antónio rei - literatura moçárabe - séc. viii a xii

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 Medievalista onl n ano 4  número 4  2008 © IEM - Instituto de Estudos Medievais 1 www.fcsh.unl.pt/iem/medievalista  Literatura Moçárabe. Memória de uma cultura de resistência 1  (Séculos VIII-XII) António Rei Bolseiro FCT / Investigador do IEM - UNL I. Introdução As produções literárias moçárabes coexistiram sincronicamente, com produções e/ou tradições textuais cristãs não-moçárabes 2  e, especialmente após o século X, também com tradições textuais árabes. Delimitaremos cronologicamen te esta forma de cultura letrada e subalternizada, entre os séculos VIII (início da presença árabo-islâmica, que se manifesta por naturais reflexos  político-culturais, neste caso para os hispano-go dos submetidos ao novo poder) e o século XII ( quando a ‘Reconquis ta’ peninsular já era comprometidamente romana e 1  Este texto é basicamente um dos capítulos da nossa Dissertação de Doutoramento ( O louvor da  Hispânia na c ultura letrada medieval peninsular. Das suas orige ns discursivas ao apartado geográfico da Crónica de 1344 , FCSH-UNL, 16 Julho 2007, policop.) que aqui apresentamos, e a que introduzimos ligeiras alterações. A principal contribuição a essas alterações provém da excelente antologia sobre a temática moçárabe e publicada agora mesmo em Março de 2008, pela Casa de Velázquez de Madrid, e intitulada ¿Existe una identidad mozárabe? Historia, lengua y cultura de los cristianos de al-Andalus (siglos IX-XII), Estudios reunidos por Cyrille Aillet, Mayte Penelas y Philippe Roisse, Madrid, Casa de Velázquez, 2008, [334 pp.], e da qual contamos dar em breve uma Nota de Leitura. 2  Sobre as produções literárias no âmbito da monarquia asturiana, v. infla .II.6 e também Manuel Díaz Y Díaz, “La historiog rafía hispana desde la invasió n árabe hasta el año 1000”, in  De Isidoro al siglo XI , Barcelona, El Albir, 1976, pp.203-234, pp.212-229. Revista  online ano  4  número 4  2008  

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António Rei - Literatura Moçárabe - Séc. VIII a XII

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  • Medievalista online ano 4 nmero 4 2008 IEM - Instituto de Estudos Medievais 1 www.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    Literatura Morabe. Memria de uma cultura de resistncia1 (Sculos VIII-XII)

    Antnio Rei Bolseiro FCT / Investigador do IEM - UNL

    I. Introduo

    As produes literrias morabes coexistiram sincronicamente, com produes e/ou

    tradies textuais crists no-morabes 2 e, especialmente aps o sculo X, tambm

    com tradies textuais rabes.

    Delimitaremos cronologicamente esta forma de cultura letrada e subalternizada, entre os

    sculos VIII (incio da presena rabo-islmica, que se manifesta por naturais reflexos

    poltico-culturais, neste caso para os hispano-godos submetidos ao novo poder) e o

    sculo XII (quando a Reconquista peninsular j era comprometidamente romana e

    1 Este texto basicamente um dos captulos da nossa Dissertao de Doutoramento (O louvor da Hispnia na cultura letrada medieval peninsular. Das suas origens discursivas ao apartado geogrfico da Crnica de 1344, FCSH-UNL, 16 Julho 2007, policop.) que aqui apresentamos, e a que introduzimos ligeiras alteraes. A principal contribuio a essas alteraes provm da excelente antologia sobre a temtica morabe e publicada agora mesmo em Maro de 2008, pela Casa de Velzquez de Madrid, e intitulada Existe una identidad mozrabe? Historia, lengua y cultura de los cristianos de al-Andalus (siglos IX-XII), Estudios reunidos por Cyrille Aillet, Mayte Penelas y Philippe Roisse, Madrid, Casa de Velzquez, 2008, [334 pp.], e da qual contamos dar em breve uma Nota de Leitura. 2 Sobre as produes literrias no mbito da monarquia asturiana, v. infla .II.6 e tambm Manuel Daz Y Daz, La historiografa hispana desde la invasin rabe hasta el ao 1000, in De Isidoro al siglo XI, Barcelona, El Albir, 1976, pp.203-234, pp.212-229.

    Revista

    online ano 4 nmero 4 2008

  • Literatura Morabe. Memria de uma cultura de resistncia (sc.VIII-XII) Antnio Rei

    Medievalista online ano 4 nmero 4 2008 IEM - Instituto de Estudos Medievais 2 www.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    cluniacense3, e quando as atitudes poltico-culturais dos novos reinos peninsulares, em

    consequncia daquele compromisso, eram cada vez mais favorveis ao apagamento

    daquela minoria crist mais ou menos arabizada).

    Veremos que alguns textos, independentemente das tradies textuais em que se

    integraram e das expresses culturais que lhes deram origem (crist morabe, crist

    no-morabe ou islamo-rabe), estavam unidos pelo facto de compartilharem algumas

    das suas fontes.

    II. Especificidades da Cultura Morabe

    A translaco cultural morabe apresentou caractersticas prprias, as quais

    evidenciam sinais de um claro hibridismo cultural. Ao nvel dos contedos so

    identificveis - em primeiro lugar -, marcas de uma natural continuidade em relao ao

    que vinha do anterior perodo visigtico, e mesmo romano, pelo facto de os autores

    morabes continuarem sendo cristos, como tambm o tinham sido os letrados

    visigodos, principalmente os que se conhecem como contemporneos ou posteriores a

    589 4. Em segundo lugar, reconhecem-se, por vezes, tambm a incorporao de excertos

    provenientes de fontes rabes, facto tambm natural atendendo sociedade em que os

    morabes estavam integrados.

    Um outro aspecto importante sobre o papel dos morabes foi a contribuio que deram

    s tradues que foram feitas do latim para o rabe5.

    Ao nvel do discurso literrio em si mesmo, parece constatar-se uma certa deriva que

    fez com que a inicial utilizao do latim viesse a ser posteriormente substitudo pelo

    idioma rabe6. 3 Em 1080 Afonso VI de Leo e Castela adoptara oficialmente o rito romano e abandonara o rito visigtico, comprometendo-se assim com Cluny e com Roma (A. Rucquoi, Histria medieval da Pennsula Ibrica, Lisboa, Estampa, 1995, pp. 161-162). M. Daz Y Daz, diz que essa adopo e abandono simultneos se teriam dado ainda com Fernando I, pai de Afonso VI, portanto em data anterior a 1065 (v. Idem, Isidoro en la Edad Media Hispana in De Isidoro al siglo XI, pp.141-201, p.184 n.121). Sobre influncias cluniacenses na Hispnia do sculo XI, v. Jos Mattoso, O monaquismo ibrico e Cluny, in Religio e cultura na Idade Mdia portuguesa, Lisboa, INCM, 1982, pp. 55-72. 4 Quando ocorreu a converso de Recaredo ao catolicismo, abandonando o arianismo (A. Rucquoi , Op. cit., p.38). 5 V. infra n. 10.

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    Outra caracterstica da literatura morabe o anonimato quase geral dos seus autores.

    As obras surgem geralmente identificadas como Crnicas reportada a uma certa data,

    como no caso da Crnica Morabe de 754, ou a um determinado assunto. No se lhes

    conhecem os autores, ou qualquer dado seguro a eles referente. Tm sido aventadas

    hipteses, a maioria das vezes relativas s possveis origens locais ou, quando muito,

    regionais, dos textos, atendendo geralmente s caractersticas textuais apresentadas.

    III. lvaro de Crdova e os meios letrados morabes dos sculos IX e X

    H, no entanto, uma figura que consideramos de importncia em todo esse conjunto,

    mais ou menos nebuloso, da produo literria morabe. Trata-se de lvaro de

    Crdova 7. Embora no tenha sido, pelo que se sabe, autor de nenhuma obra de cariz

    historiogrfico, os seus interesses e combatividade pela sobrevivncia da cultura crist

    peninsular fizeram-no ter interesse pelos textos antigos, alguns dos quais estudou e

    comentou 8.

    A emergncia dramtica do cristianismo em meados do sculo IX, na qual lvaro de

    Crdova foi um dos principais intervenientes, acabou por dar origem, no seu extremo

    mais radical ao chamado movimento dos mrtires de Crdova 9. Mas deu origem

    tambm a iniciativas literrias, s quais no difcil reconhecer tambm um carcter

    apologtico, em especial na circulao dos textos chamados profticos ou pseudo-

    6 Sobre a vivncia cultural dos morabes e do seu papel na cultura hispnica daqueles sculos, v. M. Daz Y Daz, De Isidoro al siglo XI. Ocho estudios sobre la vida literaria peninsular, Barcelona, El Albir,1976; Maria Jess Viguera, Los mozrabes, Actas do Congresso Proyeccin histrica de Espaa en sus tres culturas, Valladolid, Junta de Castilla y Len, 1993, pp.205-216; e ainda Isidro de las Cacigas, Los Mozarabes, II vols., Madrid, CSIC, 1947-48; e Francisco Javier Simonet, Historia de los mozarabes de Espaa, Memrias de la Real Academia de la Histria XIII (1897-1903). 7 Sobre lvaro de Crdova, v. Isidro de las Cacigas, Los mozarabes, II vols., Madrid, CSIC, 1947-48, pp. 179-271. Em referncia ao filho de lvaro, Hafs ibn Albar (v.infra), dito que descendiam de Aquila, filho de do rei Vitiza (CMR, ed. Cataln e Andres p. XLIX). Pertenciam pois elite crist hispnica, sendo descendentes de um monarca visigodo. 8 Relativamente actividade literria (anotaes e comentrios) de lvaro de Crdova a textos anteriores, v. M. Daz Y Daz, Cultura literria en la Espaa visigtica, in De Isidoro al siglo XI, pp. 57-86, p. 71; Idem, La circulation des manuscrits dans la Pninsule Ibrique du VIIIe au XIe sicle, Cahiers de Civilisation Mdivale (CCM) n12, pp. 219-241 e 383-392, p. 225. Entre as obras de que lvaro foi autor, as mais conhecidas foram o Indiculus luminosus (Indculo luminoso) e a Vita Eulogi (Vida de Eulgio) (I.Cacigas, Op..cit., I, pp.207 e 231-232). 9 Sobre o movimento dos mrtires de Crdova, v. Isidro de las Cacigas, Op..cit., vol. I, em especial pp. 179-271. V. ainda E. Lvi-Provenal, La oposicin mozrabe en Crdoba (850-859), in Historia de Espaa Menndez Pidal, vol.IV, 4ed., Madrid, Espasa-Calpe, 1976, pp.150-159.

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    profticos, os quais, desde o sculo VIII, vinham propagando a ideia de que o fim do

    domnio islmico estaria para breve10.

    Assim, entre os finais do sculo IX e o incio do segundo quartel do sculo X,

    extremamente significativa a traduo das Historias de Orsio de latim para rabe.

    Aquela traduo da obra de Orsio ter sido levada a cabo pelo filho do mesmo lvaro,

    Hafs ibn Albar (sendo Albar a forma arabizada de lvaro), ento o Juiz dos cristos

    cordoveses11.

    O filho de um dos principais mentores das insurreies morabes de meados do sculo

    IX optou, assim, por uma metodologia de manuteno da cultura crist-latina (aquela

    que seu pai j identificava como em clara decadncia 12), atravs da traduo para rabe

    daquela obra basilar da cultura medieval em geral, mas tambm, e especialmente, da

    cultura hispano-medieval.

    Era, portanto, evidente que, pelo menos nas comunidades morabes dos grandes meios

    urbanos, o nvel de arabizao dessas mesmas comunidades seria praticamente

    completo: era-lhes mais fcil ler Orsio em rabe do que em latim13.

    10 L.Krus, Tempo de godos e tempo de mouros. As memrias da Reconquista in Passado Memria e Poder na sociedade medieval portuguesa. Estudos, Redondo, 1994, pp. 103-127, p.116; Manuel Daz Y Daz, La historiografa hispana desde la invasin rabe hasta el ao 1000, pp.219-220; A. Rucquoi, Op. cit., pp. 97-99. Sobre a erudio dos meios culturais morabes, v. Cludio Sanchz-Albornoz, San Isidoro, Rasis y la Pseudo Isidoriana, Cuadernos de Historia de Espaa IV (1946), pp. 73-113, p.113. 11 Sobre a nova proposta de autoria da traduo da obra de Orsio de latim para rabe, que ter sido, afinal, obra de Hafs ibn Albar al-Qt, (ainda sobre este magistrado e letrado morabe, v. supra n.6) alterando quase por completo o cenrio que tnhamos anteriormente relativamente a esta traduo, v. Mayte Pnelas, Op. cit., em especial pp. 27-42. referido como Juiz dos cristos cordoveses em Idem, p. 32. Sobre a actividade de Hafs ibn Albar como tradutor, conhecem-se como suas quer a traduo atrs referida, quer tambm a dos Salmos de David, obra que hoje se encontra em Milo (Idem, pp. 34-35; A. Rucquoi, Op. cit., p.101). 12 Mayte Pnelas, Op. cit., p.37; Jos Eduardo Lpez, La cultura del mundo rabe en textos latinos hispanos del siglo VIII in Islo e Arabismo na Pennsula Ibrica. Actas do XI Congresso da UEAI, Universidade de vora, 1986, pp. 253-271, p.253-254; A.Rucquoi, Op..cit., p.109; A. H. de Oliveira Marques, O latim e os falares morabes, NHP II, pp. 208-211. 13 Sobre o grau de arabizao dos morabes que teria levado Hafs ibn Albar a traduzir Orsio de latim para rabe, v. Mayte Pnelas, Op .cit., pp.40-42. Outros sinais do alto grau de arabizao das elites morabes no sculo X so o facto de Recemundo de Crdova ter escrito o seu Calendrio em rabe, e t-lo dedicado a al-Hakam II; segundo M. Daz y Daz tambm a CM 754 ou Continuatio Hispana (Bibl.Nac., Madrid, ms. 4879 [Gg. 132]) teria sido traduzida para rabe; e tambm Isidoro de Sevilha teria sido traduzido para rabe, e posteriormente utilizado por al-Rz (v. M. Daz y Daz, Isidoro en la Edad Media Hispana, p. 174); tambm Mayte Pnelas refere as muitas anotaes rabes que acompanham os mss. das Etimologias, e que fazem supor terem sido extradas de uma traduo rabe (Idem, Op..cit., pp. 56-57 e n.172). Aquela mesma listagem encontra-se quase literalmente em A. Rucquoi, Op. cit., p.101. Os prprios Evangelhos foram traduzidos para rabe, acompanhados de

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    Ser um aspecto quase sintomtico: sempre que o poder islmico se apresentou

    debilitado, paralelamente recrudesceu nos meios morabes a apologia da Hispnia,

    associada tristeza pela perda do seu domnio, por parte dos cristos14.

    IV. Crnica Morabe de 754 (CM 754)

    A chamada Crnica Morabe de 754 (tambm conhecida como Continuatio

    Hispana)15 uma obra que ter sido composta em meados do sculo VIII, se

    atendermos quela primeira forma que envolve uma datao.

    , portanto, contempornea da crise que na Pennsula se prolongou pela dcada de 40 e

    que acompanhou, na dcada seguinte, a trgica mudana da dinastia califal no oriente,

    quando os Abssidas destronaram e massacraram os depostos Omadas16.

    Este texto reflecte de alguma forma, do ponto de vista cristo, a maneira como ento

    aquela crise foi sentida em terras da Hispnia.

    Historicamente a CM 754 um dos poucos, e por isso to importantes, textos cristos

    peninsulares que se conhecem, e que foram compostos no perodo que medeia entre o

    apontamentos litrgicos, o que nos fala do grau de aculturao entre os morabes, pelo menos os de meios urbanos, em especial Crdova. (M. Jesus Viguera, Existe una identidad mozrabe? A modo de conclusin in Existe una identidad mozrabe? Historia, lengua y cultura de los cristianos de al-Andalus (siglos IX-XII), Estudios reunidos por Cyrille Aillet, Mayte Penelas y Philippe Roisse, Madrid, Casa de Velzquez, 2008, pp. 299-314. 14 Relativamente ao conceito de tristeza ou dolo, e s questes com ele relacionados no mbito da ideologia crist de resistncia, v. infra IV. Crnica morabe de 754. 15 A designao de Continuatio Hispana ou Continuatio Isidoriana Hispana ficou a dever-se a T. Mommsen (v. Crnica Mozarabe de 754 [ed. crt. e trad. cast. de Jos Eduardo Lpez Pereira), Anbar Ed., Saragoa, 1980, p.19; Cludio Sanchz-Albornoz, La Crnica del Moro Rasis y la Continuatio Hispana, Anales de la Univ. de Madrid, Letras, III, 3 [1934]; e CMR, ed. Cataln e Andres, p. XXXV). Sobre edies e questes textuais relacionadas com esta Crnica, v. Crnica Mozarabe de 754 (ed. crt. e trad. cast. Jos Eduardo Lopz Pereira), Anbar Ed., Saragoa, 1980, em especial pp. 7-21; e M. Daz y Daz, La historiografia hispana desde la invasin rabe hasta el ao 1000 in, De Isidoro al siglo XI, Barcelona, Ed. El Albir, 1976, pp. 203-234, pp. 207-210; e Idem, La transmisin del Biclarense, in De Isidoro al siglo XI, pp. 117-140; pp. 135-140; Jos Eduardo Lpez, La cultura del mundo rabe en textos latinos hispanos del siglo VIII, in Islo e Arabismo na Pennsula Ibrica. Actas do XI Congresso da UEAI, Universidade de vora, 1986, pp. 253-271, pp.267-269; B. Sanchz Alonso, Historia de la historiografia, pp. 105-108. 16 Sobre este perodo problemtico na Hispnia islmica em meados do sculo VIII, e os reflexos e consequncias da mudana dinstica em Damasco, v. A. Rucquoi , Op..cit., pp.69-70.

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    reinado do monarca visigodo Wamba e o reinado do rei Afonso III das Astrias, ou seja

    durante um lapso temporal de, pelo menos, dois sculos17.

    A instabilidade poltico-militar que tinha tomado conta do espao hispnico sob a

    autoridade islmica, desde 740, com as revoltas berberes, veio a radicalizar-se aps o

    derrube dos Omadas em Damasco. Aquele conjunto de circunstncias fez surgir, ou ao

    menos recrudescer, nos meios cristos, a circulao e divulgao de textos pseudo-

    profticos, com cariz mais ou menos esotrico, e que prognosticariam o fim breve do

    domnio islmico na Pennsula.

    Esta Crnica, de autor desconhecido, tem sido vista como produto de um crculo letrado

    morabe, sem que, no entanto, os investigadores tenham chegado a algum consenso

    quanto sua origem. J lhe foi atribuda origem cordovesa18, toledana19 e at

    eventualmente murciana20.

    Entre as fontes que foram utilizadas para a sua redaco contam-se a Crnica de Joo

    de Santarm ou de Bclaro, na sua verso de 742, e a chamada Crnica Arbico-

    Bizantina de 74121.

    A utilizao posterior da CM 754, constatar-se- mais tarde como fonte da Crnica

    Pseudo Isidoriana, numa ltima redaco ainda efectuada em meios morabes22; e j

    17 Entre o reinado de Wamba (672-680) [A. Rucquoi, Op .cit., p.321] e o de Afonso III (866-909) [Idem, p.326], correram cerca de dois sculos, nos quais a produo literria foi muito escassa. 18 O partidrio da origem cordovesa do autor R. Dozy (apud M. Daz y Daz, Transmisin, p. 135, n.44). 19 M. Daz y Daz, e j anteriormente Mommsen, entendiam ser o autor um toledano (Ibidem). 20 LPEZ PEREIRA entende ser algum do sudeste peninsular, possivelmente murciano, o autor da CM754 (CM754, ed. Lpez Pereira, p.17). 21 Sobre estes textos, o de 741 e o de 742, v. o excelente estudo de Csar Dubler, Sobre la Crnica Arabigo-Bizantina de 741 y la influencia bizantina en la Pennsula Ibrica, Al-Andalus XI (1946), pp. 283-349, sobretudo pp. 298-321; e ainda M. Daz y Daz, Transmisin, pp.130-135. Crmen Hartmann, no estudo que acompanha a edio da Crnica de Joo de Santarm, diz ser a Crnica Arabigo-Bizantina de 741 um texto morabe (Joo de Santarm (Biclarense), Crnica [ed. e introd. C.C.Hartmann], p.80, n.143). 22 Estamos em crer que a ultima redaco/verso da CPs-I, ainda em rabe, ter ocorrido em meio cultural morabe, e poder ter sido uma pea instrumental importante na resistncia cultural e identitria dos mesmos morabes, ante o avano das influncias borgonho-cluniacenses. Pomos mesmo a possibilidade de que aquela redaco pode no ter sido algo de todo estranho a Sisnando Davidis, o homem que governou Coimbra e Toledo, entre 1065 e 1091 (sobre Sisnando Davidis, figura a pedir um novo estudo, ver a sntese, com 60 anos (!) mas ainda excelente, de Ramn Menndez Pidal e Emilio Garcia Gomez, El conde mozrabe Sisnando Davdiz y la poltica de Alfonso VI com los Taifas, AA XII (1947), pp.27-41), e grande defensor da causa morabe, pois constata-se a presena da CM 754 em Coimbra, tendo sido fonte dos Annales Portugalenses Veteres (ainda sobre esta relao textual entre a CM 754 e os APV,

  • Literatura Morabe. Memria de uma cultura de resistncia (sc.VIII-XII) Antnio Rei

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    no perodo da reconquista castelhano-leonesa na obra de Rodrigo Ximnez de Rada,

    como veremos adiante.

    Uma particularidade textual que se verifica na CM 754 o facto de integrar um novo

    elemento discursivo, de evidente origem crist, e que fez histria, pois continua a

    encontrar-se em textos de sculos posteriores.

    Este elemento do dolo vem a constatar-se j em pleno sculo XIII em obras de

    Rodrigo Ximnez de Rada e de Afonso X, respectivamente, De Rebus Hispaniae e

    Primera Crnica General, que vieram a ser compostas cerca de meio milnio depois da

    redaco da CM 754 23.

    O que tem sido designado como Dolo ou D da Hispnia um discurso lamentoso,

    uma narrao triste e dolorosa em que se relata que, em consequncia do

    desaparecimento do Reino Visigodo e da instalao do poder islmico na Hispnia, se

    tinham abatido sobre este extremo do mundo todas as desgraas e inclemncias24. o

    pranto pelo Paraso Perdido, que urgia recuperar25.

    Este d tinha uma funo semelhante da laude, ambos produzindo um efeito de

    exortao. No caso em que ambos se conjugam e complementam o efeito ganha muito v. Damio PERES, A propsito do Chronicon Alcobacense, Rev. Portuguesa de Histria, I (1941), Univ. Coimbra, pp.148-150 + 1 extratex.; Jos Eduardo Lpez Pereira, El elemento godo en los Annales Portugalenses Veteres: un problema de critica textual y de fuentes, Rev. Portuguesa de Histria, XVI (1976), Univ. Coimbra, pp.223-226), os quais foram redigidos at 1093 (Joo de Santarm (Biclarense), Crnica [ed. e introd. C.C.Hartmann], p.85) ou seja, durante o governo de Sisnando e de seu genro e sucessor, Martim Moniz. Curiosamente, o arqutipo textual da CM 754, que hoje conhecemos em vrios testemunhos, parece remontar precisamente a Coimbra como ponto de origem (Idem, pp. 84-86; e Antnio Benito Vidal, Crnica Seudo Isidoriana, Valncia, Anbar Ed., 1961, p.18), com excepo do chamado Complutense, que seria de Toledo (Idem, p. 86); mas Sisnando tambm governou Toledo. Se acrescentarmos a este quadro que Diego Cataln e Ramn Menndez Pidal falam na redaco da CPs-I em Toledo (v.infra n.49), e que na sua composio os excertos de obras hispnicas so claramente privilegiados em relao a outros que o no so (CMR, ed. Cataln e Andrs, p. XXXVII), o cenrio de uma afirmao de cristianismo nacionalista, leia-se morabe, no parece descabido, nem toda esta conjectura de proximidade entre aquele magnate morabe, Sisnando, e este esforo cronstico com origem nos meios letrados do cristianismo hispnico. Sobre esta questo e perodo v. ainda Pierre David, Labolition du rite hispanique, tudes Historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIe sicle, 1947, pp. 391-405. 23 O Dolo constata-se ainda, como elemento exortativo, e sempre justaposto Laude no De Rebus Hispaniae de Rodrigo Ximnez de Rada (Deploratio Hispanie, in De Rebus Hispaniae sive Historia Gothica [ed. e estudo Juan Fernndez Valverde], Turnholt, Brepols Ed., 1987, pp.106-109) e na Primera Crnica General, de Afonso X (Del duello de los godos de Espanna in Primera Crnica General de Espaa [ed. Ramn Menndez Pidal], II ts., Madrid, Ed. Gredos, 1977, t.I, pp. 312-314). 24 Alm das referncias da nota anterior, v. Spania miserrima in CM 754 (ed. J.E. Lpez Pereira), pp. 69-75. 25 Elisa Esteves, Op .cit., p. 91.

  • Literatura Morabe. Memria de uma cultura de resistncia (sc.VIII-XII) Antnio Rei

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    maior impacto. A diferena essencial entre ambos que a laude exorta atravs da

    criao de uma exaltao positiva resultante de uma evocao da unicidade espacio-

    temporal da memria hispnica; enquanto o d busca fazer surgir um sentimento

    negativo, resultante da evocao da diferena, do outro, e da condio estrangeira do

    ltimo e mais recente dos possessores da Hispnia, apresentando assim a sua

    ilegitimidade para nela continuarem 26.

    O d ou dolo ter sido o elemento emocional, o motor de arranque, da chamada

    Reconquista que se foi elaborando posteriormente, em forma argumentativa, e

    enquanto discurso legitimador27.

    V. Kitb Hry (KH) [O Livro de Orsio] (Scs. IX-X)

    As Histrias contra os pagos, de Orsio, cerca de meio milnio depois da sua

    redaco, como j observmos em II.2., continuavam sendo uma referncia-base de

    grande importncia para a construo da memria hispnica. O Kitb Hry (O

    Livro de Orsio) foi a ponte atravs da qual muitos dos conceitos e memrias da

    Antiguidade Tardia relativamente Hispnia, acabaram entroncando na cultura hispano-

    rabe. Trata-se, na sua origem, de uma traduo do latim para rabe das Histrias de

    Orsio28, obra considerada como uma matriz da historiografia medieval29 e de grande

    26 Sobre o D ou Dolo pela Hispnia, diz-nos Lus Krus: As lamentaes pela perda da Hispnia visavam um apelo unidade crist, o reforar da resistncia religiosa e cultural face aos novos poderes. (Tempo de godos e tempo de mouros. As memrias da Reconquista, p.108). Um reflexo evidente da divulgao deste texto podero ter sido as revoltas morabes dos primrdios do sculo IX, que acabaram derrotadas e com a perda das autonomias das respectivas comunas (v. A. Rei, Coimbra e a sua regio, segundo as fontes geogrficas rabes in A cidade e o campo. Estudos de histria rural e urbana oferecidos a Iria Gonalves, FL-UL / FCSH-UNL, no prelo). 27 Sobre o conceito de Reconquista e a sua difuso nos reinos cristos peninsulares, v. J. Maravall, El concepto de Espaa en la Edad Media, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1981 e Lus Krus, Tempo de godos e tempo de mouros. As memrias da Reconquista in Passado, Memria e Poder na sociedade medieval portuguesa, Patrimnia, Redondo, 1994, pp.102-127; e Idem, Os heris da Reconquista e a realeza sagrada medieval peninsular: Afonso X e a Primeira Crnica Geral de Espanha, in Ibidem, pp.129-142. 28 Acerca do conhecimento da existncia desta traduo entre letrados dos sculos X e XI, v. Mayte Pnela, Op. cit., p.17. 29 C.Orcstegui e E. Sarasa, Op. cit., pp. 37-38. Sobre a popularidade desta obra na Idade Mdia, bastar dizer que se lhe conhecem cerca de 275 mss. (Orsio, Histria Apologtica, pp. 34-43).

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    importncia para esta Finisterra, por ser o autor da mesma um hispnico e a obra em

    causa dar um lugar especial Hispnia30.

    At h pouco tempo esta traduo da obra orosiana era entendida como fruto de um

    trabalho de equipa, equipa essa dirigida, pelo Qd (juiz) muulmano Qsim ibn al-

    Asba e constituda tambm pelo Juiz dos cristos, um morabe ainda no identificado

    com segurana31. O texto latino em causa teria chegado a Crdova como oferta do

    Basileus de Constantinopla aquando de uma embaixada bizantina a al-Andalus32. O

    nico ms. conhecido da traduo rabe de Orsio foi identificado h relativamente

    poucos decnios, em 1931, por I. Kratchkovsky33. Mas s em 1939 se pode dizer que foi

    ento integrado nos meios cientficos internacionais, pela mo de Levi Della Vida34.

    Deste ms. so conhecidas apenas duas edies, e algumas referncias em artigos e obras

    mais gerais35. No mais recente estudo e edio da obra, da autoria de Mayte Pnelas36,

    esta investigadora veio recolocar a questo da autoria da traduo, no apenas em

    relao aos seus executantes, mas tambm metodologia da prpria traduo e tambm

    ao crculo cultural que lhe deu origem; e, ainda, s motivaes que tinham levado a que

    a mesma traduo tivesse vindo a acontecer. 30 V. Antnio Rei, O louvor da hispnia na cultura letrada medieval peninsular. Das suas origens discursivas ao Apartado Geogrfico da Crnica de 1344, FCSH-UNL, 16 Julho 2007, policop., Cap. II.2. 31 Esta tese, de uma equipa chefiada por Ibn al-Asbagh, tem sido geralmente aceite (embora M. Daz y Daz j tivesse colocado anteriormente, em 1970 e em reedio de 1976 [Idem, La Historiografia Hispana, p.205], como data e local da redaco do KH, respectivamente, por volta de 930 e em Toledo [Idem, p.211]) at muito recente investigao e edio que Mayte Pnelas levou a cabo, e onde foi formulada esta nova tese, quanto a ns bastante plausvel. A anterior apresentava algumas debilidades cronolgicas, quer relativamente ao monarca que hipoteticamente teria oferecido a obra a Abd al-Rahmn III (Mayte Pnelas, Op .cit., p.28); quer, e principalmente, no respeitante ao papel que o Qd Qsim ibn al-Asba teria desempenhado na empresa em causa, atendendo sua idade e sua sanidade mental no final da vida (Ibidem). O aspecto, at ento acessrio, que relacionava a traduo com os morabes passou agora a ser o aspecto principal e nico (Idem, pp.30-42). A hiptese colocada por M. Daz y Daz situa aquela compilao ainda no ambiente da resistncia toledana poltica hegemnica de Abd al-Rahmn III. 32 V. nota supra. 33 Mayte Pnelas, Op. cit., p.83. 34 Ibidem, pp. 83-84. 35 As duas edies so: rsys, Tarikh al-lam, ed. Abd al- Rahmn BADAW, Beirute, 1982; e Kitb Hurshiysh, ed. e estudo Mayte Pnelas, Madrid, CSIC, 2001. Entre os artigos so de referir os de G. Levi della Vida, The Bronze Era in Moslem Spain, JAOS 63 (1943), pp.183-190; Idem, La traduzione araba delle Storie de Orosio, AA XIX (1954), pp. 257-293; Idem, Un texte mozarabe dhistoire universale, tudes dorientalisme ddies la mmoire de Lvi-Provenal, Paris, 1962, I, 175-183; e mais recentemente Lus Molina, Orosio y los gegrafos hispanomusulmanes, AQ V (1984), pp. 63-92; I. KAHLA, Kitb al-Tawrkh li-Bawlws rsys, RIEEI 23 (1985-86), pp. 119-138. Entre os captulos queremos referir aquele que Husayn MUNIS lhe dedicou em Tarikh al Jarfiya wa-l-Jarfiyyn fi-l-Andalus, Madrid, IEE, 1967, pp. 18-25. Mais alguns informaes que propiciaro um ponto de situao mais completo sobre este ms. e respectivos estudos, em Mayte Pnelas, Op. cit., pp.18-19. 36 V. n. supra.

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    Em funo de tudo isto tambm questionada a prpria provenincia do texto latino que

    foi traduzido. At ento esta traduo tinha sido considerada como o trabalho de uma

    equipa de tradutores que se situava culturalmente junto ao crculos do novo poder

    califal. O objectivo ou objectivos da mesma poderiam ser um de dois, ou ambos em

    conjunto: enriquecer a biblioteca do prncipe al-Hakam, futuro califa e famoso

    biblifilo; ou proporcionar um texto-matriz rabe que pudesse vir a ser utilizado na

    elaborao posterior de obras historiogrficas articuladas com o novo regime e a nova

    ideologia califal. Facilmente se constata que qualquer um dos objectivos no exclui o

    outro, antes se podem interrelacionar estreitamente37.

    Segundo Mayte Pnelas tratou-se afinal de uma traduo levada a cabo por Hafs ibn

    Albar, o filho de lvaro de Crdova, ento juiz dos cristos da capital omada. Ou seja,

    a aco de um juiz dos cristos parece, portanto, confirmada. O mesmo j no acontece

    com as demais anteriores concluses38 que colocavam a possibilidade de Ibn al-Asbagh

    ter participado naquela empresa literria.

    Pela sua condio de interlocutor privilegiado junto da corte, em nome dos cristos

    cordoveses, Hafs ibn Albar seria um homem j culturalmente bilingue, pois falaria e

    escreveria o latim mas tambm o rabe, e a prova desse seu domnio da lngua arbica

    seria, de forma patente, esta mesma traduo39.

    Quanto execuo da mesma traduo a investigadora no aventa neste caso a proposta

    de que a mesma tivesse sido obra de uma equipa, pelo que teria sido muito

    possivelmente uma traduo levada a cabo apenas por um nico homem, o filho de

    lvaro de Crdova.

    De forma semelhante que identificmos supra quando referimos a CM 754, tambm

    aqui encontramos uma poca de crise poltica em al-Andalus coincidindo com a

    produo de uma obra importante oriunda dos meios letrados morabes.

    Na CM 754 foi a crise que decorreu entre 740 e 756; e neste caso coincide com o

    bastante mais longo perodo das autonomias muladis, que durante mais de meio

    37 V. V. Antnio Rei, O louvor da Hispnia na cultura letrada medieval peninsular..., Cap. II.5. 38 V. supra n. 29. 39 V. supra n. 7.

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    sculo40, em especial no ocidente e no sul da Hispnia islmica, eram a prova evidente

    da debilidade da autoridade poltica e militar dos emires de Crdova.

    A herana cultural crist procurava, pois, revivificar-se atravs de uma rememorizao

    de obras importantes da herana romano-visigtica, e, entre elas, a obra de Orsio,

    talvez a mais emblemtica dos primrdios da cultura crist hispnica.

    Tratar-se-ia, pois, de mais um contributo para o esprito de resistncia e de

    sobrevivncia cultural das comunidades morabes.

    No entanto aquela resistncia j assumia formas aculturadas, pois apesar de haver a

    transmisso de uma memria crist, a que acrescia o facto de ter origem hispnica,

    aquela transmisso j no se podia fazer em latim, tendo de ser feita em rabe.

    A moarabizao, ou mais especificamente o grau de arabizao entre os cristos

    peninsulares, estaria j muito avanada, em especial entre aqueles que residiam nos

    meios urbanos.

    Ainda segundo Mayte Pnelas a questo que envolveria a chegada do texto das

    Histrias atravs da embaixada bizantina deixaria tambm de se colocar. Entende tratar-

    se afinal de um equvoco relacionado com outras ofertas de manuscritos pela mesma

    embaixada, mas em que no estaria integrada a obra de Orsio41.

    Segundo esta autora as Historias contra os pagos nunca teriam deixado de ser

    conhecidas e de circular na Hispnia, inclusive nos crculos letrados morabes42. E o

    facto de Hafs ibn Albar a ter conhecido e utilizado, tendo-a encontrado possivelmente

    entre os textos que tinham sido propriedade de seu pai, e de a ter transposto para a

    lngua rabe, evidencia-nos, de facto, essa presena.

    40 No extremo ocidente as revoltas muladis prolongaram-se de 866 (quando se deram as primeiras revoltas em Mrida; v. Maria ngeles Prez lvarez, Fuentes rabes de Extremadura, Cceres, Univ.Extremadura, 1992, p.106) a 930 (quando Badajoz se rendeu a Abd al-Rahmn III; Idem, p.124) embora s com a rendio de Toledo, em 932, se tenha dado a pacificao de al-Andalus sob a autoridade do seu primeiro califa (v. Antnio Borges Coelho, Portugal na Espanha rabe (PEA), 2ed. II vols., Lisboa, Caminho, 1989, vol.II, p.36). 41 Pelo que, segundo Mayte Pnelas, apenas teria sido oferecida pelo basileus Constantino VII Porfirogeneta ao Califa Abd al-Ramn III a obra mdica de Dioscrides (v. ob.cit., p.29). 42 Ibidem, p. 30.

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    Ainda assim o texto rabe que hoje conhecemos do Kitb Hry (O Livro de Orsio

    em rabe)43 no corresponde a uma mera traduo do texto latino das Histrias tal como

    genericamente conhecido. Trata-se, ele mesmo, j de uma compilao textual, pois

    integra contribuies que provm de fontes distintas das do texto matricial orosiano44.

    Um pormenor, sem dvida importante, e que, como exemplo, revelador de alguma da

    metodologia utilizada na traduo / compilao, o facto de o tradutor ter importado

    para a sua obra a estrutura textual da Chronica maiora de Isidoro de Sevilha, e no a

    que se constata nas mesmas Histrias de Orsio45.

    O KH veio a ser uma das fontes utilizadas por Amad al-Rz para a sua obra perdida

    Akhbr Mulk al-Andalus (Notcias acerca dos Monarcas de al-Andalus), certamente

    usada no apartado geogrfico do seu trabalho, e que o que mais especialmente nos

    interessa.

    O mesmo KH veio a ser usado mais tarde, no sc. XI, por al-Bakr na sua obra

    geogrfica Al-Maslik wa-l-Mamlik (As Vias e os Reinos)46. A utilizao do KH quer

    por al-Rz quer por al-Bakr levanta importantes questes textuais que abordaremos em

    II.5.

    VI. Crnica Pseudo-Isidoriana (CPs-I) (Sc. X-XI)

    Obra que levanta vrios problemas, em virtude de no se lhe conhecer o autor, o qual,

    sendo conhecido, ajudaria, com certeza, a datar, por aproximao, o perodo em que

    surgiu a obra em causa e a situar espacialmente o seu aparecimento.

    43 O nico ms. conhecido da traduo rabe das Histrias de Orsio, o que existe na Columbia University de Nova Iorque, na The Rare Book and Manuscript Library, com a cota: X.893.712H (Mayte Pnelas, Op. cit., p.83; M. Daz y Daz, La Historiografia Hispana, p.210). 44 Sobre a composio e a estruturao textual do KH, v. Mayte Pnelas, Op .cit., pp. 47-49. 45 Mayte Pnelas, Op. cit., p. 48. 46 Relativamente utilizao que al-Bakr fez do KH, v. Mayte Pnelas, Op .cit., pp. 73-74; e Antnio Rei, Memria de Espaos e Espaos de Memria. De Al-Razi a D.Pedro de Barcelos, Dissertao de Mestrado, FCSH-UNL, 2 Julho 2002, policop., p.134, n.5. Sobre a relao da al-Himyar com o KH, v. Mayte Pnelas, Op. cit., pp.74-76.

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    Assim, relativamente a esta obra, quer a sua datao aproximada, quer a regio da sua

    elaborao so questes importantes e ainda no sanadas47.

    Tendo sido entendida como uma continuao da obra de Isidoro de Sevilha, tal facto

    deu origem designao que surge no ms. de Paris: Cronica Gothorum a sancto Isidoro

    edita 48. Mais recentemente, veio a fixar-se a sua denominao em Chronica Gothorum

    Pseudo Isidoriana 49 ou simplesmente Crnica Pseudo Isidoriana (CPs-I) 50.

    Diversos autores que trataram este tema tm feito diferentes propostas no que toca

    poca da redaco desta Crnica51. Ramn Menndez Pidal num primeiro momento

    entendeu tratar-se de uma obra compilada na primeira metade do sculo XI52, seguindo

    Mommsen e Cludio Sanchez-Albornoz53, para depois se fixar na primeira metade do

    sculo X54. Levi Della Vida apontou, como possvel poca de redaco, o final do

    sculo XI55.

    Pela nossa parte, cremos que todos tm uma parte de razo nas propostas que fazem.

    Assim, quanto a ns, a CPs-I ser o resultado final de uma evoluo textual que se foi 47 Um ponto de situao relativamente recente, de 1996, sobre a obra e sobre os autores que a ela se tm dedicado, em Helena de Carlos Villamarn, Op .cit., 241-249. Dando uma ideia geral das problemticas, no dispensa, nalguns casos a consulta da obra ou obras referidas, como a antiga mas no dispensvel obra de B. Sanchz Alonso, Historia de la historiografia, pp. 115-116. 48 O ms. n 6113 da Biblioteca Nacional de Paris, nico exemplar da CPs-I comea daquela maneira (apud P.Gautier-Dalch, Notes sur la Chronica Pseudo-Isidoriana, Annuario de Estudios Medievales 14 (1984), pp.13-32, p. 14). Edies desta Crnica: T. Mommsen, Monumenta Germaniae Historica, Auctores Antiquissimi XI, Chronica Minora II, pp.372-388; edio castelhana da CPs-I, da autoria de Antonio Benito Vidal, Crnica Seudo Isidoriana, Valncia, Anbar Ed., 1961. A mais recente edio, traduo e estudo deste ms. : La chronica gothorum pseudo-isidoriana (ms. Paris BN 6113) , ed. crtica, trad. y estudio de Fernando Gonzlez Muoz, A Corua, Toxosoutos, 2000. O facto de a termos encontrado s muito recentemente no permitiu que a tivssemos tomado como texto-base neste estudo; no entanto a antiga edio de Benito Vidal, pelo facto de ser to despojada, ser sempre uma edio a ter e conta. 49 Ramn Menndez Pidal, Sobre la Crnica Pseudo Isidoriana, Cuadernos de Historia de Espaa XXI-XXII (1954), pp. 5-15, onde assim a designa, apesar do ttulo apresentar outra forma. Tambm Cludio Sanchez-Albornoz a designa daquela forma no seu longo estudo San Isidoro, Rasis y la Pseudo Isidoriana, CHE IV (1946), pp. 73-113. 50 Esta designao, hoje a mais comum, encontramo-la, entre outras, no ttulo do trabalho de Menndez Pidal (v. nota supra); no trabalho de P. Gautier-Dalch, Op. cit., passim; M. Daz y Daz, La Historiografia Hispana, pp. 211-212; e na edio castelhana da CPs-I, de Antonio Benito Vidal, Crnica Seudo Isidoriana. 51 Diego Cataln, a partir de Menndez Pidal, coloca a redaco da CPs-I a acontecer em Toledo, do punho de um murciano (v. CMR, ed. CATALN e ANDRES, p. XXXII). 52 Ramn Menendez Pidal, Sobre la Crnica Pseudo Isidoriana, p.5. 53 Cludio Sanchz-Albornoz, San Isidro, Rasis y la Pseudo-Isidoriana, p.74; Mayte PNELAS, ob.cit., 68, n. 227. 54 Ramn Menendez Pidal, Sobre la Crnica Pseudo Isidoriana, p.13. 55 Apud Idem, p.5. Antonio BENITO VIDAL, diz que Levi della Vida coloca a redaco da CPs-I no sculo XII (Idem, ed. Crnica Seudo Isidoriana, p.7).

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    processando ao longo dos sculos IX a XI. Seria um conjunto de textos que circulavam

    entre os letrados morabes e que foram sofrendo retoques e acrescentos,

    principalmente durante os perodos crticos, como foi o das autonomias muladis que

    tiveram lugar entre o ltimo tero do sculo IX e o primeiro do sculo X ou a crise que

    levou desagregao do Califado e ao incio das Taifas56. E, por ltimo, e num cenrio

    e numa lgica completamente diferentes, durante o perodo de resistncia cultural que

    os morabes hispnicos protagonizaram na segunda metade do sculo XI57 e no incio

    do sculo XII, contra o cada vez maior predomnio do cristianismo romano e

    cluniacense, o qual acabou por vencer e levar, por parte das monarquias crists

    hispnicas, ao abandono do rito visigtico-morabe58.

    Atendendo ao cada vez maior grau de arabizao dos morabes, a sua lngua literria

    teria passado a ser o rabe, e nesse idioma ter sido ainda redigida a ltima verso da

    CPs-I.59

    Enquanto texto, mantm ainda mais um outro conjunto de questes relacionadas com a

    forma como a CPs-I se articular com o KH e com o LR, atendendo a algumas grandes

    semelhanas textuais entre todas. Nenhuma delas depende directamente de qualquer

    uma das outras,

    KH = CPs-I LR

    LR = CPs-I KH

    CPs-I = LR KH

    56 Relativamente constituio e estruturao do texto da CPs-I, e poca em que comeou a sua circulao entre as comunidades morabes, M. Daz y Daz, La Historiografia Hispana desde la invasin rabe hasta el ao 1000, pp.211-212. 57 Chegou a existir um pleito judicirio, em 1077, entre os partidrios de ambas as liturgias, a romana e a hispano-visigtica (v. L. Krus, A concepo nobilirquica do Espao Ibrico (1280-1380), p.72, n.70). 58 Relativamente a esse perodo e a alguns protagonismos dentro da resistncia morabe, v. supra n. 20. 59 A verso que acabou mais tarde por ser traduzida para latim (P. Gautier-Dalch, Op. cit., pp.23-26).

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    sendo de admitir a existncia de um texto que serviu de fonte a todas e foi

    diferentemente aproveitado pelos autores; ou poder ainda ter existido uma outra

    possibilidade, a qual abordaremos em seguida.

    A gnese destes textos parece ter-se dado durante a primeira metade do sculo X: o KH 60 e a CPs-I 61 ligados ao esprito de resistncia cultural morabe; e o LR, na sua verso

    primeira, das mos dos al-Rz, ligado s memrias califais, mas iniciado por Amad al-

    Rz, ainda no reinado de Abd al-Rahmn III 62.

    Sabemos que quer a CPs-I quer o LR foram alterados nos sculos seguintes. A CPs-I

    presumivelmente, e com a sua verso final no ltimo tero do sculo XI63; o LR,

    seguramente, refundido por Ibn lib no terceiro quartel do sculo XII 64.

    Admitamos pois que o KH seja portanto a obra menos alterada desde a sua redaco /

    traduo, algures entre os finais do sculo IX e o primeiro tero do sculo X. Sem

    pretendermos formular uma concluso, porque no cremos que existam dados para tal,

    queremos ainda assim levantar esta questo: sabendo-se que al-Bakr tambm usou o

    KH e que al-Bakr foi usado por Ibn lib para redigir a sua obra, matriz do LR, e que a

    CPs-I pode tambm ter tido al-Bakr como uma das suas fontes, ao menos na altura da

    sua traduo, j no sculo XII, ento a compilao rabe desconhecida que deriva do

    KH e que foi usada quer pelo LR quer pela CPs-I poder ser a obra de al-Bakr 65.

    apenas mais uma proposta, que futuramente poder vir a ser confirmada ou no, mas

    no aqui o momento nem o local para esse estudo.

    Admitir que a CMR no depende directamente da obra dos al-Rz e tomar esta hiptese

    anterior como uma concluso de trabalho so pressupostos que podero ajudar a

    60 Mayte Pnelas, ob.cit., pp.30-41. 61 R.Menndez Pidal, Sobre la Crnica Pseudo Isidoriana, p.13. 62 V. Antnio Rei, O louvor da Hispnia na cultura letrada medieval peninsular, Cap. II.5. 63 Levi della Vida, R.Menendz Pidal (Sobre la Crnica Pseudo Isidoriana, p.13.) e M. Daz y Daz (La circulation, p.230 e n.71) falam no final do sculo XI. 64 A. Rei, Memria de espaos, pp. 133-140. 65 P.Gautier-Dalch apercebe-se de questes aparentemente sem resposta, fruto das suas confrontaes textuais (Op. cit., pp. 20-21) (e que se podero tentar solucionar a partir desta nova ptica proposta), bem como testemunhou passagens em que a CMR e a CPs-I coincidem apenas com al-Bakr (ob.cit., p. 23). Tambm Diego Cataln reconhece que existem contactos entre as trs obras, e que a CPs-I e o LR dependero de uma obra derivada do HK (Idem, ed. Crnica del Moro Rasis, p. LXI).

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    clarificar situaes textuais que envolvem quer os textos rabes quer as crnicas

    morabes e no s.

    Compilada a CPs-I em ambiente morabe, usou entre as suas fontes a CM 754, a

    Historia Gothorum de Isidoro de Sevilha66; tambm se constatam passagens de Joo de

    Santarm e de Orsio, entre os autores hispnicos67, e ainda usou os cdices morabes

    das Nomina Sedium68.

    Trata-se, no seu conjunto, de uma sntese da Histria Hispnica, desde No at

    invaso rabe, sendo introduzida por uma descrio geogrfica da pennsula69.

    VII. As Nomina Sedium morabes

    Outras fontes importantes, tambm de mo morabe, e que no podemos deixar de

    referir so as chamadas Nomina Sedium, listas das divises eclesisticas da Hispnia,

    que embora compostas j durante o perodo de domnio islmico, perpetuavam as

    divises espaciais da igreja visigtica.

    A criao daquelas circunscries eclesisticas era tradicionalmente atribuda ao

    imperador Constantino70 e a memria dessa mtica origem acabou passando mesmo para

    os textos rabes71.

    Existem trs cdices morabes, annimos, que foram recolhidos e editados por

    Simonet: o cdice ovetense do Escorial, escrito em 780; o cdice morabe do sculo

    IX; e o cdice conciliar da Biblioteca Nacional de Madrid72.

    66 P. Gautier-Dalch, Op. cit., p.25. 67 Crnica Seudo Isidoriana, (ed. Antonio Benito Vidal), p.7. 68 V. infra VII. 69 Crnica Seudo Isidoriana, (ed. A. Antonio Benito Vidal), p.7. 70 J.Vallv, La Divisin , p. 182. 71 AL-BAKR, al-Maslik wa-Mamlik, 2 vols.,ed. A. Van Leuwen e A. Ferr, Cartago (Tunsia), al-Dr al-Arabiyya li-l-Kitb, 1992, II vol., pp. 891-893; traduo parcial castelhana por E.Vidal Beltrn, Geografia de Espaa, col. Textos Medievales, 53, Anubar, Saragoa, 1982, pp. 15-18. 72 Francisco Javier Simonet, Historia de los mozrabes de Espaa, Memorias de la Real Academia de la Historia, XIII (1897-1903), pp.808-812; tambm referidos por J.Vallv, Idem, p. 212, n. 114.

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    Todos aqueles cdices proviro da chamada diviso de Wamba, texto que descreve

    uma repartio e definio dos limites entre as diferentes dioceses hispnicas. O texto

    primitivo dessa diviso remete para o rei Wamba, rei visigodo que reinou entre 672 e

    680 73 e que presidiu a um Conclio onde se teriam reunido todos os bispos da

    Hispnia74.

    Aqueles cdices morabes atrs citados serviram, mais tarde, de fontes, num caso

    ainda em meio cultural morabe, ao compilador da CPs-I e, j no sculo XIII, no meio

    cultural da monarquia leonesa, Chronica de Lucas de Tuy 75.

    Apesar da sua origem morabe as Nomina tambm foram utilizadas por autores

    hispano-rabes. Uma das utilizaes mais extensas das Nomina a que remeter para

    Amad al-Rz, e que Ibn lib ter mantido. Al-Bakr tambm as utilizou, chamando-

    lhe de Constantino76.

    E uma prova evidente dessa utilizao aconteceu aps a conquista de Valncia por

    Jaime I o Conquistador, rei de Arago, em 1239. Existindo uma disputa entre Toledo e

    Tarragona relativamente ao bispado de Valncia ento recm-restaurado, os nome dos

    dois al-Rz e de al-Bakr foram citados como autores de obras passveis de serem

    usadas como critrios para ajudar naquela delimitao das arquidioceses. As obras

    daqueles autores acabaram mesmo por ser utilizadas e, em virtude das informaes

    nelas contidas, ficou ento comprovado que Valncia, no perodo visigtico, era um

    bispado sufragneo de Toledo, e no de Tarragona77.

    73 A. Rucquoi, Op. cit., p. 321. 74 Luis Vazquez de Parga, La Divisin de Wamba. Contribucin al estudio de la historia y geografa eclesisticas de la Edad Media espaola, Madrid, CSIC, 1943, pp.70-72; J.VALLV, Idem, p. 220. 75 J. Vallv, Ibidem, pp. 212-223. 76 V. supra ns. 66 e 67. 77 Relativamente a este episdio demonstrativo da importncia da recolha, por autores hispano-rabes, das divises eclesisticas hispnicas anteriores a 711, v. Pascual de Gayangos, Memria sobre la autenticidad de la Crnica denominada del Moro Rasis, Memorias de la Real Academia de la Historia, VIII (1852), pp. 1-100, pp. 8-9. Sobre a identificao de Abiba Cacabahi como Ab Ubayd al-Bakr, v. Husayn MUNIS, Trkh al Jarfia wa-l-Jarfiyyn fi-l-Andalus, pp. 71-72.

  • Literatura Morabe. Memria de uma cultura de resistncia (sc.VIII-XII) Antnio Rei

    Medievalista online ano 4 nmero 4 2008 IEM - Instituto de Estudos Medievais 18 www.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    VIII. Concluso

    A cultura morabe, foi, enquanto existiu, produto da herana cultural hispano-visigoda

    em contnua relao e consequente aculturao com a cultura islamo-rabe que se

    instalou na Pennsula Ibrica.

    Uma das principais razes da sua existncia e, eventualmente, o principal valor da sua

    identidade, foi o da resistncia aos poderes hegemnicos que se lhe foram impondo.

    Foram de alguma maneira os herdeiros de uma cultura intrinsecamente hispnica, a qual

    se assumira politicamente com a aco unificadora da monarquia visigtica, e

    culturalmente fora elevada a hino laudatrio por Isidoro de Sevilha

    Mas, tambm, por outro lado, e apesar da existncia de fronteiras polticas e

    diacrnicas, apercebemo-nos de que no houve realmente fronteiras culturais entre a

    Hispnia visigtica, o al-Andalus hispano-rabe e a Hispnia neo-goda.