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Marcelo Pereira
Análise e Estudo da estrutura organizativa de um conselho
gestor de políticas públicas: o caso do Conselho
Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional
Sustentável de Minas Gerais – CONSEA-MG
Monografia apresentada à Universidade Federal de Viçosa como parte das exigências do curso de Secretariado Executivo Trilíngüe para obtenção do título de Bacharel
Universidade Federal de Viçosa Viçosa - Minas Gerais
2006
Marcelo Pereira
Análise e Estudo da estrutura organizativa de um
conselho gestor de políticas públicas: o caso do
Conselho Estadual de Segurança Alimentar e
Nutricional Sustentável de Minas Gerais
Monografia apresentada à Universidade Federal de Viçosa como parte das exigências do curso de Secretariado Executivo Trilíngüe para obtenção do título de Bacharel
APROVADA em 03 de abril de 2006.
Prof. Odemir Vieira Baeta (DLA) (Orientador)
Profa. Luciana de Oliveira Miranda Gomes (DAD)
Profa. Débora Carneiro Zuin (DLA)
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“Gente foi feita para brilhar, e não para morrer de fome”
Caetano Veloso
“(...) Foi assim que eu vi e senti formigar dentro de mim a terrível
descoberta da fome. Da fome de uma população inteira escravizada à angústia de
encontrar o que comer. Vi os caranguejos espumando de fome à beira da água,à
espera que a correnteza lhes trouxesse um pouco de comida, um peixe morto, uma
casca de fruta, um pedaço de bosta que eles arrastariam para o seco matando sua
fome. E vi, também, os homens sentados na balaustrada do velho cais e murmurarem
monossílabos, com um talo de capim enfiado na boca, chupando o suco verde de
capim e deixando escorrer pelo canto da boca uma saliva esverdeada que me parecia
ter a mesma origem da espuma dos caranguejos: era a baba da fome. Pouco a pouco,
por sua obsessiva presença, este vago desenho da fome foi ganhando relevo, foi
tomando forma e sentido no meu espírito. Fui compreendendo que toda a vida dessa
gente girava sempre em torno de uma só obsessão – a angústia da fome.”
Josué de Castro – Homens e Caranguejos.
ii
Agradecimentos
Agradeço de todo coração:
A meu pai Rodolfo Pereira Filho, a minha mãe Fátima Miriam Bruczenitski Pereira e a
meu irmão André Pereira por me apoiarem incondicionalmente neste período de
graduação.
A minha madrinha Miriam Bastos pelo apoio e carinho.
A todas bravas companheiras e todos bravos companheiros do Movimento Estudantil
de Viçosa, que me proporcionaram verdadeira formação política e humana.
A Maika Buéque Zampier, grande amiga de momentos importantes.
Ao meu orientador, professor Odemir Vieira Baeta, pelo apoio neste trabalho
monográfico.
A meu amigo Sérgio Silva Abrahão pelo apoio e suporte, e por ter me apresentado a
temática da Segurança Alimentar e Nutricional.
à equipe técnica do CONSEA-MG, especialmente Renata Sousa e Manoela
Rodrigues.
À professora Leda Castro, do CEDEFES, cuja contribuição teórica foi de extrema
relevância.
iii
Sumário
1. Introdução ................................................................................................... 5
2. Justificativa.................................................................................................. 7
3. Objetivos ..................................................................................................... 9
4. Metodologia............................................................................................... 10
5. Referencial teórico..................................................................................... 11
5.1. Os conselhos gestores de políticas públicas no Brasil ....................... 11
5.2. Componentes históricos e conceituais da Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável no Brasil e em Minas Gerais.................................... 13
5.2.1. Antecedentes: Josué de Castro e a ONU ................................... 13
5.2.2. O Conceito de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável e suas implicações ....................................................................................... 14
5.2.3. Redemocratização e chegada do tema ao Estado brasileiro ...... 16
5.2.4. O CONSEA-MG .......................................................................... 17
5.2.5. O FMSANS ................................................................................. 19
6. Estrutura Organizativa do CONSEA-MG................................................... 21
6.1. Objetivo e Composição ...................................................................... 21
6.2. Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional; Sustentável ...... 24
6.3. Corpo social e atores políticos do movimento pela SANS em Minas Gerais ........................................................................................................... 27
7. Análise e Discussão .................................................................................. 29
7.1. Funcionabilidade da nova estrutura organizativa do CONSEA .......... 29
7.2. Resultados alcançados a partir da regionalização do CONSEA ........ 32
8. Conclusão ................................................................................................. 35
9. Referência Bibliográfica............................................................................. 37
10. Anexos ...................................................................................................... 39
iv
Índice de Figuras
Figura 1: CRSAN’s criadas até novembro de 2005. ......................................... 23
Figura 2: Fluxograma do Sistema Estadual de SANS ...................................... 25
Figura 3: composição da sociedade civil do CONSEA-MG por entidade em agosto de 2004.......................................................................................... 28
Figura 4: composição da sociedade civil do CONSEA-MG por tipo de entidade em agosto de 2004.................................................................................... 28
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1. Introdução
A luta pela conquista dos direitos humanos fundamentais vem sendo
travada no Brasil há muito tempo. O abismo social que marca os diferentes estratos
sociais de nossa sociedade, a imensa massa de excluídos a quem são negados todos
os direitos, como saúde, educação, moradia, saneamento e tantos outros – tudo isso
tem sido gerado pela grande capacidade que nós temos de marginalizar pessoas da
distribuição de riqueza. Neste sentido, a fim de reverter este quadro, ao longo de
nossa história muitas iniciativas vêm sendo implementadas, tanto por parte da
chamada sociedade civil – organizações não-governamentais; associações religiosas
ou comunitárias e movimentos sociais populares – tanto por parte de iniciativas,
mesmo que isoladas, do poder público.
Uma das frentes desta luta tem sido o chamado movimento pela
segurança alimentar e nutricional. Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável
(SANS) é “a garantia do direito humano à uma alimentação baseada em práticas
saudáveis, em quantidade e freqüência adequadas, sem interferir em outras
necessidades essenciais, que respeite a diversidade cultural dos povos, e que seja
ambiental, social e economicamente sustentável” Muitas organizações e muitas
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pessoas têm se organizado no Brasil hoje a fim de garantir o direito humano à
alimentação.
Concomitante e inteiramente ligada a este processo, a possibilidade de
se criar novas interfaces de diálogo entre Estado e sociedade tem sido buscadas,
principalmente na perspectiva da garantia dos direitos fundamentais – o que se
costumou chamar de políticas públicas. Para SPOSATI (1996), “implantar uma
democracia ampla, moderna, que tenha ousadia de contemplar a presença dos novos
sujeitos da política brasileira (...) supõe entender que os novos modos de
representação da sociedade serão construções históricas da cidadania, e devem ser
valorizados e resgatados enquanto novas saídas face à exclusão”.
Em Minas Gerais, a experiência do movimento pela SANS criou, em
1999, o CONSEA-MG (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de
Minas Gerais), que é um conselho deliberativo, ligado a gabinete do governador do
Estado, constituído por representantes da sociedade civil e do poder público, e que
tem por objetivo criar e acompanhar políticas públicas de SANS em Minas Gerais.
Desde 2002, o CONSEA-MG se regionalizou, criando 21 Comissões Regionais de
Segurança Alimentar e Nutricional (CRSAN’s), que possibilitaram uma maior
capilaridade do conselho, uma vez que agora todos os municípios do Estado podem
fazem parte diretamente da sua estrutura.
A criação e consolidação do CONSEA em Minas Gerais trouxe uma nova
perspectiva no que diz respeito à parceria entre poder público e sociedade civil
organizada na construção da política pública de Segurança Alimentar e Nutricional.
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2. Justificativa
É característica do profissional de Secretariado a amplitude de sua área
de atuação, já que toda organização moderna precisa de um profissional que garanta
a fluidez de seus processos. Entretanto, pouco se tem estudado sobre organizações e
estruturas públicas ou sem fins lucrativos. Entendemos que este trabalho contribuirá
na divulgação de uma nova estrutura do Estado, com caráter diferente dos tradicionais
setores e órgãos públicos, e, por conseguinte, da rede de organizações que a ela
estão inseridas.
Da mesma forma, o tema das políticas públicas (como as de SANS) e
dos novos instrumentos da democracia (como os conselhos gestores) tem sido
recorrentes em diversos setores da academia, e uma abordagem do ponto de vista
organizacional em muito contribuirá para inserir o Secretariado Executivo nesta
discussão.
Meu envolvimento com esta temática surgiu a partir do estágio que tenho
desenvolvido desde setembro de 2004 junto à ONG Centro de Tecnologias
Alternativas da Zona da Mata, secretariando a Comissão Regional de Segurança
Alimentar e Nutricional Zona da Mata II, cuja sede é em Viçosa, na referida ONG. A
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necessidade do profissional de secretariado de conhecer a fundo as organizações em
que ele atua também me motivou a desenvolver este trabalho monográfico.
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3. Objetivos
Este trabalho tem por objetivo geral descrever, durante sua trajetória
histórica, a estrutura organizativa do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional
Sustentável de Minas Gerais.
São objetivos específicos:
• Verificar a funcionabilidade da nova estrutura organizativa do
CONSEA-MG, implantada a partir de 2001;
• Verificar os resultados alcançados sob a nova estrutura organizativa
desde então.
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4. Metodologia
Primeiramente se fará uma breve abordagem do conceito de SANS e um
resgate histórico do movimento pela SANS em Minas Gerais e a criação do CONSEA-
MG. Logo após, se fará uma revisão bibliográfica sobre estruturas organizativas de
conselhos de políticas públicas, em especial do CONSEA-MG.
Para verificar a funcionabilidade da estrutura organizativa do CONSEA e
seus resultados, serão observados os dados referentes à vivência do pesquisador nos
trabalhos da Comissão Regional de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável –
Zona da Mata II, e do próprio CONSEA, durante o período de setembro de 2004 à
presente data, além dos referentes à pesquisa documental feita a partir de atas,
relatórios, materiais de divulgação e outras publicações.
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5. Referencial teórico
5.1.Os conselhos gestores de políticas públicas no Brasil
A experiência da redemocratização do Brasil, com toda a efervescência
social que lhe foi característica ao longo da década de 80, e a conseqüente outorga da
“Constituição Cidadã” de 1988 abriu brecha para que instrumentos de democracia
participativa fossem criados na estrutura do estado brasileiro. Um destes instrumentos
são os chamados conselhos gestores de políticas públicas. Podemos citar, como
exemplo, o inciso II do artigo 204, que trata da política pública de assistência social:
“participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação
das políticas e no controle das ações em todos os níveis”.
A Constituição de 1988 apresentou grandes avanços em relação aos direitos sociais, apontando, claramente, para a construção de um Estado de Bem-estar provedor da universalização dos direitos sociais. Além disso, introduziu instrumentos de democracia direta (plebiscito, referendo e iniciativa popular), que, até hoje, não foram regulamentados pelo Congresso Nacional, e abriu a possibilidade de criação de mecanismos de democracia participativa, como, por exemplo, os conselhos. (MORONI, 2005, pág. 5)
Estes conselhos são instâncias do poder público (normalmente ligadas
diretamente ao chefe do poder executivo) que têm uma composição híbrida –
representantes do poder público e da sociedade civil. No Brasil, a partir do final da
década de 80, foram criados diversos conselhos na área das políticas sociais, com a
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responsabilidade de elaborar, deliberar e fiscalizar a implementar políticas, estando
presente nos níveis municipal, estadual e nacional. Exemplos são os conselhos de
Assistência Social, da Criança e do Adolescente, de Saúde, da Educação, da Merenda
Escolar, do Desenvolvimento Rural Sustentável, dos Direitos da Mulher, das Cidades,
de Ciência e Tecnologia, da Cultura, do Meio Ambiente, de Juventude.
Através dos conselhos a população organizada pode participar
ativamente das decisões políticas do Estado brasileiro, além de controlar e fiscalizar
as ações de seus representantes eleitos. Dessa forma, para MORONI (2005), os
conselhos “inauguram uma nova concepção de espaço público ou mesmo de
democracia.”
Os Conselhos gestores de políticas públicas fazem parte de uma dimensão mais ampla das ações de governo e envolvem, na verdade, uma transformação na própria forma de fazer gestão pública. Eles têm a ver com uma concepção de co-gestão, uma concepção de partilha do poder. São novos espaços, novas esferas públicas no interior das quais a agenda fundamental é justamente a agenda voltada ao fortalecimento de direitos de cidadania. (DANIEL, 2001, pág. 1)
Os conselhos cumprem papel importante na transformação da chamada
“cultura política” brasileira. Historicamente marcado por uma cultura da não-
participação e da segregação política – paternalista, coronelista, elitista, machista e
racista – o Estado brasileiro abre agora espaço – graças às pressões sociais ao longo
da história – para que a população participe da res publica.
Surge algo novo quando estes Conselhos são criados e começam a funcionar com eficácia. Criam-se espaços onde segmentos da população se articulam, trocam informações, criam conceitos, transmitem esses conceitos para outros segmentos da população e assim por diante. (...) A esfera pública está se fortalecendo à medida que os Conselhos se consolidam e que é possível ampliá-los. Na correlação de forças para a formação da opinião pública, a corrente que joga peso numa agenda voltada à garantia dos direitos de cidadania se fortalece. Considerando a maneira como se dão hoje os debates na esfera pública, é possível perceber a importância dessa corrente. (DANIEL, 2001, pág. 2)
Contudo, o pleno funcionamento dos conselhos no Estado demanda
também um envolvimento efetivo do poder público em sua estrutura. As formulações
dos conselhos só serão encaminhadas efetivamente, e o trabalho de fiscalização e de
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acompanhamento do poder público encontrará muitos obstáculos se a Prefeitura, o
Governo do Estado ou o Governo Federal não reconhecerem o papel e as atribuições
dos conselhos no tocante às políticas públicas, e de fato fazerem parte deles.
O caminho percorrido pelos conselhos na estrutura do poder público tem
sido a criação via decreto do executivo e posterior regulamentação no legislativo (na
forma de lei municipal, estadual ou federal), o que caracteriza a necessidade da
vontade política do poder público (principalmente o executivo) para a criação dos
conselhos.
5.2.Componentes históricos e conceituais da Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável no Brasil e em Minas Gerais
O movimento pela chamada Segurança Alimentar e Nutricional de certa
forma faz parte de dois fenômenos da história recente da sociedade brasileira: é fruto,
em parte, das organizações da sociedade civil que emergiram da década de 80; e se
apropriou dos instrumentos de democracia direta criados pela Constituição de 88.
5.2.1. Antecedentes: Josué de Castro e a ONU
Podemos escolher como marco teórico inicial para o surgimento do
conceito de segurança alimentar e nutricional a contribuição de Josué Apolônio de
Castro, médico, sociólogo, geógrafo, escritor e político pernambucano. Foi o primeiro a
perceber a fome como um fenômeno social, causado pelo homem contra o homem,
num processo de exclusão de grandes parcelas da sociedade.
Suas duas principais obras, A Geografia da Fome (1946) e Geopolítica
da Fome (1951), alcançaram projeção mundial, e Josué acabou ocupando importantes
cargos no Conselho da Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações
Unidas (FAO), influenciando em muito a atuação desta organização. Com os direitos
políticos cassados em 1964 pelo regime militar, Josué faleceu no exílio, em Paris, com
65 anos, em 1973.
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A Josué de Castro também se atribui o mérito de construir as bases para
o conceito de sustentabilidade. Josué já naquela época denunciava a utilização
predatória dos recursos naturais, principalmente na agricultura.
A perseguição da ditadura, todavia, fez com que sua obra e sua memória
fossem banidas da academia e da política brasileira. Seu nome, apesar de ser uma
referência respeitada no mundo inteiro, caiu no esquecimento para grande parte de
nós, brasileiros.
5.2.2. O Conceito de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável e suas implicações
A II Conferência Nacional de SANS, realizada em Olinda em 2004,
conceituou Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (SANS) como “a realização
do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em
quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais,
tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a
diversidade cultural e que sejam ambiental, econômica e socialmente sustentáveis”.
A construção histórica do conceito de SANS é marca de uma disputa de
idéias e interesses antagônicos. Sua origem remonta à criação dos organismos
multilaterais do período pós-guerra, especialmente a FAO. Em princípio, segurança
alimentar estava mais relacionada à soberania alimentar, que é a capacidade de uma
nação de abastecer-se com alimentos produzidos por ela própria, de forma a não se
tornar vulnerável a possíveis cercos, embargos ou boicotes de motivação política ou
militar.
Esta concepção, aliada à ideologia da Revolução Verde (que proclamava
a necessidade de aumentar a produção de alimentos para acaba com a fome) lançou
as bases do atual modelo agrícola agroquímico e mecanizado, que, embora tenha
aumentado a produção de alimentos consideravelmente, não solucionou (pelo
contrário, aprofundou) o problema da fome.
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Mais tarde, em meados da década de 80, surgiu a premissa de que as
causas da fome estavam associadas à distribuição de riquezas. O combate à fome
estava, então ligada ao combate à pobreza. É também na década de 80 que se
incorporam as noções de alimento seguro e saudável. Para Valente (2003),
No final da década de 80 e início dos anos 90 observa-se mais uma modificação no conceito de segurança alimentar. Incorpora-se ao mesmo tempo as noções de alimento seguro (não contaminado biológica ou quimicamente); de qualidade do alimento (nutricional, biológica, sanitária e tecnológica); do balanceamento da dieta, da informação e das opções culturais (hábitos alimentares) dos seres
humanos em questão.(VALENTE, 2003, pag. 7)
Foi também neste momento que o direito à alimentação passou a ser
encarado no bojo dos direitos humanos, entendendo-o como um dos direitos básicos
de todos os seres humanos. Mais tarde foi incorporada a recente discussão de
sustentabilidade, que pode ser entendida como a busca do uso racional dos recursos
naturais e econômicos para garantir também o direito à alimentação para as próximas
gerações.
A amplitude que o conceito alcançou aumentou significativamente suas
implicações. No âmbito da produção, uma das causas defendidas pelo movimento da
Segurança Alimentar e Nutricional é a da agroecologia como matriz tecnológica para a
agricultura, como forma de garantir a produção de alimentos saudáveis, valorizando
formas não-capitalistas de produção agrícola (como o campesinato), e gerando uma
melhor distribuição de riquezas.
No âmbito da educação alimentar, temas como o resgate dos hábitos
alimentares tradicionais, utilizando menos produtos industrializados, o combate à
propaganda abusiva da indústria alimentícia (principalmente a direcionada às
crianças), a merenda escolar em escolas e creches públicas, o incentivo ao
aleitamento materno, a campanha pela rotulagem dos alimentos industrializados
(especialmente os alimentos que contém produtos transgênicos), entre outros, são
abordados.
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A discussão de sustentabilidade trouxe a tona, para o movimento pela
SANS, questões como o uso racional dos recursos hídricos, os impactos ambientais
da utilização dos agrotóxicos e das sementes geneticamente modificadas, o choque
de comunidades tradicionais com a expansão da agricultura predatória, a distribuição
de renda e riqueza, dentre outros.
O grande volume de implicações, debates e embates envolvidos na
temática da SANS fez com que diferentes tipos de organizações, como os movimentos
de luta pela terra, camponeses, pastorais, os conselhos profissionais, as ONG’s
ligadas à agroecologia, os intelectuais e acadêmicos, aderissem à causa, cada qual
com sua diferente abordagem.
5.2.3. Redemocratização e chegada do tema ao Estado brasileiro
Em 1986 o tema do direito humano à alimentação foi abordado, pela
primeira vez no Brasil e no âmbito da sociedade civil, na ocasião da I Conferência
Nacional de Alimentação e Nutrição, um desdobramento da 8ª Conferência Nacional
de Saúde. Na ocasião o direito à alimentação foi classificado como direito básico.
Em 1991 a experiência do governo paralelo, criado pelo PT após a
derrota eleitoral de Lula, elaborou uma Política Nacional de Segurança Alimentar, a
partir do que a sociedade civil do país havia acumulado ao longo dos anos. Para Lage
(2005),
(...) isso aconteceu em decorrência da incorporação nessa proposição das esferas de produção agrícola e do abastecimento, e das dimensões do acesso à comida, das carências nutricionais e da qualidade dos alimentos. Começou-se a falar, a partir de então, de Segurança Alimentar e Nutricional, ambos vistos como conceitos interdependentes, embutidos nessa mesma idéia. (LAGE, 2005,
pág. 3)
A proposta foi encaminhada ao Governo Federal, do então presidente
Fernando Collor, que não se mostrou sensibilizado. Neste momento surge também a
Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, uma grande campanha, de
abrangência nacional, liderada pelo sociólogo Herbert de Souza.
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Entretanto, com o impeachment de Collor e a chegada de seu vice,
Itamar Franco, à presidência, o tema é pela primeira vez discutido no âmbito do
Governo Federal. É criado o Plano Nacional de Combate à Fome e à Miséria, e nele
estava inclusa a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar – CONSEA,
instituído através do decreto nº 807 de 24 de abril de 1993. Para LAGE (2005), a
criação do CONSEA Nacional, como a primeira iniciativa efetiva de parceria entre o
poder público e a sociedade civil no âmbito da SANS foi “o início de uma fase
memorável de mobilização pelo país. Foi quando o enfrentamento da fome e da
miséria passou a ser uma questão discutida no bojo das políticas econômicas e
sociais e da segurança alimentar e nutricional, com o debate continuado entre a
sociedade civil e o Governo.”
A partir desta mobilização, realizou-se, por convocação da Ação da
Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela Vida e do CONSEA, a 1a. Conferência
Nacional de Segurança Alimentar, em julho de 1994, na capital federal.
Em 1995, com a chegada ao poder de Fernando Henrique Cardoso, a
segurança alimentar e nutricional sai da agenda política do Governo Federal. O
decreto que cria o CONSEA é revogado, e em seu lugar surge o programa
Comunidade Solidária, que traz de volta as idéias de voluntariado e assistencialismo à
tona na esfera das políticas públicas.
5.2.4. O CONSEA-MG
Em 1998, parte das organizações que compunham o extinto CONSEA
Nacional criaram o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN)
como uma forma de articular a sociedade civil em torno da temática, minimizando
assim a desmobilização decorrente das mudanças feitas no âmbito institucional pelo
Governo Fernando Henrique. O entendimento de que as políticas públicas de SANS
só seriam possíveis a partir da parceria entre o poder público e a sociedade civil, e a
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dificuldade de comunicação que havia então com o Governo Federal, fez com que o
FBSAN passasse a buscar diálogo com os então eleitos Governos Estaduais.
Em Minas Gerais, uma articulação foi feita entre o governador Itamar
Franco e o então criado Fórum Mineiro de Segurança Alimentar e Nutricional
Sustentável para continuar, na esfera estadual, a mobilização que havia surgido
quando aquele era Presidente da República. Foi então criado o CONSEA-MG, a
princípio envolvendo organizações da sociedade civil com abrangência estadual e o
Governo do Estado. Como principais realizações deste primeiro período do CONSEA-
MG, destacam-se a criação do ITER (Instituto de Terras de Minas Gerais), vinculado
ao Governo do Estado, para agilizar a Reforma Agrária em Minas Gerais e o Programa
de SANS para Assentamentos de Reforma Agrária (PSA); a realização da Conferência
Estadual de SANS, em 2001, que acabou subsidiando o primeiro Plano Integrado de
SANS no Estado, denominado “Dignidade e Vida”.
Em 2002 surgiram as primeiras Comissões Regionais de SANS, criadas
a partir do diagnóstico de que o CONSEA-MG encontrava dificuldades em responder
às necessidades das diversas regiões do estado, se concentrando apenas na capital.
O processo de criação das CRSAN’s intensificou-se com a realização de duas
“caravanas”, que envolveram Dom Mauro Morelli, a equipe técnica do CONSEA-MG e
os conselheiros, e que percorreram o Norte do estado e o Vale do Jequitinhonha. A
criação das Comissões Regionais contribuiu substancialmente para a ampliação da
rede de atores sociais envolvidos na questão da SANS. Diversas associações de base
comunitária, sindicatos de trabalhadores rurais, entidades religiosas, pastorais,
prefeituras, puderam se inserir na política pública estadual de segurança alimentar
devido a esse fenômeno.
Como resultado também da I Conferência Estadual, em 2003 foi criado o
Programa Mutirão pela Segurança Alimentar e Nutricional (PROSAN), que financia
pequenos projetos para associações de base comunitária. O PROSAN 2003 foi de
extrema importância para a criação de novas CRSAN’s, pois garantiu estrutura e
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financiamento para o funcionamento das mesmas, e foi uma importante forma de
divulgação do CONSEA-MG e de seu trabalho. Muitas comunidades apoiadas por
projetos do PROSAN acabaram se inserindo nos trabalhos das CRSAN’s.
A aumento da base social do CONSEA-MG e do movimento pela SANS
propiciaram, na ocasião da II Conferência Estadual de SANS, em 2003, a
reivindicação da criação de um marco legal que desse maior amparo à abordagem da
SANS no estado. O resultado foi a recente sanção da Lei Orgânica Estadual de SANS.
5.2.5. O FMSANS
A história do Fórum Mineiro de Segurança Alimentar e Nutricional
Sustentável (FMSANS) começa em 1996, quando algumas pessoas atuantes em
questões sociais em Belo Horizonte se encontraram na Cúpula de Roma sobre a
questão da fome. Mais tarde, em 1998, foi criado o Fórum Brasileiro de Segurança
Alimentar e Nutricional, que integrava representantes de organizações da sociedade
civil, com o objetivo de lutar por uma política de combate à fome.
Em Minas Gerais, a proposta de criação de um Conselho Estadual de
Segurança Alimentar entrou na agenda do governo Itamar Franco, que tomou posse
em janeiro de 1999. Em março de 1999 foi organizado o 1º Encontro do Fórum Mineiro
de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável, em Belo Horizonte. O Encontro foi
organizado para discutir a proposta de criação do CONSEA-MG e eleger
representantes da sociedade civil para compô-lo. Dom Mauro Morelli, que participou
ativamente da criação do CONSEA, integrou também o Fórum Mineiro, contribuindo
para sua projeção no Estado.
O FMSANS passou a ser, então, um fórum para articulação dos
representantes da sociedade civil no CONSEA-MG, mesmo após a criação das
Comissões Regionais. Nas reuniões do FMSANS são discutidas as pautas do
CONSEA-MG e é realizado intercâmbio entre as diversas entidades que o compõe. O
FMSANS ainda realizou outros dois encontros estaduais, em 2003 e 2005.
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O FMSANS tem por objetivos: incentivar a solidariedade, o intercâmbio
de informações e a formulação de questões pertinentes à temática da segurança
alimentar e nutricional sustentável; organizar eventos e grupos de trabalho para a
realização de diagnósticos, pesquisas, análises e ações sobre a problemática da
segurança alimentar e nutricional sustentável em Minas Gerais; fomentar e criação de
fóruns regionais de SANS; Legitimar os representantes da sociedade civil para a
composição do CONSEA-MG; propor diretrizes e ações do CONSEA-MG.
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6. Estrutura Organizativa do CONSEA-MG
6.1. Objetivo e Composição
O CONSEA-MG é um “órgão colegiado permanente vinculado
administrativamente ao Gabinete do Governador do Estado, e tem como objetivo
deliberar, propor e monitorar as ações e políticas de que trata esta Lei e deliberar
sobre elas”1. Está inserido, desde a sanção da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e
Nutricional Sustentável de Minas Gerais (LOSAN-MG), em janeiro de 2006, no
Sistema Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável, que prevê
mecanismos para elaboração, execução e controle da política estadual de SANS. Tem
uma composição híbrida, envolvendo representantes do poder público estadual (treze
cadeiras para o Governo do Estado e uma para a Assembléia Legislativa) e da
sociedade civil organizada (vinte e seis cadeiras, representando as Comissões
Regionais de Segurança Alimentar e Nutricional – CRSAN’s).
De acordo com a LOSAN, são atribuições do CONSEA-MG:
i. aprovar o Plano estadual de Segurança Alimentar e Nutricional
Sustentável;
1 Lei Estadual 15982, de 19 de janeiro de 2006.
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ii. aprovar e monitorar planos, programas e ações da política de
segurança alimentar e nutricional, no âmbito estadual;
iii. incentivar parcerias que garantem a mobilização e a racionalização dos
recursos disponíveis;
iv. promover a criação e a manutenção das CRSAN’s e incentivar a criação
dos Conselhos Municipais de Segurança Alimentar e Nutricional
Sustentável, com os quais manterá relações de cooperação na
consecução dos objetivos da Política Estadual de Segurança Alimentar
e Nutricional Sustentável;
v. coordenar e promover campanhas de educação alimentar e de
formação da opinião pública sobre o direito humano à alimentação
adequada;
vi. apoiar a atuação integrada dos órgãos governamentais e das
organizações da sociedade civil envolvidos nas ações de promoção da
alimentação saudável e de combate à fome e à desnutrição;
vii. elaborar seu regimento interno;
viii. exercer atividades correlatas.
As cadeiras do poder público estadual são ocupadas por representantes
de secretarias que se relacionam com a temática da SANS. Em janeiro de 2006, eram
as seguintes:
• Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento; • Secretaria de Estado de Saúde; • Secretaria de Estado de Educação; • Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Esportes; • Secretaria de Estado de Governo; • Secretaria de Estado da Fazenda; • Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia; • Secretaria de Estado da Cultura; • Secretaria de Estado de Defesa Social; • Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional e Política Urbana; • Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; • Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão; • O subsecretário de Diretos Humanos da Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Social e Esportes.
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As CRSAN’s são órgãos colegiados vinculados ao CONSEA-MG, que
tem por objetivo regionaliza-lo, para que ele possa corresponder plenamente às
demandas de todo o estado de Minas Gerais. Sua área geográfica é baseada,
normalmente, nas Diretorias de Ações Descentralizadas de Saúde (DADS) da
Secretaria de Estado de Saúde. Sua composição – que é definida por regimento
próprio – tem sido dois representantes da sociedade civil e um do poder público de
cada município da sua área de abrangência. A articulação entre as Comissões
Regionais é feita pelo Fórum Mineiro de Segurança Alimentar e Nutricional
Sustentável (FMSANS). Até novembro de 2005, havia 21 CRSAN’s constituídas. São
as abaixo relacionadas:
CRSAN Cidade sede Data de criação Vale do Rio Doce Governador Valadares 22/03/2002 Norte de Minas Montes Claros 17/05/2002 Sul de Minas I Pouso Alegre 19/05/2002 Noroeste Paracatu 21/06/2002 Triângulo I Uberaba 06/07/2002 Triângulo II Uberlândia 05/07/2002 Centro-Oeste Divinópolis 18/07/2002 Metropolitana Belo Horizonte 22/07/2002 Vale do Mucuri Teófilo Otoni 20/07/2002 Baixo Jequitinhonha Jequitinhonha 03/09/2002 Alto e Médio Jequitinhonha Turmalina 07/02/2003 Zona da Mata I Muriaé 26/05/2004 Zona da Mata II Viçosa 08/08/2003 Zona da Mata III Juiz de Fora 12/03/2003 Vale do Aço Coronel Fabriciano 02/10/2003 Vertentes I Barbacena 10/10/2003 Médio Piracicaba João Molevade 23/10/2003 Leste Divino 28/10/2003 Sul de Minas II Alfenas 08/11/2003 Alto Paranaíba Patos de Minas 20/05/2005 Vertentes II São João Del Rei 30/05/2005
Figura 1: CRSAN’s criadas até novembro de 2005. Fonte: dados da pesquisa.
São 26 cadeiras previstas no CONSEA-MG para as CRSAN’s, que
correspondem às 26 DADS existentes hoje. Existem, portanto, 4 CRSAN’s a serem
constituídas. Enquanto elas ainda não existem, estas cadeiras são ocupadas por
conselheiros indicados pelo FMSANS. No futuro, espera-se que as CRSAN’s tenham
24
uma afinidade maior com os Conselhos Municipais de Segurança Alimentar e
Nutricional, que estão, em Minas, em fase inicial de implantação.
Os representantes da sociedade civil e da Assembléia Legislativa tem
mandato de dois anos, permitida a recondução e a substituição. A falta não justificada
a três plenárias consecutivas ou a quatro alternadas implica na perda do mandato do
conselheiro.
6.2.Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional; Sustentável
Na 2a. Conferência Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional,
realizada em dezembro de 2003, foi detectada a importância da criação de um marco
legal para o CONSEA-MG. Até então, e ainda por um período, o CONSEA-MG era
institucionalizado, a princípio, por força do decreto número 40.324, de março de 1999
(que poderia ser revogado por simples força de outro decreto-lei, baixado pelo próprio
poder executivo estadual), depois por outro decreto, de número 41.780, de julho de
2001, e a partir de 2003 pela lei delegada nº 95 de 29 de janeiro de 2003, que poderia
ser revogada pela Assembléia Legislativa.
A situação de pouca estabilidade do Conselho, associada à carência de
uma estrutura do Estado para dar materialidade às formulações do CONSEA-MG, e à
própria importância simbólica de se ter uma lei estadual que reconhecesse o direito
humano à alimentação e a nutrição em Minas Gerais foram determinantes para que o
próprio conselho, juntamente com as CRSAN’s e as entidades ligadas à luta pela
SANS articulassem uma movimentação em prol da criação da Lei Orgânica de
Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (LOSAN-MG).
Em meados de 2005 foi enviada ao gabinete do Governador uma minuta
da LOSAN, que foi encaminhada à Assembléia sem grandes alterações, e após
tramite nesta casa e sanção do Governador, veio a se tornar a Lei 15.982/2006, que,
segundo seu próprio caput, “dispõe sobre a Política Estadual de Segurança Alimentar
e Nutricional Sustentável e dá outras providências”. Ou seja, a Lei cria um organismo
25
no seio do aparelho estatal para elaborar, executar e controlar uma política estadual
de SANS. Dentro deste organismo está o CONSEA-MG.
A Política Estadual de SANS, ainda segundo a mesma lei, é de
responsabilidade do Sistema Estadual de SANS, do qual são partes, além do
CONSEA-MG e das CRSAN’s, a Coordenadoria Geral da Política Estadual de SANS,
que é uma “comissão intersetorial vinculada ao Gabinete do Governador e regida por
regimento próprio”. Trata-se de um órgão executivo, que tem, entre outras, a tarefa de
coordenar as ações que forem determinadas no Plano Estadual de SANS. Tal plano,
por sua vez, é formulado pela própria Coordenação Geral, a partir das diretrizes
deliberadas na Conferência Estadual de SANS, que deve ocorrer a cada dois anos,
por convocação do Governador.
Figura 2: Fluxograma do Sistema Estadual de SANS. Fonte: dados da pesquisa
Neste bojo, exerce papel importante ainda os Conselhos Municipais de
SANS (COMSEA’s), que ainda estão em fase inicial de implantação em Minas Gerais,
mas que serão veículo neural para a capilarização das campanhas e ações da política
26
pública de SANS, além de serem formuladores das demandas diretas das
comunidades dos municípios mineiros.
Trata-se de uma lei recém criada que, embora se materializou a partir de
um processo de demanda social bem construído e articulado, esbarra ora na cultura
política brasileira de pouca participação no Estado, ora pelos atores sociais a quem
interessa a atual condição de insegurança alimentar e nutricional e desmobilização
social. Tem, portanto, um longo caminho até a sua efetiva consolidação.
27
6.3.Corpo social e atores políticos do movimento pela SANS em Minas Gerais
CASTRO (2005) reconhece alguns elementos que caracterizam a
composição da sociedade civil no CONSEA-MG e nas CRSAN’s hoje.
Na origem das primeiras CRSAN’s aparecem duas “redes informais” de entidades e movimentos - os mais ligados à Igreja Católica e os mais ligados à agricultura familiar e aos trabalhadores rurais - que ainda hoje são as dominantes na composição da sociedade civil, tanto do CONSEA com das comissões regionais. (...) A qualidade do funcionamento das comissões depende muito de cada região e do nível de mobilização social que existe ali. Quando se fala em boas comissões é porque elas estão em regiões bem mobilizadas socialmente, com várias entidades atuantes. Onde não há essa tradição de luta social, fica mais difícil inserir o trabalho das comissões. (CASTRO, 2005, pág. 2)
Sendo as Comissões Regionais a maior rede hoje de entidades e atores
políticos que atuam em SANS em Minas Gerais, tal constatação se aproxima muito do
quadro geral do movimento pela SANS no estado. Em agosto de 2004, a composição
dos conselheiros da sociedade civil no CONSEA-MG era a seguinte:
Entidade Conselheiros Comissão Regional
Pastoral da Criança 4 Vale do Mucuri, Centro Oeste, Triângulo I, Vale do Rio Doce
Fundo Cristão 1 Alto e Médio Jequitinhonha
Cáritas Diocesana 2 Baixo Jequitinhonha e Noroeste
Visão Mundial 1 Norte
Centro Sapucaí 1 Sul de Minas I
Fundamar 1 Sul de Minas II
Conselho Regional de Nutrição 2 Triângulo II e FMSANS
Sindicato dos Trabalhadores Rurais
1 Zona da Mata I e Leste
Centro de Tecnologias Alternativas
1 Zona da Mata II
Movimento Fé e Política 1 Zona da Mata III
Associação de bairro 1 Metropolitana
Ação da Cidadania 1 Vale do Aço
Pastoral da Saúde 1 Médio Piracicaba
Central de Solidariedade 1 Vertentes I
CNBB 1 FMSANS
28
CPT-MG 1 FMSANS
Conselho Regional de Serviço Social
1 FMSANS
Cáritas Regional MG 1 FMSANS
Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas
1 FMSANS
Central de Solidariedade 1 FMSANS
Figura 3: composição da sociedade civil do CONSEA-MG por entidade em agosto de 2004. Fonte: dados da pesquisa.
A composição da sociedade civil do CONSEA-MG pode, ainda, ser
tipificada desta forma:
Tipo de Entidade Conselheiros
Igrejas e movimentos religiosos 12
Organizações Não-Governamentais 6
Movimentos sociais e organizações populares 3
Associações profissionais 3
Sindicatos de Trabalhadores Rurais 2
Instituição Internacional 1
Figura 4: composição da sociedade civil do CONSEA-MG por tipo de entidade em agosto de 2004. Adaptado de CASTRO.
29
7. Análise e Discussão
7.1.Funcionabilidade da nova estrutura organizativa do CONSEA
O decreto 41.780, de 26 de julho de 2001, alterou sobremaneira a
estrutura organizativa do CONSEA-MG, dando-lhe braços regionais (as CRSAN’s).
Este esforço no sentido da regionalização foi feito para que o CONSEA-MG pudesse
interagir melhor com os cerca de 850 municípios mineiros.
Até então, a representação da sociedade civil neste conselho era feita
por entidades que tinham abrangência estadual (como, por exemplo, a Federação dos
Trabalhadores em Agricultura do Estado de Minas Gerais, FETAEMG, o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra de Minas Gerais, MST-MG, a Comissão Pastoral
da Terra, CPT, os Conselhos Regionais de Nutrição e Assistência Social, dentre
outros). Como resultado desta composição, o CONSEA-MG concentrava seus debates
em Belo Horizonte, e pouco podia dialogar com as demandas regionais do estado.
Detectada esta deficiência, começou-se um esforço para criar Comissões
Regionais de SANS, que elegeriam cada uma um conselheiro da sociedade civil para
representá-la em Belo Horizonte. Como base geográfica para estas Comissões
Regionais, utilizou-se as Diretorias Regionais de Saúde (DRS), que posteriormente
30
passaram a ser chamadas de Diretorias de Ação Descentralizada em Saúde (DADS),
da Secretaria de Estado da Saúde. São ao todo, atualmente, 26 DADS.
Todavia, a criação das CRSAN’s não foi automática. Foram detectados,
em cada região, possíveis atores sociais que poderiam impulsionar a fundação destas
estruturas, e os municípios poderiam “desrespeitar” a organização espacial das DADS
se suas características e afinidades o identificassem com outra CRSAN. Um
calendário abrangendo oficinas de capacitação e formação foi aplicado em cada uma
das regionais escolhidas como pioneiras para o processo de descentralização.
Desta forma, em 2001 foram criadas 16 Comissões Regionais, que se
tornaram 19 em 2003 e 21 em 2005. Nota-se, portanto, que o processo de
regionalização ainda não acabou – haja vista que o estado de Minas Gerais
compreende 26 DADS, e o marco legal vigente – a lei estadual 15.982/2005 reserva à
sociedade civil 26 cadeiras no CONSEA-MG. Mesmo entre as Comissões já
existentes, verificam-se diferentes graus de organização e de efetiva participação nas
decisões do conselho.
Mesmo assim, é possível, ao longo destes cinco anos, apontar uma
melhor funcionabilidade do CONSEA-MG devido ao processo de regionalização. O
primeiro deles diz respeito à própria presença dos conselheiros nas plenárias do
CONSEA. Entre fins de 2000 e o início de 2001 verificou-se baixos quoruns nas
plenárias convocadas, chegando-se ao caso de não haver quorum para realização de
algumas reuniões. A partir do processo de regionalização este problema deixou de
existir, e as ausências verificadas foram referentes, na maioria das vezes, à
representação do governo do Estado (que, a partir das eleições em 2002, deixou de
ter assiduidade nas plenárias).
Outro indicativo da melhora da funcionabilidade do CONSEA-MG foi a
ampliação do corpo social envolvido na temática da SANS. O potencial de
envolvimento da sociedade na estrutura do CONSEA-MG é formidável. Se todos os
municípios do estado indicarem todos os três representantes a que têm direito em
31
suas respectivas Comissões Regionais (sendo um representante do poder público
municipal e outros dois da sociedade civil), num futuro hipotético, teremos cerca de
2500 pessoas envolvidas diretamente na estrutura do CONSEA-MG.
O quadro atual nos mostra Comissões Regionais ainda em fase de
implementação, e muitos municípios ainda não foram envolvidos nos trabalhos das
CRSAN’s. Mesmo assim, o CONSEA partiu de uma composição de 39 membros, em
2001 para as cerca de 1000 pessoas que hoje integram as 21 CRSAN’s, além dos 15
conselheiros do poder público estadual, que não estão envolvidos nas estruturas
regionais. Isso significa pelo menos 1000 agentes promotores da Segurança Alimentar
e Nutricional Sustentável, distribuídos em todas as regiões de Minas Gerais,
aumentando, assim, a capacidade do CONSEA-MG em cumprir seu objetivo de
promover a SANS no estado.
Necessário ainda ressaltar que os membros das CRSAN’s são
representantes ou do poder público municipal ou de organizações da sociedade civil,
ou seja, cada um deles é um multiplicador em potencial do debate e da causa da
SANS.
32
7.2.Resultados alcançados a partir da regionalização do CONSEA
Quando o CONSEA-MG aumentou seu corpo social e descentralizou-o,
aumentou conseqüentemente sua capacidade de elencar demandas que atendam as
exigências e necessidades específicas de cada região que abrange, bem como sua
capacidade de pressão social para que sejam efetivados programas e ações que
supram estas demandas.
Este fato é verificável se analisarmos a agenda e as realizações
alcançadas pelo CONSEA após o início do processo de regionalização, em 2001.
Evidenciada a necessidade de detectar realidades regionais do estado, o CONSEA
realizou, em 2003, duas caravanas no interior de Minas. De 19 a 24 de junho, foram
visitados municípios do Alto e Médio Jequitinhonha, e de 30 de junho a 4 de julho, do
Norte de Minas. Como resultado dessa caravana, o Conselho criou uma série de
propostas de programas para apoio às comunidades remanescentes de quilombos.
Outro programa aprovado pelo CONSEA no sentido de promover o
desenvolvimento de regiões em situação de insegurança alimentar e nutricional foi o
Programa Leite Pela Vida, implementado pelo IDENE (Instituto para o
Desenvolvimento do Nordeste de Minas) que atendeu 150 mil famílias em 188
municípios do semi-árido mineiro.
O programa de maior visibilidade desenvolvido pelo próprio CONSEA-
MG, a partir das deliberações da I Conferência Estadual, é o Programa Mutirão pela
Segurança Alimentar e Nutricional (o PROSAN), implementado pela primeira vez em
2003.
O PROSAN é um programa que, através do compartilhamento de
responsabilidades entre poder público e organizações associativas de base
comunitária, pretende difundir ações promotoras e difusoras de SANS, além de
divulgar o próprio CONSEA. Os projetos têm que ser desenvolvidos em todas as suas
33
etapas (desde sua elaboração, até sua implementação, avaliação e prestação de
contas) pelas próprias associações, de forma participativa, se transformando desta
forma num processo educativo e libertador para as comunidades em situação de
vulnerabilidade. O Programa financia pequenos projetos relacionados a quatro eixos:
a) produção e beneficiamento de alimentos, b) apoio à garantia de acesso à
alimentação; c) apoio à educação alimentar e nutricional e; d) apoio à capacitação, a
estudos e ao controle social das políticas de SANS.
O primeiro PROSAN, realizado em 2003, contou com recursos da ordem
de R$1,5 milhão, junto a Loteria Mineira. Financiou 203 projetos em 92 municípios,
perfazendo um total de 25.622 pessoas diretamente beneficiadas. O segundo
PROSAN, realizado durante os anos de 2004 e 2005, se integrou ao Programa Minas
Sem Fome (desenvolvido pelo Governo do Estado com recursos do Governo Federal),
contando desta vez com R$ 4 milhões e beneficiando 479 projetos e 41.682 pessoas.
O Programa Minas Sem Fome englobou ainda outros dois eixos, o primeiro deles sob
responsabilidade da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas
Gerais (EMATER-MG) e o outro se refere a Programa de Segurança Alimentar em
Assentamentos de Reforma Agrária (PSA), gerido pela Cáritas.
Tanto a primeira quanto a segunda versão do PROSAN só foram
possíveis através de uma articulação com o Governo do Estado, sendo para tal de
fundamental importância o envolvimento da sociedade civil, potencializado pela
criação das Comissões Regionais.
No que diz respeito às Conferências Estaduais, que são fóruns que
indicam diretrizes e orientações para a política estadual de SANS, a nova estrutura do
CONSEA-MG possibilitou uma maior amplitude – e por isso mesmo uma maior
importância política – para os mesmos. A primeira Conferência, realizada em
dezembro de 2001, quando a fundação das CRSAN’s ainda estava em fase germinal,
contou com um total de 438 delegados. A segunda, realizada em 2003, quando já
haviam 19 Comissões Regionais organizadas, teve 600 delegados. A terceira
34
Conferência Estadual de SANS, realizada em dezembro de 2005, teve um número
total de delegados de 660.
O aumento do número de participantes nas Conferências conferiu maior
qualidade e legitimidade às suas propostas, e por conseguinte aumentou a
possibilidade de suas implementações. Uma demanda apontada pela II Conferência
foi a de se estabelecer um marco legal para a Política Estadual de SANS, que
abrangesse o CONSEA e instrumentos da estrutura do Poder Executivo para a
efetivação da política pública. Desta maneira, em 2005 tramitou o projeto de Lei
Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, sancionada pelo Governador de Minas
a 19 de janeiro de 2006, e programada para entrar em vigor em 19 de abril do mesmo
ano.
35
8. Conclusão
Os conselhos gestores de políticas públicas são um instrumento de
democracia participativa que surgiu, no Brasil, a partir da Constituição Federal de
1988. São, portanto, muito recentes, da mesma forma que a cultura política a eles
associada – de participação da população nas decisões do Estado brasileiro,
principalmente no que diz respeito às políticas sociais – ainda tem um longo caminho a
percorrer para ser consolidada nas instituições e na sociedade brasileira.
Por outro lado, o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional
Sustentável também é muito recente. Grande parte das organizações da sociedade
civil brasileira ainda o está descobrindo e a ele se familiarizando. O próprio tema da
fome como uma questão social foi proposto pela primeira vez, no Brasil e no mundo,
apenas na década de 40, com Josué de Castro, cuja contribuição nos foi apartada
pela ditadura militar. Somente no período da redemocratização, principalmente a partir
da Ação da Cidadania, de Herbert de Souza, o tema da fome foi retomado pela
sociedade civil brasileira, agora sobre a ótica da Segurança Alimentar e Nutricional.
36
A forma como o CONSEA-MG tem se estruturado, a partir de braços
regionais, é pioneira entre os conselhos de políticas públicas no Brasil, e tem menos
de cinco anos de experiência.
Trata-se, portanto, de um instrumento democrático novo, abordando um
tema novo e estruturado de uma forma pioneira. Mesmo assim, tem apresentado
resultados substanciais, tanto na sua consolidação dentro do aparelho estatal de
Minas Gerais como na sua capacidade de propor programas, ações e projetos
promotores da SANS.
Podemos concluir, desta forma, que a experiência da estrutura
organizativa do CONSEA-MG tem apresentado funcionabilidade efetiva e resultados
expressivos na construção da política pública de Segurança Alimentar e Nutricional
Sustentável.
37
9. Referência Bibliográfica
CASTRO, Leda M. B. A experiência de participação social nas CRSAN’s do CONSEA em Minas. Não publicado.
CASTRO, Leda M. B. Participação social e Segurança Alimentar em Minas Gerais. Caderno de Textos da 3ª Conferência Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2005.
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MINAS GERAIS. Lei Delegada nº 95 de 29 de janeiro 2003. Minas Gerais Diário do Executivo, Legislativo e Publicações de Terceiros 30/01/2003. Pág. 39 e40.
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38
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39
10. Anexos