análise de obras literárias -...

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ANÁLISE DE OBRAS LITERÁRIAS MANUELZÃO E MIGUILIM JOÃO GUIMARÃES ROSA Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700 CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP www.sistemacoc.com.br

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Análise de obrAs literáriAsmanuelzão e miguilim

João guimArães rosA

Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP

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sumário

1. Contexto soCiAl e HistÓriCo .................................................... 7

2. estilo literário dA époCA ........................................................... 8

3. o Autor ................................................................................................. 11

4. A obrA .................................................................................................... 13

5. exerCíCios ........................................................................................... 37

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João guimArães rosA

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1. Contexto soCial e HistÓRiCo

O ano de 1945 marca o fim da Segunda Guerra Mundial e mostra o mundo que sobreviveu a Hitler e aos dos campos de concentração à bomba atômica de Hiroshima e a todos os demais horrores da guerra.

No Brasil, esse ano marca o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas e o início de certa experiência democrática que terminará bruscamente em 1º de abril de 1964. Nesse meio tempo, entre 1945 e 1964, o Brasil terá a Constituição de 1946, o retorno de Getúlio Vargas entre 1950 e 1954, as eleições de 1955, a presidência de Juscelino Kubitschek entre 1956 a 1960, a criação de Brasília e a sua inauguração como capital do Brasil, em 21 de abril de 1960, e a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, que acabou por levar à presidência João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964.

De 1945 a 1964, o tema do desenvolvimento e subdesenvolvimento do país ocupa boa parte do trabalho dos intelectuais brasileiros. O Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, ocorrido em São Paulo no ano de 1945, avaliou os aspectos positivos e negativos do movimento modernista. O próprio Mário de Andrade, uma semana antes de morrer, classificou o movimento como “verdadeira legitimação da dignidade pela inteligência brasileira”, lamentando, entretanto, que a poesia tivesse sido acolhida pelo grande público como algo embaraçoso e pedante. A partir daí, deixou de existir a divisão ideológica entre o artista popular e o hermético (aquele que faz um trabalho de difícil compreensão), porque entende-se agora que todos fazem uma crítica sobre o material que examinam, desmitificando tal ma-terial. Assim, tanto fazem o trabalho crítico os poetas concretistas, como Augusto e Haroldo de Campos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e os compositores de canções populares.

Pode-se dizer que, entre 1945 e 1964, o Brasil começa a ser percebido como componente de uma realidade global, não obstante seus problemas internos, como analfabetismo em massa e injustiças sociais. Procura-se pensar o país não como uma nação isolada, mas como parte de um processo geral, analisando-se as relações entre o local e o global, entre o atraso e o progresso, no intuito de se chegar a uma interpretação capaz de proporcionar solução realista para os nossos problemas.

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2. estilo liteRáRio da époCa

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O movimento modernista brasileiro tem como marco inicial a Semana de Arte Moderna de 1922. Em fevereiro desse ano, por sugestão do pintor Di Caval-canti, um grupo paulista, formado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Paulo Prado, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e outros, juntamente com escritores mais jovens do Rio de Janeiro, como Ronald de Carvalho, Renato de Almeida e alguns mais, promoveram, no Teatro Municipal de São Paulo, a chamada Semana de Arte Moderna, com exposição de pintura e de escultura, concertos, conferências e declamações.

O Modernismo brasileiro começou pelas artes plásticas. Em janeiro de 1917, a pintora paulista Anita Malfatti realizou em São Paulo uma exposição de pintura, na qual, além dos seus quadros, marcados por influências do expressionismo alemão, apresentava também alguns quadros cubistas de pintores estrangeiros. A exposição criou polêmica, ganhando a simpatia de uns e a antipatia de outros. Monteiro Lobato escreveu um artigo cujo título era “Paranoia ou mistificação?”, negando valor artístico aos quadros. A exposição, entretanto, agradou a Mário de Andrade e a Oswald de Andrade.

Em 1920, Oswald de Andrade conheceu o escultor Vitor Brecheret, cuja arte refletia influência dos movimentos da vanguarda europeia e, em novembro desse ano, publicou um artigo intitulado” O meu poeta futurista, citando versos de Mário de Andrade do livro Pauliceia desvairada, que só viria a ser publicado em 1922.

Em geral, a literatura dos modernistas, na chamada fase heróica do mo-vimento ou Primeira Fase Modernista, entre 1922 e 1930, provocou a subversão dos gêneros literários. A poesia aproximou-se da prosa e esta adotou processos de elaboração da linguagem poética. Houve aproximação dos diversos “ismos” europeus, os movimentos de vanguarda que procuravam romper com as nor-mas acadêmicas, como o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o futurismo e o surrealismo.

A poesia abandonou as formas poéticas consagradas, como o verso metri-ficado e rimado, exageradamente praticado pelos poetas parnasianos. Aderiu à linguagem coloquial, ao verso livre, aos temas do cotidiano, ao humor e à ironia. Os modernistas desejavam provar que a poesia estava na essência do que é dito e na sugestão ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos formais.

Na fase mais combativa do Modernismo brasileiro, de 1922 a 1930, a prosa sofreu transformações significativas. Os períodos tornaram-se curtos, fragmen-tados, com espaços brancos na composição tipográfica e na própria sequência do discurso, apresentando a realidade dividida em blocos sugestivos, cuja unifi-cação exige do leitor adequação aos novos processos construtivos, uma vez que dispensa a concatenação lógica. A aliteração (repetição dos sons das consoantes) e a criação de neologismos passam a integrar a linguagem da prosa. O melhor exemplo dessa técnica encontra-se em memórias sentimentais de João miramar, de Oswald de Andrade.

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De 1930, data da publicação de alguma poesia, de Carlos Drummond de An-drade, a 1945, ano da morte de Mário de Andrade, temos o que se convencionou chamar de Segunda Fase do Modernismo. As grande experiências técnicas com a linguagem cederam importância aos temas sociais. Surge uma literatura que pro-cura denunciar certos aspectos da realidade brasileira, sobretudo na prosa. Aí se encontram os romances de Graciliano Ramos, como Vidas secas (1938) e S. Bernardo (1934), e de Jorge Amado, como Capitães da areia (1937), Terras do sem-fim (1942), entre outros.

De 1945 em diante temos a chamada Terceira Fase Modernista. Alguns estu-diosos delimitam esta fase entre 1945, ano da morte de Mário de Andrade, e 1964, ano do golpe militar. A linguagem é empregada como instrumento da busca do ser, sobretudo em João Guimarães Rosa, em Sagarana (1946), e Clarice Lispector, com os romances Perto do coração selvagem (1944), a paixão segundo g.H. (1964) e a hora da estrela (1977).

a terceira Fase do ModernismoA primeira impressão que temos da prosa de ficção da terceira fase moder-

nista é a de que ela se afasta das preocupações extraliterárias da fase anterior para investigar a linguagem como instrumento expressivo. De fato, enquanto a prosa de ficção da segunda fase modernista procurou empregar a literatura como instrumento de denúncia da realidade, a terceira fase preocupa-se, sobremaneira, em explorar as potencialidades da palavra como instrumento expressivo. Entretanto, o espírito de crítica da realidade não desaparece, ele assume outros aspectos. Agora, procura-se denunciar os próprios mecanismos que compõem o discurso literário e, a partir deles, revelar a realidade que se oculta por trás da superfície dos signos (palavras).

A prosa de Guimarães Rosa é marcada por invenções linguísticas no plano lexical e sintático, fazendo uso de expressões regionalistas, de arcaísmos, latinis-mos e mesmo de termos tomados de outras línguas, dando novos significados às palavras e expressões, além da criação de neologismos (novas palavras). Todo esse processo resulta em um texto não raramente difícil para o leitor habituado à linguagem convencional, porque o obriga a deter-se na camada lexical para extrair dela significados novos. Por exemplo, dado o termo sonoite, um neolo-gismo, o leitor poderia entendê-lo como só + sono + noite; ou ainda, visli, que o leitor poderia equacioná-lo como vi + vislumbrei + li. O leitor, principalmente o leitor brasileiro, pouco familiarizado com o texto escrito, encontra dificuldade para compreender um autor tão refinado como Guimarães Rosa.

A prosa de ficção da terceira fase do modernismo brasileiro, sobretudo a de Guimarães Rosa e a de Clarice Lispector, é o exemplo melhor do uso da lingua-gem como instrumento para captar o universo humano e sugerir a amplitude de sua dimensão, apresentando o corpo humano e a natureza como elementos em que se encontram, sob forte tensão, as forças contraditórias que regem a vida, como o caos e o cosmos, o amor (Eros) e o ódio (Tanatos), a história universal e a história pessoal, o bem e o mal, a cólera e a calma.

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3. o aUtoR

João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 27 de junho de 1908, e faleceu no Rio de Janeiro, em 19 de novembro de 1967. Fez os estudos iniciais na cidade natal e os secundários em Belo Horizonte, mani-festando desde cedo grande interesse pela natureza e pelo estudo de línguas. Formou-se em medicina, clinicou no interior do estado (Itaúna e Barbacena). Enquanto exercia a profissão, estudou e aprendeu sozinho russo e alemão. Em 1934, fez concurso para o Ministério Exterior, ingressando na carreira diplomá-tica, chegando a embaixador.

O reconhecimento como escritor surgiu a partir de 1956, quando publicou grande sertão: veredas e Corpo de baile.

O livro manuelzão e miguilim foi publicado em 1964, contendo duas no-velas: “Campo geral” e “Uma estória de amor”, esta com o subtítulo “Festa de Manuelzão”. Inicialmente, os contos integravam a obra Corpo de baile, editada em 1956. Em 1964, o autor transformou a obra Corpo de baile em três livros: manuelzão e miguilim, no urubuquaquá, no Pinhém e noites do sertão.

Tomando como cenário principal das suas narrativas o universo da cultura sertaneja, os elementos da natureza funcionam como condutores dos grandes dilemas do ser humano. O regionalismo de Guimarães Rosa adquire uma dimen-

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são universal, porque na sua obra a natureza e o homem aparecem integrados, de tal forma que o cenário não funciona como mero coadjuvante da ação, e sim como elemento indissociável da formação e das inquietações morais e metafísicas dos seres humanos.

O trabalho estilístico de Guimarães Rosa revela o que há de universal nos limites do regionalismo sertanejo, elevando a palavra à sua potência máxima, dando novos contornos e relevos à língua portuguesa.

obRas1946 – Sagarana 1956 – Corpo de baile *1956 – grande sertão: veredas1962 – Primeiras estórias1967 – Tutameia: terceiras estórias1969 – estas estórias1978 – ave, palavra

* A partir da terceira edição, de 1964, desdobrou-se em três volumes: manuelzão e miguilim, no urubuquaquá, no Pinhém e noites do sertão. O autor deixou inédito o livro de poemas intitulado magma.

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4. a obRa

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Publicadas em 1964 com o título manuelzão e miguilim, as duas novelas que compõem a obra foram publicadas originalmente em 1956 como parte integrante das sete novelas intituladas Corpo de baile.

Campo Geral narra, em terceira pessoa, a estória de Miguilim, um me-nino de oito anos de idade que vivia em meio aos Campos Gerais, num lugar chamado Mutúm. Vivia em companhia do pai, Nhô Bernardo Caz, chamado de Nhô Bero, de sua mãe Nhanina, seu tio Terêz, irmão de seu pai, de sua tia-avó materna Vovó Izidra, de seus irmãos Maria Adrelina, chamada Drelina, Maria Francisca, chamada Chica, Expedito, chamado Dito e Tomé, chamado Tomezi-nho. Liovaldo é também irmão de Miguilim, mas não vivia com a família. Era criado pelo tio Osmundo Cessim, irmão de Nhanina, num lugar chamado Vila Risonha-de-São-Romão.

Grosso modo, a estória de Miguilim pode ser lida como um ritual de inicia-ção, isto é, as passagens marcantes da vida do protagonista são apresentadas como etapas preparatórias para uma transição, que vem a ser a passagem de Miguilim da infância para a vida adulta. O sofrimento vivido pela personagem é concebido como uma aprendizagem preparatória para o ingresso na vida adulta. Assim, a perda da cachorra Cuca, chamada também de Pingo-de-Ouro, a morte do irmão Dito e a quebra dos brinquedos auxiliam na composição de um ritual de passagem cujo ponto culminante é o momento em que Miguilim coloca os óculos do doutor José Lourenço. Neste momento, o menino adquire uma outra visão de mundo. Simbolicamente, os óculos representam a aquisição de uma nova visão e a conse-quente perda da visão lúdica, isto é, da visão sonhadora e mítica da infância.

uma estória de amor (Festa de manuelzão) narra, também em terceira pessoa, a estória da fundação da fazenda Samarra, inaugurada com uma missa numa capelinha erguida na fazenda e dedicada a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, com realização de uma grande festa. O protagonista da estória é Manuelzão, um simples vaqueiro do alto sertão de Minas Gerais que consegue tornar-se um homem respeitado e conhecido como o fundador da fazenda Samarra, de propriedade do fazendeiro Francisco Freyre.

uma estória de amor possui duas narrativas que se complementam, ou melhor, duas narrativas que se confluem: a narrativa mencionada no parágrafo acima e a narrativa da personagem Camilo sobre o Boi Bonito. A estória do Boi Bonito se passa numa região mítica, onde as forças humanas conseguiam dominar as forças da natureza, submetendo-as ao seu domínio. De forma simbólica, a estória narrada por Camilo representa a estória de Manuelzão, que conseguiu domar as forças da natureza, transformando um lugar ainda primitivo numa fazenda.

O título uma estória de amor pode, no mínimo, ter duas interpretações:1) Pode se referir ao amor de Camilo, um contador de estórias, por Joana

Xaviel, também exímia contadora de estórias;2) Pode se referir à descoberta do amor (paterno) por parte de Manuelzão.

O protagonista, aproximando-se da velhice, descobre que as relações afetivas

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fundam e completam o trabalho da existência; daí a necessidade que experimenta de ter uma família para sentir completo o trabalho que realizou, e a narrativa o conduz à descoberta do amor pelo filho, que em princípio ele rejeitou.

i. CaMpo GeRal

peRsonaGensMiguilim: é o protagonista da estória. Possui grande imaginação, o que o

faz ser grande inventor de estórias. Gosta muito da mãe Nhanina, do irmão Dito e da cachorrinha Pingo-de-Ouro.

nhô bernardo Caz, nhô bero: é o pai de Miguilim, homem agressivo e rude; ciumento (e a mulher lhe dava motivos), agride a esposa e o filho Miguilim. Acaba, por ciúme, matando seu ajudante Luisaltino e termina por cometer suicídio. Sua personalidade, entretanto, tem espaço para apego afetivo aos filhos. Lamenta, sinceramente, a morte de Dito e lamenta quando Miguilim fica doente.

nhanina: é a mãe de Miguilim. Mulher muito bonita e insastifeita com o lugar em que vive. Embora muito carinhosa com os filhos, não consegue protegê-los da brutalidade do marido. Muito propensa ao lirismo, busca afetividade em outros homens, como o Tio Terêz, seu cunhado, que para não ser morto pelo irmão deixou a família, e Luisaltino, lavrador que trabalha com Nhô Bero e acaba morto por ele. Quando Nhô Bero se mata, Tio Terêz volta para viver maritalmente com Nhanina.

tio terêz: personagem atencioso e carinhoso, sobretudo com Miguilim. Seu amor por Nhanina faz com que Vovó Izidra o expulse da família.

seo deográcias: espécie de curandeiro; impressiona muito Miguilim ao dizer que o menino poderia ficar tuberculoso. Miguilim entendeu que poderia morrer em breve.

seo aristeu: outro tipo de curandeiro; alegre, é ele que persuade Migui-lim a se levantar da cama, tirando do menino a impressão que lhe causara Seo Deográcias.

José lourenço: médico que identifica a deficiência visual de Miguilim, emprestando-lhe os próprios óculos. Talvez a passagem mais emotiva de toda a narrativa.

Vovó izidra: tia de Nhanina, mulher muito religiosa e guardiã moral da família. É ela que manda Tio Terêz embora, procurando, assim, resguardar o casamento de Nhanina. Quando Tio Terêz retorna, após o suicídio do irmão, ela, coerente com seus princípios, abandona a casa.

Mãitina: trata-se de uma senhora negra, bastante idosa, que vive agregada à família. Sua origem e religiosidade afro fazem dela uma personagem oposta aos rigores moralistas de Vovó Izidra.

Rosa: personagem secundária, Rosa é uma cozinheira que vive com a família.Maria pretinha: personagem secundária, vive como agregada da família.

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dito: é mais novo que Miguilim, mas consegue entender as coisas do mun-do com maior maturidade que o irmão. Vive muito bem com todos e tem em Miguilim um irmão e amigo predileto. Quando Dito ficou de cama em virtude do corte que sofreu no pé, Miguilim acompanhou todo o sofrimento do irmão, procurando lhe contar estórias. Dito sofreu muito, pois contraiu tétano. Veio a falecer em decorrência do tétano.

liovaldo: vivia fora de Mutúm; após a morte do Dito passa quinze dias com a família.

tomezinho: é o irmão caçula, de quatro anos de idade.drelina: é a irmã mais velha depois de Liovaldo.Chica: era menor que Drelina, mais alegre que a irmã.

enRedoum certo miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe

daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d´Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no mutúm. no meio dos Campos gerais, mas num covão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. miguilim tinha oito anos. Quando completara sete, havia saído dali, pela primeira vez: o tio Terêz levou-o a cavalo, à frente da sela, para ser crismado no Sucurijú, por onde o bispo passava. Da viagem, que durou dias, ele guardara aturdidas lembranças, embaraçadas em sua cabecinha. De uma, nunca pôde se esquecer: alguém, que já estivera no mutúm, tinha dito: – É um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre...

Aos sete anos de idade, Miguilim foi levado pelo tio Terêz ao Sucurijú para ser crismado. Lá, o menino ouviu de alguém que o Mutúm era um lugar bonito, o que surpreende Miguilim, pois ele sempre ouvira da mãe que o Mutúm era um lugar feio. De volta para casa, anseia por contar à mãe a novidade que ouviu e por causa disso não dá atenção ao pai. Este se irrita e coloca o filho de castigo.

Antes, o pai já havia dado aos vaqueiros que por ali passaram a cachorra Pingo-de-Ouro, a quem Miguilim chamava Cuca, o que provocou grande tristeza no menino.

– Pai está brigando com mãe. está xingando ofensa, muito, muito. estou com medo, ele queira dar em mamãe...

Era o Dito, tirando-o por um braço. O Dito era menor mas sabia o sério, pensava ligeiro as coisas, Deus tinha dado a ele todo o juízo. E gostava, muito, de Miguilim. Quando foi a estória da Cuca, o Dito um dia perguntou – “Quem sabe é pecado agente ter saudade de cachorro?...” o Dito queria que ele não chorasse mais por Pingo-de-Ouro, porque sempre que ele chorava o Dito também pegava vontade de chorar junto.

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– eu acho, Pai não quer que mãe converse mais nunca com o tio Terêz... mãe está soluçando em pranto, demais da conta.

miguilim entendeu tudo tão depressa, que custou a entender. arregalava um sofrimento. O Dito se assustou: – “Vamos na beira do rego, ver os patinhos nadando...” – acrescentava. Queria arrastar miguilim.

– não, não... não pode bater em mamãe, não pode...

Quando Miguilim vê o pai espancar a esposa, ele tenta proteger a mãe e acaba sendo violentamente espancado pelo pai. Em seguida, Nhô Bero sai de casa e tio Terêz chega. Vovó Izidra o chama de Caim e o expulsa da casa. Um grande temporal desaba e a família se reúne em orações. Dito chega a comentar com Miguilim que a tempestade que cai é castigo de Deus por causa das brigas entre o pai, a mãe e tio Terêz. Dito compreende com mais clareza que o irmão é a causa da briga dos pais.

No dia seguinte, após a tempestade, Nhô Bero retorna à casa. Recebe a visita de um curandeiro, que vem cobrar umas dívidas. A pedido do pai, “seo” Deográcias examina o menino e recomenda à família cuidados especiais.

Seo Deográcias ria com os dentes desarranjados de fechados, parecia careta cã, e sujo amarelal brotava por toda a cara dele, um espim de uma barba. – “A-há, seu Miguilim, hum...Chega aqui.” Tirava a camisinha. – “Ahã...Ahã... Está se vendo, o estado deste menino não é pr’a nada-não-senhor, a gente pode se guiar quantas costelinhas Deus deu a ele... Rumo que meu, eu digo: cautelas! ignorância de curandeiro é que mata, seo nhô Berno. um que desvê, descuidou, há-de-o! – entrou nele a febre. e, é o que digo: p’ra passar a héctico é só facilitar de beirinha, o caso aí maleja... muito menino se desacude é assim. mas tem susto não: com as ervas que sei, vai ser em pé um pau, garantia que dou, boto bom!...”

Miguilim, profundamente impressionado com a fala do curandeiro, acredita que pode morrer a qualquer momento. Resolve, então, fazer um acordo com Deus: se ele não morresse em dez dias, então não morreria mais. Miguilim, muito triste, aguarda o término do prazo. Ninguém compreende a tristeza do menino.

Repensava aquele pensamento, de muitas maneiras amarguras. Era um pensa-mento enorme, aí miguilim tinha de rodear todos os lados, em beira dele. e isso era, era! ele tinha de morrer? Para pensar, se carecia de agarrar coragem – debaixo da exata ideia, coraçãozinho dele anoitecia. Tinha de morrer? Quem sabia, só? então – ele rezava pedindo: combinava com Deus, um prazo que marcavam... Três dias. De dentro daqueles três dias, ele podia morrer, se fosse para ser, se Deus quisesse. Se não, passados os três dias, aí então ele não morria mais, nem ficava doente com perigo, mas sarava! Enfim que miguilim respirava forte, no mil de um minuto, se coçando das ferroadas dos mosquitos, alegre quase. mas, nem nisso, mau! – maior susto o salteava: três dias era curto demais,

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doíam de assim tão perto, ele mesmo achava que não aguentava... Então, então, dez. Dez dias, bom, como velasse de ser, dava espaço de, amanhã, principiar uma novena. Dez dias. Ele queria, lealdoso. Deus aprovava.

Quando o prazo termina, Miguilim tem medo de morrer.

agora era o dia derradeiro. Hoje ele devia de morrer ou não morrer. nem ia levan-tar da cama. De manhã, ele já chuviscara um chorozinho, o travesseiro estava molhado. morria, ninguém não sentia que não tinha mais o miguilim. morria, como arteirice de menino mau? – “Dito, pergunta à Rosa se de noite um pássaro riu em cima do paiol, em cima da casa?” O dia era grande, será que ele ia aguentar ficar o tempo todo deitado? – “Miguilim, Mãe está chamando todos! É pr’a catar piôlho...” Miguilim não ia, não queria se levantar da cama. – “Que é que está sentindo, Miguilim? Está doente, então tem de tomar purgante...” A mãe já estaria lá, passando o pente-fino na cabeça dos outros, botava óleo de babosa nos cabelos de Drelina e da Chica, suas duas muito irmãzinhas, delas gostava tanto. Tomezinho chorava, ninguém não podia com Tomezinho. – “Miguilim está mesmo doente? Que é que agora ele tem?” era Vovó izidra, moendo pó em seu fornilho, que era o moinho-de-mão, de pedra-sabão, com o pião do meio, mexia com o moente, que era um pau cheiroso de sassafrás. miguilim agora em tudo queria reparar demais, lembrado. Pó, tabaco-rapé, de fumo que ela torrava, depois moía assim, repisando – a gente gostava às vezes de auxiliar a moer – o pó ela guardava na cornicha, de ponta de chifre de boi, com uma tampinha segura com tirinha de couro, dentro dela botava também uma fava de cumarú, para dar cheiro...Vovó izidra não era ruim, todos não eram ruins, faziam ele comer bastante, para fortalecer, para não emagrecer héctico, de manhãzinha prato fundo com mingau-de-fubá, dentro misturavam leite, pedacinhos de queijo, que derretiam, logo, depois comia gemada de ovo, enjoada, toda noite Vovó izidra quentava para ele leite com açúcar, com umas folhinhas verdes de hortelã, era tão gostoso... a mãe vinha ver: – “Melhor se dar logo o sal-amargo a ele senão o Bero vem, ele pensa que remédio para menino é doses, feito bruto p’ra cavalo...” mas miguilim estava chorando simples, não era medo de remédio, não era nada, era só a diferença toda das coisas da vida. Só Drelina só era quem adivinhava aquilo, vinha se sentar na beira da cama. – “Miguilinzinho, meu irmãozinho, fala comigo por que é que você está chorando, que é que você está sentindo, dor?” Drelina pegara uma das mãos dele, de junto carinhava Miguilim, na testa. Drelina era bonita de bondade. – “Sossega, Miguilim, você não está com febre não, cabeça não está quente...” – “Drelina, quando eu crescer você casa comigo?” – “Caso, Miguilim, demais.” – “E a Chica casa com o Dito, pode? – “Pode, decerto que pode.” – “Mas eu vou morrer, Drelina. Vou morrer hoje daqui a pouco...” Quem sabe, quem sabe, melhor ficasse sozinho – sozinho longe deles parecia estar mais perto de todos de uma vez, pensando neles, no fim, se lembrando, de tudo, tinha tanta saudade de todos. Para um em grandes horas, todos: Mãe, o Dito, as Meninas, Tomezinho, o Pai, Vovó Izidra, Tio Terêz, até os cachorros também, o gato Sossõe, Rosa, Mãitina, vaqueiro Salúz, o vaqueiro Jé, Maria Pretinha... mas, no pingo da horinha de morrer, se abraçado com a mãe, muito, chamando pelo nome que era dela, tão bonito : – nhanina...

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A visita de um outro curandeiro, “seo” Aristeu, um homem alegre e festivo, dá novo ânimo ao menino, que restabelece confiança na vida.

Para a alegria de Miguilim, o pai decide que ele deveria auxiliar nos tra-balhos, levando o almoço na roça. No primeiro dia, durante a volta, o menino é abordado por tio Terêz, que lhe pede para entregar um bilhete para Nhanina, dizendo-lhe que viria no dia seguinte buscar a resposta.

O menino passa todo o restante do dia procurando saber o que é uma ati-tude má, perguntando a várias pessoas sobre a existência do mal. Não consegue dormir direito à noite, preocupado que está com o bilhete. Orientado por sua intuição, acaba por não mostrar o bilhete à mãe. No dia seguinte, pensava em dar uma desculpa qualquer ao tio Terêz, mas, quando ele surge, o menino começa a chorar, devolvendo o bilhete ao tio. Este compreende as dores do sobrinho, desculpa-se e vai embora.

Miguilim prossegue seu caminho, levando a comida para o pai, quando ouve um barulho na mata e se assusta. Corre, apavorado, até o pai. O pai, mais um desconhecido, vão armados até o local, e descobrem tratar-se de um bando de macacos. Todos acham muita graça do acontecido. O desconhecido que acom-panhara Nhô Bero é o lavrador Luisaltino, que passará a viver com a família.

Mas vem um tempo em que, de vez, vira a virar só tudo de ruim, a gente paga os prazos. Quem disse foi o vaqueiro Salúz, que não se esquecia da estória do Patorí (...)

Principia um período de desgraças no Mutúm. Patorí, filho de “seo” Deográcias, matou um rapaz e fugiu, sendo encontrado, pouco depois, morto; tamanduá-bandeira matou o cachorro Julim; “marimbondo ferroou Tomezinho, que danou chorou (...)”; Miguilim tem a mão ferida por um touro: “Pior foi que o Rio-Negro estava do outro lado da cerca, lambendo sal no cocho, Miguilim quis passar mão, na testa dele, alisar, fazer festas. O touro tinha só todo desen-tendimento naquela cabeçona preta – deu uma levantada, espancando, Miguilim gritou de dor, parecia que tinham quebrado os ossos da mão dele.” A dor deixou Miguilim descontrolado, e ele acabou brigando com Dito:

mãe trouxe a mula de cristal, branquinho, aplicou no lugar, aquela friúra lisinha do cristal cercava a dor para sarar, não deixava inchaço; mas miguilim gemia e estava com raiva até dele mesmo. O Dito veio perto, falou que o touro era burro, Miguilim achava que tinha entendido que o Dito queria era mexer – minha-nossenhora! – nem sabia porque era que estava com raiva do Dito: pulou nele, cuspiu, bateu, o Dito bateu também, todo espanado, com raivas – ‘Cão!’ ‘Cão!’ – no chão que rolaram, quem viu primeiro pensava eles dois estivessem brincando.

Quando Miguilim de repente pensou, fechou os olhos: deixava o Dito dar, o Dito podia bater o tanto que quisesse, ele ficava quieto, não podia brigar com o Dito! Mas o Dito não batia. (...)

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João Guimarães Rosa

Maria Pretinha fugiu com o vaqueiro Jé; o mico-estrela fugiu e Dito, ten-tando capturá-lo, cortou o pé num caco de pote.

Meu-deus-do-céu, Dito!” Miguilim ficava tonto de ver tanto sangue. – “Chama Mãe! Chama Mãe!” – o Dito pedia. A Rosa carregou o Dito, lavaram o pé dele na bacia, a água ficava vermelha só sangue, Vovó Izidra espremia no corte talo de bálsamo da horta, depois puderam amarrar um pano em cima de outro, muitos panos, apertados; ainda a gente sossegou, todo mundo bebeu um gole d´água, que a Rosa trouxe, beberam num copo. O Dito pediu para não ficar na cama, amarraram a rede para ele no alpendre.

Miguilim queria ficar sempre perto, mas o Dito mandava ele fosse saber todas as coisas que estavam acontecendo.

O ferimento infecciona, e Dito principia sofrer muito. Miguilim fica sempre ao lado do irmão. Procura inventar estórias para distraí-lo. Miguilim tenta, em vão, fazer o papagaio papaco-o-Paco dizer o nome do irmão.

O ferimento piora, e Miguilim padece os sofrimentos do irmão. Dito, então, lhe diz:

– Chora não, miguilim, de quem eu gosto mais, junto com mãe, é de você...” e o Dito também não conseguia mais falar direito, os dentes dele teimavam em ficar encostados, a boca mal abria, mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: – “Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre , por dentro!...” E o Dito quis rir para o Miguilim. Mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros vieram, puxaram miguilim de lá.

Pouco tempo depois, Dito morre. Miguilim segura a mão do irmão e chora. Muitos vizinhos, lavradores e vaqueiros da região comparecem ao velório, inclusive o vaqueiro Jé e Maria Pretinha, que acabam permanecendo no Mutúm.

O tempo não diminui o sofrimento de Miguilim. Pior, ainda; o papagaio Papaco-o-Paco passsou a falar o nome do Dito: “E um dia, então, de repente, quando ninguém mais não mandava nem ensinava, o Papaco-o-Paco gritou: “Dito, Expedito! Dito, Expedito””. O pai passa a ralhar com Miguilim, achando que o seu sofrimento é excessivo. “Daí por diante, não deixavam o Miguilim parar quieto. Tinha de ir debulhar milho no paiol, capinar canteiro de horta, buscar cavalo no pasto, tirar cisco nas grades de madeira do rego. Mas Miguilim queria trabalhar, mesmo. O que ele tinha pensado, agora, era que devia copiar de ser igual como o Dito.”

Mas Miguilim não era como Dito. Não conseguia capinar o mato, mal enxergava onde pisava, tropeçando e caindo várias vezes, o que alimentava o desprezo do pai por ele. O pai chega mesmo a dizer que preferia que Deus tivesse levado Miguilim em lugar do Dito.

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no dia em que o luisaltino não foi trabalhar na roça – disse que estava perrengue – Pai teve uma hora que quis conversar com Miguilim. Drelina, a Chica e Tomezinho tinham trazido o almoço e voltaram para casa. Pai fez um cigarro, e falou do feijão-das-águas, e de quantos carros de milho que podia vender para o seo Braz do Bião. Perguntou. mas miguilim não sabia responder, não achou jeito, cabeça dele não dava para esses assuntos. Pai fechou a cara. Depois Pai disse: – “Vigia, Miguilim: ali!” Miguilim olhou e não respondeu. Não estava vendo. era uma plantação brotando da terra, lá adiante; mas direito ele não estava enxergando. Pai calou a boca, muitas vezes. mas, de noite, em casa, mesmo na frente de Miguilim, Pai disse a Mãe que ele não prestava, que menino bom era o Dito, que Deus tinha levado para si, era muito melhor tivesse levado Miguilim em vez d´o Dito.

No dia seguinte, após a conversa do Pai, chega ao Mutúm, sem ninguém esperar, o irmão Liovaldo. A família fica alegre, tanto que ninguém vai trabalhar na roça. Liovaldo e o tio Osmundo Cessi, da Vila Risonha, ficaram sabendo da morte do Dito e vieram passar quinze dias com a família.

Liovaldo, desde o momento em que chegou, deu mostras de incompati-bilidade de caráter com os outros irmãos. Era predisposto a maldades, o que despertou a fúria de Miguilim.

e foi que uma vez ia passando o grivo, carregando dois patos, peados com embira, disse que ia levando para vender no Tipã. o dia estava muito quente, os patos chiavam com sede, o grivo esbarrou de escutar a gaitinha do liovaldo – ele nunca tinha avistado aquilo – e aproveitou, punha os patos para beber água num pocinho sobrado da chuva. aí o liovaldo começou a debochar, daí cuspiu no grivo, deu com os pés nos patos, e deu dois tapas no Grivo. O Grivo ficou com raiva, quis não deixar bater, mas o Liovaldo jo-gou o grivo no chão, e ainda bateu mais. o grivo então começou a chorar, dizendo que o liovaldo estava judiando dele e da criação que ele ia levando para vender.

o ódio de miguilim foi tanto, que ele mesmo não sabia o que era, quando pulou no liovaldo. mesmo menor, ele derrubou liovaldo, esfregou na terra, podia derrubar sessenta vezes! e esmurrou, esmurrou, batia no liovaldo de todo jeito, dum tempo só até batia e mordia. matava um cão?! o liovaldo, quando pôde, chorava e gritava, disse depois que o miguilim parecia o demo.

Por causa dessa briga com o irmão, o pai espanca Miguilim, violentamente. Somente pára de bater quando o menino começa a sorrir. O pai pensa ter agre-dido o menino na cabeça e imagina que poderia ter afetado o juízo da criança. Mas Miguilim estava rindo porque estava pensando de que modo ele, quando crescesse, mataria o pai.

Após a surra, no dia seguinte, Mãe manda o vaqueiro Salúz levar Miguilim com ele, para passar três dias fora, enquanto durasse a raiva do pai.

Passado o período, Miguilim retorna à casa, mas não tem ânimo de pedir a benção ao pai. Este, então, pega todas as gaiolas do filho e solta os passarinhos e, de raiva e maldade, destrói as gaiolas.

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Na sequência, o menino, num gesto inesperado, reúne todos os brinquedos que restaram e destrói todos. Miguilim, sem perceber, vai deixando o mundo infantil.

De volta ao trabalho na roça, o menino passa mal e desmaia. Doente, Mi-guilim espanta-se com a cena que presencia:

(...) E então Miguilim viu Pai, e arregalou os olhos: não podia, jeito nenhum não podia mesmo ser. mas era. Pai não ralhava, não estava agravado, não vinha descompor. Pai chorava, estramontado, demordia de morder os beiços. miguilim sorriu. Pai chorou mais forte: – “Nem Deus não pode achar isto justo direito, de adoecer meus filhinhos todos um depois do outro, parece que é a gente só quem tem de purgar padecer!?” Pai gritava uma braveza toda, mas por amor dele, miguilim. mãe segurou no braço de Pai e levou-o embora. mas miguilim não alcançava correr atrás de pensamento nenhum, não calcava explicação. Só transpirava e curtia frios; punha sangue pelo nariz; e a cabeça redoía. Do que tirou um instante contente foi da vinda do grivo: o grivo trouxe um canarinho-cabeça-de-fogo dentro de uma gaiola pequena e malfeita, mas que era presente para ele miguilim, presente de amizade.

Ainda doente, o menino recebe duas graves notícias: seu pai havia matado Luisaltino e cometido suicídio.

Lentamente, Miguilim vai se recuperando da enfermidade. Tio Terêz re-torna ao Mutúm e, por causa disso, Vovó Izidra parte, pois sua formação moral não lhe permitia aceitar o romance entre Nhanina e Tio Terêz.

A mãe chega a perguntar a Miguilim o que ele achava de ela viver agora com Tio Terêz, mas o menino mostra-se indiferente.

Depois, de dia em dia, e Miguilim já conseguia de caminhar direito, sem acabar cansando. Já sentia o tempero bom da comida; a Rosa fazia para ele todos os doces, de mamão, laranja-da-terra em calda de rapadura, geleia de mocotó. miguilim, por si, pas-seava. Descia maneiro à estrada do Tipã, via o capim dar flor. Um qualquer dia ia pedir para ir até na Vereda, visitar seo aristeu. zerró e Seu-nome corriam adiante e voltavam, brincando de rastrear o incerto. um gavião gritava empinho, perto.

De repente lá vinha um homem a cavalo. Eram dois. Um senhor de fora, o claro da roupa. miguilim saudou, pedindo a bênção. o homem trouxe o cavalo cá bem junto. ele era de óculos, corado, alto, com um chapéu diferente, mesmo.

Deus te abençoe, pequeninho. Como é teu nome?Miguilim. Eu sou irmão do Dito.E seu irmão Dito é o dono daqui?Não, meu senhor. O Ditinho está em glória.

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o homem esbarrava o avanço do cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso como nenhum outro. Redizia:

– Ah, não sabia, não. Deus o tenha em sua guarda... Mas, que é que há, Miguilim?miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que

o encarava.– Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá.

Quem é que está em tua casa?– É mãe, e os meninos...estava mãe, estava Tio Terêz, estavam todos. o senhor alto e claro se apeou. o

outro, que vinha com ele era um camarada. o senhor perguntava à mãe muitas coisas do Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: – “Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha mão você está enxergando? e agora?”

Miguilim esprimia os olhos. Drelina e a Chica riam. Tomezinho tinha ido se esconder.

– este nosso rapazinho tem a vista curta. espera aí, miguilim...e o senhor tirava os óculos e punha-os em miguilim, com todo o jeito.– olha, agora!miguilim olhou. nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e

lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo... O senhor tinha retirado dele os óculos, e miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia que aquilo era do modo mesmo, só que miguilim tam-bém carecia de usar óculos, dali por diante. o senhor bebia café com eles. era o doutor José lourenço, do Curvelo. Tudo podia. Coração de miguilim batia descompassado, ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à Maria Pretinha, à Mãitina. A Chica veio correndo atrás, mexeu: – “Miguilim, você é piticégo...” E ele respondeu: – “Donazinha...”

Quando voltou, o doutor José lourenço já tinha ido embora.– “Você está triste, Miguilim?” – Mãe perguntou.miguilim não sabia. Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam sempre

dum modo tão diferente, eram grandes demais.– Pra onde ele foi?– a, foi p´ra a Vereda do Tipã, onde os caçadores estão. mas amanhã ele volta, de

manhã, antes de ir s´embora para a cidade. Disse que, você querendo, Miguilim, ele junto te leva... – o doutor era homem muito bom, levava miguilim, lá ele comprava uns óculos pequenos, entrava para a escola, depois aprendia ofício. – “Você mesmo quer ir?”

miguilim não sabia. Fazia peso para não soluçar. Sua alma, até ao fundo, se es-friava. mas mãe disse:

– Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar. Vai. Fim do ano, a gente puder, faz a viagem também. um dia todos se encontram...

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E Mãe foi arrumar a roupinha dele. A Rosa matava galinha, para pôr na capanga, com farofa. Miguilim ia no cavalo Diamante – depois era vendido lá na cidade, o dinheiro ficava para ele. – “Mãe, é o mar? Ou é para a banda do Pau-Rôxo, Mãe? É muito lon-ge?” – “Mais longe é, meu filhinho. Mas é do lado do Pau-Rôxo não. É o contrário...” a mãe suspirava suave.

– “Mãe, mas por que é, então, para que é, que acontece tudo?!”– “Miguilim, me abraça, meu filhinho, que eu tenho tanto amor...”os cachorros latiam lá fora; de cada um, o latido a gente podia reconhecer. e o jeito,

tão oferecido, tão animado, de que o Papaco-o-Paco dava o pé. Papaco-o-Paco sobrecantava: “Mestre Domingos, que vem fazer aqui? Vim buscar meia-pataca, p’ra beber meu para-ti...” mãe ia lavar o corpo de miguilim, bem ensaboar e esfregar as orelhas, com bucha. – “Você pode levar também as alpercatinhas do Dito, elas servem pra você...”

no outro dia os galos já cantavam tão cedinho, os passarinhos que cantavam, os bem-te-vis de lá, os passo-pretos: – Que alegre é assim... alegre é assim... então. Todos estavam em casa. Para um em grandes horas, todos: mãe, os meninos, Tio Terêz, o vaqueiro Salúz, o vaqueiro Jé, o grivo, a mãe do grivo, Siàrlinda e o Bustiquinho, os enxadeiros, outras pessoas. miguilim calçou as botinas. Se despediu de todos uma primeira vez, principiando por mãitina e Maria Pretinha. As vacas, presas no curral. O cavalo Diamante já estava arreado, com os estribos em curto, o pelego melhor acorreado por cima da sela. Tio Terêz deu a miguilim a cabacinha formosa, entrelaçada com cipós. Todos eram bons para ele, todos do mutúm.

O doutor chegou. – “Miguilim, você está aprontado? Está animoso?”miguilim abraçava todos, um por um, dizia adeus até aos cachorros, ao Papaco-o-

Paco, ao gato Sossõe que lambia as mãozinhas se asseando. Beijou a mão da mãe do Grivo. – “Dá lembrança a seo Aristeu... Dá lembrança a seo Deográcias...” Estava abraçado com mãe, podiam sair.

mas, então, de repente, miguilim parou em frente do doutor. Todo tremia, quase sem coragem de dizer o que tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O doutor entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de miguilim.

e miguilim olhou para todos, com tanta força. Saíu lá fora. olhou os matos escu-ros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. olhou, mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. o mutúm era bonito! agora ele sabia. olhou mãitina, que gostava de o ver de óculos, batia palmas-de-mão e gritava: – “Cena, Corinta!... Olhou o redondo de pedrinhas, debaixo do jenipapeiro.

Olhava mais era para Mãe. Drelina era bonita, a Chica, Tomezinho. Sorriu para Tio Terêz: – “Tio Terêz, o senhor se parece com Pai...” Todos choravam. O doutor limpou a goela, disse: – “Não sei, quando eu tiro esses óculos, tão fortes, até meus olhos se enchem d´água...” Miguilim entregou a ele os óculos outra vez. Um soluçozinho veio. Dito e a Cuca Pingo-de-ouro. e o Pai. Sempre alegre, miguilim... Sempre alegre... nem sabia o que era alegria e tristeza. Mãe o beijava. A Rosa punha-lhe doces-de-leite nas algibeiras, para a viagem. Papaco-o-Paco falava, alto, falava.

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ii. UMa estÓRia de aMoR

peRsonaGens

Manuelzão: protagonista da estória. A pedido do fazendeiro Federico Freyre, aceita a missão de desbravar a “Terra do boi Solto” e convertê-la em uma fazenda. Personagem profundamente humana, no sentido mais complexo que esta palavra contém, Manuelzão é um ser que se prepara para a última jornada da vida, marcada pelo ingresso na velhice e na preparação para a morte. Sua experiência de vida o faz descobrir que um dos sentidos da vida é a realização através do amor. Não do amor físico, mas do amor que coroa a obra da existência com a aceitação tranquila das sucessivas etapas da vida.

dona Quilina: mãe de Manuelzão. Nunca havia deixado o lugar de origem, um lugarejo conhecido como Mim.

adelço: filho de Manuelzão. Casado com a linda Leonísia, tem sete filhos. Adelço era consequência de um caso furtivo de Manuelzão. Vira o filho poucas vezes, mas decidiu convidá-lo para morar na fazenda da Samarra. Em princí-pio, o pai não simpatiza com o filho, mas aos poucos vai descobrindo os laços afetivos que os ligam.

promitivo: (personagem secundária) jovem rapaz, irmão de Leonísia, cunhado de Adelço. Também passa a morar na fazenda da Samarra.

Camilo: personagem de grande importância na narrativa. O velho e sim-ples Camilo é um contador de estórias; ao contá-las, faz com que a atenção dos ouvintes recaia toda na própria estória. Narra-as com um jeito humilde, fazendo com que a estória seja percebida como um “claro enigma”, isto é, o sentido dela não aparece de início, mas aos poucos, com a vivência do ouvinte. No início, logo que a pessoa a ouve, a estória parece sem sentido, enigmática; mas aos poucos, com as experiências colhidas ao longo da vida, as pessoas passam a lhe atribuir significados, tornando claro o que antes era enigmático.

Joana xaviel: trata-se de outra grande contadora de estórias. Mulher destituída de atrativos físicos, de baixa conduta moral, Joana, entretanto, tem o poder de encantar as pessoas com as palavras. Suas narrativas têm o dom de suspender, ainda que apenas temporariamente (o tempo da própria narrativa) as tristezas dos ouvintes. Sua forma de narrar é oposta à de Camilo; Joana faz com que a atenção do ouvinte recaia sobre a sua disposição teatral.

Comparando as estórias de Joana às estórias de Camilo, podemos dizer que a primeira narra para entreter, enquanto Camilo narra para significar, ainda que o ouvinte não o entenda no princípio. Grosso modo, diríamos hoje que as estórias de Joana visam ao entretenimento e as de Camilo visam à educação dos sentidos para a existência. Ou ainda: a primeira corresponderia a um filme de George Lucas e o segundo corresponderia a um filme de Ingmar Bergman.

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João Guimarães Rosa

o enRedo

ia haver festa. naquele lugar – nem fazenda, só um reposto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos Gerais, onde o cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar áspero das ervas e árvores do campo-cerrado, e, nos matos, manhã e noi-te, os grandes macacos roncavam como engenho-de-pau moendo. mas, para os poucos moradores, e assim para a gente de mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas, seria bem uma festa. na Samarra.

Benzia-se a capela – templozinho, nem mais que uma guarita, feita a dois quilô-metros da Casa, no fim de uma altura esplã, de donde a vista se produzia. Uma ermida, com paredes de taipa-de-sebe, mas caiada e entelhada, barrada de vivo azul e tendo à testa a cruz. nem um sino. a imagem no altar sorria sem tamanho e desajeitada, uma nossa Senhora feia, nossa Senhora do Perpétuo Socorro. mesmo manuelzão achara de inscrever na parte de fora a invocação, em desastradas letras, que iam não cabendo na empena exígua. Dentro, dez pessoas talvez não pudessem estar, ainda apertadas. Mas, revezando-se, mexia-se por lá multidão de mulheres, que colocavam os adornos. Chifres de boi, dos bruxos, como vasos para flores; estampas; bandeirolas recortadas de leve papel; toalhas de crivo; colchas de bilro de Carinhanha, brancas como sal e açúcar.

manuelzão, ali perante, vigiava. a cavalo, as mãos cruzadas na cabeça da sela, dedos abertos; só com o anular da esquerda prendia a rédea. alto, no alto animal, ele sobrelevava a capelinha. Seu chapéu-de-couro, que era o mais vistoso, na redondeza, o mais vasto. Com tanto sol, e conservava vestido o estreito jaleco, cor de onça-parda. Se esquecia. “Manuel Jesus Rodrigues” – Manuelzão J. Roiz –: gostaria pudesse ter escrito também debaixo do título da Santa, naquelas bonitas letras azuis, com o resto da tinta que, não por pequeno preço, da Pirapora mandara vir. Queria uma festa forte, a primeira missa. agora, por dizer, certo modo, aquele lugar da Samarra se fundava.

Os parágrafos de abertura apresentam o motivo do conto, isto é, o núcleo em torno do qual se desenvolverá a narrativa: a festa inaugural da fazenda Sa-marra. Na abertura do conto, estamos a dois dias da realização da festa. O povo começa a chegar, os últimos preparativos já foram feitos. Manuelzão, do alto do seu cavalo, contempla as pessoas que chegam trazendo os presentes.

Todos traziam, sorrateiros, o que devia ser de Deus. Ovos de gavião – cor em cor:

agudos pingos e desenhos – esvaziados a furo de alfinete. Orquídeas molhadas ainda do mato, agarradas a seus braços de pau apodrecido. Balaio com musgos, que sumiam vago incenso no seco das madeixas verde-velho. Blocos de cristais de quartzo róseo aqualvo. Pedras não conhecidas, minerais guardados pelo colorido ou raro formato. Um boné de oficial, passado um lação de fita. Um patacão, pesada moeda de prata antiga. Uma grande concha, gemedora, tirada com as raízes, vinda parar ali, tão longe do mar como de uma saudade. e o couro, sem serventia e agourento, de um tamanduá inteiro preto, o único que desse pelo já se achara visto, e que fora matado no Dia-de-Reis. Apareceu mesmo um jarro de estanho, pichel secular, inexplicável; e ouve quem ofertasse dois machados de gentio, lisas e agumiadas peças de sílex,

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semelhando peixes sem caudas, desenterrados do chão de um roçado montês, pelo capinador, que via-os o resfrio de raios caídos durante as tempestades do equinócio. Deixados para o leilão, prestavam, junto com um frango-d`água sonolento – que um menino capturara à borda do brejo e atara pelos tarsos com fibra de buriti – e uma cabaça com mel de abelha urussú, docemente ácido, extraído de colmeias subterrâneas. assim a ideia da capela e da festa longo longe andava, de fé em fé, pelas corovocas da região. manuelzão mesmo se admirava.

Na sequência, o narrador volta no tempo para explicar como e para que se fundou a Samarra.

Sua casa. Sempre pudesse ser. mas lá, a Samarra, não era dele. manuelzão trabalhava para Federico Freyre – administrador, quase sócio, meio capataz de vaqueiros, certo um empregado. Porém Federico Freyre nem bem uma vez por ano se lembrava de aparecer, e manuelzão valia como dono visível, ali o respeitavam. Às horas, quando na boa mira dum sonho consentido, ele chegava mesmo a se sobre-ser, imaginando quase assim já fosse homem em poder e rico, com suas apanhadas posses. um dia, havia-de. Sempre puxara por isso, a duras mãos e com tenção teimosa, sem um esmorecimento, uma preguiça, só lutando. ele nascera na mais miserável pobrezazinha, desde menino pelejara para dela sair, para pôr a cabeça fora d`água, fora dessa pobreza de doer. agora, com perto de sessenta anos, alcançara aquele patamar meio confortado, espécie de começo de metade de terminar. Dali, ia mais em riba. Tinha certeza. e na Samarra todos enchiam a boca com seu nome: de manuelzão. Sabiam dele. Sabiam da senhora sua mãe, dona Quilina, falecida. Sua mãe, que, meses antes, velhinha, viera para aquele ermo, visitando-o. Pudera ir buscá-la, enfim, era a primeira ocasião em que se via sediado em algum lugar, fazendo de meio-dono. e ela pensara até que ele fosse dono todo. a mãe apreciara aquilo, o Baixío da Samarra, a Vereda da Samarra, o território. no tempo de adoecer, ela mencionara a mesa-de-campo, como ponto ideado para se erigir uma capelinha, a sobre. ela estava a se pensar? lá mesmo manuelzão a enterrou, confechando quase à borda da chã um cemiteriozinho, razoável, cercado de aroeiras, moirões que podiam durar sem acaba, e coberto pelo capim duro do cerrado, no qual, no raiar das madrugadas, o orvalho é azul e mata a sede. ao lado, ergueu a capelinha. enquanto pôde uma folga, na lida. o principal da ideia da capelinha então tinha sido de sua mãe. mas ele cumprira. e ele inventara a festa, depois.

na Samarra, aliás, manuelzão conduzira o início de tudo, havia quatro anos, desde quando Federico Freyre gostou do rincão e ali adquiriu seus mil e mil alqueires de terra asselvajada. – “Te entrego, Manuelzão, isto te deixo em mão, por desbravar!” E enviou o gado. Manuelzão: sua mão grande. Sua porfia. Pois ele sempre até ali usara um viver sem pique nem pouso – fazendo outros sertões, comboiando boiadas, produzindo retiros provisórios, onde por pouquinho prazo se demorava – sabendo as poeiras do mundo, como se navega. Mas, na Samarra, ia mas era firmar um estabelecimento maior. Sensato se alegrara. mordeu no ser. arreuniu homens e veio, conforme acostumado.

Sabemos agora que desde a chegada de Manuelzão à Samarra passaram-se quatro anos. Sabemos que a ideia da construção da capelinha partiu de sua mãe, Dona Quilina.

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Manuelzão sente, no entanto, que, para a fundação da fazenda ser com-pleta, falta-lhe algo que ele considera essencial, e que vem a ser a constituição de uma família.

mas desde o começo manuelzão conheceu que, para fundar o lugar, lhe faltava o ne-cessário de alguma espécie. Sentiu-o, vagarosamente. Só, solteirão, que ele era. antes, nunca tinha pensado nisso, com motivos. Pensou. Seus homens, mais ou menos velhos conhecidos, com ele vindos do maquiné, para apego de companhia não bastavam? ele calculou que não. e resolveu um recurso. a mãe, idosa, e que nunca aceitara de sair do lugarejo do mim, na mata do andrés, no Pium-í, no alto oeste, não era pessoa para vir aguentar as ruindades dum princípio tão sertanejo assim. Mas Manuelzão se lembrou de um filho, que também tinha.

Manuelzão não tem pelo seu filho Adelço grande afeto; aliás, nunca o vira mais de três vezes na vida. O filho, entretanto, aceita o convite do pai, e vem morar na fazenda com sua mulher Leonísia, seus filhos e seu cunhado Promitivo. Em princípio, Manuelzão acredita que seu filho seja um homem ruim e pensa mesmo em mandá-lo embora da fazenda. Mas não o faz, e a causa disso é a simpatia que nutre pela nora.

Por que os trouxera? Talvez na ocasião tivesse imaginado que a Samarra ia ser seu

esteio de pouso, termo de destino. e ele mesmo, nas entradas, se louvou de ter conseguido reunir para si aquela família de tardezinha. estivesse, naquela hora, denunciando cabeceira de velhice? não pensava. nem agora chegava a mudar de parecer, do que tinha feito não se arrependia. essas coisas ocorrem nuns escuros, é custoso de saber se a gente deve se aprovar ou confessar um arrependimento: nos caroços daquele angu, tudo tão misturado, o ruim e o bom. mas ele não punha em pé o pesar. estavam de bem, só que, em qualquer novidade, nesta vida, se carece de esperar o costume, para o homem e para o boi. manuelzão era o das forças, não se queixava. os meninos, bem-criadinhos, bonitos, uma cisma achar que dele não gostavam, pois que sempre estava no estatuto ser o avô. a mal que não sabia os gestos, nem tinha habituação para a pequenez deles, o rebuliço; mas adiava vagos intentos: aqueles netinhos ainda iam crescer, dar-lhe distintas alegrias. Já o adelço, esse, se encobria de não se conhecer sua propensão, criatura de guardadas palavras e olhares baixos. mas não enganava a manuelzão: era mesquinho e fornecido maldoso, um homem esperando para ser ruim. Só punha toda estima em sua mulher e nos filhinhos, das outras pessoas tinha uma raia surdada. Sempre aquela miúda dureza, sem teta de piedade nenhuma. Por ora, obedecia manuelzão – de que outro jeito ia poder proceder? mas obedecia soturno. um dia ele chegasse a mandar, e ái do mundo. Tinha a maldade de um cão mau? manuelzão se aborrecia por fora do assunto. Não queria detestar o filho. Seria, porém, aquele, um saido do seu sangue? Se assustava quase, de ter gerado e estar apurando um sujeito assim, desamigo de todos. Sua culpa. Se então, mais valesse o rejeitar outra vez e enxotar para os passados – feito a gente está pescando e dá na peneira uma serpente: um cospe um nojo e desiste logo aquilo no movimento das águas, ligeiro, no rio, de donde veio! a vida cobra tudo. mas a

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mulher do adelço, leonísia, era boa, uma sinhá de exata, só senhora. aquela tinha sinal de um sabido anjo-da-guarda – pelo convívio que ela encorajava, gerência de companhia. ela e seu irmão dela, de uns dezoito anos, vindo também, o Promitivo. Só que esse Promitivo era declarado em vagabundo. a ser, os desiguais: que o adelço era mouro trabalhador, de aferro; era , isso. E, Leonísia, Manuelzão mesmo respeitava. Ela ficara sendo a dona-da-casa. Da Casa – de verdade, que ali formava seu conchego firme sertanejo.

Manuelzão, já havia algum tempo, nutria a fantasia de que seu fim esta-ria próximo, e a causa disso começara cerca de um ano após a sua chegada. O lugar que ele escolhera para sede da fazenda ficava próximo a um riacho, que repentinamente secou.

Foi no meio duma noite, indo para a madrugada, todos estavam dormindo. mas cada um sentiu, de repente, no coração, o estalo do silenciozinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhinho. acordaram, se falaram. até as crianças. até os cachorros latiram. aí, todos se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não havia. Foram pela porta-da-cozinha. Manuelzão adiante, os cachorros sempre latindo. – “Ele perdeu o chio...” Triste duma certeza: cada vez mais fundo, mais longe nos silêncios, ele tinha ido s’embora, o riachinho de todos. Chegado na beirada, manuelzão entrou, ainda molhou os pés, no fresco lameal. manuelzão, segurando a tocha de cera de carnaúba, o peito batendo com um estranho diferente, ele se debruçou e esclareceu. ainda viu o der-radeiro fiapo d’água escorrer, estilar, cair degrau de altura de palmo a derradeira gota, o bilbo. e o que a tocha na mão de manuelzão mais alumiou: que todos tremiam mágoa nos olhos. Ainda esperaram ali, sem sensatez; por fim se avistou no céu a estrela-d’alva. o riacho soluço se estancara, sem resto, e talvez para sempre. Secara-se a lagrimal, sua boquinha serrana. era como se um menino sozinho tivesse morrido.

Dera de ser também nessa época que um argueiro, um broto de escrúpulos, se semeara no juízo de manuelzão? Quem sabe não fosse. Se ele mesmo às vezes pensava de procurar assim, era mais pela precisão de achar um começo, de separar alguma data a montante no tempo. De todo não queria parar, quereria suspeitar em sua natureza própria um anúncio de desando, o desmancho, no ferro do corpo. Resistiu. Temia tudo da morte. Pensou que estivesse com mal-olho. Pensou no riachinho secado: acontecimento assim tão costumeiro, nesses campos do mundo. mas tudo vem de mais longe. e se lembrava. Um dia, em hora de não imaginar, falara à mãe: – “Aqui junto falta é uma igreja... Ao menos um cruzeiro alteado...” Dissera isso, mas tão sem rompante, tão de graça, que a mãe mais tarde nem recordou aquelas palavras, quando ela criou ideia da capelinha na chã. Desse jeito as coisas se emendavam. Depois, Manuelzão, quando era de estar esmo-recido, planejava a capela, a missa; quando em outros melhores ânimos, projetava a festa. muitos assuntos ele mesmo não sabia que não queria pensar. mas aquela manância da grota, de ladeira abaixo suas águas, se acabara.

Como nunca fora dado a festas, pois Manuelzão dedicara toda sua vida ao trabalho, manda anunciar, junto com a notícia da missa e da festa, que três dias

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após a festa teria uma tarefa árdua: ele conduziria uma boiada à venda. Quem quisesse poderia se juntar à comitiva e levar o gado de sua propriedade com o gado da Samarra.

A notícia da festa corre pelo sertão e os convidados, gente das mais remo-tas paragens, de obscuros cantos dos sertões, encaminham-se para a fazenda da samarra.

Os mais variados tipos comparecem e acampam ao lado da igreja. Os con-vidados mais ilustres ficariam na sede da fazenda.

Ciganos, vaqueiros, aleijados, trabalhadores de eito, enfim, todo o tipo de gente se dirige para a fazenda. Até mesmo um tipo demasiadamente estranho, conhecido pelo nome de João Urugem, comparece. João Urugem fora acusado, na sua mocidade, de um furto. Desde então, mesmo provada a sua inocência, preferiu viver longe da companhia dos homens, abrigando-se num pé-de-serra do sertão.

Manuelzão, apesar da dor que sentia no pé, esforça-se para atender a todos. Embora tivesse a ajuda da nora Leonísia e do velho Camilo, lamenta não poder contar com a ajuda do filho Adelço.

À noite, à véspera da festa, uma procissão, partindo de frente da casa, seguiu em direção à capelinha.

Para lá, para a Capela, e parecia até que para o Céu, partia a procissão noturna, formada em frente da Casa, demoradamente, e subindo, ladeira arriba; concisos cami-nhavam. A lua minguava, mas todas as pessoas seguravam velas de sebo. Uma das filhas de leonísia e adelço, a menina mais velha, vestidinha de branco, toda francesinha, se divulgava de mais longe, carregava a imagem da Santa. Ia perto do padre (...)

Com muita dificuldade, Manuelzão acompanhou a procissão. Quando

chegou à capelinha, sentiu ânsias.

mas sob um súbito, manuelzão não queria, não podia entrar no estreito da Capela: ele estava afrontado na boca dos peitos, aquelas ânsias. arquejava, da subida? Tomou fôlego. não, nada não de ser. as más ideias passavam. Só – quem sabe – não seria mesmo melhor ele renunciar de sair com aquela boiada grande, que iam pôr na estrada, logo uns três dias depois da festa – para a Santa-lua. aconselhável era deixar de lado a opinião de orgulho, e voltar atrás do arrazoado com o adelço, mandar o adelço ir em seu lugar. Enquanto isso, ele ficava ali em Casa, em certo repouso, até a saúde de tudo se desameaçar. Podia? ah, mas nisso, consigo mesmo não concordava. Saúde boa, de sempre; só que, nos derradeiros dias, ele tinha dormido pouco, pensar em todas as minúcias da festa deixava a gente numa nervosia. Sabor disso, de rogar ajuda e voltar atrás num trato, ele ao adelço não dava. onde é que o adelço se amoitava, naquela hora? não devia de estar dentro da Capela, com o padre, o sacristão, Leonísia, o senhor do Vilamão, seo Vevelho e os filhos,

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as outras pessoas de primeira vantagem. o adelço era o contrário da festa. mas a festa se merecia. Por ora, hoje, ainda era véspera. mas amanhã, com a missa, a festa em verdade começava. Para respirar mais a solto, e descansar o pé, manuelzão se afastava um espaço do resto do povo. enternecia um pouco, assistir às chamas saltantes, que aguentavam a aragem, nos paus de cerca do cemiteriozinho. manuelzão não o procurara ver: mas, à luz, redondã, de uma daquelas velas, a cara do velho Camilo se descobria, dobrada sua palidez, diferido. Sem ser forte, mas com voz conhecível, ele também cantava.

Com o fim da cerimônia, as pessoas se recolhem. Os convidados mais ilus-tres ficam alojados na sede da fazenda. Leonísia cuida dos serviços domésticos, auxiliada por outras mulheres, entre elas uma chamada Joana Xaviel, uma exímia contadora de estórias.

Como as compridas estórias, de verdade, de reis donos de suas fazendas, grandes en-genhos e mais muitos pastos, todo gado, e princesas apaixonadas, que o canto da mãe-da-lua numa vereda distante punha tristonhas, às vezes chorando, e os guerreiros trajados de cetim azul ou cor-de-rosa, que galopavam e rodopiavam em seus belos cavalos – as estórias contadas, na cozinha, antes de se ir dormir, por uma mulher. essa, que morava desperdida, por aí, ora numa ora noutra chapada – o nome dela era Joana Xaviel.

Joana Xaviel tem um modo particular de contar suas estórias. Suas feições se transformam quando narra; parece mesmo transformar-se em outra pessoa, ela que é destituída de beleza e encantos femininos.

(...) Joana Xaviel virava outra. No clarão da lamparina, tinha hora em que ela es-tava vestida de ricos trajes, a cara demudava, destacava os traços, antecipava as belezas, ficava semblante. Homem se distraía, airado, do abarcável vulto – dela aquela: que era uma capioa barranqueira, grossa roxa, demão um ressalto de papo no pescoço, mulher praceada nos quarenta, às todas unhas, sem trato. mas que ardia ardor, se fazia. os olhos tiravam mais, sortiam sujos brilhos, enviavam.

Enquanto Joana Xaviel narra suas estórias, surge à janela da cozinha o velho Camilo. Este se recusa a entrar, agradecendo o convite feito por Leonísia.

(...) Velho Camilo agradecia, estava a cômodo, sentado no toco, na boca da escuridão. Só um menos apartado, feito os pobres cães cachorros, que se deitam, satisfeitos, perto das pessoas. Não adiantava encalcar, com ele porfiar. Mesmo permanecia ali porque gostava de Joana Xaviel. gostava, de amor? a leonísia tinha falado bondosa, mas a sério, seu respeito. Devia de ser via disso que a Joana Xaviel não apôs palavra. Às artes, começa outra estória. (...)

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na passagem anterior, o narrador fornece uma pista para o título do conto “Uma estória de amor”. seria a estória de amor entre Camilo e Joana xaviel que daria título à obra? é possível, mas também é possível que uma outra estória de amor, muito mais sutil, possa justificar o título. Uma estória que ainda está em andamento e que, somente adiante, poderemos entender.

Deitado próximo à cozinha, sem conseguir dormir, Manuelzão escuta as estórias de Joana Xaviel. Pela sua cabeça passavam as dificuldades que estavam por vir, como a missa e o transporte da boiada. Também ocupava sua imaginação Joana Xaviel e a vida que ela levava. Ele permitia sua presença na fazenda por-que Dona Quilina havia dito que ela tinha a “boca abençoada”. As notícias que Manuelzão tinha de Joana Xaviel eram péssimas: diziam que ela roubava, que havia matado um homem “só por meio de praga e ódio” e que seu filho Adelço havia se deitado com ela, o que Manuelzão não acreditava.

Manuelzão chega até a pensar na morte, no desgosto que sente pelo filho, sobretudo por ele não se oferecer para substituí-lo no transporte da boiada. Pensa em obrigá-lo a um trabalho que o deixasse afastado por um seis meses da sua mulher, pois acredita que Adelço não mereça como esposa uma mulher tão dedicada e afetiva como Leonísia. Por fim, Manuelzão adormece.

Pela manhã do dia seguinte, as pessoas se reúnem em frente à sede da fazenda e seguem em direção à capelinha. Dentro da capelinha, encontram-se as pessoas de maior prestígio, como o padre, o sacristão, o senhor do Vilamão, Manuelzão, Leonísia e Adelço, com a filha mais velha.

A Capelinha estava só de Deus: fazendo parte da manhã, lambuzada de sol, contra o azul, mel em branca, parecia saída de um gear. Dentro, eram servidas de caber, de joelhos no batido, as pessoas primeiras – o padre, o sacristãozinho, leonísia e o adelço, o senhor do Vilamão e outros respeitáveis, e a menina mais velha de leonísia e o adelço, que segurava na fita. Manuelzão no princípio aceitou a honra de entrar, à frente de todos, admirado por tantos olhos, pompa de ir direito ao altar, beijar a Santa, dito um padre-nosso. Mas daí tornava a sair, a capelinha era tão pequena, o aperto dava aflição, ele receava faltas-de-ar. o povoame enchia a chã, sem confusão nenhuma. mesmo aqueles com os revólveres na cintura, armas, facas. Ao que Manuelzão, cá bem atrás, ficou, no coice. Gostava todos aprovassem essa sua simplicidade sem bazófia, e vissem que ele fiscalizava. (...)

Finalmente, com o término da missa, tem início a festa.

Dando de repente, a missa já tinha se terminado, todos levantavam, nessa mistura, função do povo – era a festa. o padre tinha pronunciado o casamento de três casais, deu-se um afino nas violas. O leilão principiava. O leilão ia bem. Uma festa é para se gastar dinheiro, sem fazer conta.

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Na hora do almoço, dois vaqueiros enviados por Federico Freyre, Jão Orminiano e Queixo-de-Boi trazem uma carta do proprietário para Manuelzão. Na carta, Federico Freyre se desculpava por não estar presente e alegava os mo-tivos da sua ausência. Agradecia a Manuelzão e exaltava os seus méritos e a sua capacidade de transformar aquela terra selvagem na fazenda da Samarra.

A carta causa grande contentamento em Manuelzão, que vai almoçar com o senhor do Vilamão e com os demais hóspedes da Casa. Após os doces, Joaquim Leal, amigo de Manuelzão, a pedido deste, lê em voz alta a carta de Federico Freyre. Em seguida, o padre se despede, o senhor do Vilamão vai repousar e Manuelzão caminha pela festa.

A festa corria tranquila, com fartura de arroz, carne de galinha e bebida. E apesar do excesso de consumo de bebida, do excesso de gente e de valentões, não ocorreu nenhuma confusão, o que faz Manuelzão pensar que o lugar indicado pela sua falecida mãe era mesmo especial.

esta festa, Jesus Cristo no alto louvado, não tinha produzido nenhuma discussão, nem um começo de briga, por deslei. o mundo de gente, pretejando, povoando, feito mutucas na chapada. Tanta criatura estranha, aqueles cabras valentões, cintura total de armas, e arremenos em paz, uns com os outros. Vinha a ser mesmo um milagre. avistado por sua mãe: que o lugar, na chã, podia se marcar e prezar – que era merecível. nem não por falta do que se beber. Tinham sovertido, aos litros, a delas-frias, a-do-ó, e conhacada, espumaral de cervejas. mesmo, no seguir, o esperdiçamento: tinham aberto garrafas, des-pejado um-conto-de-réis de cerveja, uns nos outros, a rapaziada quente, falavam que era preciso, para o regozijo da festa, esvaziavam por cima das pessoas, cervejama, molhavam as roupas, o Joãozim Vendeiro tudo animava, a ser.

Manuelzão procura ver tudo que se passa na festa e acaba por descobrir que não é o único a pensar no árduo trabalho que viria logo após o encerramento dela. Por aqui e por ali, escuta os homens falando do trabalho do dia a dia. Ao cair da noite, sente-se envelhecido, não tem fome. Sua aparência deixa Leonísia preocupada, mas Manuelzão ainda encontra ânimo para percorrer outra vez a festa. Pensa em ir até o túmulo de sua mãe, mas a conversa entre dois vaqueiros, antigos companheiros, o faz parar e repassar mentalmente o caminho árduo que enfrentaria para levar a boiada.

Retorna à casa, em companhia do velho Camilo. A noite lhe reservava uma surpresa. Para espanto de Manuelzão, seu filho Adelço se oferece para conduzir a boiada.

(...) A daí, de repente, o Adelço chegando, em direito, por dizer: – “Nho pai...” O Adelço limpou a goela. Quê? O Adelço tinha chegado fixe, saudador, como no cumprir duma lição...

– “Nho pai, o senhor não supre bem, do pé... Seja melhor eu ir, levar esse trem de boiada, nos conformes... o senhor toma um repouso...”

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A alegria invade a alma de Manuelzão, deixando-o muito satisfeito com o filho.

manuelzão pôs bem o peito, dos ombros, nas pressas de um sentir, como, de supetão, demais se felicitava. um sentir de bom poder, um desagravado, o aluído de um peso – e ele se clareando do que aquilo fosse: glórias de estar tudo em sua mão, o resoluto; ufano de ser generoso e senhor; honras fortes de não quebrar a palavra. aquele – um prazer – prazer antigo não havido: que estava dando um doado ao Adelço, um benefício. Dádiva que quanto mais certa e grande conseguisse, que se pudesse. Balançou a cabeça.

A alegria do pai, entretanto, é logo substituída pela tristeza. Ele volta a pensar nas dificuldades que enfrentaria na viagem e, angustiado, tem pressen-timentos de morte. Para se distrair daqueles maus pensamentos, pede ao velho Camilo que conte uma estória.

As pessoas, sabedoras do talento do velho Camilo, aproximam-se dele para ouvir o “Romanço do Boi Bonito”, que é também conhecido por “Décima do Boi e do Cavalo”. Camilo principia sua estória:

– “Quando tudo era falante... No centro deste sertão e de todos. Havia o homem – a coroa e o rei do reino – sobre grande e ilustre fazenda, senhor de cabedal e possanças, barba branca pra coçar. Largos campos, fim das terras, essas províncias de serra, pastagens de vacaria, o urro dos marruás. a Fazenda lei do mundo, no campo do Seu Pensar... Velho homem morreu, ficou herdeiro filho...”

O filho herdara a fortuna do pai e, com ela, um grande cavalo branco. Ninguém, com exceção do finado pai, conseguia montar o cavalo.

“Nos pastos mais de longe da Fazenda, vevia um boi, que era o Boi Bonito, vaqueiro nenhum não aguentava trazer no curral...” O fazendeiro desejava a posse do Boi Bonito.

Um dia, surge na fazenda um vaqueiro à procura de emprego. Aceito para o trabalho, o vaqueiro guarda sua identidade em segredo, dizendo para seus companheiros chamar-se apenas Menino. Ao escolher sua montaria, o Menino surpreende a todos, pois consegue montar o grande cavalo branco.

O fazendeiro espalha a notícia de que daria grande recompensa a quem conseguisse capturar o Boi Bonito. Mais de mil vaqueiros comparecem à fazenda. O fazendeiro, então, manda matar cento e dezoito bois e oferece uma grande festa aos vaqueiros. Antes, porém, alerta todos sobre o perigo que o animal oferecia, pois ninguém havia conseguido campeá-lo. Muitos haviam morrido ou ficado encantados nessa tentativa.

Como se fossem para uma guerra, os vaqueiros partem para sua missão. Na amplidão do território, deparam com grande boiada. Nela, destaca-se um

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touro negro, que os vaqueiros tentam capturar. O fazendeiro, que acompanhava tudo, repreende os vaqueiros, dizendo que o objetivo era a captura do Boi Bonito e não do touro negro.

Nas andanças pelo sertão, os vaqueiros procuram pelo Boi Bonito, enquanto o vaqueiro Menino descansa. Quando finalmente o avistam, o boi ataca a tropa de vaqueiros, ferindo e matando vários, obrigando os outros a fugir.

O vaqueiro Menino parte à procura de pistas do Boi Bonito. Consegue encontrá-las, mas o animal escapa. Montado em seu cavalo encantado, o vaquei-ro Menino não desiste de sua presa. Nas travessias pelo sertão, o cavalo branco persegue o Boi Bonito, até finalmente encontrá-lo junto a uma fonte que nunca secava e que era a moradia do Boi Bonito. O animal deita-se na relva. O vaqueiro Menino aparece e conversa com ele.

– “Levanta-te, Boi Bonito,ô meu mano,deste pasto acostumado!

– um vaqueiro como você,ô meu mão,no carrasco eu tenho deixado!”

o de ver que tinha o Boi: nem ferido no rabicho, nem pego na maçaroca, nem risco de aguilhada. o Vaqueiro mais citou. o Cavalo não falava.

– “Levanta-te, Boi Bonito,ô meu mano,com chifres que Deus te deu!algum dia você já viuô meu mano,um vaqueiro como eu?”

Dele ganhou uma resposta, com um termo sério e sentido:

– “Te esperei um tempo inteiro,ô meu mãopor guardado e destinado.os chifres que são os meus,ô meu mãonunca foram batizados...

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Digo adeus aos belos campos,ô meu mão,onde criei o meu passado?Riachim, Buriti do Mel,ô meu mão,amor do pasto secado?...”

O vaqueiro Menino laçou e amarrou o Boi e, em seguida, beberam água jun-tos. A noite caía, quando o Menino percebeu que desconhecia o caminho de volta para a fazenda. O cavalo mágico, no entanto, o conduziu diretamente a ela.

A chegada do vaqueiro provoca surpresa, pois pensavam que ele havia morrido na tentativa de campear o Boi. Informado sobre a captura do Boi, o fazendeiro ordena uma festa, que dura um dia e uma noite.

Ao romper do dia, tendo o fazendeiro à frente da tropa, guiados pelo Meni-no, os vaqueiros encontram o Boi Bonito. O vaqueiro Menino, finalmente, revela sua identidade, dizendo chamar-se Seunavino. Aceita como recompensa apenas a posse do cavalo e pede ao fazendeiro que solte o Boi Bonito, no que é atendido. O fazendeiro informa-lhe que toda a sua fazenda será pasto para o Boi.

Camilo havia contado a estória de uma forma tão envolvente que todos estavam emocionados.

Velho Camilo cantava o recitado do Vaqueiro menino com o Boi Bonito. o vaqueiro,

voz de ferro, peso de responsabilidade. o boi cantava claro e lindo, que, por voz nem alegre nem triste, mais podia ser de fada. no princípio do mundo, acendia um tempo em que o homem teve de brigar com todos os outros bichos, para merecer de receber, primeiro, o que era – o espírito primeiro. Cantiga que devia de ser simples, mas para os pássaros, as árvores, as terras, as águas. Se não fosse a vez do Velho Camilo, poucos podiam perceber o contado.

até as mulheres choravam. leonísia suavemente, Joana Xaviel suave. Joana Xaviel de certo chorava. essa estória ela não sabia, e nunca tinha escutado. essa estória ela não contava. o velho Camilo que amava. estória!

Seo Vevelho foi por si mesmo buscar cachaça-queimada, pra trazer para o Velho Camilo. o senhor do Vilamão, tão branco, idosamente, batia palmas avivas, parecia de-baixo de um luarado.

manuelzão estendeu a mão. Para ninguém ele apontava. a boiada fosse sair – ele abraçava o adelço e leonísia.

Repare que o nome do vaqueiro Menino é a ponte final entre a estória do Velho Camilo e a estória de Manuelzão. O curioso nome Seunavino pode ter o seguinte significado: seu é forma variável de senhor. navi, muito provavelmente,

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deriva do latim navis, parte interior da igreja, desde a entrada até o santuário. Assim, Seunavino pode ser entendido como o caminho sagrado do Senhor.

Repare também que no princípio da estória, o vaqueiro é o Menino; so-mente no final do processo, ele se torna Seunavino, isto é, o menino torna-se senhor (= SEU), porque percorreu um caminho sagrado navis (= NAVI). Assim como o vaqueiro Menino campeou o Boi Bonito, num tempo mágico, Manuelzão transformou a natureza rústica numa fazenda, mas sobretudo transformou seu coração, pois o amor é o milagre, o prodígio que aproxima o homem de Deus. Homem e Deus são semelhantes porque ambos podem amar.

Talvez a narrativa – a estória – (já que no princípio era o verbo) seja o ca-minho sagrado pelo qual o homem pode descobrir a capacidade de amar e assim descobrir a parte divina que compõe a sua vida.

Se assim for, o título do conto refere-se à estória da descoberta do amor de Manuelzão pelo seu filho Adelço. Manuelzão inicia a etapa final da vida des-cobrindo que o amor é o sentimento essencial para que as ações de um homem possam atingir sua completude.

5. exeRCíCiostexto para a questão 1

De repente lá vinha um homem a cavalo. Eram dois. um senhor de fora, o claro da roupa. miguilim saudou, pedindo a benção. o homem trouxe o cavalo cá bem junto. ele era de óculos, corado, alto, com um chapéu diferente, mesmo.

– Deus te abençoe, pequeninho. Como é teu nome?– Miguilim. Eu sou irmão do Dito.– E seu irmão Dito é o dono daqui?– Não, meu senhor. O Ditinho está em glória. o homem esbarrava o avanço do cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso como

nenhum outro. Redizia:– Ah, não sabia, não. Deus o tenha em sua guarda... Mas, que é que há, Miguilim?miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que

o encarava.– Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá.

Quem é que está em tua casa?– É mãe, e os meninos...estava mãe, estava Tio Terêz, estavam todos. o senhor alto e claro se apeou. o

outro, que vinha com ele, era um camarada. o senhor perguntava à mãe muitas coisas

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João Guimarães Rosa

do Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: – “Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha mão você está enxergando? e agora?”

Essa história, com narrador observador em terceira pessoa, apresenta os acon-tecimentos da perspectiva de Miguilim. O fato de o ponto de vista do narrador ter Miguilim como referência, inclusive espacial, fica explicitado em:a) “O homem trouxe o cavalo cá bem junto.”b) “Ele era de óculos, corado, alto (...).”c) “O homem esbarrava o avanço do cavalo, (...).”d) “Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, (...).”e) “Estava Mãe, estava Tio Terêz, estavam todos.”

2. Miguilim, protagonista do conto “Campo Geral”, tem especial simpatia por um dos irmãos, que vem a ser:a) Drelina. d) Dito.b) Chica. e) Liovaldo.c) Tomezinho.

3.A formação religiosa de Vovó Izidra, personagem de “Campo Geral”, de Gui-marães Rosa, faz dela uma guardiã moral da família. No final do conto, Vovó Izidra abandona a família, em virtude de um acontecimento incompatível com a sua formação moral. Por que motivo ela abandona a família?

4.e então miguilim viu Pai, e arregalou os olhos: não podia, jeito nenhum não podia mesmo ser. mas era. Pai não ralhava, não estava agravado, não vinha descompor. Pai chorava, estramontado, demordia de morder os beiços. miguilim sorriu. Pai chorou mais forte: – “Nem Deus não pode achar isto justo direito, de adoecer meus filhinhos todos um depois do outro, parece que é a gente só quem tem de purgar padecer!?” Pai gritava uma brabeza toda, mas por amor dele, miguilim. mãe segurou no braço de Pai e levou-o embora. mas miguilim não alcançava correr atrás de pensamento nenhum, não calcava explicação. Só transpirava e curtia frios; punha sangue pelo nariz; e a cabeça redoía. Do que tirou um instante contente foi da vinda do grivo: o grivo trouxe um canarinho-cabeça-de-fogo dentro de uma gaiola pequena e mal feita, mas que era presente para ele miguilim, presente de amizade.

No fragmento acima, Miguilim fica espantado com a atitude do pai. Qual a causa do espanto de Miguilim?

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5.Em “Campo geral”, de Guimarães Rosa, vários acontecimentos na vida de Mi-guilim assinalam sua passagem da infância para a vida adulta. Mencione um desses acontecimentos e justifique por que ele prepara a iniciação de Miguilim na vida adulta.

6.O conto “Uma estória de amor” tem como protagonista o personagem Manuelzão e apresenta a narrativa da fundação da fazenda Samarra. Quais os eventos que marcam a fundação da fazenda?

7.O Velho Camilo e Joana Xaviel são exímios contadores de estórias no conto “Uma estória de amor”. Explique, de forma sucinta, as diferenças quanto ao modo de narrar dos dois contadores.

8.Como não era habituado a festas, Manuelzão planeja, logo após a inauguração da fazenda Samarra, uma tarefa que lhe daria um trabalho árduo. O que Manuelzão planejou fazer após a festa?

texto para a questão 9

Todos traziam, sorrateiros, o que devia ser de Deus. Ovos de gavião – cor em cor: agudos pin-gos e desenhos – esvaziados a furo de alfinete. Orquídeas molhadas ainda do mato, agarradas a seus braços de pau apodrecido. Balaios com musgos, que sumiam vago incenso no seco das madeixas verde-velho. Blocos de cristais de quartzo róseo aqualvo. Pedras não conhecidas, minerais guardados pelo colorido ou raro formato. Um boné de oficial, passado um lação de fita. Um patacão, pesada moeda de prata antiga. Uma grande concha, gemedora, tirada com as raízes, vinda parar ali, tão longe do mar como de uma saudade. e o couro, sem serventia e agourento, de um tamanduá inteiro preto, o único que desse pelo já se achara visto, e que fora matado no Dia-de-Reis. Apareceu mesmo um jarro de estanho, pichel secular, inexplicável; e houve quem ofertasse dois machados de gentio, lisas e agumiadas peças de sílex, semelhando peixes sem caudas, desenterrados do chão de um roçado montês, pelo capinador, que via-os o resfrio de raios caídos durante as tempestades do equinócio. Deixados para o leilão, prestavam, junto com um frango-d`água sonolento – que um menino capturara à borda do brejo e atara pelos tarsos com fibra de buriti – e uma cabaça com mel de abelha urussú, docemente ácido, extraído de colmeias subterrâneas. assim a ideia da capela e da festa longo longe andava, de fé em fé, pelas corovocas da região. manuelzão mesmo se admirava.

O fragmento acima, extraído de “Uma estória de amor”, de Guimarães Rosa, des-creve os presentes e as oferendas que o povo levou para as terras de Manuelzão. O que motivou o povo a levar presentes e oferendas?

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João Guimarães Rosa

10.(...) A daí, de repente, o Adelço chegando, em direito, por dizer – “Nho pai...” O Adelço lim-pou a goela. Quê? O Adelço tinha chegado fixe, saudador, como no cumprir duma lição... – “Nho pai, o senhor não supre bem, do pé...Seja melhor eu ir, levar esse trem de boiada, nos conformes...o senhor toma um repouso...” No fragmento acima, Adelço, filho de Manuelzão, comunica ao pai o desejo de subs-tituí-lo na tarefa de transporte de uma boiada. Das alternativas abaixo, qual melhor condiz com a reação emotiva de Manuelzão ao ouvir o que lhe disse o filho?a) Manuelzão ficou revoltado, pois entendeu que o filho o considerava incom-

petente para a realização da tarefa.b) Manuelzão ficou tomado de satisfação, pois, embora fosse incapaz de renunciar

à tarefa, aprovou a atitude do filho de tomar a iniciativa de substituí-lo.c) Manuelzão ficou entristecido, pois sentiu despertar na consciência o peso da

idade avançada em que se encontrava.d) Manuelzão sentiu ódio pelo filho, pois entendeu que ele queria se afastar

de Leonísia.e) Sentiu-se alegre, porque o filho partiria em seu lugar e ele poderia, enfim,

permanecer mais tempo em companhia de sua nora Leonísia.

GabaRito1. A 2. d3. Vovó Izidra abandona a família porque Tio

Terêz, após o suicídio de Nho Bero, marido de Nhanina, volta a viver na casa. Vovó Izidra não aceitava o envolvimento de Tio Terêz com Nhanina, razão pela qual o havia expulsado de casa. Com o suicídio de Nho Bero, entretanto, ele retorna, o que a motiva a deixar a casa.

4. Miguilim fica espantado porque percebe uma manifestação de afeto do pai. O pai, normalmente um homem duro e rigoroso no trato com os filhos, revela preocupação e ternura com o filho doente.

5. A perda da cachorra Cuca, a destruição das gaiolas pelo pai, a quebra dos brinquedos pelo próprio Miguilim e a morte do irmão Dito parecem preparar Miguilim para a saída do mundo lúdico da infância, pois os acontecimentos o fazem ter a experiência da dor e do luto. No final do conto, ao experi-mentar os óculos do doutor José Lourenço,

Miguilim completa finalmente a passagem da infância para a vida adulta, pois adquire uma nova forma de ver a vida.

6. A missa inaugural da capela dedicada a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e uma grande festa são os eventos que marcam a fundação da fazenda.

7. Joana Xaviel, quando narra, chama a aten-ção dos ouvintes para si, simulando uma representação das personagens da estória narrada. O velho Camilo, quando narra, faz com que sua pessoa seja esquecida pelos ou-vintes, dirigindo a atenção deles para o fato narrado e não para a pessoa do narrador.

8. Manuelzão planeja o transporte de uma grande boiada, e o caminho era muito inós-pito, difícil.

9. A causa é a inauguração da fazenda da Sa-marra, que seria marcada pela inauguração de uma capela e pela realização de uma grande festa.

10. B