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SESC Ι Videobrasil Exposição: Joseph Beuys - A revolução Somos Nós Seleção de textos para leitura dos educadores Organização: Valquíria Prates

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apostila sobre joseph beuys

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Page 1: Apostila Joseph Beuys

SESC Ι Videobrasil

Exposição: Joseph Beuys - A revolução Somos Nós

Seleção de textos para leitura dos educadoresOrganização: Valquíria Prates

Page 2: Apostila Joseph Beuys

1. Curadoria Educativa da exposição –programação

2. Jogo‐ferramenta: Primeiros socorros para atividades de mediaçãoatividades de mediação

3. Textos do catálogo da exposição (Joseph Beuys– a revolução somos nós)

4. O elemento material na obra de Joseph Beuys, de Dália Rosenthal

5. Trecho de Como explicar arte para lebres mortas, de Christina Elisa Bach

6. Trechos de Lugares de melancolia, de Fernanda Lopes Torres

7 Interfaces entre meios – processos de criação7. Interfaces entre meios  processos de criação de Joseph Beuys, de Simone Sobral Rocha

8. A lógica da poética de Joseph Beuys ou como reencontrar o destino através da arte, de Gloria Georgina Seddon

Page 3: Apostila Joseph Beuys

 

Joseph Beuys - A revolução somos nós

Curadoria educativa

Promover a reflexão sobre o presente e o futuro da sociedade era o objetivo da Universidade

Livre Internacional (FIU), criada por Joseph Beuys em 1974 e com sedes ativas na Europa ainda

hoje. A curadoria educativa da exposição Joseph Beuys - a revolução somos nós desdobra esse

desejo em um conjunto de atividades destinadas a públicos de idades, formações e motivações

diferentes.

Concebido como uma sede simbólica da F.I.U., o espaço Universidade Livre Internacional em

São Paulo abriga uma programação gratuita de encontros, debates, oficinas e conversas que se

estende até novembro. Em caráter permanente, oferece ao público o acesso a computadores e

publicações sobre a exposição e arte contemporânea para pesquisa e leitura autônomas.

No Seminário Internacional Joseph Beuys – a revolução somos nós, artistas e educadores

debatem as ideias, temas e práticas do artista. Nos cursos e aulas abertas, os participantes

experimentam formas de expressão criativa exploradas por Joseph Beuys, como a performance e

a escultura viva, sob a orientação de artistas que tecem relações entre elas e o conceito de

plástica social.

A qualquer momento da exposição, os visitantes poderão participar de percursos e conversas

mediadas por educadores em torno dos conceitos presentes nos três núcleos expositivos.

Estudantes e seus professores podem agendar percursos mediados e atividades na exposição.

Aos sábados, cursos especiais para professores discutem a prática docente e a formação em

artes, tendo por fio condutor a atuação de Joseph Beuys como artista e professor.

Uma programação especial de narração de histórias e atividades práticas voltada ao público

infantil e suas famílias busca oferecer um primeiro contato com a dimensão simbólica da obra de

Beuys e com a forma como aborda ecologia e criação.

A cerimônia de abertura das atividades da Universidade Livre Internacional em São Paulo

homenageia Joseph Beuys ao lembrar o projeto 7000 Eichen (7000 Carvalhos), escultura viva

criada pelo artista para a Documenta 7, em Kassel. Juntos, os realizadores da exposição e três

colaboradores de Beuys – Antonio d’Avossa, Volker Harlan e Rainer Rappmann – plantam sete

árvores no SESC Pompeia, às 10h do dia 18 de setembro.

Para além do compromisso de aproximar os visitantes da obra e do pensamento de Joseph

Beuys, a Curadoria Educativa busca estimular sua criatividade em direção à construção de

sentidos renovados para o mundo. Em sintonia com o pensamento que a inspira, trabalha para

afirmar o conceito de uma ação artística que é capaz de moldar o futuro – e está ao alcance de

todos.

 

SEMINÁRIO INTERNACIONAL

Joseph Beuys - A Revolução Somos Nós

Três encontros temáticos debatem conceitos que marcaram a atuação de Joseph Beuys como

artista, professor e ativista. O seminário é um convite à reflexão sobre o poder de transformação

social da arte e seu papel como catalizador de políticas.

Mesa 1

Revolução, Arte e nós

Palestras: Antonio D’Avossa, Volker Harlan, Rainer Rappman

Antonio D’Avossa apresenta os principais aspectos da exposição Joseph Beuys – a revolução

somos nós, o curador fala dos traços da filosofia do artista na produção contemporânea (11h-

13h).

Volker Harlan aborda a dimensão transcendental da prática artística de Joseph Beuys,

pontuando sua relação com o xamanismo e as reverberações do pensamento de Rudolf Steiner

(1861-1925) e Goethe (1749-1832) em sua obra (14h-16h).

Rainer Rappman fala de sua participação no Grêmio para o Desenvolvimento do Conceito

Ampliado de Arte e da Plástica Social e na editora da Universidade Livre Internacional (16h -18h).

Data: 18 de setembro, sábado

Horário: das 11h às 18h (com intervalo das 13h às 14h)

Local: SESC Pompeia

Ingressos: gratuitos; retirar na bilheteria do SESC Pompeia no dia 18 de setembro, a partir das

9h30, enquanto houver disponibilidade de lugares.

Classificação indicativa: acima de 12 anos

Mesa 2

Plástica social como forma de esculpir o mundo

Mediação: Rubens Espírito Santo

Palestras: Ayrson Heráclito, Cássio Santiago,

Rubens Espírito Santo

Page 4: Apostila Joseph Beuys

 

Ayrson Heráclito fala de experiência ritual, da matéria orgânica e da dimensão da

transcendência na produção contemporânea, a partir de Beuys.

Cássio Santiago relata sua experiência como diretor da companhia teatral UEINZZ,

contextualizando seu processo de trabalho em relação à ideia de Plástica Social.

Rubens Espírito Santo fala do conceito de escultura social e apresenta sua experiência como

fundador da Universidade Livre das Artes.

Vagas: 300

Data: 16 de outubro, sábado

Horário: das 15h às 17h30

Local: Teatro do SESC Pompeia

Ingressos: gratuitos; retirar na bilheteria do SESC Pompeia no dia 16 de outubro, a partir das 11h,

enquanto houver disponibilidade de lugares.

Classificação indicativa: acima de 12 anos

Mesa 3

Todo homem é um artista

Mediação: Luiz Guilherme Vergara

Palestras: Monica Nador, Dora Longo Bahia e Luiz Guilherme Vergara

Luiz Guilherme Vergara reflete sobre as ações culturais e educativas como agentes de

transformação e transcendência, na formação para as artes e no estímulo à criatividade.

Monica Nador fala de sua prática artística e do JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube), construindo

paralelos entre sua experiência, a potência criativa individual e a dimensão espiritual da arte.

Dora Longo Bahia fala sobre sua prática como artista-professora a partir das ações Museu do

Vazio e Anarcademia.

Vagas: 300

Data: 27 de novembro, sábado

Horário: das 15h às 17h30

 

Local: Teatro do SESC Pompeia

Ingressos: gratuitos; retirar na bilheteria do SESC Pompeia no dia 27 de novembro, a partir das

11h, enquanto houver disponibilidade de lugares.

Classificação indicativa: acima de 12 anos

Page 5: Apostila Joseph Beuys

 

AULAS ABERTAS

Voltadas a iniciantes ou interessados em arte contemporânea, partem da exposição para

proporcionar um contato prático e reflexivo com suas linguagens. As produções dos participantes

poderão ser publicadas no Blog do Videobrasil ou expostas no local.

Inscrições: gratuitas. Retirada de senha, nas Oficinas de Criatividade do SESC Pompeia, com 30

minutos de antecedência.

História da Arte

Joseph Beuys: arte, filosofia e ativismo social

Com Antonio d’Avossa

O curador da exposição Joseph Beuys: a revolução somos nós apresenta um panorama da

trajetória do artista alemão e comenta suas principais ideias, referências e conceitos.

Vagas: 60 pessoas

Datas: 16 de setembro (quinta -feira)

Horário: das 14h às 18h

Local: Oficinas de Criatividade do SESC Pompeia – Sala 1

Cultura e sutentabilidade

Desenho cultural e sustentabilidade: processos de trabalho para a transformação

Com Flavia Vivacqua

A artista apresenta o conceito de desenho cultural para a sustentabilidade e constrói com os

participantes diretrizes para a realização de projetos transdisciplinares envolvendo arte,

educação, tecnologia e ecologia.

Vagas: 20 pessoas

Data: 6 de outubro, quarta-feira

Horário: das 19h às 21h30

Local: Galpão do SESC Pompeia –Universidade Livre Internacional em São Paulo

História da arte

 

Arte e política: relações possíveis na arte contemporânea

Com Fernando Oliva

Como os artistas se relacionam com a dimensão política da vida a partir de seus trabalhos? Em

torno desta pergunta, e partindo da prática de Joseph Beuys, o curador e editor do Caderno

SESC_Videobrasil 6 construirá com os participantes um conjunto de reflexões, pontuadas pela

apresentação de trabalhos, ações e ideias presentes na publicação.

Vagas: 20 pessoas

Data: 19 de outubro, terça-feira

Horário: das 19h às 21h30

Local: Galpão do SESC Pompeia – Universidade Livre Internacional em São Paulo

Artes Visuais

Escultura viva: ateliê aberto de arte e paisagismo

Com Fernando Limberger

Os participantes serão convidados a experimentar as possibilidades plásticas de elementos

naturais, como espécies vegetais, madeira, pedra e areia, para a criação de uma escultura

coletiva.

Vagas: 20 pessoas

Data: 10 de novembro, quarta-feira

Horário: das 19h às 21h30

Local: Oficinas de Criatividade do SESC Pompeia – Ateliê de Técnicas Mistas

Page 6: Apostila Joseph Beuys

 

MINICURSOS

Voltados para artistas, professores e estudantes que desenvolvem trabalhos nas áreas de artes

plásticas, literatura, música, vídeo e fotografia. Prevêem a realização de atividades práticas e

teóricas que poderão ser registradas e publicados no Blog do Videobrasil, em forma de relatos e

imagens.

Inscrições: gratuitas. No primeiro sábado do mês da atividade, nas Oficinas de Criatividade, a

partir das 14h.

Artes Plásticas

Escultura, suporte e material: reflexões práticas sobre a transcendência

Com Ayrson Heráclito

A partir de conversas sobre o uso que Joseph Beuys fazia de materiais orgânicos, o artista

conduz os participantes por atividades e práticas experimentais que exploram diferentes suportes.

Vagas: 15 pessoas

Datas: 13, 14 e 15 de outubro (quarta, quinta e sexta-feira)

Horário: das 19h às 21h30

Local: Galpão do SESC Pompeia – Universidade Livre Internacional em São Paulo

Artes do corpo

Toda pessoa é um artista: voz e corpo como matéria na criação e expressão cênicas

Com Cassio Santiago

Partindo de ideias presentes nos processos de criação de Joseph Beuys, os encontros propõem

exercícios de criação cênica e construção de sentidos coletivos, explorando corpo e voz como

matéria de trabalho.

Vagas: 15 pessoas

Datas: 21, 28 de outubro e 04 de novembro (quintas-feiras)

Horário: das 19h às 21h30

Local: Galpão do SESC Pompeia – Universidade Livre Internacional em São Paulo

Performance

Ação, performance e registro na arte contemporânea

Com Yiftah Pelled

 

Usando como laboratório as áreas de circulação do SESC Pompeia e partindo das obras e

registros de ações presentes na exposição, os participantes desenvolverão pesquisa para um

projeto pessoal.

Vagas: 15 pessoas

Datas: 10, 17 e 24 de novembro (quartas-feiras)

Horário: das 19h às 21h30

Local: Galpão do SESC Pompeia – Universidade Livre Internacional em São Paulo

Artes Plásticas

Joseph Beuys hoje: reflexões sobre arte, educação e ativismo

Com Rubens Espírito Santo

Em torno das principais questões presentes nos trabalhos e ações de Joseph Beuys, os

encontros propõem leituras de textos e experimentação plástica aplicada a contextos diversos.

Vagas: 15 pessoas

Datas: 22 e 29 de outubro, e 05 de novembro (sextas-feiras)

Horário: das 19h às 21h30

Local: Galpão do SESC Pompeia – Universidade Livre Internacional em São Paulo

Page 7: Apostila Joseph Beuys

 

ENCONTROS PARA PROFESSORES

A prática docente de Joseph Beuys: reflexões e desdobramentos para ações de formação

e artes na escola

Com Carolina Velasquez, Simone Donatelli e Valquíria Prates

A prática docente de Joseph Beuys é o tema desses encontros e visitas, que se destinam a

professores de Ensino Fundamental e Médio e a educadores ligados a ONGs e instituições

culturais. Serão discutidos o conceito de escultura social e as possibilidades dos projetos

educativos dentro de escolas e instituições culturais.

Vagas: 15 pessoas

Datas: 2, 16 e 30 de outubro; 6, 13 e 20 de novembro

Horário: das 10h às 12h

Local: Galpão do SESC Pompeia – Universidade Livre Internacional em São Paulo

Inscrições e informações: [email protected]. As inscrições podem ser feitas até a

véspera do encontro.

10 

 

CONVERSAS COM ARTE

Percursos mediados por educadores, partem do repertório dos visitantes para convidá-los a

investigar as obras em busca de interpretações, conceitos e contextos. O intuito é garantir novas

possibilidades de leitura da exposição a visitantes (que não precisam se inscrever) e grupos

agendados.

Percursos para visitantes

Em conversas de uma hora, conduzidas diariamente por educadores, grupos de dois a 15

visitantes poderão ter contato com as principais ideias de Joseph Beuys.

Vagas: até 15 pessoas

Datas: terças, quartas, quintas e sextas-feiras, conforme demanda (consultar supervisor);

sábados, domingos e feriados, às 11h, 14h, 16h e 18h.

Local: Galpão do SESC Pompeia

Inscrições: não são necessárias. Basta dirigir-se à entrada da exposição nos horários anunciados

e aguardar a chegada de um educador.

Escolas e grupos agendados

Durante uma hora, grupos com cerca de 20 estudantes serão convidados a refletir e experimentar

algumas das proposições e questões presentes na obra de Joseph Beuys. Os participantes

poderão projetar suas ideias para a transformação do mundo em que vivem em atividades

plásticas e rodas de conversa e leitura.

Vagas: 45 pessoas

Datas: terças, quartas, quintas e sextas-feiras, às 10h, 11h, 14h, 15h, 16h, 19h e 20h.

Local: Galpão do SESC Pompeia

Agendamento: Central de Atendimento do SESC Pompeia, tel. 3871-7700, de terça a sexta, das

13h às 18h.

Sobre acessibilidade e inclusão

- as visitas são inclusivas. Pessoas com deficiência podem participar de todas as atividades

propostas

- serão oferecidas visitas mediadas para surdos em Libras (Língua Brasileira de Sinais) nos dias

26 de outubro e 9 e 23 de novembro, às 19h. Para cada uma, há 45 vagas

Page 8: Apostila Joseph Beuys

11 

 

ARTE EM FAMÍLIA

Histórias contadas e um ateliê de confecção de sementeiras e plantio de mudas aproximam as

crianças e famílias que visitam a exposição de aspectos do universo poético de Joseph Beuys.

Inscrições: retirar senha nas Oficinas de Criatividade com 30 minutos de antecedência

Narração de Histórias

A História Aberta - Era uma, duas, três vezes: Beuys!

Com Kiara Terra

A partir dos materiais, ideias e elementos presentes nas obras de Joseph Beuys, a atriz constrói

com as crianças e suas famílias histórias que trazem o universo poético do artista para mais

perto. Uma atividade prática em ateliê completa a atividade, que se dirige a crianças a partir de 4

anos, acompanhadas por responsável adulto.

Vagas: 20 pessoas

Data: 2 e 23 de outubro e 13 de novembro

Horário: das 14h às 16h30

Local: Galpão do SESC Pompeia

Artes Visuais

O homem que planta esculturas: ateliê aberto de arte, jardinagem e paisagismo

Com Fernando Limberger

Após visitar a exposição, crianças, jovens e adultos experimentam dois momentos no processo

de plantio: a confecção de sementeiras e a semeadura para a obtenção de mudas que poderão

ser plantadas; e o replantio de mudas crescidas. Podem participar crianças a partir de 6 anos,

acompanhadas por responsável adulto.

Vagas: 20 pessoas

Data: 20 de novembro

Horário: das 14h às 16h30

Local: Oficinas de Criatividade do SESC Pompeia – Ateliê de Técnicas Mistas

12 

 

PARTICIPANTES

Antonio d’Avossa Curador da exposição A revolução somos nós, é professor de História da Arte

Contemporânea na Academia di Brera, em Milão. Assinou retrospectivas como Operazione

Defesa della Natura (Barcelona,1993), The Nature of Joseph Beuys (Toronto, 2004) e o Evento

Beuys da 52ª Bienal de Veneza (2007).

Ayrson Heráclito Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), é

professor do Centro de Artes, Humanidades e Letras da UFRB. Pesquisador, curador e artista,

sua obra transita pela instalação, fotografia, audiovisual e performance.

Cássio Santiago Performer e ator, é diretor artístico da Cia. Teatral Ueinzz. Criou e dirigiu

Finnegans Ueinzz (2009), apresentado no Baltic Circle International Theatre Festival, em

Helsinque. Atuou no Grupo K, Companhia de Ópera Seca e Manufactura Suspeita.

Dora Longo Bahia Artista, é mestre e doutora em poéticas visuais pela ECA-USP e professora de

artes plásticas da FAAP. Esteve na 6ª Bienal de Havana (1997), na 28ª Bienal de São Paulo

(2008) e em individuais em São Paulo, Rio de Janeiro, Tijuana e San Diego.

Fernando Limberger Artista visual e paisagista, foi um dos articuladores do projeto Arte

Construtora, que criou intervenções em espaços públicos abandonados em São Paulo, Rio e

Porto Alegre nos anos 90. Esteve na coletiva Ecológicas (MAM_SP, 2010).

Fernando Oliva Docente da faculdade de Artes Plásticas da FAAP, é mestrando no Programa de

Mestrado das Faculdades Santa Marcelina e editor do Caderno SESC_Videobrasil 6. Foi diretor

de curadoria do CCSP e gerente de projetos do Paço das Artes e MIS-SP.

Flavia Vivacqua É artista, educadora, pesquisadora e produtora. Sua agência Nexo Cultural

desenvolve projetos que articulam arte, cultura e sustentabilidade.

Kiara Terra Atriz e escritora, conta histórias profissionalmente desde 1998. A partir de suas

pesquisas e experimentações, desenvolveu uma técnica de improviso que chama de A História

Aberta.

Page 9: Apostila Joseph Beuys

13 

 

Luiz Guilherme Vergara Mestre em Artes e Instalações Ambientais e doutor pelo programa de

Arte e Educação no Departamento de Arte da Universidade de Nova York. Foi diretor do MAC

Niterói e desenvolveu uma série de projetos de curadoria educativa no Brasil.

Monica Nador Pintora, é mestre em Artes pela ECA-USP. Dedicou a maior parte da última década

a projetos de arte e educação em bairros pobres de São Paulo. Fundou o JAMAC – Jardim

Miriam Arte Clube, ateliê aberto à população do bairro. Em 2010, retoma a pintura de ateliê e abre

individual na Pinacoteca do Estado.

Rainer Rappmann Formado em arte e filosofia, fundou o braço editorial da Universidade Livre

Internacional (FIU), na Alemanha, pelo qual publicou parte da obra escrita de Joseph Beuys. Foi

um dos criadores do Grêmio para o Desenvolvimento do Conceito Ampliado de Arte e da Plástica

Social, que atua na Alemanha.

Rubens Espírito Santo Artista e pensador, trabalha na confluência dos campos de política

educacional, artes visuais e filosofia. Criou as Cabanas de Arte e a Universidade Livre de Arte -

Atelier do Centro, coletivos de produção plástica e formação de jovens artistas. É discípulo do

astrofísico e pensador alemão Christopher Kotanyi.

Valquíria Prates Educadora, escritora, curadora, é mestre em educação e doutoranda na área de

ação cultural e mediação pela ECA-USP. Desenvolve projetos de curadoria em arte e literatura e

atua como consultora junto a museus, instituições culturais e escolas.

Volker Harlan Com formação em arte, biologia e teologia, é um estudioso da filosofia da estética e

da natureza, e em particular da teoria da escultura social de Joseph Beuys, de quem foi

colaborador. É autor do livro O que é arte? Conversas com Joseph Beuys (1986).

Yiftah Pelled Artista, é mestre em performance e doutorando em Poéticas Visuais na ECA-USP.

Explora estratégias que incentivam o público à participação em obras nas quais se serve de

linguagens artísticas diversas.

14 

 

Agenda

16 de setembro (quinta-feira)

14h-18h | Aula aberta | Joseph Beuys: arte, filosofia e ativismo social

Com Antonio D’Avossa

18 de setembro (sábado)

10h | Cerimônia de plantio de árvores e abertura das atividades do programa educativo –

Universidade Livre Internacional em São Paulo

11h-18h | Seminário Internacional Joseph Beuys – A revolução somos nós

Mesa 1: Revolução, Arte e nós

11h-13h Antonio D’Avossa,

14h-15h30 Volker Harlan

16h- 17h30 Rainer Rappman

2 de outubro (sábado)

10h-12h | Encontros para professores | A prática docente de Joseph Beuys – reflexões e

desdobramentos para ações de formação e artes na escola

Com: Carolina Velasquez, Simone Donatelli e Valquíria Prates

14h-16h30 | Arte em família | A História Aberta - Era uma, duas, três vezes: Beuys!

Com Kiara Terra

6 de outubro (quarta-feira)

19h-21h30 | Aula aberta | Desenho cultural e sustentabilidade: processos de trabalho para a

transformação

Com Flavia Vivacqua

13 de outubro (quarta-feira)

19h-22h | Minicurso | Escultura, suporte e material – reflexões práticas sobre a transcendência

Com Ayrson Heráclito

14 de outubro (quinta -feira)

Page 10: Apostila Joseph Beuys

15 

 

19h-22h | Minicurso | Escultura, suporte e material – reflexões práticas sobre a transcendência

Com Ayrson Heráclito

15 de outubro (sexta-feira)

19h-22h | Minicurso | Escultura, suporte e material – reflexões práticas sobre a transcendência

Com Ayrson Heráclito

16 de outubro (sábado)

10h-12h | Encontros para professores | A prática docente de Joseph Beuys – reflexões e

desdobramentos para ações de formação e artes na escola

Com Carolina Velasquez, Simone Donatelli e Valquíria Prates

15h-18h | Seminário Internacional Joseph Beuys – A revolução somos nós

Mesa 2 | Plástica Social como forma de esculpir o mundo

Com Ayrson Heráclito, Cássio Santiago e Rubens Espírito Santo

19 de outubro (terça-feira)

19h-21h30 | Aula aberta | Arte e política: relações possíveis na arte contemporânea

Com Fernando Oliva

21 de outubro (quinta-feira)

19h-21h30 | Minicurso | Todo homem é um artista – voz e corpo como matéria na criação e

expressão cênicas

Com Cassio Santiago

22 de outubro (sexta-feira)

19h-21h30 | Minicurso | Joseph Beuys hoje: reflexões sobre arte, educação e ativismo

Com Rubens Espírito Santo

23 de outubro (sábado)

14h-16h30 | Arte em família | A História Aberta - Era uma, duas, três vezes: Beuys!

Com Kiara Terra

26 de outubro (terça-feira)

16 

 

19h-21h | Conversas com arte | Versão para surdos com intérprete de LIBRAS (Língua Brasileira

de Sinais)

28 de outubro (quinta-feira)

19h-21h30 | Minicurso | Todo homem é um artista – voz e corpo como matéria na criação e

expressão cênicas

Com Cassio Santiago

29 de outubro (sexta-feira)

19h-21h30 | Minicurso | Joseph Beuys hoje: reflexões sobre arte, educação e ativismo

Com Rubens Espírito Santo

30 de outubro (sábado)

10h-12h | Encontros para professores | A prática docente de Joseph Beuys – reflexões e

desdobramentos para ações de formação e artes na escola

Com Carolina Velasquez, Simone Donatelli e Valquíria Prates

4 de novembro (quinta-feira)

19h-21h30 | Minicurso | Todo homem é um artista – voz e corpo como matéria na criação e

expressão cênicas

Com Cassio Santiago

5 de novembro (sexta-feira)

19h-21h30 | Minicurso | Joseph Beuys hoje: reflexões sobre arte, educação e ativismo

Com Rubens Espírito Santo

6 de novembro (sábado)

10h-12h | Encontros para professores | A prática docente de Joseph Beuys – reflexões e

desdobramentos para ações de formação e artes na escola

Com Carolina Velasquez, Simone Donatelli e Valquíria Prates

9 de novembro (terça-feira)

19h-21h | Conversas com arte | Versão para surdos com intérprete de LIBRAS (Língua Brasileira

de Sinais)

Page 11: Apostila Joseph Beuys

17 

 

9 de novembro (terça-feira)

19h-21h30 | Minicurso | Ação, performance e registro na arte contemporânea

Com Yiftah Pelled

10 de novembro (quarta-feira)

19h-21h30 | Aula aberta | Escultura viva: ateliê aberto de arte e paisagismo

Com Fernando Limberger

13 de novembro (sábado)

10h-12h | Encontros para professores | A prática docente de Joseph Beuys – reflexões e

desdobramentos para ações de formação e artes na escola

Com Carolina Velasquez, Simone Donatelli e Valquíria Prates

14h-16h30 | Arte em família | A História Aberta - Era uma, duas, três vezes: Beuys!

Com Kiara Terra

16 de novembro (terça-feira)

19h-21h30 | Minicurso | Ação, performance e registro na arte contemporânea

Com Yiftah Pelled

20 de novembro (sábado)

10h-12h | Encontros para professores | A prática docente de Joseph Beuys – reflexões e

desdobramentos para ações de formação e artes na escola

Com Carolina Velasquez, Simone Donatelli e Valquíria Prates

14h-16h30 | Arte em família | O homem que planta esculturas: ateliê aberto de arte, jardinagem e

paisagismo

Com Fernando Limberger

23 de novembro (terça-feira)

19h-21h30 | Minicurso | Ação, performance e registro na arte contemporânea

Com Yiftah Pelled

23 de novembro (terça-feira)

18 

 

19h-21h | Conversas com arte | Versão para surdos com intérprete de LIBRAS (Língua Brasileira

de Sinais)

27 de novembro (sábado)

15h-18h | Seminário Internacional Joseph Beuys – A revolução somos nós

Mesa 3: Todo homem é um artista

Com Monica Nador, Dora Longo Bahia e Luiz Guilherme Vergara

Page 12: Apostila Joseph Beuys

 

TEXTOS DO CATÁLOGO EXPOSIÇÃO A REVOLUÇÃO SOMOS NÓS

REALIZAÇÃO: SESC-VIDEOBRASIL

 

Conclamação à Alternativa1

Joseph Beuys

Esta Conclamação se dirige a todas as pessoas da esfera da cultura e da civilização

europeias. TRATA-SE DA ARRANCADA RUMO A UM NOVO FUTURO SOCIAL. Como é

possível atingir esse objetivo? É preciso surgir, na Europa, um movimento que, com seu ímpeto

renovador, remova os muros entre Oriente e Ocidente, e supere o abismo entre Norte e Sul.

Já seria um começo se, digamos, as pessoas da Europa Central se decidissem a agir na

linha de pensamento desta Conclamação. Se começássemos ainda hoje, na EUROPA

CENTRAL, a palmilhar em cada um de nossos países e sociedades um caminho de convivência e

cooperação à altura das exigências do nosso tempo, isso teria forte repercussão em todos os

outros lugares do mundo.

Mas é preciso alertar contra uma mudança irrefletida. Diante da questão: O QUE

PODEMOS FAZER?, temos de nos perguntar COMO DEVEMOS PENSAR?, a fim de evitar que o

discurso dos mais altos ideais da humanidade, proclamado atualmente por todos os programas

partidários, continue a se reproduzir como expressão do contraste crasso com a vida prática da

realidade econômica, política e cultural em todo o mundo.

Comecemos pela REFLEXÃO DE CADA UM SOBRE SI MESMO. Perguntemo-nos sobre

as razões que nos dão ensejo de abandonar o que seguimos até agora. Procuremos as ideias

que nos indicam a direção a tomar nessa mudança de rumo.

Repassemos a evolução da vida social e política no século XX.

Reexaminemos os conceitos segundo os quais se estabeleceram as condições reais no

Oriente e no Ocidente.

Reflitamos sobre o efeito desses conceitos: terão eles incentivado nosso organismo social

e seu relacionamento com as bases naturais, propiciando o surgimento de uma existência

saudável – ou, pelo contrário, não terão tornado a humanidade doente, não lhe terão aberto

feridas, não lhe terão trazido desgraças, colocando em questão sua própria sobrevivência, hoje?

Aprofundemos nossa reflexão observando cuidadosamente nossas próprias necessidades:

estarão os princípios do capitalismo ocidental e do comunismo oriental abertos para receber o

que vai se revelando cada vez mais claramente, a partir da evolução dos últimos tempos, como o

impulso central na alma da humanidade, ou seja, a vontade de autorresponsabilidade concreta?

                                                            1 Publicado originalmente no jornal diário Frankfurter Rundschau, em 23 de dezembro de 1978, e reimpresso em junho de 1979, na primeira eleição para o Parlamento Europeu, ao qual Beuys se candidatou pela Outra Associação Política Os Verdes (Sonstige Politische Vereinigung Die Grünen). Traduzido pela primeira vez para o português em 1979, para cartaz que integrava a participação de Beuys na 15ª Bienal de São Paulo, com o título Conclamação para uma alternativa global. A tradução desta versão é de Gilberto Calcagnotto. 

Page 13: Apostila Joseph Beuys

 

Em outros termos, trata-se de um impulso que leva o ser humano a emancipar-se das relações

sociais pautadas unicamente por mando e submissão, poder e privilégio.

Durante muitos anos, dedicamo-nos pacientemente a essas questões. Sem a ajuda de

muitas outras pessoas que encontramos durante nossas pesquisas e experiências, certamente

não teríamos chegado às respostas expressas nesta Conclamação. Portanto, não comunicamos

apenas “nossa opinião”, mas algo que também é reconhecido por muitos.

Entretanto, para conseguirmos fazer a reversão necessária, é preciso ampliar o número de

pessoas que compreendem o assunto. Esta Conclamação terá atingido sua finalidade quando

tivermos conseguido condensar o que está proposto aqui em termos políticos e organizacionais,

para finalmente colocá-la em prática, por meio de AÇÕES PARLAMENTARES E

EXTRAPARLAMENTARES COORDENADAS.

Portanto: REVOLUÇÃO NÃO VIOLENTA POR UMA ALTERNATIVA EVOLUCIONÁRIA

ORIENTADA PARA UMA ABERTURA AO FUTURO.

Sintomas da crise

Pode-se dar por conhecidos os problemas que, por muitas razões, levam-nos a rejeitar as

estruturas estabelecidas. É suficiente recapitular os fatores mais graves do problema em seu

conjunto.

A ameaça militar

Mesmo que não haja intenção de conflito por parte das superpotências, persiste o perigo

da aniquilação total do mundo pela energia atômica. A tecnologia bélica e a natureza dos

arsenais acumulados em volumes absurdos já não permitem um controle seguro do aparato total,

atualmente impossível de ser totalmente contabilizado. Por trás dos bastidores das assim

chamadas negociações de desarmamento, a encarniçada corrida armamentista torna-se cada vez

mais acirrada, muito embora o arsenal acumulado já seja suficiente para exterminar a Terra cem

vezes.

Essa loucura coletiva tem por consequência um gigantesco desgaste de energia e de

matérias-primas, assim como um enorme desperdício das aptidões criativas de milhões de

pessoas.

A crise ecológica

Nosso relacionamento com a natureza está marcado por um profundo transtorno. Existe a

ameaça da destruição total da base natural sobre a qual repousa nossa existência. Estamos no

melhor caminho rumo à aniquilação desta base, ao seguirmos um sistema econômico baseado na 4 

 

exploração desenfreada dessa base natural. É preciso dizer claramente que, nesse ponto, o

sistema econômico capitalista privado que reina no Ocidente não se distingue fundamentalmente

do sistema de capitalismo estatal instalado no Oriente. A aniquilação está acontecendo no mundo

inteiro. A via de mão única da civilização industrial moderna estende-se desde o polo da

mineração até o dos depósitos de lixo. Cada vez mais, os ciclos de vida do sistema ecológico são

sacrificados em nome do seu crescimento e expansão.

A crise econômica

Esta crise se revela em toda uma série de sintomas que a cada dia enchem as páginas dos

jornais e alimentam os programas de notícias. Greves de empregados e greves patronais,

desempregados aos milhões em todo o mundo impedidos de aplicarem suas aptidões em

benefício da comunidade. A fim de evitar o abate da vaca sagrada – leia-se, as “leis do mercado”

–, aniquilam-se, sem pestanejar, volumes gigantescos de alimentos preciosos, acumulados em

decorrência de uma superprodução subvencionada, enquanto milhares de pessoas morrem de

fome diariamente em outras partes do mundo.

Não se trata de produzir para as necessidades do consumidor. Trata-se, isto sim, de uma

maneira habilmente disfarçada de exaurir os bens.

Este modo de lidar com a economia entrega a humanidade, de maneira cada vez

sistemática, ao poder de uma súcia de grandes conglomerados multinacionais que, juntamente

com os funcionários de ponta dos monopólios estatais comunistas, decidem o destino de todos

nós na mesa de conferências.

Deixemos de lado uma caracterização mais completa do que nos é contínua e livremente

entregue em domicílio sob a denominação de “crise monetária”, “crise da democracia”, “crise da

educação”, “crise energética”, “crise de legitimação estatal” etc. Vamos concluir com uma

apresentação sucinta sobre a:

Crise da consciência e do sentido da vida

A maioria das pessoas sente-se entregue, sem proteção alguma, à força das

circunstâncias. Esse sentimento as leva à perda de sua interioridade. Em meio a esses processos

destrutivos aos quais estão sujeitas, em meio a esse novelo inescrutável que é o poder estatal e

econômico, e ante as manobras diversionistas de uma indústria banal do prazer, elas já não

conseguem ver sentido na vida.

São principalmente os jovens que caem no alcoolismo e na dependência das drogas,

cometem suicídio. Centenas de milhares de pessoas tornam-se vítimas de fanáticos camuflados

de religiosos. A fuga da realidade está em voga. O outro lado da moeda desta perda de

Page 14: Apostila Joseph Beuys

 

identidade pessoal é o lema “Depois de mim – o dilúvio”. Ou seja: vive-se o princípio do prazer

puro e simples, sem considerar os prejuízos. Trata-se de conformar-se, pura e simplesmente,

apenas para buscar, pelo menos para si mesmo, o máximo possível enquanto a vida durar – sem

se dar conta do nome contra o qual o título da dívida foi emitido.

São títulos emitidos contra o meio ambiente, contra o nosso meio social e contra a nossa

posteridade. Eles é que terão de pagar a conta. Está na hora de substituir os sistemas de

“irresponsabilidade organizada” (Bahro)2 por uma alternativa de conciliação e de solidariedade.

Causa da crise

Em seu cerne, toda esta miséria tem como causa propriamente dita dois elementos

estruturais das ordens societárias que vieram a dominar o século XX: O DINHEIRO E O

ESTADO, ou os papéis atribuídos ao dinheiro e ao Estado nesses sistemas. Ambos tornaram-se

instrumentos de poder decisivos. AQUELE QUE TEM NAS MÃOS O DINHEIRO E/OU O

ESTADO DETÉM O PODER. O fundamento desse sistema, no capitalismo, é o conceito de

dinheiro; e, no comunismo, tal como o conhecemos até o momento, é o conceito totalitarista de

Estado.

Nesse meio tempo, ocorreu uma assimilação recíproca de ambos os conceitos nos eventos

concretos das realidades estabelecidas, tanto no lado ocidental como no oriental. No lado

ocidental, avança a tendência expansionista da função estatal, enquanto no oriental foram

introduzidos fatores ligados ao mecanismo do dinheiro tal como desenvolvido pelo capitalismo.

Embora existam diferenças claras – no que se refere aos direitos humanos, por exemplo – entre o

capitalismo ocidental e o oriental, não deixa de ser verdade que ambos os sistemas, em medida

crescente, tendem à destrutividade e, com sua posição de poder em contradição recíproca,

representam uma ameaça extrema ao futuro da humanidade. Eis por que é hora de “serem

substituídos por um novo princípio”, já que ambos estão “no fim” (Gruhl).3

Também em nosso país isso não será possível sem uma mudança constitucional.

Entrementes, o testemunho de fidelidade à Lei Fundamental da República Federal da

Alemanha adquiriu uma feição verdadeiramente neurótica, tornando-nos cegos à necessidade de

prosseguir desenvolvendo seus princípios e incapazes de fazê-lo.

Por que motivo uma sociedade que já atingiu certo nível de desenvolvimento democrático

não pode debater da maneira mais franca possível o seu necessário desenvolvimento ulterior?

Muitos já sentem medo de cair na suspeita de serem inimigos da Constituição. Com isso, negam

                                                            2 Rudolf Bahro: teórico alemão oriental da Alternativa e dos Verdes. 3 Herbert Gruhl, membro do grupo democrata-cristão e dos Verdes, publicou o best-seller Ein Planet wird geplündert (A pilhagem de um planeta) em 1975. 

 

a si mesmos pensamentos criativos para ampliar o alcance de conceitos de direito já

estabelecidos, quando o progresso da consciência o exige. E ele exige isso. Conclusão: O

CAPITALISMO E O COMUNISMO LEVARAM A HUMANIDADE A UM BECO SEM SAÍDA.

Apesar de irrefutável, e apesar de sua crescente difusão, esta constatação permanece inútil

enquanto não forem elaborados modelos racionais de solução, isto é, ideias capazes de gerar

perspectivas livres, democráticas, solidárias em relação às pessoas e à natureza, e sustentadas

por uma visão responsável em relação ao futuro global. Estes modelos já estão elaborados. A

seguir, iremos expor um deles.

A saída

Wilhelm Schmundt reivindica, como condição central para uma alternativa bem

argumentada, que os conceitos sejam pensados “na direção certa”. Eugen Löbl, teórico da

economia da Primavera de Praga, é da mesma opinião quando fala de uma inadiável

“REVOLUÇÃO DOS CONCEITOS”. Schmundt intitulou um de seus livros Revolução e evolução.

O que ele quer dizer com isso é o seguinte: somente depois de termos revisto as conexões

fundamentais do organismo social e, com isso, realizado a “revolução dos conceitos”, é que o

caminho para uma evolução sem coerção e sem arbitrariedades estará livre. Infelizmente, porém,

persiste, de várias maneiras, e justamente nos meios de orientação política alternativa, a opinião

de que os conceitos não são decisivos. Se desejamos realmente que o novo movimento social

seja difundido e tenha força política, precisamos superar esse preconceito infundado. Pois os

conceitos sempre se ligam a uma prática relevante; e o modo de pensar um tema é decisivo na

maneira como lidamos com ele. Antes de tudo, vem a compreensão de uma matéria; se ela é

entendida e como. Ao projetarmos uma alternativa, isto é, a alternativa de um TERCEIRO

CAMINHO – à qual o Partido Comunista Italiano se referiu, de forma positiva, antes de todos os

outros –, tomamos como ponto de partida a pessoa humana. O ser humano é o escultor da

PLÁSTICA SOCIAL; é segundo sua medida e sua vontade que o organismo social deve ser

moldado.

Em consonância com o sentimento da dignidade humana, a humanidade hoje reconhece

três necessidades fundamentais como prioritárias:

1. O ser humano quer desenvolver LIVREMENTE suas aptidões e sua personalidade, e quer

poder aplicá-las LIVREMENTE, em conjunto com as aptidões de outras pessoas, para

alcançar um objetivo reconhecidamente DOTADO DE SENTIDO.

2. O ser humano considera qualquer espécie de privilégio como uma violação insuportável da

igualdade democrática de direitos. Ele tem necessidade de ser considerado IGUAL ENTRE

IGUAIS no que toca a todos os direitos e deveres – seja no contexto econômico, social,

Page 15: Apostila Joseph Beuys

 

político ou cultural –, e a poder participar de decisões em negociações democráticas de

todos os níveis, em todos os âmbitos da sociedade.

3. Ele deseja OFERECER SOLIDARIEDADE E REIVINDICAR SOLIDARIEDADE. É

possível que alguém duvide de que isso se trata de uma necessidade fundamental do ser

humano atual, pois o egoísmo é o fator largamente dominante no comportamento dos

indivíduos.

Um exame consciencioso, entretanto, revela algo diferente. É bem possível que o egoísmo

ainda esteja em primeiro plano e determine o comportamento. Mas ele não constitui uma

necessidade, um ideal almejado. É um instinto que reina e domina. O que se deseja, na

verdade, é a AJUDA MÚTUA, PRESTADA DE MANEIRA ESPONTÂNEA.

Se este impulso solidário é tomado como o ideal humano e humanitário, a tarefa que se

impõe é a de remodelar as estruturas sociais que hoje ativam o instinto egoísta, de tal

modo que elas parem de se opor às ambições interiores da pessoa. [O primeiro a tentar

mobilizar a opinião pública sobre a necessidade de uma remodelagem nesse sentido foi

Rudolf Steiner, no período de 1917 a 1922. “Liberdade na vida espiritual, igualdade na vida

legal e fraternidade na vida econômica” era seu lema na época, para tentar deter a divisão

da Europa nos blocos capitalista e comunista. Quais não foram as consequências do

insucesso dessa tentativa! Se hoje se reivindica com crescente premência a adoção de

uma alternativa nesse sentido, as afirmações que se seguem representam um fundamento

sólido para essa mudança social necessária.]4

I. O “sistema integral”, novo conceito de trabalho, novo conceito de renda

Na sociedade industrial baseada na divisão do trabalho, segundo Eugen Löbl, a VIDA

ECONÔMICA evoluiu ao ponto de transformar-se num “SISTEMA INTEGRAL”. Isto significa que,

para poder trabalhar, as pessoas deixam a esfera privada, seus domicílios, e acorrem aos locais

associados à produção. Os produtos do trabalho já não são levados ao mercado por indivíduos

ou corporações para ser negociados numa economia de trocas; essas trocas dependem do

funcionamento conjunto de procedimentos complexos. No âmbito da ECONOMIA MUNDIAL, o

produto final de cada um é resultado da atividade comum de todos. Todas as atividades, inclusive

da educação, da ciência, dos bancos, da administração pública, dos parlamentos, da mídia etc.,

estão integradas neste todo.

Dois processos formam a estrutura básica desse tipo de economia: o fluxo dos VALORES

DAS APTIDÕES aplicadas ao trabalho; e o fluxo dos VALORES DE CONSUMO, espirituais ou

                                                            4 Trecho inserido na reimpressão do documento original, em 1979. 

 

físicos. Nesse sentido, os meios técnicos de produção devem ser considerados como os recursos

mais altamente desenvolvidos.

No sistema integral, todo trabalho é, por princípio, TRABALHO PARA O OUTRO. Ou seja:

cada pessoa que está em atividade em determinado local dá sua contribuição para produzir um

valor que, no final, será consumido por alguns de seus pares. O trabalho de uma pessoa não está

mais ligado ao seu próprio consumo. E há outro aspecto de grande importância e longo alcance:

o caráter de sistema integral já não permite considerar a renda das pessoas economicamente

ativas como valor de troca para as contribuições que prestam. Aqui já não pode haver um padrão

objetivo para aferir a parte de contribuição que cabe a cada indivíduo na produção de

determinado valor de consumo. Tampouco é possível medir a participação objetiva de uma

empresa no produto total.

Se tomarmos conhecimento dessa realidade, em vez de a ignorarmos por este ou aquele

interesse ou desinteresse, poderemos constatar que, com a transição da economia de trocas (e

também da economia de trocas em dinheiro) para a ECONOMIA INTEGRAL, há uma mudança

fundamental na relação entre trabalho e renda.

Se usássemos apenas essas constatações para inferir as consequências que se oferecem,

o resultado seria uma transformação radical da situação econômica atual. A renda que as

pessoas necessitam para seu sustento e desenvolvimento deixaria de ser um valor derivado para

se tornar um direito originário, um direito humano, que deverá ser garantido para que se criem as

condições necessárias à atuação responsável de cada um, autocomprometida e comprometida

com seu círculo de colaboradores.

O acordo democrático, com padrões pautados pelo princípio da necessidade, é a diretriz

estruturante adequada dessa concepção de renda como direito humano elementar. A medida e o

tipo de trabalho também são questões a serem tratadas e reguladas pela comunidade

democrática em geral e pelos coletivos de trabalho em particular, segundo a natureza de suas

formas de autogestão.

Todos os constrangimentos, injustiças e frustrações atuais decorrentes do anacronismo

que é o pagamento do trabalho em forma de salário estariam assim superados, tornando

supérflua a existência de sindicatos tanto de trabalhadores como de empregadores. Havendo

diferenças de renda, elas seriam transparentes e desejadas conscientemente. Igualmente

positivas também seriam as consequências sociopsicológicas advindas da superação da

dependência salarial.

Ninguém vende ou compra aptidão e trabalho. No que diz respeito à renda, todas as

pessoas economicamente ativas pertencem à comunidade democrática de cidadãos, com direitos

iguais.

Page 16: Apostila Joseph Beuys

 

II. A mudança funcional do dinheiro

Da mesma forma como a transição para a economia integral trouxe uma profunda

mudança à essência do trabalho, também os processos referentes ao dinheiro passaram por uma

metamorfose. Entretanto, assim como os conceitos da economia de troca permaneceram

inalterados, no que toca à regulação das relações de trabalho e renda, eles continuaram

determinantes também para o sistema pecuniário. Impediu-se, desse modo, que o dinheiro fosse

integrado ao organismo social como fator ordenador.

Esse fato forneceu motivos para que se passasse a analisar o dinheiro sob aspectos

psicológicos, sociológicos, teórico-econômicos e outros. Mas de pouco adiantaram essas

análises. O poder do dinheiro permaneceu intato. Por quê? Porque não mudamos o conceito de

dinheiro no momento em que, sob o ponto de vista da história do desenvolvimento, isso deveria

ter ocorrido!

O que nos fez ignorar, até hoje, a mudança de função do dinheiro? Esta mudança teve

início com a entrada dos bancos centrais no moderno desenvolvimento pecuniário. O dinheiro

saiu da esfera dos valores econômicos, na qual servia de instrumento universal de troca. Com o

novo tipo de emissão de moedas e de condução do dinheiro por um banco central, formou-se no

organismo social um sistema de circulação que trouxe para o todo social uma nova forma de

existência, mais complexa, num processo semelhante ao do “passo adiante” da evolução na

biosfera, com a transição de um organismo inferior a um superior. O dinheiro constituiu um novo

sistema funcional e tornou-se o REGULADOR DE DIREITO para todos os processos, tanto

criativos quanto de consumo.

Do lado da produção, as empresas necessitam de dinheiro para realizar suas tarefas, e o

recebem do sistema bancário em forma de crédito (os juros, hoje atrelados ao conceito de crédito,

decorrem de uma compreensão do dinheiro que é avessa à sua essência, e que continua a

considerá-lo como valor econômico).

Por isso, na mão do empresário, o dinheiro (= CAPITAL PRODUTIVO) constitui um

documento jurídico, que OBRIGA as empresas a aproveitar as aptidões de seus colaboradores no

trabalho.

Ao chegar às mãos das pessoas economicamente ativas, e tornar-se a renda da qual têm

o direito de dispor, o dinheiro altera seu significado de direito. Na condição de CAPITAL PARA

CONSUMO, ele dá aos consumidores o DIREITO de adquirir valores e bens.

Desse modo, o dinheiro volta ao âmbito da produção, onde seu significado muda pela

última vez. Nesse momento, torna-se DINHEIRO SEM RELAÇÃO COM UM VALOR

ECONÔMICO. Nesta condição, ele não confere nenhum direito à empresa que o recebe. Com 10 

 

este dinheiro, créditos são resgatados e as contas das empresas junto aos bancos credores,

equilibradas. Como muitas organizações de cunho empresarial – como escolas e universidades –

não cobram por seus serviços, as empresas, na medida em que umas forem superavitárias, e

outras, deficitárias, têm de fazer seus acertos de contas com a mediação de bancos associados.

Elevado ao nível da evolução que a sociedade alcançou, este conceito de dinheiro passa a

ter consequências impactantes. Ele resolve o problema do poder, na medida em que este tem

origem pecuniária. Por não ter compreendido como a ordem do dinheiro deixou de fazer parte da

vida econômica, tendo se tornado um sistema funcional autônomo no âmbito do direito, a

sociedade acabou por manter inalterada a concepção romana de propriedade. Assim, as

categorias de “lucro” e “perda” puderam se impor; e a apropriação sem limites de tudo o que

estivesse no contexto da produção permaneceu legal.

Contudo, bastaria simplesmente reconhecer a transformação semântica pela qual passou o

conceito de dinheiro para que, sem nenhuma medida estatal burocrática ou acrobacia fiscal, tanto

o princípio de propriedade quanto o princípio de lucro fossem abolidos da área da produção.

E o que acontece com os negócios na Bolsa de Valores, com a especulação fundiária, a

usura nos juros, a inflação? Tudo isso desaparece, assim como a chaga do desemprego. O

mundo das ações se esvai da noite para o dia, sem que tenha sido preciso parar uma única roda

da engrenagem. E os acionistas, os especuladores, os latifundiários? Será que eles levarão suas

sagradas riquezas ao altar da nova época que desponta, em oferenda à humanidade? Veremos.

De todo modo, cada um encontrará seu lugar na vida social, um lugar onde poderá aplicar suas

aptidões em benefício do todo, de forma livre, produtiva e plena de sentido. Em relação ao

consumo, a produção se orientará pelas necessidades dos consumidores. Não haverá interesse

de lucro ou propriedade que venha a inibir ou desviar do caminho que leva a esse objetivo

econômico, o único adequado à realidade. A fraternidade concretizada de maneira elementar pelo

sistema integral – “O trabalho tornou-se, por princípio, trabalho para os outros” – pode ser

desenvolvida sem restrições.

A questão ecológica também torna-se objeto de uma nova visão. Graças à eficácia dos

conceitos transformados, a ecologia econômica torna-se natural no momento em que uma ciência

livre, uma pedagogia livre e uma informação livre passem a pesquisar e difundir as leis do ser

vivo, esclarecendo sua significação para o ser humano.

III. A forma de liberdade do organismo social

Seria até concebível encarregar o Estado de conduzir o desenvolvimento da sociedade, se

isso não estivesse em radical contradição com o impulso libertário e a promoção da

autodeterminação e da autogestão (descentralização). Eis por que a última pergunta importante,

Page 17: Apostila Joseph Beuys

11 

 

no contexto da alternativa evolucionária do Terceiro Caminho – ou seja: Como uma sociedade,

livre de constrangimentos ou coerções, poderá encontrar seu rumo de desenvolvimento a partir

das necessidades humanas e da natureza? – só pode ser respondida com a descrição da “forma

de liberdade do organismo social” (Schmundt). Liberdade é, por um lado, um impulso individual

para exercer uma ação por motivos autodeterminados. Por outro, uma ação autodeterminada só é

livre quando exercida com base na “compreensão das condições de vida do todo” (Rudolf

Steiner). Isto significa que, diante da complexidade do conjunto de nossa produção, baseada na

divisão do trabalho, é muito difícil para um indivíduo ou empresa encontrar, cada qual por si, as

melhores maneiras de produzir algo voltado para as necessidades do outro. Por isso é necessário

inserir no corpo da sociedade um novo sistema de funcionamento, baseado em GRÊMIOS

CURADORES E CONSULTORES, um autêntico sistema de consultoria como fonte permanente

de inspiração.

Para um coletivo de trabalho, a melhor maneira possível de obter informações sobre

condições, conexões e efeitos de sua ação é convocar um grêmio curador, no qual a direção da

empresa estará democraticamente autorizada a discutir suas tarefas, objetivos e processos de

desenvolvimento, nos aspectos mais abrangentes possíveis, com dirigentes de outras empresas,

bancos, institutos de pesquisa científica e representantes dos consumidores aos quais se destina

o produto da empresa. As decisões deverão ser tomadas pelos responsáveis pela empresa; mas,

graças à assessoria dos grêmios curadores, elas serão fundamentadas em juízos objetivos, os

mais adequados possíveis. O que vale para a estrutura básica de cada empresa livre também

tem um papel nas relações entre os coletivos de trabalho. A superação da contradição entre

“empregador” e “empregado” abre espaço para uma forma social na qual estão entretecidos

processos de ASSESSORIA LIVRE, NEGOCIAÇÕES DEMOCRÁTICAS e, por fim, AÇÕES

CONJUNTAS em favor do ambiente social. Todos têm o direito de livre iniciativa empresarial, pois

a pessoa humana é, por natureza, dotada de iniciativa. É preciso que o diretor da empresa tenha

a capacidade de convocar colaboradores de acordo com suas habilidades técnicas e

conhecimentos objetivos. Mas esta função não pode dar a eles privilégios materiais ou qualquer

outra forma de poder que não seja legitimada democraticamente.

Na visão básica de um Terceiro Caminho, em uma economia e uma cultura

autogerenciadas, o LIVRE EMPRESARIADO constitui a unidade democrática fundamental da

NOVA SOCIEDADE DO SOCIALISMO REAL, pós-capitalista e pós-comunista.5 A legislação

estatal, o governo e a administração pública ficam limitados à função de decidir os direitos e

deveres democráticos válidos para todos – e de impor sua obrigatoriedade.

                                                            5 Beuys se refere ao sistema político da antiga República Democrática Alemã, denominado socialismo real. 

12 

 

O Estado encolherá consideravelmente. Veremos o que resta.

Instrumentos da mudança

O que podemos fazer agora para implementar a alternativa

Quem enxerga essa visão da alternativa evolucionária tem uma compreensão básica clara

da PLÁSTICA SOCIAL, de cuja moldagem o SER HUMANO PARTICIPA, COMO ARTISTA.

Fracassará quem defende a necessidade da mudança, mas queima a etapa da “revolução dos

conceitos” para combater apenas as materializações exteriores das ideologias. Ou se resignará,

ou se contentará com reformas, ou acabará no beco sem saída do terrorismo – três formas

diferentes de um mesmo triunfo da estratégia do sistema. A última pergunta que se coloca para

quem quer alcançar realmente o objetivo de uma remodelagem que comece nos fundamentos é:

O QUE PODEMOS FAZER? Precisamos ter claro que só existe um caminho para transformar as

estruturas estabelecidas, mas que esse caminho exige um espectro amplo de medidas.

O único caminho é o da TRANSFORMAÇÃO SEM VIOLÊNCIA, e não por considerarmos a

violência apenas momentaneamente impossível ou, por algum motivo, inviável. Não. Não

violência, sim, mas em virtude de princípios humanos, espirituais e morais, assim como de

motivos políticos e sociais.

Por um lado, a dignidade humana está indissoluvelmente ligada à inviolabilidade da

pessoa. Quem ferir este princípio estará abandonando a esfera da humanidade. Por outro lado,

os sistemas que precisam ser transformados edificam-se sobre as mais variadas formas

possíveis e imagináveis de violência. Desse modo, qualquer uso de violência será a expressão de

um comportamento que está em conformidade com o sistema; logo, reafirma justamente o que se

pretende destruir. Esta Conclamação quer encorajar a e apelar para que se siga o caminho da

transformação sem violência. Para os que se encontravam passivos até o momento, embora

sentissem mal-estar e insatisfação, o apelo é: TORNEM-SE ATIVOS. Sua ação é, talvez, a única

coisa que poderá reconduzir ao caminho da ação sem violência aqueles que agem flertando com

meios violentos ou deles fazem uso.

Embora constitua o cerne do método de mudança apresentado aqui, a “revolução dos

conceitos” mencionada não precisa, necessariamente, ser o primeiro passo. Aliás, qualquer

pretensão absolutizante é igualmente estranha ao que propomos. Quem tiver energia de analisar

as teorias do marxismo, do liberalismo, da doutrina social cristã até as últimas consequências

verá que os resultados são iguais aos nossos.

Pensar os enfoques históricos até suas últimas consequências é o que se faz necessário

hoje. Onde quer que essa tarefa seja realizada, corajosamente, observa-se como as fronteiras se

Page 18: Apostila Joseph Beuys

13 

 

deslocam. Nesse sentido, Bahro está mais próximo de Karl-Hermann Flach e William Born6 do

que estes de seu colega de partido Lambsdorff e dos companheiros que prenderam e

condenaram Bahro.

Universidade Livre Internacional

Está em pleno andamento o processo de remodelagem de conceitos e enfoques teóricos

cristalizados, um processo que deverá conduzir ao GRANDE DIÁLOGO, à comunicação entre as

diversas facções, às trocas interdisciplinares e internacionais entre modelos alternativos de

solução. A UNIVERSIDADE LIVRE INTERNACIONAL se propõe organizar e desenvolver esta

comunicação em caráter permanente.

“Frente aos interesses compactos massivos dos poderosos, só mesmo uma ideia

arrebatadora terá a possibilidade de alcançar a força da ideia do humanismo nos séculos

recentes ou a ideia cristã nos primeiros séculos de nossa era” (Gruhl). Precisamos de um diálogo

permanente e abrangente para ultrapassar os diversos enfoques presentes no novo movimento

social e chegar a essa “ideia arrebatadora”. A UNIVERSIDADE LIVRE INTERNACIONAL,

enquanto lugar de organização desta pesquisa, trabalho e comunicação, visa atingir todos os

grupos e células nos quais as pessoas se reúnem para refletir sobre o futuro de nossa sociedade.

Quanto mais pessoas aderirem a esse trabalho, tanto maiores serão a força e o impacto com os

quais as ideias alternativas haverão de se impor. Por esse motivo, faça-se a conclamação: QUE

SE CRIEM POSTOS DE TRABALHO DA UNIVERSIDADE LIVRE INTERNACIONAL, a

universidade do povo.

Ação Terceiro Caminho

Mas isto, apenas, ainda não basta. É preciso, onde possível, decidirmo-nos por uma

PRÁTICA alternativa de vida e trabalho. Muitos já deram início a esta prática em pequenos

círculos e áreas especiais. A INICIATIVA DE CONSTRUÇÃO AÇÃO TERCEIRO CAMINHO

(associação, fundação, sociedade) constitui uma confederação de empresas econômicas e

culturais alternativas. Apelamos a grupos individuais e empresas que desejem colocar em prática

suas ideias alternativas para fortalecer este projeto.

União para a Nova Democracia

                                                            6 Ambos proeminentes políticos do Partido Liberal alemão ocidental. 

14 

 

Um último aspecto, atual. Talvez o mais importante e decisivo para o caminho da

transformação sem violência: como o NOVO MOVIMENTO SOCIAL poderá alcançar uma

DIMENSÃO POLÍTICA?

Isso coloca, ao menos para as democracias ocidentais, a questão da possibilidade de uma

ação parlamentar. Se trilharmos este caminho, só o faremos da maneira correta se

desenvolvermos um NOVO ESTILO de trabalho e organização política. Somente se nos

exercitarmos neste novo estilo poderemos superar obstáculos como cláusulas de barreira e

similares, que se antepõem a processos alternativos.

Sem dúvida, seria necessário que modelos alternativos de solução fossem apresentados

pelos parlamentos, de maneira compreensível, para o conjunto da opinião pública. Para isso,

porém, é fundamental que os formuladores destes modelos ingressem nos parlamentos. E como

o farão?

Concentrando sua energia numa INICIATIVA ELEITORAL CONJUNTA.

O ponto decisivo para esta tentativa é a compreensão do movimento alternativo em seu

conjunto. Este se compõe de toda uma pletora de correntes, iniciativas, organizações, instituições

etc. Elas só terão uma chance de sucesso se andarem juntas. Uma iniciativa eleitoral conjunta

não significa a existência de organizações partidárias, programas partidários, debates partidários

no estilo antigo. A unidade que se faz necessária só pode ser uma UNIDADE NA

MULTIPLICIDADE.

O movimento composto por iniciativas populares, os movimentos ecológico, pacifista,

feminista, a mudança nos modelos de práticas, o movimento por um socialismo democrático, por

um liberalismo humanista, por um Terceiro Caminho, o movimento antroposófico e as correntes

cristãs-confessionais, o movimento pela cidadania e pelo Terceiro Mundo têm de se reconhecer

como elementos imprescindíveis de um movimento alternativo total. São partes que não se

excluem nem se contradizem mutuamente, mas que se complementam.

A realidade é que existem concepções e iniciativas alternativas de cunho marxista,

católico, protestante, liberal, antroposófico, ecológico etc. Há entre eles uma concordância em

numerosos pontos essenciais. Esta é a base para os pontos comuns na união. Em outros pontos

persiste a não concordância. Esta é a base da liberdade na união.

Uma iniciativa eleitoral conjunta do movimento alternativo em sua totalidade só se tornará

vida real como uma ALIANÇA de muitos grupos autônomos que definem seu relacionamento

mútuo e seu relacionamento com a opinião pública no espírito de TOLERÂNCIA ATIVA. Nossos

parlamentos precisam do espírito libertador e da vida emanados de uma tal união, uma UNIÃO

PELA NOVA DEMOCRACIA.

Page 19: Apostila Joseph Beuys

15 

 

Portanto, os veículos estão prontos para entrar no novo rumo. Eles oferecem lugar e

trabalho para todos.

Interessados em obter mais informações e em colaborar nos projetos UNIVERSIDADE

LIVRE INTERNACIONAL, INICIATIVA DE CONSTRUÇÃO AÇÃO TERCEIRO CAMINHO e

UNIÃO PELA NOVA DEMOCRACIA, favor entrar em contato com:

Free International University

8991-Achberg, Tel. 08380 500 ou 471

4000 Düsseldorf 11, Drakeplatz 4

Esta conclamação deve ser amplamente difundida, junto com o maior número possível de

assinaturas. Pedimos a todos os que apoiam as colocações da conclamação e que estão

dispostos a assiná-la que se comuniquem e enviem sua doação (para cobrir os custos da

publicação). Achberger Institut für Sozialforschung / FIU, Postscheckamt München, c/c 287995-

809; Volksbank Wangen i. Allgäu, c/c 35119004.7

                                                            7 Nota acrescentada à reimpressão de 1979. 

16 

 

Joseph Beuys – A revolução somos nós

Antonio d’Avossa

Não tenho nada a ver com a política: conheço somente a arte.

Joseph Beuys

1

Eis o homem que quer transformar a política em arte

“Homem: VOCÊ tem força para a autodeterminação. Queremos mostrar caminhos e

possibilidades para que VOCÊ exerça o seu poder. Um passo importante para vencer ou

modificar o sistema ao qual VOCÊ está submetido é realizar seus direitos fundamentais, na

Democracia Direta, sob forma de plebiscito popular, depois de receber uma informação livre e

objetiva.” Esta declaração, extraída de uma partitura8 do início dos anos 1970, explica a síntese

política e programática de Joseph Beuys, o protagonista de uma arte, uma criação, que é, antes

de tudo, palavra – palavra como articulação do pensamento.

Joseph Beuys ocupa um lugar completamente singular no panorama da história da arte

contemporânea. Com um procedimento inédito, Beuys, antes de mais nada, expandiu os limites

do tradicional conceito restrito de arte. Seu conceito ampliado de arte representa o ponto de

partida e de chegada de uma concepção da criatividade humana que não pode mais ser

circunscrita apenas à arte, mas que inclui dentro de si outras disciplinas, a começar da política e

da economia; e, com estas, todas as problemáticas sociais que demandam uma transformação

real e radical.

Transformar, mudar, melhorar, indicar, moldar, comunicar, por meio da intuição, da ação,

da energia, do pensamento, da solidariedade, da criatividade. Para Joseph Beuys, essas palavras

são ações do pensamento, que concretizam a possibilidade mais alta e profunda de conceber a

                                                            8 O termo “partitura” (no alemão, Partituren) era usado por Joseph Beuys, nos anos 1960 e 70, para designar folhas com desenhos e anotações que fazia para traduzir seus pensamentos durante entrevistas ou enquanto projetava ações e intervenções. Para o artista, os projetos relacionados à escultura social eram regidos por um princípio similar ao da música; daí o uso do termo, que em alemão também designa notação musical. 

Page 20: Apostila Joseph Beuys

17 

 

política como um procedimento criativo, que coloca em primeiro lugar – ou melhor, no centro de

suas práticas –, o próprio homem e sua liberdade.

A partir da segunda metade dos anos 1960, Joseph Beuys pontua sua prática como artista,

professor e homem com a realização de debates e a criação de organizações; sua procura

contínua é no sentido de concretizar a comunicação com outros homens, os indivíduos

privilegiados de um trabalho voltado para o desenvolvimento e para a construção de uma plástica

social.

Em setembro de 1971, hóspede do galerista Lucio Amelio, na pequena ilha de Capri,

Joseph Beuys formulou um dos princípios fundamentais da visão de uma nova arte e, sobretudo,

de um conceito ampliado de arte, que abarca todo o gênero humano. Trata-se de um verdadeiro

manifesto, que proclama a capacidade de autodeterminação do indivíduo e da coletividade para

além de qualquer limite imposto pelos sistemas políticos e sociais.

O surgimento da partitura Die Revolution sind wir (A revolução somos nós), acompanhada

da imagem em que ele aparece vindo em direção a nós, representa, a meu ver, um dos

momentos mais significativos de seu posicionamento como homem e artista. A posição frontal de

seu corpo é afirmativa da intuição, da vontade e do pensamento. O passo é decidido, a passada é

ampla, o olhar é firme e está voltado para nós, como que confirmando a decisão voluntária de dar

ao homem, à sua criatividade, um novo estatuto antropológico.

Para Beuys, as partituras representam um convite a uma ação. São instruções para o

olhar. Seu sentido supera os limites da folha e da palavra; elas apontam direções para encontrar

um caminho para a transformação.

A revolução somos nós representa a síntese política de uma utopia que se anuncia como

caminho e percurso não apenas para Beuys, mas, antes de tudo, para nós.

É a partir desse primeiro esboço italiano que todo o trabalho de Beuys se direciona para

um centro: o homem, e apenas o homem. Um homem não mais concebido como matéria passiva,

mas como matéria ativa, entidade vital, criativa, eticamente empenhada na metamorfose e na

transformação da estrutura social em um organismo gerador de criatividade libertadora.

Beuys diz com clareza que o indivíduo sozinho não pode avançar para um caminho de

autodeterminação. Escreve claramente: somente nós podemos alcançar um percurso que se

anuncia como libertador.

Esse nós juntamente com o você e o eu já estão inscrevendo esse percurso no registro da

Utopia, a tríplice condição que determina qualquer transformação social. O percurso está

indicado, mas cabe a nós colocá-lo em prática – antes de tudo, com os recursos de nossa

criatividade, aquela que todo homem possui: “Todo homem é um artista”.

18 

 

Todo homem possui um capital de criatividade, em todos os campos. Este é o único capital

humano verdadeiro. Kunst = Kapital.

A revolução que Beuys anuncia na arte não tem o caráter violento das revoluções

históricas. Certamente ele tem como referência a tríplice fórmula da Revolução Francesa (liberté,

egalité, fraternité); no entanto, afasta-se dela, em uma visão política que se funda no potencial de

criatividade do gênero humano. Exatamente como havia declarado Anacharsis Cloots à

Assembleia Geral, quando, em seu último discurso, falou em nome de toda a humanidade.9

Em uma entrevista concedida em julho de 1972, Joseph Beuys não hesitou em esclarecer

o conceito de revolução que tinha em mente. À pergunta feita por Giancarlo Politi, diretor da

revista Flash Art (n. 168), não hesitou em responder: “G.P.: Em seu Büro der Organisation für

direkte Demokratie durch Volksabstimmung (Escritório pela democracia direta por plebiscito),

aqui na Documenta 5, há uma faixa que diz A revolução somos nós. O que você quer dizer

exatamente? J.B.: Quero dizer que as pessoas poderiam fazer a revolução se usassem seu

próprio poder. Mas elas não estão conscientes do enorme poder que têm, e é por isso que não se

faz nenhuma revolução. É isto que quero dizer com este slogan. Mais uma vez as pessoas têm o

poder de mudar a situação, mas não têm consciência disso. Por isso reputo como meu dever

informá-las do enorme poder que possuem, e vou trabalhar cada vez mais por essa causa.”

Trata-se, como se pode ver, de pensar em uma direção que restitui ao homem a capacidade

criativa da transformação, por meio da informação e da comunicação, pedras fundamentais da

prática artística de Beuys: a escultura social é antes de tudo pensamento, e o pensamento é

escultura social.

Beuys tem naqueles anos, portanto, um interesse capital: superar o conceito tradicional de

arte. Tudo converge para essa superação: suas performances, debates, organizações,

entrevistas e exposições são feitas para construir o Palácio do Homem, o Palácio Real que todo

homem pode habitar. Pois todo homem é um rei e toda mulher, uma rainha, como ele declarou

em sua última entrevista.

E a arte, a produção de objetos? Onde e como se coloca nesse universo político no qual

tanta importância é confiada à palavra? O próprio Beuys esclarece isso em uma afirmação feita

nos mesmos dias do surgimento da partitura A revolução somos nós: “Para se comunicar, o

homem se serve da linguagem, usa gestos, a escrita, picha um muro, pega a máquina de

escrever e extrai letras dela. Em resumo, usa meios. Que meios usar para uma ação política? Eu

escolhi a arte. Fazer arte é, portanto, um meio de trabalhar para o homem, no campo do

                                                            9 Revolucionário prussiano eleito para a Convenção Nacional francesa em 1792, no período jacobino da Revolução, sonhava com uma república universal que reunisse todas as nações. Foi guilhotinado em 1794 por decisão de Robespierre, então presidente da Convenção Nacional. 

Page 21: Apostila Joseph Beuys

19 

 

pensamento. Este é o lado mais importante do meu trabalho. O resto, objetos, desenhos,

performances, vem em segundo lugar. No fundo, não tenho muito a ver com a arte. A arte me

interessa apenas enquanto me dá a possibilidade de dialogar com o homem.”

Mas Joseph Beuys está consciente de que o processo de transformação da política em

arte não pode passar apenas e tão somente pelo seu exercício de artista. Deve envolver,

também, seu exercício como professor na Academia de Düsseldorf. Para concretizar esse

processo de transformação em todos os setores da vida social, são necessárias organizações e

pessoas – alunos, galeristas, editores.

Em 1967, Beuys funda, com Johannes Stüttgen e Bazon Brock, o Deutsche

Studentenpartei (Partido dos Estudantes Alemães), que diz ser “o maior partido do mundo,

porque a maioria de seus membros são os animais”. Em 2 de março de 1970, funda a

Organisation der Nicht Wähler, Freie Volksabstimmung (Organização dos Não Votantes –

Plebiscito Livre). Em 1º de junho de 1971, a Organisation für direkte Demokratie durch

Volksabstimmung (Organização pela Democracia Direta por Plebiscito), que redesenha os

princípios da Revolução Francesa usando os princípios interpretativos de Rudolf Steiner:

liberdade do espírito, igualdade perante a lei e fraternidade na economia.

Mais do que qualquer outra, a organização que concretiza o espírito do pensamento de

Beuys é certamente a FIU. Concebida como Freie Internationale Universität (Universidade Livre

Internacional), ela foi apresentada oficialmente em 23 de abril de 1973, em Düsseldorf, por Beuys,

Klaus Staeck e o escritor Heinrich Böll, que ganhara um prêmio Nobel em 1972. Outras sedes

internacionais seriam abertas em seguida na Irlanda, Inglaterra, Itália e Holanda.

A FIU logo passou a ser parte orgânica de obras e operações históricas. Entre elas,

destaca-se a participação de Beuys na Documenta 6 de Kassel, onde apresentou a obra

Honigpumpe am Arbeitsplatz (Bomba de mel no local de trabalho). A FIU participou ativamente

dos debates durante os cem dias da exposição. Outra performance espetacular de Beuys

coordenada pela FIU aconteceu durante a Documenta 7: o plantio, na cidade, dos famosos 7000

Eichen (7000 carvalhos). O projeto, que funde questões políticas e ambientais, resulta em um dos

exemplos mais acabados da ideia de escultura social; e é, ao mesmo tempo, uma obra

escultórica viva, destinada a durar. Uma obra que, superando a visão tradicional de arte,

anunciava-se ao futuro como a mais grandiosa escultura social já vista na história da arte

contemporânea, da política, da cultura.

Em um famoso discurso pronunciado em 1985 no teatro Münchner Kammerspiele, em

Munique, Joseph Beuys fala da FIU e de sua adesão ao Partido Verde, ao percorrer as fases de

sua intensa obra de transformação da política em arte. “Quando digo que todo homem é um

artista, não estou querendo que acreditem nisso. Relato, simplesmente, o resultado do meu 20 

 

trabalho. Seguindo a lógica, deduzi que, depois da nossa época, deverá acontecer uma mudança

fundamental na consciência humana. Foi o que me levou a fazer experimentos sobre isso e a

passar à ação. Quando já estava na plenitude de minha atividade profissional – e aqui deixo de

lado, de propósito, tudo o que se refere a política, tanto no plano teórico quanto prático, já que

estou cada vez mais convencido de que ela é algo fatal e inútil –, fundei uma sociedade que

propunha a democracia direta, levando em conta vida e morte, vitórias e derrotas, quedas e

renascimentos em nosso país. O vínculo com a democracia, ou seja, com os direitos do homem,

parecia-me demasiadamente unilateral. E, já que o ponto orgânico de partida, isto é, a nascente à

qual me referi ao falar da língua – aquela onde podemos nos refrescar e da qual jorra a

consciência de nosso eu –, constitui, junto com o pensamento e o conhecimento, o elemento mais

importante que existe, achei necessário identificar o polo da liberdade, que deriva da crescente

autoconsciência, em um experimento chamado Universidade Livre Internacional. Mais tarde,

como membro dela, fui um dos fundadores do Die Grünen (Os Verdes), isto é, do partido dos

ecologistas-pacifistas. Esse movimento já mostra que as coisas muitas vezes têm caráter

experimental – como, aliás, devem ter.

Não quero de forma alguma falar dos Verdes ou do que estão fazendo. Repito, apenas,

que o conceito de política torna-se, para mim, cada vez mais impossível. Quanto mais considero

a coisa em sua peculiaridade, mais me convenço de que o homem é o ser criativo por excelência.

Assim, estou trabalhando com o soberano, sobretudo no âmbito de um sistema democrático. O

homem precisa saber que, em sua liberdade e na ação exercida conscientemente, o eu se

reconhece como soberano, como aquele que determina. Assim, o caráter da autodeterminação

faz-se fundamental. Apenas esse impulso é capaz de reestruturar a sociedade.”

A FIU ainda está ativa em suas diversas sedes internacionais.

2

Cartazes e múltiplos

Em 1964, o sociólogo canadense Marshall McLuhan publicou o livro Understanding Media

(Os meios de comunicação como extensões do homem), dando início a uma revolução total em

nossa forma de conceber os meios de comunicação. Dos jornais ao rádio, da publicidade à

fotografia, da palavra falada e escrita à televisão, do telefone à máquina de escrever, o universo

da comunicação, chamado por McLuhan de Galáxia Gutenberg, era alvo de uma reflexão

destinada a mudar para sempre nossa maneira de nos comunicar – e, ao mesmo tempo, nossos

sentidos.

Page 22: Apostila Joseph Beuys

21 

 

Na noite de 11 de dezembro de 1964, Joseph Beuys apresentou uma performance

intitulada Das Schweigen von Marcel Duchamp wird überbewertet (O silêncio de Marcel Duchamp

é superestimado). A performance foi transmitida ao vivo pela emissora regional do segundo maior

canal de televisão alemã. Beuys utilizou gordura e feltro diante dos telespectadores, introduzindo,

assim, o uso da palavra como prática criativa e o uso de materiais que comunicam a essência

como substância.

O ruído da palavra foi uma escolha precisa para Joseph Beuys. Aliás, foi a escolha que

antecipou todo seu trabalho futuro. Trata-se de opor a comunicação à anticomunicação; trata-se,

sobretudo, de “abrir bem a boca” para comunicar o conceito ampliado de arte. Surgido justamente

naqueles anos, é o conceito que define a posição de Beuys, única no panorama das

neovanguardas e a mais revolucionária da história da arte contemporânea.

O próprio uso do meio televisivo sugere que a prática incentivada por Beuys subvertia as

regras estáticas das vanguardas. Para superá-las, ele usava um meio humano; mas também se

servia do que era, até ali, o mais avançado meio tecnológico de comunicação entre os homens.

Esse pensamento assume, em suas palavras, um significado sobretudo escultórico: a

escultura social, da qual se declara intérprete, ganha forma e corpo, e se instala na mídia como

ideia superior a qualquer linguagem midiática, para afirmar um conceito de arte totalmente

relacionado com o homem.

“Meu caminho passava pela palavra; por mais que pareça estranho, não provinha do

chamado talento artístico. Quando percebi que a palavra seria também uma via única, então

decidi-me pela arte (…). A arte me levou ao conceito de uma escultura que começa na palavra e

no pensamento; que aprende a construir ideias com a palavra, e a transferir, para as formas, o

sentir e o querer. Se o pensamento não falhar nessa tarefa, se prosseguir inabalável, aparecerão

as imagens que espelham o futuro. As ideias tomarão forma.” Estas palavras, pronunciadas em

Munique um ano antes da morte de Beuys, revelam o projeto de comunicação que era

fundamental em sua obra. Mas também nos revelam que é por meio das palavras que as ideias

tomarão forma, serão transmitidas; e que delas, enfim, “surgirão as imagens”.

Aqui nasce a escultura social, que questiona, de forma radical, o conceito tradicional da

arte. Mas que também coloca como tarefa principal não recorrer unicamente ao emprego de

materiais físicos.

Para Joseph Beuys, o ruído da palavra protagoniza o primeiro meio de comunicação entre

os homens. O ruído não será mais secreto (como também havia sugerido Marcel Duchamp); virá

a público, será exposto, publicado, divulgado. Por meio dele, as ideias tomarão forma, e as

imagens surgirão.

22 

 

A arte é multiplicada pelas multidões que a recebem. Ela é um veículo que carrega um

diálogo ininterrupto de ideias e de pensamentos transformadores. Quando Beuys fala da arte

como “a possibilidade de um diálogo com o homem”, em A revolução somos nós, mostra-nos o

ponto ao qual seu percurso consciente havia chegado. Trata-se, na verdade, de superar o

modernismo para alcançar o campo da informação, por meio da palavra e da linguagem.

Às vezes, a informação e o diálogo que ativam a máquina da transmissão e da recepção

só precisam de meios simples, tradicionais, para ser difundidos.

Múltiplos, cartazes e cartões-postais tornam-se, a partir da segunda metade dos anos

1960, um verdadeiro arsenal de propaganda para a escultura social e o conceito ampliado de

arte. Esse arsenal – pacífico –provou-se o maior que um artista já criou.

Todas essas formas de arte são veículos que irão criar um “movimento de informação”,

destinado a transmitir ideias e transportar o pensamento. O arsenal de Beuys é também a maior

metáfora da linguagem, da palavra e da troca que sua obra oferece. A palavra “metáfora” deriva

do grego metaphérein, que significa transportar. “Nenhum meio de comunicação se limita a

carregar a mensagem. Eles também traduzem e transformam a mensagem, o emissor e o

receptor. O uso de qualquer meio, de qualquer extensão do homem, altera os esquemas de

interdependência entre as pessoas, e as relações entre os sentidos”. É essa capacidade e

possibilidade da transformação na relação entre emissor e receptor que interessa a Joseph Beuys

e ocupa grande parte de sua obra.

Na verdade, a citação reproduzida acima, por mais que pareça pertencer ao mestre

alemão, é de Marshall McLuhan. Mas, a meu ver, adapta-se bem ao pensamento por trás da

vehicle art que Joseph Beuys põe em ação com seus editores, galeristas, colaboradores, alunos

na Academia de Belas-Artes de Düsseldorf, intelectuais e fotógrafos. Mas, sobretudo, por meio da

FIU.

É um excepcional material de propaganda que ele usa para veicular suas ideias. E

veiculação significa circulação, como a do sangue nos organismos vivos; significa transporte e,

como todo movimento, gera pontos de vista diferentes; significa transformação, ou seja, provoca

alterações nas substâncias e nos seres, melhora; e, sobretudo, significa distribuição, o que

resulta em uma autêntica revolução na arte. Ela se torna, enfim, democrática e direta.

Foi usando esses meios simples que Joseph Beuys veiculou e transmitiu seu conceito

ampliado de arte e nos deu a possibilidade de construir a escultura social. O conteúdo de seu

arsenal é enorme; eu diria mesmo monumental. É uma forma nova e grandiosa de escultura. Uma

escultura feita de palavras, imagens, símbolos, materiais, substâncias, cores, objetos e

metáforas, que nos remete ao futuro da arte, e não apenas da arte. Sobretudo, que nos leva a

uma nova sensibilidade.

Page 23: Apostila Joseph Beuys

23 

 

“Se a publicidade é uma arte ou não, isso depende do que você está anunciando”,

declarou o artista no início dos anos 1970.

Entre 1965 e 1986, Beuys produziu 557 múltiplos. Muitos, em tiragens altíssimas, às vezes

de mil, 5 mil, 10 mil, 12 mil exemplares, e outros em tiragens ilimitadas. É uma fórmula única no

mercado de arte, que é submetido a uma verdadeira avalanche de objetos, fotografias, imagens,

ideias e pensamentos.

Os postais somam cerca de setenta, mais de vinte deles produzidos pela FIU; todos têm

tiragem ilimitada. Como viajam e transportam a ideia do conceito ampliado de arte, são

verdadeiros veículos de propaganda, a menor fórmula – em dimensões e custos – de uma obra

que demanda o intercâmbio entre as pessoas, entre emissor e receptor. Em última análise, são

uma fórmula da comunicação ativa e poderosa.

Por fim, são quase trezentos os cartazes que Beuys produz ao longo de sua incansável

atividade. A maior parte anuncia exposições ou performances. Juntos, eles registram todo o

percurso do artista. Uma grande parte é puro material de propaganda; o texto, em forma de

declaração ou manifesto, ocupa todo o espaço. A quantidade excepcional desse material deixa

clara a grande tarefa que o artista confiava à distribuição de veículos de seu pensamento e ideias.

O cartaz representa certamente uma mídia essencial na nossa cultura visual. É uma forma

de comunicação que atravessa séculos e, no entanto, não dá sinais de desaparecer. Mesmo já

modificado – nos materiais que lhe servem de suporte, nas técnicas de exposição e reprodução,

nas dimensões – e apesar dos novos e poderosos instrumentos de propaganda que surgiram.

Sua evolução foi notável, sobretudo nos estilos pictóricos e de ilustração que se alternam

desde o início do século passado, ao sabor das mudanças do gosto e de novas condições

sociológicas e técnicas, que aumentam as dimensões e tornam a imagem fotográfica cada vez

mais importante.

Joseph Beuys não perdeu nenhuma oportunidade de usar esse meio de comunicação de

massa para promover suas ideias e dar forma visual ao seu pensamento. Qualquer ocasião

especial lhe servia: exposições em galerias e museus, debates, performances, projeções,

denúncias, eventos. Dessa maneira, e

de forma continuada, mais intensamente a partir da segunda metade dos anos 1960, Beuys

traçou uma estratégia paralela à sua obra e integrada a ela. Organizou uma máquina de

propaganda que se materializou, antes de tudo, na enorme produção de múltiplos, cartazes e

postais.

Com esses meios, o artista faz uma verdadeira semeadura. Constrói, ativa e dirige uma

máquina de semear ideias e pensamentos, dentro e fora do território da arte, dentro e fora do

24 

 

terreno da comunicação social. É a energia pura do intercâmbio, na qual visual e palavra

colocam-se no mesmo plano, no intuito da troca, da transformação – enfim, da plástica social.

Nesse sentido e nessa direção, sua frenética máquina da comunicação encontra nas artes

gráficas dos cartazes um motor único, que distribui e veicula, semeia e difunde a demanda básica

dos homens por comunicação.

Os cartazes de Joseph Beuys são, portanto, o motor ativo de sua máquina; há muitos

anos, atraem atenção, análise e colecionadores. Eles representam visualmente o seu conceito

ampliado de arte; e demonstram suas potencialidades, antes de tudo, no envolvimento das

pessoas que colaboraram com o artista na sua feitura.

É por isso que, ainda que nem todos os seus cartazes tenham sido feitos diretamente por

ele, mas sim a seu pedido, todos devem ser considerados parte integrante, autônoma e

importante de sua obra. Na verdade, uma parte essencial dessa obra, que traz o aspecto da

comunicação pela propaganda ao primeiro plano, e produz atenção multiplicada, ampliada.

Dois catálogos documentam a importância dessa produção, iniciando um levantamento

definitivo da propaganda pela arte. O primeiro se refere à exposição Joseph Beuys. Plakate

(Joseph Beuys. Cartazes), apresentada na Bayerische Staatsbibliothek de Munique em abril de

1991, com curadoria de Peter Weiss e Florian Britsch. Editado pela Schneider-Henn,10 traz breves

textos dos curadores e tenta organizar esse grande, surpreendente e subestimado

empreendimento do artista. Mas, ainda que as breves legendas que os apresentam forneçam

preciosas informações sobre sua origem, cobre apenas cerca da metade dos cartazes produzidos

por Beuys.

O segundo catálogo foi editado por ocasião da exposição Beuys. Posters, com curadoria

de Isabel Siben, que também mostrou ao público internacional a importância teórica e prática

atribuída ao meio pelo artista alemão. O livro cataloga 288 cartazes. A exposição, que viajou

entre os museus de Munique, Hamburgo e Heidenheim de setembro de 2004 a abril de 2005, foi

acompanhada por um catálogo bilíngue que reúne as atentas reflexões da curadora e uma

excelente entrevista com Klaus Staeck, o primeiro e mais importante editor dos múltiplos,

cartazes e postais de Beuys.

Na entrevista, Staeck declara: “Para Beuys, postais e cartazes não eram, de forma alguma,

subprodutos de seu trabalho artístico; ele os levava tão a sério quanto qualquer outra obra. Foi a

ideia do múltiplo, sobretudo, que nos uniu. Ambos estávamos muito interessados na

democratização do mercado da arte. Fizemos mais de duzentas edições; ou, se incluirmos os

                                                            10 Editora com sede em Munique. 

Page 24: Apostila Joseph Beuys

25 

 

postais, quase trezentos. Em uma entrevista, ele declarou que seu interesse na edição de

múltiplos, cartazes e postais era disseminar ideias”.

“Não consigo criar múltiplos sozinho.” Estas palavras dão a entender que, para Joseph

Beuys, a criação de obras multiplicadas implica necessariamente o envolvimento de outros. Esse

princípio, que ele perseguia de forma tão intensa e coerente, está na base do conceito ampliado

de arte e da ideia de escultura social.

Em Beuysnobiscum,11 Harald Szeemann, curador da maior retrospectiva de obras de

Joseph Beuys, entre 1993 e 1994, escreve, sobre a vehicle art: “Um veículo é um veículo. Ajuda a

chegar a algum lugar”. Beuys aplica a expressão vehicle art à sua obra desde o início dos anos

1960. Ela assinala seu distanciamento do movimento Fluxus. Para falar dos múltiplos, sempre

usou a definição vehicle.

No cenário internacional da arte, os múltiplos tornaram-se moda no início dos anos 1960,

como uma nova forma de produção artística, possibilitada pelas técnicas de reprodução. De fato,

para editores e artistas, o aspecto democrático dessa produção era importante. O próprio Beuys

declarou que o interessava alcançar com ela “o maior número de pessoas possível”.

Além disso, para Beuys, os múltiplos significavam, também, uma possibilidade de colocar

em discussão a obra de arte como fetiche – uma discussão não por acaso promovida por Marcel

Duchamp com os seus readymade.

O mestre francês, nos anos 1960, declarou-se abertamente contra a prática artística da

reprodução, considerando-a uma prática vulgar. A obra de maior tiragem de Beuys é a pequena

caixa de madeira com a inscrição Intuition (Intuição), que chegou a 12 mil exemplares.

Para Joseph Beuys, esses veículos multiplicados eram ideias e memórias permanentes,

pontos de referência, monumentos transportáveis. Suas ideias transformavam-se em múltiplos,

chegavam às casas, à vida, à consciência das pessoas, e isso de forma simples, não dogmática,

como “um jogo”, como “constelações onde muitas coisas podem ser encontradas”.

Realmente, nos múltiplos Beuys parafraseia todos os conteúdos e formas de suas obras

maiores – das performances à atividade política.

                                                            11 Apêndice enciclopédico sobre a obra de Beuys organizado pelo crítico suíço Harald Szeemann (1933-2005) e

publicado no catálogo da exposição Joseph Beuys (Kunsthaus, Zurique, 1993-1994; Museo Nacional Reina Sofía,

Madri, 1994). Reúne textos assinados por críticos de arte, como o suíço Tobia Bezzola, autor do trecho sobre vehicle

art. A maioria dos textos são do próprio Szeemann, curador da exposição. Responsável pela Documenta de Kassel

em 1972 e pelas Bienais de Veneza (1999 e 2001), o suíço é considerado o primeiro curador na acepção

contemporânea do termo. 

26 

 

“Cria-se uma afinidade direta com as pessoas que possuem esses veículos. Eles são como uma

antena que está em todos os lugares, permitindo a comunicação”, declarou, em uma entrevista.

Sem dúvida, para Beuys, não se tratava de vender obras de arte em maior quantidade, mas,

muito mais, de dar impulso a uma transformação na arte e na sociedade que, em última instância,

se revela política. Não por acaso, os múltiplos tornaram-se os veículos de propaganda da

Organização pela Democracia Direta e da FIU; apenas na vinculação com a práxis espiritual e

política eles adquirem sua verdadeira importância, algo que hoje emerge em sua totalidade.

“Interessa-me difundir veículos físicos, em forma de edições, porque me interessa difundir

ideias. Esses objetos só podem ser compreendidos na relação com as minhas ideias.” Esse é o

pensamento central a ser espalhado, e que se materializa em objetos e reproduções. Essa é a

importância de uma escolha compartilhada pelo artista e seus editores com os que possuem

esses objetos. Essa é a importância dessa produção e de mostrá-la. Esse é, enfim, o motivo

principal de uma exposição na qual esse material de propaganda por excelência se reativa no

contato e na comunicação com o público. Na qual múltiplos como o vaso Rose für Direkte

Demokratie (Rosa pela democracia direta), os quadros-negros Kunst = Kapital, a caixinha Intuition

(Intuição), o Telefon S_3 (Telefone S_3) composto por duas latas e um barbante, a Capri-Batterie

(Bateria Capri), que sugere a energia da natureza, as garrafas de Vino F.I.U. (Vinho F.I.U.) e os

Ampolia d’oli Defesa della Natura (vidros de azeite Defesa da natureza) estejam presentes ao

lado dos cartazes e postais. A soma desses múltiplos, escolhidos também por sua significação

política, é, a meu ver, a forma mais correta de ativar as ideias de Joseph Beuys.

A coleção de cartazes que compõem a exposição A revolução somos nós, no SESC Pompeia

e no Museu de Arte Moderna da Bahia, é a maior da Europa e talvez, também, do mundo. Ela

reúne mais de duzentos deles, a maior parte assinada por Beuys. Uma longa e paciente

pesquisa, conduzida por Luigi Bonotto antes e depois de janeiro de 1986 – ano da morte de

Beuys –, permite-nos apresentar um panorama amplo da obra de Joseph Beuys.

Bonotto criou uma coleção única, que nos convida a ver a obra de Beuys como um

verdadeiro processo de comunicação, de diálogo com outros, dentro e fora do sistema da arte.

Grande parte dessa coleção foi apresentada em projeção virtual na 52ª Bienal de Veneza, em

2007; e em um catálogo editado por mim. Nos últimos três anos, a coleção de cartazes de Beuys

foi notavelmente ampliada por Luigi Bonotto. Hoje, apresenta-se ao público brasileiro e

internacional em sua real dimensão pela primeira vez.

A coleção nasceu do particular interesse de Bonotto pelos artistas do movimento Fluxus.

Colecionador extremamente atento e de enorme sensibilidade, o empresário de Bassano del

Grappa reuniu obras e documentos dos protagonistas desse período extraordinário da arte

contemporânea. A enorme contribuição do Fluxus para o desenvolvimento das neovanguardas do

Page 25: Apostila Joseph Beuys

27 

 

pós-guerra já foi reconhecida, ainda que com atraso, pelos maiores museus do mundo. O grupo

encontrou um lugar e um papel de relevo na história da arte contemporânea.

A paixão pelo espírito Fluxus levou Luigi Bonotto, em quase trinta anos, a desenvolver uma

coleção de concepção completamente singular, que passa, antes de tudo, pela relação com os

artistas. Em sua casa hospedaram-se e trabalharam Ben Patterson, Dick Higgins, Alison Knowles,

Philip Corner, Eric Andersen, Milan Knizak, Takako Saito, Gianni Emilio Simonetti e outros. Além

disso, a afinidade com o radicalismo propositivo do Fluxus levou-o a criar amizades especiais

com artistas como Ben Vautier, Nam June Paik, George Brecht, Daniel Spoerri, Robert Filliou,

Giuseppe Chiari, Yoko Ono (de quem produziu a grande mostra Sonhar no Museu de Santa

Caterina, em Treviso, em 2007) e Emmett Williams, de quem colecionou obras e documentos

extremamente raros e de notável importância histórica. De George Maciunas, artista, teórico e

fundador do Fluxus, encontram-se na Coleção Bonotto as mais raras obras, testemunhos e

documentos. A exposição Fluxus, realizada na Le Passage de Retz, em Paris, com curadoria de

Bernard Blistene, em 2009, foi testemunho dessa apaixonada admiração.

Era inevitável que o percurso desse colecionador de extraordinária coerência passasse

pela produção fundamental do mestre alemão. O próprio Luigi Bonotto confirma os motivos dessa

escolha. Em entrevista recente, disse: “Com Beuys, comecei a entender e apreciar o ato da

comunicação. A obra mais importante de sua vida foi a comunicação. Por isso me apaixonei por

colecionar seus cartazes, que são, para mim, a documentação dessa comunicação, desses atos

que resumem o trabalho de sua vida”.

A estratégia de propaganda que Joseph Beuys aciona com essa produção é de caráter

político. Não se trata apenas de anunciar exposições ou debates, mas, sobretudo, de despertar a

consciência de quem olha e lê esses cartazes.

Para isso, ele usa as mais diversas variantes. Primeiro, usa sua própria imagem e seu

próprio nome. Às vezes, sua imagem invade todo o cartaz, com o rosto em primeiro plano, ou o

corpo inteiro. No cartaz editado pelo galerista italiano Lucio Amelio em novembro de 1971, para

anunciar sua primeira exposição italiana, ele aparece avançando para frente; o título A revolução

somos nós está escrito à mão. No cartaz criado pelo galerista nova-iorquino Ronald Feldman para

anunciar um encontro-debate na New School, em janeiro de 1974, ele surge em um retrato de

Gianfranco Gorgoni.

Em outras ocasiões, apenas partes significativas de seu corpo estão em evidência, sobretudo as

mãos – que fazem ou seguram objetos – e as pernas, pés e joelhos, que se movem, caminham,

trabalham.

A relação de equilíbrio entre texto e imagem – tão mencionada pelas teorias das artes

gráficas contemporâneas – é muitas vezes questionada, em variantes extremas. Em alguns 28 

 

casos, há só a imagem e um texto mínimo, com assinatura. Em outros, não há imagem. O cartaz

é devolvido à sua função original de anúncio e reduzido ao texto, com frequência a reprodução de

um texto escrito à mão pelo próprio artista, em seu estilo característico.

Entre essas possibilidades, seu nome é uma presença forte, nas variantes JOSEPH

BEUYS ou, simplesmente, BEUYS, e às vezes invadindo a metade do espaço do cartaz.

Esses aspectos estão conjugados em uma “estética do cartaz” que avança na mesma linha

das escolhas e acontecimentos que preenchem a existência de Beuys como homem e artista.

Como acontecia em sua obra, o branco e o preto, os cinzas e o marrom preponderam, apesar da

invasão de cor exaltada pela publicidade da época.

Outro aspecto é a escolha das imagens, muitas vezes consideradas mais pelas ideias que

exprimem do que pela perfeição formal.

Por fim, nota-se a frequente presença de outras pessoas nas imagens, o que as eleva à

condição de colaboradores ou de solidárias às ideias e ao pensamento que sua arte quer

expressar. Toda sua produção de vehicle art está repleta desses casos. Galeristas, artistas,

alunos, colaboradores, fotógrafos e principalmente a Free International University aparecem como

protagonistas ao lado do artista – que, ao incluí-los, dá destaque a sua preciosa colaboração.

No corpo central dos cartazes, há reproduções de desenhos, obras, cenários e objetos.

Eles põem essa produção no percurso de artista de Beuys, mas sem distanciá-lo do propósito de

também – se não principalmente – tornar visíveis, por meio dos cartazes, o conceito ampliado de

arte e o conceito de escultura social.

Beuys se serve com frequência de imagens de obras importantes ou de objetos e múltiplos

de grande impacto visual para criar “prolongamentos visuais” nos cartazes. A beleza dos

desenhos se presta, por sua vez, ao uso frequente, nos cartazes, de imagens-textos que

divulgam a Democracia Direta, o Partido Verde e as atividades da Free International University.

Alguns cartazes são especialmente significativos, não apenas pelas razões mencionadas,

mas sobretudo, a meu ver, porque criam uma frente comum entre a obra e o pensamento. Com

isso, restituem ao cartaz a dignidade de obra única; ao mesmo tempo, ampliam seu sentido rumo

a uma comunicação total. Esses cartazes já fazem parte da rica iconografia de Beuys; eles nos

levam à ideia de uma palavra que se torna imagem.

Em primeiro lugar, e até por suas dimensões (190 x 100 cm), A revolução somos nós, que

usa uma fotografia de Giancarlo Pancaldi para anunciar a primeira mostra italiana de Beuys,

aberta em 13 de novembro de 1971, na Modern Art Agency, de Lucio Amelio, em Nápoles. Em

imagem frontal, o artista avança em seu uniforme, como se declarasse que a autodeterminação

não é feita de revoluções violentas, mas de trabalho contínuo em direção a uma democracia

direta – que, por sua vez, se estrutura no corpo social, entendido aqui como organismo, por meio

Page 26: Apostila Joseph Beuys

29 

 

da criatividade. É o manifesto do mestre que alcançou uma clareza a respeito de seu

compromisso como artista e homem.

Em 1978, um par de cartazes anunciam a criação da Fundação pelo Renascimento da

Agricultura e o debate que aconteceria em Pescara, em 12 de fevereiro de 1978, no contexto da

apresentação oficial da FIU na Itália e do lançamento da edição italiana do livreto Ação terceira

via. O debate aconteceu na sala da Bolsa de Mercadorias da Câmara de Comércio da cidade. Os

agricultores da região encontram-se todas as segundas-feiras nesse local para vender seus

produtos. A difusão dos conceitos de arte ampliada e de escultura social se utilizaria desse

mesmo lugar de intercâmbio econômico e cultural.

As imagens remetem aos Cem dias de discussão de Kassel (Documenta 6), dos quais a

Fundação pelo Renascimento da Agricultura é a projeção e o prolongamento organizacional. Elas

retomam dois momentos da participação de Beuys na Documenta: um espaço interno ocupado

pela instalação Bomba de mel no local de trabalho; e o gramado dianteiro do Museu

Fridericianum, onde o debate continuava, em forma de socialização, nos momentos de pausa, e

onde o próprio círculo humano parece corresponder a uma autêntica escultura social.

O cartaz da campanha eleitoral dos Verdes, Die Grünen, de 1979, ilustrado por uma

pequena escultura de 1963, intitulada Der Unbesiegbare (O invencível), é emblemático do

compromisso político do artista e de sua posição diante das questões ambientais. Uma pequena

lebre é ameaçada por um soldadinho armado e corajosamente o enfrenta, certa da vitória. O

cartaz, produzido pela FIU a partir de uma fotografia de Ute Klophaus, mostra como o uso que

Beuys faz do meio, sempre de forma consciente, oscila continuamente entre a política e a

estética. Pode servir tanto para estetizar a política quanto para politizar a estética. O cartaz

tornou-se o símbolo da campanha eleitoral; mas sua carga propositiva escapou à maior parte dos

ambientalistas.

Entre os cartazes nos quais o texto é preponderante, três, a meu ver, são particularmente

relevantes, pelo conteúdo que expressam e, sobretudo, porque lembram a função original do

meio como veículo de propaganda.

O primeiro denuncia a expulsão e a demissão de Joseph Beuys da Academia de Belas-Artes de

Düsseldorf, onde dava aulas, por haver admitido em seus cursos 142 estudantes excluídos da

seleção inicial. Produzido por Klaus Staeck em 1972, o cartaz revela o quanto o aspecto

pedagógico, o ensino e a prática da escultura social – mesmo dentro da Academia – eram parte

integrante de sua obra.

O segundo exemplo é o Manifest, de 1979, igualmente produzido por Staeck e também

assinado por Beuys, e que retoma a ata da fundação da FIU.

30 

 

O terceiro cartaz, na realidade composto por três páginas, foi produzido pela FIU em 1979.

Traz a íntegra da Aufruf zur Alternative (Conclamação à alternativa), reproduzida das páginas do

jornal Frankfurter Rundschau de 23 de dezembro de 1978.12 No texto, Beuys conclama à adoção

de uma alternativa aos sistemas sociais do capitalismo privado e do capitalismo de Estado,

depois de declarar o fim iminente de ambos os sistemas. A Aktion Dritter Weg (Ação terceira via)

seria a possibilidade de saída.

Consciente da importância desta Conclamação, Beuys não perde nenhuma oportunidade

para publicá-la, nas mais diversas línguas: italiano, francês, inglês, português. No Brasil, a

ocasião histórica surge na 15ª Bienal de São Paulo, em 1979, quando expõe Brazilian Fond. Esse

cartaz torna-se o manifesto político e estético da escultura social. Na tradução, o título –

Conclamação para uma alternativa global – recebe uma leitura reatualizada. Beuys tinha

consciência das contradições sociais, econômicas e ambientais que o maior país sul-americano

vivia, naqueles anos 1970. O acréscimo do termo global faz do cartaz uma prova de que o

conceito de escultura social não se deve limitar às fronteiras do mundo europeu, mas,

inevitavelmente, levar em conta as condições políticas e sociais de todos os homens do mundo. A

Conclamação deve ser global, porque os motivos da crise política, econômica, ambiental e social,

assim como as soluções, não têm fronteiras políticas ou geográficas.

Ao olharmos para a totalidade da obra desenhada pelos cartazes, não podemos deixar de

lado imagens históricas que, por meio deles, incorporaram-se aos livros de história da arte – ou à

grande, quase infinita, bibliografia que os livros e catálogos sobre Joseph Beuys compõem.

Alguns exemplos são Ohne die Rose tun wir’s nicht (Não conseguiremos sem a rosa), que

usa uma fotografia realizada no Escritório pela Democracia Direta em 1972, e foi apresentado na

Documenta 5 no mesmo ano. Ou o cartaz Demokratie ist lustig (A democracia é engraçada), de

1973, que ilustra o conflito entre democracia direta e burocracia institucional do qual Beuys foi

protagonista, ao lado de seus alunos, nas salas da Academia de Düsseldorf. Na fotografia

excepcional de Bernd Nanninga, ele aparece sorridente e divertido, atravessando as duas filas de

policiais que foram chamados a intervir depois da ocupação da secretaria.13 Em uma das imagens

mais emblemáticas de sua carreira de professor, artista e político, Beuys é o mestre que ri, com

seus alunos-discípulos, da intervenção policial determinada por uma “democracia” atraiçoada por

burocracias e modelos políticos há muito em declínio.

                                                            12 Uma tradução da íntegra de Conclamação à alternativa está editada neste catálogo. 13 De 1961 a 1972, Beuys esteve à frente da cadeira de Escultura Monumental da Academia de Belas Artes de

Düsseldorf; entre outros, foram seus alunos Anselm Kiefer, Katarina Sieverding, Blinky Palermo, Martin Kippenberg.

Em 1972, ocupou a secretaria da Universidade com um grupo de estudantes recusados, para exigir sua admissão.

Por causa do ato, foi demitido do cargo, que só reaveria em 1978, após longa disputa judicial. 

Page 27: Apostila Joseph Beuys

31 

 

O cartaz que anuncia o livro Incontro con Beuys (Encontro com Beuys), lançado em 13 de

maio de 1984 em Bolognano, na abertura do célebre último debate da série Defesa da natureza,14

traz outra imagem emblemática. Sentado no selim de uma bicicleta – veículo humano mecânico e

que demanda equilíbrio – em sua casa-estúdio em Düsseldorf, ele se apoia em caixas de Vinho

F.I.U., como que acariciando a substância energética.

Por fim, há os cartazes americanos Dillinger,15 nos quais buracos de bala furam sua

imagem, uma fotografia feita por Ute Klophaus de I Like America and America Likes Me (Eu gosto

da América e a América gosta de mim), histórica e famosa performance que Beuys realizou com

um coiote na galeria de René Block, em Nova York, em 1974.

Em 1983, quando uma associação de artistas nova-iorquinos organiza a exposição

Subculture, é oferecida a Beuys a possibilidade de criar um cartaz para expor entre os anúncios

veiculados nos trens do metrô. O artista usa o quadro-negro de suas explanações sobre

criatividade; ao branco do giz e ao preto da lousa, acrescenta, em vermelho, e em inglês,

CREATIVITY = CAPITAL, seu slogan sobre a criatividade como verdadeiro capital humano. Ao

intervir no contexto de um meio de transporte popular da metrópole americana, ele alcança uma

dupla veiculação; o cartaz é um veículo de comunicação que atravessa o espaço subterrâneo da

cidade. Com dimensões adaptadas para exibição em espaços públicos, tem 28 x 70 centímetros,

demonstra o quanto é pertinente retomar o tema da escultura social, representado pelos quadros-

negros, desenhos e sobretudo pela frase-fórmula, que sintetiza a totalidade do conceito ampliado

de arte.

Ainda na frente da dupla veiculação estão, a meu ver, os cinco cartazes que trazem o

retrato de Beuys realizado por Andy Warhol em 1980. Beuys usa essa imagem, que mostra seu

rosto em primeiro plano, para subverter seu significado. Para multiplicá-lo, o pai da pop art usou

pó de diamante. Beuys reutiliza o retrato para difundir sua mitologia pessoal, tornando sua

presença real por meio dos traços estilísticos de Warhol, que é apenas o executor. As variantes e

repetições determinam uma multiplicação infinita de sua imagem; o artista, aqui, resolve o

problema da comunicação por meio de seu irmão americano, assim como faz em um cartaz para

a campanha eleitoral do Partido Verde da Alemanha.

Nesse aspecto, a estratégia de comunicação de Beuys – ao reutilizar imagens que haviam

tomado o cenário da arte, numa consagração multiplicada –, mostra-se extremamente arguta. Em

                                                            14 Difesa della Natura, ou Defesa da Natureza, é um slogan que contém a ideia da arte como interação criativa entre homem e natureza, além do nome de um projeto realizado por Beuys, no fim da década de 1970, na vila italiana de Bolognano, na região de Abruzzo, consistindo de esculturas, debates, plantações, múltiplos e agricultura biodinâmica. 15 Em 1974, durante sua primeira visita aos Estados Unidos, Joseph Beuys homenageou o gângster John Dillinger (1903-1934), reencenando seu assassinato a tiros em frente ao cinema onde a execução aconteceu, em Chicago. Ladrão com princípios, Dillinger roubava exclusivamente dos bancos e não molestava inocentes, o que fez dele, nos olhos da opinião pública, uma espécie de Robin Hood. A ação de Beuys ficou registrada no vídeo Dillinger (1974). 

32 

 

sua perfeição, agora também formal, Beuys está seguro de que um rosto, igual ao de qualquer

homem, é suficiente para criar comunicação – seja multiplicado, seja sozinho. Nessas imagens,

ele é mito e homem, é ícone e palavra, é presente e futuro. É, enfim, um artista entre os artistas,

e um homem entre os homens.

Os dois últimos cartazes que menciono aqui, ambos italianos, projetam-se como

antecipação de um futuro iminente na vida de Beuys. O primeiro anuncia sua última grande

exposição, Palazzo Regale, aberta exatamente um mês antes da morte do artista, em sua casa

em Düsseldorf. A mostra, promovida por Lucio Amelio, abriu dia 23 de dezembro de 1985 no

Museu de Capodimonte, em Nápoles. Vida e morte se entrelaçam nas duas vitrines que

compõem essa mostra-testamento, e nos objetos dispostos dentro delas. Tudo parece estar

consumado na instalação, que transmite um silêncio-barulho sem palavras e sem corpo.

O cartaz parece muito distante da sacralidade da instalação. A imagem vem de uma

fotografia de Jochen Schmidt, então jovem fotógrafo berlinense; ela mostra uma Casa de

Manutenção da ANAS, órgão estatal italiano que, a partir dos anos 1930, ocupa-se da

manutenção das estradas do país. A cor dessas casas, espalhadas por todo o território italiano, é

um vermelho-tijolo muito semelhante ao do braunkreutz, mistura de sangue de lebre e ferrugem

que Joseph Beuys usou com frequência em suas obras. Trata-se de um vermelho escuro que tem

a mesma cor do sangue coagulado.

“O sangue é um líquido especial”, escrevia Rudolf Steiner, retomando Goethe, ao tratar da

ideia de reduzir toda a gama de cores à essência substancial. E o próprio Beuys declarara, em

1979: “O vermelho é uma cor natural, uma força primordial que se sobrepõe a qualquer

materialidade possível; a ponto de constituir, para mim, baseando-me nesse pressuposto, não

tanto uma cor, mas uma verdadeira substância plástica. Utilizo também o marrom com esse

sentido, de expressar tudo o que tem a ver com formas substanciais”.

A edificação no cartaz é a casa onde se alojam os trabalhadores que cuidam da

manutenção da estrada local, para que seus usuários não tenham problemas ou se percam.

Somos nós que estamos percorrendo essa estrada. O trabalhador que mantém a estrada é

também seu sinalizador; ele cuida dela para nós, que somos a revolução em curso, e nos indica

um percurso. Esta casa vermelho-substância é a casa comum dos homens que tomaram esse

caminho. A via da utopia concreta, pela transformação e pela mudança.

Finalmente, no cartaz editado pelo Museu Cívico de Gibellina, cidadezinha da Sicília que

em 1968 havia sido destruída por um terrível terremoto, uma têmpera marrom e vermelha de

1962 representa uma figura petrificada pela dor, que retoma traços das esculturas de Wilhelm

Lehmbruck. O título dessa imagem é Aufschren in der Nacht ‘Mann in Grab (Tremor na

noite/Homem na tumba). Por seu motivo trágico e pelo trabalho esplêndido do artista, o cartaz é

Page 28: Apostila Joseph Beuys

33 

 

até hoje considerado uma das mídias mais contundentes já devotadas à construção de uma

sociedade melhor.

As enormes potencialidades latentes nos cartazes sugerem que uma imagem multiplicada

pode, sim, servir de ponto de partida para a construção de um mundo livre. A essa prática de

comunicação, Beuys acrescenta um elemento que atesta sua identidade e promove a difusão de

suas ideias. Sua assinatura funciona como prolongamento do conceito ampliado de arte. “Quando

escrevo meu nome, estou desenhando”, diz. Mas seu desenho é, aqui, um projeto de

comunicação entre os homens e com os homens. É dessa consciência que é feito o grande

ensinamento de Joseph Beuys.

3

Filmes e vídeos

Com seus filmes e vídeos, o conceito ampliado de arte de Beuys ganha luz própria. Desde

o início dos anos 1960, essa produção, em todas as suas variantes, já não pode ser separada

das performances, esculturas, instalações, desenhos, aquarelas, debates, quadros-negros,

múltiplos, cartazes e postais do artista.

São os filmes que resgatam a maior parte de suas performances históricas; e isso graças

ao trabalho dos muitos cinegrafistas que as registraram e souberam recriá-las na montagem. O

caráter de presença, entendida como irradiação do ser, tende a desaparecer com o tempo e com

a compactação de performances mais longas, como Celtic (Celta) (1971) ou I Like America and

America Likes Me (1974). Mas em outros registros, em filme ou vídeo, esse caráter de presença

ressurge na totalidade e de forma literal.

É o caso de Soziale Plastik (Plástica social) (1967) e Filz TV (TV feltro) (1970). Nessas

ações, a presença do artista é total. Elas são a transmissão de um ato que envolve seu rosto e

seu corpo reais; o resultado de uma comunicação que vai à essência do meio utilizado, a TV ou o

cinema. Beuys trata as novas mídias como formas de escultura, integrando suas possibilidades

para criar uma obra que não é apenas visual, mas também auditiva e plástica.

Beuys cobre a tela de sua Filz TV com feltro para ressaltar as dimensões plástica e teórica

do veículo. De forma análoga, envolve seu corpo em feltro em I Like America and America Likes

Me; e, em Eurasienstab, são as esquadrias de madeira que cobre com feltro.

A margarina, a gelatina, as bengalas, o cobre, o óleo, a gordura, os alimentos, os animais –

a lebre, o coiote – pontuam um percurso que utiliza as novas mídias, filme e vídeo, como

34 

 

estratégia real para reativar os sentidos e levar nossa visão a unificá-los. Por meio desses

materiais, alcançamos a essência; por meio das imagens, a escultura.

Beuys nunca faz seus filmes e vídeos ele mesmo; sempre confia a outros a grande

responsabilidade da visão e da memória. Tudo nessas obras concorre para criar uma estratégia

de comunicação com o espectador, transformando-as em propulsores, em impulso para a plástica

social.

Ao registrar suas performances em filmes e vídeo, Joseph Beuys define a escultura social

no presente e a ativa, como a um organismo vivo. Frequentemente, suas criações são marcadas

pela monumentalidade; e ainda mais frequentemente essa monumentalidade está ligada à

duração do passado no presente.

O mesmo se dá com o uso da palavra. Joseph Beuys é um grande comunicador. A

palavra, material invisível, é decisiva em seus vídeos; ela assume o papel de eixo principal do

processo de edificação da escultura social. A palavra murmurada de Soziale Plastik; a palavra

precisa de Public Dialogue (Diálogo público); cantada, em Sonne statt Reagan (Sol em vez de

Reagan)N.T.; animal, em Coyote III (Coiote III); musical, como no concerto In Memoriam George

Maciunas ou em Celtic.

“A escultura deve ser ouvida, mais do que vista”, Beuys dizia. Essa primazia da palavra,

que cria a comunicação no caminho entre o emissor e o receptor, está na essência de todos os

vídeos em que o artista discute com o público, dá entrevistas. Com Nam June Paik, o grande

mestre do vídeo, Beuys usa duas vezes o som e a voz. Nenhuma palavra é ouvida ou

pronunciada durante o concerto In Memoriam George Maciunas, ou em Coyote III. No primeiro,

porém, os gestos dão monumentalidade à improvisação musical. No segundo, o microfone

amplifica os sons do animal, que exprimem sua alma; ele torna visível o diálogo entre homem e

bicho, uma comunicação que não se esgota em maio de 1974, quando Beuys se comunica com o

coiote, animal que os povos nativos da América consideram sagrado, na galeria de René Block,

em Nova York.

Em Coyote III, Beuys nos faz escutar, por meio do animal, o som de todos os animais e

plantas que habitam o planeta. Ele nos faz ouvir a grande escultura social, num processo auditivo

que se transforma em imagem em nossa consciência. Ele nos apresenta a escultura social da

qual todos os seres do mundo podem participar. E o faz por meio do fluxo do som, da linguagem,

que abre para nós um espaço de relação equilibrado, justo. Fica feliz ao nos comunicar que essa

terapia do equilíbrio, essa utopia da terra, é praticável em termos concretos. Todo animal, todo

vegetal e todo humano é capaz, com sua criatividade, de contribuir para criar a escultura social.                                                             N.T. O título brinca com a sonoridade das palavras Reagan (numa alusão ao presidente norte-americano Ronald Reagan) e Regen (chuva, em alemão). 

Page 29: Apostila Joseph Beuys

35 

 

“Para a comunicação realizar-se, é preciso passar do pensamento à matéria, ou seja, à

plasticidade.” O vídeo e o filme, para Beuys, são concebidos a partir da ideia de mobilidade, de

circulação de ideias, de plasticidade em movimento. E, finalmente, como a superação da própria

imagem, para construir um pensamento para o homem e com o homem.

4

Fotografias

“Fotografar é uma ação no tempo na qual alguma coisa é arrancada de seu momento e

transferida para uma forma diferente de continuidade”, escreve o diretor alemão Wim Wenders.

Como se quisesse dar tempo ao momento e continuidade à forma, a imagem torna-se forma, e a

palavra, escultura – que, por sua vez, supera a passagem do tempo.

Ao longo de seus anos de trabalho, Joseph Beuys confia à imagem fotográfica um papel

importante: de dar prosseguimento ao conceito ampliado de arte. A escolha da arte como

território privilegiado para a difusão de seu pensamento inclui todos os meios: performances,

esculturas, instalações, objetos, desenhos, vídeo, múltiplos e fotografias.

A reprodução de sua imagem, através desses meios, excede e supera a de qualquer outro

artista. Isso sugere uma necessidade, uma urgência, de perdurar para além de sua presença e

dos limites temporais da existência. De prosseguir no tempo e no espaço, e continuar se

desenvolvendo.

Para difundir sua imagem, suas ideias e sua atividade nos últimos vinte anos, Joseph

Beuys serviu-se de duas armas de propaganda: a voz e a imagem fotográfica. Muitas vezes elas

se entrelaçam numa linha estratégica que visa apenas um resultado: usar o material humano para

melhorar a vida do homem e da natureza no planeta Terra.

O uso que Beuys faz da imagem fotográfica se define na ideia da suspensão da morte para

além do limite da vida. Beuys não fotografa, mas posa para fotografias com frequência, no intuito

de criar uma imagem para anunciar seus pensamentos. Quer aliar a grandeza da imagem a

materiais embebidos do ouro de uma ideia.

“A imagem fotográfica é, essencialmente, uma informação de caráter visual proveniente de

um tempo passado”, escreve Jean Keim. Por outro lado, graças a ela, um fato pode ser

contemplado por muito tempo, e mesmo muito tempo depois que aconteceu. Esse tempo

alongado permite explorar uma imagem de forma profunda. Para Beuys, porém, a imagem deve,

antes de tudo, projetar uma contraimagem, ou seja, provocar reflexão e pensamento, estimular-

nos para além da capacidade dos órgãos da visão.

36 

 

Nesse sentido, a representação fotográfica de sua presença, seja nos múltiplos, cartazes,

vídeos ou filmes, nunca é casual. Ela assinala, acima de tudo, sua grande capacidade de se

identificar com o outro, aquele que olha e pensa, que cria dele uma contraimagem. Para Joseph

Beuys, sua imagem não deve evocar apenas o passado de uma presença, um fato, uma ação,

uma ideia; ela deve ressaltar sua ausência, levando quem olha para ela a criar uma

contraimagem, ou seja, um desejo de presença e de identificação.

Joseph Beuys também deixou vários testemunhos da ideia de prolongar uma identidade –

com humanos, animais e vegetais – por meio da imagem. Basta pensar em sua identificação,

pelas imagens, com o revolucionário Anacharsis Cloots, nativo de Kleve (1755-1794), com o

general da Companhia de Jesus Inácio de Loyola (1491-1555) ou com o imperador mongol

Gengis Khan. Em resumo, elas correspondem ao seu sentir-se céltico, euro-asiático e

mediterrâneo ao mesmo tempo.

Da mesma forma, no diálogo – entendido como prolongamento de identidade – com a

lebre, o coiote, o alce, o cervo, o cisne, Beuys procura uma identificação alcançada antes com

carvalhos, oliveiras e palmeiras. Deste ponto de vista, a imagem que Beuys oferece

continuamente de si mesmo, de seu rosto, de seu corpo, de seus gestos, assinala a superação da

lógica da imagem fotográfica apenas como representação do passado. No território inédito de

uma imagem que representa outras identidades do mundo animal, vegetal e mineral, o artista

produz uma contraimagem que se relaciona ao presente e ao futuro da humanidade.

Joseph Beuys faz-se fotografar na relação com o mundo, identificando-se e se deixando

identificar por meio do olhar do outro, com a extraordinária consciência de que a própria imagem

é sempre portadora de valores, que se difundem junto com ela.

Sob esse aspecto, é possível afirmar que Joseph Beuys é o artista que, mais do que

qualquer outro, usou sua imagem para se identificar com o gênero humano, como artista e como

homem. Ao mesmo tempo, é o artista que, mais do que qualquer outro, deixou-se fotografar, em

situações públicas ou privadas, sempre representando e dando corpo ao ícone do homem capaz

de melhorar o presente para determinar o futuro. Mas, ao se deixar fotografar, Beuys não olha a

objetiva; ele suspende o olhar e, atravessando o diafragma, fotografa o outro, aquele que olha.

Assim, revela a urgência de comunicar-se também através da imagem, além da palavra.

Muitos foram os que contribuíram para criar e divulgar as imagens que dão corpo a essa

ideia: as organizações fundadas por Beuys, seus editores, galeristas, estudantes, voluntários e,

sobretudo, fotógrafos. Como Ute Klophaus, Gianfranco Gorgoni, Hilla Becher, Digne M.

Marcovicz, Lorraine Senna, Richard Demarco, Buby Durini, Mimmo Jodice, Bernd Nanninga,

Jochen Schmindt, Gerhard Steidl, Caroline Tisdall, Klaus Staeck, Reiner Ruthenbeck, Andy

Warhol, Walter Klein, Isi Sissmann, Claudio Abate, Bruno Del Monaco e muitos outros.

Page 30: Apostila Joseph Beuys

37 

 

Para disseminar seus conceitos, Beuys serviu-se de todo o imenso patrimônio de imagens

que é gerado em torno de uma pessoa. Não por acaso, em seus últimos vinte anos de atividade,

multiplicaram-se as peças gráficas baseadas em imagens do artista – postais, cartazes e

fotografias, muitas vezes assinadas e com dedicatória.

Essa forma de usar retratos para divulgar uma ideia é análoga ao uso que Albrecht Dürer

fazia da própria imagem e do próprio trabalho; as poses hieráticas, as fotos de seus vários

estágios de vida e, principalmente, a divulgação de seu nome por meio de gravuras de tiragens

altíssimas. São ideias que também compõem as estratégias de difusão da imagem fotográfica de

Beuys por seus editores, galeristas e colaboradores.

É por meio de recursos semelhantes que Joseph Beuys consegue tornar lendária sua

imagem. O próprio uniforme, do chapéu de feltro à jaqueta de pescador, dos jeans aos sapatos

pesados, são sua contribuição inicial para a criação de uma imagem identificável. Nas imagens

do artista, não há variantes estéticas que nos distraiam. Visualmente, elas não variam, a não ser

pelo conteúdo das ações, materiais e gestos, um vocabulário simbólico que reflete todo o seu

pensamento.

A imagem fotográfica, ao lado da prática do debate, ilumina o pensamento de Joseph

Beuys com sua presença. Juntos, eles criam uma contraimagem grandiosa. Como na acepção de

fotografia como uma escrita feita de luz, Beuys joga luz sobre a escuridão e a sombra que

caracterizam grande parte do pensamento presente na arte. Mas não é só. Em algumas obras, a

imagem fotográfica assegura uma condição que supera a ausência, colocando em relação visual

a imagem fotográfica e a presença do artista.

Bons exemplos são Unterwasserbuch (Livro subaquático), de 1972, e a instalação Quero

ver minhas montanhas (Voglio vedere i miei montagne), datada de 1950 a 1971. No primeiro

caso, a obra consiste em um livro aberto com fotografias impressas em plástico, dispostas dentro

de uma caixa de ferro parcialmente recoberta de água; uma lanterna subaquática ilumina todo o

conjunto. Beuys resgata aqui um momento do qual foi protagonista: sua exposição individual no

Moderna Museet de Estocolmo, em 1971. O artista deixou que o fotógrafo Lothar Woller

instalasse duas câmeras que o retratavam a intervalos regulares, captando seus movimentos

enquanto montava obras importantes como Das Rudel (A manada), O silêncio de Marcel

Duchamp é superestimado, Filzanzug (Roupa de feltro) e outras.

Essas fotografias foram impressas em ambos os lados de 4800 folhas de PVC, e editadas

por Klaus Staeck, entre 1973 e 1985, no livro 3 Tonnen Edition (Edição 3 toneladas), com um

peso total de três toneladas.

Dessa publicação depreende-se a função singular que Beuys empresta à sua própria imagem

fotografada e multiplicada. Trata-se, de fato, de remontar sequências inteiras de seu trabalho no 38 

 

museu sueco; mas também, e sobretudo, de redistribuir, no tempo, seu trabalho de criar a

instalação.

Em Quero ver minhas montanhas, a imagem fotográfica que se integra à instalação

apresenta-se como uma verdadeira superação das dicotomias presença/ausência, dia/noite,

vida/morte. A alternância desses elementos é contínua na eterna lei do que está por vir. A

instalação tem como título as últimas palavras pronunciadas pelo pintor italiano Giovanni

Segantini em seu leito de morte, em Maloja, na Suíça.

Em sua complexidade, ela reúne uma série de móveis e objetos, além da imagem de um

pássaro que voa para longe de um fuzil. Em um leito, disposto à direita, há uma fotografia de

Beuys vestido e deitado, de olhos fechados, ao lado de um cajado de pastor. A imagem não

apenas lembra a posição do sono e da morte; ela também expressa, com extraordinária

sabedoria, a identificação que Beuys vê entre a imagem fotográfica de seu corpo e a linguagem

desse corpo.

Diferentemente do armário, que de fato provinha do quarto de infância do artista em Kleve,

a cama é idêntica à que está ainda hoje na casa de Segantini. Graças a uma passagem que só a

imagem fotográfica consegue garantir, há uma identificação por substituição. Joseph Beuys

identifica-se com Giovanni Segantini para que as forças físicas da natureza se abram – pelo

sonho e pelo sono eterno –, à vista do poderoso sistema da vida. Sua presença, mais uma vez,

passa pela imagem, por uma pose que ressalta a passagem e a alternância natural entre

presença e ausência, vida e morte.

Assim, a imagem fotográfica torna-se, para Beuys, muito mais presença e continuidade do

que recordação e ausência, papéis que ela normalmente desempenha. Além disso, como em

outros elementos de sua obra, ao escolher com atenção escrupulosa imagens para peças

gráficas, obras ou livros, ele põe em primeiro plano seu conteúdo, sua capacidade de comunicar.

Não através do sentido estético, mas por meio de sua essência.

O sentido que ele confere à própria imagem está mais próximo da espiritualidade dos

ícones do que da memória fotográfica. As poses escolhidas são simbólicas e não estéticas. Elas

devem dar conteúdo e sustentar a grande contraimagem que sua arte nos deixou: a de um

homem em equilíbrio com a natureza das coisas e com a força das ideias. Ao nos entregar

imagens de um pensamento, Beuys oferece-nos o sentido da visão como recuperação sinestética

da memória e, por isso, de uma presença.

Em Arena Where Would I Have Got If I Had Been Intelligent (Arena: aonde eu teria

chegado se fosse inteligente), mostra que realizou na galeria Modern Art Agency, em junho de

1972, Beuys usou exclusivamente fotografias, que documentavam fases, performances, obras e

debates de sua atividade artística pregressa.

Page 31: Apostila Joseph Beuys

39 

 

A obra é composta de mais de quatrocentas imagens, encadernadas em cem invólucros de

alumínio pintado de cinza. Arena não é uma simples documentação. As fotografias são tratadas

pelo artista com as substâncias energéticas características de sua obra: cera, gordura, enxofre,

mel, gelatina, prata. As substâncias como que inoculam esses documentos fotográficos do

passado, para representar uma constante geração de energia criativa.

O surpreendente em Arena é, sobretudo, a capacidade do artista de, ao dispor as imagens

dentro dos invólucros de alumínio, criar relações imperceptíveis a um olhar distraído; relações

que demandam a atenção do outro, aquele que olha, para gerar a contraimagem que o artista

deseja. Essa é a atitude da disposição, como descrita por Martin Heidegger em Die Kunst und der

Raum (A arte e o espaço), e que Joseph Beuys eleva aos níveis mais altos da história da arte

contemporânea. Especialmente em suas vitrines, invólucros espaciais onde dispõe com grande

cuidado substâncias e objetos, esculturas e materiais e, sobretudo, as relações entre todos esses

elementos, em um contínuo diálogo sub-stancial.

A ideia de transformar em imagens o pensamento central de Joseph Beuys – criando uma

escultura de imagens ou plástica das imagens – demanda a colaboração ativa entre o artista e

fotógrafos. As imagens de Ute Klophaus, Klaus Staeck e Caroline Tisdall são o exemplo mais

claro dessa prática. Em alguns pontos desse longo itinerário, Beuys cria recursos para divulgar

essa colaboração como utopia concreta, realizada nas práticas da arte. Em um grande número de

trabalhos, os fotógrafos participam e colaboram ativamente, produzindo partes integrantes da

obra. Esse é o dado fundamental a ser compreendido: temos aqui um material extraordinário,

entregue à arte como fruto de uma colaboração humana continuada e exemplar, e do uso da

energia da imagem como autêntica plástica social.

Na pose peculiar de Beuys na fotografia de Tram Stop (Parada de bonde), obra

apresentada na Bienal de Veneza de 1976 e transformada em cartaz em 1978, ele está coberto,

em sua verticalidade humana, pela verticalidade da estátua-coluna-árvore-homem-boca de

canhão. A verticalidade é indicativa da condição antropológica atribuída à terra e ao céu, ao baixo

e ao alto, ao terrestre e ao cósmico. A posição do homem Beuys retratado por Buby Durini mostra

sua necessidade de identificação com a escultura.

Todas as imagens fotográficas de Beuys são dedicadas ao hálito da terra, que passa pelo

homem e sua criatividade. Nas fotografias, ele demonstra uma atividade contínua; nunca está

parado. Faz-se fotografar sempre em um gesto, um sinal, uma ação que vai da palavra às mãos,

ao corpo, ao rosto; tudo nele está em atividade. Nunca se vê o artista em um momento que não

seja de energia transformadora. É essa sua capacidade que faz dele um transformador visual por

excelência. Mãos, pés, joelhos, boca, olhar, recebendo ou emitindo; suas energias atravessam

continuamente o seu corpo e o nosso olhar. 40 

 

Na imagem frontal de A revolução somos nós, extraordinária fotografia de Gianni Pancaldi

de 1971, o ruidoso movimento do artista para a frente se transforma em uma palavra não

pronunciada. O corpo avança movido pela necessidade de distribuir pelo caminho o segredo da

produtividade de uma sociedade livre e democrática. O avanço do indivíduo, juntamente com os

outros. A revolução somos nós: a mudança, a transformação, a evolução do homem só podem

ser garantidas pelo próprio homem, em conjunto com os outros homens.

Aqui, torna-se invisível um material primordial nas discussões: a voz. Como se sabe, ela

não pode ser vista na imagem fotográfica. Mas está na substância das imagens de debates.

Essas imagens silenciosas são como que atravessadas por aquele fluxo energético que a

comunicação, na relação emissão/recepção, institui.

Muitas imagens fotográficas permanecem como registro sonoro do fluxo energético

estabelecido pela prática das discussões. As imagens dessas discussões são extremamente

significativas: os olhos veem o público, cujos ouvidos estão atentos; até as narinas parecem sentir

os odores da sala. As bocas, abertas, em emissão, assumem a forma de megafones. Com

frequência, a tensão dos lábios revela o momento de máxima emissão da voz. E há o movimento

das mãos, os gestos, que enfatizam, precisam, indicam.

As imagens das discussões tornam visível o material invisível que são as palavras. Não é

uma palavra, uma frase ou um discurso que podemos escutar e ver através daqueles lábios

abertos; é todo o percurso de um pensamento, que se prolonga na visibilidade da imagem, para

um presente de recepção e um futuro de emissão. Abra bem a boca, Beuys, para falar da terra e

de seus frutos, para dizer que terra, homem e céu são uma coisa só, uma só palavra, que parte,

forte, da boca e retorna, forte, aos ouvidos – para sempre. São imagens ruidosas, nas quais o

silêncio está distante e a expansão do som é amplificada pela tensão luminosa da própria

imagem. São imagens-obras; o verbo de Beuys revela-se para quem as vê. Mais uma vez, então,

por meio de uma produção visual, ele produz som e gera recepção até o presente.

Muitos fotógrafos retrataram Beuys enquanto ele debatia ou falava, movendo as mãos e os

braços para energizar visualmente suas palavras. As mãos, sobretudo, se prestam a essa

energização. Algumas fotografias congelam sua mão direita no momento em que o dedo

indicador se volta para cima. É um sinal para chamar atenção, uma indicação, um aviso. Também

lembra muito a forma como a iconografia clássica representa São João Batista, o santo dos

cavaleiros que, ao voltar das Cruzadas, traziam como lembrança e objeto de devoção uma

ampola de água do rio Jordão, lugar das pregações de Batista. Podemos fazer uma analogia

entre o gesto tão repetido nos debates por Beuys e o gesto que o santo exibe na célebre pintura

de Leonardo da Vinci, de 1513, exposta no Louvre. A própria identificação com Cloots, cujo

verdadeiro nome era Johannes Baptist, passa pela figura do santo que Leonardo (e Caravaggio,

Page 32: Apostila Joseph Beuys

41 

 

Piazzetta e outros) representou com o dedo indicador levantado para o céu. As próprias iniciais

do nome de Beuys, J.B., levam a essa identificação, e também remetem aos lendários arquitetos

do templo do rei Salomão, Joachim e Boaz.

No gesto de indicar, o dedo direciona o olhar e o pensamento; ele mostra, aponta e

significa. O indicador, nessas ocasiões, eleva-se, para melhor identificar a direção para onde

aponta. Entretanto, indicar – que em língua alemã é sinônimo de “dar a conhecer” – exige a

referência de uma alteridade, ou seja, um ouvinte visual. Mostrar com palavras, gestos e

imagens, sugerir o caminho a seguir, significar e revelar os segredos de um conhecimento é a

expressão mais elevada da contraimagem que Joseph Beuys tenta criar por meio da linguagem

de seu corpo. Os gestos do mestre alemão são material de propaganda de seu pensamento

central.

A indicação, para Beuys, reativa e recupera sentidos, criando uma condição que

transcende a matéria da própria imagem, ou a recoloca em jogo no seu significado de

transformação espiritual, apontando para uma evolução que passa pelas alturas cósmicas

sugeridas pelo indicador. Sua escrita da luz assinala, significa, testemunha e revela que a

imagem de todo homem é arte.

As imagens fotográficas realizadas por Digne M. Marcovicz (Berlim, 1934) testemunham a

atividade política e ecológica de Beuys de 1968 a 1982, ano de sua participação na Documenta 7

de Kassel, com o grandioso projeto 7000 carvalhos.

O que parece evidente nessas extraordinárias imagens é sua capacidade de realização e,

ao mesmo tempo, sua adesão emocional às suas práticas e a seu projeto de tornar a política

estética, ou, melhor, de transformar a política em arte. Nessas imagens, que a repórter, jornalista

e escritora berlinense Digne M. Marcovicz capta com notável conhecimento técnico, Beuys

discute com um público que é, ele mesmo, o protagonista das discussões; muito frequentemente,

seu círculo de alunos e colaboradores, já então transformados em artistas de fama, como Blinky

Palermo ou Waldo Bien, e seus companheiros de jornada Wolf Vostell, Klaus Staeck, Johannes

Stüttgen e Caroline Tisdall. Os gestos e a comunicação são registrados na totalidade em um

debate antológico no centro de arte contemporânea Frankfurter Kunstverein, de 1976, e nas

discussões da Documenta 6, de 1977. Esse aspecto histórico que as imagens de Marcovicz

deixam transparecer é fundamental.

A escolha dessas fotografias, portanto, não é casual. Sobretudo na série em que Joseph

Beuys aparece empenhado pessoalmente na constituição do Partido Verde e em sua candidatura

ao Parlamento alemão, em 1980. Nessas imagens, ele surge atento e ativo, entre intelectuais e

políticos como Alexander Kluge, Carl Amery, Herbert Gruhl, Holger Strohm. Nelas, ele discursa no

42 

 

palanque, como um político, ou melhor, como um artista que usa a política para avançar em um

projeto que nos confiou: a revolução somos nós.

5

Proteja a chama

“Um dia me aconteceu, por acaso, ter nas mãos uma publicação que estava com outras

em cima de uma mesa, todas elas em mau estado. Abri e vi uma escultura de Wilhelm

Lehmbruck. Imediatamente me passou pela cabeça uma ideia, ou melhor, uma intuição. A

escultura – é possível fazer algo com a escultura. Tudo é escultura, parecia gritar aquela figura.

Foi então que vi uma luz, uma chama, e ouvi uma voz que me dizia: Proteja a chama! Com estas

palavras, em 12 de janeiro de 1986, dez dias antes de morrer, Joseph Beuys inicia seu

agradecimento a Wilhelm Lehmbruck por ocasião da entrega do Prêmio.16 Wilhelm Lehmbruck

(1881-1919), que também havia frequentado a Academia de Düsseldorf, foi um escultor que

influenciou profundamente Joseph Beuys, então estudante, aos dezessete anos. Representando

problemáticas sociais, o escultor de Duisburg desenvolve um trabalho que supera até mesmo a

tradição clássica cujo ápice é a obra de Auguste Rodin. Do ponto de vista formal, Lehmbruck

tende às formas cúbicas; em sua escultura, reduz os volumes e elimina a base ou o pedestal.

Beuys, no entanto, como profundo conhecedor de sua obra, percebe e declara que o

exemplo de Lehmbruck, que o havia acompanhado por toda vida, supera a escultura tradicional e

direciona-se para um conceito ampliado de arte e de plástica social. É esse aspecto intuitivo que

permanece dominante em sua opção pela escultura. Tudo é escultura.

A escultura entendida como procedimento social pode invadir todos os campos. Todos os

setores da vida social são moldáveis. Esta é a percepção fundamental.

Quando encontra a assinatura de Lehmbruck em Aufruf an deutsche Volk (Apelo ao povo

alemão), redigido e publicado por Rudolf Steiner em 1919 – e que o escultor firmou como membro

da Organização de uma Tríplice Estrutura do Organismo Social17 – Beuys percebe e sente o

impulso para criar uma escultura que seja também, se não sobretudo, parte da transformação                                                             16 O Prêmio Wilhelm Lehmbruck é concedido anualmente pelo museu Lehmbruck, em Duisburg, a um artista alemão.

Beuys considerava Lehmbruck seu verdadeiro mestre. 

17 Escrito por Rudolf Steiner, pai e criador da Sociedade Antroposófica, e publicado em jornais e panfletos, o Apelo ao

Povo Alemão exortava o mundo das artes a iniciar mudanças no organismo social. Ao lado de Steiner, assinavam o

documento o escultor Wilhelm Lehmbruck, o escritor Hermann Hesse e outros. 

Page 33: Apostila Joseph Beuys

43 

 

social. Sua percepção torna-se certeza. Tudo é escultura, e, por meio dela, é possível modificar

nossa visão de futuro para chegar a uma real renovação das estruturas sociais, de todo o

complexo social.

Em seu último discurso, dedicado ao mestre, Beuys diz ter visto no gesto de passar

adiante a chama “a expressão de um movimento com tal intensidade de significado que seria

necessário senti-lo já, hoje”. Hoje é também amanhã, como um futuro social que está em nossas

mãos.

E, por fim, Beuys se declara. Declara sua posição, em derradeira mensagem, referindo-se

exatamente à última mensagem de Lehmbruck a cada um de nós: “Proteja a chama, porque se

não a protegermos, antes de nos darmos conta, o vento a apagará, o mesmo vento que a

acendeu. Então, pobre, pobre coração, será o fim para você, petrificado pela dor.”

Protejamos a chama: a revolução somos nós.

44 

 

Universidade Livre Internacional –

Fundação, conceito e resultado*

Rainer Rappmann

A FIU é uma comunidade internacional de pesquisa. Seu círculo de colaboradores é

relativamente pequeno. Não é possível frequentar a FIU. Trata-se, simplesmente, do projeto de

uma nova sociedade, para além do capitalismo e do comunismo. Para realizar essa tarefa, cada

um tem de encontrar apoio em si mesmo.

Joseph Beuys, em 10 de março de 1985 para Dominique Quintin, no catálogo Brennpunkt

Düsseldorf: 1962-87, Düsseldorf, 1987, p. 99.

A Universidade Livre Internacional foi fundada por Joseph Beuys, em 1971, na Academia

de Belas-Artes de Düsseldorf. No estágio inicial, o objetivo era que fosse uma instituição onde os

estudantes – mas não exclusivamente eles – pudessem desenvolver sua criatividade de uma

forma mais ampla. A justificativa era a aguda falta de espaço na Academia. O desejo de liberdade

de Beuys – e sua noção de que toda formação, todo treinamento, toda vida intelectual só podia se

desenvolver sob o princípio da autodeterminação e da autonomia – fez com que explodisse os

limites da autoritária instituição estatal (ilustr. 113).

Uma mantenedora fundada em 1973, a Universidade Internacional Livre para a

Criatividade e a Pesquisa Interdisciplinar, queria incluir no programa as chamadas matérias não

artísticas, como teoria do conhecimento, ciências sociais, economia, ecologia e ciência da

evolução, além de etiqueta e letras; o membro-fundador Heinrich Böll ocupou-se especialmente

delas. Além do ensino – que, aliás, devia se processar de maneira pendular, ou seja, recíproca –,

tinham sido pensados um palco para apresentações, diversos institutos, jardins de infância,

atividades para incentivar a criatividade de pessoas da terceira idade e até uma televisão por

satélite. Beuys, entretanto, estava inclinado a só assumir o trabalho se a escola recebesse

dinheiro público, ou seja, se estivesse, do ponto de vista financeiro, no mesmo nível das

instituições oficiais. “Se na vida universitária como um todo não for instituído o modelo de uma

escola livre, que se alimente da mais-valia de um povo, da riqueza do povo, então esse modelo

                                                            * Este texto é a nova versão de um ensaio escrito em 1994 para o catálogo da exposição de Joseph Beuys no Centre Pompidou – Musée National d’Art Moderne, em Paris. 

Page 34: Apostila Joseph Beuys

45 

 

não me interessa.”18 Afinal, não se tratava, para ele, de uma escola particular de Joseph Beuys.

Mas quando os políticos locais e o então ministro da ciência Johannes Rau perceberam que havia

ali uma ideia também política, eles se opuseram ao projeto. A aprovação inicial revelou-se uma

manobra de propaganda política.19

Beuys trouxe à FIU, de forma substancial, tudo o que desenvolveu – muitas vezes, de

maneira dolorosa – nos anos 1950 e 1960. E quanto menos a FIU tornava-se realidade como

instituição, no início e em meados dos anos 1970, mais claramente seu conceito inicial se

transformava, no âmbito interno.

Algumas vezes, porém, ela mostrou-se ao mundo de forma evidente. A contribuição de

Beuys à Documenta 6, em 1977, foi a obra Honigpumpe am Arbeitsplatz (Bomba de mel no local

de trabalho).20 Esse local de trabalho era uma sala da FIU, na qual Beuys e seus colaboradores

passaram cem dias discutindo os problemas e os princípios de um novo modelo de sociedade, a

escultura social. Àquela altura, criavam-se grupos que operavam como filiais da FIU em todos os

lugares: Irlanda do Norte, Inglaterra, África do Sul, Itália e Holanda e, nas mais variadas

configurações, por toda a Alemanha.

A partir de Kassel, também tornou-se visível – pelo menos na Alemanha – que esse grupo

determinado de pessoas se ocupava, cada vez mais, com a política. Em 1978, a edição de Natal

do jornal Frankfurter Rundschau publicou a Aufruf zur Alternative (Conclamação à alternativa),21

que Beuys havia redigido junto com os funcionários do Centro Cultural Internacional Achenberg

(INKA). O texto não apenas registrava uma nova ideia de sociedade, mas também proclamava a

união de correntes políticas alternativas. Em 1979, a FIU, enquanto organização e grupo de

pessoas, foi um dos cinco fundadores do partido Die Grünen (Os Verdes).22 De 1980 a 1986, o

Partido manteve, sob a direção de Johann Stüttgen, um escritório de coordenação na sala 3 da

Academia de Düsseldorf, a antiga sala de Beuys.

                                                            18 Joseph Beuys, Kunst = Kapital. Achberger Vorträge. Wangen, 1992, p. 19. 

19 Harlan; Rappmann; Schata, Soziale Plastik – Materialien zu Joseph Beuys. Achberg 1994 (3), p. 40. 

20 Cf. Explicações sobre a contribuição de Beuys à Documenta (1977) in: Loers/Witzmann, Joseph Beuys –

documenta-Arbeit. Stuttgart, 1993, p. 145ss. 

21 Publicado, entre outros, em Soziale Plastik – Materialien zu Joseph Beuys. Achberg 1994 (3). 

22 Cf., entre outros, Petra Kelly, Joseph Beuys: Diese Nacht, in die die Menschen.... Wangen, 1994. 

46 

 

Diversos projetos vinculados à FIU foram continuados depois da morte de Beuys.

Poderíamos mencionar, primeiramente, 7000 Eichen (7000 carvalhos),23 que foi iniciado por

Beuys e consistia na plantação de 7 mil árvores junto a 7 mil pedras basálticas, em Kassel. Ou o

Omnibus für Direkte Demokratie in Deutschland (Ônibus pela democracia direta na Alemanha)

(ilustr. 114), que percorreu os estados alemães durante sete anos para discutir com moradores de

lugares diversos sua soberania, ou seja, sua possibilidade de participar da organização social.24

Em setembro de 1994, a última viagem terminou em uma exposição de Beuys, em Paris25; a ideia

era apresentar o plebiscito, como símbolo, também na Europa.

Outro prolongamento da FIU, criado em 1992, é a Wirtschaft und Kunst – erweitert (Ação

economia e arte – ampliada), que tem por objetivo reviver o antigo conceito de alamedas, que

ainda existe nos novos estados alemães, e com ele trazer à baila as concepções da FIU,

atualizadas na antiga “faixa da morte”, entre a República Federativa Alemã e a República

Democrática Alemã.26 O ponto de partida da ação foi a escultura Baumkreuz (Cruz de árvores)

(ilustr. 115), uma fileira dupla de carvalhos e tílias plantados em forma de cruz, em Iftha, no

coração da Turíngia.

Além disso, funcionavam como postos de trabalho da FIU a Freie Kunstschule (Escola

Livre de Artes), em Hamburgo, e a editora e a distribuidora FIU, que disponibilizam o conjunto

desse pensamento na forma de textos, livros, mídias audiovisuais etc.

Como desdobramento mais novo e atual da FIU, num sentido abrangente – ou, pelo

menos, germinado e inspirado por ela –, podemos citar o projeto Mehr Demokratie in Bayern

(Mais democracia na Baviera), que foi intensamente apoiado, entre outros, pelo Ônibus pela

democracia direta. Por meio de um pedido apoiado nas repartições públicas locais por 13,7% dos

cidadãos aptos a votar, num período de catorze dias no outono de 1995, em 1º de outubro

daquele ano decidiu-se pela introdução do plebiscito na Baviera. Essa iniciativa obteve uma

vitória expressiva (57,8%) em relação à proposta do partido conservador CSU (União Social-

                                                            23 Cf. 7000 Eichen – Joseph Beuys (org. Groener; Kandler). Colônia, 1987. Além de: Beuys; Blume; Rappmann,

Gespräche über Bäume. Wangen, 1994. 

24 Sobre o Ônibus pela democracia direta na Alemanha, cf. Kronkers, Stüttgen, Aktion Ost/West. Wangen, 1991.

Sobre a participação de Beuys pelo plebiscito, cf. documenta-Arbeit (veja nota 3), p. 77ss. 

25 Cf. Gauss; Krenkers, Von der documenta zum Centre Pompidou, 14.9.87-14.9.94. Aachen/Paris, 1994. 26 Cf. Schmidt; Wolbert, Idee Unternehmen Wirtschaft und Kunst – erweitert. Wangen, 1994. Sobre os três projetos

citados, cf. o texto Junge; Krämer; Krenkers, Projekte erweiterte Kunst – von Beuys aus. Wangen, 1993. 

Page 35: Apostila Joseph Beuys

47 

 

Cristã da Baviera), majoritário no estado, que previa o impedimento de qualquer ação do gênero

(38,7%) (ilustr. 116).27

Antes de tudo, porém, a FIU é uma ideia e uma substância invisível, criada por Joseph

Beuys com a ajuda de seus colaboradores – em determinadas propostas e projetos – e a partir de

seu conceito ampliado de arte. Essa ideia contém a semente espiritual da criação de uma nova

cultura humana. A FIU é a imagem de um núcleo livre, internacional e universal de informação,

formação e comunicação, que realiza a conexão espiritual entre pessoas que pensam, sentem e

têm iniciativa, e aquelas que sofrem com as relações que dominam a Terra hoje.28

A ideia aposta no ser humano livre, autônomo e que pode determinar o futuro. É certo que

ele tem essa capacidade básica, essa possibilidade. A potência do ser humano – em princípio,

intelectual – é compreendida como um capital que ele pode aumentar, aperfeiçoar, desenvolver e

ensinar (aqui na Terra, e apenas aqui!). Ele aplica seu capital intelectual ao trabalhar com a

matéria e com as forças da natureza, para satisfazer, com o produto que gera, as necessidades

dos outros homens. Em nenhum momento o dinheiro aparece como valor econômico, como

acontece hoje, de maneira tão prejudicial. Beuys conclui: Arte = Capital.29

O conceito da FIU contempla a diferenciação entre capital e dinheiro, entre trabalho e

ganho financeiro. Tudo isso tem consequências amplas, que não podem ser explicitadas aqui. De

todo modo, é lógico que esse tipo de princípio não pode ser aplicado individualmente, de maneira

isolada ou ditatorial. É preciso que a sociedade como um todo chegue a um consenso, sempre

que o soberano, ou seja, cada cidadão e cada cidadã, considerar necessário. Beuys via na

participação democrática direta do ser humano nas leis às quais está submetido, por meio do

plebiscito, a melhor forma de concretizar esse conceito, pelo qual ele até participou de uma luta

de boxe.30

Beuys atrela seu trabalho conceitual, realizado ao mesmo tempo no terreno da arte, a um

fio condutor que já tinha sido trabalhado antes na Revolução Francesa e em Friedrich Schiller. No

século 20, ele encontra nas pesquisas de Rudolf Steiner uma precisão maior em relação à

questão social, que, de maneira explícita, é sempre seu assunto: “Nós trabalhamos também

segundo o modelo tripartido de Rudolf Steiner”.

                                                            27 Desde 1996, a iniciativa, agora identificada como “Mais democracia na Alemanha”, transferiu sua ênfase

novamente para o nível nacional. 28 Johannes Stüttgen, FIU – Organ des Erweiterten Kunstbegriffs. Wangen, 1987. 29 Cf. as palestras de mesmo nome de Joseph Beuys: Kunst = Kapital. Achberger Vorträge. Wangen, 1992. 30 A luta aconteceu durante a Documenta 5, em Kassel (1972). Foi uma espécie de performance: Beuys lutou com outro artista, Abraham David Christian, no escritório do partido político que fundara, a Organização pela Democracia Direta por Referendo. 

48 

 

A ideia que Steiner chamava de “tripartição do organismo social” havia sido apresentada –

e também propagada – no final da Primeira Guerra Mundial. O ponto mais significativo para a sua

compreensão são as diferenciações dentro do organismo social, bem como a descoberta de que

suas três grandes esferas de força – a vida intelectual-cultural, a vida jurídica e a vida do trabalho

conjunto, ou a vida econômica – são organizadas de acordo com princípios muito distintos:

liberdade, igualdade, fraternidade. A Revolução Francesa já havia proclamado esses princípios;

mas não se sabia, então, como lidar com eles. Steiner sabia quais elementos sociais deveriam

ser organizados segundo cada tendência estrutural, e como cada um deveria ser estimulado a se

expandir.

Wilhelm Schmundt era discípulo de Steiner e, ao mesmo tempo, contemporâneo de Beuys.

Aplicando o método de conhecimento de Steiner, ele examinou os conceitos básicos da

sociedade como unidade orgânica, como ela aparece hoje no primado da economia da divisão do

trabalho. Concluiu que o dinheiro não é um valor econômico e que, na realidade, devia ser

reconhecido como um elemento da vida jurídica. Esse raciocínio tem como consequência libertar

o trabalho das garras do poder do dinheiro, que hoje domina tudo. Beuys tinha um apreço

excepcional por Schmundt; certa vez, chamou-o de “nosso grande professor”. Podemos dizer

mesmo que, sem Schmundt, Beuys não teria conseguido desenvolver o conceito da escultura

social (ilustr. 117).31

O conceito da FIU foi continuamente transformado e desenvolvido. Ele não é um livro de

receitas fechado. Graças a Deus! Se fosse, estaria morto. Mas ele coloca alguns desafios ao

pensamento: “Na arte social, é preciso entender algo, isto é, os conceitos têm de ser

formulados”.32 Na reflexão e na caminhada conjunta, em princípio, com todos (palavra-chave:

conferência permanente), deveria surgir a clareza e o adensamento de ideais para uma

determinada tarefa. Essa era a intenção de Beuys.

O ser humano está desafiado a encontrar a forma adequada de realizar suas tarefas neste

mundo. Há, de um lado, uma tarefa de compreensão, para a qual conta com a ferramenta do

pensamento. Por outro, há uma tarefa de criação, de usar a capacidade humana para intervir nas

matérias e nas forças da natureza, e também, ou principalmente, nas condições que regem a vida

e o trabalho em conjunto. Ou seja, uma tarefa artística.

Potência de criação e busca da forma são ambos aspectos da arte que devem ser

aplicados aos campos da vida comunitária e da sociedade. Apenas por meio do método da arte,

                                                            31 Cf. Rainer Rappmann, Die Kunst des sozialen Bauens – Beiträge zu Wilhelm Schmundt. Wangen, 1993, p. 13ss. e p. 46, bem como, sobre a tripartição: Auf den Schultern von Riesen. 32 Joseph Beuys; Michael Ende, Kunst und Politik. Wangen, 1989, p. 84. 

Page 36: Apostila Joseph Beuys

49 

 

assim entendido, os problemas podem ser resolvidos. A FIU era, e é, uma ferramenta e uma

oferta nesse sentido.

50 

 

A planta como arquétipo da teoria da plasticidade e a floresta como arquétipo da escultura

social

Volker Harlan

Beuys aponta para uma caixa:

“Esta é uma obra de arte criada pelo homem”.

E, em seguida, apontando para uma caveira de macaco:

“E esta obra de arte não foi criada pelo homem, mas é uma obra de arte. Quem criou esta obra

de arte, então?”

Joseph Beuys resume seu pensamento pictórico em sua teoria da plasticidade. Ele a

expressa visualmente em um diagrama e a aplica a tudo o que se apresenta no espaço e no

tempo. É nesse contexto que fala de um conceito ampliado da arte. Para ele, a forma de um todo

escultural é constituída por três princípios derivados da alquimia: enxofre, mercúrio e sal.

Resumidamente, enxofre é o indeterminado, o caos, a energia pura; mercúrio, o movimento

mediador, o processo de formação; sal, a rigidez e a forma. Isto vale, de igual maneira, para os

processos naturais, anímicos e sociais. Beuys também associa um aspecto terapêutico a sua

ideia de escultura; torna isso visível ao aplicar, no canto de um espaço retangular, um material

maleável, como a gordura.

Beuys desenvolveu suas ideias sobre a teoria da plasticidade ao contemplar uma planta,

epítome de uma forma plástica harmoniosa e tripartida. A principal preocupação do seu trabalho

artístico é a reformulação do campo social. Ele chama o organismo social de plástica social ou

escultura social. A planta individual torna-se o protótipo para o diagrama da teoria da

plasticidade.

Uma floresta lhe serve de pretexto para a reformulação da escultura social. Em 1982, criou

para a Documenta 7, em Kassel, o que se tornaria sua maior escultura. Plantou em toda a cidade,

e para além dela, 7 mil carvalhos. Nessa ocasião, falou de substituir “a administração urbana”

pela “arborização urbana”,NT ou seja, ele pensava na cidade transformada em um organismo

vivo, no qual os cidadãos administram seus próprios assuntos de forma solidária e sustentável.

Em 1977, na Documenta 6, sua maior escultura criada para um espaço fechado, a

Honigpumpe am Arbeitsplatz (Bomba de mel no local de trabalho), representava o arquétipo da

formação dos processos sociais. Grupos da chamada Universidade Livre Internacional (F.I.U.) de

Page 37: Apostila Joseph Beuys

51 

 

todo o mundo se reuniram durante os cem dias da exposição para discutir os graves problemas

do organismo social.

Com essa introdução, apresentamos dois aspectos do trabalho de Joseph Beuys. Na

sequência, trataremos com mais detalhes da criação da teoria e do diagrama do plástico, a partir

da observação da planta; e da ideia de um organismo solidário social, a partir da observação da

floresta.

A planta como protótipo gráfico da teoria da plasticidade

A relação de Beuys com as plantas é complexa. É possível distinguir três dimensões em

particular, que se fundem naturalmente: a planta como objeto natural e a planta como imagem ou

símbolo – como obra de arte.

De um lado, a relação do artista com as plantas está profundamente arraigada em seu interior; do

outro, o ambiente rural de sua infância e juventude, e, finalmente, da época do serviço militar,

favoreceram sua inclinação, sua curiosidade, seu interesse pela natureza e, em especial, pelas

plantas. “Eu comecei”, conta Beuys a seu biógrafo, “a me interessar pelas plantas, pela botânica,

e conhecia – já que havia feito muitas anotações – quase tudo sobre essa área. Verdadeiras

excursões eram organizadas com as crianças, criamos coleções que expusemos ao público.” Na

autobiografia cronológica Lebenslauf = Werklauf (Currículo de vida = Currículo de obras), de

1964, Beuys escreve: “1930, Donsbrüggen, exposição de ervas e plantas medicinais”.4 As

sessões de jardinagem com seu colega de escola Günther Mancke e, mais tarde, em seu próprio

jardim, assim como o trabalho agrícola ocasional em Kranenburg “(em 1956-1957 Beuys trabalha

no campo )”, ajudaram a familiarizá-lo com o ciclo anual de crescimento e transformação das

plantas. Uma foto mostra Beuys colhendo batatas em um jardim; outra, as cenouras que cultivara

nas areias de uma duna. No pátio de seu ateliê há sempre vasos grandes com plantas. Logo

aprende seus nomes, incluindo os latinos, e salva Systema naturae , de Lineu,NT de uma

queima de livros promovida por nazistas em uma escola. Também cria listas nas quais cataloga

os nomes alemães e latinos das plantas; ou os sublinha no BLV Buch der Heilkäuter (Livro das

ervas medicinais BLV).NT Em uma folha de papel, registra o nome de um grande número de

plantas, acompanhadas por pequenos desenhos.

Na região de Abruzos, na propriedade de Buby Durini, que vivia em um castelo e não só

colecionava arte, mas também era ativo no movimento verde , Beuys dá início ao projeto Defesa

della Natura, que prevê o plantio de 7 mil espécies distintas de plantas. Ele queria criar, no ermo

das montanhas, um jardim paradisíaco, usando exclusivamente recursos orgânicos.

52 

 

No momento em que Beuys cultiva, cuida, colhe e seca as plantas, que aprende seus nomes, que

faz listas delas, elas já são, para ele, um objeto. “Quando se lida com flores”, elas tornam-se um

interlocutor “e provavelmente se sentiriam melhor se as tratássemos como uma tentativa”. Do

“lidar carinhoso com a planta” nasce um sentimento em relação a ela, um modo de tratá-la: “Isso

provavelmente vem das próprias flores”.

O estudo contínuo e as experiências de Beuys com o mundo das plantas são enriquecidos

de modo essencial pelos livros de Rudolf Steiner e de seus seguidores. Isso se dá, por exemplo,

na leitura da obra-chave de G. Grohmann, Botanische Beiträge und Erläuterungen zum

Verständnis der Vorträge Dr. Rudolf Steiners “Geisteswissenschaft und Medizin”, ein Versuch

[Contribuições botânicas e comentários para a compreensão das palestras sobre “Ciências do

espírito e Medicina” do Dr. Rudolf Steiner, uma abordagem] editado em Freiburg. É após a leitura

deste livro, aos 26 anos, em 1947, que Beuys define e constrói a base da sua teoria da

plasticidade. Fica evidente como ele lê e relê os textos agrupados no livro, traduzindo em

imagens o que percebe neles como conceito e linguagem por meio de pequenos desenhos a lápis

que insere nas margens (figs. 1-3) da publicação.

Na sucessão de pequenas anotações, vemos como Beuys vai, passo a passo, transformando o

que lê em diagrama. Essas figuras se agrupam em uma imagem que pode ser lida como o

arquétipo dos futuros diagramas da teoria da plasticidade. Nascem aqui os diagramas que Beuys

mais tarde desenharia em quadros-negros, em suas palestras, e pedaços de papel, durante

entrevistas. Só vinte anos após essa leitura, Beuys começaria a desenvolver e expor sua teoria

da plasticidade.

Beuys vê a planta, tal como Rudolf Steiner a apresenta, como algo que está entre o céu e a terra,

o sol e a terra, a luz e a gravidade, aos imponderabilien e aos ponderabilien.NT Ele ilustra o

processo de formação do sal com uma seta que aponta para baixo, seguindo a lei da gravidade.

Nos desenhos ao lado (figura 2) vê-se, embaixo, no ponto para onde a seta aponta, um quadrado

que representa a estrutura de cristalização do sal. No desenho inferior, a seta parte de um vaso

aberto na parte superior, na direção para onde apontam pequenos raios. Cria-se, assim, uma

imagem que lembra flores. Lê-se novamente, no cristal de sal, a palavra gravidade.

Em outro desenho (fig. 3), há dois polos aos quais Beuys atribui os termos quimismoNT etéreo e

quimismo terreno. Aqui, a polaridade está no fato de a estrutura superior ser constituída por um

grande círculo que envia massivamente raios para o interior. A figura inferior, por sua vez, tem um

ponto no centro que irradia traços por todas as direções. O adjetivo “etéreo” aponta para um

campo de “forças constitutivas” no qual um organismo assume uma forma. A formação de uma

planta corresponde, por um lado, ao que é possível e necessário do ponto de vista do quimismo

Page 38: Apostila Joseph Beuys

53 

 

terrestre; por outro, representa aquilo que seu Ätherleib (corpo etéreo) ou seu Bildekräfteleib

(corpo de forças constitutivas) permite. Essa polaridade gera uma determinada configuração, que

detalharemos mais adiante.

No diagrama da evolução (fig. 4), Beuys escreve “corpo etéreo” à esquerda da planta e circunda a

expressão com um rabisco oval, dentro do qual também escreve a palavra “vida”. Pflanze

(Planta), de 1947 (fig. 5), ocupa uma área oval. A figura superior do desenho se irradia da

periferia para o centro; a figura inferior, do centro para fora, como um cristal que se expande a

partir de um núcleo de cristalização para formar uma nova substância, segundo o mesmo

princípio constitutivo.

Um terceiro desenho na margem (fig. 6) mostra, como o anterior, raízes que crescem de forma

linear no espaço, enquanto um broto se desdobra em uma espiral. Cada nova folha cresce a

partir desse broto, de acordo com a sucessão dos números de Fibonacci.NT A espiral se repete

de baixo para cima. No ponto em que as duas espirais se encontram, insinua-se a figura de uma

flor.

O tipo de formação tripartida da planta

Na margem de outra página, Beuys desenhou uma série de figuras muito pequenas, agrupadas

de três em três. A cada grupo relacionam-se os três conceitos destacados no texto, por sua vez

relativos aos princípios constitutivos que a alquimia de Paracelso denomina enxofre, mercúrio e

sal. Steiner aplicou esses princípios ao processo de formação das plantas. Antes de explicarmos

os pequenos desenhos de Beuys, vamos apresentar o tipo de formação da planta.

Metamorfose das folhas: mercúrio

Em 1969, Beuys cola um raminho com algumas folhas (fig. 7) em uma grande folha de papel

branca. Quem olha atentamente para estas folhas constata que elas são ligeiramente diferentes

entre si. Isso fica ainda mais evidente quando comparamos as folhas inferiores e as superiores.

As inferiores são ovais e encolhem-se ligeiramente na ponta. As superiores são compridas e têm

pontas bem delineadas.

Na imagem ao lado (fig. 8), vemos a haste de outra planta, que, com suas muitas folhas

simples, ilustra de forma ainda mais clara o princípio exposto aqui: quando as folhas do ramo de

uma planta originam-se de uma semente ou botão, elas tendem a apresentar uma forma

arredondada ao brotar. Isso chega ao ponto de acabarem ficando mais largas do que longas; 54 

 

nessas casos, forma-se uma cavidade em seu dorso, e elas correspondem à forma de um

redemoinho na água ou outro líquido. Na extremidade do ramo em crescimento, as folhas verdes

tornam-se estreitas e pontiagudas, mais parecidas com a forma de uma chama criada por uma

súbita corrente que agita o ar. Este processo revela-se claramente na chama de uma vela; o gás

que é gerado pelo calor brilha ao esvair-se.

A figura 9 compara esses processos e os torna evidentes. Nele, vemos como outra planta

tem suas primeiras folhas simples e arredondadas, que, gradualmente, vão assumindo a forma

específica da espécie para, em seguida, voltarem a se encolher, tornando-se cada vez menores e

mais finas, até que só reste delas as pontinhas. Em 1787, durante sua estadia na Itália, Johann

Wolfgang von Goethe descobriu esse princípio de formação na Itália e chamou-o de planta-

arquétipo, já que todas as plantas se formam, em princípio, assim. Ao descobrir a formação e a

transformação de natureza orgânica das plantas e animais, Goethe criou o método biológico da

morfologia comparativa dinâmica. Em suas palestras, Steiner chama esse princípio de

transformação e metamorfose de mercúrio. No nível físico, ele se situa entre a cristalização, a

solidificação, a petrificação e a dissolução, a evaporação, a combustão, a produção do caos. A

ele, segue-se o princípio sal e, por último, o princípio enxofre.

Formação de raízes: SAL

Na planta, o princípio sal revela-se na formação da raiz (fig. 10), no momento em que ela começa

a penetrar o solo e tem de se adaptar, gradualmente, a suas condições. A raiz cresce na vertical,

na direção da gravidade, para dentro da terra. Raízes laterais se projetam para fora, a partir da

raiz principal, e sempre no mesmo ângulo em relação a ela. Não há metamorfose, não se formam

espirais; as raízes laterais ficam exatamente uma embaixo da outra. Esse processo assemelha-se

ao da formação dos cristais; ao se proliferarem, eles formam sempre o mesmo ângulo, como

mostra o corte longitudinal num cristal de turmalina.

O processo de florescimento: enxofre

O processo que leva à floração obedece a um princípio de formação completamente distinto. Ele

primeiro transforma as folhas de um determinado tipo num broto, na medida em que as contrai,

reduz e lhes dá uma forma de chama. Acima do broto forma-se o botão de flor que, ao se abrir,

no calor do verão e à luz do sol, cria um cálice no qual estão os estames, geralmente numerosos.

Enquanto as raízes são resistentes, pois formam tubérculos ou são tuberosas, a planta

acima do solo morre no inverno. E as pétalas frágeis da flor têm vida ainda mais curta, pois

Page 39: Apostila Joseph Beuys

55 

 

murcham e caem, muitas vezes no mesmo dia em que a planta floresce. Essas pétalas

frequentemente são vermelho-amareladas como chamas.

O processo enxofre interfere ainda mais radicalmente na formação dos estames, ao fazer

com que eles irrompam no ponto previsto. O que foi gerado como substância no interior da folha

vem para fora e é levado por insetos e pássaros ou transportado pelo vento (fig. 11). A planta doa

sua própria e preciosa substância, tornando-a disponível para outras plantas da mesma espécie.

A autopolinização é quase sempre desnecessária; em seu lugar, há a polinização mútua.

Enquanto a raiz preserva o passado, o pólen garante o futuro da espécie, mantendo-a

fértil. No pólen, cujos grânulos são tão pequenos que não podemos vê-los a olho nu, o aspecto

físico de uma planta desaparece totalmente, mas perdura como potencialidade futura.

A evolução tornou-se possível graças ao princípio da polinização cruzada. A cada

polinização, há uma ligeira alteração no material genético pelo caos que ocorre dentro do ovário.

E é isso que possibilita o surgimento de novas formas.

Geralmente produzido em profusão, o pólen também serve a muitas espécies de insetos,

que alimentam suas crias com ele. Para as abelhas, é a base da produção de cera, que Beuys

utiliza com frequência como material moldável, de trabalho, pois mesmo o mais leve aquecimento

é capaz de alterar o estado físico da cera.

Ainda que o amadurecimento das sementes ocorra ao longo do processo enxofre, a planta

continua produzindo substância em profusão, que será usada apenas em poucos casos para a

preservação da espécie, servindo sobretudo como alimento para outros organismos, em especial

roedores e aves.

Na formação da flor como forma (figs. 12-14), as pétalas não surgem com formas distintas

entre si, mas se assemelham entre elas e formam conjuntamente um novo corpo superior. Muitas

vezes, elas mal são visíveis individualmente, ou mesmo se fundem, como acontece com as

convolvuláceas. Quem sabe quantas pétalas compõem uma tulipa ou papoula?! O importante,

aqui, não é a figura individual, mas o conjunto, o órgão que pode se desenvolver quando os

indivíduos se contêm em benefício do todo. Flores compostas, como a margarida, são

constituídas por uma grande quantidade de flores individuais. O que parece ser uma pétala é, na

verdade, uma flor que abdicou de sua fertilidade em favor do todo; os pontos amarelos no interior

são as frutificações que dão origem às sementes. Assim, as flores tornam-se uma imagem da

sociedade, uma escultura social.

A dispersão do pólen e da semente é, desse modo, a imagem de um processo social que

contribui para o crescimento e o desenvolvimento de outros.

Esse mecanismo, aplicado à ação humana, foi formulado por Rudolf Steiner, há cem anos,

da seguinte maneira: “O bem-estar de um grupo de pessoas que trabalham juntas cresce na 56 

 

medida em que o indivíduo reivindica menos os méritos do seu desempenho para si, ou seja,

quanto mais ele transfere o lucro a seus colaboradores e quanto mais tem suas necessidades

satisfeitas não por seu próprio desempenho, mas pelo desempenho dos outros. Dentro de um

conjunto de pessoas, todo arranjo que é contrário a essa lei irá, mais cedo ou mais tarde, gerar

miséria e infelicidade. Essa lei básica aplica-se à vida social com o mesmo radicalismo e

infalibilidade de qualquer lei natural que rege determinado espectro de acontecimentos naturais.

Mas não se deve pensar que é suficiente aplicá-la como uma lei moral geral, ou traduzi-la na

crença de que todos devem trabalhar para o bem dos demais. Não. Na realidade, a lei só se

impõe da forma certa quando um grupo de pessoas consegue criar organizações nas quais

ninguém jamais poderia reclamar os frutos do seu trabalho apenas para si; e, preferencialmente,

quando a totalidade desses frutos é transferida para o grupo inteiro. E cada um deve, por sua vez,

ser sustentado pelo trabalho dos outros. O que importa é saber que trabalhar em prol dos outros

e obter uma determinada renda são coisas completamente distintas”.

O diagrama da teoria da plasticidade

Voltemos agora aos pequenos diagramas que Beuys desenhou nas margens do livro de

Grohmann. Depois de ocupar-se com as forças polares de formação do enxofre e do sal, em cuja

atuação conjunta, de caráter mercurial, pode aparecer a imagem da planta, o artista passou a

relacionar esses três princípios constitutivos entre eles.

Primeiro, vemos três formas independentes, sobrepostas (fig. 15); no alto, há uma forma que

circula várias vezes em torno dela mesma. No meio, uma figura em forma de gota ou chama,

arredondada na base e pontiaguda em cima. Abaixo, há uma forma dura, angulosa, que lembra

as pedras disformes de basalto colocadas ao lado das últimas mudas dos 7 mil carvalhos

plantados em Kassel. Até no tamanho, as três formações organizam-se de cima para baixo, indo

da leve para a pesada.

Nas três figuras seguintes (fig. 16), os elementos desenhados separadamente na figura

anterior condensam-se em uma única, repetida três vezes, duas delas quase idênticas. Na forma

do alto, o elemento superior e o intermediário permaneceram formalmente iguais; apenas foram

aproximados. Já o elemento de baixo foi reduzido a um quadrado. A forma inferior varia em

relação às duas quando o quadrado que serve de base passa a apoiar-se sobre uma de suas

pontas, assumindo a forma de losango.

A primeira figura tripartida – processo botânico-alquímico

Page 40: Apostila Joseph Beuys

57 

 

No último desenho da série feita nas margens do texto de Grohmann (fig. 17), há duas

figuras justapostas: a figura interna mostra o mesmo círculo que as figuras descritas

anteriormente (figs. 15 e 16); abaixo dele, há uma figura em forma de gota; ela se abre e então se

fecha, sem se arredondar. Em vez disso, assume uma estrutura cúbica, cujos contornos

abrangem um dado inclinado para a frente (fig. 18). Essa frente não é um plano, mas uma ponta.

A estrutura interna nos é familiar porque remete aos primeiros desenhos. No alto, há um círculo

de tamanho médio que irradia para dentro; abaixo, uma estrutura menor com linhas levemente

radiais. Entre elas, há uma imagem de puro movimento, em forma de gotas e fagulhas.

Aqui, portanto, os três elementos – enxofre, mercúrio e sal – aparecem empilhados um

sobre o outro, como raiz, folha e flor (não pensados como substâncias, mas apenas enquanto

processos).

Conhecemos dois desenhos de plantas feitos por Beuys e datados do mesmo ano em que

tomou contato com Grohmann e talvez também com as palestras de Steiner. Eles estão

diretamente relacionados ao que vimos nos desenhos da margem do livro.

Ligeiramente distinto, o pequeno desenho da coleção Vegesack (fig. 5) corresponde, em

sua formação de raiz e flores, aos desenhos à margem do texto; no centro, duas folhas

representam a zona mercúrio. É uma planta tripartida altamente esquemática, no invólucro oval

do seu Ätherleib (corpo etéreo), termo escrito no desenho.

É somente nos últimos anos que Beuys toca mais uma vez no tema das plantas sob o

prisma da tripartição. Um desenho de 1967, intitulado Ein Berglattich (Uma cicerbita) (fig. 19),

reproduz de forma bastante fiel uma planta com raízes, folhas e flores. Apenas as palavras “azul”,

“verde” e “amarelo”, escritas ao lado da raiz, das folhas e das flores, respectivamente, enfatizam a

ideia da tripartição. Amarelo e azul, que compõem a polaridade básica da teoria das cores de

Goethe, unem-se e fundem-se no centro do desenho, na cor verde. Poderíamos conjecturar por

que Beuys associa o azul ao polo da raiz. As demais atribuições não causam estranheza, já que o

polo das flores é, também na natureza, muitas vezes amarelo, enquanto a maioria das folhas são

verdes.

Uma planta que Beuys desenhou com giz num quadro-negro, ao explicar sua Bomba de

mel no local de trabalho (fig. 20), mostra claramente o que está apenas implícito em Uma

cicerbita: a metamorfose das folhas no meio da planta, na região compreendida entre a zona do

sal e a do enxofre, isto é, na zona mercúrio. A apresentação da raiz, ainda que apenas sugerida

no desenho, caracteriza o princípio sal. E o broto é representado, desenhado mesmo, como se

oscilasse em movimento lemniscáticoNT desenhando a típica forma de flor que se implanta

horizontalmente sobre a haste vertical (fig. 20).

58 

 

Vamos comparar o que Beuys representa de forma abstrata com o esboço para sua obra

Bomba de mel no local de trabalho. Juntemos aqui um desenho esquemático e morfológico do

tipo planta (fig. 22) e parte de outro desenho, de 1970 (fig. 21). Tomemos a parte direita desse

segundo desenho, e a coloquemos na vertical, ao lado do tipo “planta”.

Fica claro de imediato que Beuys está criando uma abstração gráfica da planta, que corresponde,

de um lado, aos três princípios descritos anteriormente e, de outro, ao princípio planta em si. Na

base, o desenho mostra uma estrutura simples e evidente, que lembra a geometria da raiz. Dessa

estrutura parte, da esquerda e para cima, uma linha circular curta que gira em torno dela mesma,

e que está associada à formação dos cotilédones,NT na planta. Beuys a representou tanto no

desenho da cicerbita quanto no desenho ao lado da bomba de mel. A figura central, em forma de

chama, relaciona-se às brácteas. Evidentemente, a figura do alto, em rotação visível, corresponde

ao broto. O desenho de Beuys espelha a formação planta em seus detalhes essenciais, ao

mesmo tempo em que a esquematiza.

Também aí se reconhece que a intenção de Beuys é representar a formação tipo planta;

quando a planta floresce, os cotilédones caíram, secos, há muito tempo. Girando em forma de

espiral e balançando levemente, sobe pelo meio do desenho uma linha que se expande e, em

seguida, contrai-se numa pequena estrutura, antes de continuar a subir e de partir, em linhas

circulares, rumo ao centro.

Os princípios do diagrama da teoria da plasticidade

Na figura 23, temos o também típico desenho em forma de diagrama que explica a teoria da

plasticidade (fig. 23). Beuys desenhou o diagrama da esquerda de maneira muito mais solta, livre,

indiferente às formas da natureza; foi fiel, apenas, aos três princípios alquímicos de formação. Por

meio de traços duplos verticais, separou os três princípios constitutivos (enxofre, mercúrio e sal),

para ressaltá-los. Ele assinala a progressão de seu desenrolar, estruturando o processo, assim

como faz a planta quando produz cada uma de suas folhas no caule. Em suas falas, Beuys

enfatizava o fato de que cada processo criativo da natureza ou da vida social pode estar mais

concentrado em um ou outro passo do desenrolar plástico. Isso pode originar um desequilíbrio e,

consequentemente, uma necessidade de adaptação ou tratamento.

Esse díptico talvez seja a mais bela representação gráfica relacionada à teoria da plasticidade. O

que podemos observar na planta, e que nos leva à plena compreensão de sua natureza tripartida,

pode agora ser visto em tudo, em qualquer organismo com o qual estejamos lidando.

Page 41: Apostila Joseph Beuys

59 

 

No meio de um diagrama simples e claro, que está em uma coleção suíça (fig. 24), há um gráfico

que, quando desenhado de maneira isolada, apresenta o polo do caos do lado esquerdo e o polo

da forma do lado direito. Esquerda e direita são, portanto, os lugares opostos do indefinido e do

definido, da forma e da energia, mas também da vontade e do pensamento, ou dos membros e

do crânio. Entre eles estão o movimento e a alma/sentimento, ou coração.

Num complexo desenho a lápis (fig. 25), que resume muito do que Beuys mostra em

quadros-negros em suas palestras, encontramos o gráfico da teoria da plasticidade (na parte

inferior, à esquerda). Embaixo dele, Beuys escreveu os termos alquímicos enxofre, mercúrio, sal;

acima, os três níveis de desenvolvimento do terreno – saturno, sol e lua – relacionados a esses

três processos constitutivos, como Steiner descreve em sua Geheimwissenschaft im Umriss (A

ciência oculta. Esboço de uma cosmovisão supra-sensorial. 4ª. ed. São Paulo: Antroposófica,

1998). Essa é a explicação mais clara possível. Na parte superior, à direita, a planta aparece

invertida ao lado do homem, de modo que as raízes que se encravam na matéria – como a razão

na tecnologia – ficam paralelas à cabeça (Beuys designa-os sistemas nervoso e sensível). Os

órgãos respiratórios e o centro do aparelho circulatório (chamados por Beuys de sistema rítmico)

pulsam de maneira rítmica e estão cercados pela sequência de costelas, em paralelo às folhas

ritmicamente organizadas da planta.NT Além disso, os órgãos reprodutivos da planta e do homem

estão relacionados (no sistema metabólico, segundo Beuys).

À esquerda, acima, ao lado dos três sistemas de órgãos da planta, há três conceitos que se

referem ao organismo social e à sua figura idealizada e tripartida: vida econômica, vida jurídica,

vida espiritual. Voltaremos ao assunto quando falarmos da floresta.

Em primeiro lugar: por que gordura?

Beuys usava quase que exclusivamente gordura vegetal; às vezes, cera de abelha. De

onde vem a gordura vegetal? A reserva de gordura nas raízes ou nos brotos, quando existe, é

insignificante. Em toda e qualquer planta, a matéria gordurosa forma-se na semente que germina.

“A gordura já é, em si, um padrão de qualidade térmica, pois surgiu a partir de um processo

térmico inerente ao crescimento orgânico na planta, na formação das sementes. A gordura é

massa moldável, ainda muito próxima do estado líquido; pois tão logo se aproxime dela algum

calor externo, como o da mão ou o do sangue, torna-se óleo outra vez.” Assim como a matéria

presente no botão se retrai completamente para que a força criativa orientada para o futuro, a

força da germinação, torne-se preponderante, também a gordura presente numa semente que

está por germinar desempenha um papel fundamental para torná-la resistente ao inverno e dar ao

rebento a energia da qual ele necessitará nos primeiros dias de vida. Até que suas raízes 60 

 

consigam extrair da terra a quantidade suficiente de água e até que as primeiras folhas tenham se

desenvolvido o suficiente para que possam alimentar-se por assimilação, a planta depende de

suas reservas de energia. O trigo ou o milho contêm em seus brotos minúsculos tal quantidade de

gordura que se torna viável e possível prensá-los e produzir óleo para o uso doméstico.

O produto obtido a partir da gordura vegetal, e que chega às lojas como margarina, é a

substância que Beuys usava quando montava os “cantos de gordura”. Essa gordura era ideal

para tornar aparente o aspecto escultural da obra em si, porque seu ponto de fusão é tão baixo

que o mínimo aquecimento faz com que ela derreta e escorra, e o menor resfriamento a

endurece. Assim, pareceu adequado ao artista dispor a gordura entre polos de calor e frio;

mesmo sem forma, esse material revela imediatamente a ambivalência da plasticidade.

Beuys se interessava também pelo que a gordura contém de energia, sua neguentropia,NT sua

potencialidade, seu calor e sua luz (um litro de óleo pode aquecer 9 mil litros de água a um grau!).

A gordura vegetal é obtida por energia solar (quimismo etéreo). O oposto dessa energia, que

deriva de sementes do futuro, é o mundo morto, mineral (figs. 31 e 32). Em seus gráficos, Beuys

usa, para caracterizá-lo, o desenho de uma pequena grade, que lembra a estrutura de

cristalização de sais minerais, visível através de raios-X. Podemos encontrar essa grade no

diagrama duplo (fig. 23), na folha da direita, no alto. Na folha ao lado, embaixo, foi desenhado um

pequeno cubo, como já vimos nos desenhos à margem do livro de Grohmann. Ao lado do

diagrama Evolução (fig. 25) está escrito: Anstalt (instituição). Beuys refere-se a todo tipo de

organização no qual as leis, os regulamentos, as fórmulas, as regras e os comportamentos são

definidos e gerenciados. Este é o ponto em que toda e qualquer vida é paralisada, morta, e todo

futuro, enterrado.

A mensagem básica do gráfico tripartido

O gráfico tripartido, que Beuys desenvolveu segundo uma concepção de processo

baseada na alquimia, e a partir da contemplação das plantas, serve como síntese da formação do

mundo em geral. Encontramos diferentes conceitos anotados em seus quadros-negros e

partituras, acima e abaixo dos diagramas, alguns dos quais já foram citados aqui. Mas é preciso

um alto grau de abstração para atribuir as diferentes realidades que Beuys liga ao processo

tripartido, quando o digrama é aplicado ao mundo. Beuys exige de seu público esta força

dinâmica de pensamento quando fala do conceito ampliado de arte. Já a metamorfose das folhas

no broto de uma planta requer um potencial de imaginação apto a abstrair os fatos isolados que

temos diante dos olhos e, comparando as formas isoladas em sua sequência, essa imaginação

Page 42: Apostila Joseph Beuys

61 

 

descobre um todo dinâmico. Esse todo só se revela no tipo de formação da planta no seu espaço

do meio, entre a raiz e a flor.

Sempre que um tal princípio de movimento prevalece – levando à formação e à

transformação das formas e processos –, Beuys o coloca na parte central do diagrama da teoria

da plasticidade. Na discussão com o padre jesuíta Mennekes, este princípio de movimento torna-

se um princípio de evolução. Beuys não pensa nele de modo abstrato – por exemplo, no sentido

kantiano, como um esquema que pode ser usado para ordenar os elementos do mundo. Não

pensa nele apenas como um princípio de atuação geral, mas, nesse diálogo sobre religião, ele

olha para a figura de Cristo e então chama o princípio mercúrio de “princípio Cristo” e o próprio

Cristo de “princípio de evolução”. E acrescenta: “Este princípio de evolução pode partir do

homem, pois a antiga evolução já foi concluída. Tudo de novo que acontece sobre a Terra é

necessariamente resultado da ação do homem.”

No que diz respeito ao homem, e considerando o plano orgânico, o princípio mediador é o

“sistema rítmico” que atua como intermediário, na respiração, entre o exterior e o interior e, na

corrente sanguínea, entre o que está embaixo e o que está no alto. Enquanto o cérebro está

protegido pelo crânio fechado (princípio sal), o coração e os pulmões estão cercados pelo peito,

estruturado de maneira rítmica, com costelas superiores fechadas, e inferiores, abertas.

Do ponto de vista do sistema ósseo, o corpo humano se expande (princípio enxofre) para

baixo e para fora: um osso na coxa, dois ossos na perna, muitos ossos no pé; o que é o oposto

do que acontece na formação da cabeça. No peito, no coração, experimentamos as emoções de

maneira mais intensa; a vontade emerge do corpo e se realiza através dos seus membros; o

pensamento está ligado ao cérebro. Todos estes aspectos são encontrados nos diagramas de

Beuys. Esse também é o motivo pelo qual ele define como obra de arte tanto algo que resulta da

ação do homem quanto uma obra da natureza concebida por uma força criadora.

O conceito terapêutico de Beuys

Na década de 1970, olhando para os processos unilaterais que tinham se desenvolvido na

sociedade, Beuys chamou as pessoas que eram guiadas por desejos surdos de roqueiros;

aqueles que desfrutavam das belezas do mundo, de hippies; e de teóricos, os que criavam

abstrações científicas, enquanto que o homem saudável pode combinar harmonicamente querer,

sentir e pensar (fig. 33).

No geral, Beuys vê o homem moderno, com seu pensamento abstrato, matemático, preso

ao materialismo. Seu pensamento é abstrato; seus apartamentos sóbrios, construídos em

ângulos retos, isolam-no da natureza. A cruz, sinal da morte – também presente na mira do fuzil e 62 

 

no eixo do sistema cartesiano de medição – marca o homem moderno, segundo ele. Ele quer

combater essa unilateralidade, trazendo-lhe suavidade e calor. Assim surge a ideia de Fettecke

(Canto de gordura): quando aplica gordura nos cantos de uma sala, o artista transporta calor para

um espaço que é, em si, frio. “Este é o processo terapêutico em si […]. Isso é o primordial na

arte.”

Em termos concretos, Beuys traz para o espaço retangular da galeria vários pacotes de

gordura, abre-os, empilha-os e amassa tudo, de modo que o material se torne plasticamente

maleável. Então ele aplica essa gordura em um ou mais cantos, alisando-a ao máximo. Depois

contempla, analisa o todo por algum tempo e, a seguir, deixa a sala (fig. 34). Assim como se

aplica óleo na cabeça do moribundo no sacramento da extrema-unção, o espaço humano,

marcado pelo ângulo reto, é ungido, para que possa estar à altura do advir orgânico, das suas leis

de vida e crescimento.

Em incontáveis pronunciamentos, Beuys fala de como o materialismo que marca a visão

de mundo das pessoas pode ser superado; e sobre como gerar um tipo de pensamento no

organismo social que, por exemplo, organize a atividade econômica humana de forma fraterna.

As formas que ele emprega para tornar nítida sua ideia do processo de superação das

condições vigentes são inúmeras: ele não usa só gordura ao trabalhar com os cantos, mas

também açúcar, que não é tão rico em energia, junto com um fio cheio de pequenas lâmpadas,

ou com argila moldável. Outras vezes, ele cobre o ângulo duro de um canto com feltro, sobre o

qual dispõe, ocasionalmente, um triângulo de gaze. Em uma ocasião, ele disparou chamas de um

bueiro quadrado e fez subir uma nuvem de vapor pequena e difusa de um porão de paredes

escuras, frias e espessas (fig. 35).

Além das palestras e desenhos em quadros-negros que Beuys usou para expor sua teoria

da plasticidade, seu interesse especial era a criação da escultura social, da plasticidade social. A

partir daí também surgiram quadros-negros, mas principalmente palestras.

Assim como vimos a maneira pela qual o gráfico da teoria da plasticidade se desenvolveu,

a partir da própria obra de Beuys, considerando a formação planta, veremos agora onde a

escultura social se insere no processo evolutivo da natureza e da cultura. Depois da Terra como

um todo, a floresta é a maior escultura social. Entre as florestas, a floresta tropical da Amazônia é

a maior delas. A ela dedicamos a última seção da nossa abordagem.

A escultura social

Page 43: Apostila Joseph Beuys

63 

 

Seu surgimento na evolução

A teoria sintética do neodarwinismo, desenvolvida a partir das ideias de Darwin, continua a ver a

evolução como resultado da luta pela existência e do processo de seleção natural. Os seres que

estão mais bem adaptados a um determinado meio, graças a seus genes, teriam maior chance de

sobreviver e de transmitir seu material genético à geração seguinte. O conceito de gene de outros

tempos – um gene produz uma característica – está, no entanto, ultrapassado. Como é possível

que os 22 mil genes humanos sejam capazes de produzir cerca de 36 mil proteínas? Toda uma

cascata de processos epigenéticosNT está por trás dos processos fisiológicos e de crescimento

de um organismo. Essa cascata está, por assim dizer, aberta para cima. Se dizemos que os

processos fisiológicos que ocorrem dentro de uma célula são “ligados” pelos chamados

processos epigenéticos, imediatamente perguntamos quem opera o interruptor e, na sequência,

quem “ligou” o processo que aparece como sendo o operador do interruptor – e como ele será

desligado, ou seja, como se transformou num processo dinâmico. Isto se aplica não só à célula

individual, mas também ao conjunto de células, ao órgão no qual ele se encontra e, finalmente, ao

organismo como um todo. (Exemplos simples: Como se estabelecem o tamanho e a proporção de

uma bananeira ou das espirogirasNT de uma lagoa? O que inibe ou estimula o crescimento das

células envolvidas na formação das folhas dentadasNT ou no surgimento de folhas duplas?

Quem atribui uma tarefa a cada um dos indivíduos de uma comunidade de insetos sociais?

Quem, em caso de transtorno grave, as redistribui?)

Tanto o surgimento de aminoácidos e proteínas férteis nos genes, como a formação de

organismos unicelulares são completos enigmas na evolução. Como se deu o processo em que

algas azuis e arqueias, ao penetrar em uma célula eucariotaNT (ou serem assimiladas por ela),

não foram digeridas, mas se transformaram em micro-organismos capazes, por sua vez, de

assimilar e digerir?

Esse tipo primitivo de célula, que atua em toda a evolução – agindo como um fundamento na

construção de organismos multicelulares – surgiu da simbiose. Embalados e protegidos por uma

membrana comum, organismos que originalmente viviam isolados passam a viver juntos e,

graças ao modo como cooperavam uns com os outros, aumentaram tanto a sua independência,

sua autonomia em relação ao ambiente, quanto sua capacidade de sobrevivência. (Isso é

comparável com o surgimento de cidades medievais, nas quais os diversos artesãos se reuniram

e se organizaram, criando uma administração eficiente. O povoado é protegido por um muro,

cujos portões controlam o que pode ou não entrar na cidade.) Ao longo de toda evolução, o

ganho de autonomia revela-se como o progresso em si.

64 

 

O nível máximo de autonomia é alcançado, sem dúvida, na fase final da evolução, com o

aparecimento do homem. Se o que chamamos de vida não é uma “eclosão” de processos

químicos – pois não há, na física ou na química, nada que torne plausíveis os conceitos vida e

autonomia –, tampouco há nos processos vitais algo que possa fazer emergir aquilo que

chamamos de alma. No entanto, se uma forma particular de complexidade e autonomia é

alcançada, isso resulta, obviamente, na materialização de um novo princípio de eficiência.

Um novo princípio de organização, até então último, atua sobre os membros de um organismo

pré-humano e modifica a forma das suas pernas traseiras, de modo a fazer com que o ser se

erga. Os membros anteriores, liberados do peso do corpo, tornam-se livres; e as mãos, sem

função técnica específica, podem servir a todo impulso técnico que se lhes ofereça.

Na evolução posterior, sobretudo desde a Idade da Pedra, o desenvolvimento da organização do

sistema nervoso do homem tornou-se cem vezes mais veloz que o ritmo evolutivo geral. Em

consequência, o desempenho cultural do homem tornou-se cada vez mais significativo, fazendo

surgir o desejo de liberdade. Essa liberdade não se baseia apenas na emancipação do meio, mas

também no desejo por autonomia, autodeterminação, de não depender das organizações sociais

e de suas estruturas. Esta é a tarefa evolutiva da cultura humana.

Como as individualidades podem contribuir para estimular o grau de liberdade de outras? Como o

potencial criativo do indivíduo pode levar à escultura social e como ela se apresenta?

Falando sobre arte, Beuys disse: “[O homem] é o criador do mundo [futuro]. Isso não é pretensão;

é o que se exige dele. Houve tempos em que, por meio de líderes e de guias espirituais, muito foi

dado aos seres humanos; havia normas sociais válidas para o coletivo, e regulamentos

relacionados a ele. Era preciso observá-las rigorosamente. Tudo tinha um significado então. Uma

vez que o homem se emancipou de tudo isso, não tem mais essa obrigação. Ao longo do

desenvolvimento, produz suas referências sozinho, e passou a dispor livremente delas. Isso pode

e deve, consequentemente, ser esperado dele. […] Há muita miséria no mundo porque essa

coisa – como é que vamos chamá-la? – foi perturbada e revestida por forças negativas e também

por forças bem-intencionadas; mas, em princípio, o homem pode [usar livremente estas forças];

basta se voltar para o que está diante dele, em vez de partir de preconceitos, ou de algo de que o

convenceram, ou daquilo que a propaganda fez dele”.

Beuys considera a “divisão tripartida do organismo social” a forma mais sensata de organização

da escultura social como formação social para o futuro: “A estrutura tripartida surge no momento

em que, no processo de desenvolvimento do pensamento jurídico romano, o princípio dualista é

superado. A estrutura tripartida surge como ideia básica justamente no momento em que toda a

compreensão cultural está sob o primado da vida econômica. […] Voltando ao momento que

antecede Platão e Aristóteles, chegamos a uma espiritualidade mais antiga, que poderíamos

Page 44: Apostila Joseph Beuys

65 

 

chamar de popular e mitológica; e vemos que a compreensão da cultura é uniforme, isto é, está

sob a liderança da vida espiritual. Arte, ciência e religião eram uma coisa uniforme. Havia uma

autoridade, o sumo sacerdote, o rei ou sei lá quem, que representava a cultura sob o princípio da

unidade, e o termo usado era vida espiritual.

“Posteriormente, o conceito básico tornou-se a vida jurídica. Então, em certo ponto do

desenvolvimento, a vida econômica passa a determinar a cultura; e aí aparece a tríade.”

Rudolf Steiner foi um observador muito atento de todos esses processos. Ele não inventou nada,

só observou. A partir da percepção, foi praticamente anotando os resultados, um na sequência do

outro. E os resultados da percepção mostram que o organismo social é tripartido, que ele não

precisa ser tripartido. O organismo social é tripartido, mas de forma distorcida, ou seja, em

constelação patológica, ulcerada ou emaranhada etc. Seria um completo mal-entendido tentar

compreender os pontos-chave de Steiner como uma tentativa de dividir o organismo social em

três partes. Não é essa sua intenção. Ele apenas constata e indica as medidas terapêuticas que

devem surgir na consciência das pessoas para que elas possam regular os princípios

corretamente e com mais atenção; e para que o organismo social não permaneça despercebido

em sua forma tripartida, já que essa inconsciência gera todos os emaranhamentos, nós e

deformidades. O aspecto terapêutico está, portanto, presente em Steiner, e é da maior

importância.

Nesse sentido, podemos dizer que os três campos da vida social referidos por Steiner e Beuys

existiam também na Antiguidade, mas eram dominados, por exemplo, pelo faraó, que não só era

responsável pela organização da expressão religiosa, mas também era a autoridade final em

assuntos jurídicos e conduzia a vida econômica – ao determinar, por meio de um ritual, quando,

depois da enchente do Nilo, a semeadura e a colheita deveriam começar. A vida espiritual, a

jurídica e a econômica estavam, assim, em uma única mão, com predomínio da espiritualidade.

Com a criação do direito romano, surge, ao lado do pontífice máximo, uma entidade jurídica

independente dele. Modifica-se, assim, a constituição política do Império Romano.

A Revolução Francesa é, também, o início da Era Industrial, do Gründerzeit,NT pela primeira vez,

a começar pela Europa Ocidental e Central, a vida econômica se destaca tanto que domina o

Estado. Nos últimos anos e décadas, viu-se como o capitalismo emergente é capaz de arruinar

toda uma estrutura estatal.

A exigência da Revolução Francesa por liberdade, igualdade e fraternidade ainda é um desafio

para o futuro. No chamado mundo livre, “liberdade intelectual” parece ser algo indiscutível.

Mesmo assim, é claro que o Estado, ou seja, as estruturas jurídicas, dominam principalmente o

sistema escolar, universitário e o da formação em geral, mas também o sistema de saúde,

embora a instância jurídica não devesse ter nada a opinar sobre a vida do espírito. Pois o que é 66 

 

bom e verdadeiro não pode ser decidido democraticamente. A vida jurídica, por sua vez, deveria

se limitar a garantir a preservação da liberdade individual, enquanto o papel da vida econômica

deveria ser satisfazer as necessidades básicas dos homens que vivem em sociedade. Qualquer

forma de serviço em benefício próprio ou de autoenriquecimento, assim como o acúmulo de

capital privado, ocorre às custas de outrem. Sempre que alguém guarda algo para si mesmo,

outra pessoa é privada desse algo. Isso é evidente para qualquer ser pensante. Falamos disso

quando abordamos a polinização no reino vegetal, partindo da lei básica social de Rudolf Steiner:

“Dentro de um conjunto de pessoas, todo arranjo que é contrário a essa lei irá, mais cedo ou mais

tarde, gerar miséria e infelicidade”.

Num dístico, o poeta alemão Schiller fala do ensinamento que podemos extrair do ato de

olhar para uma planta:

Se buscas o supremo, o maior, a planta pode ensinar-te;

sê ativamente aquilo que ela é passivamente; é tudo.

A evolução não tem sequência, portanto, quando a particularidade do indivíduo é exaltada,

mas sim quando ele promove o bem comum, partindo de sua capacidade de ser livre e de sua

criatividade. O homem só se engrandece na medida em que esse engrandecimento lhe possibilita

oferecer uma contribuição maior à coletividade.

Observemos mais uma vez a figura 25, na qual Beuys caracteriza os quatro estágios de

desenvolvimento – pedra, planta, animal e homem – e também descreve, na parte inferior, o

processo de desenvolvimento cultural que acabamos de descrever.

Tomando toda a largura da página, há uma figura que conecta uma estrutura circular (à

esquerda) a outra (à direita). À esquerda, Beuys desenha o mundo terreno abobadado, protegido

pela placenta cósmica; a humanidade ainda está ligada a ela por um cordão umbilical. Sua

cosmovisão é formulada nos mitos. É o momento em que os líderes espirituais dominam a vida

em sociedade. O artista insere nesse círculo o algarismo 1 e, sob ele, a palavra myth (mito).

Referindo-se ao desenvolvimento da humanidade ocidental, ele representa à direita a passagem

do mito ao logos, o conhecimento, escrevendo os nomes Platão e Aristóteles. Começa o período

em que a vida jurídica se coloca lado a lado com a vida espiritual. Beuys insere um 2 nessa parte.

Ele também desenha, à direita do círculo cultural chamado de mítico, uma tangente vertical, no

alto da qual escreve a palavra Cristo e insere uma pequena cruz.

Quando o cordão umbilical que nos ligava aos deuses antigos foi cortado, e Platão e Aristóteles

desenvolveram um tipo de pensamento que transformou o que era espiritualidade em ideias

racionais, tornou-se plausível a concepção de um ser humano que tinha em si todo o cosmos – o

Page 45: Apostila Joseph Beuys

67 

 

que até então era associado apenas a deuses ou a um único deus. Assim começa uma nova era

mundial.

O desenvolvimento posterior expulsa o divino da nossa visão de mundo; e está expresso

no pensamento de homens como Newton, Kant, Helmholtz, Marx – ou seja, no desenvolvimento

de uma imagem e de uma compreensão de mundo baseada na física, e de um materialismo

fisiológico e sociológico. Estas são as precondições externas para aquele grau de autoconfiança

e egoísmo que fundamentam a sensação de liberdade do homem atual.

“Como o homem, no decorrer da evolução, chega ao materialismo? Como as pessoas são

levadas ao ponto em que, por assim dizer, chocam-se duramente no chão, na matéria? É um

processo de materialização. O materialismo é um método cristão. Sem Cristo não há

materialismo. Mas não podemos parar por aí. Isso é apenas um processo de emancipação para

se chegar à individuação e não ficarmos presos ao velho coletivo… O materialismo é uma técnica

para se livrar do velho coletivo; em seguida, o homem acordou e pôs-se de pé como indivíduo, e

como indivíduo egoísta, que pensa, em primeiro lugar, em si mesmo.

“Agora tudo é uma questão de como o homem conseguirá sair de novo do isolamento que lhe foi

imposto sistematicamente, com o desenrolar do materialismo no Ocidente. … [O materialismo] é

um termo científico que surgiu pelo desenvolvimento geral do reducionismo.NT Evitou-se tudo o

que é de natureza espiritual, que se refere à consciência, à alma, ao emocional, até ao princípio

vital. Reduziu-se tudo às leis da matéria. Assim, o materialismo dá certo. Assim, ele é um método

genial… Mas se esse limitado conceito de ciência transforma-se num conceito válido para toda a

cultura, então a cultura é extinta, porque ele é o princípio da morte. O materialismo elaborou o

princípio da morte. Se você o vê como um mistério, então ele nada mais é do que a repetição do

mistério do Calvário. Aqui, neste ponto, é que o homem encarnou mesmo.”

Por isso Beuys reinsere, no limiar para o presente, exatamente no centro do desenho

Evolução, a palavra Cristo, seguida da palavra cruz. Se Jesus era o Cristo, ele deve ter sido o ser

mais solitário que o mundo já viu sobre a Terra: um homem-eu com plena consciência do mundo

sobrenatural, cercado por seres humanos para quem o mundo espiritual era inacessível. Tendo

chegado, por meio da história cultural da modernidade, à liberdade pessoal, o homem também

pode se sentir completamente isolado e infinitamente solitário. Por outro lado, tem a chance de se

emancipar das condições herdadas e criar outras novas, aceitas por todos. “Como consequência

disso, o homem pode criar até mesmo o seu planeta, [o planeta] do qual precisa para seu

desenvolvimento futuro. Isso seria um aspecto Júpiter. Se levarmos em consideração a evolução

das condições no planeta, é óbvio que o homem não viverá para sempre na Terra. Mas, após a

era do materialismo, ele se tornará gradualmente capaz de criar seu próprio planeta futuro, já que

tem suas possibilidades individuais, suas próprias forças. E ele deve mesmo fazê-lo.” E Beuys 68 

 

acrescenta a pergunta: “Como cada um, cada pessoa que vive na Terra, pode se tornar um

criador de formas, um escultor, um desenhista do organismo social? Nessa hora, chegamos a um

estágio de desenvolvimento da arte muito mais espiritual do que todo seu desenvolvimento

anterior. Trabalharíamos, então, com um material realmente vivo. […] Aí, todos serão capazes de

criar formas numa matéria viva, isto é, de realmente criar algo vivo. […] Para chegar até lá, é

preciso primeiro reaver a substância geral, aberta, viva, fluida, cuja característica maior é o fato

de possuir calor. Não se trata, claro, de calor físico, como o calor do fogão. Mas sim de um calor

social. É provável que ele seja exatamente igual à substância real do amor. Ela tem um caráter

sagrado. Mas é uma substância […] real. Portanto, é uma forma superior de calor, que chamo de

calor evoluído. […] O calor interpessoal precisa ser gerado. Isso é o amor. É o que está contido

neste conceito misterioso de Cristo.”

Beuys identifica o ponto culminante do desenvolvimento desta percepção do próprio eu no

presente e, para caracterizá-lo, deixa que as linhas evolutivas [da fig. 25] confluam para um ponto

e atravessa esse ponto com uma linha vertical e uma linha horizontal, em forma de cruz. À

esquerda e na parte inferior da margem, ele desenha um cubo, como um sinal do princípio sal. No

princípio sal, uma unidade cristalina, estruturada a partir do caos e isolada do seu meio, exibe sua

particularidade.

Em uma perspectiva cultural, isso corresponde ao homem livre, capaz de tomar decisões;

o homem criativo. Sua tarefa é, como já foi salientado, moldar a escultura social por meio do calor

interpessoal ou da substância do amor. Se esse calor interpessoal é tomado, conscientemente,

como material moldável, então é possível ampliar o conceito de arte como “arte social”: “Então,

naturalmente, falamos da vida econômica”, pois é na vida econômica que o egoísmo, surgido

com a liberdade, é mais difícil de ser superado.

Documenta 7 – 7 mil carvalhos

Como apelar para um comportamento moral não dá muito resultado, Beuys tenta trabalhar

com grandes imagens, que coloca no espaço cultural da arte. Em 1982, na Documenta 7, ele faz

transportar 7 mil blocos de basalto cuneiformes para a frente do Friedericianum, o salão de

exposição central do evento. Os blocos foram reunidos e a pilha que formavam terminava um

pouco antes do meio do gramado, em frente à entrada da exposição. Nesse ponto, ele planta a

primeira das 7 mil árvores previstas para serem plantadas até o início da Documenta 8. Beuys

diz: “O início simbólico da rearborização vital da Terra deve acontecer em Kassel. […] Trata-se de

uma ação de caráter racional; neste caso, do plantio de árvores. […] Deve-se criar primeiramente

um entendimento global para – onde quer que isso seja possível – tornar sustentáveis tais

Page 46: Apostila Joseph Beuys

69 

 

processos. Pode ser que amanhã eu comece o trabalho pela Argentina, enchendo as Ilhas

Malvinas de árvores [Beuys dá sua risadinha típica…]. Isso seria a solução para o problema”. Ao

trabalhar com árvores, Beuys escolhe “uma coisa muito simples … a imagem mais básica”.

Em 1972, ele levou a iniciativa “Organização pela Democracia Direta por Plebiscito”NT para a

Documenta e, em 1977, a “Bomba de mel, símbolo da Universidade Livre Internacional. […] Os

grupos existentes à época em todo o mundo, mais ou menos organizados, que trabalhavam junto

à Universidade Livre Internacional, apresentaram-se para mostrar o princípio, ou seja, o conceito

de arte ampliada, para apresentar o conceito da escultura social. Ou seja, um conceito de arte

[…] que considera o homem como ser criativo por excelência, sob a tese ‘Todo homem é um

artista’. Ou seja, um conceito de arte que se concentra na capacidade do ser humano [e] num

novo conceito de capital, que reconhece que o dinheiro não é capital, mas que o verdadeiro

capital do homem é sua capacidade ou suas capacidades, e que é preciso criar um novo sistema

econômico a partir daí. Com um novo conceito de democracia, com uma nova compreensão da

liberdade humana como ponto de partida, tudo seria recriado. Ou seja, transformar toda a

existência do homem aqui sobre a Terra.”

No encontro de pessoas que têm os mesmos direitos e definem livremente suas formas de

convívio, em todos os níveis da sociedade, numa conversa democrática, pode surgir e crescer

aquela escultura social à qual Beuys, no seu desenho sobre a evolução, dá o nome de

Sonnenstaat (Estado do Sol) ou, de acordo com Steiner, Jupiter (Júpiter).

Em 1982 acontece – não no Friedericianum, mas em toda a cidade de Kassel e além dela,

até Nova York – a ação do plantio de árvores (fig. 36).

A floresta virgem

As florestas da região central da Europa, com exceção de algumas reservas naturais,

foram reflorestadas segundo um uso comercial e, portanto, apenas parcialmente adequadas para

ser descritas como organismo social autônomo. A maior e mais importante floresta da Terra,

aquela que podemos chamar de organismo independente, é a floresta tropical da região

amazônica, no Brasil.

Antes de concluir este artigo, dirigimos o olhar para esse imenso organismo social,

protótipo natural de cooperação e interação na fraternidade: a floresta virgem, as florestas

tropicais da bacia amazônica – “uma obra de arte, que não foi feita pelo homem, mas que é uma

obra de arte”.

70 

 

No pior solo possível – lixiviadoNT por chuvas diárias há milhões de anos e exaurido em

seus minerais hidrossolúveis –, cresce uma comunidade vegetal de biodiversidade excepcional.

Ela é constituída fundamentalmente por árvores de até quarenta metros de altura, nas quais

outras plantas se instalam.

Onde há várzeas, crescem herbáceas anuais. Elas criam raízes, fazem brotar uma haste

com folhas e morrem ao florescer. O que é uma árvore em comparação a elas? Na figura 37,

vemos a árvore como uma montanha orgânica, sobre a qual as plantas crescem como se

estivessem em uma campina.

Uma árvore é uma protuberância da terra, que pode chegar a altura e peso

impressionantes. Uma árvore expande substancialmente a superfície da terra da qual brotou.

Sobre toda a sua superfície crescem plantinhas (os seus próprios brotos naturais), que em parte

carregam folhas e em parte florescem. Ainda que uma árvore tenha sido formada por um

processo de crescimento orgânico, apenas uma fina camada (situada entre a casca e o tronco)

continua viva. A madeira do tronco, com seus condutos de água, morre, mas permanece estável

por um longo tempo, sustentando a copa. Ano após ano, os canais nas hastes e ramos que

conduzem a seiva formam uma nova camada externa que pressiona as camadas antigas, agora

como casca ou cortiça, para fora (o mesmo acontece com os canais que conduzem a água, que

formam uma nova camada interna). Quanto mais úmido é o clima no qual uma árvore cresce,

mais depressa sua casca se desfará, podendo transformar-se em húmus.

Sobre essa fina camada de húmus que está sempre se renovando crescem – como numa

campina sobre a árvore – as mais diversas espécies de plantas, sobretudo orquídeas, bromélias

e samambaias. Estas plantas, por sua vez, oferecem hábitat a uma variedade de espécies

animais.

As folhas das árvores seguem o ritmo anual: começam a murchar na árvore, e quando

morrem, caem e são comidas imediatamente, no calor úmido da floresta tropical, por pequenos

artrópodes e micro-organismos, decompostas por bactérias e atravessadas por hifas de fungos

que encontram sua alimentação no substrato que se formou. Na floresta úmida, esse processo de

transformação é voraz; cerca de 80% da matéria orgânica que cai ao solo volta para o ciclo de

nutrientes. Os 20% que se perdem são lavados pela chuva antes que as plantas consigam

reabsorvê-los. As árvores da floresta úmida e as plantas que crescem sobre elas não perdem sua

folhagem na mesma época, como o que acontece nas zonas temperadas. Elas crescem de tal

modo que, em alguma parte da floresta, sempre é “outono”.

Também há uma fonte regular de material orgânico (fig. 38). O húmus da árvore,

constantemente criado, assim como os elementos que libera, são imediatamente assimilados

pelas hifas e pela raiz, e reconduzidos ao ciclo de nutrientes.

Page 47: Apostila Joseph Beuys

71 

 

Podemos distinguir macronutrientes (nitrogênio, fósforo, potássio, cálcio e magnésio) e

micronutrientes ― (oligoelementos como boro, cobalto e molibdênio). A maioria dos solos

tropicais carece de alguns nutrientes, em especial fósforo. Os minerais que não existem no solo

da floresta, vêm com os ventos alísios, carregados sobre o Oceano Atlântico na forma da poeira

fina do deserto norte-africano. Isso revela um contexto organicísticoNT ainda mais amplo, que

ultrapassa continentes.

Como pudemos verificar com precisão cada vez maior nas últimas décadas, os organismos

que estão na camada de húmus formam uma espécie de sistema digestivo. A matéria orgânica

alimenta os organismos que a decompõem; as substâncias que são liberadas nesse processo

servem, no nível elementar, aos cogumelos e às árvores para a síntese de seus próprios

organismos. Nesse contexto, os cogumelos assimilam os minerais dissolvidos na água; não

apenas os usam para construir suas hifas e frutificações, como os transportam para o sistema

das raízes das árvores, cujas ramificações mais finas eles entrelaçam ou penetram. Na figura 39,

fungos frutificam em um toco de árvore em deterioração.

Essa ligação de fungos e árvores também permite que os primeiros integrem à sua

alimentação as substâncias assimiláveis que as árvores levaram para as pontas de suas raízes.

Quase todas as árvores de uma floresta e numerosas espécies de fungos participam desse

intercâmbio de substâncias. A troca pode ir tão longe que os fungos, em vez de absorverem eles

mesmos os carboidratos das árvores, passam-nos adiante para as árvores que estão, por assim

dizer, “famintas”.

Assim, a floresta se apresenta como uma comunidade de proporções sem precedentes: ela

é um organismo cujos órgãos individuais proliferaram de forma independente como espécies,

mas que só podem viver no contexto da comunidade, ou graças a ela. Quando a floresta é

destruída, a fauna e a flora do solo perdem sua base vital, o ciclo não mais pode ser reconstruído,

e os minerais ainda existentes são completamente lavados em pouco tempo. No lugar onde essa

imensa riqueza biológica vivia, sob a atmosfera de estufa da Terra, instala-se em muito pouco

tempo um deserto, cultivável apenas por uns poucos anos, e apenas mediante o uso de uma

quantidade cada vez maior (e mais cara) de adubo artificial.

Mesmo a água da floresta amazônica tem características organicísticas (fig. 40). Da água

da chuva que cai diariamente sobre a floresta, 74% vem da evaporação da grande área de

vegetação, 26% é trazida pelos ventos alísios do Oceano Atlântico e 26% regressa, através do

sistema fluvial, ao mar (a figura 41 mostra um nevoeiro que surge após uma tempestade na

floresta).

O espaço vital da floresta tem no solo seu sistema de alimentação mineral; na folhagem,

seu metabolismo; e, nas copas das árvores, seu sistema reprodutivo. A fecundação se dá graças 72 

 

ao pólen, carregado entre as espécies pelo vento ou por insetos, pássaros, morcegos. Não teria

fundamento ver este intenso sistema de vida sob o prisma da eliminação e da seleção. É evidente

que, aqui, as simbioses entre comunidades de inegável abundância permitem a pluralidade de

formações organicísticas.

Esse ecossistema, delineado apenas com traços grosseiros, é um protótipo magnífico de

uma escultura social na qual os membros de um organismo sustentam uns aos outros.

Num contínuo processo sal, minerais são liberados no solo, onde estão as raízes; eles

saem da matéria orgânica em decomposição, são dissolvidos na água e então assimilados pelas

hifas de fungos e pelas pontas de raízes. Fraternalmente distribuídos, como numa vida

econômica socializada, são então conduzidos à copa das árvores.

No processo mercúrio, a zona da folhagem desenvolve folhas e ramificações entre o solo

sombreado e as copas translúcidas, em intermináveis metamorfoses do tipo planta, dando a cada

um dos elementos envolvidos – como numa forma de vida jurídica altamente desenvolvida – um

hábitat adequado e conveniente.

No processo enxofre, sementes do futuro desenvolvem-se na copa.

A floresta dá espaço, assim, a uma biodiversidade que não pode ser encontrada em

nenhum outro lugar. Se analisarmos um de seus hectares, constatamos que muitas espécies

ocorrem nele apenas uma vez. Os indivíduos desenvolvem variações, como os seres humanos

fariam em uma vida intelectual livre.

As herbáceas que florescem apenas por um ano mostraram o protótipo natural da

plasticidade tal como Beuys o representa nos diagramas da sua teoria da plasticidade. Raiz, folha

e flor ilustram os processos sal, mercúrio e enxofre. Em seus desenhos, flores e o florescimento

tornam-se equivalentes a processos sociais transformadores.

Arquetipicamente, a floresta tropical mostra como seres de natureza distinta e em

patamares de desenvolvimento diversos podem formar uma comunidade na qual estabelecem

uma unidade coesa, como células e órgãos de um único organismo.

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Chr

istin

a El

iza

Bac

h

CO

MO

EXP

LIC

AR

AR

TE A

LEB

RES

MO

RTA

S?

Estr

atég

ias

da a

rte

no s

egun

do p

ós-g

uerr

a: T

ony

Smith

, Fr

ank

Stel

la, D

onal

d Ju

dd, G

rupo

Flu

xus,

Jos

eph

Beu

ys e

And

y W

arho

l

Tese

de

Dou

tora

do

Tese

apr

esen

tada

ao

Pro

gram

a de

Pós

-gra

duaç

ão

em H

istó

ria S

ocia

l da

Cul

tura

do

Dep

arta

men

to d

e H

istó

ria

da

PU

C-R

io

com

o pa

rte

dos

requ

isito

s pa

rcia

is p

ara

a ob

tenç

ão d

o tít

ulo

de D

outo

ra e

m

His

tória

Orie

ntad

or: R

onal

do B

rito

Fern

ande

s

Rio

de

Jane

iro

Nov

embr

o de

200

3

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Sum

ário

1.In

trod

ução

1

2. P

rimei

ros

pass

os

29

3. O

cub

o na

Am

éric

a 57

3.1

Mat

éria

e m

emór

ia

59

3.2

A fo

rma

e a

fôrm

a 63

3.3

Nov

a Y

ork

e ph

ysis

67

3.4

A p

oétic

a do

esp

aço

70

3.5

Aiili

smos

e n

iilism

os

73

3.6

As

voze

s e

os fe

nôm

enos

77

4 . O

séc

ulo

amer

ican

o83

4.1

Fran

k S

tella

x F

rank

enst

ein

85

4.2

Sha

ped

canv

as

92

4.3

A fo

rma

e a

sim

etria

95

4.4

Don

Jud

d st

yle

98

4.5

Que

m te

m m

edo

da b

lack

box

? 10

0

4.6

Os

amer

ican

os fa

lam

del

es m

esm

os

102

4.7

Mod

ulus

viv

endi

10

5

5 . O

flux

us d

a vi

da10

9

5.1

O m

undo

é d

adaí

sta

114

5.2

Pal

eolo

gias

11

9

5.3

Env

ironm

ents

, per

form

ance

s, h

appe

ning

s 12

2

5.4

Her

aclit

o, b

atai

lle e

zen

-bud

ism

o 12

5

5.5

A m

atér

ia é

a m

ensa

gem

12

9

5.6

EUA

x U

RSS

13

1

5.7

Mul

ti, in

ter,

mix

e m

ass

mid

ia

133

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 118: Apostila Joseph Beuys

6 . O

luga

r Beu

ys

136

6.1

Arte

em

açã

o 13

7

6.2

O lu

gar h

istó

rico

de B

euys

14

0

6.3

A c

rise

euro

péia

14

3

6.4

Obr

a e

mito

logi

a 15

1

6.5

Logo

s e

diál

ogos

15

7

7 . M

arily

n, s

opas

e M

ao T

sé-T

ung

161

7.1

Cai

xas

e cu

bos

164

7.2

Crít

ica

& a

desã

o 16

5

7.3

Imag

ens

e m

ais

imag

ens

168

7.4

Bus

ines

s ar

t: fru

ir é

cons

umir

169

7.5

Aut

oria

x o

rigin

alid

ade

175

7.6

And

rew

War

hola

17

8

7.7

Arte

ou

pop

art

180

8 . C

oncl

usão

: o

que

não

é ar

te?

182

8.1

It´s

now

or n

ever

18

4

9. R

efer

ênci

as b

iblio

gráf

icas

192

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6 O lu

gar b

euys

A p

ergu

nta

pelo

des

tino,

pel

o de

satin

o, d

a ci

viliz

ação

eur

opéi

a

torn

ou-s

e um

a co

nsta

nte,

um

a ve

emen

te

obse

ssão

, de

sde

1945

. A

cont

abilid

ade

inic

ial d

o pr

ejuí

zo d

o m

ais

grav

e co

nflit

o at

é ho

je r

egis

trado

cons

trang

eu

os

estu

dios

os

a re

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rem

su

as

anot

açõe

s,

antig

as

ou

rece

ntes

, so

bre

os c

ontu

maz

es e

mba

tes

euro

peus

: po

r qu

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te d

estin

o

tant

o te

mpo

fal

hado

, po

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ta p

orta

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rta a

tan

tas

tragé

dias

?,

perg

unta

Luc

ien

Febv

re.1 A

tar

efa

aind

a nã

o en

cont

rou

term

o: a

ções

e

espe

cula

ções

sob

re o

ass

unto

reg

istra

m u

m c

resc

imen

to g

eom

étric

o.

Ain

da

hoje

, pr

atic

amen

te

toda

s as

ár

eas

do

faze

r hu

man

o ex

ibem

reaç

ões,

hon

esta

s ou

cín

icas

, con

scie

ntes

ou

não.

E

m u

m d

eter

min

ado

trech

o de

sua

s em

ocio

nada

s co

nfer

ênci

as

prof

erid

as

entre

os

an

os

de

1944

-53,

Febv

re

tent

ou

escl

arec

er

a

grav

idad

e da

que

stão

: ...

o p

robl

ema

da E

urop

a ul

trapa

ssa

a E

urop

a, o

prob

lem

a da

Eur

opa

situ

a-se

à e

scal

a pl

anet

ária

; o p

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ema

da E

urop

a é

o pr

oble

ma

do m

undo

.2Ta

l af

irmaç

ão a

lerta

va p

ara

a ex

traor

diná

ria

dim

ensã

o do

tem

a, p

ara

a ur

gênc

ia d

o m

omen

to,

para

o d

estin

o da

civi

lizaç

ão, e

nfim

. E, d

e ce

rto m

odo,

est

a é

uma

das

perg

unta

s in

cluí

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pela

tese

: que

m e

stav

a, p

oder

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star

, alh

eio

a um

pro

blem

a de

alc

ance

plan

etár

io?

As

pala

vras

de

Luci

en F

ebvr

e ai

nda

são

nece

ssár

ias:

... P

orta

nto,

ant

es d

o m

ais,

duas

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efas

, do

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ados

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dam

enta

is:

[a

prim

eira

é]

a

polít

ica

(que

ar

rast

a a

econ

omia

e

é ar

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ada

pela

ec

onom

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[a s

egun

da é

] a c

ultu

ra e

a c

ivili

zaçã

o; d

uas

tare

fas,

e a

inda

é

mui

to, é

mes

mo

esta

dua

lidad

e qu

e fa

z a

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idad

e do

pro

blem

a.

... V

amos

diz

endo

, nós

, hom

ens

de b

oa v

onta

de e

bel

as in

tenç

ões,

vam

os

deso

lado

s co

m t

udo

o qu

e se

tem

pas

sado

nes

tes

anos

, sa

ngra

ndo

de

toda

s as

fer

idas

do

mun

do,

esgo

tado

s, e

svaz

iado

s po

r es

tas

sang

rias,

va

mos

diz

endo

: “S

ejam

os b

ons

euro

peus

!” S

im,

tem

os t

oda

a ra

zão.

S

ejam

os b

ons

euro

peus

. M

as v

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os a

s co

isas

a n

u. Q

uem

apr

ovei

ta

com

iss

o? P

rimei

ram

ente

, nó

s, p

esso

alm

ente

, in

divi

dual

men

te.

Nós

que

as

sim

no

s al

arga

mos

, qu

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quiri

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m

aior

am

plitu

de,

uma

mai

or

aber

tura

de

ângu

lo e

m r

elaç

ão a

o to

do,

gran

des

aleg

rias

de e

spíri

to.

E ta

lvez

a c

omun

idad

e re

ceba

daí

qua

lque

r co

isa,

por

nos

so i

nter

méd

io.

Mas

...se

r um

bom

eur

opeu

não

é u

m fi

m. É

um

mei

o. S

er u

m b

om e

urop

eu

1 FE

BV

RE

, Luc

ien.

A E

urop

a. G

ênes

e de

um

a ci

viliz

ação

. p. 9

1.

2 Id

em, p

. 322

.

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Page 119: Apostila Joseph Beuys

137

quer

diz

er (s

e nã

o qu

er d

izer

nad

a) s

er u

m b

om p

orta

dor d

e um

idea

l. S

im,

mas

est

á lá

, o n

osso

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l não

é n

eces

saria

men

te o

dos

out

ros.

O n

osso

id

eal d

e eu

rope

us n

ão é

de

fato

o id

eal d

os n

ão e

urop

eus.

(...)

3

Mai

s ta

rde,

dis

tant

e, u

m o

utro

impo

rtant

e pe

nsad

or –

Eric

Hob

sbau

m

– m

enos

em

ocio

nado

, res

umiu

a q

uest

ão: S

into

mat

icam

ente

, o s

écul

o X

X

cara

cter

izou

-se

por

um d

eslo

cam

ento

do

pres

tígio

da

visã

o ra

cion

al e

cien

tífic

a pa

ra a

s co

nsid

eraç

ões

intu

itiva

s, s

obre

os

desc

amin

hos

do

mun

do, e

xplic

itand

o o

perm

anen

te e

sfor

ço s

empr

e re

nova

do d

e en

tend

ê-

lo.4

6.1

Art

e em

açã

o E

nqua

nto

no o

utro

lado

do

Atlâ

ntic

o Ja

ckso

n P

ollo

ck t

raba

lhav

a na

dire

ção

de u

ma

arte

ess

enci

alm

ente

am

eric

ana,

não

mui

to a

pós

o fim

da

Seg

unda

G

rand

e G

uerr

a su

rge

num

a E

urop

a ai

nda

arra

sada

o

“fenô

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o”

Jose

ph

Beu

ys

incl

uind

o-se

en

fátic

o e

fisic

amen

te

na

oper

ação

artí

stic

a.

Em

196

2, B

euys

con

hece

o c

orea

no N

am J

une

Pai

k e,

em

feve

reiro

do a

no s

egui

nte,

já a

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enta

va n

a A

lem

anha

, jun

to a

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upo

Flux

us –

no

Fest

um,

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orum

, Fl

uxus

–,

o

seu

prim

eiro

en

viro

nmen

t:S

ibiri

sche

Sim

phon

ie, 1

ª S

atz

(Sin

foni

a si

beria

na –

mov

imen

to).

O p

rópr

io a

rtist

a5

estim

ava

que

tal

acon

teci

men

to,

cons

ider

ada

a su

a pr

imei

ra

Akt

ion

impo

rtant

e, já

ret

inha

a e

ssên

cia

de s

uas

futu

ras

ativ

idad

es,

ao m

esm

o

tem

po e

m q

ue a

lcan

çava

a c

ompr

eens

ão a

mpl

iada

do

que

o Fl

uxus

pode

ria s

er.

O a

djet

ivo

“sib

eria

no”

intro

duzi

u al

guns

dos

par

âmet

ros

fund

amen

tais

na

arte

de

Beu

ys: e

spaç

o, te

mpe

ratu

ra e

que

stõe

s po

lític

as.

Já s

e en

cont

rava

m t

ambé

m p

rese

ntes

trê

s do

s el

emen

tos

para

sem

pre

impo

rtant

es e

m s

ua o

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a lo

usa,

a le

bre

mor

ta e

o p

iano

.

In

icia

ndo

com

a m

úsic

a do

fran

cês

Erik

Sat

ie –

Son

nerie

de

la R

ose

+ C

roix

– p

ara

inte

rliga

r es

pirit

ualm

ente

tod

os o

s pr

esen

tes,

a e

xibi

ção

pros

segu

e co

m o

arti

sta

este

nden

do u

m l

inha

ent

re a

lgum

as p

lant

as

3 Id

em. p

. 323

. 4

HO

BS

BA

WM

, Eric

. A e

ra d

os e

xtre

mos

. O b

reve

séc

ulo

XX

. p. 1

2.

5 N

este

cap

ítulo

, os

ter

mos

“ar

tista

” e

“arte

” sã

o es

peci

alm

ente

impr

esso

s em

intá

lico

para

obt

er u

ma

mel

hor a

rticu

laçã

o no

text

o um

a ve

z qu

e Jo

seph

Beu

ys re

cusa

par

a si

o

títul

o de

“arti

sta”

“ e a

def

iniç

ão tr

adic

iona

l de”

arte

” par

a su

as re

aliz

açõe

s.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA13

8

disp

osta

s so

bre

a ta

mpa

do

inst

rum

ento

e a

leb

re m

orta

pen

dura

da d

e

pont

a-ca

beça

na

lous

a –

“ene

rgia

”. E

m s

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da, i

nstig

ando

a a

udiê

ncia

a

repe

tir u

ma

série

de

sent

ença

s es

crita

s na

lous

a, a

o la

do d

o ca

dáve

r do

anim

al –

“in

tuiç

ões

desa

pare

cida

s“ –

, o

artis

ta a

rranc

a-lh

e o

cora

ção.

Com

o em

tod

as a

s oc

asiõ

es,

Jose

ph B

euys

est

ava

aben

çoad

o po

r se

u

chap

éu d

e fe

ltro

– co

nfec

cion

ado

em l

ã de

cor

deiro

, be

m c

laro

–,

e

asse

ssor

ado

por s

eu c

asac

o de

pes

cado

r.

O

epi

sódi

o to

rna-

se u

m p

ouco

mai

s cl

aro

se s

oube

rmos

que

Eur

asia

(out

ro m

ovim

ento

da

Sin

foni

a si

beria

na) é

a p

átria

míti

ca d

o ar

tista

: “zo

na

de t

râns

ito d

e gr

ande

s m

igra

ções

hum

anas

e a

nim

ais”

– e

ass

inal

a a

reun

ião

de d

ois

bloc

os o

post

os n

o co

raçã

o da

Ale

man

ha.

E a

inda

, os

anim

ais

são

sere

s qu

e po

dem

“ir

al

ém”,

que

man

têm

um

a es

treita

“con

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com

o a

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” (li

tera

l e f

igur

ativ

amen

te),

trans

itam

da

Eur

opa

à

Ási

a, i

gnor

ando

con

venç

ões,

inc

onsc

ient

es d

as d

istâ

ncia

s. P

or f

im,

a

lous

a si

gnifi

ca d

isci

plin

a, e

as

plan

tas,

a n

atur

eza,

a le

bre

mor

ta, o

fim

de

prát

icas

vita

is.

A

ssim

, ver

emos

que

o p

eso

exis

tenc

ial e

xigi

do p

elos

com

prom

isso

s

artís

ticos

de

Beu

ys n

ão s

e af

inav

a in

teira

men

te c

om o

tip

o de

arte

requ

erid

o po

r M

aciu

nas.

P

orém

al

gum

as

prem

issa

s lib

ertá

rias

o

man

tinha

m u

nido

ao

grup

o. S

ua p

oétic

a m

ove-

se d

esde

os

fragm

ento

s do

rom

antis

mo

e do

ex

pres

sion

ism

o,

pass

a pe

lo

cons

trutiv

ism

o,

redi

men

sion

a o

expe

rimen

talis

mo

e ul

trapa

ssa

a ar

te c

once

itual

, já

que

o

seu

faze

r “a

rtíst

ico”

não

vis

ava

tão

som

ente

evi

denc

iar

conc

eito

s, m

as,

acim

a de

tudo

, fus

tigá-

los.

Ocu

padí

ssim

o du

rant

e a

Seg

unda

Gra

nde

Gue

rra,

Jos

eph

Beu

ys

anot

ou e

m s

eu C

urric

ulum

vita

e,C

urric

ulum

ope

ris 1

964,

o c

lima

artís

tico

imed

iato

à c

atás

trofe

: 19

45,

Cle

ves,

exp

osiç

ão d

e fri

o. N

ão p

erde

ra

tem

po,

no

ano

segu

inte

, ou

tra

anot

ação

in

dica

va

o hi

umor

qu

e

gove

rnar

ia s

ua e

xist

ênci

a: 1

946,

Cle

ves,

exp

osiç

ão q

uent

e.6 D

esta

dat

a

em d

iant

e se

rá e

sta

a ar

te7 m

ais

ativ

a em

mei

o ao

s es

com

bros

do

mom

ento

e

mes

mo

dura

nte

os

próx

imos

an

os:

a m

atér

ia-p

rima

foi

6 B

EU

YS

, Jos

eph.

Cen

tre G

eorg

es P

ompi

dou,

pp.

249

-250

. 7

Tam

bém

o te

rmo

“arte

” ser

á se

mpr

e aq

ui c

itado

com

as

mes

mas

ress

alva

s fe

itas

para

a

pala

vra

“arti

sta”

, já

expl

icita

das

na n

ota

ante

rior.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 120: Apostila Joseph Beuys

139

garim

pada

em

sua

bio

graf

ia.

Sua

s pe

ças

tam

bém

ass

imila

ram

div

erso

s

elem

ento

s do

cot

idia

no e

pre

para

ram

um

a di

spos

ição

dife

renc

iada

de

trata

r a

arte

e a

vid

a vi

a ar

te-v

ida.

Beu

ys v

ai d

iscu

tir e

m p

úblic

o o

cons

trang

imen

to d

e ca

da in

diví

duo,

a c

ondi

ção

de c

arra

sco

e ví

tima

de

todo

s: s

ua b

iogr

afia

é e

spec

ialm

ente

col

ada

à hi

stór

ia a

lem

ã e,

por

que

não

dize

r, à

euro

péia

.

Aux

iliado

pel

os m

ater

iais

mai

s ba

nais

, cu

tuca

ndo

os v

alor

es m

ais

íntim

os,

o ar

tista

ost

enta

va u

m c

ompo

rtam

ento

agr

essi

vo,

até.

Par

a os

inca

utos

, ta

l m

odo

de a

gir

não

pass

ava

de u

m “

vale

-tudo

”, um

a fa

rsa

dest

inad

a ao

en

trete

nim

ento

do

s bo

bos,

en

dere

çada

ao

s pi

egas

rom

antic

ista

s qu

e pe

sava

m n

os o

mbr

os d

aque

les

que

se e

sfor

çava

m p

ara

reco

nstru

ir a

naçã

o. J

osep

h B

euys

foi

con

side

rado

, é

aind

a ho

je,

“mai

s

um id

iota

ava

riado

pel

a gu

erra

exp

osto

ao

delír

io p

úblic

o, a

fianç

ado

por

um id

êntic

o la

pso

esqu

izói

de d

e al

guns

frac

os s

obre

vive

ntes

”.

Ate

nta

a qu

alqu

er p

ostu

ra ju

dici

osa

que

prej

udic

asse

a re

cons

truçã

o

de s

ua i

mag

em e

, qu

em s

abe,

pre

nunc

iand

o o

radi

cal

“pol

itica

men

te-

corr

eto”

que

viti

mar

ia u

m p

ouco

mai

s ta

rde

os E

UA

, a

Ale

man

ha d

este

mom

ento

se

mos

trou

“con

desc

ende

nte”

ao

fenô

men

o B

euys

, ao

“ca

lo

cultu

ral”

prod

uzid

o pe

la g

uerr

a, a

sua

pró

pria

esq

uiso

freni

a? O

ra, q

uem

se

arris

caria

a c

onde

nar

uma

poss

ível

van

guar

da a

pós

o R

eich

de

Hitl

er

bani

r arti

stas

e q

ueim

ar s

uas

supo

stas

“obr

as d

egen

erad

as”?

Milit

ante

por

exc

elên

cia,

Beu

ys f

oi u

ma

emin

ênci

a ex

puls

a (c

om

suce

sso

poét

ico)

, em

197

2, d

a S

taat

liche

Kun

stak

adem

ie v

on D

üsse

ldor

f

– se

gund

o o

próp

rio, u

ma

rede

em

pres

aria

l de

cultu

ra –

, on

de o

cupa

va o

carg

o de

pro

fess

or d

e “e

scul

tura

mon

umen

tal”

desd

e 19

61.

Cul

pada

s

fora

m a

s liç

ões

que

reun

iam

as

suas

nad

a or

todo

xas

conv

icçõ

es d

idát

ico-

revo

luci

onár

ias

acer

ca

das

afin

idad

es

entre

cr

iativ

idad

e e

um

(re)

apre

ndiz

ado

soci

opol

ítico

. E p

orqu

e o

sabe

r de

veria

ser

dem

ocrá

tico,

o nú

mer

o de

alu

nos

teria

de

ser

irres

trito

– D

emok

ratie

ist

lus

tig (

A

dem

ocra

cia

é en

graç

ada)

int

itula

o r

egis

tro i

cono

gráf

ico

dest

a A

ktio

n

naci

onal

: a fo

togr

afia

de

seu

desp

ejo

públ

ico

em m

eio

à po

licia

is.

Um

ano

dep

ois,

o a

rtist

a in

stitu

i a

Inte

rnat

iona

leFr

eiun

iver

sitä

t

(Uni

vers

idad

e In

tern

acio

nal L

ivre

). E

m 1

967,

já h

avia

fund

ado

o B

üro

für

dire

kte

Dem

okra

tie (O

rgan

izaç

ão p

ara

a D

emoc

raci

a D

ireta

), ad

voga

ndo

a

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA14

0

tese

de

que

a de

moc

raci

a re

pres

enta

tiva

não

dem

ocra

tizav

a, d

efen

dend

o

a ne

cess

idad

e de

se

adot

ar u

m s

iste

ma

no q

ual o

s ci

dadã

os p

udes

sem

cond

uzir

a so

cied

ade

sem

de

lega

r a

sua

sobe

rani

a so

bre

qual

quer

assu

nto,

por

mei

o de

con

stan

tes

vota

ções

.

6.2

O lu

gar h

istó

rico

de b

euys

A

per

gunt

a pe

los

valo

res

cont

empo

râne

os é

orig

inár

ia:

o ho

mem

mod

erno

for

a al

ijado

dos

con

ceito

s de

ver

dade

, un

idad

e e

fim8

que

sust

enta

vam

o m

undo

. A

con

tradi

ção

a qu

e se

lanç

ado

– su

porta

r o

que

não

se p

ode

nega

r –

é a

tens

ão q

ue a

mbi

enta

as

vang

uard

as d

o

iníc

io d

o sé

culo

XX

. Am

plia

da p

elo

mal

-est

ar d

a P

rimei

ra G

rand

e G

uerra

,

a ag

onia

inte

nsifi

ca-s

e co

m a

Seg

unda

, qua

ndo

o ho

mem

per

de d

e to

do a

conv

icçã

o de

ser

o d

ono

abso

luto

de

seu

dest

ino.

Aos

arti

stas

res

tou

esco

lher

ent

re u

ma

reso

luta

par

ticip

ação

pol

ítica

ou

a ev

asão

par

a a

Am

éric

a. C

omo

bom

esp

écim

e da

raç

a, J

osep

h B

euys

dec

ide-

se p

ela

prim

eira

opç

ão.

Est

ear

tista

ale

mão

vai

ref

letir

sob

re a

rup

tura

do

hom

em c

onsi

go

mes

mo,

co

m

a su

a di

gnid

ade:

su

a ob

ra

é o

mod

o de

ev

iden

ciar

este

ticam

ente

o e

nfre

ntam

ento

des

sa s

ituaç

ão d

e cr

ise,

aus

ênci

a ou

aind

a tra

nspo

siçã

o de

val

ores

his

tóric

os. B

euys

não

com

pact

ua e

, men

os

aind

a,

supo

rta

com

in

dife

renç

a ta

l co

ndiç

ão.

Pel

o co

ntrá

rio,

a

nece

ssid

ade

de u

ma

nova

orie

ntaç

ão,

mes

mo

polít

ica,

par

a a

arte

. S

ua

obra

, ent

ão, c

onfu

nde-

se c

om o

hom

em/a

rtist

a, u

ma

vez

que

é ne

le, c

omo

hom

em c

onte

mpo

râne

o, q

ue n

asce

a q

uest

ão q

ue v

ai o

bjet

ivar

-se

em

Akt

ione

n,em

envi

ronm

ents

que

efe

tivam

sua

pró

pria

viv

ênci

a es

tétic

a.

Com

o um

vid

ente

, Beu

ys p

arec

e al

erta

r-nos

que

qua

ndo

a vi

da s

e to

rna

de to

do c

onsc

ient

e, a

arte

desa

pare

ce.

Tal

trans

ubst

anci

ação

ar

te-a

rtist

a re

sulta

de

um

pl

eno

entre

laça

men

to c

om o

mun

do,

é pr

odut

o de

um

a co

mpl

eta

ades

ão à

s

circ

unst

ânci

as

de

sua

vida

. B

euys

tra

ta

as

cont

radi

ções

e

as

ambi

güid

ades

da

atua

lidad

e, p

or a

ssim

diz

er, c

om a

s m

esm

as a

rmas

do

real

, ger

ando

con

trové

rsia

s de

ord

em m

oral

qua

nto

às s

uas

cond

utas

. O

8 N

IETZ

SC

HE,

Frie

dric

h. “S

obre

o n

iilis

mo”

. In

Os

Pen

sado

res.

p. 3

81.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 121: Apostila Joseph Beuys

141

que

é um

pa

rado

xo,

cons

ider

ando

-se

que

o ar

tista

/hom

em

prim

a

just

amen

te p

ela

hone

sta

com

patib

ilidad

e de

sua

s po

stur

as s

ocia

is e

real

izaç

ões

artís

ticas

, tor

nand

o im

poss

ível

dis

tingu

ir aç

ão e

pai

xão.

A r

eivi

ndic

ação

de

uma

nova

fun

ção

para

a a

rte p

ronu

ncia

dapo

r

Beu

ys te

m s

eu p

rece

dent

e em

Mar

cel D

ucha

mp,

par

a qu

em a

rte é

ant

es

uma

refle

xão,

um

pro

cedi

men

to c

once

itual

, qu

ase

uma

étic

a.9 P

aulo

Ven

ânci

o Fi

lho

reco

nhec

e no

rea

dy-m

ade

dofra

ncês

o l

imite

da

arte

,

acre

scen

tand

o ai

nda

que,

alé

m d

o re

ady-

mad

e, o

u tu

do s

e tra

nsfo

rma

em

arte

ou

a ar

te d

esap

arec

e.10

Ora

, o

path

os e

stét

ico

beuy

sian

o se

gue

just

amen

te

a di

reçã

o da

un

ião

de

toda

s as

ar

tes

hum

anas

. O

expr

essi

onis

mo

gera

ra,

de c

erto

mod

o, u

ma

cont

inui

dade

aos

ide

ais

wag

neria

nos

de a

rte t

otal

, le

vand

o-se

em

con

ta q

ue r

euni

ra a

s m

ais

varia

das

real

izaç

ões

artís

ticas

em

tor

no d

e m

otiv

açõe

s si

ngul

ares

e,

pode

-se

dize

r q

ue B

euys

vai

ret

omá-

lo n

o m

omen

to e

m q

ue s

uas

oper

açõe

s es

tétic

as

tom

am

um

inte

nso

cará

ter

mul

timíd

ia,

dila

tand

o

extre

mam

ente

seu

alc

ance

.

Jo

seph

B

euys

o pr

egav

a a

auto

nom

ia

da

arte

, m

as

insi

stia

just

amen

te n

a su

a nã

o-di

fere

nça

com

o m

undo

, de

mon

stra

ndo

uma

inte

ligên

cia

atua

lizad

a, c

onhe

cia

a su

a m

ater

ialid

ade.

Tam

bém

recu

sara

a

defin

ição

de

ar

te

no

seu

stric

to

sens

u,

post

o qu

e is

to

sign

ifica

ria

prat

icam

ente

um

ret

orno

dec

aden

te a

o ac

adem

icis

mo.

O q

ue o

arti

sta

dese

java

er

a a

com

pree

nsão

de

um

C

once

ito

ampl

iado

de

ar

te,

dist

anci

ado

dos

crité

rios

e pr

otoc

olos

au

to-r

efer

ente

s an

terio

rmen

te

exig

idos

.

mui

to

que

a ar

te

fazi

a pa

rte

dos

obje

tos

auto

-ref

lexi

vos,

auto

télic

os –

um

a si

mpl

es re

uniã

o de

sig

nos

–, s

igni

fican

tes

e si

gnifi

cado

s

que,

não

se

impo

rtand

o co

m a

s re

laçõ

es h

omem

-mun

do, e

ra d

ecod

ifica

da

apen

as p

elo

próp

rio m

étie

r. E

só c

onhe

ceria

out

ra f

unçã

o co

m B

euys

e

mes

mo

com

o n

orte

-am

eric

ano

And

y W

arho

l, ap

ós o

seg

undo

pós

-gue

rra,

quan

do c

erta

s di

spos

içõe

s am

adur

ecer

am. O

s im

puls

os q

ue e

stav

am p

or

detrá

s da

abs

traçã

o e

da a

rt po

ur l

’art

não

eram

ape

nas

de c

arát

er

esté

tico

e a

arte

teve

por

vez

es d

e as

sum

ir es

traté

gias

de

sobr

eviv

ênci

a.

9 V

EN

ÂN

CIO

FIL

HO

, P

aulo

. M

arce

l Duc

ham

p. p

. 9.

10 Id

em. p

. 72.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA14

2

Mes

mo

a pe

rcep

ção

da r

ealid

ade

há m

uito

dei

xara

de

ser

apen

as u

m

sim

ples

cap

tar p

ara

se to

rnar

um

a fu

nção

ativ

a.

Beu

ys,

um l

egíti

mo

herd

eiro

do

rom

antis

mo

e do

exp

ress

ioni

smo

alem

ão,

inst

alou

um

tip

o de

at

ivid

ade

artís

tica

sinc

rôni

ca

com

a

(des

)ord

em v

igen

te,

que

perg

unto

u pe

lo (

não)

sign

ifica

do d

a ex

istê

ncia

cont

empo

râne

a e

por s

uas

seqü

elas

. Rec

usou

o c

ulto

da

arte

com

o of

ício

sagr

ado

ou d

estin

o in

spira

do d

o gê

nio,

ou

aind

a co

mo

a at

ivid

ade

de p

ura

e si

mpl

esm

ente

agr

egaç

ão d

e m

ater

iais

. R

enun

cian

do a

inda

à c

ateg

oria

de in

tele

ctua

l, su

a ob

ra e

fetiv

a tã

o so

men

te s

ua e

xper

iênc

ia d

eho

mem

euro

peu

por

cond

ição

e c

onse

qüên

cia.

Dor

avan

te, a

obr

a de

arte

não

se

defin

irá p

or u

m e

stilo

mas

, ac

ima

de t

udo,

por

um

mod

o de

enf

rent

ar a

real

idad

e, i

sto

é ,

por

um m

odo

de s

er –

o a

rtist

a de

ve o

cupa

r um

a

posi

ção

cent

ral n

a so

cied

ade:

dev

e qu

estio

ná-la

.

Evo

cand

o m

itos

apen

as a

títu

lo d

e an

ális

e hi

stór

ica,

Jos

eph

Beu

ys

assu

me

o pa

pel d

e va

te t

raze

ndo

tens

ões

prim

evas

par

a o

pres

ente

. O

estra

nham

ento

vio

lent

o de

ste

emba

te n

ão a

men

iza

as e

xasp

eraç

ões,

mas

alm

eja

com

over

par

a qu

e ta

is s

ofrim

ento

s nã

o se

cal

em.

A f

amilia

ridad

e

dos

sign

os

mito

lógi

cos

não

cons

ola,

pe

de,

isto

si

m,

reaç

ão

ou

trans

cend

ênci

a pa

ra a

ave

ntur

a ex

iste

ncia

l co

ntem

porâ

nea,

um

res

gate

espi

ritua

l par

a a

mis

erab

ilidad

e hu

man

a.

O

fato

pl

ástic

o as

sim

en

gend

rado

va

i vi

brar

su

a in

stab

ilida

de,

inqu

ieta

ção,

e s

uger

e gu

arda

r pod

eres

ou

atrib

utos

par

aest

étic

os a

ser

em

desv

enda

dos,

o no

s po

upan

do

de

uma

gran

de

refle

xão.

Pro

blem

atiz

ando

as

mai

s no

vas

ques

tões

ou

mes

mo

as a

ntig

as, l

á es

tão

esta

mpa

das

perm

anen

tes

amea

ças

de c

atás

trofe

s, t

ragé

dias

iman

ente

s,

suge

stõe

s po

r ve

zes

apoc

alíp

ticas

qu

e nã

o pe

rmite

m

cont

empl

ação

desi

nter

essa

da:

pede

m r

econ

cilia

ção

e en

tend

imen

to.

Lá e

ncon

tram

os

tam

bém

in

úmer

as

perg

unta

s so

bre

uma

série

de

ac

onte

cim

ento

s

ocor

ridos

na

pátri

a de

Sch

ellin

g, B

eeth

oven

e G

oeth

e.

A ar

te d

e B

euys

dev

ese

r con

stra

nged

ora

e ch

ocan

te p

ara

indu

zir o

s

obse

rvad

ores

a s

aíre

m d

e um

a co

ntum

az a

titud

e de

tot

al p

assi

vida

de

rece

ptiv

a,

trans

figur

ando

-se

em

um

autê

ntic

o co

ro

trági

co.

Sua

s

real

izaç

ões

apre

sent

am m

omen

tos

sobr

e os

qua

is s

e po

de p

ress

upor

uma

onip

otên

cia

de q

uem

atu

a co

m a

cer

teza

de

pode

r co

nstru

ir um

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 122: Apostila Joseph Beuys

143

mun

do m

elho

r, on

de a

arte

e o

hom

em-a

rtist

a to

rnar

-se-

iam

par

te d

e um

proj

eto

de c

iviliz

ação

. A

trip

la r

eivi

ndic

ação

fun

ção-

críti

ca-r

econ

stru

ção

para

a a

rte é

trad

icio

nalm

ente

um

ped

ido

da a

ngus

tiada

Ale

man

ha d

esde

a su

a un

ifica

ção

e B

euys

é a

lem

ão p

ar e

xcel

lenc

e. C

om e

le v

emos

o

reto

rno

do a

nsei

o ro

mân

tico

de t

otal

idad

e e

a ar

te v

olta

ndo

a re

spon

der

pela

cul

tura

.

Jose

ph B

euys

vai

, ass

im, r

epos

icio

nar a

env

ergo

nhad

a A

lem

anha

do

segu

ndo

pós-

guer

ra, n

ovam

ente

em

evi

dênc

ia n

o ci

rcui

to in

tern

acio

nal d

e

arte

e cu

ltura

, po

sto

ocup

ado

hege

mon

icam

ente

, de

sde

a as

cens

ão d

o

nazi

smo,

pel

os E

UA

. Daq

ui p

or d

iant

e a

arte

não

pod

erá

ser o

que

foi a

entã

o e

mui

to m

enos

o h

omem

eur

opeu

. A a

tivid

ade

artís

tica

deve

rá s

er

orde

nada

, con

stru

ída

de ta

l for

ma

que

seja

resp

osta

imed

iata

à d

ispe

rsão

– ob

jeto

s an

sios

os, p

robl

emát

icos

por

exc

elên

cia.

Tais

que

stõe

s ul

trapa

ssar

am o

s lim

ites

mor

ais

bási

cos,

tais

lice

nças

extra

poét

icas

enc

osta

ram

-se

aos

fund

amen

tos

étic

os n

a m

edid

a em

que

perg

unta

m p

elo

que

será

da

arte

em

um

a so

cied

ade

que

perm

itiu

o

geno

cídi

o. O

utro

a se

res

olve

r se

rá o

do

fraca

sso

refo

rmis

ta e

o d

os

idea

is

soci

al-d

emoc

rata

s pr

eten

dido

s in

icia

lmen

te

pela

B

auha

us,

que

prev

iam

um

a so

cied

ade

sem

cla

sses

, não

obs

tant

e pr

ivile

giar

am o

arti

sta

incu

mbi

do d

a ta

refa

de

proj

etá-

la.

6.3

A c

rise

euro

péia

nos

ref

erim

os à

s se

mel

hanç

as e

ntre

o p

ensa

men

to d

e E

dmun

d

Hus

serl

e o

de J

osep

h B

euys

– a

mbo

s pa

rece

m a

lerta

r co

nsta

ntem

ente

sobr

e a

conf

usão

que

afe

ta a

s re

laçõ

es d

e m

étod

o e

de c

onte

údo

entre

as

ciên

cias

da

natu

reza

e a

s do

esp

írito

que

se

torn

am i

nsup

ortá

veis

. O

fraca

sso

das

tent

ativ

as d

e no

s ap

roxi

mar

mos

do

espí

rito

acirr

a o

duro

emba

te

com

o

real

qu

e te

mos

di

ante

do

s ol

hos,

de

sgov

erna

do

e

desp

rovi

do d

e se

ntid

o: u

m “

irrac

iona

lism

o” c

omo

culto

da

liber

dade

do

espí

rito.

A p

erda

da

espi

ritua

lidad

e, i

sto

é, d

a au

toco

mpr

eens

ão d

o

espí

rito,

sig

nific

a a

perd

a da

tot

alid

ade

e um

a co

nseq

üent

e am

eaça

de

barb

árie

obj

etiv

ista

.

Con

ferim

os i

sto

com

a o

bra

deno

min

ada

Cap

ri-B

atte

rie (

1985

), na

qual

Beu

ys c

oloc

a la

do a

lado

um

a la

ranj

a e

uma

lâm

pada

, apo

ntan

do a

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA14

4

“opo

siçã

o”

“nat

urez

a”

x “lu

zes”

vi

a se

mel

hanç

a fo

rmal

. C

ritic

a,

sim

ulta

neam

ente

, o

“esc

lare

cim

ento

” qu

e te

ria d

ista

ncia

do o

hom

em d

a

sua

próp

ria n

atur

eza

e af

irma

a “lu

min

osid

ade”

da

fruta

. A

peç

a tra

z a

susp

eita

do

artis

ta d

e qu

e a

alta

inci

dênc

ia d

o m

al-e

star

que

car

acte

riza

o

noss

o te

mpo

com

o a

Era

da

Ans

ieda

de s

eja

prod

uto

de u

m p

ossí

vel

fraca

sso

da m

itolo

gia

e do

ritu

al e

m f

unci

onar

efe

tivam

ente

em

nos

sa

civi

lizaç

ão.11

O e

xper

imen

talis

mo

de J

osep

h B

euys

vai

dei

xar

evid

ente

a s

ua

rupt

ura

com

alg

uns

conc

eito

s do

pas

sado

– s

ua o

bra

é “p

roje

to”,

e

“futu

ro”,

o al

vo

do

empr

eend

imen

to.

A

expe

rimen

taçã

o vi

sa

sem

pre

verif

icar

a e

xist

ênci

a –

o “s

er”

da a

rte. À

man

eira

de

Hus

serl,

Beu

ys n

ão

parte

da

próp

ria id

éia

ou c

once

ito d

e ar

te p

ara

verif

icá-

la, a

ssim

com

o o

pens

ador

não

par

te d

a no

ção

de n

atur

eza

ou d

e um

det

erm

inad

o co

ncei

to

de ló

gica

par

a fa

zer

sua

filos

ofia

cie

ntífi

ca.

Beu

ys p

rocu

ra n

ão s

omen

te

“alte

rar v

elho

s lim

ites”

, mas

tam

bém

apo

nta

outro

s.

E

m

Dife

sa

della

na

tura

, en

viro

nmen

t de

15

/5/1

984,

B

euys

va

i

enca

rnar

o p

asto

r, aq

uele

que

gui

ava

a tri

bo d

e nô

mad

es,

sem

pre

em

mov

imen

to (

Bew

egun

g),

aqui

sub

stitu

ída

por

hom

ens

urba

nos,

eur

opeu

s

ou n

ão,

incl

uind

o vá

rios

artis

tas,

seu

s co

ntem

porâ

neos

, ou

alu

nos

com

o

Ans

elm

Kie

fer,

Jörg

Imm

endo

rf, P

aler

mo,

A. R

. Pen

ck, G

eorg

Bas

elitz

ou

Nam

Jun

e P

aik,

ent

re o

utro

s, a

ssim

com

o es

tuda

ntes

e m

ilita

ntes

.

A a

tuaç

ão d

e B

euys

lem

bra

a de

um

xam

ã, o

gua

rdiã

o da

s tra

diçõ

es

de u

m p

ovo,

um

a es

péci

e de

sac

erdo

te n

ão e

ntro

niza

do o

ficia

lmen

te e

dota

do d

o po

der

de c

omun

icaç

ão e

ntre

as

forç

as s

uper

iore

s e

infe

riore

s.

O

xam

ã er

a o

inte

lect

ual

que

tinha

o

pode

r de

pr

ever

si

tuaç

ões

onto

lógi

cas.

As

asso

ciaç

ões

que

o co

nsid

erav

am g

uia

espi

ritua

l nã

o

nutri

am a

idé

ia d

e ve

rdad

e ab

solu

ta,

não

eram

mon

oteí

stas

, e

men

os

aind

a co

nceb

iam

um

Est

ado

ocid

enta

l.

O re

gist

ro fo

togr

áfic

o da

Akt

ion

Kuk

ei, A

kope

e –

Nei

n! ,

Bra

unkr

euz,

Fette

cken

, M

odel

lfette

cken

(1

964)

po

de

escl

arec

er

o cu

rto-c

ircui

to

prov

ocad

o pe

lo a

rtist

a: lá

est

á a

imag

em d

e um

hom

em d

e ol

har

firm

e –

no “h

oriz

onte

” –, c

om a

mão

dire

ita le

vant

ada

– “g

uian

do” –

e a

esq

uerd

a

11 J

osep

h C

ampb

ell.

As

más

cara

s de

Deu

s. M

itolo

gia

prim

itiva

. p. 8

4.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 123: Apostila Joseph Beuys

145

empu

nhan

do

um

“am

ulet

o”.

O

“vis

ioná

rio”

sang

ra

pelo

na

riz

com

o

resu

ltado

nat

ural

de

um g

rand

e es

forç

o, d

a pr

essã

o ex

igid

a po

r su

a

mis

são.

As

ques

tões

do

artis

ta s

ão, ó

bvio

, mai

s pe

rtine

ntes

à e

stét

ica

do

que

à re

ligiã

o co

mo

tem

os e

m c

onta

– r

ever

ênci

a, t

emor

, ad

oraç

ão e

obed

iênc

ia:

a pe

rson

a, o

est

ado

de “

trans

e” é

, de

fat

o, m

ais

um r

ecur

so

poét

ico

beuy

sian

o, u

m s

into

ma

de q

uem

viv

e a

aven

tura

con

tem

porâ

nea

com

um

a lu

cide

z ag

uda.

Cum

pre

escl

arec

er q

ue o

hap

peni

ng p

ôs e

m c

onvu

lsão

os

pres

ente

s

a ta

l po

nto

que

Beu

ys f

oi a

gred

ido,

fis

icam

ente

inc

lusi

ve,

caus

ando

o

sang

ram

ento

. O e

pisó

dio

foi “

apro

veita

do”

pela

per

form

ance

, cai

ndo

feito

uma

luva

no

final

das

con

tas.

Inco

rpor

ado,

com

o vi

mos

, ao

tipo

dram

átic

o,

tam

bém

com

prov

ou a

efic

iênc

ia d

e su

a lin

guag

em:

o gu

ia e

spiri

tual

, o

artis

ta, o

pro

fess

or, c

urio

sam

ente

, est

ava

entre

est

udan

tes

– en

sina

ndo

a

reag

ir. N

ada

esca

pava

a s

ua a

rte a

mpl

iada

: o

espa

ço d

a ap

rese

ntaç

ão

era

o In

stitu

to d

e Te

cnol

ogia

, si

tuad

o em

Aac

hen

(ou

Aix

-la-C

hape

lle),

cida

de d

e C

arlo

s M

agno

. E

a d

ata

da A

ktio

n, 2

0 de

jul

ho d

e 19

64,

mar

cava

os

vint

e an

os d

o at

enta

do s

ofrid

o po

r A

dolf

Hitl

er n

esse

mes

mo

loca

l. Jose

ph B

euys

ass

ume

entã

o o

enca

rgo

de “

educ

ar o

pov

o“.

Aliá

s,

diga

-se

de p

assa

gem

, um

a at

itude

tipi

cam

ente

ger

mân

ica,

a d

e su

por q

ue

pode

e d

eve

ensi

nar o

mun

do a

viv

er. O

que

nos

reen

via

para

as

liçõe

s de

F. S

chille

r ac

erca

d`A

edu

caçã

oes

tétic

a do

hom

em, q

ue, n

ão p

or a

caso

,

enco

ntra

eco

nas

Akt

ione

n de

Beu

ys:

Todo

hom

em i

ndiv

idua

l, po

de-s

e

dize

r, tra

z em

si,

quan

to à

dis

posi

ção

e de

stin

ação

, um

hom

em id

eal e

puro

, e a

gra

nde

tare

fa d

e su

a ex

istê

ncia

é c

onco

rdar

, em

toda

s as

sua

s

mod

ifica

ções

, com

sua

uni

dade

inal

terá

vel.12

A m

obiliz

ação

dos

esp

ecta

dore

s é

pont

o po

sitiv

o. O

long

o pe

ríodo

de t

oler

ânci

a ch

egar

a ao

fim

. A

s au

torid

ades

pas

sara

m a

int

ervi

r co

m

trucu

lênc

ia. E

, foi

-se

o te

mpo

em

que

a s

ocie

dade

des

viav

a su

a at

ençã

o

dos

epis

ódio

s es

tranh

os,

que

sopr

avam

um

o se

i o

quê

sobr

e

mes

quin

haria

, so

berb

a, in

érci

a, d

entre

out

ras

suge

stõe

s in

côm

odas

. A

quan

do s

eria

pos

síve

l co

nviv

er c

om o

s fla

gran

tes

de J

osep

h B

euys

,

12 S

CH

ILLE

R, F

. A e

duca

ção

esté

tica

do h

omem

. p. 3

2.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA14

6

man

ter

o pa

cto

de s

ilênc

io n

a co

ndiç

ão d

e oc

orrê

ncia

s pr

ópria

s a

um

neur

ótic

o de

gue

rra –

e q

uem

não

era

? D

aí o

suc

esso

do

esfo

rço

e

pers

istê

ncia

de

Jose

ph B

euys

.

E o

utra

vez

cab

e aq

ui re

cord

ar M

arce

l Duc

ham

p em

um

a de

clar

ação

sobr

e a

impo

rtânc

ia d

as r

elaç

ões

que

afet

am o

esp

ecta

dor

e o

artis

ta, o

indi

vídu

o e

a co

letiv

idad

e: o

arti

sta

não

cum

pre

sozi

nho

o at

o de

cria

ção,

porq

ue é

o e

spec

tado

r qu

e es

tabe

lece

o c

onta

to d

a ob

ra c

om o

mun

do

exte

rior

deci

frand

o e

inte

rpre

tand

o su

as q

ualif

icaç

ões

prof

unda

s e,

des

se

mod

o so

ma

sua

próp

ria c

ontri

buiç

ão a

o pr

oces

so c

riado

r.13

B

euys

vai

con

front

ar n

atur

eza,

civ

iliza

ção

mod

erna

& d

inhe

iro n

a su

a

céle

bre

Akt

ion

deno

min

ada

I lik

e A

mer

ica

and

Am

eric

a lik

es

me,

exec

utad

a em

mai

o de

197

4. O

arti

sta

se fe

cha

dura

nte

três

dias

em

um

a

gale

ria d

e N

ova

Yor

k (R

ené

Blo

ck)

junt

o a

um c

oiot

e –

anim

al d

eific

ado

pelo

s ín

dios

nor

te-a

mer

ican

os –

, qu

e co

nsta

ntem

ente

urin

ava

em u

m

exem

plar

se

mpr

e at

ualiz

ado

do

Wal

l S

treet

Jo

urna

l, pu

blic

ação

espe

cial

men

te d

irigi

da a

o pú

blic

o qu

e lid

a co

m o

pera

ções

fina

ncei

ras.

O

artis

ta v

ai p

olem

izar

com

a c

iênc

ia,

a ec

onom

ia e

a t

ecno

logi

a, q

ue,

ao

perfo

rmar

em u

m g

rand

e sa

lto q

ualit

ativ

o de

sde

o fin

al d

o sé

culo

pas

sado

,

som

aram

-se

às o

portu

nida

des

ofer

tada

s pe

las

duas

gra

ndes

gue

rras

e

iden

tific

aram

-se

forte

men

te c

om o

pod

er p

olíti

co.

A p

edag

ogia

cria

tiva

de B

euys

, su

a el

oqüê

ncia

ver

bal

e ar

tístic

a

colo

cam

-se

front

alm

ente

con

tra o

“silê

ncio

” de

Mar

cel D

ucha

mp.

O a

rtist

a

franc

ês é

crit

icad

o du

ram

ente

em

um

a A

ktio

nin

titul

ada

Das

Sch

wei

gen

von

Mar

cel D

ucha

mp

wird

übe

rwer

tet (

O s

ilênc

io d

e M

arce

l Duc

ham

p es

send

o su

pere

stim

ado)

de

11 d

e no

vem

bro

de 1

964,

na

qual

o a

lem

ão

afirm

a qu

e o

artis

ta fr

ancê

s es

tanc

ara

no e

xato

mom

ento

em

que

est

ava

por

dese

nvol

ver

uma

impo

rtant

e e

verd

adei

ra te

oria

da

arte

. Dis

cord

ando

do c

once

ito d

e “a

ntia

rte”

dese

nvol

vido

por

Duc

ham

p, já

que

o c

onsi

dera

apen

as e

stag

naçã

o e

não

exat

amen

te u

m c

once

ito, B

euys

imag

ina-

se, d

e

certa

form

a, c

ontin

uado

r de

sua

obr

a. V

ai c

onco

rdar

, no

enta

nto,

no

que

tang

e à

cont

esta

ção

da a

rte r

econ

heci

da p

ela

soci

edad

e co

mo

dign

a de

valo

r, m

as,

ao c

ontrá

rio d

o fra

ncês

que

não

nut

ria a

mbi

ções

did

átic

as,

13 V

EN

ÂN

CIO

FIL

HO

, Pau

lo. M

arce

l Duc

ham

p. p

. 75.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 124: Apostila Joseph Beuys

147

pret

ende

cor

rigi-l

a. À

bic

icle

ta d

e D

ucha

mp

– La

roue

de

bicy

clet

te (1

913)

–, q

ue n

ão v

ai a

lug

ar a

lgum

, Be

uys

cont

rapõ

e a

sua

arte

-veí

culo

que

pret

ende

a to

dos

alca

nçar

.

As

real

izaç

ões

de B

euys

con

stitu

em f

orm

as v

isív

eis

dest

a m

esm

a

filos

ofia

que

pre

ga a

nec

essi

dade

de

uma

radi

cal m

udan

ça d

e co

ndiç

ão

soci

al f

eita

à b

ase

de t

rans

form

açõe

s es

pirit

uais

. O

ser

hum

ano,

ass

im,

seria

ala

vanc

ado

a um

a et

apa

supe

rior d

e vi

da n

a qu

al o

tale

nto

cria

tivo,

a

auto

dete

rmin

ação

e a

res

taur

ação

do

equi

líbrio

e d

a ha

rmon

ia t

eria

m

papé

is f

unda

men

tais

em

um

a no

va s

ocie

dade

ren

asci

da d

o ca

os.

O

artis

ta p

ede

a co

ncen

traçã

o de

todo

s na

dire

ção

de u

m e

stág

io e

spiri

tual

elev

ado,

tão

agua

rdad

o pa

ra o

terc

eiro

milê

nio,

con

soan

te a

ant

ropo

sofia

de R

udol

f S

tein

er.

Libe

rdad

e e

cria

tivid

ade

são

noçõ

es in

sepa

ráve

is e

m

Jose

ph B

euys

:

Qua

ndo

o ho

mem

per

mite

que

a s

ua v

ida

se c

onve

rta e

m a

lgo

desé

rtico

e

vazi

o, p

or p

erde

r su

a re

laçã

o co

m o

sup

ra-s

ensí

vel,

não

som

ente

des

trói

dent

ro d

e si

mes

mo

algo

cuj

a m

orte

no

final

pod

e le

var

ao d

eses

pero

, ou

entã

o pe

la s

ua p

rópr

ia d

ebili

dade

che

ga a

ser

um

est

orvo

par

a a

evol

ução

de

todo

o s

eu e

ntor

no.14

O

uso

reco

rrent

e de

m

ater

iais

pr

oven

ient

es

das

abel

has

nas

real

izaç

ões

de

Beu

ys

alud

e a

uma

soci

edad

e qu

e tra

nsfo

rma

cole

tivam

ente

, atra

vés

do tr

abal

ho o

rgan

izad

o e

dem

ocrá

tico,

o c

aos

em

orde

m,

mat

eria

is m

aleá

veis

em

esc

ultu

ras

func

iona

is o

u em

esc

ultu

ras

cris

talin

as c

omo

as p

rodu

zida

s po

r aq

uele

s in

seto

s. O

utra

vez

mai

s

assi

nala

-se

a in

fluên

cia

do p

ensa

men

to a

ntro

posó

fico

de S

tein

er.

Est

e,

em a

rtigo

int

itula

do Ü

ber

Bie

nen

(Sob

re a

belh

as,

1923

), de

scre

ve a

exem

plar

idad

e da

soc

ieda

de d

asab

elha

s, c

hega

ndo

mes

mo

a pr

opô-

la

com

o m

odel

o a

ser

empr

egad

o pe

los

hom

ens.

O h

omem

dev

e se

r

glor

ioso

no

seu

pode

r e b

elez

a, ja

mai

s at

uand

o ira

sciv

elm

ente

par

a a

sua

auto

dege

nera

ção.

Em

Wie

man

dem

tote

n H

asen

die

Bild

er e

rklä

rt (C

omo

expl

icar

arte

a le

bres

m

orta

s),

Akt

ion

de

1985

, B

euys

fa

la

da

irrel

evân

cia

da

expl

anaç

ão s

obre

a a

rte(o

s ho

men

s sa

bem

mes

mo

o qu

e é

arte

?) e

,

14 S

TEIN

ER

, R

udol

f, ci

tado

por

SE

YM

OU

R e

m B

euys

, K

lein

, R

othk

o. P

rofe

cia

y tra

nsfo

rmac

ión.

p. 2

8.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA14

8

pedi

ndo

uma

nova

raci

onal

idad

e ad

vind

a da

s at

ivid

ades

do

espí

rito,

ele

ge

o m

el

e o

ouro

co

mo

elem

ento

s qu

e in

spira

m

os

sent

imen

tos

de

trans

form

ação

e m

isté

rio n

a su

a cr

iaçã

o e

orig

em.

Imag

ina

que

atra

vés

dele

s a

inte

ligên

cia

poss

a se

r reg

ener

ada.

O e

mpr

ego

de m

ater

iais

org

ânic

os c

omo

a go

rdur

a e

o m

el d

eve-

se

ao

cará

ter

inst

ável

de

ssas

su

bstâ

ncia

s na

tura

lmen

te

caót

icas

e

inde

term

inad

as.

Influ

enci

ávei

s pe

lo c

alor

e p

elo

frio,

per

man

ecem

em

cont

ínuo

pro

cess

o de

tra

nsfo

rmaç

ão.

Atra

vés

dela

s, o

arti

sta

sond

a o

conc

eito

que

pro

duz

form

as,

proc

uran

do f

azer

ref

letir

sob

re a

mat

éria

ante

rior

à fo

rma,

ou

mel

hor,

ante

s de

ser

in-

form

ada.

A m

atér

ia,

vist

a

dest

a m

anei

ra,

é pu

ra p

oten

cial

idad

e a

ser

perc

ebid

a, a

ssim

com

o as

noss

as, o

bser

vado

res.

A o

bra

visa

à p

ulsa

ção

mai

s ín

tima

do m

ater

ial e

isto

fic

a be

m e

xem

plifi

cado

em

Stu

hl m

it Fe

tt (C

adei

ra c

om g

ordu

ra,

1963

). A

cun

ha d

ecid

ida

pela

gor

dura

pre

ssio

nada

con

tra o

âng

ulo

gera

do

pelo

enc

ontro

do

enco

sto

com

o a

ssen

to d

a ca

deira

des

igna

um

a fo

rça

que

dá f

orm

a ao

inde

term

inad

o, b

em c

omo

desa

fia a

dis

cipl

ina

impo

sta

pelo

obj

eto

civi

lizad

o “c

adei

ra”.

O tr

anst

orno

da

mat

éria

exi

be a

den

sida

de

e a

qual

idad

e do

que

est

á jo

go: a

arte

ago

ra é

mei

o e

fim. B

euys

lida

com

um ti

po d

e ar

te q

ue e

voca

o m

ito c

omo

uma

cham

ada

à or

dem

esp

iritu

al:

dese

ja o

esp

írito

tom

ando

con

sciê

ncia

de

si.

O e

quilí

brio

, seg

undo

Beu

ys, d

eve

ser c

onqu

ista

do já

que

inex

iste

na

real

idad

e: p

ara

tant

o, s

uger

e o

mod

elo

do e

quilí

brio

eco

lógi

co. I

sto

é fa

zer

o qu

e o

artis

ta c

ham

ava

de “

escu

ltura

soc

ial”,

pro

duto

de

uma

form

a de

pens

amen

to q

ue p

rivile

gia

a in

tuiç

ão,

dign

ifica

ndo-

a co

mo

a m

ais

alta

form

a da

raz

ão –

den

ken

ist

Pla

stik

(pe

nsar

é e

scul

pir)

– r

esum

ia,

ques

tiona

ndo

as o

pera

ções

da

razã

o. O

mod

elo

de s

ocie

dade

pro

post

o

por

Beu

ys é

um

a em

pres

a co

letiv

a/nã

o-co

letiv

a co

mo

orga

nism

o de

um

a

hum

anid

ade

com

post

a de

indi

vídu

os q

ue e

stão

rel

acio

nado

s ao

mes

mo

tem

po e

m q

ue s

epar

ados

, na

qua

l ca

da u

m é

che

fe d

e si

mes

mo

e,

porta

nto,

de

sua

liber

dade

– to

do h

omem

tem

um

sol

den

tro d

esi

– s

em

abrir

mão

das

inte

r-re

laçõ

es.

Se

todo

pro

cedi

men

to é

for

mal

izad

or,

todo

s pr

oduz

imos

for

mas

,

porta

nto

som

os t

odos

arti

stas

des

de s

empr

e. C

omo

Duc

ham

p, B

euys

torn

a-se

um

dis

posi

tivo

artís

tico

e am

bos

vão

conc

orda

r um

a ve

z m

ais

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 125: Apostila Joseph Beuys

149

sobr

e as

int

er-r

elaç

ões

afet

adas

pel

a ar

te:

Todo

s at

ravé

s de

Duc

ham

p

fazi

am a

rte.

Est

avam

impl

ícito

s em

seu

s pr

oced

imen

tos

uma

supr

essã

o

de s

i mes

mo

enqu

anto

indi

vídu

o pa

rticu

lar

e a

man

ifest

ação

de

impu

lsos

anôn

imos

e c

olet

ivos

.15P

or s

ua v

ez, B

euys

afir

mav

a co

nsta

ntem

ente

que

Jede

Men

sche

n is

t ei

n K

ünst

ler

–to

do h

omem

é u

m a

rtist

a (v

ersã

o

cont

empo

râne

a de

todo

hom

em é

um

poe

ta, d

e N

oval

is?)

.

Há,

sem

som

bra

de d

úvid

a, a

lgo

do â

mbi

to d

o in

com

pree

nsív

el n

a

obra

de

Beu

ys, u

ma

certa

impe

netra

bilid

ade,

em

bora

o a

rtist

a ap

rese

nte

freqü

ente

men

te im

agen

s ou

rel

íqui

as d

o se

u pr

oces

so d

e cr

iaçã

o –

veja

-

se a

s V

itrin

es. A

ssoc

iado

s a

lem

bran

ças

auto

biog

ráfic

as, o

nde

o pa

ssad

o

se f

az p

rese

nte

pedi

ndo

futu

ro,

os m

ater

iais

rec

orre

ntes

que

em

preg

a

torn

am-s

e au

tênt

icos

ta

lism

ãs:

vida

e

obra

o fe

rram

enta

s pa

ra

a

cons

agra

ção

da e

xist

ênci

a hu

man

a. L

idan

do c

om u

m m

odo

de e

vidê

ncia

esté

tica

que

rom

pe c

om o

bel

o-co

ntem

plaç

ão e

que

em

anci

pa o

esc

ulto

r

da f

orm

a. B

euys

usa

mat

eria

is m

iser

ávei

s, b

anai

s, e

até

ind

igno

s –

gord

ura,

fel

tro,

cobr

e, s

angu

e, o

ssos

, en

xofre

, an

imai

s m

orto

s ou

viv

os,

mel

etc

, ou

seja

, não

-civ

iliza

dos.

A m

atér

ia e

fêm

era,

def

orm

ante

, afro

nta

a

clás

sica

ete

rnid

ade

do m

árm

ore

– à

sua

nobr

eza,

afe

re-s

e o

mat

eria

l de

cons

umo

rápi

do, r

efug

os d

a so

cied

ade.

A b

usca

pel

a al

ta e

spiri

tual

idad

e é

cara

cter

ístic

a ge

rmân

ica:

um

inst

rum

ento

co

nsta

nte

de

sua

luta

veja

-se

Goe

the,

G

rimm

,

Sch

open

haue

r e,

prin

cipa

lmen

te,

Wag

ner,

que

tão

bem

ent

ende

ra a

gran

deza

das

form

as s

imbó

licas

, e a

inda

toda

a e

xalta

ção

do ro

man

tism

o

alem

ão.

Beu

ys

fala

-nos

so

bre

a ca

paci

dade

de

tra

nsfo

rmar

a

vida

cotid

iana

em

esp

iritu

alid

ade

atra

vés

da i

ntel

igên

cia

trans

form

ador

a do

hom

em q

ue tu

do p

ode

dese

nvol

ver,

o B

elo

e o

Bem

: tra

nsfo

rmaç

ões

que

deve

m c

ontri

buir

para

a e

volu

ção

do h

omem

e d

e su

a ob

ra.

Com

o no

ant

igo

paga

nism

o de

sua

gen

te, o

hom

em é

o v

erda

deiro

heró

ieB

euys

est

á in

tere

ssad

o na

sua

sob

eran

ia: p

ensa

r é d

igno

de

reis

ou s

eja,

cad

a um

dev

e pr

ocur

ar s

ua p

rópr

ia r

acio

nalid

ade.

O a

nim

alis

hom

o fo

i su

bstit

uído

pe

lo

sapi

ens

e as

sim

po

de

cria

r os

m

eios

nece

ssár

ios

para

ger

ar li

mite

s –

a re

ligiã

o, a

cul

tura

filo

sófic

a e

a po

lític

a,

15 V

EN

ÂN

CIO

FIL

HO

, Pau

lo. M

arce

lDuc

ham

p. p

. 22.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA15

0

por e

xem

plo

– e

assi

m to

dos,

e n

ão s

ó os

mai

s fo

rtes,

gar

antir

iam

esp

aço

de s

obre

vivê

ncia

, mas

ago

ra é

a s

ua p

rópr

ia ra

cion

alid

ade

que

dem

onst

ra

falê

ncia

de

orga

niza

ção

e em

preg

o. B

euys

per

gunt

a si

mul

tane

amen

te

pelo

s co

ndic

iona

dore

s cu

ltura

is e

pel

os v

alor

es d

ispo

stos

par

a al

ém d

a

facu

ldad

e ra

cion

al.

A b

iogr

afia

de

Beu

ys é

, sem

dúv

ida,

fons

et o

rigo

de s

eus

insi

ghts

.

Ape

nas

a pr

ivaç

ão e

o s

ofrim

ento

pod

em a

brir

a m

ente

do

hom

em a

tudo

que

está

esc

ondi

do d

os o

utro

s.16

O a

rtist

a, a

o pa

rtici

par

de u

ma

espé

cie

de r

itual

prim

itivo

de

“ren

asci

men

to”

junt

o ao

s tá

rtaro

s,17

tem

o c

orpo

e a

men

te t

rans

torn

ados

pel

a do

r, m

omen

to q

ue s

erá

sem

pre

pres

entif

icad

o

atra

vés

de a

dere

ços,

rou

pas

ou p

intu

ras,

ass

emel

hand

o-se

ao

proc

esso

ritua

lístic

o de

ini

ciaç

ão x

aman

ístic

a. E

m B

adew

anne

(B

anhe

ira,

1960

),

Beu

ys e

xibe

sim

ulta

neam

ente

seu

nas

cim

ento

e r

enas

cim

ento

, as

ferid

as

psíq

uica

s e

físic

as d

ecor

rent

es d

este

s fa

tos,

com

o ta

mbé

m a

lude

às

cica

trize

s da

Ale

man

ha e

mes

mo

da E

urop

a.

O h

omem

que

pas

sa p

elas

pro

vaçõ

es t

orna

-se,

de

certa

for

ma,

“mai

s fo

rte q

ue a

mor

te”,

alca

nçou

a “

cura

” e

“pod

eres

” at

ravé

s da

arte

.

Dor

avan

te t

erá

que

trans

miti

r a

expe

riênc

ia a

os s

eus.

Ao

evoc

ar e

orga

niza

r en

ergi

as v

itais

sem

elha

ntes

àqu

elas

que

Beu

ys n

eces

sito

u, fe

z

aar

te (

re)a

dqui

rir,

dest

a m

anei

ra,

pred

icad

os t

erap

êutic

os.

Ass

im,

é

poss

ível

enx

erga

r os

seu

s m

ater

iais

com

o pu

ro p

oten

cial

ené

rgic

o em

repo

uso.

É le

gítim

o af

irmar

que

a a

finid

ade

de B

euys

com

o p

rimiti

vo e

com

m

ítico

re

sulta

de

um

êx

tase

di

onis

íaco

no

qu

al

o re

ligio

so

é

subs

tituí

do

pelo

pr

ofét

ico

ou

mág

ico,

to

rnan

do-o

in

term

ediá

rio

entre

mic

roco

smos

e m

acro

cosm

os. A

mito

logi

a at

uaria

por

tant

o no

reg

istro

de

um m

esoc

osm

os.

A a

tivid

ade

artís

tica

de B

euys

é pl

ena

de s

ímbo

los,

por

quan

to a

arte

em “

conc

eito

am

plia

do”

tem

um

a na

ture

za e

nerg

étic

a em

com

plet

a in

ter-

ação

com

o m

undo

. Pre

tend

endo

a r

econ

quis

ta d

os v

alor

es h

istó

ricos

, o

artis

ta i

mag

ina

que

a ar

te p

ossa

vir

a se

r ob

ra d

a pr

ópria

ver

dade

,

inco

rpor

ando

-a e

le m

esm

o, B

euys

. Sua

s ob

ras,

em

ess

ênci

a, s

ubm

etem

-

16 C

AM

PB

ELL

, Jo

seph

. As

más

cara

s de

Deu

s. M

itolo

gia

prim

itiva

. p. 5

6.

17 E

m 1

940,

Jos

eph

Beu

ys to

rnou

-se

pilo

to d

a Lu

ftwaf

fe. N

o in

vern

o de

194

3, e

m u

ma

mis

são

na C

riméi

a, s

ua a

eron

ave

foi

abat

ida.

Gra

vem

ente

fer

ido,

foi

soc

orrid

o pe

los

tárta

ros,

alia

dos

dos

nazi

stas

, que

em

preg

aram

mét

odos

prim

itivo

s na

sua

recu

pera

ção.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 126: Apostila Joseph Beuys

151

se

às

suas

pr

ópria

s ex

periê

ncia

s de

m

undo

. C

onso

am

ao

mod

us

oper

andi

sdu

cham

pian

o, c

uja

obra

máx

ima

Gra

nd v

erre

con

sist

e em

um

som

atór

io d

e ex

periê

ncia

s de

car

áter

exi

sten

ciai

s do

pró

prio

arti

sta,

18

asse

mel

hand

o-se

a u

m t

otem

, po

is t

oten

s sã

o es

péci

es d

e ár

vore

s

gene

alóg

icas

de

pare

ntes

co h

uman

o e

anim

al,

real

e m

ítico

.19 T

anto

o

franc

ês c

omo

o al

emão

dis

põem

de

uma

mito

logi

a in

divi

dual

que

ser

virá

de fu

ndam

ento

a u

m c

onhe

cim

ento

uni

vers

al.

6. 4

Obr

a e

mito

logi

a O

mito

, “lin

guag

em g

enét

ica

de u

m p

ovo”

, é c

arga

de

vida

ant

es d

e

se t

orna

r cu

ltura

, ci

viliz

ação

ou

hist

ória

. A

poé

tica

do m

ito f

az u

m p

ovo

dist

ingu

ir-se

da

natu

reza

, re

vere

ncia

ndo-

a. B

euys

vai

diz

er q

ue o

míti

co

sign

ifica

o s

egre

do n

ão d

ecla

rado

da

vida

. Ele

é a

gora

o tr

ouva

dour

que

nos

reve

la

o m

undo

oc

ulto

pe

lo

cotid

iano

e

o es

petá

culo

do

qu

al

parti

cipa

mos

sem

per

cebe

r. E

la [a

mito

logi

a] n

os il

ude

com

a re

sson

ânci

a

de

um

sent

ido

prof

undo

, se

mpr

e es

cond

endo

e

jam

ais

expr

imin

do

escl

arec

e S

chel

ling,

e ac

resc

enta

ain

da q

ue o

atra

tivo

próp

rio r

esid

e no

fato

de

ele

[o c

onto

] no

s si

mul

ar o

u m

ostra

r à

dist

ânci

a um

sen

tido

que

cont

inua

men

te s

e re

trai e

o q

ual s

omos

obr

igad

os a

con

fess

ar s

em,

no

enta

nto,

pod

er a

lcan

çá-lo

.20 E

ste

sent

ido

pote

ncia

l do

mito

é s

emel

hant

e à

verd

ade;

pe

rtenc

e ao

s há

bito

s de

te

mpo

s m

elho

res,

liv

re

do

terr

or

relig

ioso

, nu

m a

teís

mo

aleg

re e

ing

ênuo

. O

s m

itos

deve

m p

erte

ncer

à

orde

m

natu

ral

e nã

o ao

so

bren

atur

al

com

o na

s E

scrit

uras

: as

repr

esen

taçõ

es q

ue s

e as

soci

avam

à n

atur

eza

há m

uito

se

obsc

urec

eram

,

torn

ando

-se

tão

som

ente

relig

iosa

s.

O a

rtist

a nã

o pr

ega

uma

func

iona

lidad

e pa

ra o

mito

, e s

im a

efic

ácia

dest

e es

tímul

o, n

ão p

erm

itind

o a

repr

essã

o de

seu

s im

puls

os.

A i

déia

enca

rnad

a to

rna-

se s

ímbo

lo.

Ass

im é

com

os

mito

s, a

ssim

é c

om a

arte

de B

euys

– m

ensa

gem

cifr

ada

de s

igni

ficaç

ões

abst

rata

s e

conc

reta

s

sim

ulta

neam

ente

pró

xim

as e

dis

tant

es.

O a

rtist

a pr

ocur

a os

sig

nific

ados

atem

pora

is q

ue e

stra

nham

ente

vão

con

cord

ar c

om o

aqu

i e

agor

a. O

18 V

EN

ÂN

CIO

FIL

HO

, Pau

lo. M

arce

l Duc

ham

p. p

p. 4

5-46

. 19

Idem

. p. 6

0.

20 S

CH

ELL

ING

F. W

. J..

Intro

duçã

o à

filos

ofia

da

mito

logi

a. p

. 74.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA15

2

mar

avilh

oso

torn

a-se

nat

ural

por

que

os d

euse

s, in

terv

indo

nos

ass

unto

s

hum

anos

, pe

rtenc

em a

o m

undo

rea

l de

ste

tem

po e

con

cord

am c

om a

orde

m d

as c

oisa

s ac

redi

tada

, sin

toni

zand

o-se

com

as

apre

sent

açõe

s qu

e

lhe

perte

ncem

.21 A

travé

s do

s m

itos,

tem

os a

pos

sibi

lidad

e de

con

side

rar

sobr

e a

exis

tênc

ia,

suas

ca

usas

e

cons

eqüê

ncia

s,

para

doxo

s e

ambi

güid

ades

, tra

zend

o no

vas

poss

ibili

dade

s pa

ra o

rea

l. A

ssim

é q

ue o

praz

er e

spiri

tual

, m

ítico

ou

relig

ioso

, as

sem

elha

-se

ao p

raze

r es

tétic

o

desi

nter

essa

do.

O

rom

antis

mo

mui

to

havi

a al

tera

do

a vi

são

clás

sica

do

“ver

dade

iro”,

pass

ando

a a

ceita

r a n

oção

de

“sen

tido”

, inc

orpo

rand

o-o

aos

cont

eúdo

s cu

ltura

is

atra

vés

da

anál

ise

sim

bólic

a.

O

pens

amen

to

rom

ântic

o pr

eten

dia

com

pree

nder

a t

otal

idad

e da

s si

gnifi

caçõ

es e

os

códi

gos

não

apre

ensí

veis

pel

a ra

tio v

alor

izad

a pe

lo c

lass

icis

mo.

Par

a se

dar

cont

a do

ocu

lto, o

hom

em d

o ro

man

tism

o ne

cess

itava

de

um m

odel

o

trans

cend

enta

l de

pen

sam

ento

– u

ma

espé

cie

de r

eorg

aniz

ação

dos

sina

is d

e es

tímul

os a

ntiq

üíss

imos

.

O

sím

bolo

e

suas

tra

duçõ

es,

inte

rpre

taçõ

es

ou

deco

dific

açõe

s,

cons

tituí

a, e

ntão

, o

mét

odo

rom

ântic

o de

ver

a e

xist

ênci

a. O

arq

uétip

o

ajud

ará

a m

enta

lidad

e de

sses

ho

men

s na

an

ális

e do

s co

nteú

dos

cultu

rais

, a

sua

busc

a de

sen

tido

na m

itolo

gia,

par

a a

form

ação

de

mod

elos

ex

plic

ativ

os

hist

óric

os.

A

mito

logi

a,

desd

e o

rom

antis

mo,

cons

iste

, en

tão,

em

um

con

junt

o im

agét

ico,

em

um

agr

upam

ento

de

sím

bolo

s co

nceb

idos

de

form

a a

poss

ibili

tar u

ma

leitu

ra tr

ansc

ende

nte

do

sent

ido

da v

ida:

sím

bolo

s qu

e de

vem

inte

r-agi

r for

man

do in

cess

ante

men

te

cone

xões

par

a pr

opal

ar s

eus

efei

tos

de v

erda

des.

A i

déia

de

tota

lidad

e co

mpr

eend

ia s

ujei

to e

obj

eto,

nat

urez

a e

espí

rito,

nad

a te

ria s

entid

o is

olad

amen

te.

A a

rte p

ara

Sch

ellin

g, p

or

exem

plo,

ocu

pa p

osiç

ão p

rivile

giad

a um

a ve

z qu

e a

inte

ligên

cia

esté

tica

é

form

aliz

ador

a, c

riado

ra d

e m

undo

s. A

obr

a de

arte

aces

so a

o A

bsol

uto

porq

ue

nela

se

an

ulam

op

osiç

ões

e se

ex

prim

e a

iden

tidad

e do

s

cont

rário

s. N

a fil

osof

ia d

e S

chel

ling,

o s

entid

o do

mito

não

é e

xter

ior a

ele

,

não

deve

se

r pr

ocur

ado

fora

de

le,

o re

gist

ro

das

deco

dific

açõe

s

21 Id

em, s

obre

os

cont

os d

e G

oeth

e.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 127: Apostila Joseph Beuys

153

mito

lógi

cas

é o

da t

radu

ção

ou d

e de

svel

amen

to.

Não

sen

do a

lego

ria,

segu

ndo

o pr

óprio

pen

sado

r, el

e é

uma

taut

egor

ia:

A m

itolo

gia

não

é

aleg

óric

a: e

la é

tau

tegó

rica.

Par

a el

a, o

s de

uses

são

ser

es q

ue e

xist

em

real

men

te, q

ue n

ão s

ão u

ma

outra

coi

sa, q

ue n

ão s

igni

ficam

out

ra c

oisa

,

mas

que

sig

nific

am s

omen

te a

quilo

que

ele

s sã

o.22

Nos

de

senh

os

de

Jose

ph

Beu

ys

figur

am

o oc

ulto

, im

agen

s

oste

nsiv

amen

te p

rimiti

vas,

par

cela

de

irrac

iona

lidad

e hu

man

a ca

muf

lada

pelo

rac

iona

lism

o da

era

mod

erna

. S

ão p

roje

tos

para

fut

uras

Akt

ione

n

que,

por

sua

vez

, sã

o ta

mbé

m p

roje

tos.

Est

es p

apéi

s re

sulta

m d

e um

proc

esso

artí

stic

o qu

e sã

o pa

rte d

a ex

periê

ncia

de

impr

imir

expr

imin

do

trans

cend

enta

lmen

te o

sag

rado

e,

na s

eqüê

ncia

, gu

arda

m m

anch

as q

ue

cele

bram

for

ças

prim

ordi

ais.

Tra

ta-s

e de

ent

idad

es q

uase

org

ânic

as,

prot

eifo

rmes

, por

vez

es in

disc

erní

veis

e q

ue tê

m u

rgên

cia

em re

conc

iliar o

hom

em c

om a

sua

real

idad

e ci

rcun

dant

e.

O p

rimiti

vo x

amã

trans

figur

a-se

em

arti

sta,

no

níve

l m

ais

alto

do

dese

nvol

vim

ento

civ

iliza

tório

: in

terp

enet

rand

o pa

ssad

o e

futu

ro,

ambo

s

cum

prem

pap

el p

edag

ógic

o na

soc

ieda

de (j

á fo

i com

enta

do q

ue a

s lo

usas

negr

as e

ram

os

verd

adei

ros

quad

ros

de B

euys

), m

ostra

ndo

que

tant

o a

intu

ição

qu

anto

o

conh

ecim

ento

o dá

diva

s sa

grad

as.

Form

ando

espa

ços

de

inte

ress

e es

tétic

o,

os

dese

nhos

de

B

euys

co

nstit

uem

man

ifest

açõe

s do

es

paço

m

ágic

o di

vino

, co

nvite

s pa

ra

que

se

expe

rimen

te a

col

igaç

ão d

e na

ture

za, a

rte e

vid

a, c

omo

em u

ma

cave

rna

neol

ítica

.

Obs

erva

ndo

por

este

âng

ulo,

o d

esen

ho é

um

a lin

guag

em a

uxili

ar

para

o ri

to v

ital.

As

man

chas

pic

tóric

as, e

m s

ua m

aior

ia n

egra

s ou

sép

ias,

são

irred

utív

eis.

Rud

imen

tare

s, p

rovo

cam

a le

itura

apo

iada

nos

reg

istro

s

pré-

cultu

rais

qu

e nã

o se

de

ixam

ap

reen

der

inte

lect

ualm

ente

e

que

atin

gem

tão

som

ente

a a

lma

desa

visa

da,

insp

irand

o os

des

ejos

mai

s

hum

anitá

rios,

at

ávic

os

mes

mo,

fa

mili

ares

à

cons

ciên

cia

de

grup

o.

Sup

rimin

do

a id

éia

de

indi

vidu

alis

mo,

ca

ract

eriz

am

uma

sofis

ticad

a

sabe

doria

arc

aica

. O

voc

abul

ário

é e

lem

enta

r, co

m i

mag

ens

de u

ma

sign

ifica

ção

ampl

iada

, ab

erta

s ao

qu

estio

nam

ento

co

nsta

nte

pelo

22 F

. W. J

. Sch

ellin

g. “I

ntro

duçã

o”. O

s P

ensa

dore

s. [V

. not

a 8]

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA15

4

indi

vídu

o co

mum

: o

Leitm

otiv

é o

hom

em e

a s

ua o

rigem

– k

osm

os,

ou

seja

, a

mat

éria

-prim

a do

mito

. S

ão p

ensa

men

tos,

rab

isco

s qu

e fa

lam

ao

hom

em a

inda

indi

stin

to d

o ko

smos

, pa

rtici

pant

e no

seu

pró

prio

dev

ir ou

mes

mo

da s

ua e

tern

a G

esta

ltung

.P

álid

as p

ista

s pa

ra a

ntig

as e

ínt

imas

expe

ctat

ivas

.

As

conf

igur

açõe

s te

riom

órfic

as,

de

extra

ordi

nária

pl

astic

idad

e,

surg

em c

arre

gada

s de

refe

rênc

ias

hist

óric

as, d

e si

gnifi

cado

s m

itopo

étic

os

ou p

uram

ente

aut

obio

gráf

icos

. P

or v

ezes

par

ecem

aut

êntic

os s

ímbo

los

exis

tenc

iais

, si

gnos

ab

erto

s,

raci

onai

s e

sem

pre

rela

cion

ais.

P

odem

,

tam

bém

, ap

rese

ntar

vea

dos,

ren

as,

hien

as,

rapo

sas

e ai

nda

o ch

acal

(cuj

a ín

dole

e

form

a as

sem

elha

m-s

e ao

do

co

iote

am

eric

ano)

prov

enie

ntes

da

flo

rest

a ge

rmân

ica,

im

agét

ica

de

tradi

ção

regi

onal

.

Sur

gem

figu

rado

s em

traç

os r

aref

eito

s qu

e pa

ssam

a id

éia

da d

elic

adez

a

do s

entid

o bu

scad

o, a

frag

ilida

de d

a id

entid

ade

que

se d

isso

lve

a to

do o

mom

ento

pa

ra

se

reco

mpo

r no

in

stan

te

segu

inte

. R

eúne

m

imag

ens

fugi

dias

e e

squá

lidas

de

uma

parte

da

mem

ória

mís

tica

do m

undo

,

exis

tem

em

alg

um l

ugar

e a

spira

m a

rea

tual

izaç

ão d

e um

a ex

periê

ncia

ante

rior:

mel

anco

lia e

êxt

ase

alte

rnam

-se

num

a ún

ica

imag

em.

A fl

uide

z do

s tra

ços

e a

debi

lidad

e do

s co

ntor

nos

dos

dese

nhos

de

Beu

ys t

rans

mite

m t

ão s

omen

te s

igni

ficad

os –

ine

xist

em p

ropr

iam

ente

cont

eúdo

s –,

est

rutu

ra p

rimár

ia a

ser

des

vela

da p

elo

espí

rito

desa

rmad

o e

som

ente

por

est

e, p

osto

tra

tar-

se a

pena

s de

alu

sões

fra

gmen

tada

s e

difu

sas.

Pur

os e

lem

ento

s rit

ualís

ticos

e,

por

isso

mes

mo,

orig

inár

ios,

guar

dam

o c

arát

er f

orm

al d

a in

cons

istê

ncia

rac

iona

l, sã

o in

tuiç

ões

em

esta

do b

ruto

: m

ater

ial

esco

ndid

o na

bas

e do

car

áter

.23O

ani

mal

ali

conf

igur

ado

é o

alim

ento

. E

est

a é

a fo

rma

de m

anip

ular

os

deus

es

ocul

tos

nos

obje

tos

natu

rais

atra

vés

de s

eus

sím

bolo

s.

A

poss

ibilid

ade

de

uma

inte

rpre

taçã

o da

s m

anch

as

ou

das

anot

açõe

s ap

aren

tem

ente

aci

dent

ais

de B

euys

par

ece,

à p

rimei

ra v

ista

,

por d

emai

s pe

ssoa

l. P

orém

a s

upos

ta s

ubje

tivid

ade

do a

rtist

a se

pre

tend

e

a m

esm

a do

seu

pov

o, p

ovo

da te

rra, d

as in

tem

périe

s e

luta

s ou

dos

bon

s

tem

pos

dos

anse

ios

rom

ântic

os.

São

, ao

fim

e a

o ca

bo,

“idéi

as é

tnic

as”

23 G

ötz,

Adr

iani

. Dra

win

gs, o

bjec

ts a

nd p

rints

. p. 1

2.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 128: Apostila Joseph Beuys

155

(Völ

kerg

edan

ke)

tang

ívei

s em

im

agen

s, r

econ

hecí

veis

uni

vers

alm

ente

porq

ue

são

man

ifest

açõe

s lo

cais

da

s “id

éias

el

emen

tare

s”

(Ele

men

targ

edan

ke)

da

hum

anid

ade,

24

nunc

a vi

venc

iada

s em

es

tado

puro

. As

suas

co

res

são

terr

a,

pret

a,

orgâ

nica

, pi

gmen

tos

prim

ário

s,

mat

éria

-prim

a (U

rsto

ff)m

esm

o de

vid

a, (

re)a

pres

enta

ção

pura

, qu

e nã

o

deté

m a

pla

stic

idad

e da

sub

stân

cia,

ant

es a

tua

antro

polo

gica

men

te p

ara

a

afirm

ação

de

um

es

paço

re

al,

de

cará

ter

forte

men

te

antiu

rban

o,

conj

uran

do

o es

pírit

o da

te

rra

(Erd

geis

t),se

m

guar

dar

qual

quer

cons

ider

ação

pel

o tra

dici

onal

efe

ito e

stét

ico.

O a

spec

to e

tern

amen

te p

rovi

sório

e e

xper

imen

tal

de s

uas

obra

s

refle

te a

mal

eabi

lidad

e qu

e B

euys

esp

era

e de

seja

alc

ança

r pa

ra u

ma

estru

tura

soc

ial a

ltern

ativ

a –u

m p

edid

o pa

ra q

ue s

e dê

ate

nção

aos

sin

ais

nebu

loso

s en

viad

os

pela

in

tuiç

ão

hum

ana.

S

empr

e ag

uard

ando

inte

rcom

unic

açõe

s de

ene

rgia

s vi

tais

, ap

osta

ndo

no e

tern

o pr

eval

ecer

sobr

e as

tend

ênci

as d

estru

idor

as e

mor

tais

. O in

form

e e

o et

éreo

par

ecem

prop

or o

dire

ito à

lib

erda

de i

ntui

tiva:

por

ém s

ão f

orm

as d

e pr

ecis

ão

apen

as i

mpr

essi

onis

tas

e, n

o en

tant

o, e

xtre

mam

ente

elo

qüen

tes

que,

cont

radi

toria

men

te, p

resc

inde

m d

e co

men

tário

s, já

que

sem

pre

fora

m d

e

algu

ma

form

a id

entif

icad

as,

sent

idas

e a

té t

emid

as.

Est

as f

orm

as s

ão

apen

as in

díci

os d

e si

tuaç

ões.

Ape

land

o pa

ra o

déj

à vu

da

men

te, t

rata

-se

de im

agen

s pr

imár

ias

(urtü

mlic

hes

Bild

). S

ão c

onte

údos

sem

form

as fi

xas,

cons

erva

ndo

o as

pect

o de

in

acab

ados

, su

rgem

co

nsta

ntem

ente

em

trans

form

ação

, co

mo

o ho

mem

e o

s m

ater

iais

de

suas

arg

umen

taçõ

es

artís

ticas

.

Inex

iste

qua

lque

r ve

stíg

io d

o B

elo

med

iterrâ

neo,

sua

s co

res

ou s

eu

erot

ism

o, p

osto

que

o t

raba

lho

de B

euys

é u

m r

eend

ereç

amen

to d

o

Rom

antis

mo:

o se

qüên

cias

pi

ctór

icas

si

mbó

licas

ou

co

nden

saçõ

es

sint

átic

as25

que

se

rem

etem

sem

pre

à A

lem

anha

em

um

cur

ioso

pro

cess

o

auto

gera

dor

do e

spíri

to g

erm

ânic

o. T

emos

, is

to s

im,

uma

met

áfor

a da

bele

za c

onte

mpo

râne

a qu

e co

ncor

da c

om K

enne

th B

aker

ao

desc

revê

-la

24 C

AM

PB

ELL

, Jos

eph.

As

más

cara

s de

Deu

s. M

itolo

gia

prim

itiva

. p. 4

0, c

itand

o A

dolp

h B

astia

n (1

826-

1905

) qu

e po

r su

a ve

z fo

i fon

te p

ara

Jung

no

dese

nvol

vim

ento

da

idéi

a do

s ar

quét

ipos

. 25

TZ A

dria

ni. D

raw

ings

, obj

ects

and

prin

ts. p

. 35.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA15

6

com

o se

ndo

da o

rdem

de

uma

bele

za la

tent

e, is

to é

, um

med

o de

per

der

a re

alid

ade

crua

de

noss

a ex

istê

ncia

,26id

entif

icad

a no

s tra

ços

robu

stos

que

even

tual

men

te m

arca

m g

rafic

amen

te a

pre

senç

a do

hom

em/a

rtist

a,

mai

s um

in

diví

duo

priv

ado

de

sua

próp

ria

inte

grid

ade,

ap

enas

um

fragm

ento

de

real

idad

e nã

o-in

dust

rial.

Os

obje

tos

de

Beu

ys

carr

egam

um

a co

ncen

traçã

o de

ve

rdad

e

inte

rior

som

ente

apr

eens

ível

de

man

eira

sin

esté

sica

, um

a ve

z qu

e sã

o

aspe

ctos

teis

, se

nsor

iais

, de

fe

nôm

enos

qu

e pe

dem

a

trans

ubst

anci

aliz

ação

da

real

idad

e em

fé,

sem

con

sent

ir al

tern

ativ

a. É

este

com

plex

o en

ergé

tico

e pu

lsan

te q

ue m

ostra

o in

dizí

vel e

traz

à lu

z a

funç

ão s

imbó

lica

e qu

e, à

man

eira

da

mito

logi

a, f

az a

tra

nsm

issã

o da

s

form

as p

ela

qual

a F

orm

a-da

s-fo

rmas

sem

for

ma

pode

ser

con

heci

da.27

Par

adox

alm

ente

são

obj

etos

num

ênic

os q

ue, e

mbo

ra r

econ

hecí

veis

, não

perm

item

ou

tra

apre

ensã

o do

se

u ne

xo

que

não

seja

at

ravé

s do

s

sent

idos

.

Beu

ys v

ai e

stim

ular

a s

ensi

bilid

ade

e a

perc

epçã

o do

s ho

men

s pa

ra

além

dos

cin

co s

entid

os b

iolo

gica

men

te c

onhe

cido

s, a

cres

cent

ando

a

eles

os

sent

idos

vita

l, o

espa

cial

, o te

mpo

ral,

o ci

nétic

o, o

est

átic

o e

aind

a

o té

rmic

o. P

or e

xem

plo,

a o

bra

Das

Rud

el (

O b

ando

, 19

69),

na q

ual

é

poss

ível

ver

ifica

r qu

e o

band

o, c

ompo

sto

de c

erca

de

20 tr

enós

-ani

mai

s,

cada

qua

l ca

rreg

ando

um

rol

o de

fel

tro (

para

aqu

ecer

), go

rdur

a (p

ara

alim

enta

r) e

um

a la

nter

na (

para

gui

ar),

está

em

per

man

ente

mov

imen

to,

ou s

eja,

par

ece

sair

ince

ssan

tem

ente

do

auto

móv

el-a

mbu

lânc

ia. O

arti

sta

disp

ôs c

om ta

man

ha p

reci

são

os o

bjet

os q

ue é

con

stan

te a

impr

essã

o de

esta

rem

em

per

man

ente

mov

imen

to:

trans

mite

m,

assi

m,

o se

ntid

o de

urgê

ncia

, atit

ude

perfe

ita d

e um

gru

po d

e re

sgat

e de

em

ergê

ncia

, pro

nto

para

inte

rvir,

inva

dir o

u es

capa

r.

Tam

bém

em

Plig

h (T

rans

e, 1

958-

85),

mui

to e

mbo

ra o

títu

lo s

eja

com

plem

enta

r, co

mo

em

toda

a

prod

ução

de

B

euys

, é

poss

ível

expe

rimen

tar,

graç

as

à m

onum

enta

lidad

e da

ob

ra,

de

prop

orçõ

es

arqu

itetu

rais

, sen

saçõ

es q

ue v

ão, c

ontín

ua e

alte

rnad

amen

te, d

o te

mor

ao

conf

orto

pl

eno.

O

fe

ltro

enro

lado

, di

spos

to

em

colu

nas,

en

volv

endo

26 B

AK

ER

, Ken

neth

. “U

m u

so p

ara

o be

lo” i

n. R

evis

ta G

ávea

nº 2

. p. 1

05.

27 C

AM

PB

ELL

, Jos

eph.

As

más

cara

s de

Deu

s. M

itolo

gia

prim

itiva

. p. 5

7.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 129: Apostila Joseph Beuys

157

tota

lmen

te

o am

bien

te,

a so

norid

ade

do

inst

rum

ento

su

foca

da

pelo

mes

mo

mat

eria

l, ad

mite

con

otaç

ões

sim

ultâ

neas

tan

to d

e m

ater

ial

de

isol

amen

to

(sol

idão

, ab

ando

no),

com

o de

pr

oteç

ão

(cal

or).

A

impo

ssib

ilidad

e de

apr

eend

er o

sen

tido,

col

ocar

um

con

ceito

fin

al n

o

logo

s, é

sem

elha

nte

à re

alid

ade,

é o

arr

ebat

amen

to d

a pu

ra e

xper

iênc

ia

inef

ável

uni

cam

ente

ofe

reci

da p

elo

subl

ime

cont

empo

râne

o, in

capa

cida

de

de e

xpre

ssão

, per

da d

e si

mes

mo.

6.5

Logo

s e

diál

ogos

A

obr

a de

Beu

ys é

fala

nte,

nun

ca p

ára

de fa

lar,

proc

ura

uma

via

de

aces

so à

ver

dade

, cor

porif

ican

do-a

mes

mo.

Des

te m

odo,

ser

ia lí

cito

diz

er

que

o qu

e B

euys

faz

é I

nsta

laçã

o V

erba

l, co

m a

qua

l bus

ca a

rgum

enta

r

sobr

e o

fraca

sso

de u

m m

undo

que

sob

revi

ve a

si

próp

rio.

A o

bra

é o

veíc

ulo

para

um

diá

logo

com

o h

omem

, pa

ra q

ue s

e ef

etiv

e o

resg

ate

espi

ritua

l por

ele

agu

arda

do. É

sua

pró

pria

voz

que

fund

amen

ta e

spaç

os,

isto

é, i

n-fo

rma,

é a

bertu

ra d

e se

ntid

o e,

por

tant

o, a

ção/

verb

o. O

esp

aço

e

o es

paça

r vê

m a

ser

a m

esm

a co

isa

– po

ssib

ilidad

es d

e se

ntid

o qu

e

dize

m o

s as

pect

os ir

redu

tívei

s na

rel

ação

hom

em/m

undo

, poi

s se

dão

ao

mes

mo

tem

po (n

ão h

á ap

ropr

iaçã

o de

um

pel

o ou

tro –

suj

eito

x o

bjet

o). O

sent

ido,

ass

im d

efin

ido,

dev

e se

r en

tend

ido

com

o or

igem

(po

ssib

ilida

de)

do h

omem

/mun

do. S

e o

espa

ço é

sen

tido,

ent

ão e

le lo

gos

– lin

guag

em –

fenô

men

o or

igin

ário

do

ho

mem

de

ha

bita

r em

m

eio

ao

sent

ido.

A

lingu

agem

vai

sem

pre

se e

fetiv

ar p

orqu

e o

hom

em é

o s

er-s

entid

o –

e é

seu

orig

inar

iam

ente

o s

er u

ma

prov

ocaç

ão (d

iá-lo

gos)

.

O q

ue s

e re

ivin

dica

par

a a

ativ

idad

e ar

tístic

a be

uysi

ana

com

o um

todo

é q

ue e

la s

eja

da o

rdem

de

um l

ugar

/esp

açar

, do

ação

de

sent

ido

para

que

m a

exp

erim

enta

. Nas

sáb

ias

pala

vras

de

Mar

tin H

eide

gger

:28o

espa

çar

inst

ala

o liv

re,

que

se a

bre

para

o h

omem

est

abel

ecer

-se

e

habi

tar.

A “

obra

” de

Beu

ys é

, por

tant

o, d

oaçã

o de

luga

res

– po

ssib

ilidad

e

de s

entid

o.

A c

riaçã

o se

a pa

rtir

da p

alav

ra,

da f

orm

ulaç

ão d

o no

me.

O

disc

urso

de

B

euys

to

rna-

se

assi

m

escu

ltura

em

fra

nca

opos

ição

à

tridi

men

sion

alid

ade

da

escu

ltura

cl

ássi

ca.

O

artis

ta

afirm

ava

28 H

EID

EG

GER

, Mar

tin. “

Arte

e E

spaç

o”. I

n A

rte e

Pal

avra

nº 2

. p. 9

3.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA15

8

cons

tant

emen

te

que

a lin

guag

em

é pa

ra

mim

a

prim

eira

fo

rma

de

escu

ltura

, cuj

os p

rincí

pios

, des

de o

tem

po d

o G

rupo

Flu

xus,

são

soc

iais

,

nunc

a pu

ram

ente

est

étic

os. C

om o

gru

po, B

euys

atu

ou e

ntre

196

2 e

1965

em d

iver

sas

Akt

ione

n, n

as q

uais

os

mat

eria

is u

tiliz

ados

era

m d

e or

igem

estri

tam

ente

exi

sten

cial

, jam

ais

mer

cado

rias

cons

umív

eis.

Com

o ba

se d

e

pens

amen

to,

o Fl

uxus

en

cont

ra

no

mov

imen

to

de

Her

áclit

o a

sua

mot

ivaç

ão,

e no

s m

ater

iais

não

orto

doxo

s e

até

mes

mo

reje

itado

s pe

la

soci

edad

e a

sim

plic

idad

e e

a fle

xibi

lidad

e co

m q

ue p

rete

ndia

m a

rqui

teta

r

uma

mud

ança

na

cons

ciên

cia

visa

ndo

a um

a no

va e

ngen

haria

soc

ial,

liber

ta d

e do

gmas

ou

de c

ânon

es p

rees

tabe

leci

dos.

Ass

im c

omo

os m

ater

iais

, rej

eita

dos

são

os p

rópr

ios

hom

ens,

ago

ra

aban

dona

dos

à pr

ópria

sor

te.F

luxu

s pe

nsa

na a

rte d

ialo

gand

o co

m o

real

e o

espa

ço n

ão m

ais

com

o um

a en

tidad

e ge

omét

rica

fech

ada,

mas

com

o

dim

ensã

o de

vid

a. A

rte e

arti

sta

torn

am-s

e m

odel

os d

e co

mpo

rtam

ento

(ou

de p

ersu

asão

?) e

stét

ico

em c

ontra

posi

ção

às n

orm

as d

e co

ação

: daí

a os

tent

ação

blic

a da

op

eraç

ão

artís

tica,

a

impr

ovis

ação

de

acon

teci

men

tos

espe

tacu

lare

s, a

par

ticip

ação

fís

ica

nas

Akt

ione

n, e

, no

caso

m

uito

pa

rticu

lar

de

Beu

ys,

a lin

guag

em

torn

ando

-se

elem

ento

fund

amen

tal.

Acr

esce

ntan

do,

pode

-se

dize

r, um

a qu

arta

dim

ensã

o à

escu

ltura

, na

qua

l os

ges

tos

são

as f

orm

as e

o c

ompo

rtam

ento

, o

cont

eúdo

. O

en

tusi

asm

o,

a im

agin

ação

e

sens

ibili

dade

o su

as

hera

nças

, suf

icie

ntes

e le

gítim

as, l

egad

as p

elo

rom

antis

mo.

Bus

cand

o eq

uiva

lênc

ia e

ntre

arte

e m

undo

, se

u lo

gos

é an

tes

polít

ico,

que

vai

se

evid

enci

ar p

last

icam

ente

. O

dis

curs

o, a

pal

avra

, a

lingu

agem

com

o um

tod

o sã

o pa

rtes

inte

gran

tes

e in

diss

ociá

veis

de

sua

obra

. C

omo

na é

poca

das

rel

igiõ

es a

nted

iluvi

anas

, qu

ando

o s

acrif

ício

adqu

iria

cond

ição

de

lin

guag

em,

ou

aind

a no

s te

mpo

s da

ba

rbár

ie

teut

ônic

a, q

uand

o a

brut

alid

ade

selv

agem

inst

aura

ria o

rei

no d

os h

omen

s

livre

s. P

ara

os p

ovos

prim

itivo

s, a

arte

não

tin

ha o

car

áter

de

ativ

idad

e

indi

vidu

al,

ao c

ontrá

rio,

era

just

amen

te c

olet

iva,

tra

nsm

issã

o, i

rradi

ação

de c

ultu

ra e

libe

raçã

o de

forç

as p

olíti

cas

– ap

roxi

man

do-s

e, d

esta

form

a,

do p

edid

o de

Beu

ys n

o se

u “c

once

ito a

mpl

iado

de

arte

”. O

arti

sta

fund

e

teor

ia d

e ar

te c

om o

pró

prio

faze

r, de

seja

ndo

ocup

ar u

ma

posi

ção

cent

ral

na s

ocie

dade

, dei

xand

o a

arte

de

ser

expr

essã

o de

la m

esm

a, p

ara

atua

r

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 130: Apostila Joseph Beuys

159

em u

m c

o-pe

rtenc

imen

to a

rte-v

ida,

est

ende

ndo

suas

fro

ntei

ras

e su

a

abra

ngên

cia,

rom

pend

o em

def

initi

vo c

om o

pro

jeto

do

Mod

erni

smo.

Ora

, for

çar

os li

mite

s da

arte

é p

or s

i só

ampl

iá-la

. A e

mer

gênc

ia d

e

Beu

ys c

omo

artis

ta s

e pr

ende

jus

tam

ente

ao

cará

ter

autê

ntic

o da

sua

obra

, qu

e, a

ncor

ada

em u

ma

expe

riênc

ia p

esso

al e

intra

nsfe

rível

, nã

o é

cons

cien

tem

ente

con

trolá

vel.

O m

ito v

ai p

ossi

bilit

ar a

sin

toni

a en

tre o

pess

oal

e o

univ

ersa

l, na

ten

tativ

a de

est

abel

ecer

dia

-logo

s pl

ástic

os.

Des

cren

te d

a ar

te c

omo

obje

to, e

la s

e tra

nsfo

rma

em p

uro

ato

poét

ico,

a

inte

grid

ade

de s

uas

real

izaç

ões

é a

verd

ade

do v

ivid

o, v

erda

de b

iogr

áfic

a

e ge

ográ

fica.

Crê

, ist

o si

m, n

a su

a pr

ópria

exp

eriê

ncia

pes

soal

e n

o se

u

rela

cion

amen

to c

om o

mun

do,

com

o ra

mifi

caçõ

es b

iom

órfic

as.

O a

rtist

a

cheg

ava

mes

mo

a im

preg

nar

de o

dore

s su

as m

ãos

e su

as v

este

s pa

ra

dem

arca

r lu

gare

s, à

man

eira

dos

ani

mai

s. A

Akt

ion,

com

o o

ritua

l, é

mito

logi

a vi

vific

ada,

qua

lific

ação

de

ambi

ente

.

Ass

im c

omo

já o

era

par

a M

arce

l Duc

ham

p no

iníc

io d

o sé

culo

, a

arte

não

tem

mai

s um

fim

em

si e

ser

á B

euys

que

leva

rá a

cab

o, m

ais

do

que

qual

quer

out

ro a

rtist

a, o

pro

cess

o de

des

este

tizaç

ão i

nici

ado

pelo

franc

ês, c

oloc

ando

-a a

ntes

a s

ervi

ço, p

ara

que

poss

a el

a m

esm

a di

alog

ar

com

a s

ocie

dade

, us

ando

-a,

porta

nto

com

o lin

guag

em,

que

com

unic

a,

criti

ca o

pas

sado

e p

roje

ta o

futu

ro. É

arte

feita

“par

a” e

“na”

soc

ieda

de. A

sua

este

ticid

ade

será

, por

tant

o in

tríns

eca

ou n

ão s

erá.

O B

elo

com

Beu

ys s

erá

uma

eman

ação

do

Ser

, a

irrad

iaçã

o do

desv

elam

ento

do

Ser

.29 O

des

vela

men

to a

qui é

a p

ersu

asão

de

uma

obra

que

disc

ursa

e,

de

sta

form

a,

rem

ete

a ar

te

para

um

a es

trutu

ra

verd

adei

ram

ente

esp

iritu

al.

O d

esco

mpr

omis

so a

ssim

ger

ado

é de

tal

gran

deza

que

o a

rtist

a ja

mai

s pr

opôs

inv

estir

con

tra o

sis

tem

a ar

tístic

o

vige

nte.

Não

era

est

a a

sua

ques

tão

cent

ral,

e si

m o

hom

em e

a s

ua é

tica

do f

azer

vis

ando

a u

ma

poss

ível

rec

onst

ruçã

o da

exi

stên

cia

atra

vés

de

mod

elos

de

proc

edim

ento

s qu

e o

valo

rizem

. O h

omem

ago

ra d

eve

ser t

al

qual

o d

emiu

rgo

de P

latã

o qu

e nã

o é

onip

oten

te:

faz

o ko

smos

tão

bem

quan

to

poss

ível

e

tem

de

co

mpe

tir

com

os

ef

eito

s co

ntrá

rios

da

29 B

AK

ER

, Ken

neth

. “U

m u

so p

ara

o B

elo”

. In

Rev

ista

Gáv

ea n

º 2. p

. 103

, cita

ndo

Mar

tin

Hei

degg

er.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA16

0

nece

ssid

ade.

30

30 P

ETE

RS

, F. E

, Ter

mos

filo

sófic

os g

rego

s. p

. 49.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 131: Apostila Joseph Beuys

8 O q

ue n

ão é

art

e?

Os

tem

as b

ásic

os d

a te

se fo

ram

exp

osto

s lo

go n

o pr

imei

ro p

arág

rafo

da i

ntro

duçã

o: “

O o

bjet

ivo

é ex

amin

ar a

esp

ecifi

cida

de d

as r

elaç

ões

soci

ais

e da

s in

term

edia

ções

cul

tura

is in

stau

rada

s pe

las

obra

s de

Ton

y

Sm

ith, F

rank

Ste

lla e

Don

ald

Judd

, pel

os e

vent

os p

erfo

rmát

icos

do

grup

o

Flux

us d

e G

eorg

e M

aciu

nas,

pel

as A

ktio

nen

de J

osep

h B

euys

, e p

ela

Pop

Art

de A

ndy

War

hol.

O t

exto

é c

ondu

zido

pel

a hi

póte

se d

e qu

e ta

is

lingu

agen

s po

étic

as fo

ram

e s

ão a

inda

fund

amen

tais

par

a um

a re

nova

ção

esta

tutá

ria d

a ar

te, o

btid

a, p

rinci

palm

ente

, via

suc

essi

vas

inau

gura

ções

de

mod

os in

édito

s de

troc

as p

úblic

as.”

O

ris

co

teór

ico

assu

mid

o tin

ha

com

o cu

ringa

os

fa

tore

s

impo

nder

ávei

s da

últi

ma

gran

de c

atás

trofe

mun

dial

. Fat

o é

que

na e

stei

ra

dos

exce

ssos

e a

bsur

dos

polít

icos

com

etid

os d

uran

te a

prim

eira

met

ade

do s

écul

o X

X,

a se

gund

a fo

i ob

rigad

a a

lidar

com

, ta

lvez

, a

mai

or

defa

sage

m m

oral

e e

conô

mic

a já

regi

stra

da n

o O

cide

nte.

A c

onju

ntur

a fo

i

esta

mpa

da p

ela

arte

. A

s pe

ças

luxu

osas

de

Judd

e o

gla

mou

r da

s de

War

hol c

oexi

stem

e c

olid

em c

om a

indi

gênc

ia m

ater

ial d

as in

stal

açõe

s de

Beu

ys e

dos

epi

sódi

os p

recá

rios

do F

luxu

s. M

as i

sto

só a

nunc

ia u

ma

parte

do

dram

a: o

mun

do fo

i pos

to d

e po

nta-

cabe

ça e

, des

ta v

ez, a

arte

não

cons

egui

u es

capa

r da

revi

ravo

lta.

A

hec

atom

be d

e 19

45 b

otou

um

pon

to fi

nal n

aque

la c

arni

ficin

a, m

as

não

diss

ipou

a a

mbi

ance

fin

isse

cula

r há

mui

to a

feiç

oada

ao

cont

inen

te

euro

peu.

Os

anos

seg

uint

es, e

mba

lado

s pe

los

inte

rmin

ávei

s cô

mpu

tos

do

desa

stre

bél

ico

e pe

lo c

onví

vio

diár

io c

om u

ma

pais

agem

de

ruín

as,

afia

nçar

am

a lo

nga

esta

dia

da

ress

aca

mor

al.

Doe

nte,

fís

ica

e

espi

ritua

lmen

te,

a E

urop

a do

se

gund

o pó

s-gu

erra

au

toriz

ava

a

lingu

agem

dos

esc

ombr

os, r

itmad

a po

r Cas

sand

ra: a

final

, o q

ue e

u ve

jo é

o qu

e eu

sei

, o q

ue e

u se

i é o

que

eu

vejo

.

A

arte

eur

opéi

a re

leva

nte

para

o m

omen

to te

ve q

ue b

usca

r rec

urso

s

nas

suca

tas

exis

tenc

iais

, na

s le

mbr

ança

s, n

o im

ater

ial,

nos

elem

ento

s

prim

ordi

ais,

no

próp

rio c

orpo

: tin

ha q

ue r

ecom

eçar

do

zero

e/o

u la

nçar

mão

da

sua

pesa

da b

agag

em e

spiri

tual

. N

a fa

lta d

e tu

do,

os a

rtist

as

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA18

3

tirar

am

parti

do

da

penú

ria

de

hist

ória

no

vom

undi

sta,

us

aram

su

as

tradi

ções

cul

tura

is c

ontra

o m

ater

ialis

mo

posi

tivis

ta e

a v

ulga

ridad

e do

s

hábi

tos

com

porta

men

tais

nor

te-a

mer

ican

os.

A E

urop

a cu

lta,

ou a

par

te

cons

eqüe

nte

dela

, tor

nou-

se u

m a

mbu

lató

rio d

e au

to-r

eava

liaçõ

es.

O

s m

eios

em

preg

ados

, ine

gave

lmen

te d

esig

uais

e d

esor

ient

ador

es,

agra

vara

m a

imen

sa c

onfu

são

que

até

hoje

em

baça

o e

nten

dim

ento

dos

conf

ins

form

ais

e/ou

em

ocio

nais

m

irado

s.

Ain

da

perm

anec

em

em

susp

enso

as

qu

estõ

es

sobr

e a

estra

nhez

a de

se

us

mét

odos

com

unic

acio

nais

, de

seus

pro

cedi

men

tos,

de

toda

s e

quai

sque

r ins

tânc

ias

dos

sent

idos

e c

apac

idad

es h

uman

as re

quis

itada

s: w

hat´s

hap

peni

ng?

Jo

seph

Beu

ys, c

om c

erte

za, a

figu

ra e

mbl

emát

ica

do s

egun

do p

ós-

guer

ra e

urop

eu,

asse

ntou

tra

balh

os i

mbu

ídos

de

um e

xtem

porâ

neo(

?)

sim

bolis

mo

e de

in

sígn

ias

mat

eria

is.

Fora

m

esse

s os

m

anan

ciai

s

ener

gétic

os d

a es

cultu

ra s

ocia

l rec

eita

da p

elo

artis

ta: u

ma

obra

ass

inad

a

por

todo

s os

indi

vídu

os,

já q

ue,

por

prin

cípi

o, t

odo

hom

em é

um

arti

sta.

Toda

s as

fun

ções

soc

iais

inte

gram

o n

ovo

conc

eito

am

plia

do d

e ar

te,

e

todo

s os

mei

os e

xpre

ssiv

os b

asea

dos

na q

uest

ão d

a pe

ssoa

int

eira

na

qual

a n

atur

eza,

o m

ito, a

ciê

ncia

, a in

tuiç

ão, e

a r

azão

dev

eria

m v

olta

r a

ser

um t

odo.

Lin

guag

em, p

ensa

men

to e

mes

mo

as a

tivid

ades

cot

idia

nas

são

cons

ider

ados

pro

cedi

men

tos

escu

ltóric

os: p

ara

a ar

te to

tal,

o ho

mem

tota

l. E

, no

enta

nto,

viv

ia-s

e em

ple

no p

roce

sso

de re

cons

truçã

o ra

cion

al-

capi

talis

ta d

a E

urop

a. O

dile

ma,

com

o se

vê,

não

pod

ia s

er m

ais

grav

e.

O

s E

UA

, ao

co

ntrá

rio,

saíra

m

do

conf

ront

o co

m

um

notó

rio

supr

imen

to d

e en

ergi

a vi

tal.

Ego

e e

cono

mia

repo

tenc

ializ

ados

, os

tem

pos

subs

eqüe

ntes

ao

fim d

os c

omba

tes

reaj

usta

ram

os

alca

nces

do

Am

eric

an

Dre

am,

fora

m a

nos-

dour

ados

. E

, at

é o

iníc

io d

a dé

cada

de

1960

, os

dese

mpe

nhos

soc

ioec

onôm

icos

do

cida

dão

norte

-am

eric

ano

pare

ciam

abas

teci

dos

por u

ma

corn

ucóp

ia m

ágic

a.

A

arte

est

adun

iden

se a

com

panh

ou a

esc

alad

a he

róic

a da

naç

ão,

redi

men

sion

ou

seus

al

canc

es

acor

dada

pe

las

desm

edid

as

de

suas

met

rópo

les

e pa

isag

ens,

lido

u co

m a

s su

cata

s de

seu

s ex

cess

os, a

doto

u

o rit

mo

das

indú

stria

s, a

clim

atou

a l

ingu

agem

das

rua

s, a

pren

deu

a

man

obra

r o

bem

e o

mal

. A

aus

ênci

a de

qua

lque

r in

ibiç

ão e

m f

ace

de

toda

s as

trad

içõe

s tin

ha a

lice

nça

deP

irro:

o q

ue e

u ve

jo é

o q

ue e

u ve

jo,

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 132: Apostila Joseph Beuys

184

e po

nto

final

.

Ju

dd r

ompe

as

barre

iras

entre

bel

as-a

rtes

e pr

oduç

ão i

ndus

trial

;

War

hol c

onfu

nde

arte

de

elite

e a

rte p

opul

ar: o

ritm

o do

fast

-tudo

tinh

a as

core

s do

neo

n e

a se

nsua

lidad

e da

s pi

n-up

s. N

o cl

ima

do “

tudo

junt

o e

agor

a”,

o di

álog

o é

rápi

do e

fec

undo

. S

e m

enos

é m

ais,

ent

ão m

ais

é

mel

hor.

Atiç

ados

pe

las

idéi

as

de

liber

dade

e

igua

ldad

e,

os

EU

A

conc

entra

vam

e i

rrad

iava

m n

a m

esm

a pr

opor

ção

um v

igor

dia

létic

o,

prop

icia

ndo

a co

nviv

ênci

a, s

e nã

o pa

cífic

a, p

elo

men

os p

rodu

tiva,

dos

mai

s co

ntra

ditó

rios

hum

ores

po

étic

os.

Nov

a Y

ork

acol

hia

toda

s as

inve

stid

as

artís

ticas

: se

rena

s ou

ex

uber

ante

s,

refle

xiva

s ou

frí

vola

s,

ascé

ticas

ou

exce

ssiv

as,

excê

ntric

as o

u vu

lgar

es.

A c

idad

e to

rna-

se,

efet

ivam

ente

, o la

bora

tório

das

exp

eriê

ncia

s ar

tístic

as c

onte

mpo

râne

as.

N

a E

urop

a re

stav

a cl

ara

a ne

cess

idad

e de

se

conv

ocar

mut

irões

,

gran

des

mob

iliza

ções

do

tipo

“a u

nião

faz

a fo

rça”

. Nos

EU

A, a

o co

ntrá

rio,

nada

apa

rent

emen

te j

ustif

icav

a um

enc

anta

men

to s

imila

r –

a un

ião

havi

a m

ostra

do a

sua

for

ça.

Mas

, ob

viam

ente

, um

a pa

z co

nqui

stad

a e

man

tida

som

ente

por

mei

o de

gue

rras

não

ass

egur

aria

um

a tra

nqüi

lidad

e

abso

luta

par

a qu

alqu

er h

abita

nte

do p

lane

ta. O

vel

ho G

iulio

Car

lo A

rgan

há m

uito

pro

nunc

iara

o a

ssun

to:

O q

ue n

a E

urop

a tra

z o

sign

o de

um

a de

duçã

o fin

al e

con

stitu

i o

docu

men

to d

eses

pera

dor d

e um

a ci

viliz

ação

em

cris

e, n

os E

stad

os U

nido

s é

desc

ober

ta,

inve

nção

, ím

peto

cria

tivo.

Não

que

a i

mag

em e

xist

enci

al

apre

sent

ada

pela

arte

am

eric

ana

seja

mai

s ot

imis

ta d

o qu

e na

Eur

opa,

m

as ju

stam

ente

por

isso

ela

é, e

m te

rmos

obj

etiv

os, m

ais

vita

l.1

8.1

It`s

now

or n

ever

Os

artis

tas

cont

empo

râne

os a

pena

s se

adi

anta

ram

, m

ais

uma

vez,

às e

vidê

ncia

s do

tudo

ou

nada

.A e

mpr

eita

da, a

gora

, tin

ha d

e ir

às ra

ízes

do m

al –

enc

arar

o h

orro

r m

áxim

o: o

org

anis

mo

mai

s pe

rfeito

sob

re o

plan

eta

não

dom

inav

a a

sua

próp

ria n

atur

eza.

Con

traria

ndo

toda

s as

expe

ctat

ivas

, ch

egar

a a

hora

de

adm

itir

que

não

som

os c

iviliz

ados

com

reca

ídas

bár

bara

s, m

uito

pel

o co

ntrá

rio:

som

os s

eres

bár

baro

s co

m

mom

ento

s ci

viliz

ados

. A

lgum

as d

as r

ealiz

açõe

s ar

tístic

as s

olic

itada

s po

r

essa

tes

e ga

star

am t

odas

as

suas

ene

rgia

s cr

iativ

as j

usta

men

te p

ara

1 A

RG

AN

, Giu

lio C

arlo

. Arte

mod

erna

. p. 5

07.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA18

5

recu

pera

r na

da m

enos

do

que

a di

gnid

ade

da e

spéc

ie.

Dig

nida

de p

osta

em r

isco

por

um

mat

eria

lism

o ca

da v

ez m

ais

brut

al, à

s ve

zes

até

por

seu

mer

o co

nsum

ism

o vi

rtual

.

A

s pr

opos

tas

diss

emin

adas

por

est

es a

rtist

as p

rocu

rara

m r

eaju

star

os

mui

tos

desc

ompa

ssos

ac

umul

ados

ao

lo

ngo

dos

anos

, de

sde

a

susp

ensã

o da

s cr

ença

s im

post

as p

elos

mito

s at

é o

canc

elam

ento

dos

mito

s im

post

os p

ela

raci

onal

idad

e qu

e os

sub

stitu

íram

. Ate

stan

do a

atu

al

disr

itmia

ent

re e

rudi

ção

eliti

sta

e m

assi

ficaç

ão a

liena

nte,

com

enta

ram

os

mal

efíc

ios

das

opin

iões

aut

oritá

rias:

é p

reci

so re

mov

er a

s ar

mad

ilhas

que

imob

iliza

m o

ser

, é

prec

iso

resg

atar

o h

omem

con

tem

porâ

neo

de s

eu

doen

tio a

tom

ism

o so

cial

, de

um e

stilo

de

vida

pau

tado

por

um

cal

culis

mo

tão

som

ente

aut

o-in

tere

ssad

o.

E

stes

arti

stas

não

for

am,

pois

, or

gulh

osos

out

side

rs.

Ao

cont

rário

,

leva

ram

em

con

ta o

s cu

stos

da

civi

lizaç

ão e

trab

alha

ram

par

a qu

e nã

o se

tenh

a o

pior

do

s m

undo

s –

sem

os

be

nefíc

ios

do

prog

ress

o,

cont

abili

zand

o ap

enas

o

seu

mal

-est

ar.

Os

norte

s ex

iste

ncia

is

cole

cion

ados

ao

long

o do

s sé

culo

s re

vela

ram

-se

inap

tos:

não

se

alav

anca

o ho

mem

ao

s id

eais

na

m

arra

. O

s ar

tista

s,

todo

s nó

s,

se

vira

m

com

pelid

os a

des

envo

lver

est

raté

gias

de

sobr

eviv

ênci

a, e

m t

odos

os

sent

idos

da

expr

essã

o.

O

tipo

de

arte

que

ado

rnav

a a

babe

l foi

con

stra

ngid

a a

faze

r mai

s do

que

desc

ansa

r su

a be

leza

num

mus

eu,

obrig

ada

a re

defin

ir os

crit

ério

s

que

conf

erem

nob

reza

ao

ofíc

io. O

que

ago

ra s

igni

ficav

a, p

ara

o be

m o

u

para

o m

al, m

ostra

r-se

mai

s m

unda

na –

eró

tica,

mís

tica,

pol

ítica

, vul

gar,

feia

, el

egan

te o

u pe

rnós

tica.

Ou

seja

, tu

do e

qua

lque

r co

isa,

tod

as a

s

man

ifest

açõe

s so

bre

o pl

anet

a te

riam

que

par

ticip

ar d

os p

raze

res

e da

s

agru

ras

da v

ida.

M

as,

com

o co

ntin

uar

a fa

zer

arte

num

a so

cied

ade

clim

atiz

ada

por

drás

ticos

par

adox

os,

a se

equ

ilibr

ar e

ntre

fla

gelo

e e

sban

jam

ento

. N

um

tens

o co

nvív

io m

onito

rado

pel

a su

bmis

são,

pac

ifica

do p

elo

med

o? C

omo

com

petir

com

a e

stét

ica

bloc

kbus

ter

de i

ndús

trias

e m

ídia

s, o

u co

mo

sim

ples

men

te d

esis

tir p

rodu

tivam

ente

des

sa c

ompe

tição

? C

omo

fura

r os

triun

fos

de u

m m

egae

mpr

eend

imen

to,

sem

ren

der-

se à

s ev

idên

cias

dos

seus

suc

esso

s, s

em u

tiliz

ar a

s pr

ópria

s ar

mas

do

inim

igo?

A r

eass

unçã

o

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 133: Apostila Joseph Beuys

186

do

cont

role

es

tétic

o re

com

enda

va

o es

pelh

amen

to

dos

mét

odos

proc

essu

ais,

o r

ebat

imen

to d

as f

eiçõ

es t

ecno

lógi

cas,

a c

orre

spon

dênc

ia

as q

uant

idad

es i

ndus

triai

s, a

rea

prop

riaçã

o do

s m

eios

com

unic

acio

nais

.

As

oper

açõe

s re

clam

avam

, en

tão,

o t

rato

cín

ico

da s

uper

abun

dânc

ia.

O

com

bate

é s

ério

, pe

leja

com

o n

eo-s

ublim

e, o

sub

lime

tecn

ológ

ico

que

dete

rmin

a o

fim d

o es

tilo,

pro

mov

e o

desa

pare

cim

ento

do

suje

ito e

a

desu

man

izaç

ão d

a ob

ra d

e ar

te.

O

s af

azer

es d

o di

a-a-

dia,

tod

os o

s of

ício

s hu

man

os,

arte

incl

usiv

e,

cada

um

dos

mov

imen

tos

rotin

eiro

s, c

ada

inve

stid

a re

laci

onal

cot

idia

na,

defin

em e

xper

iênc

ias

de a

quis

ição

rea

l de

conh

ecim

ento

em

si m

esm

as:

tam

anha

dis

poni

bilid

ade

só é

ace

ssív

el n

o co

nfro

nto

com

o d

esco

nhec

ido.

Ass

im, r

eenv

iado

s ao

s pr

oced

imen

tos

pré-

lingü

ístic

os, o

s ep

isód

ios

lidam

com

(re

)inau

gura

ções

– t

rata

m d

as c

oisa

s do

pas

sado

, m

as t

ambé

m d

o

futu

ro. O

prim

ado

da e

xper

iênc

ia in

verte

a o

rdem

car

tesi

ana:

prim

eiro

se

faz,

dep

ois

se v

ê o

que

vai

dar.

O e

nvol

vim

ento

con

scie

nte

dife

re d

os

proc

essa

men

tos

inco

nsci

ente

s do

cot

idia

no.

As

pres

ença

s en

fátic

as d

os c

ubes

de

Tony

Sm

ith c

omeç

am p

or

desc

lass

ifica

r as

inve

stid

as p

resu

nços

as: d

eixa

m o

não

-dito

pel

o di

to. A

s

tela

s si

ames

as d

e S

tella

dis

cipl

inam

o p

raze

r est

étic

o, m

as n

ão o

impe

de:

o se

ntid

o ve

m c

om o

uso

. O

s ob

jeto

s es

pecí

ficos

de

Judd

exa

ltam

um

a

nitid

ez m

erid

iana

, mas

exig

em a

par

alax

e do

olh

ar. P

or o

utro

lado

, Beu

ys

troux

e à

baila

o f

resc

or d

a po

esia

de

ação

e o

s ef

eito

s vi

vaze

s do

envi

ronm

ent,

além

do

vigo

r da

con

tam

inaç

ão e

ntre

vár

ias

lingu

agen

s

artís

ticas

: ins

tala

r é d

eixa

r agi

r. O

Flu

xus

rodo

u o

mun

do c

omo

um b

ando

de f

ranc

isca

nos

– ia

par

a a

rua

enco

ntra

r um

púb

lico

que

não

ia a

os

mus

eus. Ago

ra,

mai

s ai

nda

do q

ue n

a m

oder

nida

de c

láss

ica,

o i

ndiv

íduo

ante

s de

dec

lara

r se

gost

a ou

não

de

uma

obra

, dev

e pe

nsar

se

gost

a da

obra

. Tra

ta-s

e de

um

reap

rend

izad

o, n

ão m

ais,

con

tudo

, de

um d

idat

ism

o

arro

gant

e, q

ue tr

atav

a o

“rest

o” d

o m

undo

com

o um

a ho

rda

de a

leija

dos

emoc

iona

is,

cére

bros

des

erta

dos

sem

rec

uper

ação

. N

o lu

gar

dos

itens

erud

itos,

man

ipul

am c

om a

coi

sa p

ensa

da –

a p

rese

nça

enfá

tica

de u

m

fato

plá

stic

o qu

e ar

ticul

a, s

em in

term

ediá

rios

teór

icos

, seu

s pr

oced

imen

tos

ou a

ssum

em s

impl

esm

ente

a m

ajes

tade

do

acon

teci

men

to fe

nom

enal

. O

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA18

7

com

érci

o co

m a

s fe

içõe

s cu

ltura

is é

um

arti

fício

nec

essá

rio: a

exp

osiç

ão

do m

undo

impl

ica

a in

tens

ifica

ção

do s

eu v

íncu

lo c

om a

soc

ieda

de.

Arte

não

é de

senv

olve

r sen

sibi

lidad

es?

E

est

a er

a, é

ain

da, a

tare

fa a

gend

ada

por

este

s ar

tista

s –

repa

ssar

a ob

ra a

inda

pul

sant

e pa

ra o

esp

ecta

dor.

A v

ida

dest

es o

bjet

os d

epen

de

da p

rese

nça

do e

spec

tado

r pa

ra d

eter

min

ar o

seu

alc

ance

. A n

egoc

iaçã

o

é o

traba

lho,

e v

ice-

vers

a, e

nfim

. A

mud

ança

da r

elaç

ão h

omem

-mun

do

tem

que

vir

da p

erce

pção

ativ

a, d

o se

u m

odo

de h

abita

r o

mun

do. T

rata

-

se

de

um

proc

edim

ento

im

unol

ógic

o,

uma

vaci

na

que

estim

ula

os

antic

orpo

s ne

cess

ário

s à

segu

ranç

a da

ex

istê

ncia

. U

m

traba

lho

de

form

iga,

cer

tam

ente

: cam

biar

a p

erce

pção

de

uma

pess

oa é

mod

ifica

r sua

vida

. O q

ue n

ão s

e fa

z de

um

a ho

ra p

ara

outra

– re

laçõ

es n

ão s

e cr

iam

e

não

se e

sgot

am c

omo

mat

éria

s-pr

imas

.

* * *

O

nos

so v

iés

críti

co tr

afeg

a pe

los

indí

cios

soc

iocu

ltura

is h

ipot

ecad

os

desd

e o

obje

tivo,

é c

laro

, de

sfru

tand

o da

s le

gitim

açõe

s fil

osóf

icas

e d

o

apoi

o do

s cr

ítico

s e

hist

oria

dore

s da

arte

. N

ão p

or a

caso

, o

noss

o to

m

recl

ama

um

trato

po

lític

o no

ex

trem

o op

osto

, co

ntud

o,

dos

text

os

asse

ssor

ados

pe

la

verte

nte

“pol

ítico

-soc

ial”,

m

orm

ente

en

fado

nhos

,

dem

anda

m, n

a m

aior

ia d

as v

ezes

, o c

onhe

cim

ento

pré

vio

das

obra

s e/

ou

artis

tas

trata

dos.

Pio

r, nã

o se

env

olve

m n

as fi

rula

s se

mân

ticas

da

prát

ica,

nas

delic

iosa

s im

ersõ

es a

rtíst

icas

, mas

ape

nas

aten

tam

par

a os

asp

ecto

s

imed

iato

s da

s ob

ras

e/ou

par

a os

dad

os b

iocu

rricu

lare

s do

arti

sta.

Ess

as

atitu

des

são

cont

umaz

es n

a co

nden

ação

das

poé

ticas

abs

traci

onis

tas,

a

rece

nte

repu

taçã

o cr

ítica

de

Pol

lock

que

o d

iga.

É

be

m

prov

ável

qu

e a

“era

do

po

litic

amen

te

corre

to”

seja

resp

onsá

vel,

ao

men

os

em

parte

, pe

lo

cres

cim

ento

ge

omét

rico

das

publ

icaç

ões

devo

tada

s ao

filã

o. O

s te

xtos

am

plia

ram

o l

eque

de

suas

atua

ções

, so

man

do

os

com

entá

rios

dos

com

entá

rios

e as

m

uita

s

reto

mad

as d

o as

sunt

o de

sde

entã

o. O

est

ilo c

onfo

rmou

um

a di

scip

lina

dist

inta

, fin

alm

ente

ap

arta

da

da

arte

. S

urgi

ram

in

úmer

os

virtu

osos

capa

zes

de

desv

enda

r to

das

as

min

úcia

s id

eoló

gica

s de

qu

alqu

er

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 134: Apostila Joseph Beuys

188

ambi

ente

soc

iocu

ltura

l, qu

al s

eja

o pe

rfil.

Per

dido

s em

um

rede

moi

nho

de

entre

linha

s, e

feito

s su

blim

inar

es,

supo

siçõ

es s

ocio

lógi

cas

e/ou

sus

peita

s

psic

ológ

icas

dei

xam

de

lado

as

prát

icas

e to

rnam

-se

tão

maç

ante

s qu

anto

os

diag

ram

as

esta

tístic

os.

Sem

pre

à pr

ocur

a do

úl

timo

prec

once

ito

disp

onív

el p

ara

disp

arar

um

a ou

tra d

iscr

imin

ação

equ

ival

ente

, as

índo

les

gove

rnad

as

pelo

“p

oliti

cam

ente

co

rreto

” re

nega

m

a co

mpl

exid

ade

hum

ana,

es

peci

alm

ente

as

am

bigü

idad

es

da

aven

tura

, da

au

toria

artís

tica.

E

m 1

970,

por

exe

mpl

o, D

onal

d Ju

dd t

eve

de f

alar

sob

re o

cas

o, e

dest

a ve

z a

patru

lha

vinh

a do

lado

con

trário

. A

final

, di

z o

clic

hê:

”que

m

cala

, co

nsen

te”.

A r

epro

duçã

o do

lon

go t

rech

o é

opor

tuna

, ab

revi

a a

expl

anaç

ão d

as m

uita

s ar

esta

s af

iada

s pe

la te

se: 2

Sem

pre

ache

i que

o m

eu tr

abal

ho ti

vess

e im

plic

açõe

s po

lític

as, t

ives

se

atitu

des

que

perm

itiria

m,

limita

riam

ou

pr

oibi

riam

ce

rtos

tipos

de

co

mpo

rtam

ento

s po

lític

os

e ce

rtas

inst

ituiç

ões.

Ta

mbé

m

ache

i qu

e a

situ

ação

est

ava

bem

ruim

e q

ue o

meu

trab

alho

era

tudo

o q

ue p

odia

faze

r. M

inha

atit

ude

de o

posi

ção

e is

olam

ento

, qu

e ao

s po

ucos

mud

ou e

m

rela

ção

ao i

sola

men

to n

os ú

ltim

os c

inco

ano

s m

ais

ou m

enos

, er

a um

a re

ação

aos

aco

ntec

imen

tos

dos

anos

50:

o e

stad

o de

gue

rra

cont

ínuo

, a

dest

ruiç

ão d

a O

NU

pel

os a

mer

ican

os e

pel

os r

usso

s, o

s pa

rtido

s po

lític

os

rígid

os e

inút

eis,

a e

xplo

raçã

o ge

ral,

além

do

Exé

rcito

e d

e M

cCar

thy.

(...)

Meu

inte

ress

e em

faz

er a

lgum

a co

isa

conc

reta

cre

sceu

, em

par

te

porq

ue o

meu

tra

balh

o fic

ou m

ais

fáci

l, m

ais

clar

o, m

ais

inte

ress

ante

, de

m

odo

que

eu s

entia

que

não

ser

ia e

ngol

fado

por

out

ros

inte

ress

es;

em

parte

, pe

lo e

xem

plo

do m

ovim

ento

dos

dire

itos

civi

s, m

ostra

ndo

que

as

cois

as p

odia

m m

udar

um

pou

co; p

ela

Gue

rra

do V

ietn

ã, q

ue a

pres

enta

va

uma

situ

ação

do

tipo

‘ou

isto

ou

aqui

lo’:

mar

chei

na

prim

eira

pas

seat

a da

Q

uint

a A

veni

da e

ode

io a

tivid

ades

de

grup

o (A

d R

einh

ardt

foi

o ú

nico

ar

tista

que

rec

onhe

ci);

pela

per

cepç

ão d

e qu

e a

polít

ica,

a o

rgan

izaç

ão d

a so

cied

ade,

era

alg

uma

cois

a em

si m

esm

a, d

otad

a de

sua

pró

pria

nat

urez

a e

que

só p

odia

ser

mud

ada

a se

u pr

óprio

mod

o. A

arte

pod

e m

udar

as

cois

as u

m p

ouco

, m

as n

ão m

uito

; de

scon

fio q

ue u

ma

das

razõ

es d

a po

pula

ridad

e da

arte

am

eric

ana

é qu

e os

mus

eus

e co

leci

onad

ores

não

a

ente

ndia

m o

bas

tant

e pa

ra p

erce

bere

m q

ue e

la e

ra c

ontra

mui

ta c

oisa

na

soci

edad

e.

P

or o

utro

lado

, A

ndy

War

hol j

amai

s pa

ssou

rec

ibos

. Fl

eum

átic

o, o

artis

ta d

izia

aos

inte

ress

ados

que

, par

a sa

ber

quem

era

War

hol,

bast

ava

olha

r se

us t

raba

lhos

. E

, pa

ra m

aior

es e

scla

reci

men

tos,

rec

omen

dava

a

cons

ulta

de

seus

esc

ritos

: Th

e P

hilo

soph

y of

And

y W

arho

l (Fr

om A

to

B

2 D

ON

ALD

Jud

d. “

The

artis

ts a

nd p

oliti

cs:

a sy

mpo

sium

”. A

rtfor

um.

pp 3

6-7.

C

itaçã

o re

tirad

a de

WO

OD

, P

aul

(et

alii)

. M

oder

nism

o em

dis

puta

– a

arte

des

de o

s an

os

quar

enta

. p.

97.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA18

9

and

Bac

k A

gain

).3 Até

o s

isud

o Jo

seph

Beu

ys e

nten

deu

as p

aráb

olas

delib

erad

amen

te s

uper

ficia

is d

o no

rte-a

mer

ican

o. M

as q

uem

acr

edita

va

no

artis

ta-s

obre

vive

nte?

N

a A

lem

anha

, ni

ngué

m

jam

ais

duvi

dou

do

cará

ter

polít

ico

da o

bra

de B

euys

, mas

com

o en

frent

ar e

ste

deci

frado

r de

alm

as?

O

nor

te-a

mer

ican

o ve

ndeu

mui

to,

foi

mui

to p

rest

igia

do,

inst

alou

-se

na m

ídia

com

o um

rei

. Um

efe

ito q

ue W

arho

l sou

be c

ultiv

ar, s

em d

úvid

a,

aind

a qu

e di

scre

tam

ente

ch

ance

lado

pe

las

oblíq

uas

delib

eraç

ões

fede

rais

. N

ão

que

o P

entá

gono

en

tend

esse

ou

se

pr

eocu

pass

e

exat

amen

te c

om a

cul

tura

, m

as e

scor

ava-

se n

a cr

ítica

esp

ecia

lizad

a,

usan

do o

s te

óric

os c

omo

thin

k-ta

nks.

Sua

s in

dica

ções

est

avam

ser

vind

o,

até

segu

nda

orde

m, e

no

mín

imo,

par

a pr

ovar

(em

purra

r) ao

Vel

ho M

undo

a he

gem

onia

(tam

bém

) cul

tura

l nor

te-a

mer

ican

a.

Fa

to é

que

as

efet

ivaç

ões

artís

ticas

ele

itas

pela

tes

e ou

sur

giam

mui

to f

eias

ou

mui

to b

onita

s pa

ra a

lmej

arem

um

pos

to i

med

iato

na

seqü

ênci

a da

s ob

ras

de a

rte q

ue c

ompu

nham

as

gran

des

com

pila

ções

clam

avam

at

ençõ

es

dife

renc

iada

s,

desp

erta

vam

de

scon

fianç

as,

não

oper

avam

, enf

im, n

a cl

ave

habi

tual

. Dem

asia

dam

ente

vul

gare

s, e

squi

sita

s

ou h

erm

étic

as,

essa

s po

étic

as e

spal

ham

um

teo

r de

des

conh

ecid

o, d

e

estra

nho,

de

biza

rro,

de

inde

finiç

ão e

nfim

, que

con

firm

a, p

orém

, a s

into

nia

críti

ca d

os a

rtist

as: o

que

pod

eria

ser

mai

s ex

trava

gant

e do

que

a s

ituaç

ão

polít

ica

do m

omen

to e

seu

vín

culo

ineq

uívo

co c

om a

mat

ança

rec

orre

nte

de s

uces

siva

s gu

erra

s?

A

ssim

, ai

nda

que

os

artis

tas

norte

-am

eric

anos

po

uco

ou

nada

tenh

am d

ecla

rado

sob

re s

uas

esta

ções

ideo

lógi

cas,

é p

ossí

vel c

onsi

dera

r

suas

di

retri

zes

esté

ticas

, su

as

prát

icas

po

étic

as,

com

o at

uaçõ

es

intri

nsic

amen

te p

olíti

cas.

Ret

oman

do e

con

clui

ndo

as c

láus

ulas

cru

ciai

s

dos

prog

ram

as d

a va

ngua

rda

hist

óric

a so

bre

a id

entid

ade

do o

fício

: a a

rte

acad

êmic

a, n

ão m

oder

nist

a, n

ão e

stav

a no

mun

do e

eng

anav

a qu

em

esta

va,

serv

ia a

out

ros

senh

ores

e f

azia

a c

ateq

uese

de

suas

cre

nças

cadu

cas.

Mas

a v

angu

arda

tam

pouc

o cu

mpr

iu o

pro

met

ido,

com

o to

do

mun

do s

abe,

não

em

anci

pou

a ar

te o

u o

hom

em.

3 W

AR

HO

L, A

ndy.

New

Yor

k, H

arco

urt B

race

Jov

anov

ich,

197

5.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 135: Apostila Joseph Beuys

190

S

tella

e J

udd

apon

tara

m s

uas

bate

rias

para

a m

etaf

ísic

a da

arte

e

outra

s in

stân

cias

alie

nant

es,

num

dis

curs

o en

vies

ado

de c

onsi

dera

ções

polít

icas

, te

ndo

em

vist

a os

lim

ites

de

liber

dade

pr

econ

izad

os

por

Was

hing

ton

em n

ome

da d

ispu

ta id

eoló

gica

com

o r

egim

e so

viét

ico.

Os

min

imal

ista

s de

sloc

aram

as

re

gras

co

mer

ciai

s:

as

inst

ituiç

ões

e/ou

gale

rias

não

expõ

em a

pos

terio

ri, m

as p

rece

dem

a o

bra,

fin

anci

ando

dire

tam

ente

a

sua

fabr

icaç

ão.

Com

a

Pop

, tra

nsfig

uram

-se

em

supe

rmer

cado

s qu

e ve

ndem

os

conc

eito

s de

pro

duto

s po

r um

val

or m

uito

acim

a do

pre

ço d

os p

rodu

tos

em s

i, co

m a

mes

ma

apar

ênci

a e

valo

r

mat

eria

l: to

rnar

am-s

e be

st-s

elle

rs.

Beu

ys,

Flux

us,

e ou

tras

tant

as

inic

iativ

as e

urop

éias

insi

stia

m e

m ig

nora

r os

truqu

es m

erca

doló

gico

s: n

ão

esta

vam

à v

enda

, tra

nsm

itiam

, ist

o si

m, u

ma

nova

per

cepç

ão. O

s ar

tista

s

proc

urar

am m

udar

a s

i m

esm

os,

e só

dep

ois

se t

orna

ram

mod

elos

de

cond

uta:

fo

ram

, na

tura

lmen

te,

wor

st-s

elle

rs.

As

duas

es

péci

es

de

nego

ciaç

ão a

busa

vam

, ta

lvez

, da

rec

onqu

ista

, vi

ngav

am o

s ar

tista

s qu

e

sofre

ram

os

desm

ando

s do

mer

cado

.

P

rova

dis

so é

que

, ap

esar

do

aspe

cto

apol

ítico

de

mui

tas

obra

s

dest

e m

omen

to, é

legí

timo

argu

men

tar

que

prep

arar

am o

s m

olde

s pa

ra o

radi

calis

mo

polít

ico

e ar

tístic

o qu

e do

min

aram

os

anos

sub

seqü

ente

s. O

s

boom

ers,

sím

bolo

s da

pro

sper

idad

e no

rte-a

mer

ican

a, f

oram

os

cida

dãos

econ

omic

amen

te a

tivos

vis

ados

por

War

hol

na d

écad

a de

196

0, e

os

mes

mos

que

eng

orda

ram

as

esta

tístic

as d

os p

rote

stos

civ

is d

aí p

or

dian

te.

* * *

A

pós

os d

esdo

bram

ento

s po

étic

os d

e W

arho

l e B

euys

, Ste

lla e

Jud

d,

o de

safio

do

artis

ta c

onte

mpo

râne

o nã

o po

de c

onsi

stir

mai

s no

em

preg

o

de

mat

eria

is

excê

ntric

os

– sa

ngue

, fe

zes,

ur

ina,

es

perm

a,

grax

a,

choc

olat

e,

ferro

, ci

men

to

ou

resi

na.

Men

os

aind

a nu

m

mer

o

proc

essa

men

to d

ifere

ncia

do –

nad

a de

orig

inal

idad

es o

cas

ou m

edío

cres

.

Mas

em

com

o in

flam

ar o

inte

ress

e do

púb

lico

– ca

usar

esp

anto

com

alg

o

além

da

utili

zaçã

o de

mat

eria

is e

sdrú

xulo

s, q

ue n

ão m

ais

sust

enta

m

perp

lexi

dade

s e

não

mai

s co

nven

cem

so

bre

um

inus

itado

es

tatu

to

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA19

1

artís

tico.

N

enhu

m

dos

itens

co

ncor

re,

por

si

só,

para

um

se

lo

de

qual

idad

e. A

igno

rânc

ia d

o of

ício

não

pod

e se

r cam

ufla

da s

ob a

apa

rênc

ia

de li

berd

ade

poét

ica.

C

omo

épat

er l

es b

ourg

eois

num

mun

do g

over

nado

, ta

lvez

, pe

la

perv

ersi

dade

do

Bem

? P

ois

é, o

Bem

, a o

rdem

que

par

ece,

mui

tas

veze

s,

perv

ersa

. In

sist

indo

ne

sta

dire

ção,

o

artis

ta

mui

to

prov

avel

men

te

enco

ntra

rá d

espr

ezo

ou d

erris

ão;

na m

elho

r da

s hi

póte

ses,

o t

édio

ennu

yer l

es b

ourg

eois

. A q

uest

ão c

onsi

ste

em c

omo

cont

inua

r a fa

zer a

rte

conc

lam

ando

a p

artic

ipaç

ão d

o pú

blic

o se

m é

pate

rou

enn

uyer

, m

as t

ão

som

ente

cut

ucá-

lo –

bou

ger

les

bour

geoi

s. S

e nã

o é

mai

s po

ssív

el e

,

talv

ez, n

em m

ais

dese

jáve

l esc

anda

lizar

o c

idad

ão, a

vita

lidad

e do

ofíc

io

não

pode

de

pend

er

dos

efei

tos

extra

ídos

de

um

a si

tuaç

ão

cons

trang

edor

a, q

ue –

na

mai

oria

dos

cas

os –

não

tran

sfor

ma

o bu

rguê

s,

mas

des

mor

aliz

a um

pou

co m

ais

a ar

te e

o a

rtist

a.

Ig

ualm

ente

sus

peita

s sã

o as

qua

ntid

ades

e g

rand

ezas

rec

ruta

das,

mor

men

te s

uper

dim

ensi

onad

as. N

úmer

os e

esc

alas

nad

a ab

onam

sen

ão

a at

ençã

o da

míd

ia q

ue s

empr

e m

ira s

uas

câm

aras

e m

icro

fone

s pa

ra o

próx

imo

pato

is d

a m

oda

ou p

ara

o po

tenc

ial

de e

scân

dalo

da

notíc

ia.

Tudo

que

est

as o

bras

ate

stam

é q

ue a

míd

ia n

ão m

udou

a e

stra

tégi

a

anun

ciad

a po

r W

arho

l. E

ste

acab

ou c

eden

do a

seu

fal

so f

ascí

nio,

mas

ficou

a s

ua li

ção

cíni

ca.

* * *

A

te

se

proc

urou

, po

rtant

o,

acom

panh

ar

criti

cam

ente

o

com

porta

men

to in

dica

do p

elos

arti

stas

. A

abo

rdag

em é

tem

átic

a, ja

mai

s

se

pret

ende

u do

cum

enta

l ou

ar

quiv

ístic

a;

o m

étod

o é

icon

ográ

fico,

cont

extu

al e

int

erpr

etat

ivo.

E,

mes

mo

reco

nhec

endo

a r

elev

ânci

a da

ques

tão,

o t

exto

não

se

conc

entro

u na

s co

nten

das

sobr

e as

pos

síve

is

rupt

uras

que

ess

as o

bras

pos

sam

rep

rese

ntar

, ass

unto

que

sab

idam

ente

rend

eria

um

out

ro v

olum

e. A

ssim

, alg

uns

pens

ador

es fo

ram

trat

ados

com

extre

ma

liber

dade

, e

insp

irara

m,

sem

vida

, m

uita

s co

nsid

eraç

ões

tem

eros

amen

te

livre

s,

mas

se

mpr

e de

vida

men

te

indi

cada

s.

O

proc

edim

ento

não

nos

aut

oriz

a a

nega

r a

orig

em d

as r

efle

xões

, e m

enos

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 136: Apostila Joseph Beuys

192

aind

a em

del

egar

res

pons

abili

dade

s pe

las

mui

tas

diva

gaçõ

es e

spal

hada

s

ao

long

o do

te

xto.

O

s au

tore

s re

laci

onad

os

não

fora

m

estu

dado

s

exau

stiv

amen

te, j

á qu

e os

prin

cípi

os d

a te

se ja

mai

s in

cluí

ram

a in

tenç

ão

de c

olar

seu

s ar

gum

ento

s em

nom

es e

ntro

nado

s, d

ispu

tand

o ou

ado

tand

o

pont

os d

e vi

sta

gran

dios

os.

Igua

lmen

te i

mpr

odut

ivos

, am

bos

serv

em

apen

as à

exi

biçã

o de

hab

ilidad

es e

m i

lust

rar

teor

ias.

Tê-

los

sem

pre

pres

ente

no

horiz

onte

é o

mel

hor p

roce

dim

ento

.

É

óbv

io q

ue a

s pr

opos

tas

do tr

abal

ho n

ão fo

ram

dec

idid

as p

or u

ma

prim

eira

im

pres

são,

ou

tão

som

ente

por

um

a in

tuiç

ão a

dest

rada

pel

a

tare

fa d

e es

crev

er s

ua t

ese

de d

outo

rado

. N

o en

tant

o, a

s co

nclu

sões

hesi

tam

ent

re a

firm

ar o

suc

esso

ou

reco

nhec

er a

falê

ncia

do

proj

eto.

Sem

dúvi

da,

tal

dest

empe

ro d

e av

alia

ção

deve

-se

à gr

andi

osid

ade

do t

ema

acol

hido

, e/

ouà

pres

unçã

o da

esc

olha

. O

que

tam

bém

jus

tific

a os

fant

asm

as q

ue a

ssom

bram

as

entre

linha

s do

rel

ato

com

“tu

do q

ue fa

ltou

disc

utir”

. D

esdo

bram

ento

s qu

e, a

o fim

e a

o ca

bo,

talv

ez c

onfir

mem

estra

nham

ente

o ê

xito

das

poé

ticas

e,

ao m

esm

o te

mpo

, da

s in

tuiç

ões

bási

cas

da te

se, q

uant

o à

sua

natu

reza

pro

blem

átic

a m

as e

ssen

cial

men

te

gene

rosa

.

S

ó a

volu

mos

a e

inin

terr

upta

pro

duçã

o ed

itoria

l mob

iliza

da p

or e

sses

artis

tas

desd

e en

tão,

com

pará

vel e

m n

úmer

o ao

s gr

ande

s M

iche

lâng

elo,

Van

Gog

h ou

Pic

asso

, sã

o da

dos

sign

ifica

tivos

que

cha

mam

a a

tenç

ão

para

os

ines

gotá

veis

pro

blem

as e

ngen

drad

os p

or s

uas

obra

s. F

azen

do

um jo

go d

e ga

to e

rato

, mes

mo

as m

elho

res

apre

ciaç

ões

críti

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PUC-Rio - Certificação Digital Nº 9916158/CA

Page 137: Apostila Joseph Beuys

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Dez

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ode

2006

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1 Intr

oduç

ão

Ihaveneitherthescholar’smelancholy,whichisemulation;northemusician’s,whichis

fantastical;northecourtier’s,whichisproud;northesoldier’s,whichisambitious;northe

lawyer’s,whichispolitic;northelady’s,whichisnice;northelover’s,whichisallthese;butitis

amelancholyofmineown,compoundedofmanysamples,extractedfrommanyobjects.

WilliamShakespeare,Asyoulikeit

Olugar-melancoliaéaqueledacontingênciaradicaldaarte,nosanos1960

e1970,talcomopropostapelasobrasdofrancêsYvesKlein,donorte-americano

AndyWarholedo

alemãoJosephBeuys.Orientadopeloduploestatutoda

produçãoque,aomenosdesdeoiníciodaartemoderna,sedivideentreabuscada

originalidadetípicadasbelasarteseamultiplicidadecaracterísticadaindústria,

esselugardimensionaacrisecontemporâneadasubstânciapoéticaapartirda

iminentesaturaçãopúblicadaarte.Umasubjetividadeartísticafragmentária

perde,definitivamente,arealidadedaobracomooespaçoíntegrodapossibilidade

deaçãoeconhecimento.Emcontrapartida,segundoanossahipótese,elaaponta

novascoordenadasparaacapacidadeprodutivadohomem.

Aexperiênciadeumaesculturaoudeumapinturamoderna“autônomas”

dálugaraum

envolvimentohesitante,porémpersistente,um

sentimentodefalta

simultâneoàresistênciadessesartistas,capazdegarantir,enfim,asobrevivência

daarte.Seapresençadaobranãomaisresumeoconceitodeartecomorealização

existencialdoartista,suaininterruptaconstruçãodarealidade,elacircunscreve

umalatênciaexistencialcontemporâneacapazdemanterolugar-melancoliacomo

alertaàreconciliação

dohomem

consigomesmoapartirde

umnovo

envolvimentopositivocomarealidade.Conscientesdasváriasmediaçõessociais

sofridaspelaobradearte,osartistasaabordamapartirdessadimensão.Eles

sabemqueaobra“perece”aolongodorápidoprocessodeinstitucionalizaçãoda

arteeseucondicionamentoaum

mercado

cada

vezmaisinflacionado.E

incorporamtalcondiçãohostilàssuaspráticasartísticas.

Acomeçarpelopróprio

meiodearte,doqualaparentementedesistem,

masdeonde,defato,resistem.Grave,Beuysseretiradaquele“guetopseudo-

cultural”àqualaarteteriasereduzido;umcéticoWarholabandonaapinturaao

liberarsuasalmofadasprateadasdajaneladagaleriadeLeoCastelli–“umobjeto

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Page 138: Apostila Joseph Beuys

16

amaisasemovimentarporaí”,reconheceoartista-;eo“inconseqüente”Klein

decreta-sede

férias1.Em

talestado

deexceçãopoética,atuam,porém,e

forçosamente,noprópriomeiodearte.É

aqueleguetoqueBeuysocupacoma

explicaçãodesuaartedeinvestimentoexistencial;apesardeseuódioporpinturas

eobjetosdemodogeral,Warholprosseguecomsuare-fabricaçãoininterrupta;

Kleincontinuaamultiplicarsuastelasazuispelasgalerias.

Nossosartistasconscientementeseapropriamdarealidadedeconsumode

seustrabalhosparaampliarseuslimitespoéticos:atravésdaquelesobjetos

perecíveis,nãodepois,masali,nomomentodenossaexperiênciacomeles.E,de

possedessepungentesaber,elesasseguramasobrevivênciadaarte.

Lugarintermédioda“correntecontínuadecriações”2,formadapelosatos

decriaçãodoartistaedoespectador,aobradearteapresenta-senoseuaspecto

maisindigente.Comoseocorresseumabaixaderesistênciaentreosdoispólosda

conexãoestética,aobrainstauraumaespéciedecurto-circuito.Umalatência

estética:aexperiênciadosmonocromosdeKlein,dassériesefilmesdeWarholda

décadadesessentaedaesculturabeuysianadosanos60/70guarda,emdiferentes

graus,algodeumainérciaentreseusrespectivosestímuloseasrespostasporele

provocadas.DoencantoimediatocomomaravilhosoazulIKBparaosidênticos

monocromosvendidosapreçosdiferentesnaexposiçãodeMilão,oudamanifesta

indiferençanosfilmescomobjetosparadosde

Warholparaum

estranho

envolvimento,nóstransitamos-juntamentecomosartistas-entreospólosda

crençaedadúvidaradicaisacercadaarte.Destituídadacertezapelapresença

plenadaobradearte,umaverdadedaarteécomoqueperseguida,tantopelo

espectadorquantopeloartista,mantendovivaepulsanteessaverdade.

Essaspráticasartísticasproblematizam

osfatoresquedeterminam

aobra

deartecomovalor,asaber,oartistacomocriadororiginal,osmétodosetécnicas

deproduçãoe/ouaestruturainstitucional.Assumem

acrescentecirculaçãodas

1“Bienquenoussoyonstoujours,nousl’ècoledeNice,envacances,nousnesommespasde

touristes.Voilàlepointessentiel.Lestouristesviennentcheznousenvacances,noushabitonsle

paysdevacancesquinousdonnecetespritdefaireconneries.”KLEIN,Yves.

Kle

in,

Ray

sse,

Arm

an:

des

Nou

veau

xR

éalis

tes.In:YvesKlein(Cat.Expo.).Paris,GEORGESPOMPIDOU,

1982,p.263.

2“Refiro-meàatividadedoartista,quenoatodecriaçãotemumvalordistintodovalordoobjeto

noqualfinda.Nessesatos,pode-seatingirdimensõesdepercepçãoeexperiênciaquenuncasão

inteiramenteacessíveisaosespectadores,inclusiveparaoartistacomoespectador.Para

compreenderaobra,oespectadortemdealcançá-laporumatocriativopessoal.”ROSENBERG,

Harold.

Obj

eto

Ans

ioso.SãoPaulo,Cosac&Naify,2004,p.279.

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17

obrasdearteemexposiçõesepublicações,aindistinçãoentrelowehighartou

entrearteecultura,eassimguardamalgodadeliberadaconfusãodegêneros

comandadapeloDada.

Olugar-melancoliaéaqueledaartedasaúde,comobemdefineKlein.

Afinal,menosaproduçãodedeterminadaobra,aliestáem

jogo,sobretudo,a

saúdeespiritualdoartista.Semalegitimaçãodaarteapartirdepropriedades

intrínsecasda

obra,ou

agarantiade

sua“verdade”atravésdascategorias

tradicionaisdepinturaeescultura,essesartistassedecidempelaatividadeem

detrimentodoobjeto.Umaatividadeexplícitanas“performances”deKleine

Beuysquecompreendefundamentalmenteoposicionamento(nossoeodoartista)

naobra–comonassériese,principalmente,nosfilmesdeWarhol,quepropõem

umaincômodacontemplação,comosenosobrigasseanosperguntaranós

mesmoscomonosportamosemrelaçãoaeles.

Num

exercícioeminentementecrítico,muitomaisdo

queteórico,

propomosentrarnoslugaresdemelancoliadeKlein,WarholeBeuys,obrasmuito

distintascapazes,entretanto,derevelardiferentesfacetasdasensibilidadeabalada

dohomem

contemporâneo.Comentusiasmo,indiferençaouum

gravehumor,o

pintorfrancês,odesignernorte-americanoeoescultoralemãoapresentam

novas

condiçõesde

produção

simultâneas

à(im)possibilidade

deexistênciana

contemporaneidade.

Oquefazerquandojátudofoifeito?Porqueagirquandotodaaçãoé

absorvidahomogêneaeacriticamente?Comoseportardiantedeumarealidade

aparentementerefratáriaaqualquervalor?Aderindoestritamenteaela,parece

resignar-seWarhol,queencontranacriaçãodeprodutosounafabricaçãodeobras

dearte

uma“saída”só

aparentemente

cômoda.

Assim

eleinaugura,

estrategicamente,suaprópriaindústriadearte-espaçodesuspensãoprodutiva,

vácuo3

-ondeseredefineacondiçãoparaotrabalhodofazerartenaNovaIorque

dosanos1960.Aindaqueessaeoutrasdesuaslacônicasobservaçõesnão

tematizem

frontalmenteamelancolia,comonãolernovácuodoartistanorte-

americanoapossibilidadedesobrevivênciadaarteemtemposdemassificaçãoe

3“Ithinkwe’reavacuumhereattheFactory:it’sgreat.Ilikebeingavacuum;itleavesmealone

towork(…)I’mjustdoingwork.Doingthings.Keepingbusy.Ithinkthat’sthebestthinginlife:

keepingbusy.”WARHOL,Andy.ApudBERG,Gretchen.

And

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arho

l:M

ytr

uest

ory.In

KennethGOLDSMITH(ed.).I’llbeyourmirror:theselectedAndyWarholinterviews.New

York,Carroll&GarfPublishers,2004,p.87.

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Page 139: Apostila Joseph Beuys

18

consumo?Warholpropõeetornapúblico,naFactory,um

verdadeirolaboratório

daperversãododuploestatutodaatividadeprodutivado

homem

comsuas

serigrafiaseseusfilmesexperimentais.

Pareceentãolícitoestenderanoçãowarholianadevácuoparaopróprio

lugar-melancolia:somentesobcondiçõesespecíficasde

“pressão

artística”

adquire-seacondiçãosinequanonparafazerarte

.Seupontodepartida:asobras

comomelancólicosleftovers,sobraspoéticasqueocupamolugar-melancolia.Tão

corriqueiroquantopreciso,otermoleftover4,rapidamentemencionadoporAndy

WarholemsuadivertidaFilosofia,acabaporindicaromododefuncionamentodo

seupróprioprocedimentoartístico.Oartistare-fabricacelebridades,acidentes

automobilísticos,latasdesopa,produtosdeconsumocotidiano.Umtrabalhode

reciclagem,enfim,dosobjetos/imagensjádevidamenteconsumidos.Warhol

exageraomecanismodarepetiçãopeloqualdeterminadoobjetofoidescartadoe

“realiza”obracomoumaespéciederevigoramentodessemesmomecanismo.Sua

interferência(discreta)nãosedá

sobretaisobjetos/imagensesimna

sua

disposição,nastelas,nosfilmes,noslugaresoficiaisdaarte,capazdesurpreender

oespectador.Assimoartistapotencializaosleftoversdasociedadeamericanaao

reproduzi-losedeslocá-losparaumagaleriadearte,ondepassam

asersuas

própriasobras/leftoversartísticas.

Adiferençaentreapotênciapoéticaearealidadedeconsumodaobra

decideseufuncionamento,aquidefinidocomomovimentodoleftoveraovazio.

Movimentorealizadopelosartistasepornósrefeitonaexperiênciadaobra,capaz

derevigorarnossaexistênciasimultaneamenteàpromoção

donossore-

envolvimentopositivocomarealidade.Porexemplo,diantedo

leftover

warholiano,filmeousériedeserigrafias,nósnossentimosmuitopróximosao

torporcotidianocontemporâneo.Renteaocotidianosocialdoconsumonorte-

americano,oartistatomaimagensdescartadaseasmanipulanascamadas

serigráficascomounidadestemporais.Comoseretirasseoconteúdo(supérfluo)

dedeterminadoevento,eleparecedeixarparaoespectadorsomenteodiferencial

dotempo,queentão“aparece”pesado,talqualopresenteextensoda

contemporaneidade.Assimpercebemosomovimentodoleftoveraovaziomenos

4“Ialwaysliketoworkonleftovers,doingtheleftoverthings.Thingsthatwerediscarded,that

everybodyknewwerenogood.Ialwaysthoughttheyhadagreatpotentialtobefunny.Itwaslike

recyclingwork.Ialwaysthoughttherewasalotofhumorinleftovers.”WARHOL,Andy.

The

Philo

soph

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and

Back

Aga

in).NewYork/London,1975,p.93.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

19

comodesenvolvimento

deumalinguagem

específicado

quecomoo

revigoramentodastécnicasdereproduçãoempregadas.

DomesmomodoofazemKleineBeuysaoproporarevitalizaçãoda

pinturaedaesculturaque,sempassarpelarenovaçãodalinguagempictóricaou

escultórica,

sebaseia

noentendimento

dasobras-leftovers

emsuas

potencialidadesespecíficas.ParaKleinapotênciapoéticacoincide

coma

sensibilidade,com

odesejo,queé“manipulado”em

objetosoutelas-“cinzas”

(finitas)do

monocromoasinalizarainfinita

potênciadapintura.JáBeuys

empreendesuasaçõesapartirdalocalizaçãodapotênciapoéticanopensamento,

ondeseencontraemfluxoconstante.Assim,elebemreconheceaincapacidadede

seuspálidosobjetosem

conservaraforçaoriginaldesuasações.Aomesmo

tempo,porém,elesconseguemincitaroespectadoracolocarquestões,ouseja,

acionamseupensamento.

Identificadoscomcertas“categorias”artísticas,aindaquenelaselesnãose

esgotem,osdiferentesmovimentosdo

leftoveraovazioseguem

semprena

direçãodeum

alertaacercadasnossascapacidadesvitais.Irredutívelàrealidade,

apotênciapoéticaconstituiacondiçãoprecípuadodarformaaomundo.E,

conseqüentemente,anósmesmos.

Termoquegaranteasobrevivênciadaartenolugar-melancolia,oleftover

guardaalgodo

queGiorgioAgambennomeiadisponibilidade-para-o-vazio

-

noçãofundadasobreasoperaçõesefetuadaspeloreadymadeepelaPopArtque,

intencionalmente,confundemedeturpamoduploestatutodaatividadepoéticado

homem.Aodistinguirocaráterdapresençadaobradeartedapotencialidade

característicadoprodutoindustrial,AgambenreconhecenoreadymadeenaPop

Artobjetoshíbridosque,respectivamente,inviabilizam

apassagem

daesferado

produtotécnicoàqueladaobradearte,edoestatutoestéticoàqueledeproduto

industrial.ReadymadeePopnãopertenceriam,então,verdadeiramentenemà

atividadeartísticanemàproduçãotécnica.Comosenãoseoferecessemnemao

prazerestéticonemao

consumo,“permanecem

tambémsobomodode

disponibilidade,namedidaem

querealizam,aomenosporum

momento,a

suspensãodosdoisestatutos(...),

apresentando-secomoumaverdadeira

disponibilidade-para-o-vazio”

5 .

5AGAMBEN,Giorgio.L

’hom

me

sans

cont

enu.Paris,Circé,1996,p.108.

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Page 140: Apostila Joseph Beuys

20

Oqueinteressanessaespécieestranhadedisponibilidadeéoíndicede

umapredisposiçãoquenãoseesgotanaobra.Talcaráterdedisponibilidade-para

seráverificadonolugar-melancoliafundamentalmenteapartirdeumacionamento

estético.Afinal,mesmodemonstraçõesmais“conceituais”,comoadoslivrosde

Klein(YvespeintureseHaguenaultpeintures)ouadascaixasdesabãode

Warhol,exigemoenvolvimentosensíveldoespectador.

Faz-senecessário,no

entanto,distinguirasescalasdasoperaçõesde

DuchampeWarhol.AtéserreeditadoporArturoSchwarzem1964,oreadymade

tinhacomoespectadoracomissãodaSociedadedosArtistasIndependentesouo

próprio

círculodeparesdoartista.ElesóganhavisibilidadepúblicanaNova

Yorkde1964-coincidentementeoanoemqueascaixasdesabãoBrilloeasde

catchupHeinzsãoexpostasnaStableGallery,namesmacidade.Asimultânea

conquistadeum

públicopeloreadymadeepelaobrawarholianasedeve,como

sabemos,menos

aumamesmacondição

deplanejamentodasrespectivas

operaçõesdoqueaoambientepropícioparasuaacolhida–aqueledaiminente

BusinessArtem

meadosdosanossessenta.Assim,Warholnãosóexpõe,mas

mentalizasuasobrasapartirdeumpúblico:suaconcepçãopoéticaseformanuma

dimensãoinexoravelmentepúblicadaarte.Poroutrolado,semsepreocuparcom

umainauguraçãoformal,Duchampafirmacomoreadymadeoatopoéticodeuma

atípicasubjetividadeartística.

JáoaspiranteaBusinessArtistincorporaem

suacooperativaartísticaa

rarefaçãodessasubjetividadequenãomaisseformaemconflitocomoambiente

públicoesimapartirdele.Agoraoartistatrafegapelairredutívelrealidade

institucionaldaarte.Parafazê-locom“desenvoltura”–nãosemumaprovocação

–elaboraumapersonaartísticapública.Conformadocomaindigênciadeseus

leftovers,Warholresistecomseu“lixo”assimcomoKleinofazcomassuas

cinzas-“lembrançasdeumavidadeespetáculo,pobrescoisasmortas”6 ,segundo

DoreAshton,paraquem

avidadaartedeKleinteriadesaparecidonosobjetos

expostosemsuaprimeiraretrospectivaemNovaYork.A

vidadesuaarteé,no

entanto,revividaemnossaexperiência:asmesmascinzasqueconsubstanciam

a

suspensãodomovimentodeKleinem

direçãoàscoisasdomundoreativam

o

6AssimDoreAshtondescrevesuasimpressõessobreaprimeiramostraretrospectivadeYves

KleinemNovaYorkem1967.ApudBUCHLOH,Benjamin.B

euys

:the

Tw

iligh

toft

heId

ol.In

RAY,Gene(org)JosephBeuys:mappingthelegacy.NewYork,D.A.P./TheJohnandMarble

RinglingMuseumofArt,2001,p.200.

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21

nossoprópriomovimento.É

comoseseguíssemosos“dutos”depigmentoazul,

refazendonolugar-melancoliakleinianoomovimentodaquelascinzasfinitasao

infinitodasensibilidade/princípiodapintura.Num

continuumcomaobra,esse

revigoramentonãopretende,éclaro,mudaroestadodascoisas,esimalterar

nossacondutafrenteaessestatusquo.

Menosàqualidadedoobjeto,Kleinremeteàintensidadedofenômeno,

explícitanaparedeenafontedefogo(criadasparaaexposição“Monochrome

undFeuer”,noMuseuHausLange,em

Krefeld).Praticamentetemadopintor

francês,essaexcitaçãodeânimorevelaumaética–queelechamaéticadoazul-

que,além

deum

ethosartístico,écomoquevivenciadaliteralmentenassuas

ações,permanecendoemseusleftovers.Taléticaéumaevidênciaazul–“para

serazul/nãodevehaverperguntas.”7

DistantesdoirrestritoentusiasmodeKlein,aindiferençadeWarholouo

absolutocomprometimentoexistencialdeBeuystambémconformam

condutas

artísticas,aquireconhecidascomodignidadedissimulada8.Farsante,charlatãoou

acomodado,oentusiasmadoKlein,oxamãBeuyseofriodesignerWarhol

trafegamporentreadúvidaeacrençanaarte,aexigirdenósumatomadade

posição.Afoito,Kleinnosdáum

ultimatonaconhecidamontagemfotográfica“o

pintordoespaçosejoganovazio!”.Simplesmenteum

homem,nem

homem

da

religião,nemhomem

daciência,nemhomem

daarte9(aomenosdaquelaem

vigor),YvesKleinseatiraaomundonumaintensidadedemovimentocompatível

comaplenacapacitaçãohumana.Seriaosaltoasoluçãopoéticadomovimento

espiritualrecalcadoquefazsurgiramelancolia?Kleinsimulaoriscoextremo

implícitonaatividadedoartista–umtipodeduelocomamorte10.

*****

7STEVENS,Wallace.ApudROSENBERG,Harold.

Obj

eto

Ans

ioso.Op.cit.,p.168.

8Valemo-nosdaexpressãokierkegaardiana“dignidadecalma”,utilizadapelofilósofoparadefinir

oestadoíntegroqueresultadoatodaescolha,afim

de“ganharoqueéacoisaprincipaldavida,te

reganharvocêmesmo,nacondiçãoquevocêpossuioudepreferênciaquevocêqueirapossuira

energianecessáriaparafazê-lo.”KIERKEGAARD,Sören.O

ubi

enO

ubi

en.Paris,Gallimard,

1943,p.479.

9KLEIN,Yves.

Kle

in,R

ayss

e,A

rman

:de

sN

ouve

aux

Réa

liste

s.InYvesKlein(Cat.Expo.).

Op.cit.,p.264.

10AGAMBEN,Giorgio.L

’hom

me

sans

cont

enu.Op.cit.,p.13.

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Page 141: Apostila Joseph Beuys

22

AmelancoliaatravessaahistóriaculturaldoOcidentedesdobrando-see

renovando-senasmaisdiversas

situações.Assuntoda

medicinadesdea

Antigüidade,elapercorreafilosofia,aarteealiteraturamenoscomoconceitodo

quecomoumanoção“quecadaum

acreditacompreendersomenteem

seus

própriostermos”11 .“Farpanacarne”deumamodernidade“quedesdeosgregos

nãocessadenascer,massemjamaisterminardesedesligardesuasnostalgias,de

seuslamentos,deseussonhos”12 ,amelancoliareúneaalegriaeapenadohomem

frenteaum

extintosentimentounitário

devida.Doce,triste,amarga,maldita,

severa,divina,intensa13 ;doença,estado,disposição,sentimento

subjetivo

passageirotransferidoparaobjetosinanimadoseambientes,elaassumea

plasticidadedonossolugarnomundo,oque“estejaalémdenós,massejanós”14.

Sentimentosemfinalidadenempropósito,amelancoliaenvolveohumano

emsuafrouxaextensão

àscoisasdo

mundo.Emersonbemreconheceu

a

melancoliacomosilenciosa,poiscobreosentimentodacondiçãodohomemem

suapercepção/ligação/inquietaçãocotidianaem

relaçãoaomundo.Descendente

daangústia,“liberdadepresa”,paraVirgiliusHaufniensis,amelancoliaéuma

formadedesejo,quetoma“forma”em

imaginação,conhecimento,pensamento,

etc.Eexatamentecomosentimento,nãoháumacoisa,situaçãoouacontecimento

específicoquepossasertomadaedescritaindependentementedaquelesentimento

elemesmo.Sentimentosemobjeto,amelancolianãosereduzaum

sintomaoua

umadoença,bemsabeRobertBurtonqueserecusaadiscutiroassunto15 .Assim

tambémofazStarobinski,quandonãodecidepelamelancoliacomocausaou

efeitodamodernidadeemBaudelaire:

11Naintroduçãode“SaturneetlaMélancolia”,RaymondKlibanskycomparaamelancoliaàtorre

deBabel,umaprovávelalusãoaRobertBurtonquereconheceemAnatomiadaMelancolia:“The

TowerofBabelneveryieldedsuchconfusionoftonguesasthisChaosofMelancholydothvariety

ofsymptoms.”SaturneetlaMélancolie.KLIBANSKY,Raymond;PANOFSKY,Erwin;SAXL,

Fritz

.Sa

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eet

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istor

ique

set

Philo

soph

ique

s:N

atur

e,R

elig

ion,

Méd

ecin

eet

Art.Paris,ÉditionsGallimard,1989.

12BONNEFOY,Yves.Prefácio.InJeanSTAROBINSKI.

Mél

anco

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mir

oir:

troi

sle

ctur

esde

Baud

elai

re.Paris,Julliard,1989,p.7.

13BURTON,Robert.

The

Ana

tom

yof

mel

anch

oly.NewYork,NewYorkReviewBooks,2001,

p.11.

14STEVENS,Wallace.O

Hom

emdo

Vio

lão

Azu

l.InPoemas.SãoPaulo,Cia.dasLetras,1987,

p.62.

15“Andwhetheritbeacauseoraneffect,adiseaseorsymptom,letDonatusAltomarusand

Salvianusdecide;Iwillnotcontendaboutit”.BURTON,Robert.

The

Ana

tom

yof

Mel

anch

oly.

NewYork,TheNewYorkReviewofBooks,2001,p.169.

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23

“Asdestruiçõesereconstruçõesdourbanismodomeiodoséculo,com

suamisturade

monumentalidadeefunçãorepressiva,sãoumadascausasdospleenedosentimentode

exílio?Ousãoelesevocadosporqueosentimentomelancóliconãocessaatéqueencontre

umobjetoaoqualapliqueseutrabalho,fixandoosensodaperdasobretodaimagemque

aceitadelereenviarajustificaçãodeseuprópriotédio?”16

Mas,nãoseriamaindeterminaçãodaesculturasocialbeuysianaouo

devaneiodarevoluçãoazulkleinianaasrespostasartísticascompatíveiscomo

flagrantecolapsode

modelos

epistemológicos

clássicos,inclusiveaqueles

atinentesàprópriaarte?Umnovohumanismoparaonovohomempropostopor

Klein,aarteantropológicaconcebidaporBeuys,oumesmoadesencantada

vontadewarholianadeserumamáquina,visamtodasaumareconciliaçãodo

homem

comelemesmo.Seasprimeiraspossuemotípicocaráterplanetárioda

tradiçãouniversalistadopensamentoeuropeu,a“proposta”donorte-americano

levaadianteafamosadesibiniçãoculturalnorte-americana.Todaselas,porém,

visamaumaamplarevisãodacapacidadedohomem.Diantedailegibilidade

dessequadro,propositalmenteassumimosum

termovagoerico,quenosabreum

universotãovastoquantodesgastado.

Deorigemgrega,apalavramelancoliasignificabilenegra,um

dosquatro

humoresquecirculam

nocorpodohomem

erespondemporsuaconstituição,

segundodoutrinade400AC.quepermanececomoesquemaoperatóriodurante

maisdedoismilanos.Talesquemasofre,porcerto,desvios,algunsdeles

exemplarmenteinterpretadosporPanofsky,SaxleKlibanskynocélebre“Saturno

eaMelancolia”.Longedenóspretenderum

exaustivohistóricodotermo,vale

destacarcontudoalgumasdasreferênciasabordadasaolongodenossapesquisa,

namedidaem

queaidentificaçãodamelancolianoencontrocomasobrasfoi

condicionadapelavastaliteraturaexistentesobreotema.

Apósseunascimentocomodoençanosaforismosde

Hipócrates,a

melancoliamereceserdestacadaem

“ProblemaXXX,1”,um

dostrintaeoito

livroscurtosquecompõe“Problemas”,obraatribuídaaAristóteles.Se,porcerto,

estenãofiguraentreostextosmaislidosdofilósofo,duasoutrêspáginasde

“ProblemaXXX”,quetratado

pensamento,da

sabedoria

eda

criação,

influenciaram

ainterpretaçãodogêniohumanomaisdoquetodososoutros

escritos.AobradeAristóteles,aliás,seriaumadaquelasque,semdestacar-sepor

seuestilooupeladensidadedepensamento,mantémsuafulguraçãoinalterada:

16STAROBINSKI,Jean.L

aM

élan

colie

auM

iroi

r:tr

oisl

ectu

resd

eBa

udel

aire

.Op.cit.,p.64.

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Page 142: Apostila Joseph Beuys

24

“Umsentimentodefamiliaridadenosligaa[obrascomoessa]”,afirmaofilólogo

JackiePigeaud,paraquemtaisobrasfalariamde“evidências,ouantes,deidéias

querecebemosnãosabemosmaisdeonde(...)narram

lugares-comunsdenossa

própriacultura(...)”17.

“Porquerazãotodososqueforamhomensdeexceção,noqueconcerneà

filosofia,àciênciado

Estado,àpoesiaou

àsartessãomanifestadamente

melancólicos,ealgunsapontodeseremtomadospormalesdosquaisabilenegra

éaorigem,comocontam,entre

osrelatosrelativosaosheróis,osquesão

consagradosaHércules?”18Semquestionarofatodequetodoserdeexceção,nos

maisvariadosdomínios,éummelancólico,Aristótelesofereceexemploseaborda

diretamenteascausasdamelancolia-oexcessodebilenegra,resíduoinstávelpor

excelência.

SegundoMarsílioFicino,“ProblemaXXX”corroboraacélebrefórmula

platônica,em

“Teeteto”e“Fedro”,segundoaqualoshomensdegêniosão

habitualmentearrebatados.Sóexistemgêniosentreoshomenstomadosporalgum

furor.Aristótelesinova,contudo,aointerpretarofurordivinodePlatãocomouma

sensibilidadedaalma.Elemedeagrandezaespiritualdeum

homem

porsua

capacidadedeexperiênciae,sobretudo,desofrimento,empreendendonotextoa

grandetarefadodeslocamentodanoçãomíticadefurorpelanoçãocientíficade

melancolia.19Graçasàcausalidadefísicadabile,essetextonosconfirmaquese,

porcerto,énecessárioumdom20,ooutroestáemnós.Assimoestagiritasubstitui

agratuidadedaescolhadivinapeloacasodamisturaquenosconstitui.O

problema,então,dizrespeitoaumafisiologia:sãoascondiçõesdonossocorpo

quenosdeterminamafalar,enãoum

Deusquefalapornossavoz.

17PIGEAUD,Jackie.Apresentação.ARISTÓTELES.

OH

omem

deG

ênio

ea

Mel

anco

lia.

OPr

oble

ma

XX

X,1.RiodeJaneiro,Ed.NovaAguilar,1998,p.7.

18ARISTÓTELES.

OH

omem

deG

ênio

ea

Mel

anco

lia.O

Prob

lem

aX

XX

,1.Op.cit.,p.81.

19PANOFSKY,Erwin;SAXL,Fritz;KLIBANSKY,Raymond.

Satu

rne

etla

Mél

anco

lie.Op.

cit.,p.89.

20AssimcomoPlatãoafirmaqueninguémseriabompoetasemosoproinspiradocomparávelà

loucura,Aristótelesescreve,naRetórica,sobreaorigemdapoesianainspiração.Apoesiasupõe

entãoapossessãodopoetaporumaforçadivina,MusaouApolo,um‘foradesi’maisoumenos

definido.Oessencialécompreenderquerefletirsobreapoesiaexigequeseimagineaomesmo

tempoum

dom,qualquercoisapelaqualoindivíduonãoéresponsável,eumaarte,istoé,uma

técnicahabilidosa,egênerosinstituídos,queimplicam,aocontrário,umaeducaçãoeumamestria.

ÉexatamenteistoquefundaacríticaquePlatãofazdapoesianodiálogoÍon.JackiePIGEAUD.

Introdução.ARISTÓTELES.

OH

omem

deG

ênio

ea

Mel

anco

lia.

OPr

oble

ma

XX

X,

1.Op.cit.,p.47/8.

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25

Filhodemédicos,conhecedordafisiologiadeseutempo,Aristótelesnão

fazdadoençaedesuadescrição,contudo,oessencialdasuaobra.Aindaque

analiseascaracterísticasfísicasdamisturadabilenocorpo,suainstabilidade

entrecalorefrio,oquelheinteressaéocomportamentodesseindivíduodoentioe

excepcionalqueéomelancólico.Pois,em

váriaspassagens,oautordistingueo

doentiododoentee,conseqüentemente,oexcessofortuitodapresençaconstante

deumaconcentraçãodebilenegraemumindivíduo.

Maisinteressadonocomportamentodohomemdoquenadoença,oautor

destacaosefeitosdovinho,agradaçãodosestadosdeembriaguezemdetrimento

daquantidadedolíquidoabsorvidapeloindivíduo.Abilenegraagecomoo

vinho:ambos“modelamocaráterdecadaum”.Ébriooumelancólico,ohomemé

projetadomaisoumenosprogressivamenteforadesimesmo,em

direçãoaos

outros.Aloquacidade,apiedade,oamorporoutrem,aafeiçãoexageradaou

mesmoaagressividadeeaviolênciasãocomportamentosqueimplicamarelação

comooutro

21.Ainconstânciadetectadainicialmenteremeteaessemovimento

essencial.“Portanto”,resumeAristóteles,“porqueapotênciadabilenegraé

inconstante,inconstantessãoosmelancólicos”.Mas“épossívelquehajaumaboa

misturadainconstância”,afirmaofilósofo,quesugereum

frágilequilíbrioda

inconstânciacapazdegarantiraexcelênciado

melancólico.Econcluipela

existênciadeumasaúdedomelancólico:“todososmelancólicossão,portanto,

seresdeexceção,eissonãopordoença,maspornatureza”.

Afluidafronteira

entre

normalidadeepatologiateria

imposto

o

reconhecimentoda

melancolia

comodisposição

emoposição

aum

estado

permanente,viabilizando,assim,atransformaçãodadoutrinadosquatrohumores

emumateoriadecaracteresetiposmentais.

Amelancoliaesuainserçãonodomíniodafisiologia(filosofianatural)

repercuteem“Trêslivrossobreavida”deMarsilioFicino,livrosobrebem-estare

saúde,emparticularsobreosriscosdesaúdeassociadoscomavidaintelectual.

Aoanimaraligaçãoaristotélicaentrebrilhoemelancoliaefazerdestaum

tema

queressoapelaRenascença,anoçãodemelancoliapropagadaporFicinoteria

mesmoinfluenciadoamaisquecélebregravuraMelencoliaIdeAlbrechtDürer.

21PIGEAUD,Jackie.Introdução.ARISTÓTELES.

OH

omem

deG

ênio

ea

Mel

anco

lia.

OPr

oble

ma

XX

X,1.Op.cit.,p.25.

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Page 143: Apostila Joseph Beuys

26

Apartirdodestaquedadonotextoaristotélicoàcaracterísticacentralda

melancolia-instabilidade/relaçãocomooutro-,deve-sedistinguir,contudo,a

individualidadegregadaquelamoderna.Seamelancoliaremetetantoàrelaçãoda

almacomocorpoem

umindivíduoquantoàdestecomooutro/sociedade,tais

relações

obviamentese

configuram

diferentementena

Antigüidade

ena

modernidade.Nomundoantigo,aconstituiçãodaidentidadeéorientadaporum

marcovalorativoconcedidodeantemãoaalgodistintodoeu,queregulaa

condutaapropriadaacadapessoa.Acaracterizaçãodaindividualidadeédadapela

conexãocomumacomunidadeconstituída,aqualtemporalvoemodelo.Jána

modernidade,háaexpressãodeum

núcleointerno,inscritoemsi,cujoalcanceé

antesembaralhadodoquefavorecidopelasrelaçõessociais22 ,oqueinstauraum

conflito. Em

contraposição

aohomem

antigoquesofrede

algumacoisa,o

indivíduomodernosofresemoutroobjetoquenãosimesmo23 .Afiguraaladade

Dürer,porexemplo,écriaçãodoartistaque,abandonadoporDeus,conformaem

obradearteamelancoliacomocrescentedistânciaentreaconsciênciaeodivino.

NanotávelgravuraMelencoliaI,cujainfluênciaseestendepelaEuropapormais

detrêsséculos,ErwinPanofskyidentificaaelevaçãodamelancoliacomopaixão

(temperamento,doençaou

estadodeespírito)aumacondiçãointelectual.A

gravurareúneolamentoeoentusiasmocriadorcomoosextremosdeumamesma

disposiçãodopróprioDüreracercadoslimitesdasuatãoamadaGeometriapara

lidarcomsuasinfinitasimagensinternas.Agoradetentordetodaaautoridade

sobreaobra,oartistamanifestasuaconsciênciaagudaacercadaintransponível

distânciaentreumarepresentaçãocompletamenteinterioreaproduçãoconcreta

daobra-oquedeterminaoestadodealertadacriaturaalada.

DaíasuainterpretaçãoporPanofskycomooauto-retratoespiritual24do

artistaalemão.Conscientedainadequaçãoentreumainfinitapotênciacriativae

suaefetivaconcretização,Dürersabequesuaatividadeconsistenaproduçãodele

22LIMA,LuizCosta.L

imite

sda

voz

(Mon

taig

ne,S

chle

gel,

Kaf

ka).RiodeJaneiro,Topbooks,

2005,p.26.

23Ohomem

gregosofredequalquercoisa,éprecisoum

objetoparaqueum

sofrimentoexista,

enquantoohomem

moderno

sofresimplesmente,elepodeserelemesmooobjetodeseu

sofrimento.VerVERNANT,J.-P..ApudEHRENBERG,Alain.L

afa

tigue

d’êt

reso

i:dé

pres

sion

etso

ciet

é.ÉditionsOdileJacob,1998,p.255.

24PANOFSKY,Erwin.L

avi

eet

l’art

d’A

lbre

chtD

ürer.Paris,Hazan,1987,p.64.

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27

mesmo–reúneoprazereadordesersimesmo,eixoem

tornodoqualgirao

melancóliconaqueleséculoXVI.

Amelancoliaeradetalmodo“assimiladaàconsciênciadesiquenão

haviaquasenenhum

homem

distintoquenãofosseautenticamentemelancólico,

ouqueaomenosnãosepassassecomotal,aosseusprópriosolhosassimcomo

aosolhosdeoutros.”

25Com

apossívelexceçãodaFrança,queteriafeito“guerra

àtristeza”,comoescreveMarcFumaroli,eoptadopelasaúde,amelancoliaé

celebradaportodaaEuropacomoosofrimentodeumaalmaquefazdeleasua

glória.VideHamletque,segundoFreud,“dispõedeumavisãomaispenetranteda

verdadedo

queoutraspessoasquenãosãomelancólicas”.ParaFreud,o

personagem,com

suaexacerbadaauto-crítica,que“sedescrevecomomesquinho,

egoísta,desonesto,carentedeindependência,alguémcujoúnicoobjetivotemsido

ocultarasfraquezasdesuapróprianatureza,podeser,atéondesabemos,que

tenhachegadobempertodesecompreenderasimesmo.”26

Se,grossomodo,oséculoXVIII,comseunotórioamorpelarazão,não

ofereceterrenopropícioàmelancolia,em

contrapartida,falar-sedamelancolia

românticaconstituiquaseum

pleonasmo.PoisoEuromântico,quesecolocano

mundo

easpiraao

ilimitado,exaltaoconflitofamiliaràmelancolia

para

transfigurá-loemcondiçãopoéticaideal.Aininterruptarenovaçãodatensãoentre

entusiasmo/aspiraçãoeabatimento/condiçãogeraumanovavitalidadepoética.

Assimamelancoliaromântica“aspiravaadescobrir,nasolidezdaapreensão

diretaenaexatidãodeumalinguagem

precisa,osmeiosdese‘realizar’”.27

Espéciedelugarprodutivodamelancolia,aobradearteromânticaéaevidência

domovimentodopensamento/criaçãoquenãoconsegueseresumiraumaação

conclusiva.Justo

aocontrário,envolveoprocessodeproduçãodaobracomo

ocasiãoparaoenvolvimentototaldohomem

nomundo.Atípicainquietação

melancólica,consoanteaosentimentodefaltaromântico,éanimadapeloaspecto

produtivodaobracomoreconciliaçãocomomundo.

25“ChezMichel-Ange,cesentimentatteintunetelleprofondeuretunetelleintensitéqu’ilprend

laformed’nesorted’autodélectation,encorequecelle-cisoitempreinted’amertume:‘Lamia

allegrezz’èlamalinconia.’(majoieestlamélancolie).”

PANOFSKY,Erwin;SAXL,Fritz;

KLIBANSKY,Raymond.

Satu

rne

etla

Mél

anco

lie.Op.Cit.,p.376.

26FREUD,Sigmund.

Luto

em

elan

colia.In:EdiçãoStandardBrasileiradasObrasPsicológicas

CompletasdeSigmundFreud,vol.XIV.RiodeJaneiro,ImagoEditoraLtda.,1974,p.279.

27PANOFSKY,Erwin;SAXL,Fritz;KLIBANSKY,Raymond.

Satu

rne

etla

Mél

anco

lie.Op.

Cit.,p.385.

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Page 144: Apostila Joseph Beuys

28

“Paraorestabelecimentodetodasascoisas,amediaçãopropostaéentãoaqueladaarte,

espéciederetornodomundoapartirdomovimentodeinteriorizaçãodaironiaromântica.

Atorefletido,um

momentodesetornarasimesmodoespírito,essainteriorizaçãose

acompanhadeumades-inserçãoquenãoésomenteaqueladoeucomrelaçãoasi

mesmo,masaqueladoescritorcomrelaçãoaomundoaoredor(...)aironiaromântica

tendeasetornaressencialmenteainfinitanegaçãodaqualaconsciênciaécapazno

exercíciodesualiberdade.Porcerto,aironiaromânticanãoesqueceomundo,poistem

necessidadedequalquercoisaàqualseopor,maselasófazdiscernirnoseiodomundo

taisridículosparticulares:éomundo‘exterior’emsuatotalidadequeelareprova,porque

elaserecusasecomprometercomoquequerquesejaexterior.Oumelhor,oironista

tentaráconferirum

valorexpansivoàliberdadequeeleconquistouprimeiroparaele

somente:elevementãoasonharcomumareconciliaçãodoespíritoedomundo,todasas

coisassendorestituídasnoreinodoespírito”28.

Mas“sonhosnãoenchem

barriga”,retrucabem-humoradoofilósofo

dinamarquêsSörenKierkegaard,paraquem

a“poesiaéumaespéciede

reconciliação,maselanãoreconcilia[ohomem]comarealidadeem

que[ele]

vive”29 .Éilusórianamedidaemquenãoéumavitóriasobrearealidade,esim

emigraçãopuraparaforadela.Sem

nosdebruçarsobreacríticakierkegaardiana

daironiaromântica,tampoucoseguircomseupensamentoemumahistórialinear

damelancolia,aproveitamosadeixadofilósofodeclaradamentemelancólicopara

pensaratemporalidadedonossolugar-melancolia.

Aoassumircomocernedesuareflexãoohomem

quecaminhapelo

assoalhodomundo,ouseja,oserhumanocomoserespiritualnasuadupla

condiçãotemporaleeterna,com

freqüência,atravésdeseusváriosheterônimos,

Kierkegaardseressentedaausênciadepaixãoquedominaseutempo.OestetaA

deOuOu30 ,porexemplo,concluiseulamentopelodéficitdepaixãonaqueles

“temposincultos”aoadmitirquesuaalmavoltasempreaoVelhotestamentoea

Shakespeare,ondepodeencontrarsereshumanosreais,capazesdeodiareamar.

AssimAexpressaofatodequeamodernidadedestruiuaformadahistória

previamentefixada-ostextosdoVelhoTestamentoforamsubstituídospela

escritamodernafragmentária,anarrativaperdeuqualquerconexãoimediatacom

seunarrador.Porisso,um

serhumanoéagoraconsideradooresponsável,o

“editorfinaldesuaprópriahistória”.

Jáseuinterlocutor,ojuizWilhelm,emum

diálogofeitoatravésdecartas,

defendeapossibilidade,ouantes,aresponsabilidadequeosujeitotemdese

28STAROBINSKI,Jean.

Iron

ieet

Mél

anco

lie:

Goz

zi,H

offm

ann,

Kie

rkeg

aard.In:Critique.

Paris,avril/mai1996,nº228,p.454.

29KIERKEGAARD,Sören.O

Con

ceito

deIr

onia.Petrópolis,Ed.Vozes,1991,p.255.

30CujaepígrafeéumacitaçãodeYoung:“Arepassionsthen,thepagansofthesoul?Reasonalone

baptized?”

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29

escolher:ohomeméticoseriacapazdetomarpossedesimesmoemsua“eterna

validade”.ParaoapaixonadoA,essaseriaumailusãodiantedaimpossibilidade

desercapazdere-possuirumaorigemdefinitivamenteperdidaemrelaçõesinter-

pessoaisesócio-culturais.AocontráriodoargumentodeWilhelmacercadeuma

personalidadequetemsuateleologiaem

si,Aremeteàsuacondiçãohistórica.

Vítimadeum

desejoporautenticidadeetransparênciaqueamodernidade

despertou,masnãopôdesatisfazer,ojuizerroneamentesupõequeAnãoquerser

umSelf.Narealidade,oestetaéconscientedoquãoproblemáticoétornar-seum

numaeranaqualoserhumanofoiabandonado

aum

sistemadesignos

contingentes

quenuncarepresentam,somente

simulam

apresença

do

significado31 .Daísuamelancolia,talcomodefinidapelojuizWilhelm:

“Oqueéentãoamelancolia?Éahisteriadoespírito.Cheganavidadeum

homemum

momentoemqueaimediaticidadeporassimdizeramadureceeoespíritodemandauma

formasuperiorondequerseagarrarelemesmocomoespírito.Ohomem,enquanto

espíritoimediato,éfunçãodetodaavidaterrestre,eoespírito,sereunindoporassim

dizersobreelemesmoquersairdetodaessadissipaçãoesetransfigurarnelemesmo;a

personalidadequersetornarconsciênciadelamesmaemsuavalidadeeterna.Seisso

nãoacontece,omovimentoéparado,eseeleérecalcado,entãoapareceamelancolia.

Pode-sefazermuitoparaseenterrarnoesquecimento,pode-setrabalhar(...)masa

melancolia

permanece.Háqualquercoisadeinexplicávelnamelancolia(...)sese

perguntaaummelancólicoarazãodesuamelancolia,oqueooprime,eleresponderáque

elenãoosabe,queelenãopodeexplicá-lo.Énistoqueconsisteoinfinitodamelancolia.

Earespostaéinteiramentejusta,poisassimqueeleosabe,amelancolianãoexistemais

(...)ofatodesermelancóliconãoésóum

signoruimpoisamelancoliasótocaas

naturezasmaisdotadas(...)Masmesmoohomem

cujavidatemomovimentomais

calmo,omaispacífico(...)guardarásempreumpoucodemelancolia;issosedeveaalgo

maisprofundo–aopecadooriginal,eissoseexplicapelofatoquenenhumhomempode

setornartransparenteparaelemesmo.Poroutrolado,aspessoascujaalmanãoconhece

amelancolia,sãoaquelascujaalmanãotemaidéiadeumametamorfose.”32

Aquestãodopecadooriginalécondiçãodaliberdadequesubjazànossa

existênciahistórica.Aíapareceaangústia,centrodetodooproblemapara

VirgiliusHaufniensis,angústiaqueseencontranainocênciadohomem

“então

presente,masnoestadodeimediaticidade,desonho”.Équandoatuacomouma

vagacompreensãodapossibilidadedaliberdade,umestadodesercapaz33que

permiteaqueda.Semprepresenteapossibilidadedetransgressão,aconsciência

dohomem

semanifestacomoangústia,obscurosentidoprimordialda

possibilidadedadiferençaantesqueelarealmenteocorra,ou,naspalavrasde

31GARFF,Joakin.“

The

esth

etic

isab

ove

all

my

elem

ent”

.InElsebetJEGSTRUP.TheNew

Kierkegaard.Bloomington,IndianaUniversityPress,2004,p.63.

32KIERKEGAARD,Sören.O

ubi

en..

Ou

bien

...Op.cit.,p.487/8.Grifodaautora.

33EAGLETON,Thierry.A

side

olog

iasd

aes

tétic

a.RiodeJaneiro,JorgeZahar,2003,p.133.

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Page 145: Apostila Joseph Beuys

30

Kierkegaard,“aaparênciadaliberdadediantedesimesmacomopossibilidade.”

Menosaintuiçãodeum

‘outro’doqueosprimeirosmovimentosdaprópria

possibilidadecategorialdaalteridade34 ,aangústiahabitaoespaçovaziodo

presentedoSelfconfrontadopelapossibilidadeilimitada.SegundoHaufniensis,

constituiaberturadopresenteparaofuturoeterno-éomomentumnoqualoself

écolocadonummovimentoauto-transformador.

Importaparanossolugar-melancoliaaatençãointransigenteàexistência

dohomem

decarneeossodopensamentokierkegaardiano.Nessesentido,nos

interessaoqueVirgilius

Haufniensisdenominaatmosfera

deconceito35,

atmosferacomum

aohomem

eaoobjeto/mundoquedeterminaa“ação”da

verdade,inexistenteemsimesma,ouentendidaapartirdeumalógicainterna.Em

“OConceitodeAngústia”,ofilósofoenfatizaosentimentodopensamento,a

importânciadenosapropriarmosafetivamentedoquepensamos:nãopodemos

entenderoquepensamossemviverdeacordocomtalsentimentodepensamento.

Avesso

àsubjetividade

“desavergonhadamente

exibicionista”

de

Kierkegaard,EmmanuelLevinasreconheceanoçãode

crençacomouma

novidadefilosóficadopensadordinamarquês.LembramosentãodoestetaA,cuja

consciência,produtodeumaépocadescrentedaautenticidadehistóricadas

Escrituras,aindaouveumavozquefalaatravésdelas.Persisteumadúvida,que

“nãoémeraocasiãoparareconfirmarumacerteza,masum

elementodacerteza

elamesma”,afirmaLevinas,paraquem“Kierkegaardnãoestavapreocupadocom

adistinçãoentreféeconhecimento,incertezaecerteza;oqueointeressavaeraa

diferençaentre

umaverdadevitoriosaeumaperseguida(...)perseguiçãoea

humildadequevemcomela,sãoelasmesmasasmodalidadesdaverdade.”36

Senosso

lugar-melancolia

sedistanciada

forte

subjetividade

kierkegaardiana,elemantém,porcerto,airredutibilidadedadiferençaentreo

dentroedoforadapessoa,espéciedemedidadeexistênciaasercontinuamente

conquistada.Nãosurpreende,então,aafinidadeentreodesesperodoapaixonado

poetadoromance“ARepetição”–“comoeuentreinomundo;porqueeunãofui

34Idem,p.134.

35“Quelascience,commelapoésieetl’art,exigeaupréalableuneatmosphèreaussibienchez

celuiquireçoit,qu’unefautedemodulationnesoitpasmoinstroublantequ’unefautedansdans

l’exposéd’unepensée.”KIERKEGAARD,Sören.

Mie

ttes

philo

soph

ique

s/Le

conc

ept

del’a

ngoi

sse/

Trai

tédu

dése

spoi

r.Paris,Gallimard,1990,p.171.

36LEVINAS,Emmanuel.

Exist

ence

and

Ethi

cs.InRÉE,Jonathan;CHAMBERLAIN,Jane

(org.).Kierkegaard:acriticalreader.Oxford,BlackwellPublishers,1998,p.35.

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31

consultado,porquenãomefoidadoconhecerosusoseoscostumesaoinvésde

meincorporaràsfileiras,comoseeutivessesidocompradoporum

comerciante

dealmas?”37-earesignaçãodeWarhol,quereconheceaexistênciacomoum

trabalho,pois“ternascidoécomotersidoseqüestradoevendidocomoescravo.

Aspessoasestãosempretrabalhando.Omaquinárioestásempreemandamento...

aspessoasestãosempretrabalhando”38 .

Amelancoliaencontra-seestreitamenteligadaàhistóriaocidentalda

consciênciadesi.Noslugaresinstauradospelasobrasdosnossosartistas,ela

talvezpossasercompreendidaapartirdo

queosociólogofrancêsAlain

Ehrenbergdenominaindividualidadeincerta

39.Osujeito

doséculoXVIIIse

integraàquelaiminenteesferapública,oindivíduodivididodoséculoXIXdeve

sedefiniremconflitocomasociedade,jáohomemdasegundametadedoséculo

XXseriaaqueleemancipadonaplenaacepçãodotermo.Distantedoindivíduo

iluministaquetemaexistênciajustificadapelocontratofictícioestabelecidoentre

oshomens,oudaqueleoitocentistaquedeveserumapessoaporsimesmanum

grupamentoquetiradelepróprio

asignificaçãodesuaexistência,oindivíduo

contemporâneoacabaportornar-seinteiraetristementeresponsávelporsi.Sem

regrasdeautoridadenemmodelosdisciplinaresdegestãodecondutas,eleé

obrigadoaseauto-instituir.Aangústiasedissimulaaíportrásdocansaçodeser

simesmo40 .EncarnadoàperfeiçãoporWarhol,cujaprópriaincapacidadede

desejar,comoveremos,érevertidaemmétododetrabalho,essafaltacrônicade

energia,juntoàressuscitaçãodapessoabeuysianaeoentusiasmomonocromático

deKleincolocamemjogooutras“medidas”deexistência.

NaBabeldamelancolia,éinvariávelaincapacidadedeosujeitofazero

lutodoobjetoperdido.PodemosentãopensarasatividadesdeBeuys,Warhole

Kleincomoarealizaçãodotrabalhodelutodeumadeterminadaobradearte.

Aindaquenãoconstituampropriamentenovosobjetosdeinvestimentodaslibidos

artísticas,osleftoverscontêmomovimentodesseinvestimento,movimentocapaz

demanterolugar-melancoliacomoum

espaçoabertoàreconciliaçãodohomem

comsuacapacidadedeprodução.Umareconciliaçãonohorizontedofuturo,

37KIERKEGAARD,Sören.L

aR

epri

se.Paris,Flammarion,1990,p.144.

38WARHOL,Andy.

The

Philo

soph

yof

And

yW

arho

l.Op.Cit.,p.96.

39EHRENBERG,Alain.L

’indi

vidu

ince

rtai

n.Calmain-Lévy,HachetteLittératures,1995.

40EHRENBERG,Alain.L

afa

tigue

d’êt

reso

i:dé

pres

sion

etso

ciet

é.ÉditionsOdileJacob,1998,

p.52.

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Page 146: Apostila Joseph Beuys

32

expectativaqueintegraacompulsivaproduçãodeleftoversnadireçãodovazioa

serocupadopeloespírito.

ConformeFreudexplicita

em“Lutoemelancolia”,otrabalhona

melancoliasediferenciadaquelerealizadonolutoprecisamentepelaincapacidade

dosujeitodesligar-sedafixaçãosobreumobjeto.Naausênciadoobjetoamado,é

exigidoquetodaalibidodosujeitosejaretiradadesuasligaçõescomesteobjeto.

Pormeiodeum

processodoloroso,com

maioroumenordispêndiodetempoe

energia,otrabalhodolutoéconcluídoeoegoficanovamentelivreedesinibido.

Jánamelancolia,osujeitonãoconseguedesligar-sedoobjetoperdido.Aliás,sem

reconhecê-loconscientemente,oegoidentifica-secomesseobjeto,apontode

perder-senodesesperoinfinitodeumnadairremediável.

Apartirdadefiniçãodeumarelaçãocomofuturo,pensamosomovimento

dosleftovers

aovaziono

lugar-melancolia

àmaneira

darepetição

kierkegaardiana.Aforaasnoçõesde

melancolia

eangústia–estaúltima

notoriamentecentralno

seupensamento,poistodaaexistênciaencontra-se

fundadanaincertezafundamentaldaexperiênciadaangústia-,dealgummodo

Kierkegaardparecelidarcomum

lutoemsuacategoriaderepetição41.Categoria

religiosa,essarepetiçãotratadarenovaçãopeloindivíduodesuarelaçãosubjetiva

apaixonadacomumobjetoquenuncapodeserconhecido,apenasacreditado.Não

setrata,com

certeza,detransportalcategoriaemsuadimensãoreligiosa–aliás,

centralàproblemáticakierkegaardiana,queseconcentranocomosetornarum

cristãonoCristianismo,em

queDeuséooutroabsolutoedeterminaaprópria

condiçãodepossibilidadeparaoindivíduo-,nósapensamosapartirdaespecífica

temporalidadedoreganharumadeterminadarelação.

Arepetiçãoéumalembrançaorientadaparaofuturo,segundoVirgilius

Haufniensis,quando“todaavidarecomeçadenovo,nãoporumacontinuidade

imanentecomopassado,oqueseria

umacontradição,mas

poruma

transcendênciaquecravaentrearepetiçãoeaprimeiraexistênciavividaum

tal

abismoquesóseriaumaimagemdizerqueopassadoeoseguintetêmentreelesa

mesmarelação42 .Essereganhar,ou

segundaimediaticidade,implicauma

concepçãodetempoformadaporumasucessãodeinstantesaserdistinguidado

41Em

seu“pequeno

livro”ARepetição,Kierkegaardtentare-estabelecerumaespéciede

comunicaçãocomsuaex-noivaRégineOlsen.

42KIERKEGAARD,Sören.

Mie

ttes

philo

soph

ique

s/Le

conc

ept

del’a

ngoi

sse/

Trai

tédu

dése

spoi

r.Op.cit.,p.174.

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33

tempocomofluxocontínuoinfinito.AindadeacordocomHaufniensis,oinstante

éaambigüidadeondeotempoeaeternidadesetocamum

aooutro,colocando

porissooconceitodetemporalidade,ondeotempointerceptaconstantementea

eternidadeeondeaeternidadepenetraconstantementeotempo.Issoporqueessa

eternidadenãoseencontraforadotempo,esim,comobemobservaoestetaA,

trata-sedeuma“ricaeternidadesituadanocentrodasvicissitudesdotempo.”43

Parece-nosentãoviávelpensaromovimentodoleftoverparaoVazio

comoumarepetiçãoque,darealidadefinitadaobraparaumapotênciapoética

infinita,abreaesferatemporalinteira,numarelaçãointrínsecacomopresente

temporaldoinstantedaexperiênciadaobra.Assimcomoaojovemestudantede

“ARepetição”,aquem,enquantopermanecia“suspensograduporummês,sem

mexerumpéoufazerumsómovimento”,nadaerapossível,somentealcançamos

adisponibilidadequenãoseesgotanaobrasenosmantivermosemmovimento.

*****

“Thereisnogreatercauseofmelancholythanidleness,nobettercurethanbusiness.”

RobertBurton,Anatomyofmelancholy

Nolugar-melancolia,oprimeirocapítulodatese,destacamososaspectos

dasobrasdeYvesKlein,AndyWarholeJosephBeuysqueimediatamentenos

levaramàidentificaçãodamelancolia.Doimpactodaevidênciaazulnapinturado

francês,seguimosparaatemporalidadeinstauradapelasimagensnassériesde

serigrafiasenosfilmesdeWarhol,edaíencontramosaressonânciamaterialque

caracterizatodaaobradeBeuys,comdestaqueparaosseusdesenhos.

Apartirde

suasrespectivascaracterísticas/herançasculturais,nossos

artistaspartemdo“princípioativo”dapintura,daserigrafia

edaescultura,

superandoostermosdessascategoriasparareencontrarsuapotênciaprimeira.

AssimKleininsisteno“indefinível”deDelacroix,raizromânticadatradição

modernadacorfrancesa.Jáadimensãoplásticabeuysianavembaseadana

palavraenopensamentocaracterísticosdeumasensibilidadeculturalalemã44 ,o

43KIERKEGAARD,Sören.O

ubi

enou

bien

.Op.Cit.,p.46.

44“A

Nuremberg,commepartoutailleursem

Allemagne,l’intérêtàl’Antiquitérenaissanteest

littéraireetscolastiqueplusquevisueletesthétique.Em

Italie,ladécouverted’unesculpture

classiquesoulèvedescommentairesenthousiastesquantàaspuissanceexpressive,asbeauté,as

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Page 147: Apostila Joseph Beuys

34

queexplicariaaproporçãoentreconteúdosimbólicoecargamaterialnasuaobra.

Domesmomodo,oworkaholicWarholprosseguea“tradição”americanado

trabalhoduro,jápatentena

produção

artísticaimediatamenteanteriordo

expressionismoabstrato.

“Minhavidafoiproduzir”:aanotaçãodeKierkegaardem

seudiáriono

anode1849intitulaosegundocapítulodatesequetratadasatividadesdos

artistas-distintosmodosdeocupaçãodesimesmoslocalizadosemsuasdistintas

realidadesartísticasinstitucionais.Assimcomoofilósofosegueincansávelnos

limitesdeum

“pequenotratado”oude“migalhasfilosóficas”,Warholre-fabrica

“automaticamente”nasuafábricadearte,Beuyssemovimentaincansávelpelos

espaçosinstitucionais,realizaaçõesdasquaissobramobjetos,eKleindispõeseus

monocromosazuisdemesmaproporçãojuntoàspinturasabstratasquecirculam

peloestérilcenárioartísticoparisiensedofinaldosanos1950einíciodosanos

1960.Exercícioconstanteeinútil,aproduçãodosleftoversrevelaacompulsão

própriaàmelancolia,comoesclareceobibliotecárioBurtonque“escrevesobrea

melancoliaporestarocupadoemevitaramelancolia”.45

OacessodiretoàartepelomundodosnegóciosnaManhattandofinaldos

anos1950éabordadocomdesdém

porWarhol:sesoubessequeseriatãofácil

expor,eleoteriafeitoantes.VivenciandoinlocoaiminênciadaArtBusiness

americana,oartistapodeempreenderoseupróprionegóciodearte,umafábrica

ondeamplificaoprocessodeproduçãoeacirculaçãodeobras/mercadorias.Jána

Europadosanos1950/60,aproduçãocontemporâneatinhaumainserçãodifícil

nasinstituições.OquepodeserverificadonaprimeiraexposiçãodeYvesKlein,

em1956,nagaleriadeColleteAllendy,condicionadaaoapoiodeum

críticode

arte(quandoentãoKleinseaproximadePierreRestany).Nadécadaseguinte,tal

comportamentoinstitucionalcomeçaamudar,primeironaAlemanha(paísno

qual,aliás,aobradeKleintemumareceptividadebemmaiordoquenaFrança),

ondeseiniciaumapolíticadeaquisiçãodeartistasjovens.Nofim

dosanos

sessenta,écriadaacoleçãoLudwigque,comfortepresençadaPopArt,participa

detodaumaatmosferareceptivaàproduçãoartísticacontemporânea.Talclimade

fidélitéàlanature;em

Allemagne,ellen’inspirequedesdiscussionspurementérudites.Les

inscriptionsintéressentdavantagequelesimages,celles-ciétantappréciéesmoinscommedes

oeuvresd’artquecommedesproblèmesd’iconographieou

dessourcesdedocumentation

historique.”Panofsky,Erwin.L

avi

eet

l’art

d’A

lbre

chtD

ürer.Hazan,1987,p.54.

45BURTON,Robert.

The

Ana

tom

yof

Mel

anch

oly.Op.cit.,p.20.

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35

institucionalizaçãodaslinguagensartísticascontemporâneasépropícioàartede

umBeuys,queatuajustamentenaotimizaçãoestéticadoespaçodaarte.

DefinidoemrelaçãoaoestérilambienteartísticodaFrançadopós-guerra,

opensamento

monocromode

Klein

sedesenvolve

graças

aovalorda

impregnação,espéciedepossedefinidaexclusivamenteatravésdemarcase

registros.Seusleftoversconstituemobjetosdedesejo,jáquenosincitamao

encontronuncaconcluídoda

sensibilidade,pois“sentirésempresentirà

distância,nosentidoqueaapariçãodacoisatemcomoreversoecomocondição

umaformadeausênciaoudeincompletude,sendoessarazãopelaqualosentiré

originalmentearticuladoaomovimento”46 .

Semenergiaparadesejar,nemtempoparapensar,Warholidentificaa

“sensibilidade”americanaemplenaemergênciadasociedadedeconsumo,capaz

dealterardrasticamenteoestar-no-mundo.Indefinívelem

termosdedistância

espacialfísicadado

adventoda

mídia,oquecaracterizariafinalmentea

existência?Warholnosperguntacomsuassériesdecelebridades,todaselas

realizadasapartirdeumadistânciafixa,constantenecessáriaparamediramínima

distânciaparaatingirooutro.Eempreendesuafábricadeartemovidapelonovo

tempodoconsumoamericano,onderealizaumaespéciedemicrocosmoda

formaçãodasubjetividadecontemporânea.

“Do

leftoverao

vazio”,aenfraquecida

subjetividadeartística

contemporâneamodeladanumadimensãopúblicanosencaminhacomsuasobras

ànossa(im)possibilidadedaexistência.Noterceirocapítulo,Beuysrealizaesse

movimentoaovazioatravésdaamplitudeescultóricadesuaplásticasocial,

permeada

peladiscussãosobrealinguagem.Kleinofaz,na

experiência

artística/estética,

literalmente

“conformada”

emsuapotência

primeira

-

angústia/desejo-naexposiçãodoVazio.

Faz-senecessárioobservar:afim

deevitaroexcessodenotasdepéde

páginareferentesàscitaçõesdosartistas,principalmenteaquelasfeitasporKleine

Warhol,abreviamosnocorpodotextoasduaspublicaçõesdasquaisfoiretiradoo

maiornúmerodecitaçõesdessesartistas,seguidopelonúmerodapáginaem

46“EmStraus,essaaproximaçãodosentirradica,enfim,numadeterminaçãodavidacomo

essencialmenteconstituídapelodesejo,poisoprópriodavidaétenderàconstituiçãodeuma

totalidadecomomundo,reduzindoassimaseparaçãoquefundamentasuasingularidade;essa

totalidadeéaquiloque,dealgumaforma,sedeseja,istoé,queaum

temposeatualizaesenega

emcadaexperiência.”BARBARAS,Renaud.

Sent

ire

faze

r–

afe

nom

enol

ogia

ea

unid

ade

daes

tétic

a,p.94.InRevistaNovosEstudosCEBRAP,nº54.Julhode1999.

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Page 148: Apostila Joseph Beuys

36

questão.“LeDépassementdelaProblématiquedel’artetautresécrits”,coletânea

detextosdeYvesKlein,seráabreviadaporDP;“ThePhilosophyofAndyWarhol

(fromAtoBandbackagain)”,afilosofiadeAndyWarhol,seráabreviadapor

PAW.Taiscitações,assimcomotodasasoutras,serãotraduzidaspelaautora

somentequandoseencontraremnocorpodotexto;ouseja,todasascitações

reproduzidasem

notasdepédepáginaserãomantidasnosidiomasoriginaisdas

publicaçõesconsultadas.

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2 No

luga

r-m

elan

colia

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Page 149: Apostila Joseph Beuys

68

mesmateladiferentesrolosdefilme,cadaum

delesacompanhadodesuaprópria

trilhasonora.Com

25hdeduração,ofilme,compreensivelmenteexibidosomente

umavezemsuaversãocompleta,resumeoprincipalassuntodassériesdemorteda

décadadesessenta:avida,e/ouseudéficitemrelaçãoàduraçãodanossaexistência.

Eusabiaquenuncamaisoprojetarianovamentecomessaduração,então,elefoicomoavida,

nossasvidas,passandocomoum

flashdiantedenós–passariasomenteumavezenósnunca

maisaveríamosnovamente.33

2.3 Jo

seph

Beu

ys

2.3.

1

Res

sonâ

ncia

plás

tica

Est-cequetouteformationplastique,decelleducristalàcelledel’homme,nepourraitpas

s’expliqueracoustiquementpardesmouvementsarrêtésoucontrariés?

Novalis,Fragments

JosephBeuysécapazdetransformarumemaranhadoheterogêneodematérias

esímbolosem

verdadeiroscamposdeforça.Sãoambientes,vitrines,emesmo

desenhos,comtalpotênciadeconvicçãosomentepossívelaumaagudasensibilidade

deescultor:notávelsensodeproporçãoeprofundosentimentodamatériaproduzem

assimapregnânciamaterialdetodaumatramaiconográficaemdeterminadaextensão

espacial.Nasuperfíciedeumafolhadepapelounoespaçodeumasala,oartista

combinamatériasecoisasdasmaisdiversasnaturezas,formandosubstânciascom

peso,densidade,volumeetemperaturaespecíficos–fatoresquedeterminam

a

receptividadedaobraechegam

aalterarnossasprópriascondiçõesfísicas.Beuys

manipulasubstânciasque,semestancarnumaforma,acabam

porescoar,deixando

umrastroqueconfluidiretamenteparanossasterminaçõesnervosas.Rastro

quase

visível,aserintegralmenteacompanhado“deperto,”em

suasilenciosaressonância

volumétrica.

33WARHOL,Andy.ApudDavidBourdon.

War

hol.Op.Cit.,p.265.

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69

Équeotrabalhobaseia-senumaespéciedevolumetriaquímica,capazde

quantificaro“soluto”emmovimentonaobraqueacabaporreverberarnoespectador.

Obraasersentida,interpretada,cheirada,ouvida–comtodososnossos25sentidos,

diriaoartista.ComooamálgamadefiguraepapéissobrepostosdeMulhersentada

nochão(1952?),porexemplo,quesuperaaintegraçãoespacialdafiguraàáreada

folhadepapel.Sangrandoabordasuperioresquerdadopapelrasgado,aimagemda

mulherde

cabeçainclinadaecomosmembrosdobradosapresentaacentuada

mobilidadepelairregularidadedaligeiraelevaçãodamargemdafolha.Asmargens

soltasdopapelsobreaqualestápintadaafigura,aliás,sugeremumadiscreta

animaçãodetodasuasuperfície,amenizandoseuslimitesfísicos.O

movimentosóé

completado,noentanto,–eprincipalmente-,peladistensãocorpóreadafigura,

determinadamenosporumacoerênciamorfológicadoquepelavitalidadeorgânica

damatériautilizada-obeize

34.Odesenvoltomovimentodopincelsobreopapel

importasim,masnãodecideovigordodesenho,finalmenteconseguidocomas

característicasfísicasdasoluçãoocretransparente.Corsubstantiva,obeizetrazpara

asuperfíciedopapelapróprianaturezafemininainterna,fluida,consubstanciandoa

ligaçãodamulhercomoespiritual,suaprópriacapacidadedegerarvida,acentuada

peladesproporcionalregiãopélvica.Substânciainerenteaocorpodamulherfigurada,

overnizinscrevedelicadamenteaimagem

nopapel,ondeproduzum

sutilvolume

capazdealterarvisualmentesuagramatura35 .

Valenotarafreqüênciacomqueocorpohumanoaparecenosprimeiros

desenhosdeBeuys.Éum

corpovisivelmentealongado,massemprecontraído,

muitasvezescomasarticulaçõesem

evidência,aindaquenuncarepresentadonas

suaspartescomponentes.Geralmenteexecutadonumamanchaúnica-pigmento

condensadoouváriostraçosdegrafite-,essecorpoaparececomoconcentração

energéticadeumasubstância.Comoobeize,queavançaligeiramentepeloslimitesda

áreadocorpodeMulhersentadanumaespéciedevazamentomicroscópico:oferro

sedepositanaprópriagranulaçãodopapeldepoisqueosolventeescorre,eacabapor

34Palavraalemãparaumtipodevernizcompostodeferro.

35SegundoAnnTemkin,obeize

criaum

volumedesuperfícienuançadoeum

contornoclaro

extraordinariamentebonitonoqueeleafundanopapel.TEMKIN,Ann;BERNICE,Rose.T

hink

ing

isFo

rm:t

heD

raw

ings

ofJo

seph

Beu

ys.NewYork,ThamesandHudson,1993,p86.

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Page 150: Apostila Joseph Beuys

70

formarumaespéciedehalo(sutilíssimo)dafigura.Aimagemembeizereagecomo

papel,quimicamente,porassimdizer,produzindoaliumcontornoluminoso,espécie

demarcadatransubstanciaçãodasoluçãodeferronamatériacirculatóriadocorpoda

mulher. A

energiacontidanessespequenoscorposjáparticipa

daoperação

de

armazenamentoetransporte

deenergiaquefundamentaateoriadaesculturade

Beuys.Pequenasmanchasdeaquarelaebeizeouverdadeirosemaranhadosdelinhas,

delicadasouagressivas-semprevigorosas,contudo-,mostramamesmasubstância

interna,concentrada

evibrante,reativadaem

diferentesproporçõeseordens

materiais.Seuvastorepertóriosimbólico-material-feltro,cobre,fios,cruz,piano,ou

mesmoasmassasdeceraegordura-obedeceao

mesmoprincípioda

força

substantiva,capaznãosódedarligaàsváriasreferênciashistóricas/culturaismas

tambémdesustentá-lacomopermanênciamaterialressoante.Sejanadimensãomais

íntima,dosdesenhos,sejanaexplícitadimensãopúblicadeTallow(1977),entra

sempreemjogoaressonânciaessencialdeumasubstânciainternavital.

ParaBeuys,essaressonânciacaracterizaaprópriaarte,surgindoemtodasua

obrano

estado

mesmode

potência.Nocasodo

piano,umapotênciasonora

correspondenteaumaartedaescuta.Aindaqueoutrosinstrumentosmusicaistenham

sidoutilizadospeloartista,opianoaparececommaisfreqüênciaem

suaobra.Com

suagrandecaixaderessonância,oinstrumentopareceincorporarproporcionalmente

melhoraexigênciade

“escutar”umaescultura.Condiçãode

possibilidade

da

escultura,aescutasignificaareceptividadeessencialcapazdenossintonizarcom

determinadasubstância,emumamesmafreqüênciadeondas,porassimdizer.

AsensibilidadeescultóricadeBeuysvaiaoencontrodaforçadapresença

daqueleobjetopesado,idolatradonaculturaocidentalporsuacapacidadesonora,de

modoainstaurarcomeleum

potentelugarderessonânciaparaoqualsomos

convocados.Oartistaescutaopiano,nãosónasuafundamentalqualidadede

ressonância,comotambémnasuacapacidadededelimitarseupróprioespaço/lugar.

Pois,assimcomoesseinstrumentomusicalexigequeointérpretecaminheem

sua

direção,Beuysnoslevaatéopianoenosenvolvenaquelaatmosferade“contra-

música”.Assimsomosmobilizadosnumaescutaessencial,fenômenoacústicoque

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71

nospermiterelacionardemaneirareceptivacomopiano-poderosoinstrumentode

açãoqueestimulaadiscussão36conformeacentuaopoderdeconvicçãoformal

daqueleambiente.

Sobranasalaum

pianosilencioso,capazdepotencializarumaressonância

precisamentepelaimpossibilidadedapropagaçãodasondassonoras.Acapacidade

queopianotemdeproduzi-lasnãoé,noentanto,eliminada.Osomlatenteé

reforçadopeloimpactodamassacinzadofeltroque,aorevestiropiano,menoso

escondedoqueocala.Facilmentereconhecível,oinstrumentomusicalimpeleao

incômodoeinevitávelacompanhamentodeseu“movimento”interno,àescutade

umapossibilidadedeproduçãosonora.

Aimpossibilidadedemúsicanessepianodefeltroacabaporafirmara

presençaindubitáveldareservasonoraqueinstauraolugar-melancoliabeuysiano.

Lugardeafliçãodiantedeum

pianomudo,alireinaatemporalidadeespecíficada

possibilidadedearte.Umaartequeaindaestáporvir,dependendo

denossa

permanenteescuta,naquelemomento,esemprenaquelemomento37,comoum

presentemobilizadopelofuturoeterno.Estáemjogoumapossibilidadedearte,aser

diferenciadadeum

impulsodearte(paraficarcomomesmoinstrumentomusical,o

queRaoulHaussmanchamade“aarteantesdetocaropiano”).Aoinvésdeatentar

paraoperíodoqueantecedeaproduçãodaobra,Beuyslidacomaprópriacapacidade

deprodução,semantesnemdepois,fazendoartedapossibilidadedetocarumpiano,

digamos.Oartistaconseguesituartalpossibilidade,eali,naqueleambiente,nos

incitaraocontínuodesenvolvimentodenossasprópriascapacidades.

Essaespéciedecondensaçãodapossibilidadedaartenumlugarfunciona

devido

aumaaltacapacidade

deaproveitamentodaspropriedadesfísicasdas

matérias.Maleabilidadedagordura,transparênciadobeize,armazenamentodecalor

dofeltro,etc.,sãopotencializadasnacombinaçãocomelementosdedistintas

naturezas.Ofeltro,porexemplo,pareceaquecerosarranjosformaisdosFonds,

36JosephBeuysdeclarasobre“Infiltrationhomogènepourpianoàqueue,leplusgrandcompositeur

contemporainestl’enfantthalidomide.”InCENTREGEORGESPOMPIDOU.JosephBeuys.(Cat.

Expo.).Paris,1994,p.281.

37“L’instantestcetteéquivoqueouletempsetl’éternitésetouchent,etc’estcecontactquiposedu

temporeloùletempsnecessentderejecterl’éternitéetoùl’éterniténecessedepénétrerletemps.

Seulementalorsprendsonsensnotredivisionsusdite:letempspresent,letempspassé,letempsà

venir.”KIERKEGAARD,Sören.L

eco

ncep

tde

l’ang

oiss

e.Op.cit.,p.256.

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Page 151: Apostila Joseph Beuys

72

enquantoque,aoenvolveropiano,oisola,intensificasuavibraçãoenergéticae,

conseqüentemente,acentuaanossaprópria

vibração.Esseforte

sentimentoda

matériaéreveladodemodobrutoediretoemTallow,descomunalmassadegordura

animalcortadaem

cincoblocos,esculpidaparaumaexposiçãodeesculturasaoar

livrenacidadedeMünster,em

1977.Tallowcontraria

qualquerpropostade

“embelezar”oambiente.Aoinvésdeoptarporum

lugarfavorável,Beuysescolhe,

segundoCarolineTisdall,opiorlugarpossível–um

canto”morto”sobarampade

acessoaoauditóriodauniversidade,ondesóacumulapoeira.Fazdestecantoomolde

doqueviriaasersuapoderosaobra,preenchendocomgorduraanimalovazio

correspondenteàquelelugar.Afirmaassimoautênticopotencialartísticoda

escultura,emcontraposiçãoaoqueoartistacertavezdefiniucomo“pequenogueto

pseudo-cultural”domundodaarte.

Comosecapazdeescutaraquelecantoabandonadoaoatingiramesma

freqüênciasonora,Beuysreiteraaoseumodoaquelaressonâncianaimensamassa

gordurosa.Fazescultura.Estabelecealigaentreodesertodeconcretoproduzidopelo

planejamentourbanocontemporâneo,materializando,porassimdizer,opensamento

acercadosmotivossubjacentesàtalplanejamentonumadosecavalardematériaviva.

Oresultado,umaimpressionantepeça

degorduraanimal,cortada

afrio

(delicadíssimaoperação)em

cincoblocosquecontinuamumapulsaçãoúnica.

Aquelessólidosextraordináriossósedeixam

acompanharaoritmodaenergia

circulanteemseuinterior,aindaquente38.Feitosdeumamatériabruta,quedemorou

trêsmesesparasolidificar-se,sãocomoseresesquisitos,esilenciosos,quecontinuam

suavidafazendozumbirnossoouvido.

38SegundoBeuys,“essaéaprimeiraesculturaquenuncaesfriará,eseelaesfriarelanuncaficará

quentenovamente.”

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73

Figu

ra10

–B

euys

traba

lha

emTa

llow

ÉimpressionanteafotografiadeBeuysjuntoaumdoscincoblocoscortados.

Diminutoemrelaçãoàquelapeçaenorme,oartistadeixaclaraaconsciênciaacerca

dasuaresponsabilidadepelapermanênciamaterialdealgumacoisanomundo.Tal

permanêncianãosetraduznumaformafixaetangível,esimem

umaatividade

orgânicaconcomitanteàconstânciadeum

trabalhodemundoqueédevolvidoanós.

Assimoartistaconcebesuaplástica,demonstradaemtodoseuvigorcom

Tallow,no

qualsetrabalhaamatériamenosparavencersuaresistênciadoqueparadelimitara

cristalizaçãodomovimentoorgânicodagordura.Seuofíciodeescultornãoémoldar

ouentalhar,éacompanharomovimentointernodascoisas.Trata-sedeum

processo

detransportedeenergia,comoBeuysdeclaraeevidencia,porvezes,literalmente,nas

obras.Umapermanentereativação

desubstânciasno

sentidode

assegurara

possibilidadedealgocomoqueaarteestejaemrelação–aprópriapossibilidadede

substânciapoética.

Atentoàspropriedadesfísicasdoselementos,fazligamaterialforteobastante

paracausarum

impactonoespectador,oqualacabaporsentirmodificadassuas

próprias“propriedades”.ComooeconopeitoprovocadoporTallow,gritoabafado

deadvertênciaacercadenossaprópriacapacidadedepensamento,produção,criação.

Taléosentidodoesculpirbeuysiano:exercícioderealizaçãodaobraenquanto

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Page 152: Apostila Joseph Beuys

74

reativaçãoconstantedapossibilidadeprodutiva.Atensão39épermanente,quase

material,tomanãosóoolhardoespectador,mastodooseucorpo/mente.Équeaarte

ainda(esempre)estáporvir,eéurgentequetodossedêem

contadisso,parece

ensinarBeuys.Convictodopotencialcriativodohomem,oartistareitera,acada

trabalho,asubstânciapoéticaquelheéinerente(todohomem

éum

artista,Beuys

repete),comoumverdadeiroatodefé,segundoCarolineTisdall.

“Aquestãoéacapacidadedecadaum

sobreseulugardetrabalho,oquecontaéa

capacidadedeumaenfermeiraoudeum

agricultordesetornarumapotênciacriativa,ea

reconhecê-lacomoumapartedeumdeverartísticoaexecutar.Eisaquestão.”40

EmSite(1967)Beuysnosincitaàcompreensãodaplástica-quejánasceno

homem

eabrangetodasassuasfaculdadeseosseussentidos-atravésdospés.

Executaumaespécieesquisitadetapetegeométricocomplacasdecobre,feltroe

gordura,porsobreoqualdevemos

caminhar.Eventualreferênciairônica

ao

Minimalismo41 ,Siteindicamenosum

deslocamentoespacialdoqueapassagem

de

umestágioparaoutro,mudançadeestadoexplícitanafusãodofeltroedagordura.

Ignoraolocalespecífico,constituindoolugardeum

eventohumanototal,segundo

Beuys,“umlugardesignado,ondealgumacoisaaconteceuoupodeacontecerno

futuro”.Acomeçarpelasdiferentesreaçõesqueocorrementreospésdopassanteeos

materiais:amaleávelcombinaçãodefeltroegorduracede,gastando-seconformevai

sendopisada,jáasplacasdecobreresistem.Eassimoartistademonstranapráticao

movimentoinerenteasuaplástica:aocaminharsobreesselugar,“eledeveriadarum

novo

entendimentoacercadaPlasticidade-Elasticidaderecebidaatravésdospés

(...)”.42

39Aforçadosobjetosadvémdeum

“sensaigudesproportionsetdesemplacements.Ilses’agit

jamaisd’uneidéequisetrouveréaliséemaisd’uneréalisationqui,parunecertainedisposition

physique,sevoitchargéedesens(...)l’essencedel’oeuvren’estplusum

pointfixeetdistant,em

dehorsdeceluiquilesregarde,maiselleestdanslaformequisesitueentrel’oeuvreetlespectateur,

danslatensiondesonregard”.HERGOTT,Fabrice.

L’A

rtC

omm

eun

Cou

teau

Aig

uisé.In

CENTREGEORGESPOMPIDOU.JosephBeuys(Cat.Expo.).Op.cit.,p.73.

40BEUYS,Joseph.P

arla

prés

ente

,je

n’ap

part

iens

plus

àl’a

rt.Paris,L’Arche,1998,p.30.

41SegundoRosenthal,apalavra“site”éumleitmotifentreosMinimalistaseartistasafins,eétambém

otítulodotrabalhodedançadeRobertMorriseYvonneRainerexecutadoduranteumavisitae

Düsseldorfem1964,quandoBeuysencontraMorris.Noentanto,otrabalhodeBeuysdemesmotítulo

nãoevocarianenhumadaspreocupaçõesdosamericanos.

Jose

phB

euys

:A

ctio

ns,

Vitr

ines

,E

nvir

onm

ents

.ROSENTHAL,Mark.Houston,MenilFoundation,2004.

42BEUYS,Joseph.ApudCarolineTISDALL.J

osep

hB

euys.Cat.Expo.Guggenheim,1989,p.160.

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75

Figu

ra11

-Site

Essasensação,recebidapelospés,percorretodoonossocorposeguindoatéa

mentenumacorrenteúnica.OmododareceptividadedeSiteexemplificatoscae

radicalmenteoprocessodecontra-imagem

43quedistinguetodaapoéticabeuysiana.

Nesseprocessoéequacionadooqueocríticonorte-americanoHaroldRosenberg44

chamade“atocriativopessoal”doespectador,queparticipada“correntecontínuade

criações”àqualaartedevesuasobrevivência.OqueBeuyspropõeéumaespéciede

correntealternada,quepode

edeveserinvertida

peloespectador.Aorepetir

determinadafreqüênciadeondas,elaéalteradajustopornossomovimentointerior,

numacontínuareativaçãodesubstâncias.Trata-se,afinal,domesmoprocessode

armazenamentoetransmissãodeenergia,comunicadopeloartistasobaformada

permanenteindagaçãoquevisaàsobrevidadaarte(com

freqüência,quandodo

aparecimentodeBeuys,perguntou-seacercadapertinênciadesuaarte).

43“Youreallydogetintoazoneofdeathwhenyoubecomeconsciousofourcontemporary

civilization,oftheconceptbehindit.Butthisdarkmoodcanprovoketheoppositemoodinpeople,

youknow.I’vealwaysthoughtthatitwouldbebettertousecolorlessmaterials,forinstance,

especiallyinactionsandhappenings,andfortoolsandsculptures.Initially,Imean,thematerialis

colorless–youmightthinkofgreyasbeingtheneutralizationoranimageofneutralizationinthearea

ofcolor.Iusethisgreytoprovokesomethinginpeople,somethinglikeacounter-image–youmight

evensay,tocreatearainbowinpeople’sminds…”BEUYS,Joseph.I

fno

thin

gsa

ysno

thin

g.In

BASTIAN,Heiner;SIMMEN

Jeannot.JosephBeuys.Zeichnungen.Tekeningen.Drawings.Prestel-

Verlag,München,1979.

44ROSENBERG,Harold.

Obj

eto

Ans

ioso.SãoPaulo,Cosac&Naify,2004,p.279.

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Page 153: Apostila Joseph Beuys

76

Odesafio

inerenteatodaarteaparecenaobracomoprovocação.Nossa

adesãoérápida.A

obra“fere”logo,efica,incômoda,àsvezesdolorida,comoum

leveformigamentoouum

profundoeconopeito.Ouum

arrepioleve,comono

desenhoNinfa-floral(1956),cujacontraçãodaalongadafigurafemininaemaquarela

nopapeldesedapareceserepetirbemnasuperfíciedanossaprópriapele.Équeao

delimitarocorpodecabeçapendenteepernasdobradasnoespaçodeumafolhade

papelextremamentefino,aaquarelaprovocaasuacontração,ealiformaveiosque

irradiamdafiguraparadiferentesdireçõesdafolha.Beuysfiguraaoconformaro

estadodaimagem

nasuperfíciedopapel,“àflordapele”,talcomodeixanossos

nervos.Apelículatransparentedepapeldesedaeaquarela,talqualpelefina

enrugada,continuapornossaepiderme,eriçando

sutilmenteospêlosdenossos

braços.

Figu

ra12

–N

infa

Flor

al

JáasAbelhas-Rainha

45(1952)incomodam

maisnofundo,causandouma

sensaçãodoloridanaregiãosuperiordacoxapelacontinuidadeintestinacomas

massasdeceraedemadeira.Aquelesamálgamasparecemseresvivos,menospor

umamorfologiadoqueporumaorganicidade,queremetetantoàatividadedeórgãos,

veiaseartérias(Abelha-rainha

3)quantoaumaespéciede

fossilizaçãodesta

45Otemadasabelhasem

Beuys,juntoaseusprodutos,comoceraemel,devesercompreendidoa

partirdasualeiturade“SobreAbelhas”(1923),obradeRudolfSteinerquepropõeomodode

organizaçãodosinsetoscomoummodeloparaoshomens.

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77

atividadeorgânica(Abelhas-rainha1e2).Freqüenteem

seusdesenhosiniciais,o

motivodaabelhacertamenteserelacionacomaformaçãoeoespíritocientíficosdo

artista,assimcomoàssuasleiturascompulsivas.

Figu

ra13

–A

belh

a-ra

inha

3

UtilizadonafamosaaçãoComoseexplicam

quadrosaumalebremorta

(1965),omelremeteàcapacidadedeproduçãoapartirdoprocessamentointerno(no

interiordoorganismodasabelhas)deum

elementoexterno(opólen).Transparente,

douradoeviscoso–edoce!-,escorrefirmeelentamente,num

interessanteestado

intermediário.Damesmaformavariáveldolíquidoemesmovolumefixodosólido,

oscilaentreabaixavibraçãodasmoléculascaracterísticadoestadosólidoesuaalta

vibraçãoquandonoestadolíquido,caracterizandobemadisposiçãoprodutivado

próprio

homem,qualificadaporBeuyscomoestado-mel.46Omel,aliás,parece

46“Sil’onprocedeparalchimie:quelquerpartdanslafleur,làprocessuscalorifiqueestleplusintense,

làounaissentlesmatièresodoriférantesquisediffusentdansl’espaceenvironant,làouseformele

néctar,l’authentiquemieldesplantes,auniveauqu’onpurraitdéjàappelerstade-mieletdéjàatteint

parlaplante.C’estcemielquel’abeilleprendetauquelellefaitencoreunefoistraversersoncorps

pouremfaireunechosesupérieure,luidonnerl’éfficacitésupérieuredeceteffet-mielgénéralement

présentdanslanature.L’abeillenefaitriend’autrequecollecterettransposeràumniveausupérieur...

Ilfautbiencomprendrequetoutceciestenquelquesorteumproduitdelacivilisation.Laruchetoute

entière,tellequenouslaconnaissonsaujourd-hui,estuneformequeleshommesontcrééepar

dressage,carlesabeillessauvagesagissentumpeucommelesguêpes,demanièreassezanarchique,et

façonnentdepetitsrayonsdemielirréguliers...Ceciesteffectivementlefruitd’unecultureet

representeunecomprehensionthérapeutique…Autrefoisetmaintenantencore,onutilizelemielàdes

finsthérapeutiques…Le

laitetlemile...”BEUYS,Joseph.ApudBernhardBLUME.

Beu

ysA

lchi

mis

te.InCENTREGEORGESPOMPIDOU.JosephBeuys(cat.expo.).Op.cit.,p.254.

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Page 154: Apostila Joseph Beuys

78

conjugarastrêsetapasde

suaTeoriada

Escultura:forma/idéia,potênciae

movimento.Etapasverificadasnacerasolidificadaqueguardaasdiferentesfasesdo

derreter,doescorreredocristalizar,e,conseqüentemente,docaloredoresfriamento.

Portransferência,digamos,Beuysdemonstracomaceraacapacidadequeo

homemtemdecriarsubstânciasnelemesmo.Espéciehumanadecera,opensamento

constituianossasubstânciaporexcelência,princípiocriativodemonstradoporBeuys

nassuasextensasredesdeassociaçõese/ounasmassasgordurosasqueobedecemao

mesmoprincípiode

movimento.Assim,aindaquesejapossívelinterpretar

logicamentesuastramasintrincadas,estasnãosesujeitamaum

encadeamentolinear

dopensamento,têm

adensidadedesuaprópriaarticulação,denaturezamúltipla,a

serexperimentadacomnossos25sentidos.

Épelomovimentodopensamentodoespectadorqueoimpactodaobrade

arteprossegue,de

outro

modo,em

outra

freqüência,digamos,exigindo

uma

capacidadedevisãoqueuneintuiçãoeraciocínio.Aspessoasantesdetudodevem

sercapazesde

ver.Em

arte,reconheceBeuys,nãohá

nada

paraentender,

absolutamentenada.Somenteaconjugaçãoentreintuiçãoeraciocíniobastaparaa

extremacuriosidadedemundodeBeuys,quenainfânciatomaaformadeum

laboratóriomultidisciplinar47,atéchegaraseuconceitoalargadodearte.Intuiçãoe

raciocínioestãoem

definitivoincorporadosàdimensãoexistencialdaapaixonada

poéticabeuysiana.Ésobreumapaixãopelopensamentodefinidoradaprópriavida

queescreveClimacus,oestudantedefilosofiadeKierkegaard:

“Estavaapaixonado,ardorosamenteapaixonado–pelopensamento,ou,antes,pelo

pensar.Nenhumjovemapaixonado,diantedapassagemincompreensível,naqualoamor

despertanoseupeito,diantedorelâmpagoqueacendenaamadaum

amorrecíproco,

poderia

experimentarumaemoçãomaisprofundado

queelediantedapassagem

compreensívelem

queum

pensamentoseencadeiaem

outro,umapassagem

que

representavaparaeleoinstantefelizdarealizaçãodoquepressentiraeesperarano

silênciodesuaalma....prestavaatençãoaomurmúriosecretodospensamentos;seuolhar

tornava-sesonhador,nãoporqueadivinhasseaimagem

daamada,masporqueviao

movimentodopensamentoaparecerdiantedesi.”48

47SegundoBeuys,aoscincoanosdeidadeelejátinhadesenvolvidoumlaboratórioenvolvendofísica,

química,meditaçãoepesquisaem

todosostiposdesistemas,oqueteriamuitoavercomseu

desenvolvimentoposterior.BEUYS,Joseph.ApudCarolineTISDALL.

Jose

phB

euys

:w

ego

this

way.London,VioletteEditions,1998,p6.

48KIERKEGAARD,Sören.É

prec

iso

duvi

dar

detu

do.SãoPaulo,MartinsFontes,2003,p.7.

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79

Aintençãoaoreproduziralongacitaçãonãoétransporaspalavrasde

ClimacusparaBeuys,ésugerirumaaproximaçãodeprocedimentos.Assimcomo

Kierkegaardlidacomaincompatibilidadeentreafilosofiaeaexistência,entreuma

compreensãoatemporaldo

mundo

pelopensamentoeumaexistênciatemporal,

Beuysinsistenainsuficiênciado“pseudo-guetocultural”daarteparaum

pleno

desenvolvimentodascapacidadesdohomem.Amboscontinuam,porém,atrabalhar

arduamente,comumaféinabalávelnapossibilidadedeumaarteeumafilosofia.

2.3.

2Fo

rmas

pens

ante

s49

Nousjetonsiciumregardprofondémentinstructifdanslanatureacoustiquedel’âme,etnous

trouvonsuneressemblancenouvelleentrelalumièreetlapensée,puisquetoutesdeuxs’allientàdes

oscilationsouàdesvibrations.

Novalis,Fragments

Aatividadeplásticacomeçanodesenho,primeiraeconstantereaçãopoética

que,desdeapráticadaaquarelanosanos1940atéosesquemascursivosdosquadros-

negrosdofinaldosanos1970,incorporaanoçãodemovimento.Sãodedezavinte

mildesenhos,algoencantatórios,cujaforçaresideem

noscoadunarcomoritmo

instaurado

pelasmatériasutilizadas.Tãoóbvianaaquarela,tambémnítidanos

múltiplostraçosagrafiteounaopacidadeluminosadosóleossobrepapel,uma

fluênciasubstantivaconformaaplásticabeuysianasempreem

processo.Matérias-

figuraçõescirculam

simultâneasaum

pensarinconclusivo,verificadotantonas

intrincadasredesdeassociaçõesquantoemdespretenciosasnotascomo,porexemplo,

astrêsfigurashumanasproduzidasemaquarelaentre1956/58.

49AssimJosephBeuysrefere-seaosseusdesenhos.

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Page 155: Apostila Joseph Beuys

80

Figu

ra14

-Mäd

chen

Traçosdepigmentosecosugeremacabeça,obraço,ovestidoeaspernasda

apagadaMädchen(1958),taiscomoporçõesremanescentesdeumaimagemanterior

bemdefinida.Sangrandoabordadireitadafolhadepapel,afigurafemininaparece

sofrermaisaaçãodotempodoqueadoartista-eresiste.Avibraçãotênuedo

pigmentodefineaforçadeumaimagem

fugidiaqueimprimeumapassagem

de

tempoindefinida,masefetivamentesentidacomorealidade.

Jánaaquarelasemtítulodomesmoano,vemosnametadesuperiordeuma

folhadepapelbem

comprida(40,9X9,5cm)um

corpohumanofeitodepequenas

áreasretangularesem

suavestonsdecarne,ligeiramentesobrepostas.Articulando

somenteopulso,Beuysinterfereemdiferentestemposdesecagemdaáguaeobtém

concentraçõesvariáveisdepigmento.Équandoafiguraganha“corpo”,etronco,

braços,regiãopubianaepernas–precários-surgemnoexatoinstantedaconjugação

entreomovimentodopinceleaimprecisãocaracterísticadaaquarela.Esseestado

intermediárioúmido,digamos,apresentaumasuperfícieintranqüilaque,reforçada

porsuaorientaçãodesproporcionalmentevertical,garanteoaspectoinacabável(enão

inacabado)dodesenho.

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81

Figu

ra15

–se

mtít

ulo

Éocasodanítidasilhuetahumanasemtítulo(Akt)de1956(18,2X13,1cm),

umamassacompactaformadapelasobreposiçãodecamadascinzaesverdeadoque

sugeremzonasdeluzesombradeumaesculturadecorpo“nu”,em

perfil.O

movimentodopincelacompanha,repetidasvezes,ocontornocurvilíneodafigurae

produzsucessivasveladurascomdiferentesconcentraçõesdepigmentoque,tais

comocorrentesalternadasdeenergia,fazemafigurabrilhar.Brilhodeumaplástica

inerenteaopigmento,indiciaaenergiacirculantequecorrespondeaotrabalhointerno

humano.

Figu

ra16

–se

mtít

ulo

(Akt

)

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Page 156: Apostila Joseph Beuys

82

Esse

trabalhoéopróprio

pensar,exclusivaatividadedo

homem,

constantementereativadoporBeuysnodesenho.Pormeiodessaatividade,oartista

trazàtonadopapel(rasgado,deembrulhooubloco,oqueestiveràmão,enfim)o

invisívelprodutohumanoeodeixavazarbrutonomundo,emseuaspectocaótico

mesmo,talcomosedá

internamente.Conservaseuvolumeesuavibração,

permitindoopróprio

“movimentodopensamentoaparecerdiantede(...)[nós]”

(Climacus).Afinal,ede

acordo

comopróprio

artista,odesenhojáestáno

pensamento,eentãoeleéopensamento50.Guardaporinteiro

aenergiadoseu

movimentorevelando-anumoutroestado.Conservasobreopapelointervaloentrea

purapotênciadopensamentoesuarealidade,oquetornaodesenhocapazde

influenciaralinguagem/plásticadeBeuyse,simultaneamente,dereverterparaseu

própriopensamento.

Daíocaráterde“pesquisapura”dessesdesenhos,comobemdefiniuHansvan

derGrinten(umdosprimeiroscolecionadoresdasobrasdeBeuys,juntamentecom

seuirmão,cujoceleiroabrigouaprimeiraexposiçãodoartista,“BeuysFluxus”).Sem

pretenderqualquerconhecimentoespecífico,oartistaacompanhacomodesenhoo

rastrodaenergiadopensamentonamaterialidadedomundo.Poisjustoemoposição

àespecificidadequeesclerosaascapacidadesdohomem,oartistaprocuraaspróprias

basesda

criatividadehumana,préviaàbipolarização

entre

arteeciênciano

pensamentoocidental.Deacordocomopróprioartista,elecomeçaadesenharpara

desenvolverumametodologiaparapensarsobrearteeciência51 .

O“resultado”:

desenhos

dificilmente

datadoseclassificáveisque

acompanham,esquematicamenteoupormeiodesubstânciasfluidas,ofluxode

pensamento.Naação

Hauptstrom>>Fluxus52(1967),porexemplo,odesenho

50AreferênciadeBeuysacercadapresençadodesenhonopensamentopodeserrelacionadacomo

antigoconceitodeIdea,queexistetantointernaquantoexternamente.Sobreadiscussãoda

transformaçãosofridapeloconceitodeidéiadePlatãoaolongodaAntigüidade,verPANOFSKY,

Erwin.I

dea:

Aev

oluç

ãodo

conc

eito

debe

lo.SãoPaulo,MartinsFontes,1994.

51Aindaquenadécadade1970Beuysreconheçanaciênciao‘limitedaimprescindívelexigênciado

pensamentológico’,oquejustificasuaopçãopelaarte,pois‘somenteaartepodeserrevolucionária.’

BEUYS,Joseph.A

Rev

oluç

ãoso

mos

nós.InGloriaFERREIRA;CecíliaCOTRIM(org.).Escritosde

artistas:anos60/70.RiodeJaneiro,JorgeZaharEditor,2006,p.300-324.

52Aaçãofoirealizadaem20demarçode1967,juntamentecomHenningChristiansen,porocasiãoda

aberturadesuaexposiçãoFettraum(espaçodegordura),numaresidênciaparticularem

Darmstadt.

SegundoFabriceHergott,amovimentaçãosedáatravésde“linhaspróximasaotrajetodalebre,

animalqueBeuysnãopáradeimitaraodarpulos,saltosemcírculos,oupermanecerimóvelagachado,

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83

formadoporsériesdelinhasirregulares,emzigue-zagues,num

cadernodepáginas

quadriculadas,seria

capazde

registrarasvariaçõesde

umaenergiainstintiva

encarnadapelalebreesuarelaçãocomopensamentohumanorepresentadopelas

palavras.Ouem

Vulcão(1949),ondeépossívelrefazeravelocidadeeaforçado

traçarexecutadopeloartistaealentasecagemdaágua,quecarregaopigmentoeo

concentranoscantosinferioresenapartesuperiorcentraldafolhadepapel(oque

nospermitesuporqueBeuysatenhavirado).Equasesentiroaveludadodasmanchas

docantoinferiordireitoedopróprionúcleodo“vulcão”-brumaavermelhadade

pigmentosecoqueentranhanossulcosdecrayon,maisoumenosdefinidosdeacordo

comavariaçãodaforçaempregadanaextensãodoemaranhado.Talqualaimagem

deumaexplosãovulcânica,aefervescênciadopensamentotransparecenaprópria

presençabrutadeumasubstânciaplástica,indefinidaeilimitada.

Figu

ra17

–V

ulcã

o

Utilizadosprincipalmentenadécadade1950,aquarelaeoutrosmateriais

aquosos,comocháousanguedelebre,constituemexcelentesmeiosdeconversãodo

caráterfluidodessasubstânciaparaasuperfíciedopapel.Paraalém

daspossíveis

implicaçõessimbólicasdosangue,porexemplo,esseslíquidosdeixam

visíveisas

etapasdoseupercursoem

diferentescamadas,fixandonoespaçodeumafolhade

papelointervalodetempodotransportedopigmento.Sãoessas“etapas-camadas”

adotandoum

gestualouexpressõesindodopuromimetismodalebreàimagem

dopensador”.In

CENTREGEORGESPOMPIDOU.J

osep

hB

euys.(Cat.Expo)Op.Cit.,p.293.

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Page 157: Apostila Joseph Beuys

84

movediçasdecorquedeterminam

ocontinuumespaço-temporalde

matériae

figuraçãocaracterísticodas“formaspensantes”-formasdoprocessodopensamento

quecontém

jáo“primeirocomeçodemudançadacondiçãomaterialdomundo”53 .

Registrodeum

“pensarquejáémoldar”,odesenhoéaextensãodopensamentona

superfíciedopapelassimcomoalínguaoénaspalavras,eaesculturasocialno

mundoondevivemos.

Oraiodaação

doescultorincide

nointervalodaturbulênciaentre

o

pensamentoeumaforma,nomodopeloqualmoldamosdesenho,falaousociedade.

Válidaparaos“materiaisinvisíveisusadosportodomundo”,aplásticabeuysiana

compreendeos“processosprimáriosdebaseem

açãonaescultura”,apassagem

da

potênciaàrealidadedaformaliteralmenteconsubstanciadanocaráterreversívelde

matériascomoceraegordura.Équeaoreagiraocalor,essasmatériasderretem

e,

mesmodepoisdesolidificadas,guardamaformadoseuprocessodetransformação.

Independentementedeseusestadosatuais,vivemnaiminênciadamodificação,de

umamudança

deestado

físico,

movimento

constitutivoque,efetuado

pela

transferênciadeenergia(calor),nãoresultaem

deslocamentoespacial.Essetipode

movimentoédecisivoparaanoçãodeesculturadoartistaque,“docaosparaa

ordem,doindeterminadoparaodeterminado,doorgânicoparaoabstrato,doquente

paraofrio,daexpansãoparaacontração”,implicaaativaçãodealgosobformade

potência. Nabasedaplásticabeuysiana,oprincípiodamudançadeestadofísicofaz

lembraraimagemdatábuarecobertadeceraqueAristótelesutilizaem

“Deanima”

paratentardescreverapurapotênciadopensamentoesuatransiçãoaoato54 .Poisse

nãoéjustamenteapassagemdopensamentoàaçãoqueBeuysmanifestanasAktions

enosdesenhos?Umamudançadeestadodadisponibilidadementalouativaçãoda

consciência,queseria

oprimeirocomeçodemudançanacondiçãomaterialdo

53“Drawingformeisalreadyinthethought,andsothereforeitisthethought...[If]thecomplete

invisiblemeansofthinkingpowersarenotinaforma,thenitwillneverresultinagooddrawing.Soit

isthefirstbeginningofchangingthematerialconditionintheworld...throughoutsculpture,

throughoutmachineryorengineering...whereuniversalsthroughdrawingendnotwiththeconceptof

drawingofthetraditionalartist.”BEUYS,Joseph.J

osep

hB

euys

and

the

lang

uage

ofdr

awin

g,p.

103.

54NaGréciadoséculoIVA.C.com

maiorfreqüência,especialmenteparausoprivado,seescrevia

gravandocomuminstrumentoumatábuacobertadeumafinacamadadecera.

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85

mundo.Enãoseriaentãopossívelpensartodasuaatividadecomodemonstraçãoda

possibilidade(eurgência!)dorevolverdessacamadadeceraaomínimo“escorrer”

dopensamento?Beuysmostraaoespectadoroimpulsoessencialdofazeromundo,

presenteem

cadahomem

aomododeumapotencialidadecomoum

ecodasua

intuiçãodeescultura55.

Eapartirdeumaligaçãofísica,numprocessode“sentirsubstâncias”,o

escultorvisaàrestituiçãodosentidooriginaldotermo“moldar”–aplicado,em

temposeculturasanteriores,tantoàconsciênciaquantoaomaterialnosentido

escultórico.Oqueficaevidentena

substânciaoleosa

marromavermelhada

Braunkreuz(cruzmarrom)que,muitousadaemdesenhos,principalmenteapartirda

décadade1960,torna-seumaespéciedemarcaregistradadoartista.Épossívelouvir

nelaoecodonomedeChristianRosenkreuz56outodasasimplicaçõessimbólicasda

cruz,relacionadaaocristianismoouaonazismo(cruzdupla).Apesardevariar

consideravelmenteemtonalidadeetextura,asubstânciapossuitalsolidezqueremete

àsensaçãodesujeira,aevocaremnós“oconjuntodomundodecores...provocarde

algummodoum

mundoclaroeluminoso,um

mundotãosupra-sensíveleespiritual

quantopossível,eissoporsuaimagemcontrária.”.

AntesdoBraunkreuz,Beuysteriautilizadosubstânciasoleosascinza,como

aqueladaespessamanchaqueconstituiodesenhoTeoriadaescultura(1958).Mais

“frio”doqueaquelemarrom,essecinzaopacosegue,porém,omesmoprincípioda

contra-imagem:grudadisplicenteefirmenasuperfíciedopapel,oferecendoatrito

suficienteparacolocaremmovimentoopensamentodoespectador,que“existecomo

potênciadepensarenãopensar,comoumatábuaenceradanaqualnãohánada

escrito.”57Aoconcentrarpotência(matériacinza)eforma(teoriadaescultura)na

55“(...)j’aiouvertlelivre,j’aivuunesculpturedeLehmbruckettoutàcoupj’aieul’intuitionqu’avec

lasculptureonpouvaitfairequelquechosedeformidable.‘Toutestsculpture’,semblaitmecriercette

image.”BEUYS,Joseph.ApudMarionHOHLFELDT.

Chr

onol

ogie

.InCENTREGEORGES

POMPIDOU.JosephBeuys(cat.expo)Op.Cit.,248.

56ChristianRosenkreuzéomísticoapartirdoqualfoinomeadaaseitaRosa-cruz,umadasbasesdas

teoriasdeRudolfSteiner-provavelmenteatravésdasquaisBeuyssetornoufamiliarcomoRosacruz.

57AGAMBEN,Giorgio.

Bar

tleby

ode

laco

ntin

gênc

ia.InPreferiríria

nohacerlo:Bartlebyel

escribientedeHermanMelville.Valencia,Pre-textos,2001,p.99.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

Page 158: Apostila Joseph Beuys

86

substânciaúnicado

desenhosegundoomecanismoda

contra-imagem,Beuys

revigoraumaherançaculturalalemãdeproduçãodeimagem.58

Figu

ra18

–O

h,Fa

lada

alip

endi

as

Otempodofluxodopensamentobeuysianoficamarcadonasuperfíciedo

papelatravésdoescoamentodesubstânciasúmidas,ou“secas”comoOh,Falada,ali

pendias(1950),quandoanítidafiguraçãodeum

bustodecavaloparece“escorrer”

pelafolhadepapelnumasérie

delinhasdediferentesgradações.Figuraçãoe

“abstração”totalizamumaúnicamassadedesenhocujadensidadeéproporcionalao

volumedopensamento.Porissoháincrivelmentemuitonodesenho.Espéciedeliga

dotempodopensar,odesenhotrabalhaovolumedopensamentohumano.

Seguindo

ofluxo

essencialmentepré-verbaldo

pensamento,odesenho

acompanhatodasasatividadescotidianasdoartista59.E,subtraindo-seàfugados

58AlainBorerobservaquenotermoBildbauerkunstoatodebater(bauen)éassociadoaBild,

‘imagem’,que,porsuavez,associa-seà‘idéia’,comonapalavragregaeiden.BORER,Alain.J

osep

hB

euys.SãoPaulo,Cosac&Naify,2001,p.14.Lembramosentãodaproduçãodeimagensem

xilogravura,cujaorigemremontaaotrabalhodoourives.SegundoPanofsky,osmaioresgravadoresdo

séculoXVnãosão,originalmente,nempintoresnemiluminadores,masourivesqueaplicam

sua

tecnologiaantigaaumanovafinalidade:produzirdesenhossobrepapelnolugardedecoraçõessobre

metal.PANOFSKY,Erwin.L

’art

etla

vie

deA

lbre

chtD

ürer.Op.Cit.,p.12.

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87

instantes,estabeleceapresençaespacialdotempoem

ritmosvariáveis:agudoe

convulsivoemVulcão,sutilelíricoemCabeçadeVeado(1954),vivoedelicadonos

várioscorposfemininosalongadose/oucontorcidos,algocoaguladoemOh,falada,

pendias.Estessãoalgunsdos456desenhosselecionadospelopróprioartistaemThe

SecretBlockforasecretperson

inIreland60 ,realizadosentre

1936

e1976

e

apresentadospelaprimeiravezem

1974,nacidadeinglesadeOxford.Sobriamente

emolduradosem

madeiraclara,estesdesenhos

cobrem

extensorepertório

de

observaçãocientífica,ficção,mito

ehistória,quedeveserlidonassuastramas

particulares,mastambém,eprincipalmente,sentidocomoum

blocoescultórico

indivisível.

“Estãoaquidesenhosqueeucoloqueideladoduranteanos,umpoucoaquieláacadaano.

Hámilharesdessesdesenhosem

coleçõesprivadas,masanaturezadesseblocosecretoé

diferente...em

seuconjunto,elerepresentaminhaseleçãodeformaspensantes(thinking

forms)emevoluçãoduranteum

períododado(...)Eramuitoimportanteparamimfazeresses

desenhos–paramim,elesestãomaispróximosdarealidadedoquedeoutrosgênerosda

pretensarealidade.”61

Umengenhososimbolismocompõeosegredoimpossíveldeserdecifrado

apenaspeloencadeamentológicodas“pistas”fornecidasporBeuys.Comosugere

CarolineTisdall,odesenhoseria

umaespéciedelinguagem

secreta,umaforma

codificadacujaaparênciaclara,objetivaecientíficaconservaria

osegredo.À

primeiravistaumailustraçãocientífica,osegundodesenhodobloco,Tulipidendron

lyriofolium(1948),porexemplo,revela-seainvestigaçãolíricadafolhadeuma

planta.Doisretângulossobrepostos,levementetraçadosem

grafite,definem

pontos

59“Beuyshasbeendescribedbythosewhoknewhimasconstantlydrawing;hedrewwhiletraveling,

whilewatchingTV,whileinprivatediscussion,whileinperformance.”TEMKIN,Ann.JosephBeuys:

lifedrawing.InAnnTEMKIN;BerniceROSE.T

hink

ing

isfo

rm:

the

draw

ings

ofJo

seph

Beu

ys.

NewYork,ThamesandHudson,1993.

60Patentenotítulo,arelaçãocomaIrlandapassapelafascinaçãodeBeuyscomouniversoceltaassim

comoporsuaafinidadecomJamesJoyce,leituradejuventudeimportanteparaodesenvolvimentode

suapoética,oqueéconfirmadonosSketchbooksdeUlyssesde1958-61.AaproximaçãocomJoyce

parecesedarporsuaexperimentaçãodelinguagem

indissociadadaatençãoàtradiçãoirlandesa.O

envolvimentocomosmitos,culturaepaisagemCeltascoincidecomadescobertadeumainterconexão

entreessacivilizaçãoeacidadenataldoartista,Clèves,situadaaolongodopercursofeitopelosceltas

paraatingironortedaÍndia.DeacordocomCarolineTisdall,“comoosceltas,elefaziapartedesses

seresquejamaisserevelamtotalmente.Eleeraum

tipode‘receptáculoaossegredos’.”TISDALL,

Caroline(entrevista)InCENTREGEORGESPOMPIDOU.J

osep

hB

euys.Op.cit,p.342.

61BEUYS,Joseph.EntrevistaaCarolineTisdall.ApudHERGOTT,FabriceInCENTREGEORGES

POMPIDOU.J

osep

hB

euys.(cat.Expo),p.93.

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Page 159: Apostila Joseph Beuys

88

quedividemafiguraemzonassimétricaseassimevidenciamosvaziosdobrancodo

papeleoscheiospelaaquarela.Verde,marromeamareloseinterpenetrame

preenchemocorpodafolha,comoquesubmetidaaumaestranhaedelicadaanálise

químicadesuageometria,capazderevelarcomprecisãoaefemeridadeoumistério

dasuavida.

Figu

ra19

-Tul

ipid

endr

only

riofo

lium

Ostítulosdemuitosdosdesenhos–um

longotravessãoseguidopelosinalde

interrogaçãoepeloanoem

queaobrafoirealizada-deixam

claraanatureza

investigativadalinguagem.Umainvestigaçãoespiritualeintelectual,aseguircada

oscilaçãodopensamento,nosmínimosmovimentos,comopesoprópriodosseus

atritoscomoassoalhodomundo,acumula-sesobaformadeenergiaemTheSecret

Block.Pois,sabendodairredutibilidadedacargaconcretavitalnopensamento,Beuys

faz“umadistinçãoentreadificuldadedoraciocínioeopesodopensamento”62–o

quecaracterizaadensidadeespecíficadosseustrabalhos.

62KIERKEGAARD,Sören.É

prec

iso

duvi

dar

detu

do.Op.Cit.,54.Nessepequenotextoinacabado,

publicadoemseusPapéis,oestudantedefilosofiaapaixonadopelopensamento,Climacus,localizao

pensamentonadimensãoconcretadaexistência,identificandoumaradicalheterogeneidadeentreeles

atravésdeimagensconcretas,comoaqueladoseudesmaioprovocadopelopesodoseupensamento.

Segueentão,tambématravésdeimagenscorriqueiras,comoospasseioseconversasdeClimacuseseu

paiporCopenhagen,aconstataçãodeumarealidadequenãopodeserconcebidademodoabstratopela

linguagem:“Naidealidadetudoétãoplenoquantonarealidadetudoéverdadeiro.Porisso,como

possodizerqueimediatamente,tudoéverdadeiro,possotambémdizerqueimediatamentetudoéreal;

poisapossibilidadesurgesónoinstanteemqueaidealidadeécolocadaemrelaçãocomarealidade”.

Idem,p.109.

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89

Sóentãoomundo

passaaexistir.Ummundo

muitoespiritualemuito

material,parafraseandoopoetaNovalis,cujanoçãoderomantização63cabeà

perfeiçãonocuidadodeBeuyscomavitalidadeconcretadascoisas,proporcionala

suavontadedeespiritualizarasociedade.Assimtodasuaatividadecompreendeum

processodecomunicação,operaçãosonoraquecomeçanacabeça,sempreprotegida

eaquecidapelochapéudefeltro.Lugardastransferênciasdo

pesodamatéria

pensamento,acabeçaéumaconstantedorepertóriobeuysiano.Em

Comoexplicar

pinturasparaumalebremorta,elaénutridapelomel,queescorremanifestandoo

carátereminentementeplásticoda

linguagem.Assim

comoocorre

naação

Titus/Iphigéniequando,aocuspirgorduraBeuys“demonstra‘oaspectofísico’da

língua,suacapacidadeplásticaenutritiva”64 .

Figu

ra20

–Ex

periê

ncia

deum

aca

veira

hibe

rnal

63“Lemondedoitêtreromantisé.C’estainsiqu’onretrouveralesensoriginel.Laromantisationn’est

autrechosequ’uneélévationauxpuissancesqualitatives.Lemoiinférieurestidentifiédanscette

operation,avecunmoimeilleur.Noussommesnous-mêmesunetellesériedepuissancesqualitatives.

Cetteopérationestencoreentièrementinconnue.Sijedonneàl’ordinaireum

senssupérieur,à

l’habituelum

aspectmystérieux,auconnuladignitédel’inconnu,aufinil’aspectdel’infini,jele

romantise.(...).”NOVALIS.

Frag

men

ts-p

réce

déde

les

disc

iple

Saïs.Paris,JoséCorti,1992,p.

297.

64“Certainsdessinspréparatoiresdel’action,les‘partitions’,etdesdiagrammestracesàlacraiesurle

solmontrent,àtraversdescoupesschématiséesde

cavitésbucco-laryngées,différentsstades

d’émissiond’um

sonet,parconséquent,lemouvementinternequenecessiteum

travaild’articulation,

l’aspectplastique

del’activité

langagière.”

Titu

s/Ip

higé

nie.MALET,Florence.InCENTRE

GEORGESPOMPIDOU(Cat.Expo).Op.cit.,p.311.

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Page 160: Apostila Joseph Beuys

90

Antesdeelaborarateoriadaescultura,BeuysesboçaExperiênciadeuma

caveirahibernal(1949-51),esquemabásicodacirculaçãodeenergianoprocessode

formação

dalinguagem/plástica.Traços

leveseprecisoslocalizam

naquela

cabeça/caveiraumacargadelinguagememestadobruto–aprópriapregnância65do

pensamentoquealimentatodooprocessoplástico.Semexpandir-se,opensamento

correpelosfiníssimoscanaisdasviasdo

cérebro,adeterminaropercursoda

formaçãodaautoconsciência.Atéaproduçãodafala,sugeridapelaconcentraçãode

linhasnaalturadafronte,um

dosvérticesdo

triângulocompostopelasvárias

nervurasdegrafitequeligamàgargantaeàparteposteriordocrânio.

Ao“exibir”suaidentidadesecretaemTheSecretBlockforaSecretPersonin

Ireland,Beuysestimulanoespectadoraproduçãodoseupróprio“segredo”.Éque,

aodeixarnaquelastramasintrincadasmarcasirredutíveisaumainterpretaçãoou

comunicaçãodireta,oartistaativariaacapacidadedoespectadordeproduzir–

contra-imagensquemodificamascondiçõesoriginais.

Figu

ra21

–C

aixa

Embo

rrach

ada

Domesmomodo,oardensoqueseconcentra

naescuraevaziaCaixa

emborrachada(1957)abreum

verdadeirocontra-espaço.Objetofeitoparaguardar

65“J’aipuresterdesheures,amoureuxdelasonoritédelalangue,c’est-à-direquandlaprégnancede

lapenséerésonneem

elle;j’aipuresterainsi,desheuresentières...commeum

joueurdeflûte

musarde

avec

asflûte.”KIERKEGAARD,Sören.ApudVIALLANEIX,Nelly.

La

Rep

rise

(introduction).Paris,Flammarion,1990,p.,41.

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91

coisas,acaixadeBeuysestávazia.Oamálgamademadeira,borrachaealcatrão

formaumacaixatãopesadaeescuraquantoosentimentoquemobilizaoartistapara

suaprodução–umadepressãograve,queoterialevadoaclínicaspsicológicasem

DüsseldorfeEssen.Certamentepodemserencontradosmotivosparaessadepressão-

seuesforçoparaseafirmarcomoartista,asdoresfísicasoriundasdaguerra,olutoem

relaçãoàcatástrofedoNazismonaAlemanha-,osquais,porsisó,nãoexplicam,

porém,aproduçãodacaixa.Oartistatrabalhanaqueleobjetoaconcentraçãodo

materialproduzidonafronteiraentreoíntimoeosocial,ointernoeoexterno,a

própriadimensãoespiritual-defato,oquecaracterizaahumanidadedohomem.

Quantomenosháespírito,menosháangústia,sentimentoirredutíveledesconhecido

queexplicaofatopeloqual“nenhumhomem

podesetornartransparenteparaele

mesmo.”Equeomobiliza.

Arelaçãoentre

angústiaecapacidade

émencionadaporVirgilius

Haufniensis66comoumaespéciedesentimentodeauto-capacitaçãocontraposto

a

umaproibiçãoouameaçaexterna,aindaquenãodefinida.Umaincertezaexistencial

que,seem

Beuystemrelaçãocomosegundopós-guerraesuaindefinição

profissionalnumpaísarruinado,éessencialmenteum

sofrimentoinerenteaum

sentimentodomundo.Umaadesãotãointensaquecapazde“levaranovosestadosde

consciência”,eproporcionaro“começodeumanovavida”,declaraoartista,que

enxerganaCaixaEmborrachadaumaespéciedeorigemdasuaTeoriadaEscultura:

“Euquerodizercomissoqueeuviarelaçãoqueexistiaentreocaosqueeuhavia

experimentadoeumaanalogiaescultural.Ocaospodeterum

caráterdecura,numa

ligaçãoquecanalizaocalordaenergiadocaosparatransformá-laemqualquercoisa

ordenadaoucolocadaemforma.”67

Talvez

sejalícito

pensaraCaixaEmborrachada

comomarca

desua

maturidadeartística,fronteirasimbólicaentreum

períododeisolamentoeumaetapa

artísticapública,quandoBeuyscomeçaamanipularprodutivamenteumaconturbada

66VirgiliusHaufniensisserefereàansiedadedeAdãocomoavagaeambivalenteexperiênciadeser

capazeproibido:“L’épouvanteicinepeutdevenirquedel’angoisse;carcequiaétéprononcé,Adam

nel’apáscomris,eticiencorenousn’avonsquel’équivoquedel’angoisse.Lapossibiliteinfiniede

pouvoir,qu’éveillaitladéfenseagrandidufaitquecettepossibilitéemévoqueumaautrecommeas

conséquence.”.KIERKEGAARD,Sören.M

iette

sph

iloso

phiq

ues/

Le

conc

eptd

el’a

ngoi

sse/

Tra

itédu

dése

spoi

r.Paris,ÉditionsGallimard,1990.,p.205.

67JosephBEUYS.CENTREGEORGESPOMPIDOU.J

osep

hB

euys.Op.cit.,p.257.

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Page 161: Apostila Joseph Beuys

92

individualidadenosegundopós-guerra.Comosetransformasseaexperiênciada

angústiaem

matériaplásticaessencial,oartistadelaextraiabaseteóricadeseu

conceitodearte-o“caráterprimáriomaisimportantedaesculturaem

geral”-,o

princípiodacontração,atravésdoqualadoríntimadoartistaguardadanacaixa

revelaaprópriadordomundo.Acaixaestásimvazia,mastodaabertaàinfinita

imensidãoindiferenciadadomundo.Guardaovaziodaprópriaincertezafundamental

daexperiênciadaangústianaqualsefundamentatodaexistêncianumarelaçãocomo

futuro,pois,inversamenteproporcionalàssuasreduzidasdimensõesfísicas(43X91

X77cm),seabretodooespaçodapossibilidade.Misteriosoleftoverbeuysiano–em

oposiçãoao“pacoteestéticoauto-explicativo”característicodepartedaobradearte

contemporânea,segundoocríticonorte-americanoHaroldRosenberg.

SeguindoomesmoprincípiodecontraçãodateoriaescultóricadeBeuys,a

gorduraviramaterialbrutocapazdedominarum

lugarcomseuodorfortequando

empregadaem

grande

quantidade,comona

salade

gorduraFettraum.A

irredutibilidade

doseuaspectoorgânico

importa,porém,no

queassume

fundamentalmenteuma“flexibilidadepsicologicamenteafetiva”,comoreconheceo

artista,paraquem“aspessoasinstintivamenteasentemrelacionadacomprocessose

sentimentosinternos”.Semointermediário

deum

supostoconteúdocomunicado,

estabelece-seumaespéciedeafinidadeimediata,quandoamatériaindistintaatingea

receptividadedoespectadorcomaintensidadedeseupróprioprocessointerno.O

caráterdereversibilidadefísicadagorduraacabaentãoporconverterparaaprópria

comunicaçãoentreobra/artistaeespectador,numapoderosacontra-imagem

quefaz

dagorduraamatériapreferencialdoescultor.

Ofortecaráterderealidadedagorduranãoéeliminadocomaformatação

triangulardoscantos.Aocontrário,comoqueopotencializa,acentuando

a

contradiçãoentrepotência/matériaeação/forma.AliBeuysparecemoldaraprópria

formavivadefinidaporSchillercomo“objetodoimpulso

lúdico”,noqualvida

constituioobjetodoimpulso

sensível,conceitoquesignifica“todosermateriale

todaapresençaimediatanossentidos”,eforma,oobjetodo

impulso

formal,

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93

“conceitoquecompreendetodasasdisposiçõesformaisdosobjetosetodasassuas

relaçõescomasfaculdadesdopensamento”68 .

Marcasubstantivada

estratégiaestéticabeuysiana,oscantos,comsua

presençaindubitável,convocam

oespectadorpararesolveracontradiçãoentre

a

matériabrutaeaformageometrizada.Utilizadosemaçõesapartirde1963,oscantos

degordurasolidificadabalizamoespaçodaartecomumaíndolelúdica69,definindoo

territórioocupadopeloartistacomoa“passagemdoestadopassivodasensibilidade

paraoativodo

pensamentoedoquerer(...)[quesedá]somentepeloestado

intermediáriodeliberdadeestética,eemboraesteestado,emsimesmo,nadadecida

quantoanossosconhecimentoseintenções,deixando

inteiramenteproblemático

nossovalorintelectualemoral,eleé,aindaassim,acondiçãonecessáriasemaqual

nãochegaremosnemaumconhecimentonemaumaintençãomoral.”70

Figu

ra22

–C

anto

dego

rdur

a

68SCHILLER,Friedrich.

AE

duca

ção

Est

étic

ado

Hom

em.SãoPaulo,Iluminuras,2002,p.77.

69“Poisparaissoexigir-se-iacompreenderaprópriaunificação,aqualpermaneceimperscrutávelpara

nóscomotodaaçãorecíprocaentrefinitoeinfinito.Arazão,pormotivostranscendentais,faza

exigência:devehaverumacomunidadeentreimpulsoformalematerial,istoé,devehaverumimpulso

lúdico,poisqueapenasaunidadederealidadeeforma,decontingênciaenecessidade,depassividade

eliberdade,completaoconceitodehumanidade.”FriedrichSCHILLER.Idem,p.78.

70SCHILLER,Friedrich.Idem,p.113.

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Page 162: Apostila Joseph Beuys

3 “Min

havi

dafo

ipro

duzi

r”

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95

3.1

Jose

phB

euys

.Art

ista

emm

arch

aEsseuniverso,doravantesemdono,nãolhepareceestérilnemfútil.Cadagrãodessapedra,cada

fragmentomineraldessamontanhacheiadenoitebastaparaencherocoraçãodeumhomem.

ÉprecisoimaginarSísifofeliz.

AlbertCamus,OMitodeSísifo.

Com

oshabituaiscoleteechapéudefeltro,JosephBeuyséfotografadoao

centrodaparededefundodaSaladeGorduradeLucerne(1969).Braçosestendidos

aolongodocorpo,elepermanecedepée,semesboçarqualquermovimento,olha

fixoparafrente–aindaquenãoparanós,jáqueacâmeraencontra-seàsuaesquerda.

Ligeiramentecurvado,parecedarsinaisdecansaço,aoqual,entretanto,nãocede.

Resistee,aliás,fazdesuaresistênciaaprópriacondiçãodepossibilidadeparaa

simulaçãodeumcircuitoestéticonoespaçoinstitucionaldaarte.Oartistamarcacom

gorduraosângulosdaquele“cubobranco”ondeseexpõefrancamente,efazdasala

vaziadeexposiçõesolugardeumamanobralúdica:matériaepulsãodeformados

cantosconvergiriamparaelemesmoque,porsuavez,asreativaria.Sãoestasas

coordenadasdoseulugar-melancoliaqueserepetemesecomplicam

aolongodas

Aktionsconformeopercursoeaparafernáliamaterialcom

aqualoartistainterage.O

escultoracionaesteticamenteoespectadordalidolugardaarteatravésdeum

trabalhorigorosamentematerialquecomeça,na

salado

museu

suíço,pela

“conversão”doestadodamentedohomem

-nempuramatérianempuraforma-

naquelasmassasorgânico-geométricas.Formasquevivemem

nossasensibilidade,e

cujavidaseformaem

nossoentendimento,BeuysparecesalmodiarSchiller,para

entãocompletarsuatarefaaoposicionar-sebemnocentrodasala,deondeconduzo

impulsolúdico.

Oartistasedirigefrancaeindiretamenteanós.Assimcomoofaznasações

realizadasnosanossessentaquando,aosemovimentar,pretendemenosarregimentar

opúblicodoqueacionarcadaumdeseuscomponentes.Nósnãoparticipamosdoseu

deslocamentodesenvolto.Nósoacompanhamose,aofazê-lo,tomamoscomonosso

aqueleseupotentearsenalmaterial-simbólico.AssimBeuysatingetodososnossos

“25sentidos”demodoaativarnaíntegranossamente.Fundamentalmente,trata-se

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Page 163: Apostila Joseph Beuys

96

deumapresença

artísticacapazde

nosconduzirao

estado

estéticode

determinabilidaderealeativa1.

Tudocomeçanacabeça,afirmoucertavezoartista.Éondeseprocessaa

consciência,apartirdosentimentodeliberdadequeadquirimosaonosperceberanós

mesmoscomomatériaeconhecer-noscomoespírito.Somenteaovivermostal

liberdade,aorecriarmosnossadignidadecomohomens,é-nospermitidofazeralguma

coisa.Aocompreenderaexperiênciadaartecomoocaminhoparaaconciliaçãoentre

anaturezadohomem

comoexercíciodaliberdade2 ,Schillersetornaumaprimeira

referênciaparaoconceitoexpandidodeartedeBeuys.“Aarteentendida,portanto,

emsentidolúdico:estaéaexpressãomaisradicaldaliberdadehumana”,sentenciao

artistaemconferênciarealizadanacapitalitalianaem1972.

Naação“eemnós...embaixodenós...terraabaixo”3(1965),eledemonstra

aolongode24homodopeloqualadisposiçãoestéticadamentedáorigem

à

liberdadeecapacitaohomem

parasuperaroscondicionamentosnaturais/externos.

Limitadoaoespaçodeum

caixoterecobertoporumatelabranca,Beuysseequilibra

comcruzesdebronze,alonga-seoucurva-separamanipularosobjetoseasmatérias4

1“Amente,portanto,passadasensaçãoaopensamentomedianteumadisposiçãointermediária,em

quesensibilidadeerazãosãosimultaneamenteativaseporissomesmosuprimem

mutuamenteseu

poderde

determinação,alcançando

umanegaçãomedianteumaoposição.Estadisposição

intermediária,emqueamentenãoéconstrangidanemfísicanemmoralmente,emborasejaativados

doismodos,mereceoprivilégiodeserchamadaumadisposiçãolivre,esechamarmosfísicooestado

dedeterminaçãosensível,elógicoemoralodedeterminaçãoracional,devemoschamarestéticoo

estadodedeterminabilidaderealeativa.”SCHILLER,Friedrich.CartaXIX.A

Edu

caçã

oE

stét

ica

doH

omem.SãoPaulo,Iluminuras,2002,p.102/3.

2Aliberdadeestéticanãodeve,porém,serconfundidademodoalgumcomliberdadeouautonomia

encontradanarazãoprática,comoesclareceSchilleremnotadaCartaXIX,“lembroquealiberdade

dequefalonãoéaquelaencontradanecessariamentenohomemenquantointeligência,liberdadeesta

quenãolhepodeserdadanemtomada;massim

aquelaquesefundaemsuanaturezamista.Quando

ageexclusivamentepelarazão,ohomem

provaumaliberdadedaprimeiraespécie;quandoage

racionalmentenoslimitesdamatériamaterialmente,sobasleisdarazão,provaumaliberdadeda

segundaespécie[estética]”.FriedrichSCHILLER.Idem.,p.99.

3ApresentadanagaleriaParnass,em

Wuppertal,aaçãofazpartedohappeningFluxus24horas,da

qual,além

deBeuys,participamBazonBrock,CharlotteMorrman,Nam

JunePaik,EckartRahn,

TomasSchmidteWolfVostell.

4Umbocaldevidrocomágua,cujatampaéligadaporumfioaum

pequenocofrecheiodegordura,

umacaixadetorrãodeaçúcarsobreaqualécolocadaumafinavaraqueatravessaumarolhadecortiça

pintadaemvermelho,ummoldedeplásticoemformadecoelhocom,colocadasnointerior,luvasde

boxedecriança,doiselementosgeométricosemmadeira...doisoutros‘ângulos’degordura,emcima

dosquaisoartistacolocaseuspés,ummagnetofone,umpequenoquadronegrosobreoqualfoiescrito

aoinversoPANXXXttt,umabengalacujasduasextremidadesestãocobertasporgordura,duas

‘cruzesdejets’(Wurfkreuze)embronze,umlongocilindrodefeltro,umapeledecoelho,ummolde

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97

queocercam.Erecorreregularmenteaumacunhadegordura(suspensaporum

pedaçodemadeira),sobreaqualpousacuidadosamenteacabeça,comosea

escutassecomatenção-oucomoseocontatorenovadocomagorduralhepermitisse

cumpriraquelaverdadeiraprovaderesistência.

Figu

ra23

–Em

ação

:eem

nós

...em

baix

ode

nós

...te

rra

abai

xo

Beuysvenceoslimitesdetempo(24h)eespaço(“caixa-pedestal”)dasua

experiênciasensívelaoestendê-losaumadimensãoformal.Escutaagorduraque,

“emsegredo”,lhecomunicasua“vibração”,atransmiteaosobjetoscomosquais

interage.E

entãoligaomagnetofone,comoqueparapropagarpelopúblicoaquele

fenômenoderessonânciacorrespondenteaoraiodaintervençãohumanacapazde

transcenderarealidadefísicadasala.Livreeauto-determinado,ohomem

em

atividadedesconheceasnoçõesdeespaçoetempocomprovadascientificamente,

resumeBeuysque,emumapartitura,criticaasfórmulasmatemáticasdesenvolvidas

porAlbertEinsteineMaxPlanck.Converteaconstante“h”dePlanck(“quantum

elementardeação”correspondenteaoprodutodeumaenergiaporum

tempo)à

própriadimensãodoHumano,“ovalornadireçãodoqualconvergetodofuturo”.

Oserhumanolivreécapazdeinstaurarseupróprioespaço,talcomoBeuyso

fazem

Hauptstrom

>>Fluxus,comoqualinauguraseuEspaçodegordura

[Fettraum].Numasalabemiluminada,oescultorcomeçaporocuparseuEspaço

emgelatinaem

formadecoelho...em

frente,duaspáscomcaboduploformandoum

Vlevantando

sobreumapranchademadeira.”VerMALET,Florence.J

osep

hB

euys.(Cat.exp.)Op.Cit.,278.

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Page 164: Apostila Joseph Beuys

98

comumasériedepequenos“muros”degordura,pintadosdemarrom,colocadosa

algunscentímetrosdaparede.Nessaáreaocorrepropriamenteomovimentode

ocupaçãodoEspaço-umacomplexaseqüênciadedezmovimentosdistintosque

Beuysexecutaaosedeslocaraolongodedezhoraspor“estações”constituídaspor

diferentespeçasdegorduraeum

equipamentosonoro(cincomagnetofones,um

microfoneeum

alto-falante).AcompanhadopelascomposiçõesmusicaisdeHenning

Christiansen,oritmodeseugestualchegaaopúblicodemodointenso,porvezes

irritante.

Figu

ra24

–Em

ação

:Hau

ptst

rom

>>Fl

uxus

Beuyssedeitaaofundodasalajuntoacincomontículosdegorduraentreos

quaissecontorce,alongaecontraiocorpo.Semjamaisentrarem

contatocoma

gordura,masdealgummodosempreconectadacomela,écomoseoartista

concretizasseaprojeçãosimbólicadaliberdadesobreascoisasmateriaisnopróprio

corpo.Asarticulaçõescorporaisserevelamextensõesdamatériagordurosa,eo

movimentosedesenvolve

comoumaestranhaespéciede

pas-de-deux,bem

denominadapelo

artista“cerimôniade

iniciação”.Acentuada

pelo

somde

Christianssen,aextremarigidez

muscular5desenvolvida

duranteomovimento

respondeaotensointervaloentreoseucorpoeagorduraque,afinal,estruturatodo

5SegundoFabriceHergott,aviolênciadecertasseqüênciasgestuaisétransmitidaaoespectador

atravésdomediadoracústico.Amúsicaadquireentãointensidadeeaspectocaóticoinsuportáveisque

irritamprofundamenteopúblicocomo,porexemplo,enquantoelesealonga

numaposiçãopróxima

àqueladoparto,acabeçalevantadaeosmembrosafastadosatéarigidezdosseusmúsculos.Ver

CENTREGEORGESPOMPIDOU(Cat.Expo.).Op.Cit.,p.292.

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99

aqueleEspaço.Aolongodasestações,eleencena,porassimdizer,aproduçãodos

estadosintermediáriosdaformafundamentadosnesseintervalo.Talcomoquando,de

péouagachado,pressionapedaçosdagorduracomasaxilaseosjoelhosemoldao

negativodoseuprópriocorpo.Ouquandomordegorduraecera,eproduzesculturas

“negativas”de

boca/dente,assimcomo“conesde

ouvido”,umaespéciede

instrumentodeescutaqueBeuysintroduznaorelhae“delicadamente”manipula

atravésdeumavara,“deacordocomograudetensãodopúblico”6 .

Osomacentuaoritmodosmovimentoscorporais7queestruturamoEspaço,

assimcomoreverberao“desenho”feitopeloartista,quandosuamãoacompanha

rigorosamentealinhatraçadanochãocomumapontametálicaque,ligadaaum

microfone,soa“estridente”.Expandeacusticamenteoestadosempreintermediárioda

forma-cristalizadanaantecâmaraqueprecedeasaladagordura,ondeseencontram

expostosquatrodesenhoseobjetosdistribuídosem

vitrines–queBeuysalirevela

comoopróprioespaçoemtornodohomemlivre.

Figu

ra25

–La

Riv

oluz

ione

siam

ono

i

6Idem,p.293.

7Inclusiveaimitaçãodomovimentodeumalebre,cujavibraçãoédevidamenteregistradanopapel.

VERNota20doprimeirocapítulo.

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Page 165: Apostila Joseph Beuys

100

Quandoalgumaspessoastomamumavisãoobscuradahumanidade,eutenho

queperguntar:dequem

elastomam

umavisãomaisclara?8 ,pareceperguntaro

resolutoBeuysdocartazLaRivoluzionesiamonoi(1972).Aomododohomem

schilleriano,educadoesteticamente,queenobrece9ouniversodamatéria,aimagem

fotográficadoartistaem

plenacaminhadarevelaadignidadedohomem

emplena

atividade,prontoadecidiroquantodesejaintervirsobreascondiçõesdomundo.

Prestesacompletarmaisum

passo,avançadecididoemnossadireção,menosanos

convocarparaasuarevoluçãodoqueanosdespertarparaanossa.Afinal,a

“revolução”sóteminíciodentrodecadaumdenós.Aimagemrevelaafundamental

convicçãointernaquedecidetantoaatividadequantoaresponsabilidadedecadaum

paraformarum

espaçosocialcomum,definidoporBeuysatravésdanoçãode

esculturasocial.Essanoçãocomeçaaserarticuladaaoiníciodosanos1970,na

mesmaépocadaveiculaçãodessecartaz,quepareceservircomopeçadepropaganda

dasuacondutaartística.Suaposturaaltivaassinalaaqualidadeéticainseparávelda

dimensãoestética.

Afinal,adverte

Beuys,“émelhorserativohojedo

queserradioativo

amanhã”.Seuhumor,umtantonegro,contrastacomofrescordaeducaçãoestética

deSchiller.Poisenquantoopoetaseentusiasmacomoprojetodeumanova

humanidade,oartistaexperimentade

modointensoaderrocadadessamesma

humanidade.Estaríamos“vivendonumazonademorte,esomenteporqueestamos

vivendonumazonademortenósestamoscomeçandoacompreenderoqueavida

realmentesignifica”

10,declaraBeuys.Comosealiexperimentássemosumaespécie

dederradeiroatritocomasuperfíciedanossavida,quefreianossocômododeslizare

8BEUYS,Joseph.ApudBECKMANN,Lukas.

The

Cau

ses

liein

the

futu

re.InGeneRAY(ed.)

JosephBeuys:mappingthelegacy.NewYork,D.A.P./DistributorsArtPublishers,2001,p.91.

9“Ondequerqueoencontremos,estetratamentoespirituosoeesteticamentelivredarealidadecomum

éosinaldeumaalmanobre.Deveserditanobreamentequetenhaodomdarinfinitos,pelomodode

tratamento,mesmooobjetomaismesquinhoeamaislimitadaempresa.Énobretodaaformaque

imprimeoselodaautonomiaàquiloque,pornatureza,apenasserve(émeromeio).Umespíritonobre

nãosebastacomserlivre,precisapôrem

liberdadetodoomaisàsuavolta,mesmooinerte.”

SCHILLER,Friedrich.

AE

duca

ção

Est

étic

ado

Hom

em.Op.Cit.,p.116.

10Em

conversacomBastianeSimmen,Beuysreconheceocaráterfataldostemposemquesevive,

masque,aomesmotempo,podesersuperadonofuturo.“Thefuture,tomywayofthinking,isthe

dimensionthatcontainsthepointwhereeverythingbegins.Ithinkthatthatiswhatisreallymeantby

comingtotermswiththepresent.Andthepresentreallydoescarrythisfatalprinciplewhereveryou

look.”BEUYS,Joseph.I

fnot

hing

says

anyt

hing

,Ido

n’td

raw.Op.cit.,p.94.

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101

acabapornosdespertarparaoqueverdadeiramentesignificaserhumano.Desse

modo,em

oposiçãoaumaatitudefatalista,o“caráterfataldostemposem

que

vivemos”exigeaçãourgente:umefetivoacordocomohumanoapartirdeumaclara

elaboraçãodoquecaracterizaavida.

Bastianresumeosentidoprogressivodaartebeuysianaemtudoopostaaum

progressolinearemdireçãoaofuturo:“AutopiadeBeuyséumaformadevidaque

existeem

algumlugarnoabismodopresente”11 .Seaunificaçãoutópicadomundo

propostapelafilosofiadahistória,supostamentecapazdeconduziraum

futuro

melhor,nãosecumpre,Beuyssevoltaparaofuturoapartirdaspossibilidades

contidasnopresente.E,comoseescavasseasuperfíciedaquelazonademorte,libera

omaterialcontidonassuasváriascamadassubterrâneaseotrazàsuperfíciedopapel,

revigoradoporseustraçosepelafluidezdosmateriaisempregados.Figurasque

revelamaconexãomíticaentreanimalehomemououniversomágicodeumpassado

indefinidoganhamevidênciamaterial-oquantodepossibilidadeelasaindacontém?

Comoseexplorasseadiferençatemporalentredeterminadopassadosugeridopor

aquelasimagenseopresentecomamatéria,Beuysquerperseguircomaajuda

dessasfigurasumaanálisevisual,etambémtrazerum

elementodeanálisevisual

paraaconsciência.12Oobjetivonãoéaregressãoaum

mundomítico,elevisaa

despertaraconsciênciadoespectadorparaofuturoatravésdeum

alertaàvitalidade

materialpresentenaqueledesenho.

Umaarteantropológica,oartistaadenominacompropriedade,fundamentada

nosentidorealdatemporalidadedoshomens,pois“damesmamaneiraqueohomem

nãoestáaqui,masdevevir,aartedevevir,poiselaaindanãoexiste”.13Maisdoque

sobreahistóriaem

si,apráticaartísticadeBeuysincidesobreascondiçõesda

história,oquedefineumaespéciedeconceitoplásticodearte.Pois,se,porora,ele

não“pertenceàarte”,tambémnãoperdedevistaoseuconceito,feitopresenteno

carátertemporalexpansivodosambientes.Aliomaterialdeterminaverdadeiras

11BASTIAN,Heiner.

Sign

sar

eSe

nses.InJosephBeuys.Zeichnungen.Tekeningen.Drawings.Op.

cit.,p.83.

12BEUYS,Joseph.ApudADRIANI,Gotz;KONNERTZ,Winfried;THOMAS,Karin.J

osep

hB

euys

:L

ifean

dW

orks

.NewYork,Barron’s,1979,p.71.

13BEUYS,Joseph.ApudBASTIAN,Heiner;SIMMEN,Jeannot.I

fno

thin

gsa

ysan

ythi

ng,I

don’

tdr

aw.Op.Cit.,p.97.

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Page 166: Apostila Joseph Beuys

102

linhasdeforçaquemantémasuacapacidadedealteração.Domesmomodo,nasuas

inesperadasações,aprópriaestruturatemporaldaexperiênciaécolocada“emcena”,

permanenterenovaçãodatensãocomaexpectativa.Alongaduraçãodeumaação

concentradanumasalaintensificaoefeitodesobreposiçãoeimpregnaçãomútuade

experiênciaeexpectativa14característicasdo“temporeal”,vivido,sempreaexigir

resoluções.Essaexpansãotemporalacentuaosestadosintermediáriosdaforma

produzidos

emEspaço

deGordura,porexemplo,

domesmomodoque,

proporcionalmente,taisestadosrevigoramessacondição

temporal–comonas

palavraspronunciadasporBeuysnodiscursoaLehmbruck:aevoluçãofuturado

princípioplásticoconsideradocomoprincípiodotempoemsi.Issosignificaquea

plásticaésimplesmenteumconceitodofuturo15.

*****

Osgrãosfotográficosvisíveisnamaioriadasfotografiasdasaçõesrealizadas

porBeuys,em

meadosdosanos

1960,recriamadimensãoespaço-temporal

materializadanaquelasocasiões.Incapazesdereproduzi-la,essasimagensconseguem

evocá-laaoincorporarosincidentesocorridosaolongodoprocessofotográfico,

desdeodisparodaobjetivaatéaampliação.Asuperexposição,afaltadefoco,o

enquadramentocasual,asmanchasproduzidasduranteoprocessodarevelação,ou

mesmoorecorteirregulardasbordasdopapel,acabam

porsugerir,naimagem

fotográficafinal,a“atmosfera”deexpectativamantidaaolongodasações.16Tal

14EstabelecidaspelohistoriadoralemãoReinhardtKoselleck,“espaçodeexperiência”e“horizontede

expectativa”sãocategoriasformaisindicativasdeumacondiçãoantropológicasemaqualahistória

nãoépossívelnemtampoucoconcebível.“Theformalprospectofdecipheringhistoryinitsgenerality

bymeansofthispolaritycanonlyintendtheoutliningandestablishmentoftheconditionsofpossible

histories,andnotthishistoryitself.Putdifferently,thereisnohistorywhichcouldbeconstituted

independentlyoftheexperiencesandexpectationsofactivehumanagents.Withthis,however,nothing

isyetsaidaboutagivenconcretepast,present,orfuturehistory(…)Thecoupleisredoubledupon

itself;itpresupposesnoalternatives;theoneisnottobehadwithouttheother.Noexpectationwithout

experience,noexperiencewithoutexpectation.”KOSELLECK,Reinhardt.

Futu

res

past

:on

the

sem

antic

sofh

isto

rica

ltim

e.NewYork,ColumbiaUniversityPress,2004,p.256/7.

15BEUYS,Joseph.R

emer

ciem

ent

aW

ilhel

mL

ehm

bruc

k.InParlaprésentjen’appartientplusà

l’art.Paris,L’Arche,1988,p.16.

16AfotógrafaUteKlophaus,queacompanhouBeuysemgrandepartedasuaempreitada,observaque

tentavasecertificardequeafotografianãotivesseumar“final.”VerPHILLIPS,Christopher.A

rena

:

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103

comoacontecenaimagem

dasaladoscantos,cinzaedensa,fotografiapouco

contrastadaebastantegranulada,emqueaposiçãodacâmeraédecisivaparasugerir

aoespectadorumasituaçãoespacialquenãofoiefetivamentevivenciadaporele.

Ligeiramentedeslocadaparaoladoesquerdodasala,sem,entretanto,deixarde

manteroartistacentralizado,acâmeranoslevaaidentificarum

jogodeforças

simétricoformadoentreeleeoscantosdegordura.

Sehoje,juntoaosfilmeseaosdepoimentos/testemunhosescritos,tais

fotografiasconstituem

osúnicos

documentosdessas

ações,na

época,elas

contribuírambastanteparaainserçãodaobradeBeuysnarealidadepúblicadaarte.

Oartista,aliás,trafegacomdesenvolturaportodaaextensãopúblicadaarte,desdeo

espaçoinstitucionalatéaqueledamídia.Asinstituiçõesdearte17,porexemplo,são

incorporadascomobaseneutraparaseuprojetoeducacionalestético,videafamosa

exposiçãorealizadaem

1979noGuggenheimamericano,quandoBeuysgravasua

própriavoznafita-guia.Domesmomodo,eleseapropriadosmeiosdecomunicação.

Apósseu“atodenascençamidiático”18–afotografiaem

queoartista,deolhar

penetranteesangueaescorrerdonariz,segurafirmeumacruz,torna-seaprimeira

largamentepublicadanaimprensa-,Beuysnãosópassaaseramplamentecoberto

pelosmeiosdecomunicaçãocomobemseaproveitadelesparaveicularsuapersona

artística.Diantedadimensãoinexoravelmentepúblicadaarte,ainserçãodesua

esculturasocialviraum

“problemaartístico”19,contornadopormeiodeumasériede

the

chao

sof

the

unna

med.InCOOKE,Lynne,KELLY,Karen(ed.)J

osep

hB

euys

.Are

na–

whe

rew

ould

Ihav

ego

tifI

had

been

inte

llige

nt!NewYork,DiaCenterfortheArts,1994,p.52.

17Nasuamaioria,instituiçõespúblicas.Deveserobservadoqueaquestãodapolíticademuseutem

maiordimensãonaEuropadoquenosEUA,jáqueamaiorpartedosmuseuseuropeuséfinanciada

pelogoverno–assimcomoosãoasexposições“revolucionárias”doartistanasdécadasde60e70.de

acordocomAnnTemkin,Beuysargumentavaqueosmuseustinhamqueparticipardeum

conceito

‘totalizado’dearteetrabalharparareverterodestinodaculturacomoum

empreendimentoisolado.

TEMKIN,Ann;BERNICE,Rose.T

hink

ing

isFo

rm:t

heD

raw

ings

ofJo

seph

Beu

ys.Op.cit.,p.62.

18Afotografiaganhaimpactonamedidaem

quecoloca,maisumavez,naAlemanha,aquestãoda

intolerância.Aimagem

éfeitapelofotógrafoHeinrichRiebbesehlduranteaação“Kukei,akopee-

Nein!,Brankreuz,cantosdegordura,cantosdegorduramodelados”,em1964,porocasiãodoFestival

daNovaArte,em20dejulhode1964,datacomemorativadoatentadorealizadocontraHitler,20anos

antes.HEINTZ,Julie.L

aqu

estio

nde

sm

édia

s.InCENTREGEORGESPOMPIDOU.JosephBeuys

(cat.exp.).Op.cit.,p.284.

19SegundoogaleristaitalianoLucioAmelio,anoçãode“esculturasocial”teriaseoriginadodeuma

sériedemedidasestratégicastomadasnoiníciodosanos1970paraasseguraroreconhecimentodaarte

européia,diantedaenormeestruturadomarketingamericano.Ameliorelataque,nacozinhaemCapri

em1971,foiestabelecidaumaestratégiaparamudaraidéiadearte,parachegaràesculturasocial.O

primeiropassoseriamostrarotrabalhoclássico,osdesenhosporelefeitosnosdiasdemedodopós-

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Page 167: Apostila Joseph Beuys

104

medidasestratégicas,entreasquaisaprópriafotografiaLaRivoluzionesiamonoi,

concebidacomopeçagráfica(cartazepostais),ouacampanhapublicitáriarealizada

para7000carvalhos.

Apósum

períododerecolhimentodadécadade1950,aobradeBeuys

começaaganharoespaçopúbliconosanossessentacomsuasfamosasações,ejáno

iníciodosanossetentaassumeesseespaçocomoelementofundamentaldesuatarefa

artística.Ahistóriacontroversado

seuacidentena

SegundaGuerraesua

sobrevivêncianasmãosdosTártaroscomeçaaficarconhecida,atésetornar,no

iníciodadécadade1980,oprincipalacessoàsuaobra,paraobem

paraomal.

Onipresentes,agorduraeofeltro,porexemplo,adquiremum

outroteorsimbólico

porcontadotratamentoempregadoemBeuyspelostártaros,queteriaasseguradosua

sobrevivência.Ahistóriaganhaum

pesodecisivodentrodasuabiografiaque,como

umverdadeiroinstrumentodetrabalho,é,naquelemomento,direcionadaparaassuas

experiênciasdeguerra.

Darecusaouimpossibilidadedefalarsobreassuasexperiênciasdeguerra20,

Beuyspassaaassumi-lascomoum

compromissopúblico,doqualcertamentefaz

parteDemonstraçãoAuschwitz(1956-1964)conhecidacomoVitrinedeAuschwitz,

umdosrarostrabalhosquefazreferênciadiretaàsegundaguerra.Duasbarrasde

sabão,um

fogareiro,trêslingüiças,um

crucifixo,dentreoutroselementos,são

preservadosem

umaespéciedepequenaestufa,queparecemantidapelocalordos

guerra,equeiriamprognosticarotrabalhoposterior.Masporquenãoeraumaestratégiaretrospectiva,

essaexposiçãotambémtinhaqueterumcomponentecontemporâneo.Desenhos,objetos,filme,vídeo

efala,faziam

partedessaapresentação-apregaçãopelacriatividade,daartecomoliberdade.O

segundopassoeraArena,Arenacomoumtúmulo,comoumcontainermisteriosodetodasasidéiasdo

artista,ocampodebatalha,aarmapelaqualoartistainvestedignidadeemtodooserhumano,opapel

doartistacomoocatalizadordacriatividadeem

todoserhumano.Oterceiropasso,Terremotoin

Palazzo(...).VerAMELIO,Lucio.ApudKORT,Pamela.

The

Nap

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Luc

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io.InCOOKE,Lynne,KELLY,Karen(ed.)J

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euys

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na–

whe

rew

ould

Iha

vego

tifI

had

been

inte

llige

nt!NewYork,DiaCenterfortheArts,1994,p.50/51.

20Aoserquestionado,porHelmutRywelski,sobresuasexperiênciasduranteedepoisdaguerra,

Beuysdeclaranãointeressar-senaquelemomentoem

confirmarounegarquedeterminadoseventos

individuaiscatastróficossugeridosconstituíssem

porsimesmosogatilhoparasuaobra.Afinal,

tratava-sedasomadecatástrofesvivenciadas-somaestaquenãoseconcluiu,enfatizaoartista,

dizendoexperimentá-lasdiariamente.JosephBEUYS.ApudNISBET,Peter.

Cra

shC

ours

e.InJoseph

Beuys:Mappingthelegacy.Op.Cit.,p.153.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

105

próprioselementos–vivos!Oresultado:umaunidadeorgânicasólida21 ,formadapor

materiaisdediversasconsistências(madeira,sabão,metaloupalha)que,ligados

pelascoresterciáriastípicas

dorepertório

beuysiano(acinzentado,marrom,

amarelado)ganham

umamesmasubstancialidade.Umpequenocampocalorífico

podeser“pressentido”atravésdovidro-transparente,aomesmotempoemqueisola

aqueleaglomeradomaterial,eleoabretodoaoambiente-queresumeoprincípiode

contração/expansãodaplásticabeuysiana.

Figu

ra26

–D

emon

stra

ção

deA

usch

witz

Essavitrineganhaaatençãodepartedacríticarecenterealizadaemrelaçãoà

obradeBeuysapartirdaevidênciadofatodoHolocausto,sobreoqualoartista

poucosepronuncia.Se,até1970,eleparecerelutaremfalardiretamentesobresua

experiêncianaSegundaGuerra,em

1980,reconheceosatosnazistascomoum

traumacapazdedirecioná-loartisticamenteaum

“novocomeçoradical”22.Tal

comportamentoambivalenteécompreendidoporMaxReithmann23comoumesforço

21Beuyschegaaconsiderararealizaçãodeumadelasem

bronze,assim

escreveocolecionador

LudwigRihn

paraHaraldSzeemannem

carta

de8deagostode1991.CENTREGEORGES

POMPIDOU.JosephBeuys(cat.exp.).Op.cit.,p.116.

22Aoserquestionado,porAndréMuller,sobrecomosesentiudepoisdeserconfrontadocomaescala

factualdoshorroresnazistas,Beuysreconheceum

choqueirreversível,defato,suaexperiência

primária,básicadesseofim

daGuerra,capazdelevá-loacomeçaralidarcomaartecriticamenteem

primeirolugar;suaorientaçãonosentidodeum

novocomeçoradical.BEUYS,Joseph.Apud

REITHMANN,Max.I

nth

eR

ubbl

efie

ldof

Ger

man

His

tory

.InJosephBeuys:Mappingthelegacy.

Op.Cit.,p.153.

23Artistaescholarindependente,autordetrêsestudossobreBeuys,dentreeles,aorganizaçãode“Par

lapresente,jen’appartiensplusàl’art”.

Inth

eR

ubbl

efie

ldof

Ger

man

His

tory

:qu

estio

nsfo

rJo

seph

Beu

ys.InJosephBeuys:mappingthelegacy.Op.Cit.,pp.139-174.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

Page 168: Apostila Joseph Beuys

106

doartistadeseesquivardoseventosreaisdoTerceiroReich,oquelevaoautorà

cobrançadeumarespostadeBeuysem

relaçãoàmemóriadeAuschwitz.JáGene

Ray24enxergasuasobraseaçõescomoobjetosegestosdeum

projetodeluto,

conscienteounão,emrelaçãoaoHolocausto.Umprojetomarginal,segundooautor,

jáquenãosustentadoporumaleiturasistemáticanemtampoucoenunciadocomotal

pelopróprioartista.Impossibilitadode“falar[diretamente]doseuprópriopaís”,

Beuysempregariauma“estratégiaindireta”paraefetivarseutrabalhodeluto.A

propostadeRayéprecisamenteexplicitaresseprojetoatravésdaanálisedevários

trabalhos

aosquaisassociadiretamente

eventosocorridos

noscamposde

concentração.Estabeleceas“ligaçõesbrutais”vedadasaoartista,taiscomoentrea

gorduraeoscorposqueimados,ofeltroeocabelodasvítimas(materialdoqualseria

feitoofeltro),ofogareiroportátileosfornoscrematórios,aesculturaTalloweas

formasdostrenserampasdoscamposdeconcentração(“atravésdeváriosgrausde

abstração”,oautortemocuidadodeadvertir).

JáMaxReithmannnotaaausênciadeumaprofundareflexãocríticaacercada

histórianoconceitodearteampliadadeBeuys.O

artistaseapropriariadanoçãode

liberdadedeSchillereFichtesemlevarem

contaadiretaapreciaçãodahistóriada

qualeladeriva25 .Afinal,aproduçãoartísticapós-Auschwitzexigiriaumaprofunda

reflexãocríticaacercadahistóriaenãoasimplesanalogiaentrepresenteepassado

sugeridaporBeuys-Auschwitzaindaexiste,sobtodaumaoutraforma.Talanalogia

nãoseria

possível,dessemodo,eleestaria

apenassereferindo

adoiscenários

diferentes.Nesse

sentido,um

supostoprojetode

luto

seria

encoberto

pelo

esquecimentodahistóriarecentedaAlemanha,quando

Beuysbloqueiadesua

consciênciaosconteúdosdapráticadedestruiçãodeAuschwitz,negandovozàsua

memória-àqualsósechegariaaum

acordo,oautorafirmaliteralmente,atravésde

linguagemeimagens.

24RAY,Gene.In

Jose

phB

euys

and

the

afte

r-A

usch

witz

subl

ime.InJosephBeuys:mappingthe

legacy.Op.Cit.,pp.55-74.

25“AndwemustalsoasktowhatextentBeuyscanjustifyusingthenotionsheborrowsfromSchiller

andFichteforhisexpandedconceptofart–notjustasaprivateindividual,butasanartist.Foranyone

producingartinGermanyafterAuschwitznotonlycomesintoconflictwithGermanhistory,butalso

withthenotionsinnateinhisorherartisticworktotheextentthatthesenotionshavebeenborrowed

from

Germanintellectualhistory.”REITHMANN,Max.

Inth

eR

ubbl

efie

ldof

Ger

man

His

tory

:qu

estio

nsfo

rJo

seph

Beu

ys.InJosephBeuys:mappingthelegacy.Op.Cit.,149.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

107

Porcerto

sãoplausíveis,emesmopatentes,asrelaçõesfixadasentre

os

objetosdeBeuyseoseventosdoscamposdeconcentração.Elasnosparecem,

contudo,pordemaisóbvias,comoseoautorbuscasseumaverossimilhança

radicalmente

contrária

ànatureza

daobra

doartista.Podemos

prosseguir

indefinidamentecomasassociações,comoabanheiraassociadaaosmétodosde

higieneimplantadospeloTerceiroReichouafamosaimagem

doartistanaação

Kukei,akopee-Nein!,Brankreuz,cantosdegordura,cantosdegorduramodelados,

ondeeleestendesuamãodireitanumaposiçãosemelhanteàsaudaçãonazista.Tal

leituraiconográfica(nãosóviávelcomoimprescindível)nãoseesgota,porém,numa

únicaassociaçãodiretacomoHolocausto.Oque,afinal,acabariaporparalisaraobra

numailustraçãodoeventoeassimperderoseuricosentidoplástico.Sim,poiso

caráterexpansivodaesculturabeuysianatambémserevelanumaextensacadeiade

associaçãodeobjetosqueconformariaaprópriacapacidadedanossalibidoseligara

umoutroobjeto–trabalhoenfaticamenterequisitadoporBeuysatodosnós,com

nossasrespectivas“viasparalelas.”

Ementrevistaconcedidaao

mesmoMax

Reuthmann,em

1982,Beuys

mencionaaimpossibilidadederepresentaroseventosdeAuschwitzpormeiode

imagens:sóseriapossível“lembrardesseseventosaoapresentarumacontra-imagem

positivadeles”.Essaespéciedelembrançadesprovidadeimagenséalvodacríticade

MaxReuthmann,paraquemoexcessoderealidadedoefetivogenocídionoscampos

deconcentraçãodemandaria

otestemunho

daimagem.Quando,nessamesma

entrevista,Beuystrazparaopresenteos“métodosdeAuschwitz”aocompará-losà

“destruição”daalmaedocorpocausadapeloconsumismo,eleamenizariaaquelas

mortesincomparáveis,esquivando-sedesuaresponsabilidadeperanteasingularidade

domonstruosoevento.

Sementraremdiscussãoacercadarepresentaçãooudaimagemou,poroutro

lado,acercadaimpossibilidadeoudarecusaemtransmitiresseevento,sabemosque

arespostadeBeuysnãoédaordemdamemória/imagem,esim,comooartista

repete,deumacontra-imagem.Ouseja,umadimensãopropriamenteplásticaque,

longedatransmissãodedeterminadofato,pretendeasuaurgenteeininterrupta

reelaboração.O

Holocaustopodeentãoserpensado,dentrodaobradeBeuys,como

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Page 169: Apostila Joseph Beuys

108

umcompromissocotidianocomasobrevivênciadahumanidadeapartirdasua

capacidade,ounão,deproduzirumaforma.Quandomenciona,namesmaentrevista

de1982,apossibilidadedesuperarotrauma“aofazeraspessoasdinâmicas

interiormente”,oartistacoloca,porassimdizer,nasprópriasmãosdaspessoasa

(im)possibilidadede

umaforma.Exerceassimsuaresponsabilidadeperanteo

Holocaustoaodeixarclaraasuacrençaemumaforma.Umacrençaquepassapara

nóscomouma“forçaparareflexão,paraaauto-determinação,para

nãodeixar-se

levar”(Adorno),bemdefinidapelocríticodearteinglêsDavidSylvestercomo

“curiososentidodeobrigaçãoderesponderpositivamente”26 .

Oindiscutívellegadodaextremahumilhaçãosofridapelogênerohumanono

segundopós-guerraparticipadeumaextensaredequesegueumaintrincadalógicade

valores,ondeopesodacoisamaiscorriqueirapodeganharenormesproporções.Se,

porcerto,o

exercíciodemapeartalredeapartirdesuacoerênciaessencialmente

plásticavemaserprodutivoparaacompreensãodoalcancedoHolocaustonasua

obra,importaparaoartistaacionarnossopensamento.“Oelementomaisimportante

paraqualquerumqueolhemeusobjetoséminhatesefundamental:todohomeméum

artista.Essaéaminhacontribuiçãoparaa‘históriadaarte’.”Asviasparalelasque

tomam

ospensamentosdosespectadoresconstituemosentidomaiordaplásticade

umBeuysque,completamentedesiludidocomasvelhasformas,aindaacreditanas

“formasem

geral”.Afinal,areelaboraçãodahumanidadepartedecadaum

denós,

individualmente.

AesculturadeBeuysnãopropõeumaformaesimapossibilidadedessa

forma.Oquecertavezfoitachadoporumdosseusinterlocutores,apartirdeumdos

seusdiscursos,comoumaproposta“vagaeindefinida”,revelajustamenteocaráter

planetárioegenerosodeumprojetoestéticoquedevelidarnadamenosdoquecoma

revisãodosprincípiosdebasedahumanidadeocidental.Artistaalemão,Beuys

respondeàsituaçãocríticadenaçãoaindaem

formação27atravésdeum

autêntico

26SYLVESTER,David.O

nB

euys.InArtinAmerica.April1999,p.115.

27SegundoElias,“umdosmaissériosproblemasquepermaneceatéhojeporenfrentarnaAlemanha

Ocidental”obscurecidonosanos1950peloesforçomaciçodereconstrução“Aliderançanacional-

socialista(...)arrastouopovoalemãoparaamaiorcatástrofequesofreudesdeaGuerradosTrinta

Anos.Amassadopovoalemão,entretanto,sejanolesteounooeste,nãoapreceter-seapercebidoda

magnitudedessacatástrofe.Temcertamenteconsciênciadesuamaisvisívelconseqüência:adivisão

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109

projetode

espiritualização.Umprojetoque,forçosamente,seestendeàcrise

generalizadada

humanidadeocidental-uma“crisedo

idealdeumafilosofia

universalesuasformasmetódicas,jáqueoestabelecimentoprimáriodessanova

filosofiaéoestabelecimentodamodernahumanidadeeuropéiaemsi.”28

*****

Os“fatos”extremosdaSegundaGuerraapenastrazemàtonaferidasjábem

profundasnacarnedamodernidadeocidental,curáveissomenteapartirdoqueBeuys

chamadeumaoutra“relaçãoteórica”.Movidoporum

desejodeconexãogenuína

entreamenteeouniverso

,elerealizasuaesculturacomoumaespéciedetrabalhode

revigoramento

daprópria

consciênciamoderna.Oexercíciodessaescultura

correspondeàre-elaboraçãodasbasesdenossacapacidadeprodutivasegundouma

outra“estruturademundo”capazdedarcontadocentrovivointercambiáveldesses

universosdenaturezasdistintas.Paratal,defineseucampodetrabalhoatravésda

elaboraçãoclaradoquesignificaavida,tarefaárduadeprocuradasubstância

existencialdo

homem

apartirdareformulaçãodasituaçãoteóricageradapelo

dualismoáridodopensamentomoderno.

Beuys

formulaentãoumaespécieestéticade

teoriado

conhecimento

fundamentadanamatéria,talcomo“demonstra”nodesenhoTeoriadaescultura(p.

14).Aliasubstancialidadedo

Braunkreuzsintetizaacompreensão

dascoisas

segundoarelaçãorecíprocaentreavidasensível(corpo/servivo)eaessênciadas

coisas(alma/ser).Capazdeestabelecerumaconexãoentre

asnossas“forçasda

cabeça”eo“horizonteinterior”29das“grandesporçõesderealidade”

30apartirde

dapopulaçãoemdoisEstados.Masoutras,enãomenossériasconseqüências,nãosãoreconhecidas

comotais.”ELIAS,Norbert.

OsA

lem

ães.RiodeJaneiro,JorgeZahar,1997,p.360.

28“Skepticismaboutthepossibilityofmetaphysics,thecollapseofthebeliefinauniversalphilosophy

astheguideforthenewman,actuallyrepresentsacollapseofthebelievein‘reason’,understoodas

theancientsopposedepistemetodoxa.Itisreasonwhichultimatelygivesmeaningtoeverythingthat

isthoughttobe,allthings,values,andends–theirmeaningunderstoodastheirnormativerelatedness

towhat,sincethebeginningsofphilosophy,ismeantbytheword‘truth’(...)Alongwiththisfallsthe

faithin‘absolute’reason,throughwhichtheworldhasitsmeaning,thefaithinthemeaningofhistory,

ofhumanity,thefaithinman’sfreedom,thatis,hiscapacitytosecurerationalmeaningforhis

individualandcommonhumanexistence”.HÜSSERL,Edmund.

The

Cri

sis

ofE

urop

ean

Scie

nces

and

Tra

nsce

nden

talP

heno

men

olog

y.Evanston,NorthwesternUniversityPress,1970,p.12.

29“(...)amatérianoespaço,queem

geralnósexperimentamosapenasdefora,podepossuirum

horizonteinterior,equeporissoseuser-extensonãoénecessariamenteoseuser-total.Vistoapartir

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Page 170: Apostila Joseph Beuys

110

seucentrovivo,amatériapareceresponderà“absolutaperdadeconexãoentreos

objetosnaturaiseosobjetosdepensamento”,dizHeinerBastian,quebemexprimeo

queBeuyscertavezsereferiucomo“sentirsubstâncias”:“oobjetodopensamentoé

omesmoqueopensamentodoobjeto;queacoisaemsidevaprimeiroemitiralgo,

algoquesepossasentir,umaemanaçãopalpável;equeenquantosedáessatroca,a

certezadealguémsobreelesignificanadamaisnadamenosdoqueconheceraquele

objeto”.31 Umareceptividadeincondicionalao

maisinsignificanteeao

mais

significativo,indistintamente,épontodepartidadesuasoperações“teóricas”.

Conformeesclareceementrevistarealizadanofim

dadécadadesetenta,autilização

dofeltronãodeveriaserrelacionadaàsuaexperiênciacomostártaros,esim

ligadaà

procurapormaterialparasuaepistemologiaeàsuateoria.32Beuysencontrana

matériaumaobviedade33quegarantetantoasuaauto-renovaçãocomoanossa.Essa

obviedadeépreservadapeloartistaatravésdeumaresoluçãoformaltãopoderosa

quantoquaseimperceptível,talcomoocorrecomospoderososFondsdofinalda

décadade70.Asobreposiçãodosváriosretângulosdefeltroestruturaamatéria

maleávelaomesmotempo

emqueacentuaaprópria

maleabilidade.Resultado:

sólidoscompactosqueconservamarentresuascamadaserespiramaoexpandircalor

peloambiente.A

materialidadedaexistência34daquelesindiscutíveissólidosaquece

oambientee,porconseqüência,anósmesmos.Bem

sabemos,porém,queafonte

dessecalor,nãoéexclusivamenteexterna–oqueficaevidentenomúltiploJaJaJa

daúnicaconcretudereal,ameraextensãopodeperfeitamenteparecerumaabstração,damesmaforma

queamerainterioridade.”JONAS,Hans.

Opr

incí

pio

vida

.Fu

ndam

ento

spa

raum

abi

olog

iafil

osóf

ica.Petrópolis,Ed.Vozes,2004,p.33.

30“Whatoureyesseeareallthesehugechunksofreality,nottheseinvisibleformsthataretheonly

thingthattellusanythingworthknowingaboutreality.”JosephBEUYS.

Ifno

thin

gsa

ysan

ythi

ng,I

don’

tdra

w.Op.cit.,p.92.

31BASTIAN,Bastian.

Sign

sar

eSe

nses.InJosephBeuys.Zeichnungen.Tekeningen.Drawings.Op.

cit.,p.77.

32BEUYS,Joseph.ApudPeterNISBET.

Cra

shC

ours

e.InJosephBeuys:mappingthelegacy.Op.

Cit.,p.11.

33“(...)wasn’ttheodorofwildlilacssomething‘obviously’beautiful,yetwasn’ttheveryobviousness

ofit(andthethingsecretlyshared)soimpossibletoputyourfingeron?Andwasn’tthissame

obviousnesstheretooinatree,afield,astream,alivingcreature–themissingpieceinthepuzzleof

matterandsoul?”HeinerBASTIAN.Op.Cit.,p.77.

34ExpressãoutilizadapelocríticoDavidSylvesternoartigopreviamentecitado.

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111

JaJa,NeeNeeNeeNeeNee(1969),emqueretângulosdefeltroformamumpequeno

paralelepípedode15X25X25cm,macioesólidocapazdenosaquecer.

EssaevidênciamaterialsemanifestacompotêncianoambienteOfim

do

séculoXX

35(1983),formadoporpedrasdebasaltopraticamenteem

estadonatural

(extraídasdeumadeterminadacolinanaAlemanha).Assemelhadosacristaisde

proporções

antropomórficas,aquelespesadossólidos

debasalto

dispostos

horizontalmenteestruturamum

ambienteamplo,cujafluidezédadapeloaspecto

irregularde

cada

umadaquelaspedraspesadas.Conformeadentramosasala,

percebemosnasuperfíciedecadaum

dosblocosirregularesum

círculodevinte

centímetrosdediâmetro.Escavou-seaextremidadedecadaumadaquelaspedras,de

onde

umaporção

dematériana

formade

umcone

regularfoiretiradae

posteriormenterecolocadanacavidadeaberta,juntocomfeltroegesso.Oscorpos

basálticosparecemganharumaface,oqueosaproximariadohumano.

Figu

ra27

–O

fimdo

sécu

loXX

Aquelearranjodepedraspoderiaentãoservistocomoum

amontoadode

corposhumanos-segundoGeneRay,umaalegoriadacatástrofedogenocídio

35Ouassalas,jáqueháquatroversõesdaobraque,porsuavez,seoriginadoprojeto“7000

carvalhos”paraaDocumentadeKasselde1982.A

disposiçãohorizontaldosblocossecontrapõeà

verticalidadedoscarvalhos.Umadasversõesde“O

fimdoséculoXX”contém

cincopedrasese

encontraem

Düsseldorf;outraversão,de31pedras(1983-85),estánaTateGallery,em

Londres;

enquantoaversãode21pedras,queseencontraem

Berlim,possuium

equipamentoparamovere

instalaraspedras.Porfim,háumaversãode44pedras(1983)emMunique.

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Page 171: Apostila Joseph Beuys

112

nazista.Talinterpretação,perfeitamenteaceitável,nãodáconta,noentanto,da

imperceptívelpassagem

domaterialparaohumanoqueparecereverberaralide

modoininterrupto.Afinal,aquelesbizarrosserescaídospermanecem

pedras,ebem

pesadas.Dessemodo,aoinvésde“resolver”omistériodaquelescorposbasálticos,a

identificaçãocomoscorposhumanostãosomenteoacentua.

Easensaçãode

estranhezacontinuaenquantocirculamosporaquelesirregularescorposbasálticosde

“cabeça”

regular,queinsinuaocontrasteentre

anatureza

supra-sensíveldo

pensamentohumanoeocaráterorgânicodeseucorpo.

Seexperimentamosumaexpansãoespacialnoambientecomoum

todo,uma

espéciedevibraçãotambémpodesersentidaemcadaumdaquelessólidosbasálticos

quetêmseucaráterdeblocointerrompidopelocortecircular.Odesencaixedaporção

geométricada

matériasugereamaleabilidadedaquelasubstânciamineralque,

acentuadapelofeltro,imprimecertavidaaomineral.E

fazdaquelesserescaídoso

lugardatransferênciarecíprocaentreoinorgânicoeoorgânico,oudaindefinição

entreohumanoeomaterial-derivadaínossasensaçãodeestranheza.

Aquelesblocosvivemnumatensãoentrevidaemorte,anunciandooque

Beuyscertavezsereferiucomoaliberaçãodomaterialismo36 ,típicodopensamento

moderno,quefundaoconhecimentodarealidadeexclusivamentenamatériapura,

desprovidadetodotraçodevida.Emcadaum

dosblocos,edemodomaisamplo,na

suadisposiçãoaleatória,identificamosem

OFimdoSéculoXX

umaespéciede

revolverdainérciadaculturaeuropéia.A

“desmontagem”daspedras(materialismo)

semostraum

trabalhoem

plenocursoque,naversãomontadaem

Düsseldorf,é

figuradopelosutensíliosdetransporte

dosblocos.O“calor”daquelaatividade

mantémoambiente,cujadimensãotemporalexpansivasugereaniquilamento-mas

nãodesolação,jáqueoaniquilamentoacabaapenascomoquejáexiste,enquantoa

desolaçãoacabacomaspossibilidadesdecriar37 .OFimdoSéculoXXabreespaçoà

36Em

conversacomKounellis,Kiefer,Cucchi,Beuysdeclaraaurgênciadealargarascoisaspara

liberaromaterialismodesuaunilateralidade.Trata-sedeum

processodeampliação,jáqueBeuys

reconheceopensamentocientíficoeanalíticoqueseoriginano

Renascimento,um

verdadeiro

acontecimentoparaoconhecimento,apercepçãoeopensamentohumanos,limitadoàpartematerial

domundo,atudooqueémensurável,ponderávelecalculável.BEUYS,Joseph;KOUNELLIS,Jannis;

KIEFER,Anselm;CUCCHI,Enzo.B

âtis

sons

une

cath

édra

le.Paris,L’Arche,1988,p.172.

37LEÃO,EmmanuelCarneiro.O

porv

irde

Nie

tzsc

he.InRevistaTempoBrasileiro,nº143.Riode

Janeiro,EdiçõesTempoBrasileiro,2000,p.76.

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113

renovaçãoprofunda

dos7000

Carvalhos.Integrantesde

ummesmoprojeto

desenvolvidoparaaDocumentadeKasselem1982,asobrasapresentam

emlarga

escalaapolaridadeentrevidaemorterecorrentenaobradeBeuys,sejanosobjetos,

sejanasuabiografia(videseudesastreaéreo,operíodonosanos1950ouaindao

sentimentodeumprofundocansaçodavidajáaoscincoanosdeidade).

Afinal,nadadenovoseproduziriaporum

simplesdesenvolvimento:um

antecedentenãocontém

todooseguinte.A

obradeBeuys,quealudesempreaum

segundonascimento,resume-seem

suaatividadecotidianacomoum

trabalho

empreendidofundamentalmenteatravésdamatéria,capazdemanterlatenteuma

renovação.Ainterpenetraçãomútuaentrerestosculturaisemateriaisresultaemobra

deunidadeorgânica,capazdemanterobjetoseambientescomoterritóriosde

conexãoentreascoisasdaNaturezaeaquelasdaCultura.Sãocomoorganismos

vivos,ejustoporessaidentidade,porassimdizer,elessãocapazesde“atingirum

nervoemalgumlugar”doespectador38.Umlevearrepioouum

intensotremor,por

atraçãoou

porrepulsão,nãoimporta,desdequeintegralsejaosentiraquela

substancialidade.Essetrabalhoinconclusivoinstauraseulugar-melancolia,quesó

terminaporsedefinircomotalcom

anossaocupação,capazdemanteraliaefetiva

trocadecalor39quedásentidoaoprincípiodaesculturasocialdeBeuys.

Figu

ra28

–Em

ação

:Eur

asia

38BEUYS,Joseph.ApudHeinerBASTIANeJeannotSIMMEN.I

fno

thin

gsa

ysan

ythi

ng,I

don’

tdr

aw.InJosephBeuys.Zeichnungen.Tekeningen.Drawings.Prestel-Verlag,München,1979,p.98.

39Em

entrevistaaAchilleBonitoOliva,Beuysrelacionaocalorliberadoaolongodoprocesso

escultóricoaEros.BEUYS,Joseph.L

am

ortm

etie

nten

évei

l.Op.Cit.,p.71.

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Page 172: Apostila Joseph Beuys

114

Oprincípiodo

caloréconsagrado

peloartistanaaçãoEURASIA,34º

movimentodaSinfoniasiberiana(1966),realizadaemCopenhagen(naqualretoma

suaprimeiraaçãoimportanteem1963,Sinfoniasiberiana,primeiromovimento).Já

aonomearaaçãoapartirdoantigocontinente,Beuysexpõeseutema:adivisão

religiosaepolíticaentreoLesteeoOeste.Recorrentenorepertóriobeuysiano,o

temadadivisãodizrespeitotantoàcrisedeidentidadedoseuropeusnopós-guerra–

emparticularàdivisãodoEstadoalemão-quantoàfraturaentreespíritoematéria.

Essarupturaseria“resolvida”naimagemdacruz,utilizadaparaintroduziraaçãona

chamada“DivisãodaCruz”,quandooartistacoloca,nochão,duascruzeslatinas

feitasem

bronze,quedãoasprimeirasorientaçõesparaa“conquista”doespaço

Eurásia.ConformeBeuyssemovimentadá-seaocupaçãodoterritórioatravésdo

entrecruzamentodelinhasdenaturezasdistintas.Àslinhastraçadasnochãosomam-

seaquelasdosbastõesqueprendemalebreeseintegram

aocorpodoartista.

Verdadeiraslinhasdeforçaincorporam

osconteúdossimbólicosdotremulardas

orelhasdalebre(queevocariaodespertardaconsciênciahumanaquerepercuteao

níveldaterra,permitindoodegelodosoloeaconseqüentelivrecirculaçãoentreo

LesteeoOeste)oudapalmilhadeferro(queremeteadurezadosolo,metáforada

terrageladadaSibéria).Todaessatramaseriacapazdeproduzircalor,verifica

Beuysaofim

daação,quandomedeatemperaturadotriângulodefeltrocolocadono

cantodasala(32ºC)edagordura(21ºC).Posteriormenteanotadasnoquadro-negro

juntoàtemperatura-limite

doorganismohumano(42ºC),essastemperaturas

registramocalorsimbolicamentetrocadoentrealgunselementosdaação.

Tudo

dependedo

caráterdecalorno

pensamento.Aodefinirocalor,

princípiodesuaescultura,comoanovaqualidadedavontade,Beuysincitao

revigoramentomaterial,porassimdizer,do“fazer”dohomem

emtodaaépoca

modernaque,desdeainterpretaçãodapráxiscomovontadeepulsãovitalpor

Aristótelesem

“Deanima”,encontra-sefundamentadonavontade.Consideradopor

Beuyscomolibido,anoçãodecalor,noentanto,éinerenteàssuassubstânciascomo

calorfísico,umaformadeenergiaquesetransferedeum

corpoparaooutroapartir

deumadiferençadetemperaturaentreosdoisesósemanifestanumprocessode

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115

transformação.A

partirdessasensaçãoconcreta,apraxiscontemporâneaganhaum

incrementoquegaranteasobrevivênciafísicaeespiritualdohomem(particularmente

daquelecontemporâneodeprimido,comoveremosnocapítuloseguinte).Afinal,calor

físicooulibido,trata-sedaenergiaquedecideentreavidaeamorte.

ParaSchiller,avontade,enãoarazão,éamarcadistintivadoserhumano,

“porqueohomeméoserquequer.”40JáparaSchelling,aVontade,éoseroriginal41,

“oespíritonosentidomaisamplodapalavra(...)naorigemeleémaisvontade,euma

vontadeunicamentepelavontade,umavontadequenãoquerqualquercoisa,masse

quersomenteelamesma.”Participantedesseabismooriginaleda

existência

espiritualestaria

ohomem,mediadorentre

DeuseaNatureza,“redentorda

Natureza”.Essanoçãoexercegrandeinfluênciasobreocírculodospoetasromânticos

deIena,tendosidodesenvolvidaporNovalissobaformadeumainterpretaçãoda

ciência,daarteeem

geral,detodaaatividadedohomem

comoformaçãoda

natureza.PensaGiorgioAgamben,oprojetodeNovalissuperaoidealismodeFichte,

querevelouaohomem

aforçadoespíritopensante.“Fichteensinouedescobriuo

empregoativodoórgãodopensamento.Talvezeletenhadescobertoasleisdo

empregoativodosórgãosemgeral?”42

Quandofazdopróprio

corpo“instrumento,utensílioparaaformaçãoea

modificaçãodomundo”,maisdoqueFichteouSchiller,BeuysecoaNovalisemseu

fragmento1694:“precisoentãoquenósprocuremosfazerdenossocorpoum

órgão

universaldeaptidõesedecapacidades.Modificarnossoinstrumentoémodificaro

universo.”Comunicaçãodohomemcomomundo,ocorpoétantopedaçodemundo

quantopossibilidadedepossedessemundoatravésdaatividade–“corpoquevivee

podemorrer...cujaformaexterioréorganismoecausalidade,ecujaformainterioré

oser-ele-mesmoeafinalidade”43.A

novarelaçãoteóricapropostaporBeuysengaja

40SCHILLER,Friedrich.

Sobr

eo

Subl

ime.Citadoemnota64,p.154.

41“Enderrièreetsuprêmeinstance(...)iln’yad’autreEtrequelaVolonté.LaVolontéestl’être

originel(Ur-sein)etàelles’appliquenttoutlesprédicatsdecelui-ci:absencedefond(Grundlosigkeit),

étérnité,indépendanceparrapportautemps,auto-assentiment(Selbstbejahung).Toutelaphilosophie

netendqu’àtrouvercetteformulationsupreme.”SCHELLING.Recherchesphilosophiquessurla

naturedelalibertéhumaine.ApudAGAMBEN,Giorgio

.L’h

omm

esa

nsco

nten

u.Op.Cit.,p.124.

42Idem.

43JONAS,Hans.

Opr

incí

pio

vida

.Fun

dam

ento

spar

aum

abi

olog

iafil

osóf

ica.Op.cit.,p.28.

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Page 173: Apostila Joseph Beuys

183

4.2

Jose

phB

euys

.

4.2.

1

Am

plitu

dees

cultó

rica.

L’airestorganedel’hommeaussibienquelesang.Laséparationducorpsetdumondeest

semblableàcelleducorpetl’âme.Novalis,Fragments.

Figu

ra50

–Ba

rraqu

ed’

ullO

dde

–lo

cald

etra

balh

ode

umci

entis

taar

tista

EmBarraqued’ullOdde-localdetrabalhodeum

cientista/artista

(1961-67),sabemosestarnolugardetrabalhodeBeuysdevidoaoselementos

marrons,amareladosecinzentos,maisoumenosopacos,armazenadosnagrande

estantedemadeira.Sãolatasefrascosdevidrodetamanhoseformatosvariados,

instrumentosebrinquedos,plugselétricos,um

motorenferrujado,caixasou

pedaçosdemadeira,pedra,metal,papel.Umaquantidadeexcessivaderecipientes

emateriaistoscoscontrastacomoexíguoespaçodamesadetrabalho(talqual

umaescrivaninha)contíguaàestante,einsinuaaárduaatividaderealizada

naquelelocal.Aomesmotempoem

queacentuaocarátercustosodatarefa,a

solitárialâmpadasobreaescrivaninhasugereumaresistência,sublinhada,com

certohumor,pelofioelétricoqueamantémacesa.Sugerindoumacorrentede

energiaentreapequenamesadoartistaeassubstânciasdaestante,ofio

se

destacavisualmentecontraaparedebrancadasaladeexposiçõesaatravessaros

móveisdispostosaofundodasalaparaentãoconectar-seàtomada.Adiscreta

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184

linhasinuosasustenta,porassimdizer,aenergiadaqueleambientedensode

trabalho,algovulnerável–afinal,esedesconectássemosofiodatomada?

Conformenosaproximamosdaestantepodemosidentificarcadaum

dos

elementosaliarmazenados.Quandodelanosafastamos,porém,osvemostodos

integradosàsprateleirasque,juntamentecomaslateraisdaestante,determinam

linhasdeforçasobreoplanodaparede.Espéciesdecoordenadasortogonaisdo

lugardetrabalhodeBeuys,essaslinhasincorporamoselementos,retificadosnos

retângulosmarromeamareladopenduradosacimadaescrivaninha.Leves,quase

transparentessecomparadosaosmóveisopacos,essesplanossintetizam

as

substâncias-cordeBarraqued’ullOdde-recorrentes,aliás,emtodoorepertório

beuysiano,comoobeizeeoBraunkreuzdosdesenhos.Eacentuam

ocaráter

frontaldaobra,queganha,comasdiversasgradaçõesdassubstânciasguardadas

nosnichosda

estante,um

movimentode

expansão/contração-espéciede

pulsaçãocontraaparededasaladeexposições.

Beuys“planifica”seulocaldetrabalhonaquelaparede,sobrepõe,por

assimdizer,suaatividadeindividualnoespaçoinstitucionaldaarte,marcando

comBarraqued’ullOddeoperíododareorientaçãopúblicadesuaobra.A

elaboraçãodotrabalho,entre1961e1967,coincidecomacrescentedesenvoltura

comaqualoartistaocupa“seuterritório”narealidadematerialdomundodaarte

aoassumirsuasexperiênciasdeguerrae/ouaquelasentãovivenciadas.Talcomo

aindefiniçãoentreciênciaeartesugeridanotítulo:menosdúvidapessoaldeum

jovememrelaçãoàsuafuturaatividadeprofissionaldoqueansiedadedohomem-

artistaeuropeuquantoaosrumosdasuaprópriacivilização.Lugardaexpectativa

quantoaum

métododetrabalho23capaz(re)elaborardevidamenteoconteúdo

vivido,olocaldeatividade-artee/ouciência–éexatamenteproporcionalà

urgenterevisãodosfundamentosdo

conhecimento

humanoexigidapelo

gravíssimoestadodascoisas.Àausênciadoartista-cientistasegueasuspensãoda

atividade,eumasensaçãodedesamparo,justopelafrancaeinequívocaexposição

dosmateriaisquedemarcamaqueleterritóriodetrabalhoaovoltar-separanós.

Guardadasnasprateleiras,aquelassubstânciasrecusamqualquerespéciede

23Em

entrevistarealizadaem1976,Beuysdeclaraaquelatransiçãoentreciênciaearte,vividacom

ansiedade,comoamaisimportante“experiência-chave”“emtermosdemétodoetrabalho”.

Relata,commuitohumor,suasprimeirasexperiênciasacadêmicascomaciência(umaaulade

biologia)eaarte,paraentãoconcluirporsuainsatisfaçãocomocaráterdeespecialização

envolvidoemambasasatividades.JAPPE,Georg.T

he“k

eyex

peri

ence

s”in

terv

iew.InJoseph

Beuys:mappingthelegacy.Op.Cit.,pp.185-198.

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Page 174: Apostila Joseph Beuys

185

acúmuloetãosomentepedemporresgate,alertaalâmpadaacesaque,sem

iluminarotampodesuaescrivaninha,apontaparafrente.

Assim

tomam

contado

ambientecotidianodetrabalhodeBeuysos

elementosdasuaespécieestéticadeteoriadeconhecimentoexpostossem

qualquerorganização,anosalertarparaonossopermanenteembatecoma

realidade.Ohomem-artistasituaseusubstratoexistencialinnatura,semprepor

definir-se,comolugardetrabalho,anunciandoaperguntadeescalaplanetária

pelosignificadodoconhecimentoparaaexistênciahumanaquedistinguetodasua

práticaartística.Eaqui,comoemuma“lojadeserta”24 ,ocupamosmaisum

lugar-

melancoliabeuysiano:espéciedeconfissãopúblicaacercadaindigênciadoseu

material,efetivareconciliaçãodohomemcomelemesmo–possível“auto-retrato

espiritual”doartistacontemporâneo.

LembramosentãodagravuraMelencoliaIdeDürer,“exposiçãoobjetiva

deum

sistemafilosófico[Geometria]eaconfissãosubjetivadeum

indivíduo

[Melancolia]”25aconfigurar,decertomodo,seuauto-retratoespiritual.Aodotara

Geometria,disciplinaporeletãoamada,deumaalmaeaMelancolia,suaprópria

condiçãoemocional,deum

espírito,Dürerconcentraumanoçãoabstrataem

figurahumana.Reflexodasuapersonalidadeinteira,agravuraassimrealiza

simbolicamenteaconsciênciado

artista-geômetraacercada

necessidadede

conciliaçãodassuas“visõesinteriores”comaslimitaçõestécnicasdageometria

26.

Cercadapelosinstrumentos,inutilizados,demediçãodoateliêdaGeometria,a

figuraaladainterrompesuaatividadeepermaneceem

um“estado,porassim

dizer,desuper-alerta(...)seuolharfixoéaqueledabuscaintelectual,tãointensa

quantoestéril.Elasuspendeuseutrabalhonãoporindolência,masporqueesse

trabalhosetornou,aseusolhos,semsentido.Nãoéosonoqueparalisasua

24SYLVESTER,David.O

nBe

uys.Op.cit.,p.116.

25“Enelleseconfondentetsetransmuentdeuxgrandestraditions,iconographiqueetlittéraire:

celledelaMélancolie,personnificationd’unedesquatrehumeurs,etcelledelaGéométrie,

personnificationd’undesseptartslibéraux.Enelles’incarnel’espritdel’artistedelaRenaissance,

respectueuxdel’habilitétechnique,maisquin’enaspirequeplusardemmentàlathéorie

mathématique–quisesent‘inspiré’parlesinfluencescelestesetlesidéeséternelles,maisqui

souffred’autantplusdesafragilitéhumaineetdeslimitationsdesonintellect.Enelleenfinse

résumeladoctrineneo-platoniciennedugéniesaturnien,repenséeparAgripppadeNettesheim.

Mais,enplusdetoutcela,MélancolieI,enuncertainsens,estunautoportraitspiritueldeDürer.”

PANOFSKY,Erwin.L

avi

eet

l’art

d’A

lbre

chtD

ürer.Paris,Hazan,1987,p.264.

26“Quantoàgeometria,elapodedemonstraraverdadedecertascoisas;masporoutrascoisas,

deve-seresignaràopiniãoeaojulgamentodoshomens.”DÜRER,Albrecht.ApudPANOFSKY,

Erwin.Idem.

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186

energia,éopensamento.”27AbandonadoporDeus,oartistaagoradevebuscarsua

própriasubstânciaexistencial,exercendoassim

suanovaautoridadenoespaçoda

obra.

AindaqueBarraquenãoadquira

naobradeBeuyspesocomparável

àqueledeMelencoliaI-cujainfluênciaseestendepelaEuropaporaomenosmais

detrêsséculos-naobradeDürer,pareceviávelpensá-lacomoum

outro

momentodacondiçãomodernadabuscadasubstânciaexistencialpeloartista.

EnquantoDürerfiguraaiminentesubjetividadecriativado

artistasolitário,

envolvidoporseusinstrumentosdemediçãodestituídosdeuso,oartista-cientista

ausentedeseulocaldetrabalhoadeixaem

suspensonaforte

cargaafetiva

daquelassubstâncias.Beuysinstaurapublicamenteseulocaldetrabalhoapartir

deumdensoconteúdodeexperiência/vida,seformadefinida.

*****

Aquestãoprimordialésaberseasestruturasnasquaisvivemosestãode

acordocomnossoserprofundo28 .AssimBeuysesclareceonexodasuaamplitude

escultóricaque,daconstruçãodesiàdeum

mundoem

comum,devesupriro

déficitespiritualcontemporâneo.Aesculturasocialseriacapazdecobriroespaço

darelaçãoentrerealidadeinternaeexternacomoumatotalidadeorgânica,pois,a

quem

faltasseumanoçãoorgânicadeserhumano,tambémfaltariaanoçãode

organismodasociedadenaqualossereshumanosvivem.Fundamentadonaidéia

deGoethesobreomovimentopolardosprocessosdeconcentraçãoeexpansãona

natureza,seuprocedimentoplásticovisaàspossibilidadesde

umacriação

individuallivreetodasasrealizaçõesdavidasocialepolíticaaomododas

metamorfosesdasformasvivas.Dessemodo,suabase,opensamento,energia

fundamentalquecorrenointeriordeumorganismosingularhumano,mantidoem

circulaçãonoorganismosocial29,conduzàproduçãodeformasconformesua

27PANOFSKY,Erwin.L

avi

eet

l’art

d’A

lbre

chtD

ürer.Op.Cit.,p.252.

28DepoimentodeBeuysaojornalLeFigarode16dejaneirode1981.InCENTREGEORGES

POMPIDOU.JosephBeuys(Cat.Expo.)Op.cit.,p.349.

29SegundoMaxReithmann,Beuysteriaseapropriadodanoçãodeorganismosocialdesenvolvida

pelosidealistasalemães.Jáem

“MaisAntigoProgramaSistemáticodoIdealismoAlemão”,por

exemplo,háumacríticaaoEstadocomoumaestruturamecânicaquereduzossereshumanosao

estatutodemerascoisasoumeios,enãofinsnelesmesmos.Segue-seentãoapropostadeuma

relaçãoentrenaturezaesociedadenaformadeum

organismo:asociedadeseriaum

organismo

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Page 175: Apostila Joseph Beuys

187

naturezaplena.

Assim

Beuysdemonstranaespéciedesistemacirculatório

constituídoporBombademelnolugardetrabalho(1977),em

queomel,

símbolomaterialdopensamento,corredentrodetubos(órgãosintermediários)

ligadosaumabomba(coração)noescritóriodaFIU(UniversidadeInternacional

Livreparacriatividadeepesquisasinterdisciplinares).InstaladanaDocumenta6

deKassel,ageringonçasimulaainteraçãoorgânicaentreohomem

criativoea

sociedade,fusãodecapacidadehumanaeestruturassociais.

Exclusivocapitaldasociedade,essacriatividadeéfocodaaçãorealizada

nainstalaçãodaBombaatravésdainsistênciaem

umaauto-atividadelivredo

Ego.Beuysdefendeaexistênciadeum

cernedoEgoindependentedosersocial,

radicalizando

aidéiadeliberdadenapessoainterna,feitasinônimodaarte

mesma30 .Proporcionalaoextermíniodeumasubjetividadehumanistapeloregime

fascista,suacrescenteênfasenacapacidadeinternadohomemtambémrespondeà

contemporâneaperdadesi.Entraem

jogoanoçãodepessoaem

permanente

tensãocomoespaçopúblico-acomeçarpelaprópriaelaboraçãodesuamitologia

-,asmutaçõesdaindividualidadecontemporâneaquedefinemaqualidadedesua

amplitudeescultórica.Trata-sedeumdifícilequilíbrioecológico,porassimdizer,

somentealcançadoseconsideradaapessoana“distânciaquefazaligação”(lição

democráticadaesculturasocial).

DesdeasvitrinesatéPlightficaexplícitaatensãoentreum

(potencial)

interioreseu(alcance)exterior,contínuatransferênciaasituarapessoanomundo

quepodevirarpatologia.ComoadepressãodeBeuysnoiníciodesuavida

profissional,consubstanciadanaCaixaEmborrachadaqueguardariaseucaos

internoparareativá-lonomundosobdeterminadaforma.Ocaospodeterum

caráterdecura,em

sualigaçãocomaidéiadeum

movimentoabertoque

canalizaocalordaenergiadocaosparatransformá-laem

qualquercoisa

ordenada31–aprópriateoriadaescultura.

Anoçãodepessoaseligaaopróprioaglomeradoplásticoem

contínuo

processode(trans)formaçãorecorrentenorepertóriobeuysiano.Concentradonas

socialnoqualapoesiaeaarteocupariamumaposiçãocentralafim

derestauraraliberdade

individual.

30BeuysseafastariaassimdasreferênciasprimeirasdeMarxeSchiller,aosquaisoartistateria

recorridonocontextodotrabalhosocialmentenecessário.Marx,uma“menteespiritual”eum

“gigante”comocríticodocapitalismo,teriainevitavelmente“perdidodevista”aliberdadeemseu

últimotrabalho.DomesmomodoSchiller,“mentor”desuanoçãoampliadadearte,nãoteriatido

seaproximadodemodosuficientementeradicaldacapacidadeindividual.

31BEUYS,Joseph.ApudHOHLFELDT,Marion.

Chr

onol

ogie.Op.cit.,p.257.

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188

substânciasorgânicasmaleáveiseinstáveis,eleédesmembrado,porassim

dizer,

natransferênciadeenergiadosdispositivoselétricos.Fios,baterias,aparelhosde

feltroecobrerepresentamiconográficaematerialmenteprodução,manutençãoe

conduçãodeenergia,transferênciacontínuadeenergiaentrecorposquecobreo

intervaloentreoum

eooutro.Contrapondo-seàbaixaenergiacontemporânea,o

acúmulodeenergiaem

taisdispositivosremeteaumaespéciededinamização

espiritualquevisaàambiênciadepressivacontemporâneacaracterísticadafalta

dearticulaçãodoindivíduocomomundosocial-político32.OsgrandesFonds,que

chegam

aprovocarasensaçãodecalorao“aquecer”oambienteeonosso

interior.Ataldinamizaçãoviracalor,princípioescultóricofundamental,capazde

“tratar”adoençadavontadedohomemcontemporâneo.

Emcontraposiçãoàformacristalizadaefria,oformarlíquidoequente,

sobretudo,aliás,asuaconservação:opensaremmovimentoécondiçãosinequa

nonparaadinamizaçãoespiritualbeuysiana,aseraplicado,porassim

dizer,à

derrotadaAlemanha.Apósdiagnosticarograveestadoem

queseencontraseu

povo,comoorgulhoabaladoeumaprofundadeficiênciaidentitáriaecerta

inércia,Beuyspropõeaçãoapartirdore-assentamentodesuaterracommatéria

brutaefluida.Dagorduratosca,dofeltroquenteeinforme,dospigmentoscorde

terraesanguepreparaosolorealdeumareconstruçãosocialaserefetivadapor

cadaumdosmembrosdessasociedade.

Beuysdecididamentefalacomohomem

doseupovo.Comextrema

fluêncianonovoidiomaculturaldaarte,porém,torna-seumapersonacultural

pública.Suadinamizaçãoespiritualimplicaassimumamanobraestéticamulti-

mídia:suaamplacoberturapelamídiaconsiste,defato,emumdesenvoltotráfego

poraquelamaterialidadecultural,inerenteàesculturasocial,ecapazdere-situara

Alemanhanocircuitoartístico-cultural.Alémdaarteem

si,daeducaçãoedo

ensinosuperior,aimprensa,orádio,atelevisão,oconjuntodeórgãosde

32Ehrenbergrefere-seàinversãodadívidadoindivíduoparacomasociedade:enquantoo

indivíduoobjetivadocoletivamente–classessociais,categoriassócio-profissionais–possuidívida

comasociedade,aqueleindefinidosocialmentevê

suaresponsabilidadesaumentaremna

proporçãodoaumentodadívidadasociedadeparacomele.Amultiplicaçãodedemandasde

reconhecimentopessoaleaconfusãodeleisedasimagensqueaacompanham

exprimem

nabanalidadedocotidianoessainversãodadúvida.Éporissoqueoindivíduopareceperderdevista

adimensãoenergéticadapolítica.EHRENBERG,Alain.L

’indi

vidu

ince

rtai

n.Op.Cit.,p.309.

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Page 176: Apostila Joseph Beuys

189

informação

quesetornaram

hojeum

empreendimentodo

Estado33acaba

incorporadocomlucidezàsuaprodução-atuaçãoartística.

Paraocríticonorte-americanoMarkRosenthal34,oartista,quechegaa

cantarem

apoioàscausasdopartidoVerde,estariaseestabelecendocomoum

tipodesuperstaraosmoldesdeJohnLennonnaInglaterraouBobDylannos

EUA.Guardadasasdevidasdiferençasdevisibilidadeentre

osuniversosda

músicaPopeodasartesplásticas,essaspersonalidadesrespondemàperda

contemporâneadeumvigorpolítico.Assim,oinegávelimpactodaobradeBeuys

naquelesanossetentanãopodeserdissociadodaqueledasuafigurapública–

capazdelevantardúvidasarespeitodesuacondutamoral.“Xamãoucharlatão?”:

arevistaalemãDieSpiegelexpõeemmanchetedecapaaambigüidadeinerenteà

estratégicaatuaçãoculturaldoartista.Corpo/“Self”artísticoepersona/imagem

públicaintencionalmenteseconfundemnaglamourosaarenaartística,ocupada

porumasubjetividadeartísticainflacionada35 .

Éexatamentesobretalinflaçãosubjetivaqueincideaseveracríticado

norte-americanoBenjaminBuchloh,em

artigopublicadonarevistaArtforum,

apósaretrospectivadoartistanoGuggenheim36.Umtantoressentidodianteda

invasãoporumartistaalemãodeum

dosíconesdodomínioculturalamericano-

“bonito

edifício,normalmentebrilhantecomclaridade,calor,luz”,que,por

ocasiãoda

exposição,em

1979,estaria

“sombriamenteiluminadoem

um

crepúsculocinzaemelancólico”-,ocríticoprocuradesmantelarcom

argumentos

lógicosamitologiaprivado-públicadesenvolvida

porBeuys.Buchloh

praticamente

desqualificasuaprodução

artísticade

“interesse

visual

insatisfatório”,desdeseuilegítimofundamentonocarismaàquestionávelligação

doartistacomaestruturadepoderdasinstituiçõesculturais.

33BEUYS,Joseph.ApudJulieHEINTZ

.L

aqu

estio

nde

sm

édia

s.InCENTREGEORGES

POMPIDOU.JosephBeuys.(Cat.Expo.).Op.cit.,p.284.

34SegundoRosenthal,apersonacriadaporBeuysdeveserexaminadanocontextodasociedade

Ocidentalnaprimeirametadedosanos60,eradascaminhadasparaapaz,idealismo,esociedades

colaborativaslideradasporindivíduoscarismáticosqueraramenteseassociavam

apartidosou

sistemaspolíticos.ROSENTHAL,Mark.

Jose

phB

euys

:A

ctio

ns,

Vitr

ines

,E

nvir

onm

ents.

Houston,TheMenilFoundation,2004,p.13.

35Ainflaçãodavidaprivadanãodeveentãosercompreendidacomoumaescaladanarcísica,elaé

oquesetornaavidaprivadaquandoelasemodelasobreavidapública:um

espaçoondese

comunicaparanegociarechegaraoscompromissosnolugardecomandareobedecer.Trata-sede

novasrelaçõesentreumprivadoeumpúblicocujosconteúdosforammodificados.EHRENBERG,

Alain.L

’indi

vidu

ince

rtai

n.Op.Cit.,p.19.

36BUCHLOH,BenjaminH.D.

Beuy

s:th

eT

wili

ght

ofth

eId

ol,

Prel

imin

ary

Not

esfo

ra

Cri

tique.InJosephBeuys:mappingthelegacy.Op.Cit.,pp.199-211

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

190

Sempretenderseguirpassoapassosuacrítica,valeatentarparaalgumas

desuasobservações.Acomeçarpelaleituraliteraldomitodeorigembeuysiano,

apartirdainverossímilfotografiadoartistadepé,emfrenteàaeronaveJU87-

“embomestadodeconservação”-,publicadanamonografiadeAdriani“Joseph

Beuys:LifeandWorks”juntoàlegenda“JosephBeuysdepoisdeum

pouso

forçadonaCrimeaem

1943”.“Quemteria,oupoderia,posarparafotografias

depoisdoacidenteaéreo,quandoseveramenteferido?Ostártaroscomsuacâmera

defeltroegordura?”,perguntaumBuchlohmal-humorado.

Evidênciadomaisconhecidoeexploradodoseventosauto-biográficosde

Beuys,abem-humoradafotografia,assimcomoapublicaçãodolivro,fazparteda

estratégicainserçãopúblicadesuaobradeconteúdoexistencial.Assim,então,ela

incidesobreaincerta

existênciacontemporânea,trazidaapúblico,porassim

dizer,apartirdanoçãode“experiência-chave”,mencionadapeloartistaem

entrevistade

197637.Compostaporelementosimaginados,intuídos

ou

subconscientes,talexperiência,externa,factualoudecarátervisionário,em

sonhos,seria

capazdeconferiràssuasproposiçõesartísticasum

assertivo

conteúdo

vital.Semse

oferecercomoobjetosde

cognição

racional,as

experiências-chavevalemexclusivamenteporumaverossimilhançadeforçade

origem,aestabelecernoespaçodaarteumlugaremcompletainteraçãocomuma

cargadevida.

Dentrodateoriadoconhecimentobeuysiana,aexperiência-chaveconstitui

aprópriabiografiaconfiguradaeminstrumentodetrabalho,preciosoinstrumento

debuscaeescavaçãodoexatopontodeligaçãocomomundo,atravésdaqualele

poderiacompreenderodesenvolvimentodetudo38.Indispensávelferramentapara

oempreendimentodaartecomotarefaexistencial,abiografia-inter-relaçõesde

todososprocessosenãoaseparaçãodavidaemcompartimentosseparadosdo

todo–estabelecenoespaçodaarteum

vínculodeconteúdovitalconcretoentrea

realidadesensívelealinguagem/pensamentosupra-sensível.Assim,ofeltrooua

gorduracorrespondemenosaum

materialaserconformadodoqueàsubstância

existencialem

estadobruto,em

re-elaboraçãocontínuaaolongodesuaprática

artística.

37VerJAPPE,Georg.T

he“k

eyex

peri

ence

s”in

terv

iew.InJosephBeuys:mappingthelegacy.

Op.Cit.,pp.185-198.

38BeuysexplicaaCarolineTisdallquesuahistóriapessoalinteressasomentenamedidaemque

eletentouusarsuavidaesuapessoacomouminstrumentodesdeumaidademuitotenra.

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Page 177: Apostila Joseph Beuys

191

Essare-elaboraçãofaladeum

segundonascimento,iconograficamente

verificado,porexemplo,emBanheira(1960).Aorelacioná-laàrealidadedeter

nascidoemtaláreaeemtaiscircunstâncias,Beuysaludeaoiníciodetodoseu

processoindividualdeconhecimento,atingidoatravésdeumadordurável39.Uma

dorextensivaàqueladetodaaEuropa,profundamenteferidapelosmétodos

nazistasdeextermíniotambémaludidosnabanheira.MaisumavezBeuysreitera

oprocedimentodeidentificaçãocompletaentresuapessoaeaAlemanha/Europa.

Aliás,entreele,umapessoa,esuaterra.Trata-sedeum

profundoenvolvimento

existencialmenosnosentidodeumasubjetividadeforte

doquedaintensa

qualidadedepessoa.

BeuysidentificaaonipresenteferidacomseunascimentonocurrículoLife

Course/WorkCourseaoregistrarnoanode1921a“exposiçãodeumaferida

remendadacomfita”.Trata-sedoseunascimentoespiritual,renovadoaolongodo

cursodavida,permanenteconquistadaliberdade.

Sinceroenvolvimentoexistencial,agraveinsistênciagravenaferida

participa,no

entanto,do

currículocomoumabem-humoradareferênciaaos

tradicionaiscurrículosdeartista.Publicadopelaprimeiravezem

1964,Life

Course/WorkCourseserviucomobiografiaoficialdeBeuysnasegundametade

dadécadade1960emcatálogosdeexposição,adquirindosuaformadefinitivaem

1970numaexposiçãodemúltiplosrealizadanaInglaterra(ArtsCouncilofGreat

Britain).Com4000cópias,ocurrículointegraaexposiçãocomoum

desses

múltiplos:alioartistasituaumaseqüênciadeeventosbiográficospontuais

verídicos,comooconviteparaministraraulasnaacademiadeartedeDüsseldorf

(1961)ouaamizadecomBobMorriseYvonneRainer,juntoaosprincípios

fundamentaisdesuaplástica,feridaoucalor,“transformados”em

exposições.

Autênticoregistro

daobra-vidado

homem-artistacontemporâneo,aauto-

biografiamúltiplaincorporacomhumorumainflacionadasubjetividadeartística

mantendoumadignidadedissimulada,própriaàincertaexistênciaartísticano

novoambientecultural.Enãoseriajustamenteaalternânciaentrepúblicoe

privadoalegitimaracondutado

empreendedorda

artecomorealização

existencial?

39BEUYS,Joseph.InBEUYS,Joseph;KOUNELLIS,Jannis;KIEFER,Anselm;CUCCHI,Enzo.

Bâtis

sons

une

cath

édra

le(entretien).Paris,L’Arche,1988,p.160.

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192

Fielaospólosde

suaamplitude

escultórica,oartistaseposiciona

politicamente:em

1979

participadafundaçãodopartido

verdealemãoDie

Grünen(OsVerdes),sendodesignadocomocandidatooficialdopartidoparaas

eleiçõesaoParlamentoFederal,noanoseguinte.Opartido,noentanto,voltaatrás

emsuadecisão,precisamenteporcontados“subtendidosautobiográficosemtudo

oqueelediz”40.Enquantoaquelesenvolvidosem

políticaestudantilduranteos

anos1960

naAlemanha

trabalharam

nodesenvolvimentode

umanova

e

adequadateoriaepráticapolítica,Beuyslevaadiantecomapolíticaseutrabalho

artístico(afinal,nãosepodeobedeceradoismestres,bemlembravaKurt

Schwitters).

Aoobjetivaroequilíbrioentreo“maisprofundo”doindivíduolivreeas

estruturasnasquaiselevive,aesculturasocialvolta-separaaperdadevigor

políticonaEuropadosanossessenta.QuandoBuchlohserefereàquelesque

debochavam

damobilizaçãodeBeuysparafundaroGrandePartidoEstudantil

(1967),eleesqueceou,talvez,ignoraqueopróprioartistatambémpareciarirao

fundartalpartido,concebidocomoomaiorpartidodomundo,masamaiorparte

deseusmembroséconstituídaporanimais.Proporcionalàlúcidacompreensão

doenfraquecimentodospartidospolíticoseuropeus,ohumordeBeuysdáotom

damensagemcentraldaOrganizaçãopelaDemocraciaDiretaporReferendum

(1971):nuncavoteempartidospolíticosnovamente.

Basedasrealizaçõessociais,apolíticaintegraaesculturasocialem

uma

desuasfunçõesprincipais-darcorpoàdependênciamútuaquesustentaa

autonomiadecadaum.Daíaconvocaçãodecadaindivíduoparaparticiparda

criaçãodeformasparaavidaem

comum,capazde“superar”asériacrisede

representaçãopolíticaeuropéia,focodeBeuysnosanos1970,quedemonstra

didaticamenteoavançodacrise

políticaeuropéiaaolongodaelaboraçãode

Forçasdiretrizes(1974-77).

40“Lecontenurévolutionnairedesonmessageestmalheureusementinacessibleàbeaucoupde

gens.Ilyadessous-entendusauto-biographiquesdanstouscequ’ildit.Ilessaiedemettreànula

perceptionquotidienneetderévéleràtraverslacréativitédeasproprepenséecequicachederrière

darealité

immédiatementperceptible.”LukasBECKMANN.ApudHOHLFELDT,Marion.

Chr

onol

ogie.CENTREGEORGESPOMPIDOU.JosephBeuys.Op.Cit.,p.348.

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Page 178: Apostila Joseph Beuys

193

Figu

ra51

–Fo

rças

dire

trize

s

PartedacoleçãopermanentedaNationalgaleriedeBerlim

apartirde

1977,ainstalaçãorecebeotítuloapósofechamentodaexposição“Artinto

Society,SocietyintoArt”,realizadanoInstitutodeArtescontemporâneas,em

Londres,noanode197441.Portodososdiasdasquatrosemanasdeexposiçãona

galeria,demeio-diaatéoitohoras,Beuysdiscutiacomosvisitantesosprincípios

eosobjetivosdesuaarte,explicitando,atravésdeesquemas,oavançodacrise

políticaqueseiniciacomomundomoderno.O

artistaescreveedesenhasobre

quadros-negros-espéciesdepinturasdesuaarteemconceitoampliado-apoiados

sobretrêscavaletes.Aofim

decada“lição”,eleremoveoquadrodocavaleteeo

atiraaochão,que,porsuavez,depoisdequatrosemanassetransformaemuma

baseirregularformadaporcamadasescurasdeaproximadamente100quadros-

negros.Conceitoseidéiasperdem

sua“materialidade”nostraçosdegizqueaos

poucossedissolvemnasuperfíciedecadaquadro-negroatiradoaochão,onde

formam,porsuavez,um

irregularsoloescuro,sugerindooininterruptofluxode

pensamento.

Umquadrocontém

ainscrição

programáticado

projetoescultórico

beuysiano:“Forçasdiretrizesdeumanovasociedade”[Richtkräfteeinerneuen

Gesellschaft]sugeremosprincípiosdebasedeumaconcepçãodasociedadecomo

organismoternário.Ostrêscavaletesaludiriam,assim,aosistematripartitede

41Deondeosquadrosseguem,em

1975,paraagaleriaRenéBlock,em

NovaIorque,edepois

paraaBienaldeVeneza(1976),ondesãoreagrupados.

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194

RudolfSteiner42utilizadocomoidéianessemomentoondetodanoçãodecultura

estásubmetidaaoprimadodavidaeconômica43 .Steineridentificaosloganda

RevoluçãoFrancesacomoaexpressãoinconscientedasnecessidadesdistintasdas

trêsesferassociaisquecompõem

asociedade:liberdade

navida

cultural,

igualdadenavidapolíticaefraternidadenaeconômica.

Aalternânciaentrefascínio44erepulsapelaRevoluçãoFrancesanaobra

deBeuystestemunhaodecisivopapeldo

eventonoprocessoformativoda

modernidade

democrática-quando

oindivíduocomeçaase

emancipar,

organizaçõesemodelospolíticossãoinstituídos,eentreelesseestabeleceum

pactocomvistasaumautópicasociedadereconciliadacomelamesmanumfuturo

ideal.Talprojeto,noentanto,acabaporresultaremumaunidadepolíticapartida,

observaKoselleck45,quedetectaumareduçãoda

políticaenquantotarefa

constantedaexistênciahumanaaolongodoprocessodafilosofiadahistóriado

séculoXVIII.Aconcepçãodaunidadedomundoemnomedeumahumanidade

homogêneaconcebidapeloprocessocríticodoIluminismoteriaconjuradoessa

crisenamedidaemqueencobriuseusentidopolítico,resumindo-oaconstruções

utópicasdofuturo.OEstadoseparamoralepolítica,edaíresultaum

auto-

interesseaexigirum

novo

conceitode

ciênciaecriatividade,umanova

concepçãodedemocracia.Conscientedodescompassoentreumaidéiaabstratade

democraciaearealidadedasociedadeorganizadahierarquicamente,Beuyspensa

umademocraciaconstruídanãopelospartidos,nãopelopredomíniodeuma

minoria,maspelacontribuiçãoepelaparticipaçãodetodososcidadãos,ecria

42Osquadros-negrosdeBeuyscompartilhariamumaestranhasemelhançacomosdesenhosde

quadro-negrodeSteiner,realizadosentre1919e1924,tambémdurantepalestras.ROSENTHAL,

Mark.Op.Cit.,p.129.

43BEUYS,Joseph.ApudHOHLFELDT,Marion.

Chr

onol

ogie.InCENTREGEORGES

POMPIDOU.JosephBeuys(Cat.Expo.).Op.cit.,p.316.

44SegundoCarolineTisdall,aRevoluçãoFrancesateriasetornadoalvodofascíniodeBeuysa

partirdadescobertadesuasligaçõescomAnarcharsisCloots.RevolucionáriodoséculoXVIII

guilhotinadonaRevolução,Cloots,queseauto-designavaAnti-Cristo,tambéméorigináriode

Clèves.LucioAméliorelataumaaçãorealizadanoescritóriodeumagaleriaem

Roma,quando

Beuys,supostamentesemplanejar,começaalerum

livrosobreavidadeCloots.“Quandoele

estavaacaminhodaguilhotina,AnarchisisClootsdisseparaoexecutor,‘Olheessacabeça,você

raramentevêumacabeçacomoesta.’EentãoClootsfeztrêscumprimentos,primeirose

inclinandoparafrente,entãoparaum

ladoedepoisparaooutro.FoioqueBeuysfeztambém.

Essafoiaação.”KORT,Pamela.TheNapolitantetralogy:andinterviewwithLucioAmélio.In

COOKE,Lynne,KELLY,Karen(ed.)J

osep

hBe

uys.

Are

na–

whe

rew

ould

Iha

vego

tifI

had

been

inte

llige

nt!Op.cit.,p.43.

45KoselleckidentificanoséculoXVIIIa“antecâmaradaépocaatual,cujatensãoseacentuou

progressivamentedesdeaRevoluçãoFrancesa,queafetouomundointeiro,extensivamente,e

todososhomens,intensivamente”.KOSELLECK,Reinhardt.C

rític

ae

cris

e:um

aco

ntri

buiç

ãoà

pato

gêne

sedo

mun

dobu

rguê

s.RiodeJaneiro,Eduerj/Contraponto,1999,p.10.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

Page 179: Apostila Joseph Beuys

195

emDüsseldorf,noanode1971,aOrganizaçãoparaademocraciadiretapor

referendumassociaçãoiniciativapopularlivre.

****

*

ParaBuchloh,aelaboraçãodamitologiaprivadaepúblicabeuysiana

somentepoderiadesenvolver-seemanter-senoambientede“a-historicidadeda

produção

edo

consumoestéticos

naEuropa

dopós-guerra”.Umavez

compreendidosoDadaeoConstrutivismoRussosegundosuasrespectivas

implicaçõespolíticaseepistemológicas,osupostomistérioecarátermetafísicode

suaobracairiam

porterra.Semtraçarumarelaçãopontualcomtaiscorrentes

artísticas,reconhecemos,comocrítico,suaconexãohistóricacomapráticade

Beuysque,noentanto,aelasnãosevinculaapartirdesuaslógicaslingüísticas.

Longedeumaartecomoexpressãodelamesma,oartistacutuca,porassimdizer,

osfundamentosconceituaisdessaslinguagens.

Umaartede“potencialaltamentedissociativo”,própriodoordinárioda

vidaque,assim

comováriasartistas/tendênciasdosanossessenta,aproxima-sedo

Dada.ÉimbuídodeseuespíritocontestadorqueeleprovocaDuchampem

O

silênciodeDuchampestásendosuperestimado(1964).Desnecessáriochamara

atençãoparaaescalapúblicadaação,transmitidaaovivopelaTV

alemã,importa

aquiacontra-propostadeBeuys:àestagnadaposição“anti-arte”doartista,a

extensãoanti-arte–movimento–arte.AosilêncioaristocráticodeDuchamp,o

artistaalemãoretrucainsistentecomum

palavratório–“sonoridadedalíngua,

querdizer,quandoapregnânciadopensamentoressoanela”46–amplificado

atravésda

mídia.Assim

Beuysopõe

àtransparênciado

GrandeVidroa

pregnânciaopacadafolhadepapelcom

ainscrição

DasSchweigenvonMarcel

Duchampwirdüberbewerttfitacom

Braunkreuzechocolate,abengalade

extremidadescobertasde

gorduraou

oângulode

gorduradispostonuma

construçãodemadeira–potenciallingüísticodissociativoderessonânciaplástica

aconfirmaralinguagemverbalcomoorigemdasuaplástica47 .

46KIERKEGAARD,Sören.J

ourn

al.ApudNellyVIALLANEIX.IntroductionàLaReprise.Op.

Cit.,p.41.

47“Meucaminhopassoupelalinguagem,pormaiscuriosoqueissoseja,elenãopartiudeum

pretensodomplástico.”JosephBEUYS.ApudREITHMANN,Max.

Le

Lan

guag

e:lie

udu

viva

nt.InParlapresente,jen’appartiensplusàl’art.Op.Cit.,p.138.

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196

Aamplitudeescultóricabeuysianafundamenta-senoentendimentodo

conceitodePlastikcomolinguagem.Modeloparaoqueosgregoscompreendiam

comoaformahumanaeaformadasuacriaçãodeveser,oidealplásticoderivaria

doscomeços

dalinguagem,parcialmentepreservadospelosmitosgregos,

segundoofilósofoalemãoJohannGottfriedHerder48 .Amitologiaconstituiria

linguagem

figurativadeumaalmapoéticacapazdegerarum

ricomanancialde

imagensque,comoaesculturagregaantiga,incorporavaumaenergiahumana

fundamental.DesdeosalongadoscorposemBeize,que“brilham”sobreopapel,

todooprocessoescultóricovisaaumamaterializaçãodessaenergianoseu

própriocaráterfluido.Assiméqueoexímiodesenhistaentregasuahabilidadeao

própriocursodosmateriaisparaaí“encontrar”figuraçõescujasvozes“falam

o

queosdiscursosdenossasdisciplinassilenciaramparasempre”aproporcionar

“umapequenamágicadeconheceralgoem‘outralíngua’”.49Odesenvolvimento

daprópriamitologiabeuysianaaludeaoscomeçosdalinguagemnohomem,carga

vitalantesdeadquirirqualquersentido,oudetomarqualquerformadeculturaou

história–opróprio“ser”nagaleriadeDüsseldorf.

Figu

ra52

–C

omo

expl

icar

arte

para

uma

lebr

em

orta

48“Immediatelyafterhis1986LehmbruckAwardSpreech,BeuystoldajournalistthatHerder’s

conceptionofthe‘humanbeingasasculptedcolumn’laybehindthetheoryofPlastikarticulated

inhistalk.”PamelaKORT.

Beu

ys:

the

prof

ileof

asu

cces

sor.InJosephBeuys;mappingthe

legacy.Op.Cit.,p.28.

49HeinerBASTIAN;JeannotSimmen

.Jo

seph

Beuy

s.Z

eich

nung

en.

Teke

ning

en.

Dra

win

gs.

Prestel-Verlag,München,1979.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

Page 180: Apostila Joseph Beuys

197

4.2.

2Si

lênc

io C’estainsiquel’ouïemedevintpeuàpeulesensfavori;cars’ilestvraiquel’intériorité,

incommensurableavecl’extérieur,semanifesteparlavoix,l’oreilleest,delamêmefaçon,

l’instrumentparlequelcetteintérioritéestsaisie,etl’ouïelesensàl’aideduquelonse

l’approprie.SörenKierkegaard,OubienOubien

Em26denovembrode1965Beuysinaugurasuaprimeiramostraemuma

galeria

dearte50comaaçãoComoexplicararteparaumalebremorta.

FotografadaporUteKlophaus,aaçãoaparececomfreqüênciaempublicaçõesde

artenaimagem

p/bdoartistacomalebrenocoloeacabeçauntadademel,a

sugerirosilêncioecertomistérioanunciadosnotítulodaação.Beuys,emrara

apariçãopúblicasemseuchapéu,estásentadoem

umbancodetrêsapoios,um

delesenvolvidoporum

rolodefeltro.Comacabeçacobertadeouroemel,o

artistatemopédireitoamarradoaum

soladodeferro(comonaaçãoEurasia),

enquantooesquerdorepousasobreumaplacadefeltro.Comobraçoesquerdo,

eleseguraalebre,àqualsedirigeatravésdeum

levemovimentodemão,

registrado

nafotografiacomoborrãodiscreto.Klophausfixao“sentidode

explicação”daaçãoaocaptaroinstanteem

queamãodoartistasecurvapara

cimaeodedoindicadorselevantanotípicogestodequemensina.

Antesdesesentar,Beuysteriacaminhadopelagaleriacomalebreno

colo,lheexplicandoosquadrospenduradosnasparedes.Explicaçõesmudas,que

ecoariamnosilêncioproduzidopelosdispositivosempregadosnaação:obanco

envolvidocomfeltro,asoladeferroeum

rádio–numafreqüênciaquase

inaudível51-,sobobanco,feitocomossosecomponenteseletrônicos.Níveis

necessáriosparaexplicararteàlebre,esclareceoartistaque,aoandarpelasala

comasoladeferro,produziriaumestampidocapazdequebrarosilêncioreinante.

Silêncio“amplificado”paraopúblicoque,semacessodiretoàgaleria,podia

acompanharaperformance,em

suastrêshorasdeduração,atravésdaporta

envidraçadadaentradaedajanelaviradaparaarua,ouaindapelatransmissãoao

vivoemumaparelhodeTV.

50NaGalerieSchmela,emDüsseldorf,inauguradaem1957comumaexposiçãodemonocromos

deYvesKlein.

51BEUYS,Joseph.ApudCarolineTISDALL.

Jose

phBe

uys.New

York,Solomon

R.

GuggenheimMuseum,1979.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

198

Asexplicaçõesqueoartista,hermeticamentefechadonagaleria

de

Düsseldorf,comose

numavitrine,murmurapara

alebrenossão

incompreensíveis.O“rádio”montadomalfuncionaeatelevisãosóretransmiteo

silêncio.Recorrenteem

suaobra,a(im)possibilidadedacomunicaçãoviraaqui

silêncioproduzidoporelemesmo,comauxílio

demateriaiseinstrumentos

familiares.Umsilênciopesado,porassimdizer,talcomoaquele“emitido”pelo

telefonequenãocomunica(Telefonedeterra,1968)oupelopianoquenãotoca.

Silênciosdensosdevida,naterraespalhadasobreabasedotelefone,nofeltro

quentequeenvolveopiano,naprópriapresençadoartistaenfim.Enquantoem

açõescomoHauptstrom>>

Fluxusaparelhostraduzemem

somaressonância

plásticadasuamovimentação,aquiosilênciocondensatalplásticanasua

condiçãodeformaçãointerna.

Aofalar,compenetrado,comalebremortanagaleria,Beuysnegaao

públicoqualquerexplicaçãoarespeitodesuastramascomplicadas.Tãocaraà

nossacultura,aexplicaçãoaquidenadavale,provaoartista,quepreferenãodar

asignificaçãoimediatadasoladeferro,massimfalardopensamentoquese

encontraporcaminhosparalelos.Elebemsabedaimpossibilidadedeuma

interpretaçãoobjetiva,dafieltransmissãodeum

pensamentotalcomofoi

concebido.Acomunicaçãocomoanimalcontémalgodeinexpressávelaosoutros

homens,conversamudaqueguardaum

segredodaexistência-exatocentrodo

mundo,atingidopelalebreconformeelaseencarnanaterraepenetranassuas

leis.Quantoaohomem,caberealizartaltarefaatravésdoseupensamento52.

Oquenósapreendemosdarealidadeexterior,declaraoartista,écomoum

grandeenigma(...)quesereproduzsempredenovo.Mas,pararesolveresse

enigma,sóexisteohomem,ohomem

éasoluçãodesseenigma.53Atravésda

linguagem,plásticaquejánascenelemesmo,ohomem

solucionaoenigmada

realidadeexterior,demonstraBeuysquandore-propõe,porassimdizer,oenigma

quelheéininterruptamentepropostoemseuembatecomarealidade.Atravésdo

52“Éissoquefazalebre:encarnar-sefortementedentrodaterra,coisaqueohomem

sópode

realizarradicalmentepormeiodeseupensamento:esfregar,bater,cavarnaMateria(terra);por

fimpenetra

(alebre)nasleisdaterra.Nessetrabalhoseupensamentoéaguçadoeentão

transformado,tornando-serevolucionário.”BEUYS,Joseph.ApudCarolineTISDALL.J

osep

hBe

uys.NewYork,SolomonR.GuggenheimMuseum,1979.

53LembramosdaadmiraçãodeKierkegaardporSócratesepelospré-socráticosque,sobaforma

dopoemaedoenigma,tentamexpressarsuarelaçãocomoreal.Sócratestinhaapreocupaçãode

transmitirenigmassemprereconhecendosuaignorância,eassimlevarseudiscípuloaentrarem

contatopessoalcomaquiloquediz.

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Page 181: Apostila Joseph Beuys

199

“potencialaltamentedissociativo”dosleftoversoudesuamovimentaçãopor

entre

todaumaparafernáliamaterial,oartistaativaoscomponentesdesuas

experiências-chaveparadevolvê-losaoespectadorcomosubstânciasnamaior

liqüescênciaemobilidadepossíveis.

Importasomenteesseestado,aquiliteralmenteincorporadopeloartistaao

cobrirsuacabeçacommel.Beuysatualizaseupensamentovivonomundo;

exteriorizaaenergiahumanaprimordialque,porsuaexistênciasupra-sensível,

nãoseliganaturalmenteàvidaterrestre.Esobopesodessaplástica,elecaminha

comossoladosdefeltroeferropeloespaçodaarteondefundaseulugar-

melancolia-território

dasoluçãocontinuamenterenovadadoenigmaquedá

formaaomundohumano.

Todo

aquelesilênciofaladacapacidadeinternado

homem,póloda

amplitudeescultóricabeuysianaouvidaem

Plightcomoosominteriordaalma

ouaimaginaçãodamúsica.Semainterferênciadequalquersomexterno,aobra

reverberaodesenvolvimentodopotencialhumano–odoartista,nofeltro,eo

nosso,aoexperimentá-lo.NagaleriadeDüsseldorf,Beuyscomoqueocorporifica

simbolicamenteno

mel,comoqualrevesteasedefísicada

produçãodo

pensamento,eotransfereatodososdispositivoscapazesderessoaraquele

potencialao

sedeslocarpela

sala.Instaura

assim

essa

potencialidade

externamente,naquelepequenoambientedaarte,ondeseouveaconversa

silenciosadeBeuyscomaqueleanimalquenaturalmenteencarnanaterra:como

entãoohomempodelevarelemesmoqualquercoisaaomundo,qualquercoisa

quevemdodomíniodasidéias,queseencontranoexteriordomundoterrestre,

matéria54,pareceperguntaràlebre.

Atransferênciado

pensamento/plástica,formade

existênciasupra-

sensível,paraomundo

sensível,materialmenteressonanteem

suasgrandes

esculturas,éconformadanessaconversacomalebre.Umsolilóquiosobre

pensamento,linguagem

econsciência,intrínsecoatoda

suaobra,aliás,

concentradonasuaimpressionantepresençanasaladeexposições.Menossua

capacidadedoqueacapacidadehumana,noentanto,Beuyscolocaempautaum

potencialinternoadesenvolver-setemporalmentenarealidade.

54BEUYS,Joseph.EntrevistaaAchilleBonitoOliva.Lamortmetiensem

éveil.In

Par

lapr

esen

teje

n’ap

part

iens

àl’a

rt.Op.Cit.,p.92/3

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

200

Adensidadematerialdasuaobraapresenta-seaquicomoopróprio

presente“extenso”dopotencialdetransformaçãodohomem

nomundosituado

porsuapresençapesada.Beuysreforçanelemesmoasínteseentreeternoe

temporal-sucessãoinfinitaondeseencontraavida-própriadaexistência

humana.Corpoealmaunidosnoespírito,ohomem

seconectacomarealidade

temporal,semabandonar,no

entanto,opresentesemsucessão,próprio

do

espírito.AssimBeuysdemonstra,pelaindubitávelmaterialidadedoselementos

deintensacargainterna,espacializadaaolongodaaçãonaquelasala,ealiinstitui

atemporalidadedensadopresente.Éumaprogressãoquenãoavança,porque

“paraaimaginaçãooeternoéopresentedeumaplenitudeinfinita”.

Figu

ra53

–Eu

mes

mo

empe

dras

Emquemedidaohomem

podelevaraomundomaterialessapotência

espiritual?Beuyspareceesboçarsuapergunta-chavenosdoisdesenhosEu

mesmoempedras(1955).Emum

deles,vemosumacabeçahumana,cujaparte

superiorseconectacomblocosdepedrafeitosdenervosostraçosconcentrados

queseguematéabordadireitadopapelondeseespalhamemlinhasesparsas.Um

outrobloco,“solto”,encontra-seàfrentedacabeçae,entreeles,concentram-se

enérgicosriscoscirculares,aglomeradotectônicoademarcarcomvigoroespaço

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

Page 182: Apostila Joseph Beuys

201

daconexãoentreproduçãointernaeoexterior.“Lugar”daconquistadaliberdade

-darevolução,diriaBeuys-,oinstanteconstantementerenovadonocursodavida

daqueleem

permanentemovimento.Em

contrastecomessasugestão

de

movimento,nodesenhosuperiorvemoscabeçaecorpointegradosemum

bloco

comprido–comoaspesadaspedrasdebasaltodeOFimdoséculoXX–sinônimo

dopensamentopetrificado.

Breveanotação/reflexão,Eu

empedrasanunciaoprincípioartístico

fundamentalbeuysiano:apossibilidadedasuperaçãodamatériainerte(realidade)

pelopensamentoemmovimento/linguagem.Consubstanciadanaconversacoma

lebremorta,imprescindívelexperiênciadamortepararegenerarforçasesetornar

criativo,talsuperaçãopermanecelatentenoespaçodasgaleriasdearteemOFim

doSéculoXX

paraserealizarnoespaçoexternodaDocumentacomos7000

Carvalhos.Aliopensamentodohomemtãovastocomoomundo...maisvasto

mesmoganhasuadevidadimensãoplanetária.Em

contrastecomainérciado

statusquo,materializadanaspedrasdebasalto,omovimentodarenovação

criativabrotadaprópriaterra.Éseivanaturalquecorreporaquelafloresta,

manifestaaextensãocósmicadosmundosmaterial(raízes)eespiritual(galhos).

Aamplitudeescultóricabeuysiana,campodaartesinônimodohumanoem

formação,“conclui-se”demodoespetacularnavisãototaldaáreacobertapela

seqüênciadecarvalhosepedrascomootempoderegeneraçãodavidanaterra.

Espéciedeflorestadepossibilidade,aseqüênciadasárvoresconcentrao

movimentobeuysianodoleftoverparaovaziocomoininterruptare-proposição.A

cadaárvorequebrotaaoladodoblocodebasaltoésugeridoopresentecolocado

emmovimentopelofuturoquenuncasetornapassado,porquevemsempre

confrontadopelohomemcomopossibilidadesemlimite.Possibilidadesdiscretas,

osleftovers,“acionam”nossopensamentoaindicarafaltadelimiteprópriaà

plástica/linguagemhumana.Aqui,elaépraticamenteatualizadanohorizontesem

limitedaflorestade7000Carvalhos.

Reconciliaçãodohomemconsigomesmo,sínteseentrepresentetemporal

eeternonoinstante:aíestáosentidomaiordaarteem

conceitoampliadoao

futuro,“étersemlimite

eindeterminadoda

possibilidade

quesósetorna

determinadoem

seuingressono

presente,semserelemesmoesgotado

ou

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

202

reduzidonesseingresso.Eletocaorealsomentenavidadeum

serespiritual”55–

ohomem-artista,paraquem

“Ahumanidadepodeestabelecernovascausasnahistórianabasedacriatividadehumana,

nabasedopensamentohumano–novascausasquepodemdeterminaroprogressohistórico

dofuturo(...)Opassadoeofuturosóexistemporqueahumanidadecontinuaaestabelecer

novascausas.Nósdevemoscompreenderquesemprefoidessamaneira.”56

Figu

ra54

–70

00C

arva

lhos

55CRITES,Stephen.‘T

heB

lissf

ulSe

curi

tyof

the

Mom

ent’

Rec

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ctio

n,re

petit

ion,

and

Eter

nalR

ecur

renc

e.InRobertL.PERKINS(ed.)InternationalKierkegaardCommentary:Fear

andTremblingandRepetition.Vol.6.Macon,MercierUniversityPress,1993,p.246.

56BEUYS,Joseph.ApudBECKMANN,Lukas.T

heca

uses

liein

the

futu

re.InJosephBeuys:

mappingthelegacy.Op.cit.,p.111.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

Page 183: Apostila Joseph Beuys

225

5 Con

clus

ãoIthoughwouldsailaboutalittleandseethewaterypartoftheworld.ItisawayIhaveofdriving

offthespleen,andregulatingthecirculation(…)wheneveritisadamp,drizzlyNovemberinmy

soul(..)

HermanMelville,MobyDick

Olugar-melancolia

sedesenvolve

segundoaestruturatemporaldo

acidentedetremnointeriordeum

túnel,comodescreveKafkaem

seudiário.

Semdistinguiraluzdaentrada,nóspermanecemosali,parados,ansiosospelaluz

dasaída,tãominúsculaquesempreescapaanossoolhar,continuamentea

procurá-la.Adquirimosbrevenoçãodasaídacomos“flashes”monocromáticos

deKlein,atravésdaspistassubstantivasdeBeuys–diferentescombinaçõesde

elementosdochãodeseutúnel–ounossucessivoseidênticostakestomadospor

Warholdaquelasituação.Cadaum

delesrepetesuacondiçãodeacidentado:

alegria

compulsiva

daininterruptadescoberta,osofrimentoíntegroou

a

insistênciano

caráteransiosodo

nossotempo

sãoexperimentadoscomoa

aberturadeum

espaçovazioemnossoprópriotúnel.Doconsumodosdiferentes

leftoversficaum

arrepiodaconsciência,disposiçãomentalque,senãomudaa

formapráticadenossotúnel,coincidecomnossacondutaemrelaçãoaele–enão

seriaesteoúnicomododemudá-lo?

Comolugares-melancolia,apresentamosnessatesedesempenhospoéticos

jáhistóricos

quesobrevivem,entretanto,comvigorcrescente:atravésde

manobrasinspiradasecalculadassobreamaterialidadedaartemoderna,asobras

deBeuys,KleineWarholrepotencializam

anossavivêncianoespaçodaarte

contemporânea.Identificadocomaressonânciadamatériaviva,JosephBeuys

trafegaporlinguagensartísticasmodernasvisandoexclusivamenteàpotência

espiritualdaforma.Aoproclamarsuatesefundamental–todoserhumanoéum

artista-,dásuacontribuiçãopessoalparaa‘históriadaarte’que,desvinculadada

típicasubjetividadeartísticaou

dainovaçãoformal,desafia

adinâmicado

modernismopautadanodesenvolvimentoprogressivo.Empreendeassimum

ensaioparaumanovaeconomiapoética–aesculturasocial–cujaverdadese

encontranatramadacisãoentreestéticaearte.

QuantoaYvesKlein,tendemosaresponderafirmativamenteaocrítico

ItzhakGoldberg:sim,opintorencarnaumaespéciedeÍcarodamodernidade

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226

comolegítimodescendentedo

“choc”baudelairiano.Agentetransmissorda

sensibilidade,oartistasabe,noentanto,quesuainsistênciasobreaintensidadedo

fenômenoagorasósobreviveatravésdetruques,comoodacélebrefotografiado

salto

novazio.Oscilandoentre

umavocaçãoprofundamenteidealistaeuma

atitudecínica,paraNanRosenthal,aobradeKleinhesitaria,contudo,entre

pesquisasutópicasoutranscendentaisemanifestaçõesasmaisfraudulentas.Sua

pinturaageentreapuraemergênciadaformadomístico/idealistaMalevichea

não-formadocético/irônicoDuchamp,apartirdalógicadocampotalcomoa

concebeafísicamoderna,ondeéimpossíveltraçarumalinhaesepararduas

substânciasdiferentes.Presenteeatuanteemcadapontodocampo,encontra-sea

polaridadedapotênciaabsoluta.Afinal,sentenciaKlein,os‘pintoreseospoetas’

verdadeirosnãopintamnemescrevempoemas.Elessãosimplesmentepintorese

poetasnoestadocivil.1

Ocontatodiáriocomumaprodução

artísticamoderna,rapidamente

absorvidapelomercadoelogoelevadaàsupremadignidadedaHistóriadaArte,

permiteaAndyWarholobservar:oscríticosdearteatribuíam

àPopmais

precursoresdoqueospaisqueShirleyTempletinhanosfilmes.Aooperarsobrea

materialidadedaarteexplicitamentepermeávelàculturademassa,oartista

suspendeovalordaarte,ehojeverificamosqueoreal-artificialwarholiano

antecipavadefatonossocotidianohiper-flat.Aindividualidadeincerta,elaborada

noslaboratóriosdaFactory,éagoratelevisionadaem

programasdeauditórioe

reality-shows;todosnósinstalamosmini-factoriesemnossascasaseescritórios.

Umaposição

geográficaestratégica

eprivilegiadaeumaaguda

inteligênciavisualsecombinamparaqueocorraoqueoestetaAkierkegaardiano

qualificariacomoumafelizchance:aabsolutainterpenetraçãorecíprocaentre

formaamatériacapazde“formar”omundoatual.“MundoWarhol”,onde,para

MaurizioCattelan,artistaresidenteemNovaYork,nósvivemostantoquantona

cidadedoEmpireState–oedifíciosimplesmenteestálá,vocêoconhece,devez

emquandoolhapraeleparaseorientarquandoestáperdido,masvocênãopensa

realmentenele2 .Aincorporaçãodoartistaàpaisagem

contemporâneaconfirma

seu“dom”paraadireçãodeartedocotidianonovaiorquinonasdécadasde

1KLEIN,Yves.

Que

lque

sex

trai

tsde

mon

jour

nal

en19

57.InCENTREGEORGES

POMPIDOU.YvesKlein(catálogodeexposição).Op.cit.,p.178.

2CATELLAN,Maurizio.A

rmy

ofon

e.Artforum,October,2004,pp.148/9.

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Page 184: Apostila Joseph Beuys

227

60/70/80.Assim,osefeitosdo“curtoséculoamericano”sefazemsentiremobras-

Warholsque,semlevaraoautorportrásdelas,comeleapenascoincidem.

Espéciede

acordo

comarealidadeculturalizadaestabelecido

peloartista

justamentepormeiodanão-ediçãodosseusregistros.

Anão-atividadeininterruptadaFactorytestemunhaoatualestadodoqueo

historiadorReinhardtKoselleckdenominaaceleração-indicadorinfalíveldeque

adiferençatemporalprogressivaentreexperiênciaeexpectativa,oprogresso,só

seconservaquando

continuamentemodificada3 .Nasseqüênciasdeimagens

múltiplasWarholsimulaexperiênciasacumuladas

queinstauram

certa

permanênciasemefetivar-senumaestruturaduradouranemtampouconuma

mudançadaaçãoinicial.Oartistadá-secontadonovotempoqueagoratemem

suamão4 ,um

tempocontabilizadoemunidadesque,combinadas,tornamvisível

determinadoaspectoda

diferençaentre

experiênciaeexpectativa.Tensão

antropologicamentepré-existente,na

modernidade

elaéconcebidacomo

separaçãoconscienteentreespaçodeexperiênciaehorizontedeexpectativaaser

constantementepreenchidapelaaçãohumana–taléanoçãomodernadotempo

histórico.Cadavezmaislarga,adiferençaentreexperiênciaeexpectativa,no

entanto,parecesedesconectardoassentamentodascondiçõesparapermitirquese

vivaeseaja.

Assim

Warholestabelecevisualmenteumaespéciededistensãoentre

expectativaeexperiênciacomoaexperiênciado

seulugar-melancolia:

duração/conceito-objetoquepermanecenasucessãoderetratoseauto-retratos

atravésdaexpectativaininterruptamentepreenchidapela“mesma”experiência.

Trata-sedamultiplicaçãoporzero,repetiçãodamesmaimagem

quedemonstra

umdéficitdeexistência,umaperdadequalidadedavivência,porassim

dizer,

consoantecomcertaestruturatemporal.Oque,comosabemos,significamenosa

mortedo

quejustamenteaqualidadeespecíficado

confrontowarholiano:

incômodapermanênciadeum

vazioqueexigeatomadadedecisãopornossa

3ParaKoselleck,aaceleraçãoéum

indicadorinfalíveldequeadiferençatemporalprogressiva

entreexperiênciaeexpectativa,oprogresso,sóseconservaquandocontinuamentemodificada

KOSELLECK,Reinhardt

.Fut

ures

Past.Op.cit.,p.269.

4Atravésdoexemplodorelógiodigital,Warholnãopodesermaisprecisoeconcreto:“Digital

clocksandwatchesreallyshow

methatthere’sanewtimeonmyhand.Andit’ssortof

frightening.Somebodyhasthoughtofanewwaytoshowtime,soIguesswewon’tbesayingone

‘o’clock’toomuchlonger,becausethat’s‘oftheclock’or‘bytheclock’andtherewon’tbeany

moreclocks:it’llbe‘onetime’insteadof‘oneo’clock’and‘three-thirtytime’and‘four-forty-

time’.”(PAW117)

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228

vida.Menosum

impacto,asensaçãoprovocadaéadeum

torporalerta,também

sentidocomaspolaroidsdecelebridades,fotografiasúnicasechapadas,comose

ambientadasemshoppingcenters,ondeamanutençãodaluz,datemperatura,do

some/oudocheiroanulaasvariáveisàsquaissomosnaturalmenteexpostos.

“Imersos”numaatmosferaplastic

andwhite,aquelesrostosnosafrontam,

mobilizando-nosnum

estranhoestadointelectualimaginativo.

Asensação,incômodaaoextremo,écomoqueprolongada,porexemplo,

novídeo“DialH-I-S-T-O-R-Y”5,deJohanGrimonprez.Colagemdedepoimentos

devítimaseseqüestradoresdeaviõesnosanos70/80,aobraéconduzidaporuma

narraçãofictícia,monocórdia,inspiradaemromancesdeDonDelillo,epelatrilha

demúsica-discodosanosoitenta.Aediçãodasimagens,corteseaceleraçãodas

seqüências,combinadaàediçãodosom,exigeumapercepçãoquealternaentreo

automatismodosreflexoscondicionadoseafruiçãocontemplativa.Amonótona

vozem

offreitera:osseqüestradorestomaram

olugardosescritores.Restam

agorasomenteosfragmentosdagrandeliteraturadopassado,eoenredodovídeo

-aincapacidadedalinguagem

dizeratotalidadedoreal–sedesenrolacomoa

própria

sucessão

dasimagensbalizadapeloritmoconstanteda

narração

monocórdiaque,numuníssonocomosomdisco,provocaumaaflição.Somos

entãodeixadosnumestadosimilaraodotorporalertawarholiano.

Seumanovaexperiênciaécriadapelapenetraçãodo

horizontede

expectativano

espaço

deexperiência(Koselleck),ainsistenteinvasãodo

inesperadocomoqueanulaessacriação.Longedereduzir-seaum

lamentopor

nossacondiçãonasociedadedoespetáculo,noentanto,ovídeotemcomoefeitoa

capacidadedenos(i)mobilizarnapoltrona.Disquehistória:conecte-secomo

eventofundamentaldasuaexistênciaperpetuamenteem

curso,enfrentesuas

condiçõesdepossibilidade-oqueseé,eoquesepodeviraser.Diantedoque

definitivamentenãopodesermudado,resistimos,porém,alinasaladecinema-e

foradela. (“DialH-I-S-T-O-R-Y”confirmouasensaçãodúbiadedesolamentoe

excitação,posteriormentequalificadacomomelancolia,queexperimenteiao

primeiroencontrocomWarhol.Assistidoem

2001,noCCBBdoRio,enquanto

euelaboravaoprojetodapresentetese,ovídeomepermitiure-vivenciaruma

5Estruturadoem

duaspartesde50minutos,ovídeo,elaboradonaBélgicaem

1995/7,foi

apresentadonaDocumentadeKasselsobaformadeinstalação.

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Page 185: Apostila Joseph Beuys

229

sensação

similaràquetivecomasobrasdo

artistanorte-americanono

KunstmuseumdeLucerne,em

1995–meuprimeirolugar-melancolia–eassim

confirmarotemadotrabalhoaserdesenvolvido).

Elessempredizemqueotempomudaascoisas,masvocêrealmentetem

quemudá-lasporvocêmesmo(PAW111).Aprincípioestranhaàhabitual

impassibilidadedeWarhol,afraseporelepronunciadaacabaporconfirmar,no

entanto,partedanaturezadúbiadanossaexperiênciacomsuasobras.Afinal,

comofoidiscutidoaolongodatese,éfundamentalmenteapartirdoaspecto

temporalqueoartistanospropõeum

confronto.Entreanegaçãoeaafirmação,

elenosmostraquearealidadesópodesermodificadaquandoseconcordacom

ela.Nasváriasexclamaçõesmonocórdias,porexemplo,oartistareconhecesua

impotênciadiantedoquedefinitivamentenãopodesermudado.E,justamentepor

incorporarsuaslimitaçõesaoseumétododetrabalho–anão-ediçãodeimagens–

eleresiste,passivo.Suaobranãoagride,desconcertajustamentepelacompleta

honestidadedesuaresistência.

Aíestásua“força”,praticamenteneutra,talcomonasupressãoda

exclamação,porexemplo,emtheworldisgreat-nãoapresentariaestasentença,

aliás,umaestruturalacunarpróximaàquelade“Iwouldprefernotto”de

Bartleby?GiorgioAgambenobservaqueafrasepronunciadapelopersonagemde

Melville

deixaem

abertoareferência,deslocaalinguagem

doregistroda

proposição,quepredicaalgodealgo,paraodoanúncio,quenãopredicanadade

nada.Bartlebyseinscreveria,assim,naestirpedosmensageiros,paraquem

a

linguagemseconverteempuroanúnciodesuapaixão.“Purificadodetodadoxa,

detodoparecersubjetivo,opathosépuroanúnciodoaparecer,exposiçãodoser

semalgumpredicado”6 .TalcomoWarhol,queincide,parafalarcomAgamben,

no“pontode

indiferençaentre

potênciaenão-potência”poética-pura

possibilidadecomoestratégiadeser-noespaçoculturalcontemporâneo.

Sobreessepontodeindiferençaentrepotênciaenão-potência,surgeo

lugar-melancolia,lugardesuspensãodaartequeindicaopassoparaumaoutra

formaartísticaapartirdaambigüidadedapotênciapoéticanocontextocultural

aberto,ecrescentementedominadopelaculturademassa.OperaçãoPoppor

excelência,talcomorealizadaporWarhol:umavezdistinguida,comohighart,

6AGAMBEN,Giorgio.B

artle

byo

dela

cont

ingê

ncia.Op.cit.,p.115.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210216/CA

230

suapráticaartísticadeoutras,eleprecisaencontraroutrapráticaviável;anunciar

sua“aposentadoria”,talvez,comofezem1965,quandoaPopArtcomeçavaaser

seriamenteconsideradaporhistoriadoresdaarteemuseus.Em

grandefesta

realizadanaFactory,porocasiãodolançamentodolivro“PopArt”,deJohn

RublowskyeKenHeyman,Warholsevêcompletamentesatisfeito

comsua

decisãodeabandonaraartequandoobserva,aoseulado,umagarotaem

um

vestidoCourrègesdeplásticodizersuando,quevestiraquiloeracomosentarnua

numacadeira

decozinha.Elatinhaumacópiadolivroepediuqueeuo

autografasse.Conformeeu

folheava

aspáginaseolhava

asreproduções

coloridas,eumevicompletamentesatisfeitoportermeaposentado:osbásicos

enunciadosPoptinhamsidocompletamentecolocados7.

Aculturademassaétãosedutoraque,inevitavelmente,determinará

qualquernovaprática,eofaránãodeum

modoneutroeaberto,mas,ede

preferência,distorcendo,segundosuasprópriasregras,asqualidadespróprias

àquelaprática.Warholcompreendeuejogoucomissodetalmodoquesuaobra

dosanossessenta,valerepetir,longedesemostrardatada,pareceganharforça.

Trata-sedeum

cortante“atotímidomonossilábico”sobreolimiteentreocampo

autônomodaarteeasituaçãoculturaldemassa.

Desnecessáriorepetirocaráterinofensivodarevoluçãoazulouoaspecto

vagodaesculturasocial,háquesevoltarparaoíndicetransformadordessas

propostas.Semoferecerperigoouameaça,amarchadoBeuysdesarmadooua

silenciosaretiradadosquadrosporKleinsãotãolevesquantoasalmofadas

prateadasdeWarholqueflutuam

galeriaafora.Essasobras,entendidasem

suas

respectivastrajetóriasaovazio,conseguemdesconcertarporsuacontingência

absoluta,porsuacoragemedisponibilidadeparaassumirsuavulnerabilidade–

suaprópriapotênciadonão-ser,demodoarestituirapossibilidadequeasmantém

entre

oplenoacontecereonão-acontecer.Asresistênciasjogamcoma

possibilidadeindefinidadequeascoisaspodemserdiferentes,mesmosenãose

sabeexatamentecomo.

7WARHOL,Andy.

POPi

sm.Op.cit.,p.115.

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Page 186: Apostila Joseph Beuys

1

A ló

gica

da

poét

ica

de J

osep

h Be

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mo

reen

cont

rar

o pr

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ravé

s

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Res

umo: Es

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por

trás

da

poét

ica,

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rent

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ca,

de J

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. Ass

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omo

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y W

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l, Jo

seph

Beu

ys to

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to e

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Seu

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a m

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polít

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que

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tico.

Seu

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para

o p

úblic

o, c

omo

um m

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m, s

eu c

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e

esté

tico

ensi

nand

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e co

mo

reen

cont

rar o

pró

prio

des

tino

atra

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a ar

te.

A a

rte d

e B

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não

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um

fim

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si p

rópr

ia, c

omo

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oder

na. B

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tem

um

obje

tivo

polít

ico

que

cons

iste

em

edu

car a

s pe

ssoa

s pa

ra a

libe

rdad

e at

ravé

s da

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. Não

se

trata

ape

nas

de A

rte o

que

ele

nos

dei

xou,

mas

por

um

lado

, de

uma

espé

cie

de “

filos

ofia

da

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”, m

itolo

gia

da A

rte, d

elíri

o de

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sta,

ou

aind

a, “

pata

físic

a” a

o di

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onal

do B

rito;

por o

utro

lado

, açõ

es p

oétic

as c

om in

tenç

ões p

olíti

cas.

Este

tra

balh

o te

nta

mos

trar

que

os a

rtist

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onte

mpo

râne

os c

onsi

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m a

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cam

inho

par

a re

enco

ntra

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pró

prio

s.

Res

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:

Este

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anal

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gica

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hol,

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nsfo

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o er

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ium

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El a

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e B

euys

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tiene

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fin e

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próp

io c

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el a

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oder

no. B

euys

tien

e un

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tivo

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ico

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cons

iste

en

educ

ar a

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sona

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a lib

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d, a

tra

vés

del

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.

Não

se

trata

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o de

Arte

el l

egad

o qu

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s de

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as d

e um

lado

, una

esp

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de

“filo

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del a

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a de

l arte

, del

irio

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com

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do b

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su

“pat

afís

ica”

;

por o

utro

lado

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ione

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ticas

com

inte

ncio

nes p

olíti

cas.

Este

trab

ajo

pret

ende

mos

trar

que

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artis

tas

cont

empo

ráne

os c

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dera

n el

arte

un

cam

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para

reen

cont

rar a

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ropi

os.

2

Intr

oduç

ão

Jose

ph B

euys

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And

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e co

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pró

prio

des

tino

atra

vés d

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te.

Mes

mo

inco

mpr

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ido

e qu

estio

nado

, com

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acio

nário

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sta,

crio

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pod

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nora

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o no

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raba

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grup

o de

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200

2:71

-4),

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terid

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Her

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arti

stas

rom

ântic

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pres

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o co

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para

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ição

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, 200

00: 3

39; g

rifos

meu

s:G

.S),

“Poi

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ca. O

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írito

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tos

enqu

anto

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da a

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téri

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lado

”(H

egel

, 200

0: 3

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meu

s:G

.S.).

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que

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que

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faz

er d

o

“hum

anus

seu

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nto”

(Heg

el, 2

000:

342

).

A a

rte d

e B

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tem

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mo

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arte

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perim

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l, m

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gica

, im

pulsi

va, q

ue f

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sua

s

raíz

es n

os s

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ento

s e

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guag

em o

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ica,

o tr

abal

ho d

e B

euys

pos

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uma

lógi

ca i

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na b

em c

lara

, p

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seg

uiria

os

cam

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s

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la é

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uma

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e se

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Inco

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de

Beu

ys. E

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rabl

ho d

e B

euys

, com

o to

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fan

tasio

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Page 187: Apostila Joseph Beuys

3

delir

ante

, pos

sui u

ma

lógi

ca in

tern

a. O

que

me

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onho

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te tr

abal

ho é

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os e

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a Ar

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e um

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truçã

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g so

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rum

, 200

2:3)

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sing

ular

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so:

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o fil

ósof

o e

o po

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Se b

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ão d

á pa

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trar u

m p

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pio

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m fi

m n

o pr

oces

so c

riativ

o de

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ys, e

le se

gue

uma

seqü

ênci

a in

inte

rrupt

a, e

m q

ue e

ssa

“filo

sofia

” e

sua

“mise

en

scèn

e”

são

uma

cois

a só

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lisa

a H

istó

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da

soci

edad

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oder

na e

con

tem

porâ

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e), p

ara

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dep

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prop

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mas

e s

eu a

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ento

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vés

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ico”

de

Schi

ller (

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e), p

ara

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faze

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que

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tal”

surja

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stru

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um

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se) t

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te s

ubje

tiva,

sur

gida

de

um

traba

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raci

onal

, pla

neja

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ao

mes

mo

tem

po, c

om u

ma

mar

ca, u

m fo

rte tr

aço

da ló

gica

próp

ria d

o In

cons

cien

te --

mes

mo

que

ele

não

reco

nheç

a es

sa p

artic

ipaç

ão.

O h

omem

est

á su

bmer

so n

uma

prof

unda

cris

e qu

e o

afet

a ta

mbé

m a

nív

el

fisio

lógi

co, -

-já q

ue B

euys

con

side

ra e

sse

níve

l, um

a es

fera

tam

bém

col

etiv

a --

, com

o

cons

eqüê

ncia

da

polít

ica,

da

ciên

cia,

da

tecn

olog

ia, d

a m

atem

átic

a, p

rodu

tos d

o

raci

onal

ism

o, a

ssim

com

o as

gue

rras

, os

geno

cídi

os e

, sem

che

gar a

tant

o, u

ma

falta

de

com

unic

ação

com

plet

a e

a um

a fa

lta d

e re

-enc

ontro

com

o p

rópr

io d

estin

o e

em re

laçã

o à

arte

, ela

tam

bém

est

á al

iena

da d

o se

u pr

óprio

des

tino,

a T

ese.

A c

rític

a a

todo

s ess

es v

alor

es, A

ntíte

se, p

rodu

z a

sua

Filo

sofia

da

Arte

, cuj

as

prin

cipa

is id

éias

são

: A s

upre

mac

ia d

a A

rte, T

udo

entra

no

conc

eito

de

arte

, Tod

o ho

mem

é

artis

ta, e

tc. M

as a

idéi

a ce

ntra

l é q

ue n

esse

per

curs

o de

con

stru

ção,

o h

omem

irá

enco

ntra

r

atra

vés d

a cr

iaçã

o de

arte

, seu

pró

prio

des

tino,

aba

ndon

ando

um

des

tino

traça

do p

ela

soci

edad

e qu

e o

alie

na d

e si

pró

prio

.

A su

a “F

iloso

fia d

a ar

te”

que

é o

eixo

do

edifí

cio,

e fu

ncio

na c

omo

se fo

sse

um

mod

elo

de p

siqui

smo

hum

ano,

um

mito

do

psiq

uism

o hu

man

o, c

ausa

do, m

ovid

o e

dire

cion

ado

pela

arte

. Pod

er-s

e-ia

pen

sar t

ambé

m e

m a

lgo

assi

m c

omo

uma

máq

uina

de

faze

r arte

– “

pens

ar é

esc

ulpi

r”--

, e d

e vi

ver a

rte, o

que

par

a B

euys

é a

mes

ma

cois

a.

4

Essa

máq

uina

de

arte

pro

duz

perm

anen

tem

ente

Sín

tese

s que

são

açõe

s poé

ticas

,

com

sua

forç

a vi

tal,

mito

s sin

gula

res

de c

ada

um e

que

, no

caso

de

Beu

ys s

ão c

omun

icad

os

atra

vés d

e de

senh

os, p

intu

ras,

inst

alaç

ões,

e pr

inci

palm

ente

, per

form

ance

s que

“fa

lam

”,

atra

vés d

os q

uais

, o su

jeito

pod

e se

libe

rtar,

se c

urar

. Se

u ei

xo é

a li

ngua

gem

, o d

iscu

rso

e

a co

mun

icaç

ão.

I.Fi

loso

fia d

a A

rte:

I.1. A

ntíte

se à

tese

rac

iona

lista

na

soci

edad

e e

na a

rte:

A C

rític

a.

Beu

ys p

ensa

va q

ue a

travé

s da

críti

ca d

os v

alor

es v

igen

tes i

rrac

iona

is, (

auto

ritar

ism

os,

geno

cídi

os) c

ada

um e

ncon

traria

sua

ene

rgia

vita

l. El

e ta

mbé

m q

uesti

onav

a id

eolo

gias

de

esqu

erda

com

o o

soci

alism

o, a

ssim

com

o o

capi

talis

mo

e ai

nda

o fre

udism

o, a

físic

a

galil

eana

que

pod

eria

leva

r a u

ma

noçã

o de

luga

r neu

tro, d

e nã

o-lu

gar d

eshu

man

o,

quan

tific

ado.

Nis

to e

le é

cla

ram

ente

con

trário

às

med

idas

dos

min

imal

ista

s, à

ser

ialid

ade

da p

rogr

essã

o, à

mat

emát

ica.

Ele

era

con

tra a

com

posiç

ão q

ue le

vava

a u

ma

pres

ença

.

Por o

utro

lado

, Beu

ys ta

mbé

m e

ra c

étic

o em

rela

ção

ao m

undo

da

arte

. A

arte

de

Beu

ys é

um

a ar

te c

ontra

a h

istór

ia d

a ar

te, m

as p

or o

utro

lado

, mui

to li

gada

à

liter

atur

a do

s rom

ântic

os d

e su

a te

rra

com

o Sc

hille

r, Sc

hleg

el, N

oval

is e

dos

cont

empo

râne

os c

omo

Jam

es J

oyce

. Beu

ys q

uest

iona

va d

e um

lado

, a a

rte m

oder

na c

om

seu

indi

vidu

alis

mo

burg

uês p

rópr

io d

o A

telie

r de

Paris

e su

as in

ovaç

ões d

e lin

guag

ens,

de

outro

lado

, a a

rte c

onte

mpo

râne

a, p

orqu

e a

cons

ider

ava

a-hi

stór

ica

e po

rque

est

aria

ape

nas

inov

ando

ling

uage

ns té

cnic

as, s

em s

e pr

eocu

par e

m re

enco

ntra

r o p

rópr

io d

estin

o, a

forç

a

vita

l.

Um

bom

exe

mpl

o é

o tra

balh

o de

And

y W

arho

l, er

a um

a ar

te se

m ra

ízes

, vol

tada

para

um

futu

ro li

gado

aos

val

ores

do

capi

talis

mo,

-- a

rte-m

erca

doria

, fam

a, d

inhe

iro, e

tc.—

e nã

o ao

reen

cont

ro d

o pr

óprio

des

tino.

Duc

ham

p, c

ujas

raíz

es e

stava

m, a

ssim

com

o as

de

Beu

ys n

o R

oman

tism

o, o

utor

ga

ao a

rtista

um

pap

el d

e m

ediu

m n

o at

o cr

aido

r, at

o no

qua

l o q

ual o

púb

lico

cont

ribui

com

suas

inte

rpre

taçõ

es (

Duc

ham

p, 2

002:

72).

Beu

ys, q

ue a

dmira

va D

ucha

mp

e se

ntia

-se

seu

herd

eiro

, o q

uest

iona

va p

or te

r sile

ncia

do: “

Eu o

crit

ico

porq

ue, e

xata

men

te q

uand

o el

e

pode

ria te

r des

envo

lvid

o um

a te

oria

que

ele

pod

eria

ter d

esen

volv

ido,

sou

eu q

uem

est

á

Page 188: Apostila Joseph Beuys

5

dese

nvol

vend

o ag

ora”

(Lee

ber,1

997:

32).

Crit

ican

do a

Fon

te d

e D

ucha

mp

com

ento

u: “

ele

o tro

uxe

[o u

rinol

] par

a de

ntro

do

mus

eu a

fim

de

esta

bele

cer q

ue é

a tr

ansf

erên

cia

de u

m

luga

r par

a ou

tro q

ue o

tran

sfor

ma

em a

rte. M

as e

stab

elec

er is

to n

ão o

levo

u à

conc

lusã

o—

simpl

es e

óbv

ia—

que

todo

s os

hom

ens

são

artis

tas.

Ao

cont

rário

, ele

se

elev

ou n

um

pede

stal

diz

endo

, vej

a co

mo

eu c

hoqu

ei à

bur

gues

ia”

(Ibi

dem

:36)

.

Beu

ys re

spei

tava

o F

luxu

s, ap

esar

de

ser m

ais p

olíti

co e

men

os p

esso

al d

o qu

e el

e.

O F

luxu

s tra

balh

ava

na li

nha

da p

rovo

caçã

o e

da a

gres

sivi

dade

dad

aíst

a qu

e nã

o er

a ar

te

nem

ant

i-arte

. Enq

uant

o Fl

uxus

acr

edita

va q

ue e

ra p

reci

so d

essa

cral

izar

a a

rte, B

euys

sacr

aliz

ou a

açã

o po

étic

a da

arte

. Do

seu

lado

, par

a o

Flux

us e

ra in

acei

táve

l o la

do d

e

espi

ritua

lidad

e de

Beu

ys.

Já A

ndy

War

hol e

a P

op e

ram

con

side

rado

s pro

fano

s por

Beu

ys, j

á qu

e pa

ra e

les a

imag

em e

ra e

quiv

alen

te à

mer

cado

ria.

Beu

ys e

ra ta

mbé

m c

ontrá

rio a

o tra

balh

o as

sépt

ico

dos m

inim

alis

tas,

ligad

o a

med

idas

, à s

eria

lidad

e, à

pro

gres

são

e à

mat

emát

ica.

Mas

por

out

ro la

do, o

Min

imal

ism

o

desp

reza

va a

Bel

a A

rte q

ue d

ecor

ava

a ca

sa d

os b

urgu

eses

, ass

im c

omo

ele.

A c

rític

a qu

e B

euys

fazi

a nã

o er

a gr

atui

ta. E

le p

ensa

va q

ue, a

travé

s da

críti

ca d

os

valo

res

vige

ntes

irra

cion

ais,

(aut

orita

rism

os, g

enoc

ídio

s), c

ada

um e

ncon

traria

sua

ene

rgia

vita

l.

I.2. S

ínte

se: A

“Fi

loso

fia d

a A

rte”

de

Beu

ys

Traç

amos

nes

te c

apítu

lo a

lgun

s das

tese

s fun

dam

enta

is d

a “f

iloso

fia”

da a

rte --

ou, d

a

“pat

afís

ica”

( B

rito,

200

4) --

de

Beu

ys:

- A a

rte

é su

peri

or à

ciê

ncia

, à fi

loso

fia, a

tudo

que

é r

acio

nal.

Arte

é o

cam

inho

supr

emo,

diz

ele

con

tradi

zend

o H

egel

. A a

rte n

ão a

cabo

u, e

stá

viva

em

cad

a um

de

nós e

é a

que

per

mite

a h

arm

oniz

ação

do

ser h

uman

o co

m o

mun

do

(Jos

eph

Beuy

s In:

Adr

iani

, Göt

z, 1

989)

.

- “T

udo

está

con

tido

no c

once

ito d

e ar

te”:

6

Para

Beu

ys tu

do q

ue é

hum

ano

“...

está

con

tido

no c

once

ito d

e ar

te”

1 : o c

ient

ífico

, o

polít

ico,

e a

té o

fisio

lógi

co já

que

par

a el

e, a

ene

rgia

vita

l, o

elem

ento

fund

amen

tal d

e su

a

“filo

sofia

” e

ra ta

mbé

m s

ocia

l. B

euys

con

side

ra q

ue “

sem

a a

rte, o

hom

em é

inco

nceb

ível

em te

rmos

fisi

ológ

icos

” (B

euys

cita

do p

or A

rche

r, 20

01:1

15).

A v

ida

das

abel

has

era

para

ele

um m

odel

o co

mun

itário

de

gran

de in

tere

sse

e po

r iss

o o

mel

vai

ser

tom

ado

com

o

mat

eria

l sim

bólic

o em

seus

trab

alho

s. El

e tra

balh

a co

m u

m c

once

ito e

sten

dido

de

arte

.

- “To

do se

r hu

man

o é

artis

ta”.

Beu

ys d

iz e

m u

ma

entre

vist

a a

Irm

elin

e Le

beer

, “A

coi

sa m

ais i

mpo

rtant

e so

bre

algu

ém o

lhan

do m

eus

obje

tos

é a

min

ha te

se fu

ndam

enta

l: to

do h

omem

é u

m a

rtista

. Ess

a é

min

ha c

ontri

buiç

ão p

ara

a ‘h

istó

ria d

a ar

te’”

(San

tos S

alga

do, 1

997:

32).

-A a

rte

perm

ite u

m r

eenc

ontr

o co

m o

des

tino

singu

lar

de c

ada

um.

Sua

Filo

sofia

da

arte

trat

a de

um

a co

nstru

ção

espi

ritua

l que

term

inav

a co

m u

m c

erto

reen

cont

ro d

o ho

mem

com

seu

dest

ino

sing

ular

. O re

-enc

ontro

fala

de

algu

ma

cois

a pe

rdid

a

no p

assa

do q

ue v

ai s

er re

cupe

rada

no

futu

ro.

A q

uest

ão d

o pa

ssad

o re

met

e à

prob

lem

átic

a da

nos

talg

ia e

m re

laçã

o ao

mito

perd

ido

da a

rte g

rega

. A q

uest

ão d

o fu

turo

par

ece

ter s

uas r

aíze

s na

Esté

tica

de H

egel

que

,

de fo

rma

otim

ista

, con

side

rava

que

atra

vés d

o m

étod

o di

alét

ico,

o e

spíri

to v

ai e

ncon

trar s

ua

liber

dade

. Se

em H

egel

o e

spíri

to d

o ho

mem

pro

cura

alc

ança

r o E

spíri

to A

bsol

uto,

Beu

ys

prop

õe q

ue o

hom

em p

rocu

re o

ree

ncon

tro

com

o p

rópr

io d

estin

o.

Essa

est

raté

gia

de B

euys

par

a ch

egar

a se

u ob

jetiv

o, p

odem

os c

onsi

derá

-la, p

or u

m

lado

, rac

iona

l, pe

lo p

lane

jam

ento

que

impl

ica;

por

out

ro la

do, B

euys

priv

ilegi

a o

sent

imen

to c

omo

o in

stru

men

to fu

ndam

enta

l par

a re

enco

ntra

r o p

rópr

io d

estin

o. N

as su

as

açõe

s poé

ticas

2 ritm

o de

pen

sam

ento

do

Beu

ys é

atra

vess

ado

por s

entim

ento

s, af

etos

que

não

são

esco

ndid

os d

o es

pect

ador

.

1“T

udo

está

cont

ido

no co

ncei

to d

e arte

; qua

lque

r um

pod

e per

cebe

r que

a ci

ênci

a foi

orig

inar

iam

ente

um

elem

ento

de

arte

” (B

euys

, Jos

eph

In S

anto

s Sal

gado

, 199

7:32

).

2 Ver

emos

ess

a qu

estã

o no

cap

ítulo

que

leva

ess

e tít

ulo.

Page 189: Apostila Joseph Beuys

7

Trat

a-se

de

uma

espé

cie

de d

adaí

smo

cont

empo

râne

o, já

que

Beu

ys q

uest

iona

va o

inte

lect

ualis

mo

idea

lista

con

tem

porâ

neo,

col

ocan

do-s

e no

ext

rem

o op

osto

do

mes

mo,

com

as fo

rças

org

ânic

as, m

ais

próx

imas

da

natu

reza

com

o a

sens

ibili

dade

(Brit

o, 2

004)

.

Para

os

pré-

rom

ântic

os “

a au

to-e

xpre

ssão

da

subj

etiv

idad

e do

poe

ta”

é o

que

mai

s

vale

(Ros

enfe

ld, 1

996:

151)

.Val

e m

ais

do q

ue o

s va

lore

s ro

mân

ticos

de

amor

– c

omo

amor

divi

no, a

mor

mat

erno

, etc

.--, d

e ho

nra

e de

fide

lidad

e (H

egel

, 200

0:26

5-30

7).

O e

u e

a su

bjet

ivid

ade

são

mai

s im

porta

ntes

que

o m

undo

e d

eus.

Um

a no

va

conc

epçã

o de

ind

ivíd

uo e

stav

a se

ger

ando

, qu

e é

a de

um

ind

ivíd

uo i

nteg

rado

com

seu

ambi

ente

e c

om d

eter

min

adas

car

acte

rístic

as b

ioló

gica

s, ét

nica

s, hi

stór

icas

. N

oval

is,

base

ado

em F

icht

e, a

firm

a qu

e “O

Não

-Eu

(o m

undo

) é o

sím

bolo

do

Eu e

serv

e pa

ra a

aut

o

- com

pree

nsão

do

Eu”(

Ros

enfe

ld, 1

996:

151

).

II. A

rte

II. 1

. Pen

sar

é es

culp

ir:

“Pen

sar é

esc

ulpi

r”. B

euys

ass

im c

onsi

dera

va. E

isto

faz

dele

um

arti

sta

cont

empo

râne

o. E

le n

ão a

cred

ita n

o po

der m

imét

ico

da a

rte, m

as n

o po

der e

idét

ico.

Sua

arte

é c

once

itual

. Sua

açã

o po

étic

a, n

ão p

unha

em

prá

tica

as id

éias

que

des

envo

lvia

em

sua

filos

ofia

da

arte

. A p

rópr

ia a

tivid

ade

artís

tica

para

ele

era

um

a at

ivid

ade

refle

xiva

em

si:

arte

con

ceitu

al. A

sua

idéi

a de

arte

é d

ecor

rent

e de

ssa

prog

ress

iva

valo

rizaç

ão d

o

pens

amen

to e

da

filos

ofia

, que

tem

sua

orig

em n

o R

oman

tism

o (H

egel

, 200

0).

No

mes

mo

mol

de, a

mat

éria

esc

olhi

da, a

form

a e

o co

nteú

do se

con

cret

izam

no

mito

de

form

a so

lidár

ia, s

imbó

lica3 . A

form

a e

a m

atér

ia b

usca

m u

ma

iden

tidad

e co

m a

s id

éias

, poi

s

para

ele

tudo

fazi

a pa

rte d

e um

a ge

stal

te tu

do e

stav

a em

funç

ão d

a tra

nsm

issã

o pe

dagó

gica

de su

as id

éias

. O m

ater

ial é

esc

olhi

do p

ela

carg

a si

mbó

lica

que

poss

ui.

Por e

xem

plo,

na

perf

orm

ance

em

que

ele

exp

lica

imag

ens (

arte

) par

a um

coe

lho

mor

to, p

ara

dem

onst

rar q

ue is

so é

mai

s fác

il do

que

com

unic

ar e

ssas

idéi

as p

ara

as p

esso

as,

ele

está

bes

unta

do c

om m

el, q

ue n

a m

itolo

gia

dele

repr

esen

ta a

vid

a co

letiv

a da

s ab

elha

s

(ou

anim

al),

que

por s

ua v

ez se

ria u

m m

odel

o pa

ra o

soci

al, e

ain

da b

esun

tado

com

our

o,

que

é um

sign

ifica

nte

de p

oder

ent

re o

s hom

ens q

ue m

uita

s vez

es o

cupa

o lu

gar d

o

verd

adei

ro d

estin

o si

ngul

ar.

8

Sua

obra

Esq

uina

de

gord

ura

rem

ete

à gu

erra

a a

o tra

uma

por e

le s

ofrid

o du

rant

e

esta

4 , util

izan

do g

ordu

ra e

feltr

o, q

ue a

pare

cem

na

sua

obra

, adq

uire

m u

m v

alor

, ou

um

pode

r mág

ico

(Arc

her,

2001

:114

).

Tam

bém

exi

ste

solid

arie

dade

ent

re se

us d

esen

hos e

suas

per

form

ance

s, os

prim

eiro

serv

indo

de

mat

riz a

os se

gund

os, j

á qu

e re

met

iam

à e

nerg

ia a

rcai

ca, n

atur

al. M

esm

o qu

e el

e

não

acei

tass

e a

idéi

a de

inco

nsci

ente

com

o Fr

eud

a en

tend

ia, n

ota-

se e

m se

us t

raba

lhos

e,

prin

cipa

lmen

te e

m se

us d

esen

hos (

Scha

de, 1

957)

, um

a at

itude

solta

, liv

re, d

o tip

o da

asso

ciaç

ão-li

vre,

que

oco

rre

entre

as r

epre

sent

açõe

s no

sist

ema

Inco

nsci

ente

.

Ele

usav

a go

rdur

a, fe

ltro,

oss

os, a

mbu

lânc

ia, q

ue re

porta

vam

a se

u ac

iden

te d

e

guer

ra; o

uro

espa

lhad

o no

seu

rosto

, par

a m

ostra

r que

não

dav

a lh

e o

valo

r esp

erad

o

soci

alm

ente

; leb

re e

coi

ote

com

o an

imai

s típ

icos

, um

do

povo

ale

mão

, o o

utro

, do

povo

amer

ican

o, p

ara

denu

ncia

r o d

esin

tere

sse,

a fa

lta d

e co

mun

icaç

ão e

a a

liena

ção

dos

cont

empo

râne

os.

II.2

. A a

rte

em

disc

urso

: açõ

es e

re-

açõe

s poé

ticas

.

Essa

sim

bolo

gia

próp

ria, q

ue e

m lu

gar d

e se

enc

erra

r em

si m

esm

a, é

tran

sfer

ida

por

osm

ose

esté

tica,

com

o di

zia

Duc

ham

p, a

o pú

blic

o. A

par

tir d

a id

éia

de q

ue a

arte

era

cap

az

de m

udar

a e

strut

ura

soci

al 5 , t

orna

-se

fund

amen

tal p

ara

Beu

ys u

ma

polít

ica

da a

rte, q

ue é

uma

peda

gogi

a da

arte

.

Para

Beu

ys, a

s idé

ias,

o di

scur

so e

a c

omun

icaç

ão n

a ob

ra d

e ar

te e

ram

fund

amen

tais.

Esta

pec

ulia

ridad

e lh

e ge

rou

mui

tas

críti

cas,

pois

não

se e

nten

dia

a ut

iliza

ção

3 Sím

bolo

: “aq

uilo

que

, por

um

prin

cípi

o de

ana

logi

a fo

rmal

ou

de o

utra

nat

urez

a, su

bstit

ui o

u su

gere

alg

o”(I

nstit

uto

A. H

ouai

ss, 2

001:

2573

).4 A

rche

r atri

bui a

orig

em d

e su

as a

rris

cada

s per

form

ance

s, à

situ

ação

trau

mát

ica

que

Beu

ys so

freu

dur

ante

agu

erra

qua

ndo

caiu

de

um a

vião

na

UR

SS, t

endo

mor

rido

se n

ão fo

sse

salv

o po

r rus

sos q

ue o

man

tiver

amag

asal

hado

em

gor

dura

e fe

ltro

para

man

ter a

tem

pera

tura

.5 S

egun

do B

rian

O’D

oher

ty n

o se

u liv

ro N

o in

teri

or d

o cu

bo b

ranc

o, o

mod

erni

smo

prod

uziu

doi

s tip

os d

e arti

stas

:O

prim

eiro

gru

po q

ue e

le c

onsi

dera

que

pos

sui o

Com

plex

o de

Fau

sto,

faz

arte

pel

a ar

te e

não

se in

tere

ssa

em m

udan

ças

soci

ais.

Den

tre es

ses e

ncon

tram

- se

os q

ue fa

zem

arte

pel

a arte

e se

ence

rram

em si

mes

mos

com

o po

r ex

empl

o,C

ézan

ne, e

os q

ue ti

ram

pro

veito

do

sist

ema c

omo

Pica

sso,

e D

ali.

O se

gund

o gr

upo,

dos

idea

lista

s utó

pico

s que

, ade

rindo

ao m

esm

o te

mpo

às en

ergi

as m

ístic

as e

à raz

ão, a

cha q

ue o

artis

tapo

de m

udar

a e

stru

tura

soci

al: “

Um

cre

nte,

ele

pre

ocup

a-se

mai

s com

a ra

ça d

o qu

e co

m o

indi

vídu

o; n

a ve

rdad

e, é

um

aes

péci

e de

soc

ialis

ta le

vem

ente

aut

oritá

rio. O

ímpe

to re

form

ista

, rac

iona

l, re

porta

à id

ade

da ra

zão

e se

alim

enta

na

tend

ênci

a ut

ópic

a. T

em ta

mbé

m u

m fo

rte c

ompo

nent

e m

ístic

o/id

eal q

ue c

onfe

re e

ncar

gos p

esad

os à

funç

ão d

a ar

te”

(O’D

oher

ty, 2

002:

93).

Os a

rtist

as d

e am

bos g

rupo

s, m

esm

o m

ovid

os p

or m

otiv

os co

ntrá

rios,

dis

tanc

iam

-se d

a est

rutu

ra so

cial

por

util

izar

em u

mpl

ano

hege

liano

(O’D

oher

ty:2

002:

93).

É, se

m d

úvid

a, d

entro

do

segu

ndo

grup

o qu

e se e

ncon

tra Jo

seph

Beu

ys.

Page 190: Apostila Joseph Beuys

9

do d

iscu

rso

verb

al n

um tr

abal

ho d

e ar

tes p

lást

icas

ou

visu

ais.

Sua

prop

osta

de

arte

com

unic

ativ

a le

vava

as p

esso

as a

que

stio

nar,

refle

tir e

recu

pera

r sua

ene

rgia

vita

l ou

elem

enta

r. Nes

se se

ntid

o el

e er

a um

arti

sta

conc

eitu

al, q

ue fa

zia

com

que

a o

bra

“fal

asse

”6 . Sua

arte

fala

alg

uma

cois

a no

va, f

unda

alg

um “

luga

r” o

u “s

er”7 , o

pond

o-se

ao

não-

sent

ido,

ao

não-

luga

r da

cul

tura

que

o ro

deav

a.

Beu

ys é

um

a es

péci

e de

“m

ilita

nte”

, “pa

stor

”, p

edag

ogo

de su

a ca

usa,

cau

sa v

ista

por m

uito

s, na

épo

ca, c

omo

utóp

ica

e pe

rdid

a, m

as q

ue c

ada

vez

mai

s, co

bra

atua

lidad

e.

Essa

mili

tânc

ia c

onsi

ste

em le

var a

par

ticip

ar à

s pes

soas

atra

vés d

a pe

dago

gia

acad

êmic

a, a

travé

s de

denú

ncia

s e d

e iro

nias

em

sua

obra

che

gand

o ao

ext

rem

o de

col

ocar

sua

próp

ria v

ida

em ri

sco,

par

a qu

e ad

iram

à su

a ca

usa

de li

berta

r o e

spíri

to h

uman

o,

atra

vés

da a

rte.

Libe

rtá-lo

de

que?

Das

ferid

as d

a gu

erra

, das

ang

ústia

s, da

s alie

naçõ

es q

ue o

raci

onal

ism

o vi

nha

prod

uzin

do, d

o ex

travi

o em

rela

ção

ao se

u de

stin

o si

ngul

ar.

Se n

o sé

culo

XIX

, a s

oluç

ão a

todo

s os

pro

blem

as d

o ho

mem

e s

uas

fragm

enta

ções

era

a re

ligiã

o, n

o sé

culo

XX

o h

omem

tin

ha q

ue s

er s

eu p

rópr

io p

ai.

O r

oman

tism

o do

sécu

lo X

IX e

ra v

isto

nos

ano

s 60

-70

com

o re

acio

nário

e a

s po

lític

as d

e B

euys

com

o

ficçõ

es.

Suas

açõ

es p

oétic

as a

o re

enco

ntro

do

próp

rio d

estin

o –-

perf

orm

ance

s--,

Beu

ys

cons

ider

ava

com

o aç

ões

polít

icas

que

iria

m m

udar

o m

undo

, re

sulta

vam

pat

étic

as e

até

fasc

ista

s, no

mei

o de

um

a so

cied

ade

burg

uesa

, cap

italis

ta, c

onsu

mis

ta, e

litis

ta e

anô

nim

a. O

traba

lho

de B

euys

é fr

uto

de u

ma

Ale

man

ha e

m d

ura

fase

de

recu

pera

ção

no p

ós-g

uerra

.

A o

rigem

des

sa p

edag

ogia

pod

emos

enc

ontrá

-la n

os R

omân

ticos

. Beu

ys p

ropõ

e

uma

peda

gogi

a da

libe

rdad

e at

ravé

s da

arte

.

Des

te m

ovim

ento

, Sch

iller

e s

ua v

isão

de a

lcan

çar a

libe

rdad

e at

ravé

s da

arte

e

aind

a su

a vi

são

peda

gógi

ca d

a ar

te, n

os p

arec

e se

r um

dos

seus

mes

tres (

Ros

enfe

ld, 1

997)

.

Os r

omân

ticos

par

tiram

da

idéi

a de

Kan

t de

que

a Im

agin

ação

ao

gera

r um

a fo

rma

pura

--

uma

repr

esen

taçã

o--,

reco

ncili

a o

sens

ível

com

o p

uram

ente

con

ceitu

al q

ue v

em d

o

ente

ndim

ento

, man

ifesta

ndo

sua

liber

dade

mai

s pro

fund

a (K

ant,

2002

:67;

grif

os m

eus:

6C

ristin

a B

ach,

fala

em

“lu

gare

s ple

nos d

e di

scur

sos”

, em

“ar

te fa

lant

e” (B

ach,

199

5: 2

).7 N

o se

ntid

o qu

e o en

tend

e Hei

degg

er.

10

G.S

.). U

ma

vez

que

a es

fera

esté

tica

não

está

am

arra

da a

nen

hum

a ne

cess

idad

e, n

em a

nenh

um d

ever

mor

al, é

aí q

ue o

hom

em e

ncon

tra su

a lib

erda

de.

Schi

ller,

na m

esm

a lin

ha d

e ra

cioc

ínio

, diz

que

na

esté

tica,

o s

ujei

to e

xper

imen

ta

sua

liber

dade

mai

s pr

ofun

da,

repr

esen

tand

o be

m o

ide

ário

do

Rom

antis

mo

que

é o

de

proc

urar

a lib

erda

de n

ão s

e su

bmet

endo

nem

ao

lado

ani

mal

(se

nsór

io,

em t

erm

os

kant

iano

s),

nem

ao

lado

rac

iona

l (o

s im

pera

tivos

lóg

icos

da

razã

o) q

ue s

ão o

s qu

e o

gove

rnam

na

vida

real

(Bru

m, 2

003)

.

Mes

mo

que

com

inte

nçõe

s tot

alm

ente

dife

rent

es, B

euys

, ass

im c

omo

War

hol,

man

ipul

ava

o pú

blic

o (B

rito,

200

4). N

as p

erfo

rman

ces,

a re

ação

do

espe

ctad

or é

fund

amen

tal.

Suas

açõ

es p

oétic

as, p

or m

ais v

iole

ntas

que

seja

m, j

unto

ao

alto

con

teúd

o de

orde

m p

esso

al c

riam

um

a po

étic

a qu

e, d

e ex

trem

amen

te si

ngul

ar se

torn

a un

iver

salm

ente

sign

ifica

tiva.

Por o

utro

lado

, Beu

ys t

ambé

m p

ensa

va q

ue e

ra n

eces

sário

e p

ossí

vel t

rans

form

ar a

arte

no

mun

do, e

spec

ialm

ente

na

área

do

ensin

o, já

que

a a

rte p

ara

ele

esta

va li

gada

indi

ssol

uvel

men

te a

o en

sino

, à A

cade

mia

, à a

ção

esté

tica

de S

chill

er, a

o jo

go, à

ciê

ncia

e à

revo

luçã

o pe

ssoa

l. En

quan

to is

so, o

ass

unto

dos

arti

stas

am

eric

anos

era

tran

sfor

mar

o

sist

ema

da a

rte.

Beu

ys c

onsi

dera

va a

inda

a a

rte u

m m

eio

de a

dver

tir, d

enun

ciar

situ

açõe

s per

igos

as

que

pode

riam

ser e

vita

das,

isto

é, a

arte

tinh

a um

pap

el p

rofil

átic

o, a

ain

da te

rapê

utic

o, já

que

serv

ia p

ara

cura

r “fe

ridas

”esp

iritu

ais.

II.3

. A d

ialé

tica

beuy

siana

Pode

r-se-

ia fa

lar,

assim

com

o na

sua

“fil

osof

ia”,

de

uma

“dia

létic

a” b

euys

iana

tam

bém

nas

açõ

es p

oétic

as d

ele.

O p

rimei

ro p

asso

de

sua

“dia

létic

a” q

ue e

le d

esen

volv

ia n

as a

ções

poé

ticas

atra

vés

de su

as in

stal

açõe

s ou

perf

orm

ance

s, co

nsis

te e

m d

enun

ciar

e a

niqu

ilar o

s val

ores

de

sua

époc

a, fa

zend

o su

rgir

daí,

a en

ergi

a vi

tal d

ele

próp

rio. O

púb

lico

era

tam

bém

con

side

rado

artis

ta n

essa

sua

parti

cipa

ção

e a

prop

osta

é q

ue e

le ta

mbé

m p

rodu

ziss

e su

a en

ergi

a vi

tal.

O s

egun

do p

asso

ser

ia fu

ndar

“lu

gare

s”, o

u pr

oduz

ir o

“ser

” no

vo --

um

a m

itolo

gia

próp

ria--,

com

a e

nerg

ia v

ital p

rodu

zida

atra

vés d

a m

orte

dos

ant

igos

val

ores

. Par

a B

euys

a

pass

agem

da

não-

dete

rmin

ação

par

a a

dete

rmin

ação

é o

mov

imen

to q

ue re

ge a

hum

anid

ade

Page 191: Apostila Joseph Beuys

11

e qu

e fa

z de

qua

lque

r hom

em u

m a

rtista

. Hei

degg

er e

m se

u en

saio

a c

oisa

[D

as D

ing]

cria

a

met

áfor

a de

um

cân

taro

que

ao

mes

mo

tem

po é

um

con

tinen

te e

pre

cisa

um

a pr

oduç

ão. O

vazi

o d

o câ

ntar

o é

o qu

e de

term

ina

sua

form

a de

pro

duçã

o. O

aut

or d

á no

me

de d

as D

ing

ao se

r do

cânt

aro,

(Hei

degg

er, 1

954:

198

-203

).

A p

artir

de

seu

mat

eria

l aut

o-bi

ográ

fico,

Beu

ys c

oloc

a a

si m

esm

o “c

omo

fenô

men

o eu

rope

u” ,

criti

cand

o o

ilum

inism

o qu

e te

ria m

ergu

lhad

o o

hom

em n

uma

rela

ção

indi

fere

nte

com

os o

utro

s(B

ach,

199

5:10

). N

as su

as p

erfo

rman

ces,

ele

se c

oloc

a em

situ

açõe

s arr

isca

das,

para

“m

orre

r”e

depo

is re

nasc

er, d

ram

atiz

ando

nes

tas,

esse

cic

lo

dial

étic

o in

inte

rrupt

o.

Um

mod

elo

de re

aliz

ação

artí

stic

a er

a Ja

mes

Joyc

e a

quem

ded

ica

uma

perf

orm

ance

. Joy

ce tr

abal

hava

, con

traria

ndo

as te

ndên

cias

dom

inan

tes,

dese

stru

tura

ndo

a

gram

átic

a in

gles

a, n

ão p

ara

inov

á-la

ou

refin

á-la

, mas

par

a ch

egar

a s

eu fu

ndam

ento

cel

ta,

irlan

dês

reen

cont

rand

o su

a fo

rça

prim

itiva

, esp

iritu

al, a

rcai

ca. J

oyce

refu

nda

um d

os li

vros

fund

ador

es d

o O

cide

nte

Beu

ys te

nta

re-f

unda

r atra

vés d

e su

as p

erfo

rman

ces,

a ar

te e

a

cultu

ra d

o se

u te

mpo

(Brit

o, 2

004)

.

A te

ndên

cia

de B

euys

ao

frag

men

taris

mo,

à d

eses

trutu

raçã

o, à

des

inte

graç

ão e

à

trans

itorie

dade

faze

m d

ele

um c

onte

mpo

râne

o, m

esm

o qu

e el

e nã

o go

stas

se d

e se

r ass

im

cham

ado.

II.4

. Mito

logi

a be

uysia

na.

Beu

ys, a

o cr

iar s

ua m

itolo

gia,

par

ece

esta

r ouv

indo

Sch

ellin

g qu

ando

pro

põe

que

o

vácu

o de

ixad

o pe

los v

alor

es d

eclin

ados

pod

erá

ser o

cupa

do p

or “

uma

futu

ra u

nião

ent

re a

poes

ia e

a fi

loso

fia a

travé

s do

mito

” (B

rum

, 200

2:3)

. Só

que

Beu

ys p

ropõ

e um

a m

itolo

gia

com

sign

ifica

ções

sing

ular

es, p

ara

cada

pes

soa.

A m

itolo

gia

dele

con

sistia

em

nov

as li

ngua

gens

, nov

os lu

gare

s, no

sen

tido

heid

egge

riano

que

apr

oxim

ava,

est

udan

do a

raiz

da

pala

vra,

o c

once

ito d

e ha

bita

r, o

de

cons

truir

luga

res e

de

ser (

Hei

degg

er, 2

002:

127)

. Ocu

par l

ugar

es p

ara

Beu

ys e

ra o

pro

duto

da “

ação

poé

tica”

real

izad

a co

m a

ene

rgia

vita

l lib

erad

a, n

o lu

gar q

ue fi

cava

vag

o pe

la

mor

te d

os a

ntig

os v

alor

es. A

fé m

ístic

a no

mito

de

que

a ar

te m

uda

o m

undo

e à

s pe

ssoa

s

perp

assa

tant

o a

filos

ofia

da

arte

com

o a

arte

de

Beu

ys. E

ssa

mito

man

ia, “

pata

físic

a” o

u

12

delír

io d

e ar

tista

, ao

dize

r de

Ron

aldo

, o c

oloc

am n

as a

ntíp

odas

de

um c

inis

mo

com

o o

de

And

y W

arho

l8 .

Por e

xem

plo,

seria

um

mito

beu

ysia

no a

idéi

a do

reen

cont

ro c

om o

pró

prio

des

tino;

que

a ar

te p

ode

mud

ar o

mun

do o

u o

aniq

uila

men

to d

os v

alor

es a

ntig

os p

elo

esta

do e

stét

ico

de S

chill

er e

o su

rgim

ento

da

ener

gia

vita

l; as

sim

com

a id

éia

de q

ue to

do h

omem

é a

rtist

a;

ou q

ue tu

do q

ue é

hum

ano

entra

no

conc

eito

de

arte

; ou

que

pens

ar é

igua

l a e

scul

pir;

ou

que

ensin

ar a

um

a le

bre

mor

ta, a

rte é

mai

s fác

il do

que

ens

inar

arte

ao

públ

ico;

ass

im c

omo

a pr

opos

ta d

e um

mod

elo

soci

al e

quiv

alen

te à

vid

a an

imal

–da

s abe

lhas

— e

o d

os h

omen

s;

ou a

inda

idéi

as m

ais

simpl

es li

gado

s a

mat

eria

is sig

nific

ativ

os p

ara

ele,

pel

a su

a hi

stória

pess

oal c

omo

o fe

ltro

e a

gord

ura,

etc

., et

c.

Todo

s os m

itos b

euys

iano

s são

com

pree

nsív

eis e

m p

arte

, já

que

se tr

ata

de u

ma

esco

lha

mui

to p

rópr

ia, m

as a

o m

esm

o te

mpo

ele

s in

tere

ssam

o p

úblic

o, tê

m “

ganc

ho”,

“peg

am”,

por

que

se c

omun

icam

com

os s

entim

ento

s uni

vers

ais.

Mor

to D

eus,

Beu

ys p

ropõ

e a

cria

ção

de m

itos

que

daria

m c

onta

des

sa fa

lta.

Num

a pe

rfor

man

ce d

e 19

67, d

enom

inad

a C

omo

expl

icar

imag

ens a

um

a le

bre

mor

ta, e

le c

om a

cab

eça

besu

ntad

a e

m m

el e

our

o em

pó,

col

oca

a le

bre

mor

ta n

o co

lo

fala

ndo

com

ela

, enq

uant

o o

públ

ico

fica

de fo

ra, o

lhan

do p

ela

jane

la.

Dec

lina

conv

ites a

gal

eria

s em

Nov

a Y

ork

até

que

em 1

974,

faz

uma

perfo

rman

ce

na G

aler

ia R

ené

Blo

ck G

alle

ry d

e N

ova

Yor

k. E

nrol

ado

em fe

ltro,

Beu

ys s

aiu

do a

vião

e

foi d

ireto

par

a a

gale

ria e

m a

mbu

lânc

ia p

ara

a qu

al ti

nha

sido

con

vida

do. F

icou

cin

co d

ias

ence

rrado

num

a sa

la d

a m

esm

a c

om u

m c

oiot

e (a

nim

al tí

pico

am

eric

ano)

, re

torn

ando

dire

tam

ente

dep

ois p

ara

Ale

man

ha. N

a su

a pe

rfor

man

ce I

like

Amer

ica

and

Amer

ica

likes

me,

Beu

ys p

arec

e m

ostra

r a d

ificu

ldad

e “d

e co

nseg

uir r

ecip

roci

dade

na

ação

com

unic

ativ

a”( A

rche

r, 20

01: 1

15).

Sua

últim

a ex

posi

ção

é um

a es

cultu

ra d

e te

mpo

. São

pla

ntad

as 7

000

árvo

res e

ao

lado

del

as u

ma

colu

na d

e ba

salto

inst

alad

a. O

cre

scim

ento

das

árv

ores

repr

esen

ta o

prin

cípi

o en

ergé

tico

que

vai d

o ca

os à

form

a, a

travé

s do

mov

imen

to, e

nqua

nto

a co

luna

de

basa

lto re

pres

enta

a c

ultu

ra d

a m

orte

em

que

ele

se e

ncon

tra im

erso

.

As i

déia

s são

o m

ais i

mpo

rtant

e pa

ra B

euys

. A a

rte d

evia

serv

ir pa

ra c

omun

icar

idéi

as, p

ara

recu

pera

r , a

travé

s de

uma

mito

logi

a, o

s val

ores

ale

mãe

s tra

dici

onai

s.

8 O’ D

oher

ty c

oloc

a no

mes

mo

grup

o a

Mal

evitc

h e

a M

ondr

ian

(O’D

oher

ty, 1

999:

98)

.

Page 192: Apostila Joseph Beuys

13

Se b

em e

ra d

e or

igem

cris

tã, s

ua m

itolo

gia

vem

subs

titui

r a re

ligiã

o e

porq

ue n

ão, o

luga

r que

a m

itolo

gia

greg

a oc

upav

a no

séc

ulo

XIX

. Nes

se s

entid

o, e

le te

m u

m m

isto

dos

mov

imen

tos r

omân

tico

e pr

é-ro

mân

tico,

que

pos

suem

um

a no

stal

gia

com

o p

assa

do e

de

Heg

el q

ue, d

e fo

rma

otim

ista

, e a

travé

s do

mét

odo

dial

étic

o, se

ria p

ossí

vel o

ser h

uman

o

fund

ir se

u es

pírit

o ao

esp

írito

Abs

olut

o. B

euys

pen

sa d

e fo

rma

posit

iva,

num

reen

cont

ro

com

o a

rcai

co d

e ca

da u

m. S

e H

egel

pen

sava

o E

spíri

to A

bsol

uto

com

o um

se –

relig

ar a

Deu

s, B

euys

pen

sa a

ene

rgia

vita

l com

o um

se

re-li

gar a

os m

itos

ance

strai

s de

cad

a um

.

Heg

el ti

nha

exig

ido

dos a

rtist

as q

ue, u

ma

vez

“esg

otad

o o

Con

teúd

o” (H

egel

, 200

0),

traba

lhas

sem

com

subs

tânc

ias q

ue lh

es si

gnifi

cass

em a

lgum

a co

isa,

par

a as

sim

che

gar a

o

espi

ritua

l. N

este

sent

ido

tam

bém

, con

sider

amos

que

Beu

ys so

freu

a in

fluên

cia

de H

egel

.

Se S

chel

ling,

con

strui

u o

mito

de

uma

pré-

histó

ria d

a ar

te c

omum

a to

das a

s arte

s, B

euys

,

com

o um

xam

ã cr

ia se

us p

rópr

ios m

itos,

sing

ular

izan

do m

itos e

sím

bolo

s pró

prio

s de

cultu

ras

espe

cífic

as. A

ssim

com

o nu

ma

perfo

rman

ce n

a A

lem

anha

util

iza

uma

lebr

e m

orta

,

que

ness

e pa

is p

ossu

i um

a ca

rga

sim

bólic

a pr

ópria

, no

s EE

UU

util

iza

um c

oiot

ecom

o q

ual

ele

trava

um

a lu

ta d

e qu

atro

dia

s seg

uido

s mos

trand

o co

mo

ele

sobr

eviv

e, a

ssim

com

o el

e

é um

sobr

eviv

ente

da

guer

ra, o

u qu

em sa

be, a

sua

guer

ra c

om o

s arti

stas

am

eric

anos

.

Arc

her c

onsi

dera

que

enq

uant

o as

per

form

ance

s dos

am

eric

anos

, com

as d

e B

euys

ou

as d

o

grup

o Fl

uxus

. Se

bem

toda

s tem

sua

orig

em n

o da

daís

mo,

as p

rimei

ras e

ram

reco

rria

m a

uma

mul

tiplic

idad

e de

coi

sas e

era

m e

xten

siva

s, en

quan

to a

s de

Beu

ys e

as d

e Fl

uxus

era

m

“sim

ples

e u

nitá

rias

na c

once

pção

”, u

ma

‘ant

i-arte

’ que

enx

erga

va a

vid

a de

form

a po

lític

a

(Arc

her,

2001

:116

).

III.V

igên

cia

da p

oétic

a de

Beu

ys n

os d

ias d

e ho

je

Se B

euys

pre

tend

ia a

tingi

r o p

úblic

o, se

bem

por

out

ros m

otiv

os, e

le c

onse

guiu

. O

tem

po p

asso

u e

ele

não

cons

egui

u qu

e su

a “p

ataf

ísic

a” v

inga

sse.

Em

com

pens

ação

, ele

que

foi t

ão c

rític

o em

rela

ção

tant

o à

arte

mod

erna

, qua

nto

à co

ntem

porâ

nea,

torn

ou-s

e um

a

refe

rênc

ia o

brig

atór

ia n

a H

istór

ia d

a A

rte.

Por t

er a

tingi

do u

m tr

abal

ho tã

o sin

gula

r e ir

repr

oduz

ível

, é a

sua

poét

ica

a qu

e

man

tém

a v

igên

cia.

Ele

pro

duzi

u um

efe

ito c

atár

tico

nos

jove

ns a

rtist

as a

lem

ães

com

o po

r

exem

plo

em P

eter

Gre

naw

ay.

14

Mic

hael

Arc

her,

tam

bém

con

side

ra s

ua in

fluên

cia

num

tipo

de

expe

riênc

ias

de

perf

orm

ance

s arr

isca

das,

que

artis

tas a

mer

ican

os c

omo

por

exe

mpl

o, M

arin

a A

bram

ovic

,

Chr

is B

urde

n, B

arry

Le

Va,

Den

nis O

ppen

heim

des

envo

lver

am (A

rche

r, 20

01).

Lisa

Phi

llips

em

seu

livro

The

Am

eric

an C

entu

ry d

edic

a um

peq

ueno

esp

aço

ao

artis

ta g

erm

ânic

o B

euys

, col

ocan

do-o

com

o um

a in

fluên

cia

para

arti

stas

que

arris

cara

m s

ua

vida

com

o C

hris

Bur

den.

Ela

con

side

ra q

ue, m

esm

o te

ndo

sido

vis

ta p

or p

ouco

s, é

o tip

o de

expe

riênc

ia q

ue in

fluen

cia

teat

ro, c

inem

a, ó

pera

e o

utro

s arti

stas

em

ger

al (P

hilli

ps, 1

999-

2000

).

Bibl

iogr

afia

:

Arc

her,

Mic

hael

, Arte

Con

tem

porâ

nea,

Um

a hi

stór

ia c

onci

sa, M

artin

s Fon

tes,

São

Paul

o,

2001

.

Bac

h, C

.E.-

O lu

gar

Beuy

s, M

onog

rafia

de

Fina

l de

Cur

so d

e H

istó

ria d

a A

rte e

da

Arq

uite

tura

no

Bra

sil,

PU

C/R

J. O

rient

ada

pelo

Pro

fess

or R

onal

do B

rito,

Rio

de

Jane

iro,

1995

.

Bor

nhei

m,

Ger

d.

Filo

sofia

do

R

oman

tism

o In

J.G

uins

burg

, O

R

oman

tism

o,

Edito

ra

Pers

pect

iva,

São

Pau

lo, 2

002.

.

Brit

o, R

onal

do. N

otas

de

aula

do

curs

o de

His

tória

da

Arte

III,

do C

urso

de

Espe

cial

izaç

ão

em H

istó

ria d

a A

rte e

da

Arq

uite

tura

no

Bra

sil,

Rio

de

Jane

iro, 2

004.

Brum

, J.T

.O

pr

imad

o do

ar

tista

so

bre

o fil

ósof

o,

http

://jb

onlin

e.te

rra.

com

.br/p

apel

/cad

erno

s/id

eias

/200

1/10

/12/

jorid

e200

1101

1012

016.

htm

l.

Bru

m,

José

Tho

maz

, ap

onta

men

tos

em s

ala

de a

ula

do C

urso

de

Esté

tica

II, C

urso

de

Espe

cial

izaç

ão e

m H

istó

ria d

a A

rte e

da

Arq

uite

tura

no

Bra

sil,

PUC

/RJ,

Rio

de

Jane

iro,

2004

.

Brit

o, R

onal

do. A

pont

amen

tos

em s

ala

de a

ula

do C

urso

Arte

III

, Cur

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e es

peci

aliz

ação

em H

istó

ria d

a A

rte e

da

Arq

uite

tura

no

Bra

sil,

PUC

/RJ,

Rio

de

Jane

iro, 2

004.

Duc

ham

p, M

.. “O

ato

cria

dor”

.In:G

rego

ry B

attc

ock,

A N

ova

Arte

, Edi

tora

Per

spec

tiva,

São

Paul

o, 2

002.

Göt

z. A

.-Liv

ro C

atál

ogo

da e

xpos

ição

, Jos

eph

Beuy

s D

esen

hos,

Obj

etos

, gra

vura

s-

Stut

tgar

t-Ins

titut

o de

Rel

açõe

s Cul

tura

is co

m o

Ext

erio

r, 19

89; c

itado

por

Mar

ia C

élia

Sant

os S

alga

do, I

n Se

r ou

não

ser?

, Mon

ogra

fia d

e Fi

nal d

e C

urso

de

Espe

cial

izaç

ão e

m

Page 193: Apostila Joseph Beuys

15

Hist

ória

da

Arte

e d

a A

rqui

tetu

ra n

o B

rasil

, Orie

ntad

a pe

lo P

rofe

ssor

Jos

é Th

omaz

Bru

m,

Rio

de

Jane

iro, 1

997.

1997

: 32.

Heg

el, G

.W.F

.Cur

sos

de E

stétic

a, V

ol. I

., Ed

usp,

São

Pau

lo, 2

001.

Heg

el, G

.W.F

.Cur

sos

de E

stétic

a, V

ol. I

I., E

dusp

, São

Pau

lo, 2

000.

Heg

el, G

.W.F

.Cur

sos

de E

stét

ica,

Vol

. III.

, Edu

sp, S

ão P

aulo

, 200

2.

Hei

degg

er, M

. Ess

ais e

t Con

fére

nces

/Les

Ess

ais/

Tra

d. A

ndré

Pré

au. G

allim

ard,

Par

is,

1996

.

Hei

degg

er, M

. Ens

aios

e C

onfe

rênc

ias,

Trad

. Em

man

uel C

arne

iro L

eão

et a

lii, p

etró

polis

,

Voz

es, R

io d

e Ja

neiro

, 200

2.

Inst

ituto

Ant

ônio

Hou

aiss

, D

icio

nário

Hou

aiss

da

Líng

ua P

ortu

gues

a, E

dito

ra O

bjet

iva,

Rio

de

Jane

iro, 2

001

Kan

t, Im

man

uel:

Crít

ica

da F

acul

dade

do

Juíz

o. F

oren

se U

nive

rsitá

ria,

Rio

de

Jane

iro,

2002

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