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A Síria não é a Líbia. Dois anos atrás, diante da ameaça de um massacre dos insurgentes na cidade de Benghazi, os Estados Unidos e seus aliados europeus deflagraram uma campanha aérea contra Muammar Kadhafi que desempenhou papel decisivo na queda do regime líbio. Agora, na Síria, mesmo depois de uma série de ataques químicos contra civis – o último dos quais matou 1,4 mil pessoas no fim de agosto –, os Estados Unidos piscaram. Na Síria, trava-se uma “guerra civil regional” que envolve os pincipais vizinhos – especial- mente o Irã, a Turquia e a Arábia Saudita. A Síria é um componente central da geopolítica do Oriente Médio e um firme aliado da Rússia. O conflito evoluiu de levante popular contra o regime para confronto de fundo sectário entre sunitas, de um lado, e alauítas (xiitas) e cristãos, de outro. A hipótese de uma fragmentação da Síria recoloca, em novos termos, o antigo pro- blema do nacionalismo curdo. O ataque químico introduziu um novo ingre- diente na tragédia. Barack Obama classificou, há um ano, a hipótese de uso de armas químicas como uma “linha vermelha” que o regime de Bashar al-Assad não poderia ultrapassar. Mas, depois da ultrapassagem, o presidente americano recuou: no lugar da represália militar, aceitou um complexo acordo proposto pela Rússia que pode – ou não – resultar na desmontagem do arsenal químico da Síria. A valsa oscilante de Washington evidencia que, depois das guerras no Iraque e no Afeganistão, a sociedade americana resiste a novos envolvimenos no exterior. A tentação do isolacionismo atinge a credibilidade da hiperpotência. “Os iranianos não devem concluir que, porque não atacamos a Síria, não atacaremos o Irã”, disse um Obama preocupado com o valor de sua palavra. Mas o Irã, como o resto do mundo, presta mais atenção nos atos – ou na falta deles – do que nos discursos. Veja as matérias às págs. 6 a 9 BRASIL EXPERIMENTA UM NOVO CICLO SOCIAL E DEMOGRÁFICO O PNUD, da ONU, e o IBGE divulgaram informações atualizadas sobre o Índice de Desenvolvimento Humano dos municípios brasileiros (IDH-M) e sobre a evolução das tendências demográficas do país. Uma leitura ufanista dessas informações produz a narrativa de uma marcha acelerada, inabalável, de desenvolvimento. Mas uma análise objetiva evidencia a permanência de antigas mazelas e a emergência de novos desafios. O IDH-M experimentou evolução positiva. Contudo, atrás das ilusórias médias gerais, ocultam-se os fantasmas da pobreza, da carência de serviços públicos e das desigualdades regionais. A transição demográfica brasileira atinge sua etapa final. Paralelamente ao crescimento da proporção de idosos, vai se fechando uma “janela demográfica” favorável ao desenvolvimento econômico. Págs. 10 e 11 Vinicius, 100 ANO 21 Nº 6 OUTUBRO/2013 TIRAGEM: 20 000 EXEMPLARES LIDERANÇA DOS ESTADOS UNIDOS É TESTADA NA SÍRIA © Oliosi/Farabola/Leemage/AFP © Louai Beshara/AFP Escombros em bairro de Damasco explicitam um impasse que envolve as grandes potências mundiais e interesses regionais Revista Pangea 2013: Questões e visões do mundo contempo- râneo – A partir da segunda quinzena de março e a cada quinze dias, os interessados po- derão receber por e-mail textos sobre assuntos da atualidade. Para receber esses textos, acesse ao nosso site e se inscreva (www. clubemundo.com.br). E mais... Editorial – STF anula, na prática, o julgamento do mensalão. A mais alta corte está dizendo que a lei não alcança os homens de “sangue azul”. Pág. 3 Há 110 anos, pelo Tra- tado de Petrópolis, o Acre foi incorporado ao Brasil. Pág. 3 Cristina Kirchner per- deu as eleições prévias na Argentina. Multi- plicam-se os indícios de que o kirchnerismo vive seu outono. Pág. 4 Diário de Viagem – Os parques nacionais sul- africanos revelam a for- ça e a persistência his- tórica do nacionalismo romântico africânder. Pág. 5 “Eu tenho um sonho” – o célebre discurso de Martin Luther King, pronunciado meio século atrás, oferece inspirações para nacionalistas, libe- rais e social-democratas nos Estados Unidos. Pág. 12 Visite nossa página no Fa- cebook. Ali você encontrará indicações de textos, livros, filmes e atividades. Basta aces- sar ao link: www.facebook. com/JornalMundo

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Page 1: ANO 21 OUTUBRO/2013 tiragem: 20 000 exemplares ... negrito (fora dos parênteses) indicam o número da edição do boletim; dentro dos parênteses, indicam as páginas. Número 1 –

A Síria não é a Líbia. Dois anos atrás, diante da ameaça de um massacre dos

insurgentes na cidade de Benghazi, os Estados Unidos e seus aliados europeus deflagraram uma campanha aérea contra Muammar Kadhafi que desempenhou papel decisivo na queda do regime líbio. Agora, na Síria, mesmo depois de uma série de ataques químicos contra civis – o último dos quais matou 1,4 mil pessoas no fim de agosto –, os Estados Unidos piscaram.

Na Síria, trava-se uma “guerra civil regional” que envolve os pincipais vizinhos – especial-mente o Irã, a Turquia e a Arábia Saudita. A Síria é um componente central da geopolítica do Oriente Médio e um firme aliado da Rússia. O conflito evoluiu de levante popular contra o regime para confronto de fundo sectário entre sunitas, de um lado, e alauítas (xiitas) e cristãos, de outro. A hipótese de uma fragmentação da Síria recoloca, em novos termos, o antigo pro-blema do nacionalismo curdo.

O ataque químico introduziu um novo ingre-diente na tragédia. Barack Obama classificou, há um ano, a hipótese de uso de armas químicas como uma “linha vermelha” que o regime de Bashar al-Assad não poderia ultrapassar. Mas, depois da ultrapassagem, o presidente americano recuou: no lugar da represália militar, aceitou um complexo acordo proposto pela Rússia que pode – ou não – resultar na desmontagem do arsenal químico da Síria. A valsa oscilante de Washington evidencia que, depois das guerras no Iraque e no Afeganistão, a sociedade americana resiste a novos envolvimenos no exterior. A tentação do isolacionismo atinge a credibilidade da hiperpotência. “Os iranianos não devem concluir que, porque não atacamos a Síria, não atacaremos o Irã”, disse um Obama preocupado com o valor de sua palavra. Mas o Irã, como o resto do mundo, presta mais atenção nos atos – ou na falta deles – do que nos discursos.

Veja as matérias às págs. 6 a 9

Brasil experimenta um novo ciclo social e demográfico

O PNUD, da ONU, e o IBGE divulgaram informações atualizadas sobre o Índice de Desenvolvimento Humano dos municípios brasileiros (IDH-M) e sobre a

evolução das tendências demográficas do país. Uma leitura ufanista dessas informações produz a narrativa de uma marcha acelerada, inabalável, de desenvolvimento. Mas uma análise objetiva evidencia a permanência de antigas mazelas e a emergência de novos desafios.

O IDH-M experimentou evolução positiva. Contudo, atrás das ilusórias médias gerais, ocultam-se os fantasmas da pobreza, da carência de serviços públicos e das desigualdades regionais. A transição demográfica brasileira atinge sua etapa final. Paralelamente ao crescimento da proporção de idosos, vai se fechando uma “janela demográfica” favorável ao desenvolvimento econômico.

Págs. 10 e 11

Vinicius, 100

■ ANO 21 ■ Nº 6 ■ OUTUBRO/2013 ■

tiragem: 20 000 exemplares

liderança dos estados unidos é testada na síria

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Escombros em bairro de Damasco explicitam um impasse que envolveas grandes potências mundiais e interesses regionais

● Revista Pangea 2013: Questões e visões do mundo contempo-râneo – A partir da segunda quinzena de março e a cada quinze dias, os interessados po-derão receber por e-mail textos sobre assuntos da atualidade. Para receber esses textos, acesse ao nosso site e se inscreva (www.clubemundo.com.br).

E mais...● Editorial – STF anula,

na prática, o julgamento do mensalão. A mais alta corte está dizendo que a lei não alcança os homens de “sangue azul”.

Pág. 3

● Há 110 anos, pelo Tra-tado de Petrópolis, o Acre foi incorporado ao Brasil.

Pág. 3

● Cristina Kirchner per-deu as eleições prévias na Argentina. Multi-plicam-se os indícios de que o kirchnerismo vive seu outono.

Pág. 4

● Diário de Viagem – Os parques nacionais sul-africanos revelam a for-ça e a persistência his-tórica do nacionalismo romântico africânder.

Pág. 5

● “Eu tenho um sonho” – o célebre discurso de Martin Luther King, pronunciado meio século atrás, oferece inspirações para nacionalistas, libe-rais e social-democratas nos Estados Unidos.

Pág. 12

● Visite nossa página no Fa-cebook. Ali você encontrará indicações de textos, livros, filmes e atividades. Basta aces-sar ao link: www.facebook.com/JornalMundo

Page 2: ANO 21 OUTUBRO/2013 tiragem: 20 000 exemplares ... negrito (fora dos parênteses) indicam o número da edição do boletim; dentro dos parênteses, indicam as páginas. Número 1 –

22013 OUTUBROMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

18º ConCurso naCional de redação Mundo e H&C – 2013Índice Geral de Mundo – 2013

Você encontra aqui o índice de tudo o que foi publicado no boletim Mundo – Geografia e Política Internacional

em 2013. Na primeira parte do índice, os assuntos são listados segundo o número da edição em que aparecem. Na segunda, o índice é organizado por região geopolítica ou tema. Os números em negrito (fora dos parênteses) indicam o número da edição do boletim; dentro dos parênteses, indicam as páginas.

● Número 1 – março de 2013Convulsão política no “Grande Oriente Médio”A expedição francesa contra o jihadismo no MaliEstupro e impunidade na ÍndiaUma geopolítica da escassez hídricaPorto Rico reivindica estatuto de estado dos EUADiscurso inaugural de Obama flerta com isolacionismoEditorial: O preconceito antiislâmicoDiário de Viagem: Prisão de Alcatraz, na Califórnia

O Meio e o Homem: O Índice de Pobreza de Água (IPA)

● Número 2 – abril de 2013Crise do euro abala União EuropeiaVoto italiano expressa rejeição à União EuropeiaOs “nacionalismos regionais” na EuropaNo Egito, Irmandade Muçulmana chega ao governoOs dez anos da invasão americana do IraqueArgo funciona como peça de propaganda ideológicaA Venezuela sem Hugo ChávezEixo da Igreja desloca-se para o Terceiro Mundo

Editorial: Propaganda política em material escolar

● Número 3 – maio de 2013Ascensão chinesa remodela ordem globalA Coreia do Norte na geopolítica asiáticaCrise cipriota expõe fragilidades do euroXisto sustenta a revolução energética americanaO programa do papa FranciscoMargaret Thatcher (1925-2013)Editorial: O Enem e os critérios da redaçãoDiário de Viagem: Buenos Aires

O Meio e o Homem: A Bacia do Reno e o Vale do Ruhr

● Número 4 – agosto de 2013Bússola estratégica americana gira para a ÁsiaObama e os mega-acordos comerciaisAliança do Pacífico é desafio para o MercosulManifestantes defendem o Estado laico na TurquiaDeposição do presidente encerra “Primavera Egípcia” Empresas brasileiras buscam negócios na ÁfricaA herança política de Nelson MandelaEditorial: Edward Snowden e a “obediência devida”Diário de Viagem: Jordânia

O Meio e o Homem: O debate sobre Belo Monte

● Número 5 – setembro de 2013Paz e guerra em Israel/PalestinaOs cem anos do Canal do PanamáO fantasma de Pinochet e as eleições chilenasLulismo moderniza a CLT de Getúlio VargasHá 60 anos, nascia a PetrobrásIntolerância sexual na África e na RússiaEditorial: Francisco, a Igreja e os gaysDiário de Viagem: UzbequistãoO Meio e o Homem: Água e fronteiras na Palestina

O Mapa de MundoGlobalização – 3:(7-12) 4:(6-7) Geopolítica – 1:(4-5) 2:(12) 6:(6) EUA e Canadá – 1:(11-12) 2:(4-5) 3:(5) 4:(3-8) 6:(12) Europa Ocidental – 2:(6-7-8-9) 3:(3-4) CEI e Europa Oriental – 5:(12) Oriente e Pacífico – 3:(6-8-9) Ásia Meridional – 1:(3) Oriente Médio – 1:(6-7-8) 2:(3) 4:(4-12) 5:(6-7-8-9) 6:(7-8-9) África do Norte – 4:(5) América Latina – 1:(10) 2:(10-11) 3:(10) 4:(9) 5:(4-5) 6:(4) África Subsaariana – 1:(9) 4:(10-11) 6:(5) Brasil – 2:(3) 3:(3) 4:(3) 5:(10-11) 6:(3-10-11) Ciência e cultura – 1:(3) 3:(11) 5:(3)

Conheça agora os vencedores

Em seu 18º ano, a Comissão Julgadora recebeu 201 trabalhos, em sua imensa maioria escolhidos em concursos internos nas escolas. Isso significa que o universo geral de alunos participantes foi muito maior e ajuda a explicar o ótimo nível dos trabalhos. A seguir, publicamos a relação dos dez primeiros colocados e o texto vencedor, comentado. Aos alunos participantes, professores e escolas, nossos parabéns!

Nome do aluno Colégio Município Professor(a)

■ 1º letíCia nunes Cajra Instituto Dom Barreto Teresina (PI) Mauren Cavalcante ■ 2º Ana Letícia Turino Educativa-Inst. Ed. e Cultura São Carlos (SP) Bianca C. C. Ribeiro ■ 3º Flávio Vieira Marques Filho Colégio dos Jesuítas Juiz de Fora (MG) Genoveva M.L.C. Schiavon ■ 4º Eduardo Gayer B. Ribeiro Inst. Ed. Coração de Jesus Bragança Paulista (SP) Mateus Bego Bueno ■ 5º Clara de Meiroz Luchtemberg Col. Marista Santa Maria Curitiba (PR) Ane L. Cecchet, M. Del Pilar ■ 6º Valquíria Vitorino de Oliveira Colégio dos Jesuítas Juiz de Fora (MG) Genoveva M.L.C. Schiavon ■ 7º Isabella Andrade Souza Colégio Santa Amália São Paulo (SP) Rute Augusto Possebom ■ 8º Júlia Carolina Ghizzi Colégio São Luís São Paulo (SP) Amábile Bianca Nogueira ■ 9º Isabela Oliveira de Almeida Inst. Ed. Coração de Jesus Bragança Paulista (SP) Mateus Bego Bueno ■ 10º Maria Vick Gonçalves Colégio Arbos São Caetano do Sul (SP) Flávio H. M. Dias Fouto

PANGEA – Edição e Comercialização de Material Didático LTDA.

Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia).Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)Revisão: Jaqueline RezendePesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile ShawProjeto e editoração eletrônica: Wladimir SeniseEndereço: Rua Dr. Dalmo de Godói, 57, São Paulo – SP. CEP 05592-010. Tel/fax: (011) 3726.4069 / 2506.4332E-mail: [email protected] – www.facebook.com/JornalMundo

E X P E D I E N T E

as rosas do povo

Letícia Nunes Cajra

Entre atenienses e espartanas, brasileiras e indianas, é certo que as mulheres tiveram sua inteligência e

talento amordaçados por culturas dominadas por regimes patriarcais, em uma história escrita por mãos masculinas nos mais diversos campos do conhecimento humano. É impossível ignorar séculos de submissão forçada ao marido e aos filhos ou apagar um obscuro milênio em que, por seus atributos físicos e intelectuais, foram caçadas e quei-madas como bruxas sob a cruz da Igreja Católica.

Apesar do papel político restrito destinado às mulhe-res ao longo da história, muitas tiveram papéis decisivos lutando por seus ideais. Simone de Beauvoir, ícone do feminismo mundial, defendeu através da obra O segundo sexo a condição feminina. A escritora francesa, conhe-cida pela célebre frase “não se nasce mulher, torna-se”, transformou-se em um divisor de águas na busca pelos direitos das mulheres. No Brasil, Patrícia Galvão – Pagu –, escritora e feminista, integrou os movimentos antropo-fágico e modernista. Além disso, lutou contra os padrões de seu tempo e contra a ditadura Vargas como militante do Partido Comunista.

As conquistas sociais femininas, como o direito ao voto, são recentes em diversos países. Em outros, porém, a submissão das mulheres está intrínseca à sua cultura, es-pecialmente em países do Oriente, onde os avanços rumo à igualdade sexual foram ínfimos. Seguir determinadas religiões e doutrinas e “sujeitar-se” ao que elas defendem é um direito dessas mulheres; contudo, é preciso que os órgãos internacionais estejam atentos para os atos que ul-trapassam a linha tênue que separa os costumes da tortura, ferindo muitas vezes os direitos humanos.

Mesmo nos países ocidentais, a violência doméstica, o desrespeito e os estereótipos acerca do corpo feminino,

rosa/mulher

ou mulher/rosa?

Letícia alia engajamento político, discussão acerca de gêneros e poesia com uma fluência singular,

considerando-se a pouca idade e o não hábito que hoje em dia se tem de discutir. Talvez a leitura de mundo de-monstrada em sua redação se deva às inquietações tão próprias da idade. O que, porém, motiva uma garota a escrever para um concurso?

(Leia a íntegra do comentário crítico emwww.clubemundo.com.br)

empregados pela publicidade, ainda são constantes. As críticas com relação às mulheres que optam por abrir mão da maternidade e do casamento em favor da vida profissional são duras. No entanto, decidir a respeito da gravidez e de suas relações conjugais e sexuais cabe somente à própria mulher.

Da mesma forma que a flor drummondiana, inúmeras mulheres romperam o asfalto bem como o silêncio oca-sionado por uma existência submissa, mostrando ter assaz capacidade e inteligência para desempenhar funções antes exclusivas do universo masculino. Entretanto, é preciso avançar na mentalidade de muitos homens e mulheres para que o preconceito se torne reconhecimento diante do despertar da força e da beleza daquelas que são as rosas do povo.

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MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 3 OUTUBRO 2013

Dezoito De setembro, Dia Da infâmia: nessa Data, o supremo tribunal feDeral (stf) acatou os embargos infringentes Dos principais conDena-Dos Do mensalão. com isso, a corte virtualmente anulou o julgamento no qual, pela primeira vez, integrantes Do alto círculo Do poDer foram tra-taDos como ciDaDãos comuns. É uma mensagem De impuniDaDe – mas De impuniDaDe seletiva. os juízes encarregaDos De zelar pela constituição Disseram, no funDo, que a lei não poDe alcan-çar o núcleo Da elite política. ou, em outras palavras, que o brasil É regiDo pelo critÉrio Do “sangue azul”.

em seu voto, favorável à aceitação Dos embargos infringentes, o ministro ricarDo lewanDowski mencionou as orDenações manuelinas para res-

saltar a antiguiDaDe Desse instrumento juríDico que está no regimento Do stf, porÉm não mais encontra amparo na lei. as orDenações manuelinas são sistemas De preceitos juríDicos que compilaram a legislação portuguesa entre 1512 e 1605.

a referência esclarece quase tuDo: o stf De-ciDiu renDer-se à traDição Do estaDo patrimonial português que protegia a aristocracia Do reino, tornanDo-a inimputável. fazenDo assim, afastou-se Do princípio Da igualDaDe perante a lei, que funciona como pilar Das Democracias contemporâneas.

a Denúncia Do mensalão É De 2005; o processo se iniciou em 2007 e o julgamento foi realizaDo em 2012. oito anos Depois Da Denúncia, os principais conDenaDos receberam o privilÉgio De um novo julgamento. É um privilÉgio que se soma a outro:

autoriDaDes políticas não poDem ser julgaDas nos tribunais inferiores. a conjunção Desse “Direito De foro” com o “Direito” oriunDo Das orDe-nações manuelinas forma uma certeza quase absoluta De impuniDaDe.

as caDeias Do país estão cheias De acusaDos por pequenos Delitos que aguarDam meses presos antes De serem julgaDos. tambÉm abrigam milha-res De conDenaDos que, Depois De cumprirem suas penas, aguarDam meses antes De obter a orDem De soltura. eles não têm sangue azul. no Dia Da infâmia, o stf Disse que Desviar recursos públicos para comprar parlamentares e partiDos É um crime sem punição. a mensagem foi ouviDa por toDa a elite política. o problema É que foi ouviDa, igualmente, pelo resto Do país.

E D I T O R I A L

crime sem castigo

Hoje é até difícil acreditar, mas, no início do século XX, serin-

gueiros e aventureiros brasileiros em busca de riquezas e terras proclama-ram três vezes a República do Acre, sempre em situação de conflito com o governo boliviano. Os ânimos só foram apaziguados há 110 anos, em 17 de novembro, com a assinatura do Tratado de Petrópolis, concebido pelo então ministro das Relações Exteriores José Maria da Silva Paranhos Júnior, mais conhecido como Barão do Rio Branco.

O Brasil pagou, à época, 2 milhões de libras esterlinas (equivalentes a R$ 750 milhões em moeda de hoje) pela anexação do território, além de indenizações no valor total de 110 mil libras esterlinas (cerca de R$ 41 milhões) por rupturas de contratos comerciais. Em contrapartida à trans-ferência do território, o Brasil ainda cedeu algumas terras no Amazonas e se comprometeu a construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) para escoar a produção boliviana pelo Rio Amazonas (veja o mapa).

A região onde hoje fica o estado do Acre pertencia à Bolívia desde 1750, quando o país ainda fazia parte do Império Espanhol e se chamava Alto Peru. Apesar disso, por ser uma área de difícil acesso, a região permanecia praticamente inexplorada. Atraídos pela possibilidade de enriquecimento como produtores de látex, seringueiros do Brasil subiram pelo Rio Purus e ini-

ciaram o povoamento, levando junto com eles aventureiros e comerciantes. Em 1898, a Bolívia obteve do governo brasileiro o reconhecimento de que o território lhe pertencia, e enviou uma missão de ocupação ao Acre. Foi o estopim de uma revolta armada dos colonos brasileiros, que contaram com o apoio do então governador do Amazonas, Ramalho Júnior.

No primeiro momento, o governo boliviano recuou. Por orientação de Ramalho Júnior, uma expedição arma-

da de colonos brasileiros proclamou a República de Porto Acre, em 14 de julho de 1899. Teve curta duração: foi dissolvida em 15 de março de 1900 por tropas enviadas pelo governo federal brasileiro. Em seguida, a Bolívia organi-zou sua própria expedição militar para ocupar a região, mas foi mais uma vez impedida pela resistência dos colonos, agora apoiados pelo novo governador do Amazonas, Silvério Neri.

Seguindo os passos de seu anteces-sor, Neri enviou um novo grupo para garantir a ocupação do território, deno-minado Expedição dos Poetas, que pro-clamaria a segunda República do Acre em novembro de 1900. Porém, desta vez, a própria tropa militar boliviana se

encarregou de derru-bar a república, um mês depois. Como consequência, em 6 de agosto de 1902, o militar brasileiro Plácido de Castro, enviado para o Acre, proclamou a terceira república – daquela vez, com o apoio do então presidente bra-

sileiro Rodrigues Alves. Antes mesmo de a Bolívia reagir

com alguma medida de força que pudesse levar à guerra com o Brasil, o Barão de Rio Branco propôs o acordo que passaria à história como Tratado de Petrópolis. O nacionalismo boliviano articula-se, às vezes, como uma nar-rativa de dolorosas perdas territoriais. O país perdeu, em guerras, sua saída para o Pacífico, anexada pelo Chile, e o Chaco Boreal, anexado pelo Paraguai. O Acre é um caso um tanto diferente, mas, mesmo assim, repetindo uma frase antiga, o presidente boliviano Evo Morales lamentou, em 2006, que o território tenha sido “trocado por um cavalo”.

Cumprindo o tratado, o Brasil deu início, em 1907, à construção da Ma-deira-Mamoré, concluída em 1912, após um número incontável de mortes e tragédias, o que lhe valeu o apelido “ferrovia do diabo”. Mas isso é outra história.

Construída com imenso sacrifício humano, por força do acordo com a Bolívia, a Madeira-Mamoré corta 366 quilômetros de mata amazônica, no estado de Rondônia, entre Porto Velho e Guajará-Mirim

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as três repúBlicas do acre

A questão do Acre

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RONDÔNIA

BOLÍVIA

MATOGROSSO

P E R URio Amazonas

Rio Madeira

Traçado da EFMM

ACRE

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�2013 OUTUBROMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

Há um trauma argentino de instabilidade política que não se esgota com a chegada e permanên-

cia em palácio da família Kirchner, a partir de 2003. Naquele ano, no rescaldo de uma crise financeira que resultou em violentos protestos de ruas, repressão poli-cial com 23 mortos e renúncia do presidente Fernando De La Rúa, as eleições conduziram o peronista Néstor Kirchner à Casa Rosada. Foi, a rigor, um novo lance da disputa de poder entre o peronismo e seu adversário histórico, a União Cívica Radical (UCR), partido do presidente renunciante, que antes vencera as primeiras eleições pós-ditadura militar.

A ditadura durou sete anos, de 1976 a 1983. Na eleição inaugural da redemocratização, triunfou o radical Raúl Alfonsín, outro desastre no exercício do poder. Com ele, os argentinos se viram encharcados numa inflação, ou hiperinflação, que chegou a 4.923%, e o presidente se viu constrangido a entregar o poder a um peronista, Carlos Menem, seis meses antes de completar seu mandato. Menem, em novo segmento do trauma argentino, foi tam-bém acusado de ter dado trato suave a expoentes de uma ditadura cruel, com 30 mil mortos ou “desaparecidos”. Ele governou até o fim, mas acabou forçado pelos votos a entregar a Casa Rosada ao adversário De La Rúa.

Néstor Kirchner assumiu o poder em 2003 com votos que representavam apenas 22% do eleitorado. O estranho resultado refletia as distorções do sistema eleitoral argen-tino, que oferece a oportunidade de apresentação de mais de uma candidatura por partido. Néstor elegeu-se pela sublegenda peronista Frente para a Vitória e, nas eleições de 2007, conduziu sua mulher, a senadora Cristina, à presidência. Sua morte súbita, em 2010, interrompeu o projeto de retorno à Casa Rosada.

Os Kirchner ocupam o palácio há uma década. Mas o trauma argentino, ao que se diz ainda em vigência, permi-tirá um novo mandato? Em 2009, uma reforma eleitoral criou as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (PASO). Nessas eleições prévias abertas ao conjunto do eleitorado, devem ir às urnas todos os partidos com suas respectivas sublegendas. O resultado foi uma derrota amarga para Cristina.

A Frente para a Vitória, liderada pela presidente, entrou em campo com o galardão de vencedora de todas as eleições realizadas na Argentina nos últimos 10 anos, com a única exceção das legislativas de 2009. Contudo, conseguiu menos de 30% dos votos e ficou apenas em segundo lugar na província de Buenos Aires, que é quase uma Argentina. Pela primeira vez, desde 2003, nenhum membro da família Kirchner foi candidato. Cristina amar-gou a oposição das urnas nos maiores distritos eleitorais do país, inclusive na província patagônica de Santa Cruz, onde o patriarca iniciou-se no exercício do poder.

– e é possível que a escalada ainda esteja a meio caminho. Entrou no campo político uma Frente Renovadora. Ela esboça propostas “pensando no futuro”; sem Cristina, é claro. Mas seus dois líderes, autores dos apelos por mu-danças, já foram ministro da Economia de Néstor e chefe de gabinete de Néstor e Cristina.

A presidente, acuada, promete “aprofundar as trans-formações”, sem que se saiba com clareza o que mudou “de modo significativo” depois de uma década de poder kirchnerista. Pesquisas recentes indicam que 60% dos argentinos “desaprovam” a gestão de Cristina. Em 2012, uma tragédia ferroviária em Buenos Aires matou 52 pes-soas. A presidente tardou seis dias para se manifestar a respeito – e tratou de evitar percursos que passassem pela estação Once de Septiembre, local do acidente, que se converteu em lugar de manifestações de luto e protesto. As vésperas do aniversário da tragédia de El Once, um vazamento de gás matou dez pessoas na cidade de Rosário – e Cristina fez questão de marcar presença de imediato. A mudança de humor presidencial, como é mais do que claro, é fruto do resultado das PASO.

O trauma argentino tem um novo capítulo nas legis-lativas de outubro. Elas indicarão se o outono do kirch-nerismo é uma realidade ou apenas um sonho de verão das heterogêneas correntes oposicionistas, novas e velhas, de um país desencantado.

Néstor, nunca é demais recordar, chegou à presidência contando com apenas 22% dos votos populares. Mas os analistas sustentam que Cristina foi derrotada “de fato” nestas PASO, pois, além do recado negativo das urnas, uma Argentina ainda traumatizada experimenta panelaços sob o pano de fundo do aumento do custo de vida, de uma infla-ção camuflada pela manipulação das estatísticas oficiais e da disparada do dólar que afeta, entre outras coisas, transações imobiliárias só feitas com a moeda americana.

A Argentina vive o final de um ciclo político, segun-do a convicção manifestada por líderes da oposição. É para eles que se voltam os olhos e os ouvidos de todos. Recheados de gestos de declarado otimismo, os oposicio-nistas dizem abertamente que o kirchnerismo é passado. Um ex-aliado de Cristina, que se deslocou da chefia do gabinete presidencial para os palanques da oposição, tornou-se, nas prévias às eleições legislativas de 27 de outubro, o mais votado na província de Buenos Aires, onde vivem 38% dos eleitores argentinos. Cristina reage como pode, dizendo que seu partido é o único presente nos 24 distritos eleitorais do país.

Outubro, com a abertura das urnas das eleições legisla-tivas, estaria a caminho de se tornar mais um componente do trauma argentino? Muitos argentinos interpretaram as PASO como uma promessa segura de mudança de rumo. Mas nada garante que isso se tornará realidade. Os argen-tinos defrontam-se com uma montanha de frustrações

“é o outono do kirchnerismo”, sonha a oposição

ARGEntinA

Néstor Kirchner assumiu a presidência em 2003, e sua mulher, Cristina, governa desde 2007. O longo ciclo kirchnerista parece, depois das eleições primárias, próximo do

esgotamento. Mas a presidente luta para estendê-lo

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Milhares de argentinos, principalmente de classe média, fazem um cacerolazo (panelaço) contra a presidente Cristina Kirchner, em Buenos Aires, em 18 de abril de 2013

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Não havia tempo para todas as fotos que as paisagens mereciam. Era

preciso acelerar, chegar antes de seis da tarde, a hora fatal em que se fechariam os portões do Nossob Rest Camp, distante 160 quilômetros de Twee Rivieren, a entrada do Parque Transfronteiriço do Kalahari, com-partilhado entre África do Sul e Botsuana (veja o mapa). Os três campos do parque – o principal, que é Twee Rivieren, o Nossob e o Mata-Mata – permanecem fechados à noite, como proteção dos visitantes contra leões e leopardos. Nos percursos de carro pelas estradas de terra e cascalho, muito bem sinalizadas e conservadas, a regra é não sair do veículo.

O parque do Kalahari estende-se ao longo dos vales paralelos de dois rios fósseis, o Nossob e o Auob, cursos d’água que deixaram de fluir há milhares de anos. Atualmente, eles constituem aquíferos sub-terrâneos, que renascem episodicamente como rios em períodos de chuvas excep-cionais: o Nossob fluiu pela última vez em 1964; o Auob, em 1973 e 1974. Mas a presença de água a pouca profundidade sustenta uma vegetação de estepe e até algumas árvores típicas de savanas, pro-duzindo um nítido contraste entre os vales verdes e as desoladas áreas circundantes.

Antes do Kalahari, visitamos o parque de Augrabies Falls, mais ao sul, também na província do Cabo Setentrional. Foram duas noites em Augrabies, uma unidade de conservação organizada em torno das que-das e do magnífico cânion do Rio Orange. No Kalahari, ficamos uma noite em Twee Rivieren e outra no Nossob. Depois, iríamos ainda para o parque Ais-Ais, na Namíbia, onde se situa o Fish River Canyon – o segundo maior cânion do mundo –, e para uma visita rápida ao Kruger, o mais célebre parque sul-africano, nas proximidades da fronteira com Moçambique.

Parques na África do Sul provocam um sentimento irreprimível de vergonha em brasileiros. Em Augrabies e no Kalahari, por algumas dezenas de dólares, alugamos chalés impecáveis de pedra e madeira, divididos em amplos quartos, banheiro, cozinha equipada e varanda. Lojas básicas oferecem vinho, cerveja, refrigerantes e alimentos para preparo nos chalés. A alternativa, não disponível nos campos se-cundários do Kalahari, é o restaurante, que serve deliciosos pratos de carne de caça.

brancos sul-africanos de origem britânica. De longe, a maior parcela dos visitantes é constituída por africânderes, a “tribo branca” sul-africana que descende dos an-tigos colonos bôeres. São eles que lotam os parques, geralmente em enormes veículos 4x4 e com equipamentos de camping de última geração. Não se engane: os ricos são ínfima minoria; a classe média africânder mantém uma relação vital com os parques e investe sua poupança nos SUV e na vasta parafernália de camping.

A relação entre os africânderes e os parques nacionais tem um profundo sentido emotivo – e nos remete aos mitos identitários da “tribo branca” sul-africana. Os bôeres chegaram no Cabo, ponta meri-dional do continente africano, em meados do século XVII. Quase dois séculos mais tarde, escapando ao poder colonial britâ-nico, empreenderam o Great Trek, a épica migração rumo aos altos platôs interiores, onde fundaram as colônias autônomas do Orange e do Transvaal. Finalmente, na virada para o século XX, combateram os britânicos na Guerra dos Bôeres, utilizando ousadas táticas de guerrilha e conhecendo as agruras dos mais antigos campos de concentração da história militar. O na-cionalismo africânder articulou-se como uma narrativa de fusão dos colonos bran-cos protestantes com a natureza intocada africana. Hoje, nos parques nacionais, os africânderes – os pais e seus filhos, famílias numerosas, idosos aposentados – revivem os mitos e recontam o passado ao redor de fogueiras.

Parques são fragmentos conservados do meio natural. Nem os mais vastos deles são, contudo, “natureza intocada”. No Kalaha-ri, os animais se concentram em torno de poços artificiais, implantados a distâncias de cerca de dez quilômetros um do outro, ao longo dos vales dos rios fósseis. Mesmo o Parque Nacional Kruger, com 19.633

quilômetros quadrados, o equivalente a dois terços da área da Bélgica, não poderia sustentar sua diversa fauna de grandes ma-míferos sem intervenções humanas repre-sentadas por barragens e lagos artificiais. Os parques são obras da civilização, que tenta por meio deles reconstituir os laços imemoriais do ser humano com o meio que serviu como alicerce para a evolução biológica e a socialização.

os parques nacionais e o culto

à natureza intocada

Demétrio MagnoliEditor de Mundo

Nos parques, circula-se de carro livremente – e, no caso de Augrabies, onde não exis-tem leões ou leopardos, pode-se também caminhar. Contudo, mediante uma taxa, sempre é possível participar de caminha-das ou safáris motorizados de observação conduzidos por guias especializados (e, no Kalahari, armados).

Os parques sul-africanos são admi-nistrados por um órgão público, South African National Parks (SANParks). O conceito orientador é o mesmo que vi-gora nos Estados Unidos: quanto mais visitantes, melhor. Preços acessíveis dos chalés e áreas demarcadas de camping, com infraestrutura completa, propiciam a visitação em massa. Reservamos os chalés no Brasil, com meses de antecedência. Mesmo assim, devido à procura gerada pelas férias escolares de inverno na África do Sul, não conseguimos lugar no campo

secundário de Mata-Mata – que trocamos pelo Nossob. No Brasil, pelo contrário, sob o influxo do ambientalismo anacrônico do Instituto Chico Mendes (ICM-Bio), vigora uma orientação implícita de restringir a visitação das unidades de conservação.

Entre os visitantes dos parques sul-africanos, contam-se poucos negros – algo que se explicaria, em tese, pelo baixo poder aquisitivo da maioria da população do país. Contudo, contam-se também poucos

Springboks ao redor de um poço no Kalahari, parque transfronteiriço na África do Sul e em Botsuana. O pequeno antílope é o símbolo nacional da África do Sul

Chalés para visitantes no Parque Nacional de Augrabies Falls, na África do Sul.

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enigma sírio desafia a liderança gloBal dos estados unidos

o uso de armas químicas. Se Assad a ul-trapassasse, os Estados Unidos poderiam atacar a Síria.

Atacar, mas não invadir o país com tropas terrestres, como ocorreu no Afe-ganistão e no Iraque. Ao optar por essa possibilidade restrita de ação, o presidente tinha em mente o que aconteceu naqueles países e na Líbia, onde ações para derru-bar regimes hostis a Washington, além de muito custosas, levaram ao fortalecimento de rebeldes fundamentalistas islâmicos, an-tiamericanos e ligados a grupos jihadistas e até à Al-Qaeda. E Obama também levou em conta a opinião pública – já que hoje, ao contrário do que acontecia na época de George W. Bush, apenas uma minoria de americanos acha que a superpotência deve funcionar como polícia do mundo. O presidente calculou que Assad – tirânico, mas racional – jamais ultrapassaria a tal “linha vermelha”.

Cálculo errado. Em fins de agosto, ao emergir a notícia de que cerca de 1,4 mil ci-vis sírios foram massacrados na periferia de Damasco por armas químicas, que os servi-ços de inteligência americanos garantiram que foram lançadas pelas forças de Assad,

(…) por quase sete déCadas os estados unidos têm sido a ânCora da segurança global. isso signifiCa mais que forjar aCordos internaCionais; signifiCa fazer Com que eles sejam Cumpridos. os fardos da liderança são, muitas vezes, pesados – mas o mundo é um lugar melhor porque os Carregamos. (...) franklin roose-velt disse, Certa vez: “nossa determinação naCional de fiCar de fora de guerras e Conflitos externos não deve nos impedir de sentir uma profunda preoCupação

quando os ideais e prinCípios que valorizamos são desafiados.” nossos ideais e prinCípios, assim Como nossa segurança naCional, estão em jogo na síria, junto Com nossa liderança num mundo em que proCuramos garantir que jamais sejam utilizadas as piores de todas as armas.

[baraCk obama, em disCurso à nação, em 10 de setembro de 2013]

As cenas do massacre correram o mundo. As fotos mostravam ca-

dáveres de civis – na sua maioria, idosos, mulheres e crianças – vítimas da ação de armas químicas despejadas em ondas su-cessivas por caças Mig e Mirage. Cerca de 5 mil pessoas morreram e outras milhares ficaram gravemente feridas, algumas com sequelas pelos efeitos do gás mostarda, como cegueira, problemas respiratórios e desordens neurológicas. Você pode imaginar que estamos nos referindo à Síria, onde, em agosto último, circularam denúncias de que a ditadura de Bashar al-Assad usou armas químicas contra civis. Essa barbárie teria sido a razão pela qual países como Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Turquia propuseram uma ação militar contra o regime sírio.

Ledo engano! A tragédia descrita acima aconteceu em 1988 na cidade curda de Halabja, no Iraque. O autor do massacre, o ditador Saddam Hussein, era na época um aliado de Washington e do Ocidente, já que Bagdá estava numa cruzada contra o Irã dos aiatolás xiitas. O bombardeio ocor-reu porque Saddam Hussein desconfiava que a minoria curda iraquiana ajudara os invasores iranianos, e ele queria puni-la. Não é preciso dizer que ninguém conde-nou de fato esse ataque, nem pensou em lançar uma ação punitiva contra o ditador. Quando isso finalmente aconteceu, em 2003, o Iraque já não dispunha mais de armas de destruição em massa.

Voltemos à Síria. A guerra civil na qual se digladiam a ditadura de Assad e uma miríade de grupos rebeldes, entre os quais jihadistas islâmicos, foi o último rebento da chamada Primavera Árabe. Ela já dura dois anos e custou a vida de cerca de 100 mil pessoas. Por que só agora essa preocupação com os massacres? É verdade que, historicamente, Washington sempre manteve um pé atrás diante do regime sírio, inimigo jurado de Israel, aliado da Rússia e com fortes ligações com o Irã e com grupos fundamentalistas islâmicos como o Hezbollah, do Líbano, e o Hamas palestino, que controla a Faixa de Gaza. Mas a Síria, embora esteja numa área de influência americana – o Oriente Médio –, nunca afetou diretamente os interesses nacionais dos Estados Unidos.

Mas, há um ano, pressionado por asses-sores liberais que defendem a “intervenção humanitária” dos Estados Unidos em conflitos que envolvam trágicas violações de direitos humanos, Barack Obama con-cordou em traçar uma “linha vermelha”:

Obama teve de reagir. Ele ameaçou punir a Síria com ações militares pontuais, mas supostamente dissuasórias. Afinal, o man-datário da única hiperpotência mundial não poderia ser desafiado impunemente pelo ditador sírio. Só que a operação mi-litar americana se resumiria ao lançamento de mísseis de cruzeiro Tomahawk a partir de navios e submarinos, além de eventuais ataques de caças lançados de porta-aviões no Mar Mediterrâneo. Uma operação, portanto, que não teria a capacidade de mudar a relação de forças na Síria.

Mesmo para uma operação limitada dessa natureza, Washington não buscou a aprovação do Conselho de Segurança da ONU, onde certamente seria vetado pela Rússia. Washington obteve o apoio de aliados da Otan, como a Grã-Bretanha, a Turquia e a França do socialista François Hollande, talvez o mais “atlantista” dos presidentes franceses em toda a história. Mas, em 29 de agosto, inesperadamente, o Parlamento britânico vetou o envolvi-mento do país no conflito, deixando o primeiro-ministro David Cameron de mãos abanando. Alarmado, Obama recuou e resolveu submeter a operação militar à

aprovação do Congresso. Contudo, a pos-sibilidade de uma derrota da Casa Branca era grande, já que os congressistas estão atentos ao crescimento do sentimento iso-lacionista dos americanos após uma década de intenso envolvimento militar externo do país. Era um abacaxi de razoáveis pro-porções nas mãos do presidente.

Inadvertidamente, o secretário de Esta-do John Kerry deu a deixa para uma saída honrosa: numa entrevista, ele sugeriu que, se o regime sírio desistisse de seu arsenal de armas químicas, os Estados Unidos po-deriam cancelar o ataque. Só que a deixa, quase casual, foi aproveitada por um Vla-dimir Putin alarmado com a possibilidade de uma ação militar americana na Síria, o principal aliado russo na região (veja a matéria à pág. 7). Assim, numa ofensiva diplomática, Moscou convenceu Assad a aceitar, ao menos em tese, um plano para colocar suas armas sob controle interna-cional. Obama respirou aliviado.

Ou talvez nem tanto. Como escreveu no The New York Times a colunista Mau-reen Dowd, Putin, “que deixa membros de uma banda de garotas rebeldes apodrecer na cadeia, atirou uma boia de salvação”

GuERRA CiViL REGionAL

Hafez al-Assad (imagem acima) implantou uma ditadura militar sangrenta, entre 1971 e 2000 (quando morreu), que conseguiu preservar a estabilidade interna e relações externas estáveis; as tensões, no contexto da Primavera Árabe, eclodiram no governo de seu filho e sucessor Bashar (foto à dir.)

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Cláudio CamargoEspecial para Mundo

Ao contrário do que podem sugerir as aparências, as circunstâncias que possibilitaram a deposição do ditador líbio Muammar Kadhafi (foto à dir.) por uma intervenção da Otan, em 2011, em nada se assemelham ao que ocorre na Síria, a começar pelo fato de que a Líbia não tinha um exército nacional, mas uma tropa de mercenários pagos por Kadhafi

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enigma sírio desafia a liderança gloBal dos estados unidos(…) por quase sete déCadas os estados unidos têm sido a ânCora da segurança global. isso signifiCa mais que forjar aCordos internaCionais; signifiCa fazer

Com que eles sejam Cumpridos. os fardos da liderança são, muitas vezes, pesados – mas o mundo é um lugar melhor porque os Carregamos. (...) franklin roose-velt disse, Certa vez: “nossa determinação naCional de fiCar de fora de guerras e Conflitos externos não deve nos impedir de sentir uma profunda preoCupação

quando os ideais e prinCípios que valorizamos são desafiados.” nossos ideais e prinCípios, assim Como nossa segurança naCional, estão em jogo na síria, junto Com nossa liderança num mundo em que proCuramos garantir que jamais sejam utilizadas as piores de todas as armas.

[baraCk obama, em disCurso à nação, em 10 de setembro de 2013]

não é o que parece

O desenrolar mais imediato dos fatos sugere que pode se repetir na Síria uma situação como a verificada na Líbia, em 2011. Nada poderia estar mais distante da realidade.

As ameaças de um eventual ataque militar à Síria promovido por uma coalizão internacional de forças liderada pelos Estados Unidos trazem à tona, quase que automaticamente, comparações com a operação que derrubou o ditador líbio Muammar Kadhafi. De fato, no plano mais superficial, há varias semelhanças: os ataques contra Bashar al-Assad, em nome da defesa dos direitos humanos do povo sírio, seriam feitos por via aérea: não haveria engajamento de tropas ocidentais em combates terrestres. A operação militar teria um tempo limitado e objetivos precisos. Mas as semelhanças terminam aí. Há um abismo de diferenças entre os dois países, tanto no âmbito de suas relações com o mundo, quanto no âmbito doméstico.

A Líbia ocupava um lugar geopolítico relativamente marginal, e derivava sua importância do fato de ser um grande ex-portador de petróleo. A Síria quase não tem reservas de petróleo, mas está no centro da geopolítica do Oriente Médio, além de situar-se em área de passagem obrigatória de dutos que deverão ser eventualmente construídos para levar gás e petróleo para a Europa.

A preservação da ditadura de Assad é fundamental para a Rússia. Ela garante aos russos a manutenção de sua única base militar no Mediterrâneo, situada em Tartus. Isso explica os esforços feitos pelo governo de Vladimir Putin para impedir qual-quer ataque militar à Síria. Em contrapartida, explica também, em parte, os interesses de Washington na derrubada de Assad. O pano de fundo é a disputa estratégica pelo controle do Mare Nostrum. Para a Casa Branca, não é suficiente a hegemonia assegurada pela Otan: a presença russa é um “incômodo” a ser extirpado.

A China também tem interesses estratégicos na área. Depende do petróleo do Irã – que, por sua vez, sustenta a ditadura de Assad (cuja família é alauíta, um ramo dos xiitas, que são predominantes no Irã). O Irã, por sua vez, disputa com a Arábia Saudita (de maioria sunita) a liderança dos países do Golfo Pérsico. É vital, por isso, assegurar que o governo sírio não caia sob a influência dos sauditas. Nesse quadro, a China alinha-se taticamente ao Irã, até porque interessa a Pequim o enfraquecimento das posições dos Estados Unidos na região.

Temos, então, um imenso e complexo nó de interesses que se entrelaçam na Síria e que envolvem as grandes potências do planeta, situação muito distinta da experimentada pela Líbia. Mas isso ainda não é tudo. A Síria também figura como um importante protagonista na arena regional.

A ditadura de Hafez al-Assad e, desde 2000, de seu filho Bashar, mantém uma convivência tensa, mas pacífica, com Israel. Apesar da retórica beligerante, especialmente em torno das Colinas de Golã, ocupadas por Israel em 1967, quase não houve incidentes sérios envolvendo os dois países nas três últimas décadas. A desestabilização da ditadura síria pode, potencialmen-te, elevar a tensão na região, principalmente se for substituída por um governo indisposto ou incapaz de preservar relações estáveis com o vizinho judeu. Os israelenses vacilaram bastante sobre a posição a adotar diante da guerra civil síria. Decidiram pressionar por um ataque limitado de Washington apenas porque isso enviaria um sinal eloquente para o Irã, cujo programa nuclear atemoriza Israel.

Finalmente, a ditadura dos Assad conseguiu manter sob controle a minoria curda, que promove uma luta histórica pela criação de um Estado independente (veja a seção o Meio e o Homem, à pág. 9). Essa questão ganha relevo regional quando se considera que os curdos são ativos também no Iraque e na Turquia, onde conquistaram uma expressão política importante, em especial com a atuação do Partido Curdo dos Trabalhadores (PKK, na sigla em inglês). A última coisa que o governo turco quer é uma retomada da agitação curda em seu território, o que poderia ser estimulado pela fragmentação da Síria. Isso teria, provavelmente, consequências ainda mais graves entre os curdos do Iraque – que, aliás, habitam as regiões mais ricas em petróleo do país.

Mas a Síria também é diferente da Líbia em virtude da maior coesão do aparelho estatal. A Líbia praticamente não dispunha de um exército nacional. Kadhafi comandava uma tropa de cerca de 10 mil mercenários, muitos dos quais estrangeiros, que deviam fidelidade pessoal a ele. A Líbia era um país fortemente fragmentado por profundas divisões tribais. A Síria é um caso totalmente distinto. Mesmo após dois anos de guerra fratricida, com pelo menos 100 mil mortos, registrou-se um número pequeno de deserções no exército regular. A ditadura dos Assad não se resume ao poder pessoal de Bashar ou, antes, de Hafez. Ela está fincada sobre uma teia de compromissos e acordos que envolvem amplos setores da classe média, especialmente os alauítas e os cristãos.

Além de tudo, a Síria cultiva um forte sentimento nacionalista, que não joga um papel secundário no conflito. Damasco é a capital mais antiga do planeta, com idade calculada em 6 mil anos. Sua história é motivo de orgulho para os sírios. A pre-sença de combatentes jihadistas estrangeiros entre as forças que lutam para derrotar Assad constitui, nesse sentido, um grande problema para a formulação de uma estratégia de formação de um governo pós-ditadura.

Uma das alternativas possíveis seria a “balcanização” do país – ou seja, sua divisão em áreas controladas por alauítas, sunitas e curdos. Mas tal divisão aprofundaria todos os problemas, pois multiplicaria as áreas de instabilidade. O problema se agrava, aliás, quando se considera que a Síria, ao contrário do que se dizia do Iraque, de fato possui armas de destruição em massa – no caso, um poderoso arsenal químico. Se partes de tal arsenal caírem nas “mãos erradas”, podem se tornar fonte dos piores pesadelos na arena política mundial. Não há, aqui, qualquer analogia com o caso da Líbia.

para Obama. Trata-se, no entanto, de uma boia traiçoeira. “O objetivo da Rússia é ser vista como uma potência como os Estados Unidos. E ela será vitoriosa se puder ser vista como protagonista; se puder pare-cer que Washington se absteve de atacar [a Síria] em razão das manobras russas. Assim, o peso [geopolítico] de Moscou aumentará dramaticamente”, analisa o site de geopolítica e estratégia Stratfor. Os homens do Kremlin esperam que os Esta-dos Unidos sejam percebidos pelo resto do mundo como a superpotência enrascada e trapalhona que foi salva pela iniciativa política de Moscou.

Ainda é cedo para se tirar conclusões, ainda mais porque existe um abismo entre a oferta verbal de renúncia às ar-mas químicas e a eliminação real desse arsenal sírio. Mas o recuo de Obama na Síria pode indicar que a era do ativismo mundial americano, que se iniciou mais de 70 anos atrás, no momento do ataque japonês a Pearl Harbor, talvez esteja com os dias contados.

Cláudio Camargo é jornalistae sociólogo

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A guerra civil síria pode ser interpretada como elemento de um “levante sunita” de alcance regional. Os rebeldes sírios têm o apoio da Arábia Saudita, dos pequenos emirados do Golfo Pérsico e dos sunitas iraquianos. Enquanto esteve no poder, o governo egípcio da Irmandade Muçulmana perfilou-se ao lado dos insurgentes, exigindo a renúncia de Assad. A Liga Árabe, organismo de cooperação internacio-nal com maioria formada por governos sunitas, condenou sistematicamente o regime sírio e, na crise deflagrada pelo ataque químico de agosto, ofereceu um suporte mais ou menos explícito à ameaça americana de retaliar contra As-sad. Mas, bem antes disso, a Turquia declarara seu apoio às forças rebeldes, rompendo relações com Damasco.

Durante quase quatro séculos, até a Primeira Guerra Mundial, o Império Turco-Otomano dominou a maior parte do Oriente Médio. Depois disso, ao longo de oito dé-cadas, a República da Turquia voltou as costas para a região. Um novo interesse turco pelo mundo árabe evidenciou-se há dez anos, com a ascensão do partido de Recep Tayyp Erdogan, de raízes islâmicas. No início, a “política árabe” de Erdogan caracterizou-se pelo pragmatismo e incluiu acenos diplomáticos para Irã e Síria. Contudo, na hora da Primavera Árabe, o governo turco inclinou-se na direção da Irmandade Muçulmana egípcia e dos insurgentes sírios. A Turquia aposta no sucesso do “levante regional sunita” e posiciona-se para restaurar a antiga influência otomana no Oriente Médio. Essa estratégia a colocou em campo oposto ao dos iranianos no teatro de guerra da Síria.

rumo a um condomínio turco-persa?oRiEntE MéDio

O conflito na Síria já se encontra em sua terceira etapa. A primeira, um levante

popular contra a ditadura de Bashar al-Assad, durou apenas até os massacres inicias de civis promovidos pelo regime. A segunda, uma guerra civil nacional, adquiriu as feições de um confronto sectário de forças rebeldes sunitas contra um aparato estatal apoiado pelas minorias alauíta e cristã. A terceira, em curso há meses, deve ser definida como uma “guerra civil regional”. O regime de Assad tem o apoio militar direto de forças da Guarda Republicana do Irã e de milícias de elite do Hezbollah libanês. Os rebeldes, por seu lado, recebem armas e munições da Arábia Saudita, do Qatar e da Turquia. A Síria transformou-se em cenário de um jogo de poder que abrange grande parte do Oriente Médio.

O Irã e a Turquia, potências regionais não árabes, são protagonistas desse jogo. A influência regional de ambos amplificou-se paralelamente à redução do poder dos principais países árabes. O Iraque deixou de ser um ator relevante desde a invasão ame-ricana e a derrubada do regime de Saddam Hussein. As ondas de choque da Primavera Árabe provocaram uma retração do Egito, às voltas com o problema da estabilidade interna, e anularam a influência da Síria. Entre os países árabes, apenas o Egito projeta poder na escala regional. Mesmo assim, os sauditas não são capazes de rivalizar com os dois grandes protagonistas.

Séculos antes de Cristo, o Império Persa expandiu-se por amplas áreas do Oriente Médio, subjugando a Me-sopotâmia, o Crescente Fértil e o Egito. O Irã atual às vezes enxerga a si mesmo como herdeiro do antigo poder persa. Desde a Revolução Iraniana de 1979, o Estado teocrático xiita procura exercer influência regional. Os iranianos firmaram uma aliança com a Síria do regime dos Assad, que se apoia sobre a minoria alauíta, uma ver-tente islâmica alinhada com os xiitas. A aliança abrange também o partido armado libanês Hezbollah, cuja base social se encontra entre os xiitas, que são cerca de 27% da população do país.

Ironicamente, a invasão americana do Iraque abriu um novo campo de difusão da influência do Irã. Os árabes formam cerca de três quartos da população iraquiana. O regime de Saddam Hussein apoiava-se sobre a minoria sunita e marginalizava os xiitas, que constituem maioria relativa. No novo arranjo de poder no país, porém, os xiitas detêm a maior parte dos cargos de governo – e a retirada das forças americanas provocou uma aproximação da elite política xiita iraquiana com o Irã. Como fruto desses de-senvolvimentos, configurou-se um “Crescente Xiita” que se estende do Líbano ao Iraque e se conecta ao Irã por laços culturais, comerciais e estratégicos (veja o mapa).

O pano de fundo da rivalidade entre a Turquia e o Irã é a retração evidente da influência regional dos Estados Unidos. Barack Obama retirou as forças americanas do Iraque e assistiu, mais ou menos impo-tente, às reviravoltas da revolução egípcia. Enquanto a hiperpotência reorganiza sua estratégia global, colocando ênfase no de-safio representado pela ascensão chinesa, os atores regionais do Oriente Médio adqui-rem maior autonomia e liberdade de ação. Atualmente, os objetivos estratégicos de Washington no Oriente Médio se resumem a garantir a segurança de Israel e da Arábia Saudita, evitando que o Irã se transforme em potência nuclear.

No complexo tabuleiro da rivalidade turco-persa, uma das peças mais enigmá-ticas são os curdos. No horizonte utópico desse povo não árabe figura a constituição de um Estado independente, o Curdistão (veja a seção o Meio e o Homem, à pág. 9). Contudo, as fronteiras geopolíticas existentes criam circunstâncias diversas, nas quais se movem os curdos iraquianos, turcos e sírios. Na Síria, pela primeira vez, com a guerra civil, os curdos emer-gem como atores relevantes. Eles querem se livrar de Assad, mas não confiam nos

rebeldes sunitas. No norte do Iraque, os curdos experi-mentam elevado grau de autonomia regional e procuram alternativas para escoar o petróleo extraído de suas terras, que hoje depende do porto de Basra, no sul iraquiano. Na Turquia, após longos ciclos de lutas separatistas, o Partido Curdo dos Trabalhadores (PKK, na sigla em inglês) ensaia negociar a paz com o governo central.

As ruas da cidade de Erbil, na região curda do Iraque, estão pontilhadas de sinais da presença turca, sob as formas de investimentos, empresas e turistas. A hipó-tese de um acerto entre Erdogan e o PKK descortina a possibilidade de um acordo estratégico da Turquia com o governo autônomo curdo do Iraque. Nos cálculos dos dois lado, encontra-se o projeto de construção de dutos que, atravessando território turco, assegurem o escoa-mento do petróleo curdo até os portos do Mediterrâneo. Desse modo, a Turquia estenderia sua influência para a porção setentrional do Iraque e, potencialmente, para as regiões curdas da Síria.

Quase um século atrás, quando terminou a Primeira Guerra Mundial, o Oriente Médio árabe foi repartido nas esferas de influência britânica e francesa. Hoje, esboça-se um novo condomínio geopolítico, desta vez articulado em torno da Turquia e do Irã. Será uma triste ironia se a Primavera Árabe conduzir, no fim das contas, a esse resultado.

Na moldura da retração estratégica dos Estados Unidos e do enfraquecimento dos Estados árabes, Turquia e Irã emergem como polos de poder rivais no Oriente Médio

Países com maioria de população xiitaPaíses que apoiam os rebeldes da Síria

O contexto regional do conflito na Síria

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VERMELHO

LÍBANO

ISRAEL

RÚSSIA

AZERB.

GEÓRGIA

Page 9: ANO 21 OUTUBRO/2013 tiragem: 20 000 exemplares ... negrito (fora dos parênteses) indicam o número da edição do boletim; dentro dos parênteses, indicam as páginas. Número 1 –

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO � OUTUBRO 2013

ao final da Guerra do Golfo (1991), quando a ONU autorizou a proteção internacional de uma região curda no norte do Iraque, que ficou resguardada de ataques do ditador ira-quiano Saddam Hussein. A proteção externa permitiu aos curdos conquistar substancial autonomia regional.

Em 2003, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, os curdos desempe-nharam papel importante na derrubada do regime de Saddam Hussein. Em 2005, com a eleição de um governo de transição, os curdos assumiram postos-chave na nova administração iraquiana, inclusive a presi-dência do país. Desde aquele ano, eles pro-curam conservar sua influência no governo central e preservar a autonomia regional no contexto de um Iraque federalista.

Todavia, a criação de um Curdistão independente é uma utopia. Nenhum dos países que têm populações curdas abriria mão da soberania sobre seus territórios. Além disso, um Curdistão independente que abrangesse as tradicionais áreas de povoamento curdo seria excepcionalmente rico em petróleo, por conta das valiosas jazidas do norte do Iraque, e em recursos hídricos, pois as nascentes dos rios Tigre e Eufrates estão no sudeste da Turquia (veja o box).

Há cerca de 5 mil anos, tribos de pastores se estabeleceram numa

região montanhosa da porção setentrional do Oriente Médio, localizada de forma mais ou menos equidistante dos mares Mediterrâneo, Negro, Cáspio e do Golfo Pérsico. Permaneceram nessa região e absorveram influências culturais – o isla-mismo, por exemplo – dos povos que ao longo do tempo dominaram a região. Essa é a origem dos curdos.

Atualmente dispersos por uma vasta área do Oriente Médio que abrange regiões de cinco países (Turquia, Iraque, Irã, Síria e Ar-mênia), os curdos constituem não só a mais numerosa minoria da região como também o maior grupo étnico do mundo que não possui um território nacional próprio. Cul-turalmente, eles estão na encruzilhada dos mundos árabe, turco e persa.

O que eles denominam de Curdistão – o “país dos curdos” – não tem limites precisos, mas se estende a partir das Mon-tanhas Zagros no Irã, abrangendo também o norte do Iraque, a porção setentrional da Síria e a Turquia Oriental. De maneira geral, é uma região montanhosa, com mais de 500 mil quilômetros quadrados, parcialmente banhada pelos rios Tigre e Eufrates (veja o mapa 1).

O número exato de curdos é motivo de controvérsias. Algumas fontes falam em 27 milhões, enquanto outras indicam um total de 36 milhões. Isso se deve ao fato de que os governos dos países que os abrigam produzem estatísticas pouco confiáveis sobre o delicado tema. Cerca de metade dos curdos presentes no Oriente Médio vivem na Turquia, onde representam aproximadamente 20% da população total deste país. No Iraque, também são 20%; na Síria, 8%; no Irã, 7%; na Armênia, pouco mais de 1%.

Os curdos não falam uma única língua e nem sequer professam uma religião co-mum, ainda que a parcela majoritária deles seja adepta do islamismo sunita. Generica-mente, os curdos podem ser enquadrados em três categorias: os das montanhas, os das planícies e os das cidades. Os primei-ros vivem basicamente do pastoreio e do comércio informal que ignora as fronteiras nacionais estabelecidas. Tais áreas mon-tanhosas abrigam mais de trinta tribos, cujas rivalidades tradicionais muitas vezes se sobrepuseram às lutas por autonomia.

Quanto aos curdos das cidades, eles estão representados basicamente pelos centros urbanos do Iraque – ligados à indústria e à prospecção do petróleo – e pelo migrantes curdos de Istambul, na Turquia.

Os anseios de um Curdistão indepen-dente ganharam força no fim da Primeira Guerra Mundial (1914-18), quando se imaginava que o país dos curdos surgiria com o fim do Império Turco-Otomano, que dominou a região por séculos. Na hora das negociações de paz, o presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson apresentou seus célebres 14 Pontos – e o 12º destes pontos tratava de uma nação curda. O Tratado de Sévres, de 1920, previa autonomia para os curdos, mas o de Lausanne, de 1923, derrubou aquelas aspirações.

A partir de então, por inúmeras vezes, os curdos se revoltaram, mas invariavelmente foram reprimidos pelos governos dos países aos quais estavam submetidos, especialmen-

nelson Bacic olicDa Equipe de Mundo

a saga dos curdos

A questão hídrica na MesopotâmiaNo mundo atual, 260 bacias hidrográficas são reconhecidas como internacionais. Existem

zonas potencialmente hidroconflitivas nas áreas onde a água é escassa. Um caso notório é o da região da Mesopotâmia, que envolve as bacias dos rios Tigre e Eufrates, cujas águas são de grande interesse para Turquia, Síria e Iraque.

Os dois rios têm suas nascentes nas regiões montanhosas do leste e do sudeste da Turquia. Ao deixar o território turco, o Tigre atravessa o Iraque, enquanto o Eufrates cruza áreas da Síria antes de banhar terras iraquianas. A Turquia controla 98% do débito do Eufrates e 45% do débito do Tigre. O Eufrates e seus afluentes são as principais fontes de água da Síria. Mais de 80% da população do Iraque depende do uso da água dos dois rios (veja o mapa 2).

Nos anos 1980, o governo turco elaborou uma política hidráulica ambiciosa, denominada Projeto da Grande Anatólia (PGA). O PGA se destinava a mudar radicalmente a paisagem do sudeste da Turquia, incorporando ao país vastas áreas de terras irrigadas, grandes reserva-tórios e mais de uma dezena de centrais hidrelétricas, com o objetivo declarado de melhorar as condições de vida dos habitantes daquela região.

Mas o PGA fazia parte das estratégias geopolíticas internas da Turquia, pois a região é a base terri-torial da minoria curda, sobre a qual se sustentam correntes políticas separatistas como o Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK). As obras do PGA, especialmente a construção de barragens, serviram como justificativa para desalojar populações curdas de suas áreas tradicionais. Ao mesmo tempo, a melhoria da infraestrutura viária estimulou as migrações de turcos para a região curda.

Mapa 2

Mapa 1

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Zona de povoamento curdo

Países com maioriade população muçulmana

IRÃ

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T U R Q U I A

MARMEDITER.

SÍRIA

IRAQUEJORDÂNIAEGITO

RÚSSIAGEÓRGIA

ARM. AZERB.

MAR NEGRO MA

RCÁSPIO

GOLFOPÉRSICO

Os curdos no Oriente Médio

A Turquia e o Projeto da Grande AnatóliaRÚSSIA

T U R Q U I A

GEÓRGIA

ARM.AZERBAIJÃO

I R Ã

I R A Q U ES Í R I A

MAR NEGRO

Rio Eufrates

Rio Tigre

Países que fizeram parte da União Soviética

Áreas aproximada do Projeto da Grande Anatólia

te na Turquia e no Iraque, o que deu origem a organizações curdas de luta armada. O exemplo mais notável é o Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK, na sigla em inglês), criado em 1984 na Turquia, que atua também a partir do lado iraquiano da fronteira comum. Por inúmeras vezes, o go-verno turco atacou bases do PKK em território do Iraque. Depois de dé-cadas de luta, em março de 2013, a organização decretou um cessar-fogo unilateral com o governo turco.

No Iraque, por décadas, os curdos sofreram com a violenta e sistemática repressão por parte do governo do país. A situação começou a mudar

Vista panorâmica de Arbil, região curda do Iraque

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102013 OUTUBROMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

No final de agosto, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) divulgou um

novo trabalho intitulado Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2013. Nele, encontram-se dados atualizados sobre o Índice de Desenvolvimento Huma-no dos 5.565 municípios brasileiros (IDH-M). Esta é a 3ª edição do Atlas produzido pelo órgão da ONU. As anteriores foram divulgadas em 1998 e 2003.

Segundo o PNUD, entende-se por desenvolvimento humano o processo de ampliação das liberdades pessoais e as capacidades e oportunidades a seu dispor, criando assim pos-sibilidades para escolher a vida que desejam ter. O IDH-M é um indicador composto por três variáveis: vida longa e saudável (longevidade), acesso ao conhecimento (educação) e padrão de vida (renda). Tais critérios são diferentes dos utilizados no IDH Global e também se distinguem daqueles utilizados para avaliar os municípios brasileiros em 1991 e 2000. Os dados utilizados são os do Censo Demográfico de 2010, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para cada variável, atribui-se uma nota, de zero a um. Quanto mais próxima de zero, pior o desem-penho; quanto mais próximo de um, melhor. Posteriormente, calcula-se uma média ponderada entre as três variáveis para obter o valor final. Os resultados são distribuídos em cinco categorias: muito alto (0,800 a mais), alto (0,700 a 0,799), médio (0,600 a 0,699), baixo ( 0,500 a 0,599) e muito baixo (0 a 0,499).

No último levantamento, o IDH-M en-contrado para o Brasil é de 0,727. Segundo as categorias de desenvolvimento humano municipal, estabelecidas no Atlas de 2013, o país situa-se na faixa de alto desenvolvimento humano, o que decorre de significativa melho-ria em relação aos levantamentos anteriores. Em 1991, o país encontrava-se na categoria de muito baixo desenvolvimento humano (0,492) e, em 2000, atingira a de médio IDH-M (0,612). O resultado mais recente gerou uma euforia um tanto exagerada.

Parte dos meios de comunicação e das entidades ligadas à pesquisa anunciou a gran-de evolução do IDH-M. Ao observarmos o resultado final (0,727), é inquestionável o avanço estatístico obtida pelo país ao longo das últimas duas décadas. Porém, o primeiro problema a ser identificado encontra-se na caracterização de alto IDH-M. Exposta su-perficialmente, a notícia dissemina na opinião pública a ilusão de que alcançamos padrões de desenvolvimento socioeconômico similares aos de nações classificadas na categoria de IDH muito alto. Entretanto, de fato, estamos bem longe disso – e galgar o último patamar é tarefa mais difícil que avançar pelos estágios anteriores. Um segundo grave problema refere-

Uma análise menos eufórica permite, ainda, jogar luz sobre as enormes desigualdades regionais de desenvolvimento, uma marca peculiar do Brasil que tem raízes históricas profundas. O mapa evidencia que as cidades classificadas com IDH-M muito alto e alto concentram-se, esmagadoramente, em manchas lo-calizadas nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Em contraste, nos municípios das regiões Norte e Nordeste prevalecem as categorias de médio, baixo e muito baixo IDH-M.

O próprio Atlas do PNUD fornece outras informa-ções preocupantes. O IDH-M Longevidade apresentou valor médio de 0,0891 para o país. Mas, nada menos que 1.589 municípios (28,5% do total) ficaram muito abaixo da média, enquanto outras 1.799 cidades (32,3%), apre-sentaram índice inferior à média. Nesse caso, também, a média nacional oculta acentuadas disparidades.

O IDH-M Renda evoluiu de 0,647 nos idos de 1991 para 0,739. Em termos efetivos, descontada a inflação, a renda per capita dos brasileiros aumentou R$ 346,31 nos últimos 20 anos. Nesse quesito, cerca de 70% dos muni-

cípios apresentaram crescimento da renda per capita superior à média nacional. Contudo, a manutenção da concentração econômica está implícita na análise do indicador: dos 5.565 municípios, apenas 620 – o equivalente a 11% – exibem IDH-M Renda superior àquele observado para o país (0,739).

Das três variáveis contidas no IDH-M, foi a educação que apresentou maior evolução. Entre 1991 e 2010, o índice cresceu quase 130%, saltando de 0,278 para 0,637. Pode parecer muito – e existem avanços efetivos. Entretanto, os brasileiros ainda têm escolari-dade média de apenas sete anos, a evasão no ensino fundamental é superior a 24% e o país abriga um contingente imenso de analfabetos funcionais. No fundo, a evolução é absurda-mente lenta, ainda mais se comparada à de países asiáticos com renda per capita similar.

O levantamento do PNUD deveria ser lido como uma sentença de acusação. O Brasil continua a conviver com um grave processo de exclusão social, que condena parcela significa-tiva da população à impossibilidade de exercer plenamente sua capacidade intelectual e produ-tiva. Contudo, admitir tal realidade significaria conferir impulso aos questionamentos sobre a eficiência dos significativos gastos públicos realizados sob o rótulo do combate à desigual-dade e à pobreza. Para evitar transtornos à elite política, é mais conveniente ler as informações com óculos especiais, destinados a esconder nossas misérias. Assim, com a finalidade de mascarar o fato, nasce o factoide.

o que os números do idh-m realmente dizem

BRAsiL

Atlas do PNUD com indicadores municipais atualizados funcionou como pretexto para uma torrente de avaliações otimistas. Mas a análise dos índices evidencia disparidades

intoleráveis

se à interpretação geral dos números. A análise mais atenta e detalhada das informações do Atlas revela disparidades extremas, que encontram expressão cartográfica (veja o mapa).

Entre os 5.565 municípios do país, 2.233 (40,1%) exi-bem médio IDH-M e outros 1.367 municípios (24,6%) apresentam baixo IDH-M. O IDH-M alto, média geral do país, caracteriza apenas cerca de um terço dos muni-cípios (1.889). No polo extremo, o IDH-M muito alto aparece em escassos 44 municípios (0,8%), proporção semelhante à do polo oposto, de IDH-M muito baixo, onde se encontram 32 municípios (0,6%). A média geral mais esconde do que revela: afinal, quase dois terços dos municípios brasileiros (ou 64,7%) estão abaixo do espera-do para um desenvolvimento humano digno e, também, abaixo da média geral do país (que é puxada para cima pelos municípios mais populosos).

Axé silvaEspecial para Mundo

Axé silva é geógrafo formado pela USP, professor e coautor do material didático do

Sistema Anglo de Ensino

Muito baixo (0 a 0,499)Níveis de IDH-M

O IDH-M (2010)

OCEANOPACÍFICO

OCEANOATLÂNTICO

CHILE

COLÔMBIA

VENEZUELA GUIANA

SURINAME

GUIANAFR.

PERU

BOLÍVIA

PARAGUAI

ARGENTINA

0 240 480

km URUGUAI

Baixo (0,500 a 0,599)

Médio (0,600 a 0,699)Alto (0,700 a 0,799)

Muito alto (0,800 a mais)

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MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 11 OUTUBRO 2013

país ultrapassa a Barreira dos 200 milhões de haBitantes

BRAsiL

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acaba de divulgar que a população bra-

sileira atingiu, no primeiro dia de julho, a marca de 201.032.174 habitantes. A barreira simbólica de 200 milhões teria sido superada no dia 2 dezembro de 2012. O órgão também divulgou dados e projeções demográficas até 2060, uma informação de suma importância tanto para planejadores do governo quanto para investidores da iniciativa privada.

O primeiro recenseamento realizado no Brasil data de 1872. Ele indicava que o contingente demográfico do país era de quase 10 milhões de habitantes. Cerca de um século depois, a população atingiu a marca de 100 milhões, número que dobrou nos últimos 40 anos. Isso significa que a população brasileira cresceu um pouco mais de duas Argentinas nas últimas quatro décadas. Segundo o IBGE, a população brasileira continuará a crescer até 2042, quando atingirá o teto máximo de 228 milhões, começando a diminuir a partir daí. As projeções indicam para 2060 uma população de 218,3 milhões, patamar demográfico praticamente idêntico ao de 2025 (veja o gráfico 1).

Nas duas últimas décadas, o Brasil permaneceu na condição de quinto país mais populoso do mundo, atrás de China, Índia, Estados Unidos e Indonésia. Estima-se que, no horizonte de 2020, o Brasil perderá posições nesse ranking populacional, pois deverá ser ultrapassado pelo Paquistão, pela Nigéria e talvez também por Bangladesh. A responsabilidade por isso encontra-se no recuo das taxas de crescimento vegetativo.

Os recenseamentos nacionais são feitos a cada dez anos e o próximo só será realizado em 2020. Nos períodos intercensitários, especialistas em demografia fazem previsões baseadas em tendências estatísticas e pesquisas por amostragem. Como todas as previsões, elas podem se confirmar ou não – ainda com a necessidade de serem revisadas periodicamente. Projeções feitas nos anos 1970 indicavam que o Brasil atingiria a marca de 200 milhões de habitantes já no ano 2000, mas a marcha de redução das taxas de crescimento vegetativo foi mais veloz do que previam, à época, os analistas.

As grandes transformações demográficas experimenta-das pelo Brasil nas últimas décadas resultam da combina-ção de um conjunto de mudanças nas condições de vida e nos hábitos da população. O aumento da proporção de idosos reflete um envelhecimento demográfico que está entre os mais velozes do mundo. A forte redução da taxa de mortalidade infantil evidencia melhorias médico-sani-tárias generalizadas. Historicamente, a população brasileira passou a viver mais e melhor (veja o gráfico 2).

A abertura do mercado de trabalho para as mulheres, o aumento da escolaridade, sobretudo da população feminina, o uso de métodos contraceptivos e a melhoria das condições de saneamento básico são fatores que, em conjunto, redu-ziram de maneira expressiva tanto a mortalidade infantil

Informações do IBGE confirmam as tendências de redução na taxa de fertilidade e aumento da expectativa de vida. A “janela demográfica” favorável à expansão econômica se fecha num horizonte de dez anos

qualquer natureza e violência. Sem o incremento desse fator, a esperança de vida da população seria, hoje, dois ou três anos maior que a verificada. Mesmo assim, a ex-pectativa de vida vem crescendo rapidamente. Em 1940, era de 45,5 anos; saltou para quase 73 em 2008 e deverá alcançar pouco mais de 81 anos em 2050.

O Brasil se beneficia ainda de uma condição demo-gráfica especial para o crescimento: o chamado “bônus demográfico”. Essa condição resulta da diferença muito

positiva entre o contingente de população ativa e o contingente de população definida como dependen-te (a soma de jovens que não atingiram a idade de trabalho e idosos aposentados). Em 2000, para cada indivíduo com mais de 65 anos existiam 12 pessoas em idade ativa. Mas essa “janela de oportunidades” deverá se fechar em 2023. Em 2050, para cada idoso haverá apenas três pessoas em idade ativa. O fenômeno demográfico causará impacto enorme nas contas da Previdência Social, caso não sejam feitas profundas reformas no sistema de aposentadorias.

Em termos regionais, como já vinha ocorrendo nas últimas décadas, todas as cinco macrorregiões do país experimentarão aumento em suas populações absolutas. Não se esperam mudanças relevantes na distribuição da população pelo território nacional, pois o crescimento vegetativo é relativamente baixo em todas as regiões, e não existem indícios de fluxos migratórios expressivos.

As migrações interregionais perderam a força e, hoje, não são nem uma sombra do que foram nas décadas de 1960, 1970 e 1980. As regiões Norte e Centro-Oeste, justamente as menos populosas, conti-nuarão a desempenhar o papel de frentes de expansão econômica e demográfica, mas atrairão contingentes migratórios relativamente pouco numerosos. O Sudes-

te continuará a ser a região mais populosa, embora registre tendência a apresentar queda discreta em sua participação no total nacional. O Nordeste manterá sua posição de segunda região mais populosa do país, com pouco menos de 28% do total. Descrevendo trajetória similar à do Su-deste, o Sul apresentará pequena diminuição relativa da população, ficando em torno de 14% do total. Juntas, em 2030, as regiões Norte e Centro-Oeste abrigarão pouco mais de 15% dos brasileiros.

O quadro de estabilidade se repete na escala de análise das unidades federativas. No horizonte de 2030, os esta-dos de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia continuarão sendo os mais populosos e, em conjunto, abrigarão cerca de 45% do total de brasileiros. As unidades federativas que galgarão mais posições no ranking popu-lacional serão o Distrito Federal, que saltará da 20ª para a 17ª posição, e o Amazonas, que passará da 15ª para a 13ª posição. Os cinco estados menos populosos em 2010 – Rondônia, Tocantins, Amapá, Acre e Roraima – conti-nuarão a ocupar o fim da lista em 2030 (veja o mapa).

quanto a fecundidade. A redução da taxa de fecundidade, observada desde meados da década de 1960, acentuou-se nos últimos anos e vem reduzindo o ritmo de crescimento populacional. Em 2007, essa taxa chegou a 2,1 filhos por mulher, o nível mínimo de reposição da população, e deverá reduzir ainda mais.

No sentido oposto, o IBGE identificou como fator relevante da dinâmica demográfica as mortes prematuras de jovens em decorrência de causas como acidentes de

Gráfico 1

Gráfico 2

11,2

6,6

43,7

20,62,6

2,8

6,4

1,73,2

1,5

3,8

0,8

8,0

0,5

3,2

3,4

9,2

3,9

2,215,0

11,5

3,7

22,2

12,0

3,0

3,8

7,7

1,7

15,92,5

3,2

9,67,4

10.1

9,3

0,6

4,7

2,0

0,97

A população das unidades federativas do Brasil(2013 e 2030*)

COLÔMBIAVENEZUELA

GUIANA

SURINAME

PERU

BOLÍVIA

PARAGUAI

ARGENTINA

URUGUAI0 240 480

km

* Em milhões de habitantes e números arredondados

OCEANOPACÍFICO

OCEANOATLÂNTICO

GUIANAFR.

0,7

0,98

6,8 8,83,9

4.3

3,3

3,5

16,4

3,8

4,5

17,448,4

11,0

8,0

CHILE

No interior dosretângulos, apopulação em 2030

No interior dos círculos,a população em 2013

FONTE: IBGE

2010 2013 2042 20605,0

17,220,0

10,0

15,0

FONTE: IBGE

Brasil: dinâmica demográfica

7,72 7,1273,3

80,181,2

Mortalidade infantil (em mil nascidos vivos) Expectativa de vida(anos)

100

80

60

2010 2013 2042 2060

175

201,0

150

228,3

Milh

ões

250

200

225

218,1milhões

FONTE: IBGE

Brasil: evolução demográfica projetada(em milhões de habitantes)

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122013 OUTUBROMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO

I have a dream

MARtin LutHER KinG JR.

Martin Luther King Jr. é uma figura singular na história dos Estados Unidos. Meio século após

o seu famoso discurso I have a dream (“Eu tenho um sonho”, em inglês), pronunciado durante uma marcha de 250 mil pessoas contra o racismo e pelo respeito aos direitos civis dos negros, realizada em Washington em 28 de agosto, o pastor protestante é uma das raríssimas figuras políticas reivindicadas por todos os segmentos da sociedade americana.

Para os conservadores religiosos, mesmo aqueles vin-culados ao Tea Party republicano, King é uma espécie de profeta do sonho americano. Seu discurso é dirigido aos “filhos de Deus” e é pontuado por citações bíblicas, entre as quais: “Chegará o dia em que todos os filhos de Deus serão capazes de emprestar um novo sentido ao hino: ‘Meu país é do Senhor, a doce terra da liberdade, eu canto em teu louvor. Terra em que meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos, de todos os lados das montanhas, que soe o sino da liberdade.’”

Para os conservadores não religiosos, King faz um apelo inspirado na ética capitalista, como em outro famoso trecho de seu discurso: “Os Estados Unidos passaram ao povo negro um cheque sem fundos. Mas nós nos recu-samos a acreditar que o Banco da Justiça foi à falência. Não acreditamos que não existem fundos suficientes nos grandes cofres da oportunidade desta nação. Então, vie-mos descontar esse cheque, um cheque que nos garantirá, sempre que reivindicado, as riquezas da liberdade e a segurança da justiça.”

Para os liberais, King é a representação do indivíduo preocupado com justiça social, cujas expectativas são cen-tradas na própria família e na busca da felicidade, mas num caminho trilhado ao lado de outros tantos indivíduos com objetivos semelhantes. Aqui, ganha relevância o trecho em que o pastor cita sua própria família: “Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos pequenos viverão um dia numa nação em que não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.”

Reivindicado por militantes situados em todos os segmentos do espectro ideológico, da extrema-esquerda à extrema-direita, o discurso pronunciado há meio século, em Washington, ainda representa um desafio para a sociedade americana

por si mesmas: que todos os homens são criados iguais.’” Contra Barack Obama, que reivindica para si a trajetória de King, a esquerda criou uma resposta anedótica: King had a dream, Obama has a drone (“King tinha um sonho, Obama tem um drone”).

King não pode ser enquadrado, rigorosamente, em ne-nhuma parte do espectro ideológico. Ele não é democrata, embora tenha abraçado a perspectiva social-democrata de que o Estado é responsável pela promoção de mecanismos que assegurem o bem-estar social. Também não é republi-cano, embora tenha afirmado a legitimidade da busca da felicidade individual como um bem supremo que faz parte do american dream (“sonho americano”). Sua complexidade deriva do fato de que ele representou, como ninguém, um momento decisivo da história dos Estados Unidos.

De um lado, o vertiginoso desenvolvimento econômico verificado após a Segunda Guerra Mundial, que conduziu o país à condição de superpotência, confundia-se com as políticas de justiça social alavancadas pelo New Deal de Franklin Roosevelt, nos anos 1930 e 1940. Os adversários republicanos do New Deal tinham pouco espaço para se opor aos democratas no campo específico da economia, especialmente após a criação, pelos acordos de Bretton Woods, das instituições internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional), que asseguravam aos Estados Unidos o papel de “banqueiro do mundo”. Eles tinham mais possibilidades de mostrar suas garras no cam-po dos direitos civis e raciais, e foi aí que se deram algumas das grandes batalhas ideológicas dos anos 1960.

Os bolsões racistas do Sul – que também incluíam políticos do Partido Democrata – esgrimiam o discurso libertário de extrema-direita, que repudiava a “intromis-são” do governo federal nos “assuntos locais”, em especial contra as leis estaduais de segregação racial. Consideradas as diferenças de época e as circunstâncias, é o mesmo debate que hoje opõe os setores contrários e favoráveis à aprovação de leis federais que limitam o porte e o uso de armas de fogo.

Nos anos 1960, o problema da segregação racial con-centrava todos os outros debates: o tipo de sociedade que se pretendia construir, a natureza do Estado federativo, o grau de liberdade que deveria ser concedido aos estados da fede-ração e aos indivíduos. Exatamente por isso, a mensagem de King reverberou em todos os setores da vida americana, e não ficou circunscrita a seu objetivo mais imediato: con-quistar a igualdade de negros e brancos perante a lei.

King pagou com a vida por sua ousadia; foi assassinado em 4 de abril de 1968, em Memphis, Tennessee, aos 39 anos de idade. Passou à história como mito, hoje rejei-tado unicamente pelos setores racistas mais extremados e renitentes como os skinheads e os neonazistas. Mas, embora os Estados Unidos tenham eleito seu primeiro presidente negro, o país ainda está muito longe do sonho de King: basta analisar a composição racial da população encarcerada.

Para os nacionalistas, King é a personificação da Amé-rica idealizada. Em seu discurso, o pastor cita e reivindica os principais marcos da identidade nacional americana, incluindo a Declaração da Independência, a Proclama-ção da Abolição e a Constituição dos Estados Unidos. “Quando os arquitetos de nossa república escreveram a magnífica Constituição e a Declaração de Independência, eles estavam assinando uma nota promissória da qual todo americano é herdeiro.”

Para os esquerdistas, King é o profeta da igualdade: “Eu tenho um sonho, um ideal profundamente enraizado no sonho americano – um dia esta nação se erguerá e realizará sua vocação: ‘Consideramos estas verdades como evidentes

trechos do discurso de 28 de agosto de 1963“Eu tenho um sonho de que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos descendentes de escravos e os filhos

dos descendentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.Eu tenho um sonho de que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça,

que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.[…] Eu tenho um sonho de que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios

gotejando palavras de intervenção e negação, nesse justo dia no Alabama, meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje!

Eu tenho um sonho de que um dia todo o vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.

Essa é nossa esperança. Essa é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé, nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé, nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé, nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender a liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livres. Esse será o dia, esse será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.”

A famosa Marcha de Washington, quando Martin Luther King Jr. fez o discurso que

galvanizou os Estados Unidos

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