- Você gosta de maçã Bruno?
Bruno – É a fruta que eu mais gosto.
AC- Que bom. Se fosse uma viagem? Um lugar?
Bruno – Pinacoteca. O ateliê é como se fosse uma mini Pinacoteca, que você
aprende muita coisa. Você conhece as histórias e as obras dos atores.
Paula – Para mim seria Paris. Com aqueles pintores impressionistas.
AC- Muito obrigada. Se vocês quiserem eu mostro depois essas gravações. De
qualquer jeito eu vou mostrar o meu trabalho final. Foi ótimo. Estava com muitas
saudades de vocês. Esse trabalho só está acontecendo por causa de vocês e é uma
homenagem a vocês.
Bruno – Obrigado, a gente agradece muito.
Paula – Agradecemos mesmo. E que orgulho por essa homenagem para gente e
que bom que você aprendeu muito com a gente, porque a gente também amou
aprender com você.
Bruno – Foi uma troca de conhecimentos.
AC- Foi mesmo, e vamos continuar trocando.
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