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Outubro de 2012 Ana Cristina Queimado Serra Gonçalves Pequeno de Oliveira e Silva UMinho|2012 Ana Cristina Queimado Serra Gonçalves Pequeno de Oliveira e Silva Universidade do Minho Instituto de Educação A [import] Ânsia do LER Uma abordagem do texto lírico no 10º ano de escolaridade A [import] Ânsia do LER Uma abordagem do texto lírico no 10º ano de escolaridade

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  • Outubro de 2012

    Ana Cristina Queimado Serra Gonalves Pequeno de Oliveira e Silva

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    Universidade do MinhoInstituto de Educao

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    A [import] nsia do LER Uma abordagem do texto lrico no 10 ano de escolaridade

  • Relatrio de Estgio Mestrado em Ensino de Portugus e de Lnguas Clssicas no 3 Ciclo do Ensino Bsico e no Ensino Secundrio

    Trabalho realizado sob a orientao do

    Doutor Jos A. Brando Carvalho

    e da

    Doutora Ana Lcia Curado

    Universidade do MinhoInstituto de Educao

    Outubro de 2012

    Ana Cristina Queimado Serra Gonalves Pequeno de Oliveira e Silva

    A [import] nsia do LER Uma abordagem do texto lrico no 10 ano de escolaridade

  • Declarao

    Nome: Ana Cristina Queimado Serra Gonalves Pequeno de Oliveira e Silva

    Endereo Eletrnico: [email protected]

    Telefone: 938490078

    Carto de Cidado: 9704257 9 zz3

    Ttulo do Relatrio:

    A [import] nsia do LER

    Uma abordagem do texto lrico no

    10 ano de escolaridade

    Supervisores:

    Professor Doutor Jos. A. Brando Carvalho

    Professora Doutora Ana Lcia Curado

    Ano de concluso: 2012

    Mestrado em Ensino de Portugus e Lnguas Clssicas no 3 Ciclo de Ensino Bsico e no

    Secundrio.

    AUTORIZADA A REPRODUO INTEGRAL DESTE RELATRIO APENAS PARA EFEITOS DE

    INVESTIGAO, MEDIANTE DECLARAO ESCRITA DO INTERESSADO, QUE A TAL SE

    COMPROMETE.

    Universidade do Minho, 20 de Outubro de 2012

  • III

    Dedicatria e Agradecimento

    Dedico este apontamento acadmico ao bom povo da terra que no foi dos

    meus filhos.

    Dedico-o tambm aqueles que, forados por compromissos ou pela extrema

    juventude, percorreram comigo os rduos caminhos do exlio, retornando a stios de

    onde no se partiu.

    Agradeo, os gritos de ao que morreram na minha garganta, vizinhos do

    medo, irmos do desespero, penetram o vento agreste e o radioso sol de setembro

    onde quer que eu more. Porque em setembro a primavera da minha vida ficou sem

    manh, a pomba sem asas e a paginao sem medida. Algo se quebrou para sempre.

    Uma fora indmita e inquietante me impregnou. Tatuado em mim, a agrura da

    micaia, a linguagem da guitarra, os silncios longos quebrados pelo ritmo do batuque.

    Agradeo a Deus ter-me poupado derrocada de Babel porque compreendo e

    experimentei linguagens diversas:

    As que aprendi no toque da voz da minha me;

    As que o meu pai me ensinou enquanto me fotografava embevecido;

    As do anjo da guarda, da felicidade autntica, dos meus dias de menina.

    Tradutor da lngua das flores, das aves, das formigas, do batuque, da cor do cu em

    transparncias roxas ou em paredes cinzentas de chuva Elias foi, pedagogo

    ateniense, nos jardins da savana;

    A do amor fraterno e cmplice com a mana;

    A do Amor existencial e as incomunicveis linguagens da paixo que oculto e

    testemunho no anelar esquerdo;

    A do sacerdcio sagrado da maternidade que devolveu inteiro o meu Ser.

    Sem mcula, sem micaias, sem guitarras. Uma marrabenta danada, uma felicidade

    sem conta, sem peso, sem medida;

    A da amizade em vrias comunicaes;

    As da discncia e da docncia que a experincia de Slon sintetiza

    liminarmente:

    Envelheo aprendendo sempre muita coisa

    Bem hajam todos os que permitiram e contriburam para que este trabalho

    acadmico tivesse fim.

  • IV

  • V

    A [import] nsia do LER

    Uma abordagem do texto lrico no 10 ano de escolaridade

    Resumo

    O presente Relatrio constitui-se como parte integrante do processo de

    formao de professores de Portugus e Lnguas Clssicas, no 3 Ciclo do Ensino Bsico

    e Secundrio. Por conseguinte, ao mesmo tempo, o relato de uma experincia

    pedaggica nica e irrepetvel e uma reflexo terica apoiada, cientificamente, nos

    Estudos Literrios e na Didtica, convocados para a interveno pedaggica.

    O projeto, desenvolvido numa turma do 10 ano de escolaridade de uma Escola

    Secundria, incidiu no ensino do texto lrico, colocando a tnica na dimenso afetiva e

    na mobilizao de conhecimentos prvios. Entre entes destacam-se os saberes

    relativos Antiguidade Clssica, nomeadamente aos mitos que desde ento tm

    estado presentes nas manifestaes literrias de ordem diversa, trabalhados no

    mbito de uma Oficina de Cultura Clssica.

    Com base em teorias sobre a leitura e a sua aprendizagem e desenvolvimento,

    e relevando os processos cognitivos envolvidos no ato de ler, construmos um plano de

    interveno focado em textos de Lus de Cames e de poetas do sculo XX.

    Neste relatrio, descrevemos o modo como esse plano foi concretizado,

    incluindo a anlise da resposta dos alunos abordagem desenvolvida.

  • VI

  • VII

    The reading of lyric poetry in the 10th grade Secondary School

    class

    Abstrat

    This document is the result of a pre-service teacher training process in the domain of the

    Portuguese and the Classical Languages. It is both a narrative of a unique pedagogical

    experience and a theoretical discussion based on knowledge emerging from the fields of

    Literary Studies and Language Didactics.

    The project developed, involving a 10th grade Secondary School class, focussed on poetry and

    on the importance of the affective dimension and on the implication of students prior

    knowledge as means to enhance the development of reading skills. Among such prior

    knowledge, we would like to highlight knowledge concerning the classical myths that have

    been implied in literary work throughout the times.Based on theoretical knowledge about

    reading and the acquisition and development of reading skills, and taking into account the

    cognitive processes involved in reading, we planned some lessons on the poetry of Lus de

    Cames and of some 20th century poets.

    In this report, we describe the way that plan was put into practice and analyse

    studentsresponse to the pedagogical tasks designed.

  • VIII

  • IX

    Contedo Dedicatria e Agradecimento ...................................................................................................... III

    A [import] nsia do LER ............................................................................................................. V

    Uma abordagem do texto lrico no 10 ano de escolaridade ................................................... V

    Resumo .......................................................................................................................................... V

    The reading of lyric poetry in the 10th grade Secondary School class ......................................... VII

    Abstrat ......................................................................................................................................... VII

    INTRODUO ................................................................................................................................ 1

    1. Objeto e objetivos da interveno pedaggica realizada. ................................................ 1

    2. Razes da escolha do vetor Leitura. .................................................................................. 3

    3. Estrutura Geral do Relatrio ............................................................................................. 3

    Parte I ............................................................................................................................................ 5

    ENQUADRAMENTO TERICO ........................................................................................................ 5

    1. O que Ler? ...................................................................................................................... 5

    2. Perspetivas: O valor educativo da Leitura da Antiguidade Clssica aos nossos dias. ..... 11

    3. As modalidades de Leitura ou os diversos modos de Ler. .............................................. 21

    4. A leitura no processo de comunicao e a leitura como fruio esttica da linguagem.28

    5. Anlise breve de confluncias entre a didtica da lngua e a didtica da literatura. ..... 29

    6. Estratgias de leitura explcitas e especificidade de leitura de poesia lrica. ................. 35

    7. Programa instrumento regulador (o enguio). A leitura de poesia lrica na aula de

    Portugus do 10 Ano (o engenho)......................................................................................... 40

    Parte II ......................................................................................................................................... 45

    A INTERVENO PEDAGGICA ................................................................................................... 45

    I. Os contextos da prtica pedaggica. .............................................................................. 45

    I.I. Os protagonistas ................................................................................................................ 47

    II. A implementao do Projeto .......................................................................................... 48

    III. Filosofia de Ensino. A morfologia, a sintaxe e a semntica de ensinar ........................... 48

  • X

    IV. Estratgias de Interveno. ............................................................................................. 52

    Sobre a questo o que para os alunos ler ............................................................. 56

    V. Os autores, os textos, e a intertextualidade com a pintura. ........................................... 57

    VI. Metodologia. ................................................................................................................... 58

    VI.I Metodologia: Apontamento em torno da Lrica de Cames. ........................................... 61

    VI.II Metodologia: Aula de Portugus planificao comentada ......................................... 62

    VI.III Metodologia: Oficina de Cultura Clssica planificao comentada. .......................... 70

    VI.IV Metodologia: aula de Portugus planificao comentada ........................................ 75

    VII. Avaliao das estratgias metodolgicas adotadas. ....................................................... 84

    VIII. Eplogo. ........................................................................................................................ 85

    REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................................... 87

    REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS autores clssicos. ...................................................................... 90

    Anexos ......................................................................................................................................... 93

    Gaio Valrio Catulo Gaius Valerius Catullus ............................................................................. 96

    Marco Tlio Ccero Marcus Tullius Cicero ................................................................................ 97

    Pblio Virglio Maro Publius Virgilius Maro .......................................................................... 97

    Horcio Quintus Horatius Flaccus ........................................................................................ 101

    Ovdio P. Ouidius Maro ........................................................................................................ 102

    3. Plano de Aula de Portugus comentado [excerto do Porteflio de Trabalho] .............. 103

  • 1

    INTRODUO

    Nota Preambular

    Este Relatrio expe e documenta a interveno pedaggica integrada no

    mbito da UC Estgio Profissional, que decorre no 2 ano do Ciclo de Estudos

    conducente ao grau de Mestre em Ensino de Portugus e Lnguas Clssicas, no 3 Ciclo

    do Ensino Bsico e Secundrio.

    um documento que se enquadra no campo da Didtica e se constitui como

    parte integrante do processo de formao. Est balizado por diretivas legais e formais

    de construo e apresentao. , ao mesmo tempo, o relato de uma experincia

    pedaggica nica e irrepetvel e uma reflexo terica apoiada, cientificamente, nos

    domnios dos Estudos Literrios e da Didtica convocados para a interveno

    pedaggica.

    1. Objeto e objetivos da interveno pedaggica realizada.

    O plano de trabalho, que definimos em dezembro de dois mil e onze, tinha

    como propsito geral o desenvolvimento de competncias de leitura e, a um nvel

    mais especfico, o desenvolvimento dessas competncias partindo da mobilizao de

    conhecimentos prvios dos alunos que favorecessem a compreenso textual.

    Sobre a pertinncia do objeto de trabalho, a Leitura, bastaria referir, que uma

    das finalidades da Disciplina de Portugus, segundo o Programa Oficial , ipsis verbis,

    Formar leitores reflexivos e autnomos que leiam na Escola, fora da Escola e em todo

    o seu percurso de vida, conscientes do papel da lngua no acesso informao e do seu

    valor no domnio da expresso esttico-literrias.1

    O Programa, como instrumento regulador do ensino-aprendizagem da Lngua

    Portuguesa, remete diretamente para o desenvolvimento de capacidades que

    implicadas no ato de ler. Um dos seus objetivos mesmo, e passamos a citar,

    Desenvolver o gosto pela leitura dos textos de literatura em lngua portuguesa e da

    1PORTUGAL. Ministrio da Educao Programas de Portugus 10, 11 e 12 anos. Lisboa, 2002.p.6

  • 2

    literatura universal, como forma de descobrir a relevncia da linguagem literria na

    explorao das potencialidades da lngua e de ampliar o conhecimento do mundo2.

    Assim, conhecendo o papel preponderante e regulador que nas prticas

    escolares o Programa assume, procurmos adequar o nosso objeto de estudo - a

    Leitura - aos objetivos e contedos previstos neste documento instrutor no que

    leitura do texto literrio lrico diz respeito.

    De facto, quisemos tambm, objetivamente e pela nossa formao acadmica,

    dar voz aos autores da Antiguidade Clssica. Ousmos mediar o acesso a leituras, hoje

    pouco convocadas mas sempre presentes. Poderemos dizer, cristalizadas na literatura,

    em sentido lato, e uma herana irrenuncivel da Literatura Portuguesa, nas palavras de

    Aguiar e Silva. O nosso objetivo foi dar testemunho de outros modos de ler em

    contexto escolar. Permitimo-nos ler ancestrais autores desprogramados e de mo

    dada com mestres da pintura, num processo de alquimia, viajmos sem sair do lugar.

    Isto para ns o Ler em mediao.

    Em suma, os objetivos da nossa investigao-ao concentraram-se nas

    leituras. Sustentaram-se e legitimaram-se em dois documentos fundamentais:

    A Lei de Bases do Sistema Educativo, no seu Art.9, nomeadamente,

    Assegurar o desenvolvimento do raciocnio, da reflexo e da curiosidade cientfica e o

    aprofundamento dos elementos fundamentais duma cultura humanstica, artstica,

    cientfica e tcnica que constituam suporte cognitivo e metodolgico apropriado para

    o eventual prosseguimento de estudos e para a insero na vida ativa.

    Nos Princpios definidos no Relatrio da Comisso Internacional sobre a

    Educao para o sculo XXI apresentado UNESCO, onde se definem os quatro pilares

    bsicos da educao, que deve ultrapassar a viso puramente instrumental da

    educao, considerada como via obrigatria para obter certos resultados (saber-fazer,

    aquisio de capacidades diversas, fins de ordem econmica), e se passe a consider-la

    em toda a sua plenitude: realizao da pessoa que, na sua totalidade, aprende a ser.

    2PORTUGAL. Ministrio da Educao Programas de Portugus 10, 11 e 12 anos. Lisboa, 2002.p.7

  • 3

    2. Razes da escolha do vetor Leitura.

    Este projeto de investigao-ao foi concretizado num contexto acadmico

    muito especfico, o Mestrado em Ensino de Lnguas Portuguesa e Clssicas. Para um

    professor de lngua as trs componentes prticas do estudo da lngua so essenciais.

    Falar, Ler e Escrever so os pilares a partir dos quais se desenvolve a aula. O

    Programa e a Planificao do Departamento so bem elucidativos da distribuio

    equitativa que o estudo da lngua deve ter nas trs vertentes.

    Como professora reconhecemos a indiscutvel relevncia de bem aprender a

    falar, a ler e a escrever na aula de Portugus, ou, generalizando nas de lngua, para que

    fora dela e no desempenho comunicativo, que o viver social impe, se manifestem as

    aprendizagens l empreendidas.

    Cabendo-nos o desenvolvimento de competncias nos trs vetores, a situao

    de estagiria deu-nos o privilgio irrepetvel de centrar o fulcro da nossa ateno nas

    especificidades do ensino da Leitura e da leitura do texto lrico em particular.

    Escolhemos o vetor Leitura porque h muito elegemos os livros como

    companheiros inseparveis. Pois, como bibliotecria, a promoo da Leitura um dos

    nossos cuidados e, porque nos interessou perceber se, efetivamente, a alergia

    leitura do texto potico, de gnero lrico, podia ser contrariada atravs de um modelo

    de abordagem mais especfico, investindo nas particularidades dos jovens leitores.

    3. Estrutura Geral do Relatrio

    A partir desta introduo, apresentamos a organizao deste estudo que se

    estrutura em duas partes.

    Na primeira, apresenta-se o quadro terico que fundamenta o estudo.

    Por conseguinte, na primeira parte aborda-se em diferentes perspetivas o

    fenmeno da Leitura. Apresenta-se uma viso sobre o valor educativo da leitura desde

    a antiguidade clssica aos nossos dias, referem-se os diversos modos de ler, d-se a

  • 4

    conhecer a leitura no processo de comunicao e a leitura como fruio esttica da

    linguagem.

    Analisam-se as confluncias entre a didtica da lngua e a didtica da literatura.

    Neste sentido, contemplamos o ensino explcito de estratgias de leitura e

    abordamos especificamente a leitura de poesia lrica.

    Por sua vez, consideramos neste estudo o Programa de Portugus como

    instrumento regulador das prticas de leitura em sala de aula.

    Na segunda parte deste estudo, reflete-se e apresenta-se a prtica pedaggica.

    So apresentados os contextos da mesma prtica, os protagonistas que lhe

    deram cabimento e a implementao do projeto de trabalho.

    Neste sentido, contemplamos a apresentao da nossa filosofia de ensino, as

    estratgias de interveno decorrentes dos objetivos previstos para o nosso trabalho.

    Demos conta dos mesmos objetivos, dos autores e dos textos que trabalhmos com os

    alunos, e ainda da intertextualidade que promovemos com a pintura.

    Procede-se tambm explanao da metodologia tomada e reflete-se sobre a

    mesma a par e passo.

    Por ltimo, conclumos a descrio deste processo de investigao-ao com a

    avaliao das estratgias metodolgicas adotadas.

    Por outro lado, consideramos que com este estudo de investigao pode ser

    dado um novo olhar sobre o que se entende por Leitura e por leitura de texto lrico,

    privilegiando os afetos.

    O Eplogo concentra uma leitura poitica da didtica.

  • 5

    Parte I

    ENQUADRAMENTO TERICO

    1. O que Ler?

    Num sentido muito genrico a apropriao individual duma cultura escrita.

    Num sentido mais preciso, mas ainda no campo genrico se tivermos em conta a

    gnese da prpria palavra e a sua histria etimolgica, ler provm da ideia geral

    codificada no semantema com significado arcaico de recolher ou reunir.

    Esta matriz etimolgica da palavra est presente no Grego em palavras como

    lgo (enumerar, dizer); lksis (ao de falar, palavra); - logos

    (palavra, razo) e, no Latim em palavras como legere (colher, juntar, reunir,

    escolher); lectio (recolha, leitura, lio).

    Os exemplos selecionados testemunham a origem de numerosas palavras

    provenientes do timo original , colhidos entre tantos outros que partilham o

    mesmo radical do lexema ler. J do conta, ainda que de forma muito incipiente, que

    a matriz do ler contm e capaz de gerar aes complexas.

    Ler, mesmo nos significados mais arcaicos do termo, parece envolver os

    sentidos, a mecnica e a razo.

    Para precisar, vejamos alguns dos significados mais atuais que se configuram na

    ideia, no ato de ler, e no processo da sua aprendizagem. Apropriamo-nos de uma

    definio que pela sua amplitude nos ser til. Porque a sua anlise segmentada serve

    de guia aos diversos estudos sobre aspetos da leitura, que o tema que nos ocupa.

    leer es una actividad perceptiva ideo-visual de larga duracin dirigida a la

    bsqueda de informacin, intelectual, social y emocionalmente compleja, en la que

    entran en juego mltiples factores. 3

    Como primeiro passo, tentaremos descrever os processos e mecanismos que

    intervm na leitura, que formam uma delicada tecedura, de tal forma que qualquer

    comprometimento no desenrolar do processo, ou falha de mecanismo, introduz

    desequilbrios ou desvios difceis de reparar.

    3 GUILHERMO, M. Dias Bases para la formcin de hbitos lectores. In: LECTURA, Educacin y

    Bibliotecas, ideas para crear buenos lectores: actas de la Reunin Nacional de Estudio y Debate, organizada por CajaMurcia y Anabad-Murcia. Murcia: ANABAD-Murcia, 1994. ISBN 84-920121-1-0. p 87.

  • 6

    Ler como atividade percetiva:

    Na literatura que sobre o ensino e aprendizagem da leitura consultmos, no

    encontrmos oposio a esta aceo do Ler. Partimos, pois, deste princpio:

    apreendemos por meio dos sentidos, mais concretamente da viso, os signos grficos

    da leitura e esta perceo gera informao que processada pelo crebro.

    A atividade percetiva constitui-se de uma faculdade de apreender por meio dos

    sentidos e isto implica um efeito mental, uma operao intelectual que com a prtica

    se revela quase intuitiva.

    A partir daqui divergem os vrios campos de investigao sobre o processo do

    ensino e aprendizagem da leitura.

    Vamos deixar propositadamente as questes da aquisio e desenvolvimento

    da linguagem, no sentido genrico do termo, como aquisio humana bem anterior ao

    uso da escrita e, consequentemente, leitura dos seus carateres.

    Procuramos demonstrar e descrever o comportamento do leitor num comum

    ato de leitura, para depois nos direcionarmos para as questes da aprendizagem.

    Quando referimos, leitor comum, estamos a considerar em abstrato um indivduo que

    usualmente l no desenvolvimento das suas atividades dirias; estamos a relegar para

    segundo plano as suas caratersticas pessoais, como a inteligncia, o seu

    enquadramento social e cultural, entre outras, como o prprio espao, tempo e

    circunstncia em que o ato de ler se efetiva.

    O indivduo coordena o movimento dos olhos para seguir os signos ordenados

    da esquerda para a direita e de cima para baixo. O movimento no contudo linear, a

    perceo no feita como se os grafemas formassem um comboio lexical. Os olhos

    no percecionam os smbolos um aps outro em sucesso de continuidade. Diz-se,

    comummente, que os olhos piscam enquanto se fixam num objeto determinado

    durante algum tempo. Este mecanismo fotogrfico quase impercetvel no leitor

    quando os olhos se fixam numa linha de texto, dura centsimas de segundo. Neste

    nfimo tempo os olhos fixaram um leque muito variado de informao a transmitir

    ao crebro. Percecionaram vrios conjuntos entre letras, palavras, ou partes de

    palavras. Ou seja, percecionaram signos que podem ser iguais a palavras, maiores que

    palavras, e, por si s, no coincidentes com a linearidade da palavra.

  • 7

    Comeamos por referir movimentos oculares, mas j implicmos a memria no

    processo, pois necessria a capacidade de reconhecer os sinais grficos da leitura

    (memria visual icnica)4 e, proceder a uma anlise lingustica dos mesmos (memria

    de trabalho)5. Logo que os olhos se detm num determinado ponto do texto, comea

    a extrao ou reconhecimento da informao, verificando-se que, tal como o tempo

    de fixao depende do material de leitura, quanto mais difcil for o texto, maior ser o

    perodo de fixao. Mais ainda, as palavras grandes e menos frequentes, os verbos

    principais das frases e o comeo de um novo tema, tambm implicam um tempo de

    fixao extra ou mais prolongado6.

    A explicao do processo de perceo bem mais complexa, as poucas linhas

    que lhe dedicmos neste trabalho so as imprescindveis para dar conta que no h

    ato de leitura que possa prescindir dos sentidos no desencadear das operaes.

    Falta explicar o que impede o nosso leitor comum de Lngua Portuguesa de

    ler os carateres rabes, cambojanos, gregos apesar dos movimentos oculares

    ocorrerem na perfeio, e de identificar e reconhecer pelo padro visual, que

    aqueles carateres servem para ser lidos.

    O primeiro percalo deste leitor que no reconhece o lxico. No descodifica

    porque no aprendeu a discriminar e a identificar as letras isoladas ou em grupo, no

    consegue decifrar e consequentemente o seu lxico mental no ativado. O

    desconhecimento dos grafemas e da sua correspondncia sonora fonemas, a

    impossibilidade de fazer analogias com palavras suas conhecidas, no lhe permitem

    extrair qualquer informao semntica. Dito de outro modo o leitor no descodifica,

    no consegue transformar smbolos impressos em linguagem com significado.

    Como referimos, para ler necessrio aceder ao lxico mental. De seguida

    fazemos uma breve referncia a este processo.

    Os investigadores chamam lxico mental ou interno ao conjunto de todas as

    palavras que a pessoa conhece e s quais atribui os significados que lhe permitem o

    uso orientado do discurso. Cada indivduo possui, nesta medida, o seu dicionrio

    interno que vai sendo acrescentado no decorrer das interaes da sua vivncia em

    4 CRUZ, Vtor Uma abordagem cognitiva da leitura.Lisboa:LIDEL,2007.ISBN 9789727576412.p.59

    5 Idem

    6 Ibidem

  • 8

    comunidade. Este patrimnio que comea a ser adquirido na pequena infncia de

    valor inestimvel para a comunicao ou, melhor dito, para participar ativamente na

    sociedade. O dicionrio interno anterior aprendizagem da leitura e da escrita, mas

    condio essencial para o bom desempenho destas atividades o seu constante

    desenvolvimento.

    Segundo as palavras de Vtor Cruz, citando outros autores7, o lugar ou

    estrutura mental, que constitui a matria-prima ou as unidades com as quais os

    leitores constroem significado, denominado lxico interno, e na construo deste tipo

    de memria ou informao sobre as palavras (armazenada em algum lugar do nosso

    sistema cognitivo) participam distintas fontes, como so: a fonolgica, a pragmtica, a

    sinttica, a semntica e a ortogrfica. Deste modo, o reconhecimento ou a

    identificao de uma palavra escrita consiste na ativao de uma determinada

    entidade lexical, ou seja, na evocao de todos os conhecimentos que o leitor tem em

    relao a essa palavra8 .

    Transcrevemos esta citao, porque o que nos ocupa , precisamente, o

    desenvolvimento de competncias de leitura partindo da mobilizao de

    conhecimentos prvios que favoream a compreenso textual.

    J dissemos que a leitura uma atividade percetiva de longa durao. Vamos

    tentar explicar como percebe e compreende o nosso leitor comum os textos. Este

    perceber consiste em reconhecer informaes. O reconhecer implica comparar as

    informaes que chegam ao crebro pelos sentidos com as categorias percetivas

    armazenadas na memria atravs das experincias, que constituem o nosso

    patrimnio de saber, em linguagem de bibliotecrio a nossa Biblioteca Interior,

    perfeitamente organizada e em constante atualizao, mas sempre disponvel em livre

    acesso. Sem este patrimnio nem sequer se percebe a informao inicial.

    Todavia, o reconhecimento da informao no automtico. uma deciso

    que tomamos tendo em conta as exigncias da situao. Exemplificando: cruza com o

    nosso olhar algo com penas a esvoaar, apresenta as caractersticas suficientes para

    que a mente decida que , efetivamente, um pssaro. Esta deciso to rpida que se

    7 CITOLER, S.D. (1996)- Las dificuldades de aprendizage: un enfoque cognitivo lectura, escritura,

    matemticas. Malaga:Ediciones Aljibe. [e ainda] VEGA, F.C.(2002)- Psicologia de la lectura: diagnostico y tratamiento de los transtornos de lectura. Barcelona: Praxis. 8 Obra citada: Vitor Cruz Uma abordagem cognitiva da leitura (2007). p.63

  • 9

    produz inclusivamente uma antecipao da informao, diramos uma previso. No

    se esperaria um paquiderme esvoaante.

    No caso concreto da leitura, esta agilidade mental muito importante. O leitor

    tambm adota esta atitude de espera percetiva quando seleciona um mbito para

    focalizar a sua ateno e nele espera produzir reconhecimentos. Num texto muito

    curto, o imediatismo do reconhecimento pode esgotar-se no prprio ato de leitura.

    Nos outros tipos de textos, ou quanto mais complexo for o texto para o leitor, o

    reconhecimento, a perceo, no mais que o principio, um aspeto parcial do ato de

    ler. Nestes textos necessrio desenvolver estratgias de perceo ou de predio dos

    sentidos.

    Para exemplificar o que queremos explicar servimo-nos de uma situao que

    vivencimos. Quando aprendemos a conhecer as letras do alfabeto grego e pudemos

    compor as slabas (fizemos a fuso silbica), continumos o nosso estudo para compor

    palavras (fizemos a fuso intersilbica) e, posteriormente, quando j percebamos e

    dominvamos os limites das palavras, foi possvel compor frases curtas. Apesar da

    linearidade deste percurso de aprendizagem, em que as etapas se sucedem

    ordenadamente, perdia todo o sentido quando um conjunto de frases curtas era

    apresentado para leitura. Hoje identificamos a causa da dificuldade. Avanar palavra

    por palavra ao longo do texto, por pequeno que seja, no permite compreender. Para

    compreender uma frase, h que pr cada palavra em relao com a estrutura de toda

    a frase at ao ponto final e o mesmo deve ir ocorrendo com cada frase no interior do

    texto. Sem estas relaes no se extrai o sentido do texto, fica sem nexo a leitura. A

    no ser que j se conhea quase tudo do texto antes de o ler.

    O leitor avana sobre o texto estabelecendo hipteses sobre o que pode

    encontrar, articulando uma reteno pontual de dados com a identificao das

    estruturas textuais. Conforme avana na leitura, verifica a hiptese inicial e, ou a valida

    ou considera a sua necessria modificao, ou ainda, a hiptese se revela de tal forma

    contraditria com as espectativas, que impele a uma nova leitura. Quando as

    expetativas so goradas, uma aps outra, o leitor deixa cair o texto. Quem nunca

    experimentou textos impenetrveis ou melhor temporariamente incompreensveis!

    De qualquer modo, os estudos sobre a compreenso na leitura assinalam que a

    compreenso de um texto o produto de um processo regulado pelo leitor e no qual se

  • 10

    produz uma interao entre a informao armazenada na memria daquele e a

    proporcionada pelo texto 9 .

    Continuando a nossa breve anlise sobre a compreenso na leitura, no sentido

    mais amplo do lexema compreenso, podemos afirmar que para a execuo de uma

    leitura hbil concorrem uma srie de operaes, que partem da anlise visual dos

    estmulos. No entanto, apesar de imprescindveis e condutoras para o reconhecimento

    das palavras, estas operaes no so suficientes para assegurar que a compreenso

    ocorra.

    De facto se o leitor no puder armazenar a informao do texto, se no tiver

    conhecimentos prvios sobre o mesmo, se no retirar informao essencial ou se no

    estabelecer ligaes, um vnculo, entre a informao que o texto proporciona e o seu

    capital interno de saber, o processo de compreenso falha.

    Na definio inicial sobre, o que ler, j se mencionava a leitura como

    atividade de procura de informao. evidente que a leitura um mecanismo de

    obteno de informao. O que diferencia uma leitura de outra , precisamente, o que

    se pretende fazer com essa informao (desempenhar uma tarefa, fantasiar, evadir-se,

    aprender, disfrutar). em funo do que se pretende que se selecionam as

    informaes. Ento ler , inclusivamente, ter escolhido antes o que se h-de recolher

    de informao com a leitura, neste sentido ler projeto.

    Dissemos tambm, com a definio inicial, que ler actividad social,

    intelectual y emocionalmente compleja. A leitura como atividade social fruto de um

    processo educativo, onde est implicada a sociedade que o instituiu e que no pode

    reduzir-se s questes instrumentais do aprender a ler e a escrever. Alis a

    aprendizagem da leitura e da escrita no constituem um fim em si mesmo, sendo na

    realidade instrumentos que vo permitir melhorar o sistema lingustico e comunicativo

    da pessoa, proporcionando-lhe as chaves para o acesso a outras aprendizagens e para

    a prpria interveno social. Um analfabeto de certo modo um marginal em relao

    ao mundo em que hoje se vive, a sua autonomia impraticvel; para agir nas mais

    diversas circunstncias necessrio dominar o ler.

    9 Obra citada: Vitor Cruz Cruz Uma abordagem cognitiva da leitura (2007). p.71

  • 11

    O que socialmente preocupante, hoje em dia, j no o analfabetismo dos

    meados do sculo XX, mas o analfabetismo funcional que denominamos grosso modo

    por iliteracia.

    Por fim, ler : um processo afetivo. A Psicologia, de Piaget a Vygotsky, cito

    estes nomes porque os entendo como um caminho para entender as questes do

    desenvolvimento das aprendizagens, no deixa de estabelecer relaes entre a

    cognio e a motivao. Na motivao joga-se com os afetos, dito de outro modo, os

    fatores afetivo-motivacionais tm alto nvel de influncia no rendimento esperado da

    pessoa. O interesse pela aprendizagem da Leitura, e da leitura de poesia em concreto,

    neste relatrio, tem neste processo afetivo o seu campo privilegiado de ao.

    Para concluir sobre o que ler, pode-se conceber a Leitura como sistema, no

    qual todos os componentes funcionam em simultneo e em interao contnua.

    Parece bvio que h uma cadeia de procedimentos e processos, e que uma pequena

    falha na engrenagem condiciona o desempenho e os nveis de proficincia do leitor.

    2. Perspetivas: O valor educativo da Leitura da Antiguidade

    Clssica aos nossos dias.

    Procurar-se- neste subtema reconciliar o nosso tempo com o passado e a

    nossa cultura com a cultura matricial greco-latina, consumando-se deste modo o

    reencontro com a Antiguidade. Temos para ns tambm que, s quando desce s suas

    origens, pode o homem ter pleno conhecimento de si prprio.

    O que nos ocupa a Leitura e procuramos agora demonstrar que desde sempre

    lhe foi reconhecido valor educativo, mesmo que, paradoxalmente, durante sculos a

    velha Europa a tenha proibido, ou subtrado o mais possvel, o seu ensino a uma

    grande parte da populao. Estamos a referir as questes sociais de gnero e de

    estrato social as mulheres tornavam-se, ainda mais, perigosas quando liam. E toda

    a populao que cabia no termo genrico de massa bruta, destinada ao trabalho

    braal, igualmente, perigosa, mesmo sem as ideias, braos sem ideias num

    anacronismo histrico, autmatos sem esprito!

  • 12

    Foi, afortunadamente, porque muitos cuidaram em nos ensinar a ler, que hoje

    nos atrevemos a escrever sobre leitura. Para ns o termo valor educativo da leitura

    remete para um outro, abertura de esprito.

    A leitura conduz, at mesmo pela complexidade que o ato de ler implica, ao

    desenvolvimento e educao do esprito.

    A educao do esprito um legado dos Gregos. Tomo as palavras de

    Heraclito10 para definir a essncia humana para depois atravs de uma citao de

    Jaeger11 procurar concretizar:

    A essncia humana

    Aos homens todos dado conhecerem-se a si mesmos e saberem pensar

    Na profunda intuio de Heraclito, o universal, o logos, o comum na essncia

    do esprito, como a lei o comum na cidade. No que se refere ao problema da

    educao, a conscincia clara dos princpios naturais da vida humana e das leis

    imanentes que regem as suas foras corporais e espirituais tinha de adquirir a mais

    alta importncia.

    Colocar estes conhecimentos como fora formativa a servio da educao e

    formar por meio deles verdadeiros homens, como o oleiro modela a sua argila e o

    escultor as suas pedras, uma ideia ousada e criadora que s podia amadurecer no

    esprito daquele povo artista e pensador. A mais alta obra de arte que o seu anelo se

    props foi a criao do Homem vivo. Os Gregos viram pela primeira vez que a educao

    tem de ser tambm um processo de construo consciente. Constitudo de modo

    correto e sem falha, nas mos, nos ps e no esprito 12

    No nossa inteno discorrer exaustivamente sobre os modelos de educao

    na Grcia Clssica ou no Mundo Romano. No nos consideramos sequer

    10

    HERACLITO (fr.116 Diels-Kranz)- feso Sc.VI-V a.C. 11 JAEGER, Werner Wilhelm, 1888-1961 -Paidia: a formao do homem grego = / Werner Wilhelm Jaeger ; [traduo de Artur M- Parreira; Adaptao do texto para Edio Brasileira Mnica Stahel M. da Silva; reviso de texto grego Gilson Cesar Cardoso de Sousa]. 2.ed. So Paulo : Martins Fontes, 1979. ISBN 85-230-0210-3. p. 9 12

    SIMNIDES, frg.4,2 [este fragmento citado de JAEGER, que por vez o toma de PLATO na obra Protgoras. Plato simula nesta obra um dilogo argumentativo entre Scrates e Protgoras sobre a (arete fora e capacidade para a virtude) que para Protgoras (em nome dos sofistas) pode ser atingida pelo domnio educacional da poesia.

  • 13

    academicamente preparados para o fazer, antes pretendemos evidenciar perspetivas

    sobre a educao que nesses tempos, como nos de hoje, implicaram a arte de saber

    ouvir, saber falar, saber ler e escrever, envolvendo nesta arte o aprendente e o

    pedagogo.

    Sem nos determos, no poderemos deixar de evocar Homero. Todos os

    estudiosos desde a antiguidade lhe reconhecem o mrito de ter sido o primeiro com

    verdadeiras preocupaes educativas. Os mitos que eternizou na Ilada e na Odisseia

    contm vrios significados, mas possvel extrair em muitos versos o apelo reflexo,

    normas de conduta e a pedagogia do exemplo. Homero foi a primeira Escola da Grcia.

    Faremos de conta que a escola sempre existiu, no como a instituio que hoje

    nos serve, mas pelo menos como o pensadouro de Scrates, retirando-lhe, ao

    Pensadouro, toda a carga pejorativa, j nestes tempos a didtica gerava controvrsia,

    que Aristfanes na comdia Nuvens escreveu, na convico de estar a apresentar ao

    pblico o melhor de si prprio e toda a sua experincia acumulada.

    Pesa-nos a conscincia por chegar a Aristfanes sem, ao menos, nomear

    squilo. As suas tragdias ainda hoje podem ser uma catarse propiciando vrias

    leituras para os conflitos entre o indivduo e o mundo. E seria imperdovel que

    deixssemos Sfocles e Eurpides sem nenhuma referncia, pois, para muitos, eles so

    dos maiores dramaturgos da Grcia. O valor educativo do teatro, trgico ou cmico,

    inquestionvel. D a pensar pela emoo. Ontem, como hoje, os autores empenham-

    se no diagnstico desapiedado dos males de que a sociedade sofre, numa

    transferncia da esfera do quotidiano para o palco. Atravs da dor dos outros, a

    tragdia faz com que nos interroguemos a ns prprios. Uma das leituras que nos so

    permitidas fazer que o conflito governa o mundo, mas tambm que se situa

    igualmente em ns mesmos.

    Quando Aristfanes apresentou as suas comdias, que tinham,

    indiscutivelmente, um carater didtico, o teatro estava ao servio da reflexo. Era uma

    imensa aula ao ar livre, o enredo das peas permitia expressar o pensamento livre

    contra a tradio. O cmico alimenta-se do prprio pblico para lhe fazer ver, de

    forma ampliada pelo espetculo e numa distncia segura, caricaturada, os seus

    defeitos e a sua maneira de ser. As personagens que fazem rir de troa pertencem

    eterna natureza humana (inveja, avareza, jactncia, cupidez, ambio), assim como

  • 14

    os factos e rostos da atualidade: guerra, rivalidades politicas, intrigas do momento,

    dirigentes polticos,

    Que leituras do espetculo fariam os espetadores daquele tempo? As mesmas

    que se fazem hoje, em muitos dos aspetos. O que faz rir ou chorar o espetador? As

    suas prprias histrias, as suas pequenas misrias, as suas grandes desgraas, as suas

    excentricidades, as suas ridicularias, as suas querelas politicas, as suas inquietaes

    econmicas,

    Por mais elementar que seja este percurso sobre o valor da Leitura na

    educao da Grcia antiga, h nomes que so incontornveis e no podemos de

    facto subtra-los. Para nos situarmos, antes de fazer a transio para o mundo romano,

    teremos que tocar em Plato e, atravs dele, em Scrates. No poderemos omitir

    Aristteles e faremos a ponte para os latinos com Plutarco.

    Seremos prudentes na escolha das palavras, porque inmeras leituras se

    fizeram, continuam e continuaro a fazer, na esteira do pensamento de Scrates e

    Plato sobre os valores da educao. A pergunta bvia que nos ocorreu, porque a

    leitura o nosso trabalho, foi perguntar a estes Mestres clssicos o que se dever ler

    para desenvolver o esprito. Depurmos muitas leituras que fizemos, apoimo-nos em

    Jaeger para abordar os Mestres distncia de vinte e cinco sculos. A resposta nossa

    pergunta parece inscrita nos carateres de Delfos: Conhece-te a ti mesmo. Nestas

    palavras ns lemos: Faz uma viagem guiada ao interior de ti mesmo e nesse

    encontro com a tua alma encontrars as leituras que, por agora, te faltam.

    Se fosse esta a resposta, j l estava inscrita no tempo histrico de Scrates e

    Plato. E, no entanto, Scrates para nos fazer chegar at ela usou os livros de carne e

    osso, os homens com que travou os dilogos. Plato foi o principal cronista destes

    livros, destas lies casuais de inocncia aparente. Scrates induziu-nos a usar a

    reflexo, a alimentar o espirito com o Saber. A virtude (arete) resulta do acesso e

    conquista do Saber (episteme). Este Saber tem implcito aquilo que

    verdadeiramente se tem, por outras palavras, o tudo que tenho a educao: uma

    forma interior de vida, uma existncia espiritual, uma culturaum autodomnio, o

    conhecimento do bem que me impede de errar voluntariamente. Quando se atinge o

    domnio completo de si prprio, adquiriu-se, julgo, o conceito mais perfeito de

  • 15

    liberdade. O destempero das paixes estar ultrapassado e haver por certo harmonia

    entre a existncia moral do Homem e a ordem natural do Universo. F?

    No este o local indicado para seguir em todos os pormenores, j o referimos,

    fiquemos por conseguinte nas noes essenciais que colhemos no Protgoras de

    Plato e que nos interessam pela perspetiva pedaggica.

    A teno que gerada no leitor pelos dilogos tem uma eficcia pedaggica

    incontestada. Esta eficcia educativa reside na arte de despertar no aprendente/leitor

    a participao ativa. O nosso pensamento (do aprendente/leitor), associando-se ao

    dos outros procura adiantar-se ao andamento da discusso. E Plato, embora parea

    colocar um ponto final na conversa, sem qualquer resultado positivo, no uma s, mas

    muitas vezes, consegue fazer o pensamento avanar, por nossa conta, na direo para

    a qual o dilogo nos encarreirou. Resultado? Plato pretende pr-nos nas mos um

    enigma, deixando a ns resolv-lo, pois entende que a sua soluo se encontra de um

    modo ou de outro ao nosso alcance. Estamos a ler Plato luz de Vygotsky e da

    teoria de Zona de Desenvolvimento Proximal o que improcedente. Racional poder

    ser que, a Vygotsky, Plato no seja desconhecido, e por consequncia, a Zona de

    Desenvolvimento Proximal seja uma leitura possvel.

    Porque so diversos os modos de ler, que esmiuaremos no terceiro ponto

    do enquadramento terico deste trabalho, e porque no poderamos omitir Aristteles

    no elenco das perspetivas que procuramos expor sobre a leitura como educadora do

    esprito, faremos uso das suas prprias palavras mediadas pela traduo de Maria

    Helena R. Pereira na Hlade.

    A epopeia e a poesia trgica, bem como a comdia e o ditirambo e a msica de

    flauta e de ctara, na sua maior parte, so todos, de um modo geral imitaes

    (). Diferem, contudo, em trs pontos: ou pelo facto de imitarem por meios

    diversos, ou por outras coisas, ou de outra maneira, e no da mesma.

    Com efeito, assim como muitos imitam pelas cores e pelo desenho, a imagem

    de muitas coisas (uns devido sua arte, outros ao hbito), outros ainda por meio da

    voz, assim tambm nas referidas artes. Todas elas executam a sua imitao com o

    ritmo, a palavra, a harmonia, ou isoladamente ou combinados.13

    13

    ARISTTELES Poesia e Imitao (Potica, 1447 a). In PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Hlade.10 . edio. Lisboa: Guimares Editores, 2009. ISBN9789726656258. p.438.

  • 16

    Aristteles, que afirma, na Potica, que todos os homens tm o desejo natural

    de Saber, pronuncia-se sobre o modo como deveremos extrair leituras sobre as aes

    do Homem escritas na Histria ou na poesia:

    A poesia mais filosfica e mais elevada do que a Histria, pois a Poesia conta

    de preferncia o geral, e a Histria o particular. O geral, aquilo que, segundo a

    verosimilhana ou a necessidade, dir ou far certo homem []. O Particular o que

    fez ou aconteceu a Alcibades.14

    [] Por consequncia, no devemos procurar absolutamente fixar-nos nos mitos

    tradicionais, sobre os quais versam as tragdias. Seria at ridculo procur-lo, uma vez

    que os temas conhecidos o so apenas de um pequeno nmero, e mesmo assim

    agradam a todos. Destes factos ressalta que o poeta deve ser mais criador () de

    mitos do que de metros, na medida em que ele poeta por meio da imitao (),

    e so aes o que ele imita. E, quando acontece desenvolver temas reais, nem por isso

    deixa de ser seu criador (), pois nada impede que alguns dos acontecimentos

    sejam tal como seria natural e possvel que se dessem. []15

    Com Plutarco procuramos fazer uma sntese das perspetivas sobre o valor

    educativo do Ler. Plutarco foi cognominado por muitos como o Educador da Europa

    e faremos com ele a transio para a antologia de Leitura que herdmos do Mundo

    Romano. Pois, sendo Plutarco historiador Grego tornou-se cidado romano.

    Para mediar o processo tomamos as palavras de Jacynto Lins Brando16

    proferidas no congresso realizado na Universidade de Coimbra, em 1999. Este

    investigador, no referido evento, procurou fazer uma cadeia de reflexes sobre o

    tratado de Plutarco, conhecido pelo ttulo comum Como se devem ler os poetas

    que a tradio inclui nos Moralia.

    Mais adequado ao que nos ocupa, por certo, no poderamos to

    imediatamente encontrar. Pela leitura de Jacynto L. Brando o excerto pode ser

    nomeado como tratado porque do mbito da prxis da leitura de poesia e da

    relao entre os estudos adequados que os jovens devem fazer.

    14

    Idem Histria e Poesia (Potica, 1451 b) 15

    Ibidem Poiesis e mimesis (Potica, 1451 b) 16

    BRANDO, Jacynto Lins A formao do leitor em Plutarco (poesia, filosofia e educao em DE AUDIENDIS POETIS). In: Actas do Congresso Plutarco Educador da Europa. Edio da Fundao Eng. Antnio de Almeida, Porto:2002. ISBN 972-8386-41-9

  • 17

    Plutarco insere-se numa larga tradio que reconhece uma funo educacional

    poesia, no contexto de prticas em que o contato com os poetas constitui o principal

    recurso pedaggico e, no entanto, no deixa de ter uma preocupao com os efeitos

    que a poesia pode causar no caminho da educao do esprito. Plato j tinha

    advertido sobre a mesma aporia na Repblica.

    Reconhecendo como indispensvel formao, a leitura de poesia, por forma a

    atingir a retido de carter, to desejvel ao cidado, Plutarco estabelece uma paideia.

    Cabe portanto educao ensinar a ler e a ouvir (e a ver e pensar), a partir de

    uma reta pedagogia, que no ope a tica esttica. O que se exige ento

    capacidade de discernimento () e juzo () da parte do leitor, para

    que frua o que h de esttico e aprenda o que houver de tico.17

    O que pode uma leitura desatenta de poesia prejudicar no processo

    educativo? Retomamos Plutarco nas palavras do investigador.

    A iluso enganadora ( ), o fabuloso ( ), o dramtico

    ( ), todos estes afastamentos e deslocamentos do real que so inerentes

    poesia. No h como eliminar dela tudo isso, mas disso pode-se tirar vantagem,

    incutindo-se no leitor capacidade de julgamento (), pela aproximao e mistura,

    Poesia da Filosofia.

    Assim, o primeiro ensinamento a ministrar ao jovem que, como afirma Slon

    muito mentem os aedos ou os poetas []. Se, como escreveu Plutarco antes, o que

    comea bem, bem acaba, esse primeiro preceito constitui a base, o princpio e origem

    de sua crtica literria, cujo sentido deve ser bem determinado: no se trata apenas de

    admitir que os poetas mentem; mas de definir como bom ouvinte ou leitor aquele que

    sabe e nunca se esquece de que os poetas mentem. Isso significa que se espera que o

    leitor estabelea com os poetas um pacto de leitura diferente do que celebra com os

    filsofos.

    Que lies tirar do que expusemos sobre a didtica de Plutarco para o ensino

    da poesia, ou melhor dito, para a formao do leitor?

    Resumimos: Do ponto de vista pedaggico, Plutarco induz a necessidade de

    uma prtica de leitura, para bem ler. Ou seja estamos no mbito da formao do leitor

    e no na formao do poeta (na escrita da poesia). 17

    Citado ipsis verbis de A formao do leitor em Plutarco. In: actas do congresso []

  • 18

    Colhemos uma definio cristalina: A competncia potica arte () e

    capacidade () mimtica equivalentes da pintura. J o suspeitvamos, e este

    relatrio dar testemunho desta proximidade e equivalncia artstica.

    Ler adequadamente perceber adequadamente como se faz, para que se possa

    discernir o que prprio da representao, o que decorre da lgica interna da

    construo formal da poesia. A leitura de poesia um processo complexo que exige

    preparao. Porque a verdade se oculta nas dobras do discurso variado, colorido,

    mltiplo. Exige pois um leitor arguto, que atravs da anlise possa levar em conta os

    elementos internos do poema (ao nvel da linguagem, das imagens e dos sentidos),

    mas tambm da comparao e relao de uma obra com as demais do mesmo gnero

    ou mesmo com outras de gneros diferentes.

    Todos estes ensinamentos pedaggicos que colhemos da Grcia procurmos

    pr em prtica nas nossas aulas, porque lhe reconhecemos ainda hoje a autoridade

    devida aos grandes Mestres. Todavia, apesar de extenso, este subtema terico do

    nosso trabalho no estar completo sem a humanitas, porque s imbudos dela

    aceitmos o desafio de nos darmos no processo de ensinar.

    Como somos tambm herdeira cultural do Circulo do Cipies, atrevemo-nos a

    reunir neste trabalho um conjunto de autores e obras latinas que estiveram em

    fantasma presentes nas aulas que ministrmos. Porque foi tambm nessas leituras

    que a faculdade nos educou, fazendo-nos perceber a responsabilidade que temos em

    no permitir que as nossas razes culturais se cortem e se evada das nossas salas de

    aula, pelo tecnicismo acentuado, a amplitude humana.

    A poesia de autores portugueses que trabalhmos nas aulas de Portugus do

    10 Ano estava delimitada pelo prprio Programa, num hiato cronolgico entre os

    sculos XVI e XX. A poesia que demos a ler, em mediao, nas Oficinas de Cultura

    Clssica, cronologicamente comeou no sculo VIII a.C. com Homero e foi percorrendo

    os sculos, nas diversas leituras que os grandes mestres, clssicos e contemporneos,

    fizeram dos mitos.

    Foram as fontes clssicas que estiveram no nosso esprito e nos permitiram

    encontrar, pelo seu eco no lirismo de Cames, de Gedeo, de Torga ou de Sophia, um

    fio condutor, a essncia do que intemporal na Humanidade: o amor (ou o sentimento

  • 19

    do que belo), o dio (ou as paixes desenfreadas), o desengano (ou desconcerto do

    mundo), o medo da morte (ou a conscincia da perenidade da existncia).

    Retomando a continuidade no enquadramento terico que nos propusemos

    fazer, apresentamos as intertextualidades que o nosso honesto estudo permitiu

    encontrar entre os mestres latinos e a poesia que demos a ler.

    Inicimos o priplo pelo lirismo latino com Gaio Valrio Catulo18 que se

    enquadra numa escola literria que ficou conhecida na Literatura por poetae noui ou

    (como os invetiva Ccero19 quando os denomina em Grego) ou mais prximo

    do Portugus por alexandrinistas ou poetas novos.

    De facto, Catulo pertenceu a uma nova gerao de poetas que, imbudos do

    esprito da Alexandria do sculo III a.C., escrevem, num formalismo menos austero,

    (era contrrio aos costumes romanos uma poesia do devaneio), sobre temas que os

    seus contemporneos, estamos concretamente a referir Ccero, consideraram

    menores. O jovem Catulo (morreu na casa dos trinta anos) era um apaixonado que se

    atreveu a amar quem no devia, colecionou inimizades nos crculos do poder (o

    prprio Jlio Csar teve com ele uma relao de amizade conturbada) e sentiu

    dificuldades financeiras, o que o levou Bitnia, durante um ano, sem, no entanto,

    conseguir alcanar a riqueza que pretendia. Perdeu, ainda, um irmo que amava

    Com estes traos largos do seu percurso de vida pretendemos chegar sua

    obra, ou melhor, s leituras em intertexto da poesia lrica de Catulo que povoavam o

    nosso espirito, quando tivemos o privilgio de guiar a viagem dos nossos alunos pela

    poesia.

    O autor deixou posteridade uma antologia com 116 composies poticas.

    Selecionadas por si e destinadas composio de um pequeno livro libellus

    intitulado Catull Vernnsis liber, que dedicou ao seu amigo Cornlio Nepos. Nesse

    livro os Carmina (as composies em verso que, neste caso, se encontram

    identificadas pelo nmero de ordem que assumem na antologia) no obedecem a um

    18

    Gaius Valerius Catullus (Gaio Valrio Catulo) viveu em Roma no sculo I a.C. de todos os autores latinos se apresentar uma sntese biogrfica nos anexos deste trabalho. No corpo do texto do Relatrio apresentamos os excertos das obras que nos nortearam. 19

    Mrcus Tullius Cicer (Marco Tlio Ccero) Cidado, Homem no sentido universal do termoRoma no sculo I a.C. a aluso grupo inovador dos poetas modernos feita em: Cartas a tico VII.2.I com o termo grego e tambm em O Orador 48.161. Assim nos d conta Maria Helena da Rocha Pereira nos Estudos de Histria da Cultura Clssica: II Volume, Fundao Calouste Gulbenkian, 2009 p.102.

  • 20

    critrio temtico, to pouco a um critrio cronolgico, em vez disso a coerncia

    organizativa que se deteta est baseada em consideraes de carcter mtrico20.

    Assim, um primeiro grupo de composies mais curtas (at composio 60) apresenta

    vrios esquemas mtricos, mas em que predomina o Hendecasslabo falcio*; h de

    seguida, um grupo de composies mais longas (61-64), em que predomina o

    Hexmetro* e, finalmente, possvel observar um terceiro grupo com poemas em

    Dsticos elegacos*21.

    Foi exatamente o lirismo de Catulo que a nossa Biblioteca Interna nos

    devolveu. Perfeitamente catalogado e indexado na prateleira cerebral das leituras dos

    Clssico Latinos que tivemos oportunidade de estudar.

    Concretizando, presente no nosso esprito est o Carmem III [a morte do

    pardalinho], o nosso thesaurus interno relacionou o passarinho morto de Lsbia ao

    rouxinol de Bernardim Ribeiro, s aves de Cames ao de Garrett na menina dos

    rouxinis, ao rouxinol de Florbela Espanca aos vrios Bichos de Miguel Torga e,

    inclusive, aos rouxinis do poema de Torga que trabalhmos o Orfeu Rebelde.

    Saltmos vrios degraus do thesaurus, porque no ignoramos que o lirismo de Catulo

    h-de por fora do prprio Cronos, ter inspirado em Virglio22 Buclica I 23e, ainda, O

    livro III e IV das Gergicas24. Estamos a referenciar estas grandes obras da literatura a

    trao muito largo, num esboo tosco, mas nesta fase do nosso trabalho o cabimento

    que poderemos dar-lhes. Pesa-nos embora a conscincia.

    20

    Cf. Jos Manuel Nunes Torro, 1. Gaio Valrio Catulo. In: Latim I: Lngua e Cultura (Universidade Aberta, 1994), p. 12-80 21

    Idem: Obra citada p. 17 * Algumas noes sobre as denominaes de mtrica esto remetidas para os anexos por economia de espao no corpo do Relatrio. 22

    Pblius Virgilius Mar (Pblio Virglio Maro) viveu na segunda metade do sculo I a.C. 23

    BUCLICA I A Coletnea das Buclicas compreende dez clogas. So cantos de pastores que apascentam o gado num lugar aprazvel, uma espcie de paraso irreal, chamado Arcdia. Inspiram-se nos Idlios de Tecrito, poeta helenstico de origem siciliana, cuja obra j conhecida em Roma. A coletnea ser alvo de uma sntese descritiva das clogas nos anexos deste trabalho. 24

    GERGICAS composio potica de Virglio publicada em 30 a.C. A obra nasce sob inspirao de um desejo de paz (Paz Brindes antes do 2 triunvirato). As Gergicas cantam a terra, a natureza, o trabalho do campo, os cuidados a ter na agricultura, os preceitos de como semear, cuidar e colher os cereais (livro I), os cuidados com as rvores, em particular as videiras (livro II), a ateno a prestar ao gado (livro III), e, finalmente, a apicultura (livro IV). O modelo de composio vai Virglio buscar Grcia Clssica. Est na nossa mente Hesodo em Trabalhos e dias, mas tambm Cato (tratado Da agricultura), Varro (Vida rural), Teofrasto (Histria das Plantas), Aristteles (Histrias dos animais). Maior detalhe sobre as Gergicas nomeadamente sobre o livro IV ser dado quando referirmos o nosso trabalho sobre o mito de Orfeu.

  • 21

    Pela mesma perspetiva de leitura, ou tendo em conta que Catulo foi um dos

    primeiros lricos da histria literria latina, temos o autor na conta de um modelo

    inspirador que atravessa toda a lrica desde ento. Os seus motivos de inspirao

    assumem formas poticas diferentes, mas onde se reconhece o parentesco do que

    possvel indexar como pertencendo ao Gnero Lrico.

    Em mltiplas reminiscncias, ao nosso espirito acode Catulo em Leituras de

    Virglio, mas tambm no livro III de Horcio25, nas Metamorfoses de Ovdio, na Lrica

    de Cames

    Terminamos este preambular pelas leituras do gnero lrico que a educao

    nos proporcionou, talvez a despropsito, em Garrett.

    Acode ao nosso esprito, saltando da prateleira da nossa memria literria, o

    Carmem LXXXV [odi et amo] de Catulo, quando Almeida Garrett diz No te amo,

    quero-te [] e, a mesma contaminatio nos percorre as sinapses quando aos nossos

    alunos demos a ler que o amor um fogo que arde sem se ver / ferida que di[]

    ou, ainda que [] violncias famintas de ternura[] se podem conter em Eurydice

    perdida [].

    Propositadamente se truncaram leituras, para que possamos restabelecer o fio

    condutor deste Relatrio, deixando claro que reconhecemos como estratgico para o

    ensino da compreenso na Leitura o despertar no leitor dos conhecimentos a priori do

    texto. Estes conhecimentos prvios que o leitor detm e que resultam da sua

    experincia, do seu saber ou, resumidamente, da sua vivncia que lhe permitiro

    estabelecer as inferncias que a leitura proporciona e enquadr-las nos esquemas

    concetuais que vai possuindo. Disso daremos de seguida.

    3. As modalidades de Leitura ou os diversos modos de Ler.

    25

    Quntus Hortius Flaccus (Horcio). Contemporneo de Virglio, sculo I a.C. Homem de letras de esmerada educao, vem a pertencer ao crculo de Mecenas. Daremos conta de uma pequena sntese da sua obra em anexo a este trabalho, porque um modelo potico e um modelo de pensamento que influenciou profundamente a literatura da Europa ps Renascimento. A presena deste autor inequvoca de S de Miranda ao heternimo de Pessoa Ricardo Reis. A Horcio julgamos dever a potica mais pungente sobre a fragilidade da existncia humana, tema to presente nos poemas que trabalhamos nas aulas.

  • 22

    Neste ponto do nosso trabalho procuramos, com alguma sustentao cientfica,

    responder a uma pergunta pertinente que j nos fizeram algumas vezes:

    Ler, porqu e, para qu?

    Os porqus do ler so dos mais variados. indiscutvel que a sociedade em

    que vivemos nos obriga a dominar o cdigo escrito para podermos comunicar no

    nosso dia-a-dia. Neste amplo sentido do comunicar, atravs do cdigo escrito, no ler

    traz ao indivduo consequncias sociais, culturais, polticas.

    O domnio da leitura , nos nossos dias, a mais fundamental habilidade

    acadmica para todas as aprendizagens escolares, profissionais e sociais. Tomando o

    lugar do domnio da sela ou da espada nos tempos medievos.

    A leitura constitui-se hoje como a base de todas as aprendizagens escolares, o

    que a torna um tema de grande relevncia e pertinncia. Motivo pelo qual, o ensino da

    leitura tem sido e continua a ser um tema capital na escola, um assunto que cria

    dvidas e expetativas a pais, professores, polticos e sociedade em geral. Com este

    termo to genrico queremos designar os que no pertencendo esfera do escolar,

    no lhes cabendo a posio de encarregados de educao, alheados da politica, tm,

    no obstante, sobre este assunto da polis opinies lapidares: ou que a escola no

    ensina a ler como era suposto, ou que d enfase a leituras pouco pertinentes para o

    cabimento social do individuo. Deixamos aqui este eco, porque no de todo

    despropositado se o considerarmos na diversidade de leituras que se podem fazer

    sobre determinado tema ou situao. O annimo cidado comum faz a sua leitura

    social e confronta os professores. Pedem-nos responsabilidades, sobre o que se faz, de

    facto, pela formao quando a porta da sala de aulas se fecha.

    No sendo possvel discutir a exata medida dos benefcios pessoais e sociais

    resultantes da prtica generalizada da leitura, so reconhecidas e, sobretudo,

    valorizadas, as consequncias de ordem cognitiva, econmica e social26. O nosso

    estudo centra-se no mbito do que do domnio do cognitivo. Neste domnio, no

    primeiro ponto deste enquadramento terico sobre o Ler, j demos conta que a

    leitura convoca nos letrados o desenvolvimento de capacidades de realizar abstraes

    26

    Dionsio, Maria de Lourdes Trindade A ordem da leitura: ler na escola. In: A construo escolar de Comunidades de leitores. Coimbra: Almedina, 2000. ISBN 9789724014142.p.29

  • 23

    que implicam posteriores generalizaes e conceptualizaes. O pensamento adquire

    elasticidade, porque a leitura obriga especulao.

    no ambiente destas especulaes, que os leitores fazem sobre o que lhes

    devido ler, que prosseguimos, centrando a nossa anlise nas operaes e estratgias

    que esto implicadas no ato de ler. Procuramos caraterizar a tarefa de ler a partir do

    pressuposto, bvio, de que a leitura de um romance na praia, a leitura de um jornal, a

    leitura de um memorando, ou a leitura na aula de portugus, certamente, no se

    processam do mesmo modo. Desde logo porque as motivaes para ler geram atos de

    leitura diferenciados.

    Concretizando, o romance pode ser o mesmo, mas l- lo na praia ou na sala de

    aula faz toda a diferena, porque a circunstncia gera dois atos de leitura diferentes

    sobre o mesmo texto. Ler na praia ser para descontrair, para passar o tempo e o livro

    pode ser fechado a qualquer instante, porque outro interesse nos conquistou a

    ateno. J o mesmo, no consentneo com uma postura de quem l na sala de aula

    por inerncia da sua atividade profissional (como professor ou como aluno). A mesma

    diversidade em atos de leitura se poder supor quando comparamos a nossa leitura de

    um texto que regula o nosso comportamento social, uma lei tributria, por exemplo, e

    a leitura que da mesma lei faz o funcionrio do fisco. Ou seja, a leitura que se realiza

    em mbito profissional fortemente condicionada pela execuo de tarefas inerentes

    profisso e difere da que se faz para obter uma informao avulsa no dia-a-dia, como

    difere da que se faz por lazer.

    Deixamos identificados neste estudo os diversos modos do ler e que se

    relacionam com o tipo de leitura que se pretende fazer. A tipologia dos atos de leitura,

    traduzida por Lourdes Dionsio de Kenneth Goodman identifica: leitura recreativa,

    leitura ambiental, leitura ocupacional, leitura para informao e leitura ritual.

    Atrevemo-nos a rebatizar a leitura ambiental, por leitura casual a que se faz nos

    nossos circuitos do dia-a-dia, as cidades esto cheias de carateres escritos, e a leitura

    ritual por leitura de protocolo.

    A leitura uma atividade motivada e determinada por um conjunto de

    circunstncias27 .

    27

    DIONSIO, Maria de Lourdes da Trindade A ordem da leitura: ler na escola. In: A construo escolar de Comunidades de leitores. Coimbra: Almedina, 2000. ISBN 9789724014142.p.37

  • 24

    A primeira circunstncia que universalmente ningum nasce leitor, a leitura

    resulta de um processo de aprendizagem. O processo de aprendizagem da leitura, em

    si, tem sido estudado ao longo do ltimo sculo, procuram-se justificaes explicativas

    para tomar opes quanto ao prprio processo de ensino da leitura.

    Muito resumidamente, estes modelos justificativos da aprendizagem da leitura,

    procuram explicar pormenorizadamente o funcionamento cognitivo da aprendizagem

    e o desenvolvimento do processo de aquisio de uma prtica leitora. Procuram, em

    sentido lato, clarificar as capacidades e as estratgias utilizadas no ato de ler e

    consciencializam quem ensina para a necessidade de ter em conta pr-requisitos para

    a aprendizagem da leitura.

    hoje unanimemente aceite que a leitura uma atividade mltipla, complexa e

    sofisticada, que implica a coordenao de um conjunto de processos de diferentes

    tipos, sendo a maioria deles automticos e no conscientes para um leitor fluente.

    Tambm comummente aceite que a leitura um processo no qual o leitor obtm

    informao a partir de smbolos escritos, sendo para tal necessrio que se comece por

    ser capaz de dominar o cdigo escrito, para depois se poder alcanar o seu significado.

    Foi o que tentmos expor no primeiro ponto do enquadramento terico deste

    relatrio.

    No sendo objetivo deste trabalho fazer uma reviso exaustiva dos modelos

    cognitivos de aprendizagem da leitura, faremos contudo uma abordagem muito

    resumida dos trs principais modelos tericos, os quais refletem um caminho que a

    pedagogia da leitura percorreu em diversas concees de leitura, que produziram

    diferentes mtodos de aprender a ler.

    MODELOS ASCENDENTES (BOTTOM-UP)

    Seguimos de perto a informao colhida em psicologia da aprendizagem da

    linguagem escrita28, para dar conta que os modelos ascendentes ou de baixo para

    cima concebem o processo de leitura como uma srie de estdios distintos e lineares,

    nos quais a informao passa de um para outro de acordo com um sistema de adio e

    recodificao. Seguindo este raciocnio possvel pressupor uma sequncia de etapas

    hierarquizadas envolvidas na identificao e compreenso dos sinais impressos. Isto ,

    28

    MARTINS, M. A. & NIZA, I Psicologia da aprendizagem da linguagem escrita. Lisboa: Universidade Aberta, 1998.

  • 25

    por exemplo, num nvel primrio de cognio, juntar letras para s depois, noutro

    estdio de cognio, produzir sentido.

    Vtor Cruz29 ajuda-nos a concretizar a sntese do modelo: a leitura parte da

    perceo das letras para as palavras e das palavras para a frase, realando o domnio

    da correspondncia grafema-fonema, ento os mtodos de ensino da leitura

    denominados fnicos30, so os que correspondem aos modelos ascendentes e as

    diferenas individuais na leitura situam-se no maior ou menor domnio da

    descodificao. No temos a inteno de problematizar esta explicao, outros

    melhor habilitados o fizeram, o que nos interessa deixar claro , que ao Ler o modelo

    nos pareceu muito redutor ou, melhor dito, pareceu-nos muito linear. Por um lado,

    parece que as letras podem ser processadas todas da mesma maneira (existem sons

    to parecidos). Por outro, pareceu-nos que o acesso compreenso do texto todo

    ditado a partir de um processo fonolgico, e isto consideramos redutor. Como redutor

    nos parece ser ligar a compreenso de um texto s caratersticas do prprio texto em

    si. Ento e a envolvncia do leitor e as circunstncias em que l? Percebemos a

    necessidade de outros modelos.

    MODELOS DESCENDENTES (TOP-DOWN)

    Fazendo uso das palavras de Vtor Cruz31 os modelos descendentes ou de cima

    para baixo concebem a leitura como sendo o processo inverso ao do modelo

    ascendente, pois partem do princpio de que ler compreender, isto , ler a

    construo ativa de significado a partir de uma mensagem escrita, o que pe em relevo

    o papel desempenhado pelo conhecimento geral do leitor para a compreenso do

    texto. Por outras palavras, o leitor utiliza a informao prvia sobre o tema e o

    contexto imediato para fazer antecipaes, que depois apenas tem que confirmar por

    intermdio de ndices do texto escrito, sendo o ato de ler apenas um jogo de adivinhas

    psicolingusticas.

    29

    CRUZ, Vtor Uma abordagem cognitiva da leitura. Lisboa: Lidel Edies Tcnicas, 2007. p.84 30

    Mtodo Fnico Refere-se ao ensino da leitura atravs da correlao imediata dos sons com letras que os representam. 31

    In: Uma abordagem cognitiva da leitura. Lisboa: Lidel Edies Tcnicas, 2007. p. 88-91

  • 26

    Da procura de informao que fizemos sobre este modelo, registmos que

    Goodman32 um dos pensadores que inspira o modelo psicolingustico. A leitura como

    um intercmbio entre o pensamento e a linguagem dos textos. Este modelo pe em

    realce mtodos de ensino da leitura denominados globais ou analticos.33 Por palavras

    mais simples e a ttulo de exemplo: a mancha grfica do texto em conjunto com

    algumas palavras do mesmo, j permitem ao leitor gerar expetativas e formular

    hipteses sobre o tipo de mensagem que o texto contm. A esta leitura, muito

    centrada na perceo visual global, seguir-se- outra mais analtica para verificao das

    hipteses anteriormente produzidas.

    O que depreendemos do modelo que tambm ele considera o texto como

    fonte de informao, que o leitor descodifica. Esta descodificao no deixando de ser

    grafo-fonolgica, tem igualmente implcita a extrao de informao sinttica e

    informao semntica, construindo-se o sentido do texto, o objetivo primordial que

    levou leitura, ao longo de uma cadeia de ciclos interligados. Goodman sugere que

    existem quatro ciclos diferentes. Um ciclo tico, inicial e que corresponde focalizao

    do texto com os olhos. Depois, um ciclo percetivo, que surge na sequencia do anterior

    e no qual o leitor seleciona os estmulos grficos mais relevantes. Em terceiro lugar,

    um ciclo sinttico no qual o leitor aplica os seus conhecimentos sobre o funcionamento

    e a organizao gramatical da lngua. Por ltimo, um ciclo semntico que corresponde

    fase na qual gerado o significado34.

    No nos parece pertinente explicar ao pormenor todo o modelo, mas apenas

    reter o avano na conceptualizao relativamente ao anterior. Aqui a pedra basilar

    a compreenso do texto e as estratgias adotadas pelo leitor para compreender o

    significado implcito na mancha grfica. O processo de ler idntico em todas as

    lnguas e todos os leitores podem aplic-lo. reconhecido o papel ativo do leitor na

    construo do significado.

    32

    GOODMAN, Kenneth Em 1994 escreve Reading, writing and writen texts: a transactional socio-psycholinguistics view. Este texto tem sido de incontornvel leitura para se perceber a evoluo conceptual que o ensino da leitura percorreu no sculo XX. 33

    METODO GLOBAL OU ANALTICO refere-se ao ensino da leitura atravs da construo ativa de significado a partir de uma mensagem escrita. 34

    CRUZ, Vtor Modelos de leitura. In: Uma abordagem cognitiva da leitura. p. 90-91

  • 27

    O modelo parece abranger todos os aspetos e at diferentes estdios da

    competncia leitora, todavia, foi repensado por vrios motivos. Daremos conta de dois

    que nos parecem muito pertinentes:

    S leitores experientes podem partir para a leitura j com estratgias de

    compreenso. Porque antever e fazer predies sobre o contedo do texto, a partir de

    palavras ou frases, implica muita experiencia anterior no mesmo contexto em que

    aquele preciso texto se enquadra;

    Como se considera a predio uma estratgia fundamental da leitura, o

    contexto da leitura torna-se preponderante para colocar hipteses, nem sempre se vai

    procura da informao explcita pelo prprio texto. Ou seja, podemos estar a ler

    coisas que efetivamente no esto presentes e no foram sequer ali

    concretamente escritas.

    A complexidade do ler exige explicaes menos lineares. O percurso, se

    juntarmos um e outro modelo em todas as cambiantes, resulta numa envolvncia das

    variveis: LEITOR, TEXTO e CONTEXTO no em trajeto linear, em que a informao

    circula apenas num sentido, como um encadeamento de operaes, mas em paralelo,

    para que seja possvel apreender as cambiantes em que os modelos se tocam, e a

    informao circula, em vrios circuitos paralelos que se mantm conectados entre si

    gerando o significado. O resultado da interdependncia das trs variveis.

    Os MODELOS INTERATIVOS surgiram a partir das convergncias que foi possvel

    estabelecer a partir dos modelos anteriores, superando o aspeto explicativo da

    linearidade das aquisies que o Ascendente (Bottom-Up) e Descendente (Top-Down)

    preconizavam.

    A interao advm da dinmica entre os processos mais bsicos de

    descodificao dos signos aos mais complexos sujeitos s influncias contextuais. Por

    outras palavras, o leitor fluente utiliza simultaneamente informao sensorial,

    sinttica, semntica e pragmtica.

    Para concluir, este modelo parece dar resposta dupla necessidade envolvida

    na leitura de um texto, pois, para compreender os conhecimentos que o autor de um

    texto quer transmitir so fundamentais dois aspetos: primeiro, que o leitor tenha

    informaes referentes ao tema abordado no texto e, segundo, que domine o cdigo

    lingustico utilizado pelo autor do texto. Isto implica a participao de ambos os tipos

  • 28

    de processamento ascendente e descendente, e depende das caractersticas do texto,

    dos conhecimentos prvios do leitor e da possvel automatizao de determinados

    processos35.

    4. A leitura no processo de comunicao e a leitura como fruio

    esttica da linguagem.

    Neste ponto do trabalho em que desenvolvemos aspetos do domnio da

    Didtica da Leitura, damos conta, explicitamente, de uma bifurcao:

    Por um lado, a leitura que se faz usualmente na comunicao do dia a dia,

    por outras palavras a leitura, sucintamente, como instrumento;

    Por outro, a leitura que se faz de textos representativos da plenitude da

    lngua36 ou, por outras palavras, a leitura de belas letras, concentrando o termo a

    ideia de belo artstico, neste caso, a arte de bem escrever.

    A bifurcao parece ter subjacentes duas ideias distintas. No primeiro caso, a

    serventia quotidiana (usual) dos carateres escritos para comunicar in absentia dos

    interlocutores; no segundo caso, o desfrute (fruir), da arte de combinar com elegncia

    os carateres da escrita. Podemos ainda acrescentar que o uso nos parece ter um

    carter mais imediato, mais urgente e mais verstil em termos de comunicar com

    eficcia enquanto o fruir nos parece mais consentneo com maior disponibilidade de

    tempo, requerendo maior envolvncia no estabelecimento da comunicao.

    Estes dois caminhos que a leitura pode tomar confluem na aula de Portugus e,

    no nosso caso, confluram at nas Oficinas de Cultura Clssica. Estamos a referir

    concretamente a mediao que fizemos entre a Literatura Clssica e a pintura ou o

    cinema.

    Deixamos expresso neste relatrio esta viso dicotmica que se assume na

    leitura de textos escritos, porque ela de todos os tempos, e j os autores clssicos

    35

    CRUZ, Vtor Modelos de leitura. In: Uma abordagem cognitiva da leitura. p. 102 36

    CASTRO, Rui Vieira O portugus no ensino secundrio: processos contemporneos de (re)configurao. In: O portugus nas escolas: ensaios sobre a lngua e a literatura no ensino secundrio. Coimbra: Almedina, 2005. ISBN 9789724025926. p.58

  • 29

    distinguiam os vrios usos que se podiam fazer das letras, conforme se destinassem ao

    otium ou ao negotium.

    Fechamos este subtema terico do nosso trabalho, fazendo nossas palavras

    que no nos pertencem, mas que nos ajudaram a refletir sobre o papel que nos cabe:

    Nunca, na histria, foi to importante saber ler e interpretar textos como neste

    mundo contemporneo no qual quotidianamente so produzidos e circulam milhes de

    textos, escritos e orais, desde o ciberespao at televiso, rdio, aos jornais, s

    revistas, aos livros, aos cartazes da publicidade, etc. Muitos destes textos so lixo

    informativo, mas para etiquet-los como lixo indispensvel possuir a competncia

    textual apropriada, que vai desde fatores de ordem lingustica e fatores de ordem

    pragmtica at uma enciclopdia alargada e bem construda. Esta uma rea nuclear

    para a formao tica e cvica dos jovens e o contributo da Escola para tal formao

    insubstituvel37

    5. Anlise breve de confluncias entre a didtica da lngua e a

    didtica da literatura.

    O que se procura identificar neste ponto so as convergncias facilitadoras da

    aprendizagem da Lngua, como termo genrico, e da Literatura, como uma

    especificidade dentro do sistema da lngua.

    No estamos a convocar as discordncias que existem sobre a possibilidade de

    ensinar a lngua obliterando a literatura ou secundarizando o seu cabimento no

    programa, neste caso, no Programa de Lngua Portuguesa quer para o Ensino Bsico

    quer para o Ensino Secundrio. Assumimos responsavelmente o papel de pedagogo e,

    como tal, desde a antiga Grcia que reconhecido ao pedagogo a escolha do melhor

    caminho. Conscientemente fazemos uso da metfora do caminho, porque se adequa

    ao percurso escolar. Os alunos motivaram as nossas opes e as leituras que fizemos

    do Programa. O relatrio procura dar conta das opes que tommos e do suporte

    terico que as fundamentou.

    37

    SILVA, Vtor Aguiar e Iluses e desiluses sobre a poltica da lngua portuguesa. In: As Humanidades, os estudos culturais o ensino da literatura e a poltica da lngua portuguesa. Coimbra: Almedina,2010.ISBN 9789724041957.p. 323

  • 30

    A nossa perspetiva da didtica muito abrangente, situa-se no mbito do

    Fazer. Neste caso concreto, na aula de Lngua fazemos coisas com as palavras. Com

    as palavras j escritas e com todas as que ainda esto por escrever. As palavras so

    todas bem-vindas desde que ligadas a um sentido subtil das convenincias e cortesia38.

    Sobre a lngua retivemos:

    Que cada pessoa traz em si uma srie de caratersticas que influem e se

    traduzem no modo de se expressar. Estas caractersticas implicam na linguagem dos

    falantes, a regio onde nasceram, o meio social em que foram criados e/ou em que

    vivem, a profisso que exercem, a sua faixa etria, o seu nvel de escolaridade. Estas

    diferenas fazem a pluralidade da lngua, permitindo um sem fim de variedades na sua

    realizao;

    As lnguas so capazes de fornecer aos falantes os meios de constituio de

    uma identidade social. A ttulo de exemplo, a lngua dos mineiros feita com os sons das

    botas no pavimento da mina ou a lngua dos tocadores de tambor. Os sons esto

    codificados e so reconhecveis por quem domina o cdigo;

    A lngua na diversidade de seus usos cumpre funes comunicativas,

    socialmente especficas e relevantes e na diferena de funes se torna varivel. No

    cumprimento das mesmas ocorrem os diferentes gneros de linguagem. Por exemplo,

    a linguagem coloquial, a linguagem informativa, a linguagem literriaetc.;

    A lngua enquanto sistema codificado regida por convenes grficas,

    oficialmente impostas, que necessitam de aprendizagem metdica, treinada

    faseadamente;

    A lngua cdigo de acesso ao conhecimento produzido, prazer esttico,

    arte grafada.

    A didtica da lngua compreende a transmisso/aquisio simultnea de

    mltiplos saberes. Expomos alguns: apropriao de um corpus lexical, domnio

    gradativo de formas gramaticais e estruturas sintticas, assimilao de noes de

    coeso e coerncia, utilizao de coordenadas espcio-temporais, representao de

    interlocues inerentes aos atos de linguagem, reflexes metalingusticas medida

    que as aquisies vo sendo feitas nos vrios domnios

    38

    CCERO, Sc. I a.C. Do Orador I.5.17- Traduo e organizao de Maria Helena da Rocha Pereira In: Romana: antologia da cultura latina. Lisboa: Babel, 2010. ISBN 9789726656616. p.35

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    De todas as caratersticas que atribumos lngua at aqui, ficou por registar o

    seu carcter plstico. As metamorfoses da lngua que resultam da dinmica criativa,

    prpria do que do Homem.

    Para chegar especificidade da Literatura, s nos atrevemos a dizer que um

    setor da Lngua. Est para a lngua como a medula para o sangue Tomamos as

    palavras de Vtor Aguiar e Silva: Se me pedissem para definir, numa frmula, texto

    literrio, eu no seria capaz de elaborar essa definio (e no conheo nenhuma

    satisfatria). Todavia, [] eu apontaria como textos literrios, por exemplo, a cano X

    de Cames, as Viagens na minha terra de Garrett, a Carta a Manuel de Antnio Nobre,

    Para sempre de Virglio Ferreira. []. 39

    Estas palavras implicam a primeira reflexo que fizemos, a leitura do texto

    literrio no se compadece com a urgncia da ao. Queremos dizer com esta frase,

    que ler texto literrio exige tempo, mais tempo do que a leitura de um memorando,

    mesmo que a mancha grfica possa ocupar as mesmas 14 linhas.

    A Potica de Aristteles j nos tinha dito, mas, para no sermos acusadas de ter

    cristalizado, percorremos, ao menos, os pensadores do sculo XX. Fomos confirmar

    que o texto literrio feito de inspirao e trabalho e, portanto, a sua descodificao e

    interpretao implica um fazer semelhante.

    Para no nos perdermos do que nos ocupa, a leitura do texto literrio cerne da

    nossa interveno pedaggica, andmos Ao contrrio de Penlope com Jacinto Prado

    Coelho40 [pg. 46] a literatura no se fez para ensinar: a reflexo sobre literatura

    que nos ensina. [] Existem mtodos cientficos para a anlise da literatura e neste

    sentido, sim, a literatura ensina-se.

    Partindo daqui, a Lingustica prefigurou-se no nosso caminho, para estudar a

    lngua ancilar, nos vrios aspetos que a linguagem toma. Literatura tambm

    linguagem, logo, neste tambm, pode a lingustica intervir, como estudo introdutrio

    nos aspetos [fonticos, morfolgicos, sintticos, semnticos]. Escrevemos

    introdutrio, porque, como desde Aristteles sabido, a linguagem literria feita de

    39

    SILVA, Vtor Aguiar e As Humanidades, os estudos culturais, o ensino da Literatura e a poltica da lngua portuguesa. Coimbra: Almedina,2010.ISBN 9789724041957. p.182 40

    COELHO, Jacinto do Prado Como ensinar literatura. In: Ao contrrio de penlope. Amadora: Livraria Bertrand, 1976. [Coleo Tempo Aberto, dirigida por Victor Santos Gonalves, no apresenta o nmero de Depsito Legal e anterior atribuio de ISBN]

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    uma gramtica diferente. Imbuda de esttica, complexa, a obra literria solicita vrios

    ngulos de abordagem. Exige uma ateno muito lcida ao vaivm de relaes entre o

    real (o que no literrio) e, o que transcende o real, mas tem no real o referente.

    Retomando as palavras de Jacinto Prado Coelho a anlise estilstica no pode

    permanecer muda mensagem