apresentação de pedro guilherme moreira
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Encontro com Pedro Guilherme-Moreira
No dia 27 de fevereiro recebemos, pela segunda vez, no auditório da escola, o escritor
Pedro Guilherme-Moreira. Pouco antes da sua vinda à escola, publicou o seu segundo
romance, Livro Sem Ninguém.
Como refere a professora Conceição Pires, no artigo que escreveu para o jornal da escola
(“Encontro”):
“Como quem bem se quer, sempre se
(re)encontra, no dia 27 de fevereiro, no
âmbito das atividades promovidas pela
Biblioteca Escolar, o escritor-amigo-da-
Xico, Pedro Guilherme-Moreira, voltou à
nossa escola. Deveria ter sido no dia do
Pinheiro, como da primeira vez em que cá
esteve e soube da existência da resinosa festa, aquela que cola vimaranenses à cidade, e que,
suspeito, o encantou. Porém, as contingências escolares são, as mais das vezes, completamente
indiferentes às razões que nos assistem, a nós, leitores empenhados e “fazedores de leituras” em
causa alheia.
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Para quem não conhece, começo por vos apresentar o nosso convidado especial que, no seu
blog “Ignorância”, ousa confessar publicamente que escreve, advoga e arruma carros nos poveiros.
Versátil, portanto, o que não é mau para cartão de visita. Assim o apresentou também a professora
Rosário Ferreira, num belíssimo texto, ainda que a gripe tivesse tentado estragar-lhe a veia.”
Eis o texto com que a professora Rosário Ferreira nos brindou, para apresentar o autor – “amigo
da casa”.
Encontro com…a obra de Pedro Guilherme-Moreira
“Nunca estive em NY mas já fui muitas vezes a
NY, … não isto tem som de repetido e, para isso
basta o “Sino da minha aldeia”.
Recomeçando: continuo sem nunca ter ido a NY
a não ser nas viagens que lá fiz com os atores das
minhas séries favoritas (pronto! Confesso que
também já lá fui com a Tyra Banks e o America’s Next Top Model – é verdade. AH! E com o
Masterchef Austrália na terceira edição!)) com a música de Sinatra e com o livro do Pedro
Guilherme-Moreira.
E esta semana regressei lá pela mão de PGM: e encontrei outro livro, outra história, outra
magia. Não sei porquê, mas quando reli, logo nas páginas iniciais a descrição do The Falling Man,
pareceu-me vislumbrar um vulto numa cabine telefónica que, apressadamente mudava de roupa
para o apanhar na sua queda vertiginosa. Depois, quando Thea tentava escalar os corpos
amontoados nas janelas, pensei que um gorila gigante apareceria no topo das torres gémeas para
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salvar a sua Ann Darrow…. E estes “loucos suicidas”, como tão facilmente Ayda lhes chamou,
transformavam-se em seres frágeis a serem resgatados por heróis incompreendidos. (Saltei
páginas, porque já conheço a história, sei que os bons não aparecem, não há finais felizes, e tenho
medo que surja voando, qual “Mostrengo que está no fim do mar”, nesta imaginação traiçoeira, uma
Alice em forma de Lex Luther ou que a Teresa se metamorfoseie em Jack Black).
Não resisti a reler o número dois: a ironia - ou não - do destino - ou da sorte - de um homem
que não ousa contrariar a mulher, que se levanta quando o instinto - ou a preguiça, ou o sono - lhe
segredavam que ficasse na cama - mas que ousa contrariar o destino - ou a preguiça, ou o sono -
porque se demorou nuns olhos verdes. (Acho que foi aqui que me lembrei do Masterchef).
Foi então que reencontrei a minha personagem favorita - Millard, que, tal como eu prefere as
alamedas às avenidas - e com ela regressei à casa de chá com papel de parede bordado com beija
flores.
E Alice, a tímida - ou não - secretária que, não fosse o humor negro de Deus, não deveria estar
ali, na torre norte do WTC, mas na sua pequena cidade natal.
Redescobri Solomon, não o rei mas o advogado, a alcançar a janela do seu escritório no 106º
andar, que teimou em não fazer um check-up, em continuar a conduzir o seu Cadillac por Brooklin
Bridge e completou o seu ciclo iniciático nesse dia em que fazia sete anos que se reformara. “Ao
contrário de muitas das histórias do 11 de setembro (…) a [história] de Solomon era límpida e sem
espaços para lamentos, descontando o sinal vermelho.”
Voltei a página, e lá estava Thea outra vez, aquela bela rapariga de “olhos verdes” (qual
Joaninha de Garrett, também ela destinada à desgraça) que vai “partilhar com Millard os piores
momentos desta fatídica manhã”, ambos se sentem sufocar - pelo fumo e pela vida - e ambos
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resistem a afundarem-se no desespero. Thea apercebe-se de que mesmo que as suas “conversas
tenham sido mais pensamentos do que diálogos (…), apenas o símbolo da resistência, da vontade
e até da coragem”, houve muito mais do que solilóquios entre esta repórter gastronómica e este
concièrge obcecado por um beija-flor.
Depois, bem, depois, já o disse e redigo-o, pois acho que não há outra maneira de o dizer,
depois virei a página e já era “o dia que Ayda pensava ser 12 de setembro de 2001”.
E das páginas do livro soltaram-se notas, compassos, pautas inteiras que teimavam em calar os
gritos de dor e os espasmos de raiva: acordei com Lopes Graça; ouvi o coro dos escravos de Verdi,
o Pedro e o Lobo de Prokoviev… e depois um interlúdio de Tchaikovsky quando Romeu e Julieta
(entenda-se Darius e Teresa) celebram o seu amor, afinal tão tragicamente possível. Entretanto,
soavam-me ao ouvido as palavras de Eugénio de Andrade: Já gastámos as palavras pela rua, meu
amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o
silêncio.”
A mão segura de Pedro ensinou-me que qualquer suicida vê “a morte desmaiada. O verdadeiro
suicida conquista um destino que não lhe está naturalmente reservado”, e isso fez-me ver o suicídio
como algo ainda mais cruel do que eu já o entendia.
E a morte estava ali: “no azul do céu, bela.” Sem “foices ou vestidos negros”, apenas “um
horizonte que encurta”.
E foi aqui que precisei de voltar atrás no livro, regressar ao apartamento de Darius e sentir, de
novo, aquela força revitalizada por um sol que se espraia no apartamento da River Terrace e voltar
a sentir a mão de Pedro Guilherme-Moreira a dar voz à força de Ourique, de Aljubarrota, do 1º de
Dezembro, do 5 de Outubro ou do 25 de Abril, que resistiu ao opressor: na imagem de Darius que
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resiste ao cheque de 6 dígitos para vencer a batalha do filho; nos olhos de Teresa que resiste ao
adultério em prol da amizade; na força de Ayda que resiste ao destino para salvar destinos.
E, urgentemente, precisei de conhecer um outro espaço, tão diferente e tão igual a Nova Iorque.
Já tinha ouvido falar do Sítio do Pica-Pau Amarelo, da Rua Sésamo e até mesmo do Parque da
Mónica, mas juro que nunca ouvira tal coisa como a rua do arco celeste. Bem, parece que:
Na rua do arco-celeste há sete casas, cada uma de
sua cor; e também um café, uma horta, um jardim,
uma florista, uma sucata, um infantário e uma
escola. Mas, embora lá vivam pessoas – que
frequentam o café, trabalham na horta, lêem no
jardim, compram flores para oferecer a quem amam, se desembaraçam dos seus podres ou jogam
à bola no recreio –, (…) durante este ano extraordinário, acontece de tudo na rua: há quem se
apaixone e quem se separe, quem nasça, quem morra, quem mate e até quem, depois do trauma,
consiga uma vida nova. Mas, como em todas as ruas, havemos de encontrar nesta preconceitos,
dúvidas, alegrias, segredos e desgostos.
Antes mesmo de ler a obra, li esta sinopse e, quase de imediato – não sei se por andar às voltas
com a Mensagem ou se é mesmo a minha paranoia pela simbologia – o número sete começou a
elevar-se das entrelinhas: 7 casas, sete espaços comuns, sete atividades, sete acontecimentos
(porque considerei o trauma como um acontecimento). E depois, apareceram cinco nomes que
retratam esta rua do arco-íris.
Sete e cinco: círculo perfeito, sacrifício,… Isto promete!!!!
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(esta parte foi escrita no dia 11 de fevereiro, quando ainda o livro não tinha sido publicado e já a
minha curiosidade pulava freneticamente)
Dia 24 de fevereiro
Finalmente tenho comigo o livro. Abro-o, leio a dedicatória, oiço Caetano Veloso, atento no
mapa (sempre gostei de mapas, fazem-me lembrar os livros da Enid Blyton), leio o prólogo.
Novembro chegou.
Estou eu sossegada na minha leitura quando o narrador ma interrompe: “Um momento. Não era
melhor apontar isto?(…) só assim, tomando notas, se poderá ter cá alguém, que o “Livro é de
Ninguém”. E subitamente, nos papéis que estão no meu pensamento, a rua do arco celeste
transformou-se na rua Vila Flor. E o Livro Sem Ninguém povoou-se das pessoas da minha infância
que habitavam a rua da minha infância.
A rua chamava-se assim por causa de um palácio pertença da família Jordão que, à época,
ainda não sabia que viria a ser centro cultural.
Na rua Vila Flor também havia um café: o Danúbio (quer dizer, não era bem lá, era em frente, a
morada oficial era Av. D. Afonso Henriques, mas nós tínhamo-lo tomada de assalto e agora era
nosso). Era lá que a miudagem e a “graúdagem” se juntavam para ver televisão, no tempo em que
esta era muito mais rara do que um ipad, um iphone 5 ou até mesmo uma 4L cor-de-rosa.
Na rua Vila Flor não havia um jardim. Mas havia-o no palácio Vila Flor, que comunicava com a
rua por ruelas secretas que foram, nos tempos quentes de 75, a saída salvadora daqueles que por
lá haviam brincado e que naquele dia tinham sido feitos prisioneiros num comício por terem
cometido o crime de participarem num comício que não era das forças democráticas.
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Na rua Vila Flor as casas não tinham as cores do arco-íris, mas as nossas brincadeiras, as
nossas corridas de carrinhos de rolamentos, os nossos “esconde-esconde”, as nossas peças de
teatro no sótão dos meus pais, davam-nos mais felicidade que um pote de ouro.
Na rua Vila Flor as casas era quase todas brancas, mas a mistura de gentes, de culturas, de
partilha de bens e de sorrisos, fazia-nos mais diversos do que as cores do arco-íris.
Na rua Vila Flor não havia escola. Mas havia uma tipografia – a tipografia Maia – onde eu aprendi a
mexer em letras, a formas palavras sem o saber, muito antes da D. Inês mo ter ensinado.
Na rua Vila Flor não havia uma horta, mas havia o quintal da D. Primavera, com laranjeiras
perfumadas que nós teimávamos em transformar em alvos preferenciais das nossas fisgas, mesmo
que, depois a boa senhora no-las oferecesse quando nos chamava da sua janela.
Na rua Vila Flor também havia quem amasse (e quem odiasse), quem se desembaraçasse dos
seus podres e quem não conseguisse fazê-lo, quem jogasse à bola, não no recreio mas ao fundo,
junto ao rio de Couros. Mas não. Chega! Vou voltar ao livro que as memórias são infindas e o
tempo está a esgotar-se.
E depois disto, voltei ao livro. Ainda não o acabei. Vou em janeiro. Prometo que em outubro
darei notícias.
AH! Espero que já tenha aprendido a fazer contas de dividir!
É que, para quem não esteve cá no ano passado, este senhor aqui sentado ao meu lado, teve
um problema a resolver com as frações. Este senhor, que advoga, escreve e estaciona carros nos
poveiros, também foi em tempos, uma criança dada mais às letras do que aos números. Vai daí,
quando finalmente a professora D. Laura conseguiu ensiná-lo a dividir, o Pedrinho presenteou-a
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com uma bela redação! Foi o princípio de uma perfeita relação, nem sempre calma como convém
em qualquer relação, com os papéis: hoje conta já com um palmarés digno de atenção, a saber:
Aos 11, entre rapazes de 16 e 17, empatou o primeiro lugar dos jogos florais da escola com um
rapaz de 12, hoje um conhecido político. Aos 13, perdeu para o mesmo menino, mas levou o 2.º e
o 3.º prémios. Aos 16, ganhou (finalmente sozinho), porque o menino político entrou na
Universidade. No ano seguinte entrou ele, na de Coimbra, e andou com Torga no trólei 3, mas
nunca se falaram. Profissionalmente, foi dos primeiros advogados a ganhar o Prémio Lopes
Cardoso, com um artigo publicado, primeiro, na prestigiada Revista da Ordem dos Advogados e,
depois, em livro. Decidiu publicar apenas aos 40, porque queria saber, e escrever, mais. Em 2012
foi agraciado com o prémio de poesia do Museu Nacional da Imprensa. A Manhã do Mundo aparece
a meio do seu «dia», sendo o seu primeiro romance.
Pedro Guilherme-Moreira podia não saber fazer contas de dividir, mas soube multiplicar o seu
dom de contar a História com sabor a história, de somar os factos da História à brisa da ficção, de
subtrair os olhares uniformes deste facto, fracionando-os em vários avos de diferentes olhares.”
Rosário Ferreira, 27-02-2014
Uma vez mais, nas palavras da professora Conceição Pires, “Pedro Guilherme-Moreira,
PG-M como é conhecido, estreia-se como romancista com A Manhã do Mundo, em 2012, em 2013
vence o Concurso de Textos de Amor de 2012, do Museu Imprensa, com o poema “Plátano”. Pouco antes da visita com que nos honrou, publica o seu segundo romance, Livro Sem Ninguém. O primeiro integra a lista de obras selecionadas para o Contrato de Leitura e Escrita do 10º ano da Escola. Foram cerca de cinquenta os alunos que o leram e que, mais tarde, escreveram um texto orientado sobre a obra, em cumprimento da avaliação de Expressão Escrita legalmente prevista. Este facto explicaria, por si só, o convite a PG-M. Mas não chega, pois o autor oferece e oferece-
nos outras razões bem mais interessantes. É que o Pedro Guilherme-Moreira não veio à Escola
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vender a alma ao diabo. Explico. Não veio vender livros, que ele daqui não leva senão uns sorrisos mais ou menos rasgados ou uns sentidos obrigados. Também não veio convencer meninas e meninos a idolatrar a literatura nem os seus autores. Veio conversar com elas e com eles, sobre livros e outras coisas que estão dentro deles. No entanto, isto também não é suficiente. Pedro
Guilherme-Moreira, que suspeito ser mestre do improviso, veio com o TPC feito e armado até aos dentes. Veio depois de ler todos, mesmo todos, os textos escritos pelos nossos alunos, sobre A Manhã do Mundo. Leu-os porque na Xico não se brinca e os mesmos lhe foram previamente enviados. Leu, analisou, comentou, autografou e premiou (1º, 2º, 3º lugares e menções honrosas). Não, não havia estatuetas nem medalhas, mas beijos e apertos de mão delicados e generosos. E
foi assim mesmo que uma plateia de adolescentes se rendeu à evidência do bom gosto e de um trabalho com sentido de missão.
Afinal, afinal, não é que o homem veio falar deles e não “dele”? Seria mesmo possível que alguém
importante (pois, não falo dos desgraçados dos classificadores em que fomos magistralmente
transformados) se tinha dado ao trabalho de ler o que eles tinham escrito, a troco de coisa
nenhuma? Era verdade, como eles puderam confirmar.
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“Mas a coisa não ficou por aí. PG-M continua. Desta vez com um texto (eu dava-lhe mesmo 20
valores nos TPC). Sobre A Manhã do Mundo? Demasiado previsível. Claro que não. Veio com a
tradução-paráfrase-pastiche da letra da canção “Same love” de Mack Lemore & Ryan Lewis,
assinando-a como MackPG-M. Canção conhecida na plateia (ele sabe é muito!), ainda que alguns
se escusassem a partilhar o (re)conhecimento. Texto fabuloso, onde todas as meninas e os
meninos das escolas têm um papel, seja o de excluídos ou o de “excluidores”, mas todos eles
conhecedores do estigma da diferença. Texto desmistificador de todas as exclusões, sobretudo
daquelas que recaem sobre os mais ou menos jovens. Do consumo de drogas compensadoras ou
descompensadas, do abuso sobre os mais fracos ao racismo e à xenofobia, da homofobia à
ignorância (“uma camada de estereótipos todos na minha cabecinha, salvo seja”) que vigora agora
nas escolas como atitude inclusiva, colocando à margem a literatura, “sem lhe dar uma chance de
nos levar para outro mundo”; estava tudo lá. E é assim que se fazem pontes, pois a ideia, creio eu,
era explorar essa invenção moderna que vagueia nas escolas de que “ excluído” está aquele que
não estigmatiza a literatura, invalidando a perseguição do “Longe” e a vitória sobre a “Distância”. E
os alunos reagiram. A certa altura, na plateia, cantou-se o refrão original com PG-M. A Sofia
começou e os outros foram na onda. Depois, contaram-se histórias. PG-M perdeu-se num aparte e
já não sabia onde se desviara do caminho traçado. Mas o Tiago, literalmente pendurado na cadeira
da frente, sabia e esclareceu. Ele que tantas vezes me ouve sem me escutar. Sabia, porque estava
atento. E não é que estavam mesmo todos atentos? É que como escreveu Herberto Helder,
“…Alguém descasca uma pêra, come/ um bago de uva, devota-se/ aos frutos. E eu faço uma
canção arguta para entender”. Assim fez PG-M com a diferença e, por extensão, com a literatura.
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Só há um tipo e um género e uma cor e uma bomba e uma veia e uma idade e um cheiro por onde passa o amor (Same love) – MackPGM
Quando eu andava na terceira classe, pensava que era gay,
porque fazia desenhos lindinhos, o meu tio também era e o meu quarto e carteira estavam sempre
arrumadinhos. Foi exactamente o que eu disse à minha mãe:
chamei-a a um canto e disse, com as lágrimas a correr-me pela cara,
“Mamã, tenho a impressão de que sou gay, diz-me o que é que pensas sobre o assunto”
E ela, logo, sem respirar, sem pensar:
“Estás maluco ou quê, Pedro? Tu és doido por raparigas desde o infantário, pá! Até foste expulso
das aulas de natação com três aninhos porque, em vez de nadar, mergulhavas em apneia para
ver o mundo debaixo de água e apalpar as meninas!”
Ya, acho que ela tinha razão, não tinha?
Uma carrada de estereótipos, todos na minha cabecinha, salvo seja.
Eu lembro-me de fazer as contas e pensar, Ya, às tantas eu até jogo pela outra equipa,
esta era a ideia pré-concebida do que isto queria dizer para os que gostavam do mesmo sexo,
tinham aquelas características fixas que todos lhes atribuímos,
os conservadores de direita pensam que é uma decisão
e que todos podem ser curados com algum tratamento ou religião
uma espécie de lavagem cerebral da pré-disposição natural,
nós a fingir de deuses, nós corajosos, e eis as bandeiras:
O Portugal do império ainda teme o que não conhece
e a ideia de que deus ama todos os seus filhos está, de algum modo, esquecida,
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mas nós passamos a vida a citar um livro escrito há 3.500 anos,
não sei
ba pa pa pa ba pa pa pa
And I can't change/ Even if I tried
Even if I wanted to/ And I can't change
Even if I tried/ Even if I wanted to
My love/ My love/ My love
She keeps me warm/ She keeps me warm/ She keeps me warm/ She keeps me warm
Se eu fosse gay, meninos, ia pensar que o hip-hop me detestava,
já leram os comentário do YouTube ultimamente?
“Man, isso é muita gay” é uma coisa que aparece todos os dias, a todas as horas,
Ficamos tão dormentes com tudo o que dizemos e escrevemos!
Numa cultura fundada na opressão, onde é que há lugar para a diferença?
Chamamo-nos uns aos outros maricas atrás das teclas de um computador,
uma palavra fundada no ódio, mas a nossa espécie não faz ideia do é viver sem ódio
Gay é sinónimo de ser menos
e transporta o mesmo ódio que causou guerras religiosas,
o género através da cor da pele, o aspecto do teu pigmento
a mesma luta que levou gente a manifestações
são direitos humanos para todos, não há diferença
Vive pela tua cabeça!
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Quando eu ia à igreja eles ensinavam que, se pregares o ódio na missa, são palavras impuras,
a água benta que engolires está envenenada
e quando todos os outros estão mais confortáveis sem dizer nada,
em vez de lutarem pelos humanos que viram os seus direitos roubados,
eu já serei outra pessoa, mas isso não é importante,
não há liberdade até sermos iguais
(I don't know)
And I can't change
Even if I tried
Even if I wanted to
My love/ My love/ My love
She keeps me warm/ She keeps me warm/ She keeps me warm/ She keeps me warm
Carregamos no play, não em pausa,
progredimos, marchamos com o véu sobre os olhos, viramos as costas à causa,
até ao dia em que os tipos como o meu tio possam juntar-se perante a lei.
Quando os miúdos caminham pelo átrio com a praga no coração
há um mundo com tanto ódio que alguns preferiam morrer a ser quem são,
e um papel com selo branco não vai resolver isso,
mas é uma óptima maneira de começar,
embora nenhuma lei nos mude,
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nós é que nos mudamos, acreditem vocês em que deus acreditarem,
vimos todos do mesmo, despimos o medo,
debaixo da pele o amor é todo igual,
já era tempo de nos erguermos,
e isto de nos erguermos não é ficar enterrados em nós próprios no nosso canto, não é dormir
acordados ou pensar que as drogas duras nos fazem duros, não é abusar e gozar os mais fracos,
os diferentes, não é pensar que um livro é uma seca sem lhe dar uma chance de nos levar para
outro mundo em vez de um comprimido, não é ler a solidão do outro com estranheza, não é
apoucar o génio com desprezo.
Ser grande é contrariar o que já não esperam de nós,
é ultrapassar a descrença do mundo aumentando a velocidade do sangue que nos ferve nas veias,
é não nos enterrarmos uns aos outros antes do tempo,
é saber que a condição da beleza não é um traço de eyleiner,
e é convosco que eu aprendo a pureza de toda a possibilidade,
a capacidade de ter os sonhos intocados,
e é contigo que eu aprendo a pureza de toda a possibilidade, Zé Pedro, Diana, Micael, Cristina,
Beatriz, Diogo, Rui, Carla,
e é contigo que eu aprendo a pureza de toda a possibilidade, Mariana, Tiago, António, Melissa, Ana
Conceição,
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é contigo que eu aprendo a pureza de toda a possibilidade, Nuno, Yankha, Carolina, Ana
Alexandra, Inês, Ana Sofia, Catarina, Cláudia, Gabriela, João Francisco, Jorge Gabriel,
é contigo que eu aprendo a pureza de toda a possibilidade, Rui Filipe, Maria Rosalina, Luís Filipe,
Bruna Rafaela, Rui Hernâni, Ana Rita, Nuno Alexandre, Sofia Raquel, e tantos, tantos outros,
E eu não posso mudar/ mesmo que tentasse/
mesmo que quisesse
And I can't change/ Even if I tried
Even if I wanted to/ And I can't change
Even if I tried/ Even if I wanted to
My love/ My love/ My love
She keeps me warm/ She keeps me warm/ She keeps me warm/ She keeps me warm
Obrigado a todos!
Pedro Guilherme-Moreira
Guimarães, 27-02-2014
“No final, as perguntas foram poucas. Não se vence numa hora retraimentos de uma vida e de
várias gerações. Mas a Telma acabou por perguntar: “E de que é que fala o novo livro?” Boa. A
curiosidade foi acordada. A canção funcionou. PG-M logrou aquilo que tanto nos custa apenas
roçar. Aposta ganha. E mais ou menos aqui, terminou a sessão. Com os autógrafos, pois claro!
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E, pelo caminho, creio que com uma confissão, feita em surdina, e já geradora de novo texto do
nosso convidado. É que ele não consegue evitar essa coisa da empatia com esta malta.
Mas não era assim que gostaria de terminar. Queria fazê-lo, pegando na questão da Telma: “ E de
que fala o novo livro?” (e a Telma perguntava sobre o Livro sem ninguém”). Nas palavras do
escritor Miguel Miranda, numa recensão extraordinária, é um livro onde «As personagens, os
sentimentos, surgem e falam pelos objetos pessoais – umas sapatilhas, uma bengala, a cana de
pesca, a roupa a secar, uma 4L, fraldas, flores, produtos hortícolas, sapatos vermelhos – Este é
um processo muito original de contar. Sendo a leitura um processo de abstracção em que ao
leitor está reservado o papel de construir as imagens das personagens, dos cenários, vivenciar
a intensidade dos sentimentos, com base na aridez aparente das letras do texto, bem pode este
leitor, quando convenientemente estimulado, ir mais além e imaginar também os personagens
pelos objetos, os dramas e sentimentos pelas cores das casas, os enredos pelos humores e a
sazonalidade do tempo.
Este processo muito original de contar é um dos grandes méritos deste livro aparentemente
“Sem Ninguém”». Vale a pena. É, no mínimo, um exercício de inteligência. E sem querer cair na
imitação grosseira e de mau gosto, mas como homenagem genuína de uma admiradora
incondicional do livro e sem pretensões ao que quer que seja, resumiria assim a conversa com
Pedro Guilherme-Moreira, que, involuntariamente, me impôs a escrita deste texto.
Foi no auditório da Xico. Como em todos os auditórios que se prezam, havia muitas filas de
cadeiras e, para não destoar das boas tradições, lá em baixo dava nas vistas uma grande mesa de
madeira, duas cadeiras orgulhosas, um microfone e umas tristonhas garrafitas de água engarrafada.
De repente, vai surgindo um batalhão de calças de ganga, de tons, feitios e cortes variados. E
sapatilhas. Tantas sapatilhas! Sapatilhas porque são do Norte, se não seriam metonímias. Falo de
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ténis, evidentemente. E “tops” e “t-shirts” com ou sem casacos. Uma ou outra saia, talvez. Muitas e
muitas mochilas impondo-se numérica e
descaradamente a uma ou duas pastas demasiado
sérias. Mais tarde, nas cadeiras da mesa, há uma
saia em frente ao microfone. Na cadeira do lado,
um sobretudo preto. Depois, o microfone muda-se
e é o sobretudo preto que o tem de fronte. O
relógio do corredor marca as horas e os minutos
mais depressa do que o costume. A certa altura,
as calças agitam-se e o sobretudo também, numa dança bem orquestrada, embora eu não visse
por lá nenhuma batuta. As mochilas, no início, pousavam no chão, quietas e tranquilas. Depois, vi-
as em cima das gangas, com livros dentro. A seguir, estes livros desassossegados já demoravam
no tampo da mesa grande e de madeira, com as sapatilhas por perto. Os livros eram quase todos
iguais. Uns tinham na capa, em primeiro plano, duas torres pretas a sugerirem tragédia e no outro
vê-se um corredor branco, com casas coloridas dos dois lados, como se quisessem concorrer com
o arco-íris. Destes, em alguns, via-se, na contracapa, um estendal com roupa colorida estendida.
Na mesa aparece uma caneta. Nos livros, na primeira página, nascem rabiscos bem vincados,
volumosos e simpáticos. Um auditório, afinal, “sem ninguém”. E nós todos lá dentro.
Ao Pedro Guilherme-Moreira, o nosso franco agradecimento. Que volte sempre, querendo e
podendo. Apesar do que por aí se diz, as escolas merecem e os alunos também. Saibamos nós
tê-lo merecido.” (Conceição Pires)
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Finalizo, enquanto professora bibliotecária, com um agradecimento ao Pedro Guilherme-Moreira,
que espero, se mantenha igual a si mesmo; às minhas colegas que têm acompanhado, participado
e incentivado os seus alunos para a importância da leitura na formação dos nossos jovens, Helena
Gonçalves, Glória Cardoso, Rosário Ferreira e Conceição Pires. Para a Rosário, um agradecimento
especial pela disponibilidade, sempre pronta para participar nestas atividades. Para a Conceição
Pires, um obrigado muito especial, pois é graças a ela que conhecemos o Pedro Guilherme-
Moreira, que os alunos vêem os seus textos lidos pelo autor, que escreveu este belíssimo texto para
o jornal da escola, do qual me servi para Vos contar esta história de escritores, professores, alunos,
escrita, diálogo, partilha, leitura e de algo que não podemos perder nas Nossas Escolas: Amizade!
Trabalho de Equipa!
Manuela Paredes
Professora bibliotecária da Escola Secundária Francisco de Holanda
Deixo, aqui, o texto publicado na revista Time Out Lisboa, na edição de 19-25
Fevereiro 2014
Livros
O romance protagonizado por lenços e sapatos
Pedro Guilherme-Moreira escreveu um Livro sem Ninguém, onde não há personagens e a
história das pessoas, e de uma rua, é contada através dos seus objectos. Ana Dias Ferreira falou
com o autor e explica tudo.
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Roupas largas num estendal e um teste de gravidez contam
uma história. A mesma história que é confirmada quando uma
4L cor-de-rosa troca um autocolante de uma discoteca em Ibiza
por outro daqueles que indicam um certo elemento a bordo. Já
um xaile manchado de sangue diz outra coisa, assim como uma
cadeira de rodas derrubada e uma carrinha da Misericórdia à
porta. O que é certo é que todas estas histórias estão em Livro
Sem Ninguém, segundo romance de Pedro Guilherme-Moreira (n.1969) que é publicado esta
terra e, que se saiba. é o primeiro a ser escrito sem uma única personagem.
0 subtítulo dá uma pista: “a natureza humana pela natureza-morta”, e ao longo de 160 páginas
essa natureza humana, incluindo temas como a violência domés t i ca , o amor, a xenofobia ou a
identidade sexual, é explorada sem que haja uma única referência a um nome ou uma pessoa. E é
contada através de objectos como um casaco pied-de-poule que anda sempre com uma gramática
(uma professora), uma bicicleta vermelha com rodinhas brancas (uma criança) ou uma cana de
pesca na areia (um pescador).
“Lembro-me de que a ideia para o livro surgiu num dia em que ia sair de casa e comecei a
reparar que só olhando em volta conseguia ler as vidas dos outros” conta o autor. “Que o meu
vizinho não estava em casa porque faltava lá o carro, que a professora do meu filho ainda não tinha
chegado à escola porque não a conseguia ver da janela. E percebi que se consegue ler a vida das
outras pessoas sem fazer perguntas.”
Depois de A Manhã do Mundo, romance muito bem recebido pela crítica, com que Pedro
mostrou que a sua profissão de advocacia não era tudo, estava encontrado o segundo romance.
“Gosto de trazer coisas novas e aqui queria seguir o princípio de ler a vida por fora”, diz. Mais
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concretamente ler a vida de uma rua de sete casas geminadas, uma de cada cor, sem nunca entrar
nessas casas e observando apenas o exterior, os quintais e os pátios, o café, a florista, o beco e o
jardim, ao longo de um ano. “Escrevi com os sentidos apurados e dava por mim a olhar para tudo:
as árvores, os pneus, as écharpes. O meu papel como escritor era mostrar o dinamismo dos
objectos.”
Para agarrar o leitor, num livro que, sem pessoas, é necessariamente mais cru e contemplativo,
o autor faz um apelo logo no início: “No lugar onde este livro está a ser lido, ou talvez muito perto,
deve haver papel e lápis. Ou qualquer coisa que escreva. (…) Os truques metaliterários podem ser
maçadores. Mas só assim, tirando notas, se pode ter cá alguém, que o livro é sem ninguém.” (p.
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Logo no início também é facultado um mapa da rua onde o leitor pode deixar as suas notas e
encher cada uma das casas.
Curiosamente, são essas mesmas casas que vão ficando mais vazias à medida que o livro
avança e a acção se torna mais lenta e o tom mais poético. “Quis relatar o que é a morte das casas
nas cidades. Eu como advogado vivo isso. Vejo heranças que se arrastam durante décadas e
excelente património que está desaproveitado”, diz Pedro, que mesmo antes de começar a escrever
aprendeu uma lição: “o bem não tem grande relato e não deixa rasto. Basta pensar no amor. Um
grande amor é uma coisa constante e prolongada, um amor com problemas é mais facilmente
interpretado, tem as discussões, o drama.”. Por alguma coisa se diz, como lembra o escritor no
prólogo, que se conta uma batalha através dos seus despojos, mas é mais difícil reconstituir um
piquenique se todos agiram com civismo e não há vestígios na relva.