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1 Conclusões: Archigram, uma fábula da técnica no estado do bem estar Ron Herron, Oasis, colagem, 1968. O último magazine Archigram saiu em setembro de 1974, após um intervalo de quase quatro anos sem a revista. Chamou-se Archigram 9 ½, indicando que talvez já não restasse tanta motivação por parte do grupo como para repetir os feitos anteriores, ou alcançar o impacto e a coerência interna de edições como Amazing Archigram ou Metropolis em 1964, com suas referências aos quadrinhos de ficção científica, suas cápsulas e suas megaestruturas. Ou, simplesmente indicando o declínio de um mundo que havia justificado essa confiança no poder libertador da tecnologia. Dez anos antes, Archigram havia desafiado a cultura arquitetônica vigente com um mínimo de meios, uma boa quantidade de humor e energia, e sobretudo, muitos desenhos. Com estes projetos publicados em papel barato, com técnicas de impressão das mais econômicas e edições caseiras, havia reivindicado uma revisão do funcionalismo que recuperasse o heroísmo das vanguardas futuristas e construtivistas, e bancado uma aposta incondicional pela tecnologia e pela intenção de investir a arquitetura das novas realidades sociais e econômicas emergentes a partir do pós-guerra. Na virada da década, Archigram havia logrado uma certa notoriedade. Em 1972 se publicava o livro Archigram, uma coletânea de projetos e principais matérias publicadas no magazine entre 1961-1970. Cook, o principal promotor das atividades de Archigram havia editado

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Archigram

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    Concluses:

    Archigram, uma fbula da tcnica no estado do bem estar

    Ron Herron, Oasis, colagem, 1968.

    O ltimo magazine Archigram saiu em setembro de 1974, aps um intervalo de quase quatro anos sem a revista. Chamou-se Archigram 9 , indicando que talvez j no restasse tanta motivao por parte do grupo como para repetir os feitos anteriores, ou alcanar o impacto e a coerncia interna de edies como Amazing Archigram ou Metropolis em 1964, com suas referncias aos quadrinhos de fico cientfica, suas cpsulas e suas megaestruturas. Ou, simplesmente indicando o declnio de um mundo que havia justificado essa confiana no poder libertador da tecnologia.

    Dez anos antes, Archigram havia desafiado a cultura arquitetnica vigente com um mnimo de meios, uma boa quantidade de humor e energia, e sobretudo, muitos desenhos. Com estes projetos publicados em papel barato, com tcnicas de impresso das mais econmicas e edies caseiras, havia reivindicado uma reviso do funcionalismo que recuperasse o herosmo das vanguardas futuristas e construtivistas, e bancado uma aposta incondicional pela tecnologia e pela inteno de investir a arquitetura das novas realidades sociais e econmicas emergentes a partir do ps-guerra.

    Na virada da dcada, Archigram havia logrado uma certa notoriedade. Em 1972 se publicava o livro Archigram, uma coletnea de projetos e principais matrias publicadas no magazine entre 1961-1970. Cook, o principal promotor das atividades de Archigram havia editado

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    individualmente dois livros: Architecture, Action and Plan (1967) e Experimental Architecture (1970). O grupo, que sempre havia sido uma organizao informal articulada em torno revista, estava afinal tentando manter um escritrio em Covent Garden, aps vencer a competio internacional para o centro de eventos de Monte Carlo.

    Entre os contedos de Archigram 9 constavam algumas intervenes profissionais efetivamente construdas - um play-ground em Milton Keynes, uma piscina para Rod Stewart, uma instalao de exposio -, como resultado deste perodo. Entretanto, o que parecia ser um passo da arquitetura do papel e dos projetos puramente especulativos ao incio de uma carreira profissional em conjunto acaba por no se confirmar. O projeto para Monte Carlo nunca foi construdo. Archigram 9 seria o ltimo magazine publicado, e a partir de 1974 cada um dos membros do grupo segue separadamente em suas carreiras privadas, como docentes e arquitetos.

    Quando Archigram tentou estabelecer-se profissionalmente, entre 1970-1974, a situao poltica e econmica era consideravelmente distinta com relao afluncia dos primeiros anos sessenta, que havia embalado a Swinging London do rock e da mini-saia. A economia britnica enfrentava inflao, desemprego e o declnio do otimismo keynesiano; a violncia poltica na Irlanda do Norte e a crise mundial provocada pela subida do petrleo em 1973. O consenso poltico vigente desde 1945, que havia sustentado por quase trinta anos o welfare ingls e o comprometimento com o pleno emprego e as polticas sociais, estava por romper-se. Logo em 1975 Margareth Thatcher assumiria como lder dos conservadores, iniciando-se um franco processo de desmantelamento das polticas pblicas que haviam sido a base da sociedade do bem estar.1

    Seja qual for o alcance da contribuio de Archigram, como grupo, cultura arquitetnica, ela se deu neste mbito da arquitetura do papel, atravs de projetos e desenhos. Ao final dos sessenta, nota-se uma influncia de Archigram sobre as correntes tecnolgicas inglesas, especialmente na obra de Richard Rogers, Norman Foster e Nicholas Grimshaw. parte de um passado comum na tradio funcional inglesa, de Paxton ao primeiro Stirling, uma certa gramtica e iconografia que Archigram havia explorado ao longo dos anos sessenta cristaliza na obra destes autores. Mas se existe uma relao formal, e a manuteno da confiana bsica na tcnica, essa continuidade suficiente para estabelecer uma mesma posio arquitetnica?

    Esta tese partiu do princpio que o interesse em precisar a contribuio de Archigram cultura arquitetnica deveria ir alm de provar sua relativa continuidade nas propostas das correntes tecnolgicas. Que atravs dos meios particulares do projeto e do desenho, Archigram chegou a produzir uma crtica cultura arquitetnica vigente em sua poca, e que esta crtica acabou envolvendo uma reflexo mais ampla sobre a questo da experincia da tcnica em um momento de profundas transformaes sociais e econmicas. Que esta crtica, ainda que arrancando de uma posio tecnologicamente determinista, tambm executou um programa de ao que atuava atravs da fico e da fantasia, incorporando flexivelmente um marco terico e intelectual externo aos discursos estritamente arquitetnicos.

    1 Sobre o modelo poltico de sustentao do estado assistencial britnico, vigente entre 1945-1975, e a ruptura deste modelo que culmina com o liberalismo da era Thatcher, ver Dennis Kavanagh e Peter Morris, Consensus Politics. From Atlee to Thatcher. Oxford, Basil Blackwell, 1989.

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    Uma matriz de projeto para um mundo em transformao: o alvo desta crtica

    A crtica que Archigram produziu com respeito ao contexto arquitetnico de seu tempo baseava-se principalmente no reconhecimento de uma agenda de problemas prpria da realidade dos anos sessenta, que parecia consideravelmente distinta daquela agenda dos anos vinte, em que se haviam produzido as vanguardas modernas. Porm, antes de recusar o legado destas vanguardas, essa crtica tinha por objetivo renov-lo, reafirmando seu compromisso com a tecnologia e o esprito do tempo. Para tanto, estava reclamando uma arquitetura que no apenas investisse nas novas tecnologias, mas que estivesse tambm formalmente investida das novas circunstncias sociais e econmicas emergentes a partir do ps-guerra, que acompanharam a expanso do fordismo e a formao dos mercados de massa.

    No contexto ingls, uma arquitetura estatal concebida como servio pblico havia em parte realizado as ambies de cunho social do movimento moderno. Havia utilizado a industrializao e a pr-fabricao para colocar em marcha uma poltica habitacional capaz de produzir as quantidades esperadas de casas ao ano, e resolver com a estandardizao de solues o problema da relao entre quantidade e custo. Mas, nem a verso inglesa de realismo social praticada nas New Towns, nem os grandes blocos de habitao executados com a pr-fabricao pesada, nem o modernismo domesticado no estilo internacional, pareciam lograr a imagem que expressasse de forma convincente esta sociedade emergente. Esta sociedade que parecia estar sendo rapidamente transformada pela exploso da cultura de massas, pela obsolescncia como norma, pelo impacto das tecnologias da comunicao e pela asceno da telecultura.

    Em comum com outras posturas arquitetnicas no ps-guerra, Archigram contestou tanto o pragmatismo do realismo social quanto a resposta funcionalista codificada no estilo internacional. Os Smithsons haviam feito esta crtica com base nos conceitos de identidade e lugar, Stirling e Gowan do ponto de vista da expresso das tcnicas construtivas e da relao com a tradio funcional, Price na questo da arquitetura entendida como servio, mais que como forma, para dar apenas exemplos dentro do contexto ingls. O que diferenciou a crtica de Archigram destas posies?

    Em primeiro lugar, a tentativa de expresso de uma cultura industrial e urbana, e tambm da lgica econmica de sustentao desta realidade: obsolescncia, mobilidade, transitoriedade. De um ponto de vista iconogrfico, Archigram trouxe referncias diretas da prpria cultura do consumo, do mundo da cincia, dos objetos tcnicos. Esta era uma operao h muito tempo legitimada pelas vanguardas. Le Corbusier pensava no transatlntico e no motor 10HP do Citron; Archigram na cpsula do astronauta e no transistor. Mas no se trata apenas de uma questo de renovao estilstica.

    Existe sem dvida uma vontade de ampliao dos repertrios arquitetnicos modernos pela fertilizao de outros contextos, mas, nas concluses desta tese, a questo central desta crtica outra. O problema fundamental para Archigram era: de um lado, recuperar aquele compromisso das vanguardas, de assimilao de uma cultura tcnica (entendida como conjunto de objetos tcnicos e formas de organizao) atravs de uma resposta no puramente tcnica, que expressasse formal e compositivamente uma realidade emergente; e

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    de outro, promover a reviso do dogmatismo funcionalista dentro deste novo contexto de contnua transformao, daquele mundo que parecia estar explodindo.2

    O que estava sendo colocado em discusso era a confiana funcionalista na possibilidade de determinao das formas a partir de uma identificao unvoca das funes. matriz funcionalista de projeto baseada na assero de Auguste Choisy de que cada problema encerrava sua prpria soluo,3 Archigram buscaria opor uma matriz compositiva para um problema mltiplo, cuja soluo poderia estar fora dele mesmo. A sntese dessa matriz est identificada com aqueles oito conceitos fundamentais para Archigram, propostos como as noes bsicas que foram sustentando todos os seus projetos, conforme explicado ao longo desta tese: metamorfose, emancipao, indeterminao, controle e eleio, conforto, nomadismo, o par hard-soft.

    Nesta tese, se procurou demonstrar que Archigram no apenas realizou suas propostas dentro deste marco econmico, poltico e social historicamente definido, como conduziu toda sua atuao crtica segundo uma agenda de problemas sugerida por este contexto. Esta atuao crtica possua uma base terica, que envolvia tanto um discurso interno disciplina arquitetnica, tal como o pensamento de Reyner Banham, quanto a permeabilidade a discursos externos ao mbito disciplinar, cuja influncia, menos explcita, se tentou comprovar.

    Neste sentido, a matriz de projeto proposta por Archigram procurava articular alguns dos grandes temas culturais deste perodo que vai do ps-guerra ao final dos anos sessenta, que indicam um certo deslocamento da nfase nas demandas sociais e coletivas que haviam sido centrais para as vanguardas, para a questo da expresso e da liberdade individual, no marco de uma sociedade de massas e de um estado tecnocrtico. Esta insistncia na participao individual e na noo de uma arquitetura como produto de consumo, mas tambm como produto do consumidor, era uma resposta a um dos dilemas bsicos no contexto da sociedade da afluncia: o problema da autonomia individual perante os grandes sistemas tecnocrticos, em uma sociedade homogeneizante e um estado protetor.

    O homem do terno cinza de Sloan Wilson, o homem organizao de William Whyte, o homem uni-dimensional de Marcuse, ou a multido solitria de Riesman, eram encarnaes de um certo mal-estar da afluncia que acompanhava estes anos gloriosos do capitalismo.4 E este mesmo contexto intelectual identificou personagens que poderiam constituir o antdoto ao conformismo do homem do terno do cinza: o homo-ludens de Huizinga, que a fonte original da idia de autonomia individual atravs do jogo de Riesman, ou o nmade prottico da cultura beatinik. Esse dilema entre indivduo e sistema, que informou os movimentos de contra-cultura dos anos sessenta, penetrou a cultura arquitetnica e suscitou distintas respostas, algumas nitidamente anti-modernistas, outras no; para 2 David Greene, entrevista a Barry Curtis, em Archigram - A Necessary Irritant, em Dennis Crompton, Concerning Archigram, Londres, Archigram Archives, 1999, p. 56. 3 La question pose, la solution tait indique, tal como citado em Reyner Banham, Teoria e projeto na primeira era da mquina (1960), So Paulo, Perspectiva, 1975. 4 Referncias aos ttulos de textos literrios e sociolgicos influentes na cultura inglesa e americana dos anos cinqenta e sessenta, que esta tese identificou como o marco intelectual com o qual relacionar as propostas de Archigram: David Riesman, The Lonely Crowd , 1950, Sloan Wilson, The Man in the Grey Flannel Suit, 1955, William Whyte, The Organization Man, 1956, Herbert Marcuse, One-dimensional Man, 1964.

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    Archigram, o homo-ludens e o nmade tecnologicamente equipados eram os personagens a contrapor cultura arquitetnica, no intento de reverter a utilizao da tecnologia de acordo com as finalidades de um novo projeto anti-tecnocrtico.

    Atravs desta matriz, Archigram mantem a confiana no emprego das novas tecnologias, na industrializao e na estandardizao, mantem algo do projeto social moderno no sentido de que todas suas propostas so dirigidas s massas, mas tenta incorporar os problemas e as demandas prprios da sociedade do bem estar. Se a questo para Gropius e Le Corbusier havia sido a determinao cientfica do standard para ser reproduzido pela mquina, a questo para Archigram era a conciliao desta lgica da produo em srie e do consumo massivo com variedade de produtos e flexibilidade na utilizao. Se o problema de projeto com que se haviam enfrentado as vanguardas funcionalistas era homogeneizar, para poder produzir e repetir em escala massiva, o problema de projeto que Archigram identificava era como diversificar, como possibilitar um consumo diferenciado, porm dentro da mesma lgica da produo massiva.

    Onde a busca tipolgica moderna havia preconizado no apenas novas solues arquitetnicas, mas tambm um determinado modo de vida, ordenado e higinico, com um lugar para cada coisa, e cada coisa em seu lugar, a expectativa de Archigram era investigar uma matriz aberta de projeto que justamente evitasse a arquitetura como solidificao de qualquer modo de vida. Conceitos como emancipao, metamorfose, indeterminao ou nomadismo, estratgias de projeto tais como o plug-in e o clip-on, so propostos como artilgios para conferir ao indivduo a possibilidade de participao e escolha, de exercer por si mesmo controle sobre seu ambiente de vida.

    O cerne da crtica de Archigram cultura arquitetnica vigente era a resistncia por parte desta cultura a incorporar as novas tecnologias de uma maneira que favorecesse esse tipo de controle individual, de passar da pr-fabricao pesada ao investimento em sistemas de projeto e produo que pudessem oferecer opes de controle por parte do ocupante. Essa era a idia da megaestrutura como um sistema genrico basicamente indeterminado, cuja organizao, em cada momento dependeria da soma de mltiplas decises individuais; esse foi o caminho da fragmentao das cpsulas em sistemas de pequenos elementos pr-fabricados, em artefatos mveis, em dispositivos tcnicos para carregar consigo. Archigram esteve sempre no negcio do catlogo,5 e o que enxergava como sua contribuio ao tema era defender a possibilidade de apropriao da tecnologia a uma escala ao mesmo tempo individual e massiva.

    Construindo uma fbula da tcnica: o programa de ao

    O fio condutor da interpretao de Archigram proposta nesta tese foi a noo de posio arquitetnica de Roy Landau. Precisar uma posio arquitetnica descrever um programa de ao, e todo programa de ao possui uma base dogmtica, o hardcore que no est sujeito a questionamentos, e um conjunto de regras de operao que permitem conectar o programa ao passado, mas tambm explorar o futuro.6 O programa de ao assim uma

    5 Estamos no negcio da catalogao, e o nosso trabalho iluminar e estender e re-inventar o catlogo. Archigram, Background Notes, Architectural Design, agosto de 1971, p. 486. 6 Royston Landau, Architectural discourse and Giedion, The Journal of Architecture, v. 1,

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    formulao interativa com relao a um discurso disciplinar entendido como um conjunto de princpios, idias e ideais prprios de cada rea de conhecimento, para o qual contribui, seja por oposio ou por legitimizao.7

    Sem os desenhos, seramos uma nota de fim de pgina em uma nota de fim de pgina8 - reconhecia recentemente Peter Cook ao comentar a experincia de Archigram desde uma perspectiva histrica. E este um aspecto que no pode ser passado por alto na determinao de uma posio arquitetnica para Archigram no contexto da arquitetura de seu tempo. Se o hardcore desta posio estava na mesma confiana na tecnologia que animava Fuller, Yona Friedman, ou mesmo Price, para citar algumas posies afins, o seu programa de ao envolveu um tipo de especulao e investimento em questes de ordem formal e terica, que se manteve intrincado com uma perspectiva artstica e cultural.

    Se Archigram, como grupo, realizou uma contribuio cultura arquitetnica, no o fez atravs de obras construdas, ou prottipos experimentais. Essa contribuio se deu atravs de desenhos e projetos situados no campo da especulao, no territrio limite entre fantasia e plausibilidade; muitas destas propostas eram deliberadamente fantsticas, como a Walking City, ou eram deliberadamente proposies irnicas como o rob Manzac e os Rokplugs, ou deliberadamente conceituais como a idia da floresta ciberntica e da arquitetura da ausncia, ou deliberadamente a especulao de situaes limite entre a arquitetura e alguma outra coisa, como em Cushicle e Suitaloon ou na dissoluo da casa em um conjunto de dispositivos tcnicos.

    Esta tese pretendeu sustentar que atravs destes projetos muitas vezes puramente especulativos (ainda que desenhados como se fssem para ser construdos amanh), Archigram foi produzindo uma espcie de narrativa de fico levantada atravs do projeto, desde uma diversidade no apenas de autores (os seis membros do grupo), mas tambm de temas, enredos e personagens. Foi atravs desta narrativa que Archigram articulou um discurso arquitetnico, que podia ser proposto como um discurso crtico com relao a um discurso disciplinar genrico. E neste sentido, se prope que Archigram atuou no mundo do texto no apenas porque a forma de expor seus projetos e idias foi atravs de uma revista. Archigram atuou no mundo do texto porque organizou um relato de fico, se entendemos esta expresso tal como explicada por Paul Ricoeur, como a proposio de um mundo diferente do mundo real, mas ainda assim, a proposio de um mundo suscetvel de ser habitado.9

    Spring, 1996, p. 63. 7 Landau, op. cit., p. 63. 8 Peter Cook, Genaue Erinnerungen /Accurate Reminiscences, em Toni Stooss e Eleonora Louis (eds.), Archigram, Symposium zur Ausstellung, Viena, Schriftenreihe der Kunsthalle Wien, Ritter Verlag, 1997, p. 30. 9 Segundo Ricoeur: la nocin de mundo del texto nos exige abrir () la obra literaria a un exterior que ella proyecta ante s y ofrece al examen crtico del lector. Nocin de apertura que no contradice la de cierre implicada por el principio formal de configuracin, ya que una obra puede estar a la vez cerrada sobre s misma en cuanto a su estructura y abierta a un mundo, como una ventana que recorta la perspectiva huidiza de un paisaje ofrecido. Esta apertura consiste en la pro-posicin de un mundo suscetible de ser habitado. Paul Ricoeur, Tiempo y Narracin II. Configuracin del tiempo en el relato de ficcin, Madrid, Siglo Ventiuno, 1995,

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    Essa narrativa, que chamamos uma fbula da tcnica, envolveu trs pautas principais - o tema do consumo, o tema da mobilidade, o impasse final entre materialidade arquitetnica e tecnologia -, bem como seus respectivos personagens, como o homo ludens, o nmade e o aborgine eletrnico. Nesta fico arquitetnica que Archigram construiu, a fantasia e o recurso ao imaginrio no tem nada que ver com o irracional, a fantasia o instrumento para construir um mundo que tem toda uma lgica interna, e que alm de tudo, se pretende que possa interagir criticamente com o mundo real, e por isso que essa narrativa pode ser considerada como uma fbula.

    E para que essa fbula possa ser confrontada com o mundo real, ou que esse discurso particular de Archigram possa ser confrontado a um discurso disciplinar, a questo da verossimilhana fundamental. O realismo no desenho, a retrica do detalhe, o suposto comprometimento tcnico de todos estes projetos, funcionam como um dos pontos fundamentais para conferir plausibilidade narrativa;10 para fragu-la em uma linguagem comum, que permita ao mesmo tempo assimilar outros repertrios (da arte, da cultura popular, da cincia), e manter o ncleo comum de dilogo com a tradio da profisso.

    Como explica Peter Cook sobre o caminho que tomou Archigram em seus projetos:

    Como arquitetos academicamente treinados (o que todos ramos), estvamos informados (e excitados por) atividades contemporneas no mundo da arte; os artistas pop ingleses eram, muitos deles, nossos amigos, mas os movimentos tomaram trajetrias separadas. Onde os artistas tornaram-se mais literrios e polticos (Blake, Hamilton, Tilson) nos tornamos mais e mais afetados pelas possibilidades da cincia e dos padres de comportamento social. A significao real do carro eltrico, da televiso no jantar, das cidades das caravanas, o significado de cem mil pessoas no topo de uma colina reunidas pelas luzes e pela msica: isso precisava - e somente podia - ser descrito como CIDADE. Assim o determinismo de Plug-in City (como uma esttica), ou Walking City (como um objeto) foi deslocado em 1969-70 pela Instant City, uma caravana nmade onde no havia nenhum elemento particularmente mais importante que outro, e onde a esttica em si mesma comeava a fragmentar-se.11

    O grande movimento da fbula da tcnica que Archigram construiu, o fluxo dessa narrativa, foi da monumentalidade miniaturizao; da soluo totalizadora fragmentao; da lgica mecanicista das megaestruturas invisibilidade e aspirao de imaterialidade de Computer City e da floresta ciberntica. O contexto desta fbula era a emergncia da sociedade de consumo de massas e o giro de ps-guerra em direo s tecnologias da comunicao e da informao; a passagem do mundo estvel do fordismo e das cadeias de montagem, condio de entropia e simultaneidade que expressava a metfora da aldeia global de McLuhan. p. 533. 10 Uma influncia estabilizante era a moralidade do realismo, que significava que (sempre que possvel) ns fazamos os projetos segundo as dimenses normais, de materiais normais (e estranhamente) com a composio normal de coisas como casas e lojas e balces e escadas. Oitenta e cinco por cento dos projetos de Archigram so imediatamente passveis de ser construdos usando tcnicas correntes. Peter Cook, On Being English, em Six Conversations, Architectural Monographs, n. 28, Londres, Academy Editions, 1993, p. 112. 11 Idem.

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    Assim, a oscilao dessa narrativa entre a lgica seqencial e mecnica de Plug-in City e a simultaneidade eletronicamente produzida em Computer City indicou justamente aquela transformao no carter e na representao da tecnologia quando esta deixou de estar identificada primordialmente com artefatos concretos - como era o caso da mquina -, e passou a identificar-se, cada vez mais, com sistemas e processos potencialmente abstratos e ubquos de controle, como seria o caso dos sistemas de comunicao e informao.

    O papel que a mecanizao havia desempenhado na cultura da modernidade seria assumido pelas tecnologias eltricas e eletrnicas; se o funcionalismo dos anos vinte havia buscado representar a mquina, como uma entidade concreta, e o tempo das cadeias de montagem, como um tempo que podia ser dividido, medido e organizado conforme uma sucesso linear de eventos, o que a fbula da tcnica proposta por Archigram procurava assimilar era justamente esta transformao na percepo da tecnologia, e a implicao dessa transformao na prpria experincia do tempo do espao.

    O que foi que construmos? - explicava Cook - um conjunto de atitudes, um conjunto de referncias, uma ampliao de vocabulrio da arquitetura no apenas no sentido formal, mas tambm no sentido do qu podia ser discutido por arquitetura.12 O que Archigram queria demonstrar, atravs dessa fbula, era no apenas como a arquitetura poderia empregar as novas tecnologias, mas, em ltima anlise, investigar como a tecnologia estava implicada na maneira pela qual as pessoas utilizariam, experimentariam e viveriam a arquitetura e a cidade. A razo dessa fbula era interpretar, atravs do projeto como fico que permite explorar um campo de relaes conceituais e formais, um conjunto de transformaes sociais que eram propostas pela tecnologia. Esta fbula estava dirigida portanto cultura arquitetnica de seu tempo. Era esse mundo, o da cultura arquitetnica, que Archigram queria ampliar.

    Desde uma perspectiva atual, David Harvey em A Condio Ps-moderna comenta a transio econmica do fordismo a um regime de acumulao flexvel, em que o capitalismo passa a organizar-se atravs da disperso e da mobilidade geogrfica, e cuja principal conseqncia cultural est identificada como uma aniquilao do espao por meio do tempo.13 Paul Virilio aponta como elementos constitutivos de nossa poca uma velocidade e um tempo tecnolgicamente produzidos, cuja conseqncia seria a eroso dos limites fsicos, e a passagem da ordem do sucessivo desordem do simultneo.14 Desde uma viso contempornea, a pequena fbula de Archigram pode hoje ser vista como uma representao sinttica de toda uma transformao econmica, social e cultural que teve lugar no contexto destes anos de reestruturao capitalista, em que um modelo fordista, industrial, baseado na produo e no consumo de objetos, passava a combinar-se s formas de produo ps-fordistas. E, paradoxalmente, despeito de sua perspectiva basicamente otimista, o caminho da fbula proposta por Archigram, cujo ltimo movimento seria na direo da invisibilidade e da ausncia, da precariedade material e da fragmentao e hibridizao entre dispositivos arquitetnicos e mediticos, parece ter antecipado o sentido de uma crtica contempornea da 12 Peter Cook, Conferncia em Milo sobre o projeto de Archigram para Monte Carlo. Colgio de Arquitetos de Milo, 30 de maro de 2000 (no publicado). 13 David Harvey, A condio ps-moderna (1989). So Paulo, Edies Loyola, 1993. 14 Paul Virilio, Esttica de la desaparicin, Editorial Anagrama, 1988. Ver tambm o ensaio El control del entorno, em Paul Virilio, La Inercia Polar, Trama editorial, 1999, pp. 93-115.

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    tcnica, seja a teorizao da esttica da desapario de Virilio ou a compresso espao-tempo de Harvey.

    On the (rocky) road

    Why do you care, why do you care about me the Future, thru your

    planning you stifle me (still unborn)

    with your values and moralities, dont imagine me,

    do I beckon you with Bombs and a plastic soul

    or is it your own realization that you are already plastic that worries you. () The road, friends, to Utopia, is indeed rocky.

    David Greene, 196915

    Archigram projetou sua fbula em um mundo s vsperas de uma crise de futuro. Se colocou um ponto final nesta fbula em 1974, uma parte de seu enredo se cumpriu independentemente de seu concurso direto, e algumas de suas imagens foram construdas, sem que isso significasse alcanar o mundo da flexibilidade, do jogo e da autonomia individual que divisavam, e seu otimismo parece hoje deslocado.

    Porque apesar do impasse final entre arquitetura e tecnologia, essa havia sido uma fbula otimista. Se a tecnologia tornasse a arquitetura dispensvel, era porque afinal, segundo o modelo de Mcluhan, no mundo retribalizado pela eletricidade o homem seria devolvido a uma condio integral e primitiva de total reconciliao com a natureza.

    Como Lewis Mumford havia observado, o culto ao primitivismo e ao indivduo havia sido uma das mais profundas reaes romnticas contra a mquina, desde o contexto da revoluo industrial.16 O modelo de McLuhan dava margem ao otimismo, porque de uma certa maneira oferecia uma perspectiva de soluo, oferecia a volta ao primitivo como resposta contradio bsica entre a racionalidade tcnica e a restrio autonomia individual como um dilema intelectual no contexto dos anos sessenta.

    Porm, o problema bsico da fbula de Archigram (e tambm do esquema de McLuhan) no simplesmente a sua confiana na tecnologia; sua confiana na tecnologia como um agente relativamente autnomo de cmbio. Do interior desta bolha de idealizao da tecnologia que permaneceu inflada at que entrasse em crise o modelo de sustentao do estado do bem estar, provavelmente era impossvel enxergar que o caminho desta fbula era

    15 David Greene, Are you sitting comfortably? Then Ill begin. Architectural Design, maio de 1969, p. 507. 16 Lewis Mumford, Tcnica e Civilizacin (1963), Madrid, Alianza, 1994, p. 310.

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    tambm o da dissoluo do mundo que permitia a sua plausibilidade. Que a mesma cultura tecnolgica que havia estado implicada com o homem saltando para cima e para baixo na lua e nas ruas, e os estudantes no poder em Woodstock, no Hyde Park e nos campus,17 que a mesma tecnologia que parecia estar semeando uma floresta ciberntica para o deleite dos homens e permitindo voar s velocidades eltricas da conexo planetria, estava possibilitando a ltima reestruturao do capitalismo e a desindustrializao. E isso no era o augrio da realizao do Eden e de uma completa cultura do cio, mas da decadncia das cidades, do desemprego e do declnio do estado assistencial na imediatamente subseqente era Thatcher.

    Os cenrios da fbula de Archigram so todos perfeitamente factveis nos horizontes tecnolgicos atuais. A tecnologia pode realizar todos os sonhos de conjuro que Archigram divisou em sua fbula, mas o sentido da reapropriao humana da tcnica que existia nas estratgias de Archigram, se perdeu na ressaca tecnolgica dos setenta, e no parece to fcil de recuperar no banho virtual dos noventa. No contexto dos anos sessenta, Archigram contava com a idia de uma tecnologia passvel de ser colocada sobre o controle dos indivduos.

    A trajetria de Archigram, da megaestrutura aos pequenos elementos, do gigantismo miniaturizao, representava um esforo por devolver a tecnologia escala humana, a uma dimenso passvel de ser manipulada pelo homem comum. A idia de arquitetura como jogo proposta por Archigram tinha que ver com essa possibilidade. E remete s explicaes de Mumford sobre o papel fundamental que desempenhou o jogo na constituio de toda uma cultura tcnica. O esprito do jogo contribuiu para liberar e expandir uma imaginao mecnica, que primeiro esteve ocupada na inveno e na produo de artefatos e engenhos no utilitrios, que constituram o terreno da experimentao sobre o qual estaria cimentado todo o desenvolvimento da cultura material humana.18 Toda a gramtica plug-in e clip-on que

    17 No limiar dos setenta uma nova era parece estar iniciando. O homem saltou para cima e para baixo na lua e nas ruas. Os estudantes propuseram as regras em Woodstock, no Hyde Park e nos campus. Alguns, infelizmente, pela ltima vez. Entre todas estas idias conflitivas, opinies divergentes, nada parece mais importante de momento que criar um ambiente humano. Sistemas de vida, rvores, plantas, flores, animais, pssaros e o homem em si mesmo, so mecanismos fantasticamente interativos. Os sistemas mecnicos com os quais construmos o entorno feito pelo homem, sempre foram menos que isso: com pouca habilidade para responder. Mas a nossa busca por sistemas adaptativos deveria ser o objetivo principal, produzir um ambiente com o qual o indivduo comum, em qualquer nvel de intensidade, possa reconciliar-se a si mesmo sem um intolervel esforo de adaptao fsica e mental. Warren Chalk, Touch not, Architectural Design, abril de 1971, p. 432. 18 algunas de las grandes realizaciones de la mecanizacin se concibieron primeramente como cosa de juego: relojes complicados cuyas figuritas se movan con una sucesin de difciles y elegantes movimientos, muecas que se movan solas, coches que andaban como un mecanismo de reloj, pjaros que agitaban su cola al tiempo que sonaba una caja de msica. Aunque sin importancia, estos juguetes, estos divertidos motivos, no fueron completamente intiles. Es cierto que la parte desempeada por los juguetes y los instrumentos no utilitarios en el fomento de importantes inventos no puede ignorarse a la ligera. () La verdad mecnica fue a veces dicha primeramente en broma, lo mismo que el ter fue primero usado en los juegos de saln en Amrica antes de ser empleado en ciruga. En realidad, el ingenuo inters del nio subsiste en slo vagos disfraces como gran parte del inters del adulto por las mquinas: los motores son

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    Archigram explorou procurava recolher esta possibilidade, de poder separar o todo em suas partes, de compreender o seu funcionamento, de torn-lo manejvel para que pudesse ser convertido pelo homem da rua em outras arquiteturas, em outras fbulas.

    cubos y palas vestidos de etiqueta para los adultos. El espritu del juego liber la imaginacin mecnica. Mumford, op. cit., pp. 120-121.