apostar no fora ultima versao

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APOSTAR NO FORA, NO INTERVALO, NA EXPERIMENTAÇÃO Wenceslao M. Oliveira Jr Faculdade de Educação/Universidade Estadual de Campinas NOTA INICIAL Este material é um “documento de trabalho” para os professores do Projeto Anual com Escolas 20142015 Construções em trânsito, do Serviço Educativo da Fundação de Serralves. Constituise como um “intervalo” entre os slides projetados (em formatação centralizada) e os apontamentos lidos na conferência homônima (em formatação justificada) realizada no dia 31 de janeiro de 2015, acrescido de referências de pesquisa, bibliográficas e fílmicas (em notas de rodapé), bem como acrescido também de alguns trechos que foram suprimidos na leitura oral ou escritos nessa nova organização do material, visando aclarar algumas relações entre as diversas partes e, sobretudo, as relações entre a aposta no Fora e a aposta na escola. a. INTRODUÇÃO Agradeço à Liliana Coutinho e ao Serviço Educativo da Fundação de Serralves o convite para vir conversar com vocês, professores, sendo eu um pesquisador da área de Educação em suas interfaces com a Geografia e com a Filosofia da Diferença e a Arte e a linguagem do cinema a partir de obras de videoartistas e de vídeos amadores disponíveis na internet que foram realizados por jovens ou crianças 1 . Me propus o desafio de trazer aqui coisas que estou estudando nesse momento, portanto, coisas que ainda são um tanto nebulosas para mim e, justamente por isso, me estimulam a pensar e conversar acerca delas. Por isso, minha exposição será por fragmentos um tanto soltos... até porque estou deslocando conceitos e imagens de seus contextos iniciais, de modo a fazêlos operar (efetuar intervalos, abrir vãos) no “nosso problema comum”, a saber, mobilizar ideias e possibilidades em torno da expressão “construções em trânsito”. Inicio apresentando como eu, nesse período em Portugal, sinto a língua portuguesa como uma construção em trânsito em meu corpo (de) falante. 1 Pesquisa de Pósdoutoramento “As geografias menores nas obras em vídeo de três artistas contemporâneos”, realizado no Departamento de Geografia da UMINHO (Portugal), sob supervisão da Professora Ana Francisca de Azevedo, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e TecnológicoCNPq (Brasil), processo 200131/20141, e integrada à Rede de Pesquisa “Imagens, geografias e educação”, a qual se organiza em torno de algumas preocupações e apostas de encontrar nas imagens potências para “dar linguagem” às experiências espaciais contemporâneas vividas pelos mais novos: “Como dar às crianças e aos jovens linguagens que só comunicam e informam, sem lhes propor também que fraturem essas linguagens para poderem dizer – dizer? –, expressar o que lhes acontece com e neste espaço onde vivemos? Como permitir e incentivar essas crianças e esses jovens para que possam expressar que espaço é este onde vivem? ... uma vez que este nosso espaço está num turbilhão, em franco devir, em múltiplas metamorfoses e rotas, mais ou menos aleatórias ou previsíveis, incapaz de ser testemunhado nas linguagens que temos já dadas e conhecidas?” Quando a linguagem falta somos forçados a inventar linguagem para testemunhar o que se passa...

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  • APOSTAR NO FORA, NO INTERVALO, NA EXPERIMENTAO Wenceslao M. Oliveira Jr

    Faculdade de Educao/Universidade Estadual de Campinas

    NOTA INICIAL Este material um documento de trabalho para os professores do Projeto Anual com Escolas 2014-2015 Construes em trnsito, do Servio Educativo da Fundao de Serralves. Constitui-se como um intervalo entre os slides projetados (em formatao centralizada) e os apontamentos lidos na conferncia homnima (em formatao justificada) realizada no dia 31 de janeiro de 2015, acrescido de referncias de pesquisa, bibliogrficas e flmicas (em notas de rodap), bem como acrescido tambm de alguns trechos que foram suprimidos na leitura oral ou escritos nessa nova organizao do material, visando aclarar algumas relaes entre as diversas partes e, sobretudo, as relaes entre a aposta no Fora e a aposta na escola. a. INTRODUO Agradeo Liliana Coutinho e ao Servio Educativo da Fundao de Serralves o convite para vir conversar com vocs, professores, sendo eu um pesquisador da rea de Educao em suas interfaces com a Geografia e com a Filosofia da Diferena e a Arte e a linguagem do cinema a partir de obras de videoartistas e de vdeos amadores disponveis na internet que foram realizados por jovens ou crianas1. Me propus o desafio de trazer aqui coisas que estou estudando nesse momento, portanto, coisas que ainda so um tanto nebulosas para mim e, justamente por isso, me estimulam a pensar e conversar acerca delas. Por isso, minha exposio ser por fragmentos um tanto soltos... at porque estou deslocando conceitos e imagens de seus contextos iniciais, de modo a faz-los operar (efetuar intervalos, abrir vos) no nosso problema comum, a saber, mobilizar ideias e possibilidades em torno da expresso construes em trnsito. Inicio apresentando como eu, nesse perodo em Portugal, sinto a lngua portuguesa como uma construo em trnsito em meu corpo (de) falante. 1 Pesquisa de Ps-doutoramento As geografias menores nas obras em vdeo de trs artistas contemporneos, realizado no Departamento de Geografia da UMINHO (Portugal), sob superviso da Professora Ana Francisca de Azevedo, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico-CNPq (Brasil), processo 200131/2014-1, e integrada Rede de Pesquisa Imagens, geografias e educao, a qual se organiza em torno de algumas preocupaes e apostas de encontrar nas imagens potncias para dar linguagem s experincias espaciais contemporneas vividas pelos mais novos: Como dar s crianas e aos jovens linguagens que s comunicam e informam, sem lhes propor tambm que fraturem essas linguagens para poderem dizer dizer? , expressar o que lhes acontece com e neste espao onde vivemos? Como permitir e incentivar essas crianas e esses jovens para que possam expressar que espao este onde vivem? ... uma vez que este nosso espao est num turbilho, em franco devir, em mltiplas metamorfoses e rotas, mais ou menos aleatrias ou previsveis, incapaz de ser testemunhado nas linguagens que temos j dadas e conhecidas? Quando a linguagem falta somos forados a inventar linguagem para testemunhar o que se passa...

  • Antnio Antnio

    Se esquecermos que falamos

    brasileiro ou portugus encontraremos origens experimentais nesses dois grande blocos sonoros

    que se configuram de muitas mesmas palavras e tantas outras diferentes que,

    ao se imiscurem no bloco onde antes no existiam, fazem todo esse bloco tocar

    outras margens da lngua (o seu Fora), outros possveis modos de dizer

    Antnio2. Quando esse Antnio improvvel (mas exatamente onde estou!) se fizer linguagem, esse Fora ter se dobrado no dentro da lngua (atravs de meu corpo falante), deixando de ser seu Fora e constituindo-se em mais uma potncia de expresso daqueles que utilizam essa lngua, fazendo dela uma construo em trnsito pelos corpos e pelo espao Inicio por esta apresentao de mim mesmo, pois ela me parece, tambm, uma aposta na criao, no exerccio da vida como criao constante, como construo em trnsito quando nos abrimos ao Fora que nos afeta. Trago a vocs, resumidamente, algumas das maneiras como tenho pensado esse Fora, a partir de autores variados, alguns dos quais sero mencionados adiante. apostar no encontro com o FORA: 1. como a heterogeneidade das coisas que nos afetam todo o tempo: heterogeneidade do espao, daquilo que nos chega de fora 2. como as foras insconscientes que, de repente, se manifestam e nos tiram para fora 3. como um problema que nos leva a criar (a pensar), uma falta produtiva que leva as coisas (o espao, a linguagem, a educao) para outras margens, outras possibilidades, outras potncias 4. como aquilo que j constitui o sensvel (o mundo) no qual vivemos, mas que ainda no nos sensvel: o que excede o real dentro do real, 2 Trecho final de crnica escrita em setembro de 2014, aps o primeiro ms de minha estadia no Porto, tendo aqui chegado no dia 8 de agosto.

  • excede a experincia na prpria experincia sensvel, aquilo para o qual ainda no h linguagem para expressar Num mundo como o nosso, onde tudo parece oscilar (e oscila!) rapidamente, penso que esse Fora ainda mais constituinte da vida do dia-a-dia. Seria interessante apostar no Fora como maneira de (nos) inserir no mundo (como) foras criadoras desse mesmo mundo (foras que tornariam sensvel o ainda insensvel nas experincias)? Parece-me que apostar no Fora seria tambm apostar no intervalo e na experimentao como maneiras de conhecer e pensar, uma vez que esse nfimo (e imenso) Fora no existe (e j existe!), mas ser (!) extrado daquilo que se cria no embate mesmo entre os corpos (humanos e inumanos) e as novas experincias por eles vividas. b. ATLAS e MESA DE TRABALHO Trago a vocs duas noes operativas que me parecem potentes como aposta em um conhecimento que se faz nos intervalos, nas experimentaes com e atravs das imagens. ATLAS (como mina de paradoxos: descobertas e exploses) e MESA DE TRABALHO (como deslocamento do vertical para o horizontal; como inveno de intervalos entre as imagens; como exerccio coletivo da imaginao; como lugar das experimentaes do pensamento: criao) ABY WARBURG (historiador da arte alemo e de famlia judaica e) E GEORGES DIDI-HUBERMAN (historiador da arte francs e de famlia judaica e) Trago aqui algumas fotografias do ateli de Aby Warburg e das pranchas que constituem o atlas de imagens que ele criou. Muitas outras esto disponveis na internet e tambm em livros3.

    3 Como, por exemplo, no livro em que me amparei para essa conferncia: Atlas ou a Gaia Cincia Inquieta, de Georges Didi-Huberman (Coleo Imago, editada por KKYM, Lisboa, 2013). So deste livro todas as citaes e pginas acerca das noes de Atlas e Mesa de trabalho.

  • Georges Didi-Huberman escreve que usamos o atlas combinando dois gestos, aparentemente distintos: comeamos por abri-lo procura de uma informao concreta, mas, uma vez obtida essa informao, continuamos calcorrear as suas bifurcaes em todos os sentidos, sem podermos encerrar a coleo de pranchas seno depois de deambular durante algum tempo, de forma errtica e na ausncia de uma inteno precisa, atravs de sua floresta, do seu ddalo, do seu tesouro. At a vez seguinte, igualmente intil e fecunda. Assim se compreende, pela evocao deste uso desdobrado, paradoxal, que o atlas, sob uma aparncia utilitria e inofensiva, bem poderia revelar-se, para quem o olha com ateno, um objeto dplice, perigoso ou mesmo explosivo, ainda que inesgotavelmente generoso. Numa palavra, uma mina (p.11). Destaco na palavra mina o sentido de lugar de onde se extraem riquezas da terra e o sentido de artefato humano cujo vir-a-ser explodir e destruir quem o tocou. O atlas de Warburg introduz no saber a dimenso do sensvel, o diverso, o carter lacunar de cada imagem. Contra toda pureza esttica [de cada imagem sozinha], introduz (...) a hibridez de toda a montagem (p.12) (...) Assim, o atlas [de Warburg] faz explodir, logo partida, os limites (p.13) das imagens como prova de algo, como revelao (e contemplao) daquilo que nela est impresso. O projeto de conhecimento subjacente ao atlas visa fazer uma amostragem do caos (pois) reconhece a disperso do mundo e, ao mesmo tempo, envolve(-se), no projeto da

  • sua recolha (p.122), que distribui as imagens umas em relao s outras, mas tendo na imaginao seu operador mais importante. Isso porque a imaginao atua justamente nos intervalos entre as imagens, na cor negra (p.243) que ali se espraia, a um s tempo unindo e dispersando as imagens para outras conexes para fora daquela prancha especfica. Sendo mobilizado pela inquietude e a remontagem, o atlas de Warburg proporia um pensamento das relaes inesgotveis entre as imagens, fazendo com que as imagens deixem a condio de quadros a serem contemplados e passem a atuar como coisas sobre uma mesa de trabalho. Saem do vertical da parede e horizontalizam-se sobre o objeto simples e cotidiano da mesa, em volta do qual os humanos se renem, trabalham e se alimentam. Sobre a mesa de trabalho deixamos de ser somente olhos, uma vez que as imagens ali dispostas nos exigem todo o corpo mos e tronco para mover as imagens entre si, ps e pernas para ir em busca de outras imagens, ouvidos para escutar as proposies dos outros ao redor da mesa comum, boca para..., corao para..., fgados para... pois tudo ali passageiro, disperso e aberto. A mesa mais no do que o suporte de um trabalho que pode ser continuamente retomado, modificado, seno mesmo recomeado. apenas uma superfcie de encontros e de disposies passageiras: nela se coloca e dela se tira, alternadamente, tudo quanto o seu plano de trabalho (...) acolhe sem hierarquia. A unicidade do quadro d lugar, numa mesa, abertura contnua de novas possibilidades, novos encontros, novas multiplicidades, novas configuraes (p.18). A mesa de trabalho organiza-se em torno da noo operatria do intervalo. na criao de intervalos entre imagens que esse tipo de conhecimento pode advir ao trazer para o centro do pensamento a inquietao (com e na disperso do mundo), a imaginao (como exigncia) e as remontagens (como possibilidades sempre abertas). Mas se Warburg e Didi-Huberman operam com as imagens e com os conceitos de Atlas e Mesa de trabalho na busca do que ver a ser o tempo?, em minhas pesquisas busco o que vem a ser o espao?. Como tal, trago a vocs uma obra de cinema que se configura, ao meu ver, como um atlas de imagens e opera como mesa de trabalho na busca do que vem a ser (a) cidade? e tambm opera na busca do que vem a ser (o) cinema (documentrio)?. c. ESPAO e CINEMA Dando incio esta parte, antes de vermos um pequeno trecho inicial do filme Acidente4, gostaria de lhes mostrar duas coisas desse mesmo filme que, de certa maneira, se ligam ao atlas e mesa de trabalho: 1. A cor azul operando de forma semelhante cor negra nas pranchas do atlas de Warburg, mas inserindo a mais um elemento no intervalo entre as imagens.

    4 Acidente. Cao Guimares e Pablo Lobato. DOCTV (Ministrio da Cultura). Brasil, 2005. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=iogTRiK5V_Q

  • Distinto do atlas de Warburg (onde a cor negra anuncia um vazio-cheio a ser percorrido pela imaginao), a cor azul nas imagens da cidade chamada TOMBOS o signo que une e separa o atlas das imagens de uma dessa cidade e tambm o cu documental, emprico, que havia sobre aquela cidade no momento das filmagens. Ao ser tomada tambm como esse algo (o vazio-cheio) que liga as diversas imagens (e as demais formas urbanas que nelas aparecem nos cantos), a cor azul escapa do sentido nico de cu, de coisa emprica, e passa tambm a incorporar outros sentidos, como, por exemplo, desse algo que faz tudo girar ou ficar parado somente nos ngulos ou nas bordas do quadro, nunca ao centro dele. Azul como intervalo e no s como coisa em si (cu). Talvez pudssemos dizer, um puro azul, aberto a mltiplos sentidos e sem sentidos porque nenhum sentido se fixa e paralisa a imaginao que percorre essa cor... 2. O poema que atravessa o filme desde seu incio como cinema at suas reverberaes em cada espectador, sendo tambm o intervalo operador das prprias filmagens e da montagem final, conforme se pode ler no resumo do filme presente no site de Cao Guimares: Um poema composto por 20 nomes de cidades de Minas Gerais, Brasil, o corpo rtmico deste filme, que se abre ao imprevisto e ao improviso. Instigados pelos nomes destas cidades, a equipe percorre por uma primeira vez cada uma delas. Num movimento de imerso e submerso, o filme se faz atravs de duas camadas narrativas - uma formada pela histria do poema e outra pelos eventos ordinrios que surgem acidentalmente diante da cmera em cada uma das cidades. Percepo aberta para deixar-se mesclar ao cotidiano de cada lugar e atenta para eleger um acontecimento qualquer, possvel de se relacionar com o poema e capaz de revelar o quanto a vida imprevisvel e acidental.5

    5 Disponvel em: http://www.caoguimaraes.com/obra/acidente/

  • Vamos, ento, assistir ao trecho inicial do filme Acidente (0:19 a 3:00). Na primeira parte destes pouco menos de trs minutos teremos a apresentao sonoro-visual das vinte cidades, feita a partir dos vinte mapas municipais acompanhados por vinte sons diferentes finalizados pela indicao do conjunto geogrfico a que se referem aqueles signos brancos em tela negra: 20 CIDADES MG-BRASIL. Cada um deles reaparecer ao longo do filme acompanhado do nome da cidade a que se refere, na ordem indicada pelo poema. Logo a seguir, reaparecer o primeiro dos signos com seu nome: HELIODORA. No bloco de imagens e sons desta cidade veremos cenas captadas numa noite de fortes relmpagos e sem iluminao eltrica dos postes urbanos. Somente a luz dos relmpagos e os faris dos automveis iluminam as imagens: iluminao acidental e movente que faz circular pelo quadro sombras e negrumes que se movem, mesmo estando imveis na paisagem filmada. Em seguida, sob a luz de uma vela, entra em quadro a primeira personagem humana do filme: um homem gay, todo maquiado, caminha at a casa onde vive enquanto fala da (im)possibilidades do amor homossexual. O prximo bloco de imagens e sons ser o da cidade de VIRGEM DA LAPA, a qual, no poema, torna-se codinome de HELIODORA, dobrando a primeira cidade sobre a segunda e vice-versa, as quais, conjuntamente se espraiaro por todo o poema (e filme) na histria de amor (im)possvel que ele nos conta no entre linhas e entrelinhas e imagens e sons e cortes e nomes e sequncias e sentidos e sem sentidos e... que grudam e escapam do filme. Qual poltica de pensamento (conhecimento) estaria posta em Acidente? Fazer do espao uma mesa de trabalho na qual se misturam diversas experincias na montagem de uma obra que faz oscilar cada tipo de experincia espacial com a cidade, provocando muito mais intervalos entre elas que concluses acerca delas,

  • ao torna-las no s intercambiveis entre si, mas cambiveis a tornarem-se poema, dobradas pela escrita a meras ilustraes brincalhonas, poticas, doridas, de um amor vivido intensamente, mas to brutalmente reprimido que nem mesmo na memria suas marcas se mantiveram. O filme ir terminar ao som da cadeira de balano onde estivera uma velha senhora que (no) se lembra mais das DORES DE CAMPOS. E isso nos indica que, talvez, ele nos coloque diante de uma situao de exlio, de abandono tal, que o testemunho em palavras impossvel, porque ali a linguagem falta porque a experincia vivida foi to intensa que nunca se fez palavra. O poema6 constitui-se como algo que flutua sobre as imagens e sons, tendo sido o artifcio para o prprio processo de captar e editar essas imagens e sons. No entanto, ao mesmo tempo, o poema mantm-se abstrato ao filme, fora dele, escapa do filme e, justamente por isso, faz oscilar os sentidos das imagens entre aqueles que se ligam ao poema e aqueles sentidos que se ligam ao espao do lugar ou mesmo ao nome do lugar, impedindo que esses sentidos se estabilizem, provocando uma variao contnua neles, fazendo com que os sentidos sejam tambm sem sentidos: HELIODORA a virgem do poema ou o homem gay ou o nome da cidade? Melhor pensar que Heliodora tudo isso, a virgem do poema e o homem gay e o nome da cidade e aquela escurido iluminada somente pelos raios e luzes dos automveis e a dor de um amor no vivido e tantos outros sentidos que se desdobram no intervalo criado entre o poema e as imagens do filme. Pois os sentidos de cada uma dessas cidades esto sempre a escapar de algum sentido que se queira estvel, uma vez que no intervalo entre poema e cidade que eles se constituem. E se constituem como sentidos oscilantes, instveis, variantes. Espao e cinema fazem-se outros ao serem atravessados por esse poema escrito em tela, tocam o seu Fora, dobrando sobre si novas potncias, ampliando-se como coisas, dimenses do mundo sempre em construo. Nos slides que se seguem trago alguns conceitos e autores7 que operam em meus percursos de pensamento, em minha mesa de trabalho da pesquisa e em meu atlas de imagens. 6 Nesse poema, se verdade que a posio da escrita foi mantida em seu lugar habitual esquerda, tambm verdadeiro que as letras desviam-se do habitual e aparecem somente em maisculas, rasurando o sentido de nome prprio que tem nas cidades e mergulhando nos mais flexveis e variveis sentidos adverbiais, substantivos e adjetivos. Juntando-se a isto a ausncia de pontuao, a escrita potica ganha fora e arrasta consigo a escrita mais informativa dos nomes das cidades para outras paragens, outras conexes, sobretudo com as imagens e sons do filme, mas tambm para as tantas outras imagens e sons de cidades, sejam aquelas grafadas ali, sejam quaisquer outras, cujos nomes j oscilam em ns, em derivas poticas: rio de janeiro (a janeiro e)/so paulo(!)/salvador (de minha) vitria/(mantenha-me) fortaleza/(para chegar ao) porto velho (e) alegre/(e rever seu) belo horizonte. Os nomes das cidades como matria-prima de poemas... a lngua escrita em deriva, em novas potencias ao incorporar mais um fora em seu dentro. 7 ALBET, A.; BENACH, N. Doreen Massey un sentido global del lugar. Barcelona: Editorial Icaria, 2012. DELEUZE, G. Crtica e clnica. So Paulo: Editora 34, 1997. DELEUZE, G. Francis Bacon Lgica da sensao. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. DELEUZE, G e GUATTARI, F. Kafka para uma literatura menor. Lisboa: Assrio e Alvim, 2003. DELEUZE, G. Lgica do sentido. So Paulo: Perspectiva, 2011. DELEUZE G. e GUATTARI, F. Mil plats capitalismo e esquizofrenia. V. 5. So Paulo: Editora 34, 1997. GIL, J. A imagem nua e as pequenas percepes. Lisboa: Relgio Dgua, 2005. MASSEY, D. Pelo espao uma nova poltica da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

  • O ESPAO8 COMO FORA Espao como todas as trajetrias heterogneas e coetneas que nos chegam e nos interpelam, nos colocam diante de certas experincias que nos desestabilizam (DOREEN MASSEY; gegrafa inglesa e com trabalhos desenvolvidos na Amrica Latina: Mxico e Guatemala e Venezuela e...) e nos foram a pensar (a criar) outras maneiras de estar no mundo (DELEUZE E GUATTARI; filsofo e psiclogo e... franceses e...). Espao como aquilo que nos impede de viver somente com aquilo e aqueles que nos so reconhecveis e amados. Espao, portanto, como a inevitvel diferena que nos afeta de mltiplas maneiras, conscientes e inconscientes (pequenas percepes JOS GIL; filsofo portugus e francs e nascido em Moambique e...). Num espao como o nosso, onde o novo se apresenta a cada esquina e a cada clique, preciso inventar a linguagem a cada novo acontecimento para que se abra nela um novo possvel onde possa emergir o testemunho (EUGNIA VILELA; filsofa portuguesa e com trabalhos desenvolvidos na frica e) dos muitos acontecimentos e experincias que se apresentam como indizveis de to novos que so. nesse sentido que preciso investir contra a linguagem em busca de faz-la outra para expressar este indizvel, ainda que saibamos que este testemunho dado no nos dir o fato, mas sim a sua reverberao no corpo que testemunha, em linguagem, o acontecimento. Cada testemunho um ato inaugural na e da linguagem, pois abre a linguagem ao seu Fora O Fora no sendo o fato, mas aquilo que nos afeta a partir dele. No propriamente a experincia que dele tivemos, mas justamente aquilo que dela escapa, VILELA, E. Silncios tangveis corpo, resistncia e testemunho nos espaos contemporneos de abandono. Porto: Edies Afrontamento, 2010. 8 Para Doreen Massey, uma das potencialidades do espao a justaposio circunstancial de trajetrias previamente no conectadas [criadora de um] estar juntos [...] no-coordenado (Massey, 2008, p.143). O espao, portanto, no , de forma alguma, uma superfcie (idem, p.160), mas sim a esfera da coexistncia de uma multiplicidade de trajetrias (idem, p.100) humanas e no-humanas, uma simultaneidade de estrias-at-agora (idem, p.29) que envolve contato e alguma forma de negociao social (idem, p.143). O espao uma eventualidade (idem, p.89), um produto contnuo de interconexes e no-conexes [...] sempre inacabado e aberto (p.160), estando, portanto, sempre em construo (idem, p.29). O espao o entrelaamento de trajetrias em curso, das quais algo novo pode emergir. O movimento, o encontro e a construo das relaes entre as trajetrias levam tempo (idem, p. 138). O espao como devires coetneos (idem, p.267) implica o inesperado (idem, p.165).

  • que excede prpria experincia como algo dizvel, reconhecvel, para a qual j se teria linguagem. nesse sentido que podemos dizer que o Fora o que atravessa os corpos expostos a uma nova experincia, fazendo com que O DENTRO seja a DOBRA DO FORA Errar antes no espao que no tempo. Errante e no errado. E errante aquele que deixa-se ir no terreno, no que ainda no humano e humanizado, aquele que encontra-se em trnsito, que encontra-se antes do construdo, antes da casa. Eu no quero essa casa (...) quero o mais difcil: quero o terreno9, escreveu CLARICE LISPECTOR (escritora brasileira e de famlia judaica e nascida na Ucrnia e...). Se assim o fizermos estaremos nas proximidades da natureza (das foras inconscientes, no reconhecveis), daquilo que ainda inexpressivo, mas que, ao nos afetar, exige expressar-se atravs de ns: manifestar o inexpressivo criar, pois quando a arte boa porque tocou no inexpressivo, a pior arte a expressiva, aquela que transgride o pedao de ferro e o pedao de vidro, e o sorriso, e o grito10 (CLARICE LISPECTOR) d. A LINGUAGEM QUE FALTA Trago a vocs agora alguns exemplos da escrita, onde busco apontar a falta de linguagem como potncia para os encontros com o Fora. num escrito11 de FERNANDO PESSOA (poeta portugus, crescido na frica do Sul e adorado no Brasil e...), est escrito: Eu direi aquela rapaz, violando a mais elementar das regras da gramtica, que manda que haja concordncia de gnero, como de nmero, entre a voz substantiva e a adjetiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma e da quotidianidade. No terei falado: terei dito. 9 LISPECTOR, C. Mineirinho (conto). Disponvel em: http://contobrasileiro.com.br/?tag=mineirinho-clarice-lispector 10 LISPECTOR, C. A paixo segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 11 Fragmento 84 do Livro do desassossego (Bernardo Soares).

  • O que Pessoa nos aponta que dizer construir algo e que construir algo colocar aquilo que j existe em trnsito. Ele, ao fugir da chateza, da norma e da quotidianidade da lngua, no s expressou aquilo que ele, como sujeito de uma forma de falar, gostaria, mas fez, sobretudo, a prpria lngua vivificar-se, a prpria lngua portuguesa ganhou outras margens onde todas as demais pessoas podem banhar-se, ampliando assim tambm as suas possibilidades de expresso. O FORA tambm aquilo que se coloca como problema12: problema como aquilo que nos impulsiona a criar

    (a pensar) Como fazer a lngua escapar das marcas heteronormativas ou masculinas na linguagem cotidiana? O Acordo Queerogrfico, publicado em 2014 numa revista de Coimbra, indica, por exemplo, trs possibilidades de escapar dos gneros e provocar certos desmoronamentos na lngua comum: 1. escrever com um x no lugar do a ou do o que indicariam feminino e masculino: alunxs e professorxs; 2. escrever ora no masculino ora no feminino num mesmo texto, de forma que os professores do incio tornem-se as professoras no meio; 3. escrever na tenso da prpria conjugao de gnero: os professoras, as pssaros. Em outras palavras, tanto no poema de Fernando Pessoas quanto no problema que move o Acordo Queerogrfico13, na falta de linguagem que a linguagem foi forada a outras possibilidades e desta forma ganhou vida. Descubramos, portanto, onde a linguagem falta14. Penso que so os corpos jovens os que mais vibram nestas experincias novas para as quais a linguagem falta15. Ao tentarem dizer disso que lhes passa e lhes 12 Lembrando que o que conhecido habitual, e o habitual o mais difcil de conhecer, isto , de ver como problema, isto , de ver como estranho, afastado, fora de ns. (Friedrich Nietzsche, em A gaia cincia, p.73. Edio da Companhia das Letras, 2001) 13 O Acordo Queerogrfico foi publicado no nmero sobre Epistemologias Feministas do e-cadernos, uma publicao do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (http://eces.revues.org/1539). 14 Apenas como nota de passagem, buscando criar algumas conexes entre os fragmentos que lhes estou apresentando, interessante notar que Didi-Huberman escreve que, para Warburg, o atlas de imagens era um aparelho para recolocar o pensamento em movimento, precisamente onde a histria se havia detido, precisamente onde as palavras ainda falhavam (p.20). 15 Quando aqui cheguei me disseram que os jovens portugueses ouvem muita msica brasileira recente e que dela tiravam muitas palavras e expresses em seu falar, experimentavam, por assim dizer, uma outra lngua na sua lngua. Parece-me que isso poderia ser tomado como um indicativo de que a lngua na qual esses jovens cresceram no lhes tem permitido dizer (no sentido dado por Fernando Pessoa de ter dito, a despeito da lngua), no lhes tem permitido dizer dar expresso quilo que se passa em seus corpos nas relaes que estabelecem com o mundo no qual vivem. Em

  • acontece, gaguejam, titubeiam, usam onomatopeias ou palavras muito gerais. Ao serem colocados diante do impossvel, da impossibilidade de expressarem o que lhes passa, esses corpos-jovens so forados a ir contra a prpria linguagem ao nela inserirem essas gagueiras, o que implica fraturas na linguagem, oscilaes que so, elas mesmas, buscas de uma nova linguagem. Ao fazerem isso a linguagem que est sendo ampliada em suas margens. Ser que eles encontrariam nas imagens formas para expressar o que lhes passa? E dessa maneira tambm no encontraramos maneiras de fazer com que as prprias imagens (e o espao nelas criado) encontrassem o seu Fora, vivificando-se? Da fazer a pergunta que lhes trago no prximo slide: Como fazer escapar as imagens de suas funes exclusivamente informativas, figurativas, ilustrativas? Experimentaes em vdeo que intensificam a dimenso criadora (mais que criativa) do Fora, daquilo que antes da experimentao realizada na obra em vdeo ainda no era vdeo (porque na obra se inventa um outro tipo de imagem) e nem vida para alm do vdeo (no e do espao, como algo aberto, como uma construo em trnsito, pelas e nas linguagens e obras) porque na obra se habitou o espao de outra maneira, em outro estilo (ANA GODINHO; filsofa portuguesa e nascida em Portugal e) Para lidar com o problema apontado na pergunta aqui posta s imagens, trago trs exemplos, dois deles extrados de vdeos de artistas e um de um vdeo realizado por meninos de zona rural. Os trs vdeos extraem potncias outras das imagens que as fazem escapar das funes meramente informativas, figurativas, ilustrativas (ainda que mantendo-se tambm nessas funes: ampliao de potncia por rasuras, fraturas, fugas e no por negao ou superao). 1. As cidades de FERROS e PALMA no filme Acidente (20:30 a 24:06) de Cao Guimares (artista brasileiro e que viveu muitos anos em Londres e...) Nestes dois blocos de imagens e sons presentes no filme, o cinema no mais se coloca como aquilo que captura o real e diz sobre ele, mas como algo que o configura, nele age e inventa imagens e sons compondo esse real. Imagem e paisagem no se opem, nem se distanciam, mas sim se co-constituem mutuamente, sendo uma o intervalo da outra, onde novos devires so experimentados no encontro entre cinema e espao, entre paisagem e imagem: verdadeiras geografias intervalares. outras palavras, parece-me que esses jovens daqui encontram nas msicas de l aquilo que poderamos chamar de fora da linguagem, algo que ainda no linguagem, mas j tem elementos que expressam o sensvel vivido por eles.

  • Na cidade de FERROS h somente duas cenas, nas quais o movimento de subir (no pau de sebo) e descer (no salto para o rio) que se apresenta. Mas se o subir est visvel no quadro (e composto por um misto de sensaes de alegria que nos chega via msica e de angstia/expectativa/torcida que nos chega do esforo do menino para alcanar o topo do pau), o descer encontra-se, em ambas as cenas, fora do quadro, invisvel na imagem na primeira cena (o menino escorrega para fora para baixo do quadro flmico) e invisvel na paisagem na segunda cena (o menino mergulha para fora do visvel ao mergulhar no rio). Em que espao se sobe e desce, se escorrega e mergulha? No espao que se faz no entre no intervalo imagem e paisagem, dobrando uma sobre a outra indefinidamente, metamorfoseando-as e forando metamorfoses em nossas percepes e relaes com as imagens e o cinema. A cidade de PALMA apresenta algo a que o realizador do filme diz de seu cinema: uma tela onde o gro da pelcula de super-8 t explodindo o tempo inteiro, j algo acontece a. Existe aquela coisa qumica do gro do super-8 que voc v naquele gro. Aquilo... se voc filmar o nada com aquilo j alguma coisa16. Esse aquilo a imagem, o desfazimento do referente, da paisagem, o fazer-se imagem, a imagem que dobra-se na paisagem, excede o real contemporneo ao constitu-lo atravs imagem. Olhamos as paisagens de Palma atravs das imagens e esse excesso, esses gros quase invisveis que nos afetam inconscientemente que iro compor o vir a ser do olhar que daremos quela cidade e tambm ao mundo para alm dela caso tomemos essa maneira de olhar que o cinema de Cao Guimares nos d para compor outras formas de mirar qualquer paisagem. Posso dizer, ento, que as estratgias de estilo desse artista foram o espectador a ficar no filme, mais que isso, a ficar na imagem, a deter-se a, a prestar ateno e reparar no exatamente na forma em que a imagem se apresenta, mas nas foras que emergem junto aos materiais e formas singulares que configuram a imagem. Foras que s sentimos como efeito sobre nossos corpos, portanto, no visveis na imagem, mas sensveis atravs dela. 2. O curta-metragem A bola17, de Orlando Mesquita (Artista moambicano e que estudou cinema em Cuba e...) Neste, como em outros vdeos como Rodas de rua, o artista toma como personagens principais crianas que inventam coisas a partir do que encontram na heterogeneidade do espao onde vivem. No vdeo A bola a inveno se far necessria, uma vez que a bola com que jogavam futebol foi levada embora quando o dono da mesma foi retirado de campo pelo seu responsvel. As demais crianas que ficam precisam inventar outra bola e, por isso, comeam a reparar no que h a volta e, com inusitados materiais, criam uma bola que ir reiniciar o jogo. Por sua vez, o prprio vdeo ambguo o suficiente para deixarmo-nos na dvida se a bola que foi retirada de campo j no era a mesma que foi recriada durante o vdeo. Onde seria, enfim, o incio da inveno? O vdeo parece nos dizer: no h incio, sempre e sempre inveno de uma coisa tornada outra pressionada pela necessidade e possibilitada pelos materiais disponveis... 16 Entrevista Ver uma fbula, com Cao Guimares, disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=n88Ieqcy1Rw 17 Disponvel em: http://ma-schamba.com/738413.html

  • 3. O pequeno vdeo de menos de um minuto realizado por crianas brasileiras e americanizadas e inventoras de outros parangols e outros tipos de vdeos e...18 Nesse vdeo escutamos a msica Crazy in love, de Beyonc, ser dublada por um menino vestido apenas com uma capa de plstico preto, material colorido e flexvel como os tecidos utilizados por Hlio Oiticica (artista brasileiro que viveu sua segunda infncia nos Estados Unidos e que teve grande insero nas comunidades afroamericanas e) quando criou os parangols.

    O espao, como aquilo que (nos) chega de fora, se coloca desde o incio do processo de criao dos parangols. Na Wikipdia19 l-se que A visita ao Morro da Mangueira (...) colocou Hlio Oiticica em contato com o xtase do samba, com seus ritmos dionisacos e com uma comunidade organizada em torno da criao. (...) A partir da experincia com a dana, surge o parangol, nome que Oiticica encontra em uma placa que identificava um abrigo improvisado, construdo por um mendigo na rua, na qual se lia 'Aqui o Parangol'." Novamente o espao, como 18 Disponvel em: https://www.facebook.com/video.php?v=422301101260579&pnref=story 19 Disponvel em: http://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%A9lio_Oiticica

  • algo atravessado tambm pela palavra, afeta o artista que o desdobra nos corpos humanos. Da dobra efetivada pelo inusitado (porque heterogneo) encontrado no espao, o artista desdobra sentidos que o abrigo improvisado, feito com os materiais que o mendigo havia encontrado no acaso de sua deambulao pela cidade, gruda nas cores e formatos variados dos tecidos, bem como gruda na variedade finita de corpos que os vestiro. Na reverberao dessas duas variaes (o entre criado por tecidos e corpos) um infinito de possibilidades, pois os parangols so obras que s se efetivam em sua existncia artstica quando so vestidos, fazendo com que tanto o corpo quanto a obra sofram metamorfoses, j que cada corpo diferente e desdobrar da vestimenta gestos diferentes. Notar que os panos coloridos no so a obra. Essa se d no que faz emergir no e do corpo, visual e gestualmente, que, ao mesmo tempo, faz emergir movimentos e transparncias nos panos coloridos. Corpos e panos se metamorfoseiam pelo contato, contagiando-se mutuamente. Os parangols, portanto, so obras sempre em construo, abertas, em trnsito pelos corpos e gestos que aqueles panos coloridos vestem e desvestem... Mas o que quero chamar ateno neste ltimo vdeo , sobretudo, para a falta como potncia de criao de linguagem e de mundos (outros possveis que se desdobram do impossvel). Se as roupas dos dolos pops cantores, atores, jogadores de futebol, modelos so objetos que criam formas de subjetivao prontas, ou seja, agem como modelos sobre nossos corpos e gostos, a falta da possibilidade de ter essas roupas na zona rural pobre se efetiva nesse menino como criao na prpria repetio que ele tenta fazer. So os materiais que se negam a repetir, so eles que foram o corpo do menino a realizar outros gestos que no os da cantora. novamente o Fora, o que se cola no corpo, se conecta a ele e o desdobra em inveno. Tambm os materiais ganham vida, so significados e usados de outras maneiras ao entrarem em novas relaes com os corpos e os demais materiais. Tijolos viram sapatos, pedao de plstico usado para cobrir materiais de construo vira calda de vestido. E esses materiais, por serem pesados, ao invs de liberarem o corpo do menino para mimetizar a dana rpida da cantora, o aprisionam em gestos lentos (nas pernas) e rpidos (no tronco e braos), gestos trpegos, confusos, titubeantes que levam a dana a gaguejar e, justo a, a dana inventa-se como outra coisa aqueles novos gestos poderiam vir a compor coreografias cada vez mais elaboradas... INSERIR IMAGEM OU IMAGENS DO VDEO Tudo ali se vivifica. Todo o conjunto de materiais, corpos e signos que ali circulam, contagiam-se de outras possibilidades, como a do riso do menino que dana e tambm daquele que filma. Sim, porque o incio do vdeo, com a pose performtica (uma verdadeira parada dramtica) do danarino-Beyonc, indica que pensaram o vdeo na mimetizao dos clipes e produtos televisivos, com todos os tempos e gestos pensados para comear e terminar em sintonia com o tempo do vdeo. O riso deste vdeo to criador que fora o vdeo a terminar antes da msica e em meio aos movimentos (de retirada do palco de terra batida) do personagem que dublava. Um fiasco enquanto mimetizao, uma potncia enquanto criao se nos atentarmos para aquilo que pode ser extrado do que foi impossvel.

  • Foi tambm ao lidarem com o impossvel (conseguir os materiais como os da cantora) que fez esses meninos criarem (outros possveis) com o que havia ali, na heterogeneidade do espao a afetar seus corpos: restos de construo, materiais soltos, dispersos, sem uso naquele momento, sem utilidade, sem funo qualquer e, por isso mesmo, livres para serem recombinados na mesa de trabalho do desejo daqueles meninos. Esses meninos criaram ao tomar uma coisa da prpria cultura de massa como material sobre o qual impuseram mnimas variaes e desvios20; esses meninos agiram com vontade de arte e apontaram a vida mais comum e cotidiana como uma construo em trnsito, mesmo em meio a todas as formas de captura da sociedade massificada. Para finalizar esta penltima parte, fao minhas a pergunta e a resposta de Ana Godinho. porque a arte, cada vez mais, deve ligar-se nossa vida quotidiana? Para nos salvar (...) da reproduo acelerada de objectos de consumo, arrancar a esta vida uma pequena diferena, introduzindo a mais estranha seleco, (...) um estilhaamento21, para que outras combinaes possam existir nos atlas de imagens que todos vamos agrupando em nossas mesas de trabalho (pensamento). e. A POTNCIA (DO FORA) DA ESCOLA No seria a criao de atlas uma estranha seleo e um estilhaamento onde operaramos como em mesas de trabalho, de maneira a fazer emergir, talvez, essas pequenas diferenas que atravessam esses vrios Fora aqui elencados (como espao, como dentro, como problema, como excesso)? Se as expresses das crianas e dos jovens forem realizadas maneira dos atlas de Warburg, onde os intervalos atuam como fora de pensamento (e criao), algo dessas foras do Fora poderia vir a tornar-se sensvel nas conexes improvveis entre um pedao de ferro, um pedao de parede, um sorriso e um grito? Viriam ali circular sentidos e sem sentidos que, uma vez vibrados num corpo poderiam emergir em alguma obra (de arte)? Se certo que a escola seja uma das instituies que fazem parte da massificao da sociedade (ainda que no via consumo de mercadorias, mas sim do consumo de informaes necessrias), tambm certo que h nela a maior fora de experimentao que nossa sociedade possui, uma vez que ali onde a maior parte dos encontros, dos contatos e dos contgios entre crianas e jovens se d. E, num mundo to pleno de novidades como o nosso, so os corpos deles os mais sensveis a captar, nesses encontros, as inquietaes e possibilidades desse Fora que nos atravessa. Importante lembrar que, nas ltimas dcadas, temos assistido, com certa conformidade e mesmo certo conformismo, implementao de um modelo educacional praticamente nico a ser seguido por todos os lugares e povos do mundo, a ponto de poder haver sistemas universais de avaliao do desempenho 20 O irrisrio, talvez pequeno demais, condio para fazer aparecer essa coisa singular, que ousa sem mais nem porqu. Ana Godinho, As probabilidades desiguais de Francis Bacon, Revista Poisis, n. 20. 2012, p. 51. Disponvel em: www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis20/04.pdf 21 Na pgina 128 do livro Linhas do estilo esttica e ontologia em Gilles Deleuze, de Ana Godinho (editado pela Relgio Dgua, 2007).

  • de alunos e professores dentro desse modelo. Sem dvida, essa uma macropoltica poderosa que conforma os sistemas educativos e as prticas educativas ao redor do planeta, tendo como efeito mais pernicioso o abandono quase absoluto de processos singulares que visariam inventar a educao no prprio cotidiano da escola. Tal modelo vem aprisionando-nos professores e alunos s prticas ditadas como aquilo que se deve fazer (e que uma quantidade incomensurvel de coisas) de modo a nos impedir de pensar e inventar o que se pode fazer numa escola especfica, num contexto singular (como, afinal, so todos os contextos). Perde-se a as prticas de escuta das experincias que esto sendo vivenciadas (e, claro, de tudo que as excede), uma vez que estamos sempre por demais ocupados e preocupados (quando no acuados) em realizar aquilo que j est prescrito como inevitvel, inexorvel (consequentemente necessrio) para que faamos o futuro de nossas crianas e jovens o melhor possvel. Ao fazer isso retiramos delas e deles justamente o futuro, pois que, seguindo Hannah Arendt22, o futuro (a ser efetivado pelos que chegam ao mundo) sempre algo distinto do que ns, os que j estamos no mundo, pensamos ser. Mas se no permitimos que o novo aparea, se impedimos aos que chegam ao mundo pautas para o futuro, estamos sim conformando o futuro desses jovens e crianas conforme nos dizem, no presente, que ele ser, ou seja, fazendo do futuro uma previso do presente e no um tempo aberto a ser inventado pelos que nele vivero. Penso que negar esse grande modelo educacional no nos levaria a combate-lo. Acredito que o combate a ele seria (ser) tanto mais forte se e quando conseguimos efetivar fraturas nele mesmo, fazendo-o desmoronar por dentro, tornar-se insustentvel nele prprio a partir de aes variadas e, sobretudo, cotidianas. Da apostar no plano da micropoltica como local de combate. Combate que visa rasurar, esburacar, fraturar, fazer gaguejar as coisas que sustentam o modelo, como, por exemplo, o sentido meramente informativo, figurativo e ilustrativo das imagens presentes nas escolas, uma vez que isso as coloca na condio somente de provas e documentos que confirmam as informaes necessrias que o modelo educacional busca estabelecer a todos, impedindo que elas, as imagens, ganhem tambm a potncia de linguagem com a qual expressar o que se passa nas experincias e, talvez, dar expresso ao Fora que tambm as constitui, s foras que atuam nas experincias como seu excesso que pede passagem para vir a configurar um novo sensvel, um novo mundo. Isso um tanto perigoso. H enormes riscos, pessoais e institucionais, que corremos ao optar por deslocarmos o currculo para o lugar de algo que est em vias de se fazer, como uma construo em trnsito, como aquilo que se configura a partir das possibilidades, das experimentaes, das perguntas que fazemos, dos problemas que decidimos enfrentar, dos combates que estabelecemos com as experincias das crianas e jovens. Cabe aqui aclarar que esses combates so com e no contra algo. Combates como aquilo que afirmamos e no aquilo que negamos. Combater pela possibilidade de dar ouvidos ao que se passa nos corpos das crianas e jovens , me parece, sobretudo criar escutas s experincias novas com as quais eles se debatem no seu dia-a-dia contemporneo. Escutar o que se coloca para eles como problema ainda sem expresso ou com expresso oscilante. E no devemos buscar escapar da oscilao, mas sim encontrar maneiras corpos, linguagens, materiais... para inserirmo-nos nessa oscilao, tomando a oscilao como o problema e o problema como aquilo que nos impulsiona a criar e a pensar. 22 No ensaio Crise da educao, presente no livro Entre o passado e o futuro, editado pela Perspectiva, 1979.

  • Essa oscilao s se torna(r) um problema no sentido daquilo que nos impede de agir e pensar e sentir quando buscarmos nega-la como territrio possvel onde existir, o que leva(r) a buscarmos territrios fixos onde todas as respostas j esto dadas. Parece-me ser isso o que fazemos, por exemplo, em uma escola-educao onde ns professores j sabemos tudo o que devemos fazer e pensar e ensinar e informar. No entanto, tambm sabemos ns, professores que sabemos muito pouco do que podemos fazer ali com os nossos alunos e com o que h na escola singular onde trabalhamos. Mas caberia perguntar: quando e de que maneiras seria possvel (e potente) partir dessas prticas de escuta dos jovens e crianas para conseguir atuar na mobilizao delas, arregimentar conhecimentos e informaes e materiais e imagens (criar atlas!), inventar mtodos e ritmos e espaos para reunir a disperso de coisas, de maneira aleatria, aos problemas elencados nas falas e gaguejos dos alunos? E insistir tambm em provocar desvios (tenses e problematizaes) onde as escutas apontarem para respostas prontas ou falas submetidas aos jarges da cultura (mdias, famlia, igreja, escola, nacionalismos, clubes masculinos e femininos...), pois essas falas prontas e jarges (clichs!) paralisam-nos para pensar o impensado, pensar o novo que pode advir das experimentaes e remontagens entre os materiais e falas e informaes e... nos intervalos que se fizerem sentir quando algum problema da vida contempornea ali se colocar com intensidade. Que esse monte de coisas (materiais, ideias, questes, tensionamentos...) seja trazido para a escola (para as atividades escolares) como para uma mesa de trabalho, tomada como um local comum onde se dispem e recolhem heterogeneidades e encontra-se (pensa-se, cria-se) relaes mltiplas entre elas. Escola como um espao onde o conhecimento proliferante em torno do que j h nela mesma. Seria possvel (n)a escola inventar maneiras de lidar com o que j h, deixando de lado aquela sensao de falta como aquilo que aprisiona os corpos e desejos na busca do que ainda no h e apostar nessa outra falta na falta de linguagem para expressar as novas experincias? Pois essa outra falta sim um excesso, esse excesso que constitui o Fora que j nos configura porque nos afeta, mesmo que dele ainda s sintamos seus efeitos, aqueles que nos chegam das pequenas percepes inconscientes23. Apostar no que se cria na falta e no no que se lamenta nela. Se a bola de futebol est furada e no h dinheiro para comprar outra, inventemos um jogo em que a bola usada assim, furada e muxibenta, e, para isso, ser necessrio criarmos outras regras, outros gestos, outros tempos, outros ritmos para jogar. Outros corpos (humanos e inumanos) viro a configurar-se no encontro, no intervalo entre o que h e que vir a existir na experimentao disso que h. Ser necessrio exigir pensamento, ser necessrio pensar de fato (criar!), com intensidade, para que a partir da falta a vida se vivifique ali. 23 Para Jos Gil, as pequenas percepes ultrapassam mesmo a percepo trivial, pois no se do mais como simplesmente cognitivas ou unicamente sensoriais. Trata-se agora de uma percepo de foras e no somente das formas. A atmosfera formada pelas pequenas percepes torna-se um meio que impregna imediatamente os corpos, dissipando as fronteiras entre os corpos e as coisas, tornando o interior coextensivo ao exterior, como se o espao do corpo se dilatasse, prolongando seus limites num campo onde h afeco, e possveis metamorfoses, mtuas entre homem e mundo.

  • Apostar, portanto, nessa outra falta uma maneira de prestar ateno ao Fora tomando-o como o que j h , insistir em reparar naquilo que j est a, no espao e no dentro, para que estejamos sensveis s foras que emergem (como o excesso) das experincias de modo a permitir que as obras que realizemos expressem essas foras inconscientes (que nos afetam mesmo no sendo humanas, mesmo no sendo signos reconhecveis na cultura porque ainda a excedem), foras que, apesar de inexpressivas configuram as pequenas percepes que constituem o sensvel, o real, a vida que ns vivemos e onde vibram os corpos de nossos jovens alunos. Escola como lugar onde a potncia de mobilizao do Fora poderia ser imensa, tanto daquilo que (nos) chega de fora, o espao, como do fora que a desdobra do dentro, aquilo que (nos) tira para fora. Fora que (nos) extrai outros possveis modos de habitar o espao, a linguagem (a educao?) e a ns mesmos (de preferncia nos desfazendo dos significados de espao nacional identidades que se dobram sobre ns e nos impedem de devirmos outros... afinal, as prprias nacionalidades j o so oscilantes, verdadeiras e intensas construes em trnsito) nesse sentido que apostar no Fora apostar na escola como potncia criadora (mais que criativa), pois nela onde passam a maior parte de seu tempo meninos e meninas como esses dos vdeos A bola ou que danam Crazy in love. Meninxs cujos corpos vibram e experimentam tudo sua volta o que lhes chega de fora tudo o que lhes exige expresso o que lhes tira para fora tudo o que os constrange a vida o que se coloca como problema e, nessas experimentaes, talvez, extraiam algo do sensvel que ainda no era sensvel, abrindo passagens (dando linguagem?) ao excesso de real que compe o real, ao criarem nfimas variaes no que j havia nos intervalos (e vos) entre a experincia e ela mesma, entre as imagens e a cor negra (ou branca, ou azul, ou verde...) que penetra entre elas no corte entre cenas, nas bordas dos quadros, nas aberturas entre sons e imagens, nxs... MUITO OBRIGADO e...!