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49 MESTIÇAGEM, ESTRATÉGIAS DE CASAMENTO E PROPRIEDADE FEMININA NO ARQUIPÉLAGO DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE NOS SÉCULOS XVI, XVII E XVIII Arlindo Manuel Caldeira * Resumo: No pequeno arquipélago de São Tomé e Príncipe, situado sobre a linha do Equador, um sector da população mestiça, produto das relações entre portugueses e escravas africanas, ganhará, ainda na 1ª metade do sécu- lo XVI, relevância económica e reconhecimento político. Mais lento será o reconhecimento social, processo complexo em que a estratégia mestiça, da mesma forma do que a dos “brancos da terra”, passa por uma política de casamentos que se pode caracterizar como de “branqueamento” ou “desafri- canização” e de que, neste artigo, são estudados vários casos, relacionando- -os com o estatuto legal de propriedade. A mulher da elite crioula, não dei- xando de ter um papel social próximo do de outras sociedades europeias e europeizadas do seu tempo, assume um carácter relativamente mais inter- ventivo, sobretudo quando se trata do grupo das mulheres viúvas. Palavras-chave: São Tomé e Príncipe; mestiçagem; mulheres; casamento misto; propriedade feminina Abstract: The role of Creole Women in the São Tomé and Príncipe Islands during the 16 th , 17 th and 18 th Centuries. * Centro de História de Além-Mar, Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores, [email protected]. ARQUIPÉLAGO • HISTÓRIA, 2ª série, XI - XII (2007 - 2008) 49-72

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Arlindo Caldeira

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  • 49

    MESTIAGEM, ESTRATGIAS DE CASAMENTOE PROPRIEDADE FEMININA NO

    ARQUIPLAGO DE SO TOM E PRNCIPENOS SCULOS XVI, XVII E XVIII

    Arlindo Manuel Caldeira*

    Resumo: No pequeno arquiplago de So Tom e Prncipe, situado sobre alinha do Equador, um sector da populao mestia, produto das relaesentre portugueses e escravas africanas, ganhar, ainda na 1 metade do scu-lo XVI, relevncia econmica e reconhecimento poltico. Mais lento ser oreconhecimento social, processo complexo em que a estratgia mestia, damesma forma do que a dos brancos da terra, passa por uma poltica decasamentos que se pode caracterizar como de branqueamento ou desafri-canizao e de que, neste artigo, so estudados vrios casos, relacionando--os com o estatuto legal de propriedade. A mulher da elite crioula, no dei-xando de ter um papel social prximo do de outras sociedades europeias eeuropeizadas do seu tempo, assume um carcter relativamente mais inter-ventivo, sobretudo quando se trata do grupo das mulheres vivas.

    Palavras-chave: So Tom e Prncipe; mestiagem; mulheres; casamentomisto; propriedade feminina

    Abstract: The role of Creole Women in the So Tom and Prncipe Islandsduring the 16th, 17th and 18th Centuries.

    * Centro de Histria de Alm-Mar, Universidade Nova de Lisboa e Universidade dosAores, [email protected].

    ARQUIPLAGO HISTRIA, 2 srie, XI - XII (2007 - 2008) 49-72

  • During the first half of the sixteenth century, a sector of So Tom andPrncipes mixed race population the product of encounters betweenPortuguese colonists and african slaves gained substantial economicand political influence. Their social recognition was, however, a slowerand more complex process where the strategies of mestios often entai-led seeking marriages which could be termed as whitening or deafri-canizing, several examples of which are analysed in this article. Elitecreole women, widowers in particular, assumed a relatively interventiverole notwithstanding a continued subaltern position similar to thoseexperienced by women in European or Europeanises societies of thatperiod.

    Keywords: So Tom and Prncipe; creoles; women; intermarriage; femaleproperty

    So Tom e Prncipe, o pequeno arquiplago do golfo da Guincomeado a colonizar pelos portugueses no final do sculo XV, atinge apujana econmica logo nas primeiras dcadas do sculo seguinte, atravsdo trfico de escravos e da produo de acar. Uma prosperidade de curtadurao. Efectivamente, embora o arquiplago disponha de condiesideais para o cultivo da cana (clima, solo frtil, abundncia de gua)no acontece o mesmo em relao ao fabrico, com o excesso de humida-de do ar a prejudicar a secagem dos pes de acar. Alm da inferiorqualidade do produto (incapaz de concorrer com as exportaes brasilei-ras em ascenso vigorosa), somam-se outros factores negativos, como aparasitose que afectou as plantaes so-tomenses entre 1580 e 1595, osataques corsrios e a grave agitao social, nomeadamente a guerra domato que ops aos colonos os inmeros escravos fugidos continuamentedas roas. Assim, j na 2 metade do sculo XVI se sente a entrada emplano inclinado da economia aucareira, cuja crise se instalar definitiva-mente no sculo XVII.

    O comrcio de escravos, esse manter-se- pelos sculos fora, masferido pela descapitalizao e pela perda de mercados: por um lado, oarquiplago deixar de abastecer de mo-de-obra S. Jorge da Mina, poroutro, com o trfico directo Brasil-frica, apenas sobrar para as ilhas umproveito marginal. verdade, porm, que, desde o abrir do sculo XVII,cada vez mais navios estrangeiros (holandeses, franceses, ingleses, dina-

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  • marqueses) demandam os portos ilhus para se abastecerem de gua, demadeira e de frescos, de tal modo que as autoridades de Lisboa foramobrigadas a dar o seu beneplcito situao de quebra de facto do exclu-sivo colonial1. Esse contacto com as armadas estrangeiras no s estimu-lar o contrabando, que se tornar, alis, o sector mais dinmico da eco-nomia local, como exigir uma reconverso das roas que, paulatinamen-te, passaro da monocultura de exportao para um regime de policulturavirado essencialmente para a produo alimentar.

    A afluncia de colonos portugueses a estas ilhas equatoriais ape-nas foi significativa durante o auge da fase aucareira e, mesmo assim,teve de ser reforada com o envio regular de degredados e a autorizaopara a fixao de cristos-novos. que o arquiplago fazia pagar aoseuropeus o que lhes dava em beleza natural e em fertilidade com umamorbidade elevadssima, produto dos excessos do clima tropical e sobre-tudo do anopheles, o mosquito hospedeiro do parasita da malria (a car-neirada ou doena da terra, como lhe chamaram os colonos). A clerae a febre tifide, alm das doenas contagiosas comuns na Europa, nodeixavam de massacrar igualmente a populao branca, mas ser sobretu-do a malria que, pelo seu efeito dizimador, criar a ideia das ilhas de SoTom e Prncipe como cemitrio de europeus, afastando potenciais can-didatos fixao no arquiplago e, correlativamente, facilitando a africa-nizao do territrio. De facto, as populaes que crescem nas zonasendmicas da malria desenvolvem anticorpos que lhes permitem ganharuma relativa imunidade em relao a essa doena, o que de todo no acon-tecia com europeus acabados de desembarcar.

    Quem primeiro, e mais directamente, beneficiar com o factoranopheles vai ser a populao mestia.

    Ascenso das elites crioulas

    A miscigenao, alm de ser o resultado espontneo da atracosexual de europeus carecidos de companheira, foi tambm poltica oficialdesde o incio da colonizao. Os primeiros capites donatrios tinhamordens formais para entregarem aos povoadores escravas do lote pertencen-te Fazenda Real, para que estes lhes fizessem gerao. Um alvar do rei

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    1 Proviso de 11 de Maro de 1673 (Cristina Maria Seuanes Serafim, As ilhas de So Tomno sculo XVII, Lisboa, Centro de Histria de Alm-Mar, 2000: 216 e 253).

  • D. Manuel recorda como ele e, antes dele, D. Joo II tinham ordenado queaos degredados e pessoas outras declaradas no Regimento que de isso se fez,que fossem nossa ilha de So Tom, se desse, a cada um, uma escrava paraa ter e dela se servir, havendo o principal respeito a se a dita ilha povoar2.

    No entanto, segundo a lei do ventre (as crianas tm o estatutodo ventre que as gerou), filho de escrava, escravo era, pelo que foi preci-so dar um segundo passo que no fora previsto na promoo das uniesmistas (que tinha inicialmente em vista assegurar apenas uma mo-de--obra bem integrada na ordem colonial). Dessa forma, por carta rgia de29 de Janeiro de 1515, o monarca concede a liberdade s escravas doadasaos primeiros povoadores e aos respectivos filhos3.

    A alforria dos mestios parece ter sido bem acolhida pela popula-o europeia, provavelmente por corresponder a uma prtica j seguidaindividualmente. Em 1517, o corregedor Bernardo Segura consideramesmo que se nem todos o fazem pelo facto de a morte os surpreendersem testamento, pois, no fora assim, os deixariam forros, porque os tra-tam como filhos ldimos e os querem e amam. Avana, na sequncia,com a proposta de que seja automtica a libertao de todos os filhos queos moradores tiverem das suas escravas, sempre que no haja outros des-cendentes legtimos. E argumenta, na linha da estratgia colonizadora ofi-cial: estes so os que ficam povoadores fixos desta ilha, porque so filhosdela4. Embora no saibamos qual foi a aceitao imediata da generosasugesto do corregedor, o certo que as alforrias e mesmo as legitima-es, a ttulo individual, essas continuaro5. Alis, em 1521, as

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    2 Carta Rgia de 29/1/1515, MMA (Monumenta Missionaria Africana): I, 331. 3 Embora muito mais raras do que a situao inversa, no deixou de haver relaes entre

    brancas e negros. Algumas das meninas de origem judaica levadas pela fora para SoTom no tempo do capito-donatrio lvaro de Caminha vieram, anos depois, a casar comnegros, como se pode deduzir de uma passagem do Manuscrito de Valentim Fernandes:E o dito capito as casou, porm poucas delas parem de homens alvos, muito mais paremdos negros, e as negras dos homens alvos (Valentim Fernandes, Description de la cteoccidentale dAfrique, Bissau, Centro de Estudos da Guin Portuguesa, 1951: 118).Tambm muito provvel que algumas degredadas tenham acasalado com homens negros.No sabemos se pretendeu responder a alguma destas situaes a carta rgia de 24 deJaneiro de 1517 que alargou a liberdade acima referida aos homens escravos dados aos pri-meiros povoadores e respectivos descendentes (MMA: I, 376).

    4 Carta de Bernardo Segura a El-Rei, 15 de Maro de 1517 (MMA: I, 390-391).5 Ver, por exemplo, Maria Emlia Madeira Santos, Mulatos, sua legitimao pela

    Chancelaria Rgia no sculo XVI, Studia , n 53, Lisboa, Instituto de InvestigaoCientfica Tropical, 1994: 237-246.

  • Ordenaes Manuelinas, faziam, em termos de herana, a equiparao dofilho que algum homem solteiro peo [no nobre] houver de alguma suaescrava, se por morte de seu pai ficar forro a qualquer outro filho natu-ral, tendo, por isso, direito a todos os bens e herana de seu pai, no casode ausncia de filhos legtimos6. E passou a ser comummente aceite que,sendo o pai conhecido, o filho devia ser considerado forro7.

    Em So Tom, os mestios juridicamente livres que so perfilha-dos pelos pais ou que so publicamente reconhecidos como seus filhos,ganharam rapidamente relevo econmico, graas cumplicidade doanopheles. De facto, a elevada mortalidade entre os europeus (numa pri-meira fase os nicos terratenentes) far com que um nmero significativode roas v parar s mos dos filhos mestios, o que, ainda no sculo XVI,lhes permitir disputar, com a minoria branca, o lugar de principal grupofundirio. E esse nmero no deixar de engrossar at ao incio da segun-da fase da colonizao, j no sculo XIX. Muitos dos proprietrios mesti-os gostaro de reforar o seu poder pela criao de milcias de escravosarmados e pela instalao de sistemas defensivos nas fazendas (paliadas,torres com artilharia), fazendo-se nas roas fortes, como ento dedizia.

    Esta aposta no poder militar, por parte dos detentores de boa partedo poder econmico, tem a ver com uma procura de reconhecimento socialque, de incio, lhes recusado, sendo-lhes frequentemente apontada amcula da ascendncia escrava. Os mestios tero de pressionar a mino-ria europeia para que abra mo do exclusivo do poder poltico, tendo, naprimeira metade do sculo XVI, a luta pelo controlo institucional da ilhachegado a assumir cariz de conflito aberto.

    O poder central mostrou, no entanto, largueza de vistas e sentido darealidade a propsito do confronto tnico que atravessava o arquiplago.Desde 1520, os mestios casados e com bens prprios passam a ter direito categoria de moradores (os homens bons da tradio municipal por-tuguesa), podendo eleger e ser eleitos para os ofcios da Cmara, nomeada-mente para o respectivo executivo (os juzes). Finalmente, por provisode Agosto de 1546, D. Joo III confirma aos mestios (pardos filhos dasilhas) o direito, em plena igualdade com os brancos, de preencherem car-

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    6 Ordenaes Manuelinas (1521): Livro IV, Ttulo LXXI. As Ordenaes Filipinas (1603)mantero esta disposio (Livro IV, Ttulo XCIII) mas alargando-a aos filhos tidos dealguma escrava sua ou alheia.

    7 O que no impediu a existncia de escravos mestios, que, alis, chegaro ainda segun-da metade do sculo XVIII. Ver nota 14.

  • gos na administrao pblica e nas milcias. Deixam, portanto, de lhes servedados, pelo menos teoricamente, quaisquer lugares na hierarquia das ins-tituies do arquiplago, mesmo nas milcias, cujos postos eram puramen-te honorficos mas nem por isso menos procurados. Isto no significa quecessem imediatamente os protestos por parte do grupo mestio8. que entreas boas intenes da lei e a sua aplicao prtica podia haver um intervaloque os que no querem perder os seus privilgios procuram dilatar portodos os meios. Assim, no que toca ao poder camarrio, vemos governado-res e altos funcionrios rgios a tentar manipular os processos de eleio ea colocar no poder as suas clientelas, acontecendo o mesmo, por maioria derazo, nos cargos que lhes cabe nomear directamente.

    O reconhecimento dos direitos polticos dos proprietrios mesti-os e a equiparao efectiva aos moradores brancos ir-se- dando paulati-namente, mas exigir, por vezes, da parte dos primeiros, demonstrao dasua fora efectiva. Faro o resto a prpria evoluo demogrfica (com adiminuio do nmero de brancos), as cumplicidades familiares envol-vendo os dois grupos tnicos (j voltaremos a este aspecto) e as grandesconvulses que exigiram a coeso das elites locais (rebelies de escravosde 1585 e 1595; ataque holands de 1599).

    No incio do sculo XVII, o principal conflito, quanto a cargos degovernao, j no era entre brancos e pardos mas entre naturais e reinis,isto , entre os filhos da ilha (fossem brancos ou mestios) e os portu-gueses que faziam parte das comitivas que acompanhavam os detentores decargos de nomeao e confiana rgias (governador, capito-mor, ouvidor,provedor da fazenda), ainda que essas comitivas quase nunca fossemnumericamente significativas. H-de ter sido por essa data, de qualquerforma antes de 1617, que os naturais conseguem uma proviso do monarcapara que os capites e governadores dela provejam nos moradores as ser-ventias dos ofcios que vagarem, assim de justia como da fazenda9.

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    8 Ainda em 1553, depois de algumas escaramuas, o capito Jcome Leite alertava Lisboanestes termos: Uma das principais cousas e a mais de temer que ao presente h so asdestes homens pardos. E no deixava de acrescentar que a gente branca desta ilhaestava mais temerosa do que ele gostaria (Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre doTombo, Lisboa (IAN/TT), Corpo Cronolgico, I, Mao 90, doc. 126, Carta do CapitoJcome Leite a El-Rei, 8 de Agosto de 1553).

    9 Arquivo Histrico Ultramarino, Lisboa (AHU), Conselho Ultramarino, Cdice 31, fls.46v-48. Consulta do Conselho Ultramarino, 21 de Agosto de 1617. Nessa reunio, oConselho apreciou uma queixa dos naturais da ilha sobre o facto de a referida provi-so no estar a ser cumprida pelos governadores e recomendou que a mesma se guar-dasse infalivelmente.

  • Obtida a igualdade poltico-jurdica, o grupo mestio de possiden-tes assumir uma posio de cada vez maior intolerncia em relao aogrupo de negros forros, resistindo ascenso social, ainda que muitolenta, dessa comunidade, de forma a evitar qualquer eventual identifica-o entre ambos.

    O cnego setecentista Manuel do Rosrio Pinto, ele prprio negro,conta-nos, com abundncia de pormenores, como o cabido da S, consti-tudo maioritariamente, desde o sculo XVII, por mestios, boicotou sem-pre que pde a admisso de cnegos negros, situao que, no entanto, foidirimida normalmente a favor destes ltimos, pela corte de Lisboa, atravsda Mesa da Conscincia e Ordens. O problema assumiu uma dimenso cr-tica em 1717, data em que a entrada de mais um negro faria perder ao grupomestio a superioridade numrica no cabido. Os cnegos pardos (como asi prprios se chamam) no poupam nos argumentos: No convm quietao deste conclave que [os clrigos pretos] sejam cnegos, porquesendo indignos desta honra, e vendo-se feitos cnegos, se desvanecem desorte que no tratam mais do que semear ciznia []. Para que possamosviver e governar esta repblica eclesistica unidos, com paz e quietao,suplicamos a Vossa Majestade permita, por servio de Deus, conceder-nosuma proviso ou ordem para que nenhum preto possa ser cnego nestanossa S10. A Cmara de So Tom (outro reduto mestio) intervm tam-bm no brao de ferro, usando os mesmos argumentos racistas, consideran-do prejudicados os brancos e pardos filhos dos moradores principais eevocando mesmo o suposto defeito da servido dos pais dos clrigosnegros11. No entanto, ainda por esta vez, a Mesa de Conscincia e Ordensfavorecer a posio dos cnegos pretos12.

    Se a situao muito evidente no cabido, casos semelhantes dediscriminao afloram no executivo camarrio e no exrcito, nomeada-mente nas companhias de ordenanas, formadas quase exclusivamentepor naturais das ilhas. Em 1768, por exemplo, os mestios recusam-se aser incorporados em companhias de negros: aos filhos dos principaismoradores pardos [] lhes fazia grande obstculo o servirem nas compa-

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    10 Manuel do Rosrio Pinto, Relao do Descobrimento da Ilha de So Tom, Fixao dotexto, introduo e notas de Arlindo Manuel Caldeira, Lisboa, Centro de Histria deAlm-Mar, 2006: 125 e 160-162.

    11 Ibid., p. 161, n. 435; AHU, Conselho Ultramarino, Cdice 478, fls. 168v-169, Consultado Conselho Ultramarino de 4 de Fevereiro de 1709.

    12 IAN/TT, Chancelaria da Ordem de Cristo, Livro 88, fl. 8, Carta de 20 de Maio de 1709.

  • nhias de pretos e [dizem] que serviro com mais gosto ficando eles todosnuma companhia separada13.

    Esta atitude de intolerncia tnica pode ser associada, alm dosfactores j referidos, ao progressivo desaparecimento dos mulatos escra-vos14. De facto, com a ausncia dessa almofada intermdia, acentuar-se-o fosso em relao aos negros e procurar-se- fazer coincidir as caracte-rsticas biolgicas (verdadeiras ou atribudas) com a posio social doindivduo. Legitima-se, assim, a segregao e a subordinao do grupodominado, o grupo dos negros, nomeadamente dos negros escravos.Dentro dessa lgica, os mestios, pelo menos os mestios da elite local,procuraro ser identificados como brancos, recusando que lhes seja recor-dada a ascendncia africana, seja ela prxima ou remota.

    Joo lvares da Cunha, um dos maiores proprietrios locais,desempenhando, na ocasio, o cargo de governador interino, mandou, em1683, espancar e mais tarde condenar a aoutes pblicos um tal ManuelRodrigues Veloso que, na sua ausncia, lhe chamara mulato15. E a verdade que, provavelmente, era mesmo mulato, pois aparece, noutras situaes,designado como tal e na sua famlia no faltavam os cruzamentos tnicos.Mais tarde, j com o sculo XVIII adiantado, alguns dos terratenentes esuas famlias passaram a ser designados como brancos da terra. O que,tudo leva a crer, no tinha necessariamente a ver com a cor da pele.

    O casamento como estratgia de branqueamento

    Em 1739, Frei Francisco, da Ordem dos Agostinhos Descalos,teve de deixar o lugar de presidente do hospcio de Santo Agostinho, emSo Tom, devido a conflitos com o governador, e foi refugiar-se na Baa.Da escreveu uma carta ao monarca portugus, mostrando-se desolado coma situao geral que deixara na ilha. Segundo ele, uma das razes do desca-

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    13 Carta do Governador Loureno Garcs Palha para o Rei, 20 de Abril de 1768 (CarlosAgostinho das Neves, So Tom e Prncipe na segunda metade do sculo XVIII,Funchal/Lisboa, Secretaria Regional do Turismo, Cultura e Emigrao/Instituto deHistria de Alm-Mar, 1989: 236-237).

    14 Apesar de tudo, ainda havia, em 1771, na ilha do Prncipe, seis pardos cativos.Relao sumria dos habitantes da cidade de Santo Antnio da ilha do Prncipe..., 30 deJaneiro de 1771 (C. Neves, So Tom, cit.: 323).

    15 M. R. Pinto, Relao, cit.: 139. Tambm certo que, das trs designaes correntes,pardo, mestio e mulato, era a terceira a que tinha, na poca, conotaes mais pejorativas.

  • labro do arquiplago era, fcil de adivinhar, a intromisso dos governado-res em todos os negcios, poltica que expulsaria os residentes ou os preci-pitaria na misria. Assim, os pobres moradores bem faltos de capitais eempenhados, no se acham com bens para poderem dar a suas filhas esta-do. De que procede muitas virem a perder-se e outras tomarem estadopobremente com algum filho da sua terra de que tem resultado muitas gera-es daquela ilha tornarem de brancos a pretos. E, logo a seguir, lamenta-va que os moradores no pudessem dotar suas filhas com sujeitos capazesdesse reino para que suas casas possam ir em aumento16.

    Embora Frei Francisco no estivesse a referir-se apenas aos mesti-os, as suas palavras traduzem as preocupaes que esse grupo tinha em rela-o ao casamento. Repare-se que se fala unicamente nas filhas e no nosfilhos. Que a expresso dar ou tomar estado no significa apenas casarmas casar bem. Que a preocupao central que no se regrida na colo-rao da pele. Que, para isso, fundamental poder dar s filhas um bom dote.Que s com um bom dote ser possvel concretizar a ambio do casamentocom um europeu branco, condio para que as casas vo em aumento.

    O casamento das filhas , pois, para as famlias brancas como paraas mestias, a misso fundamental de cada gerao. Os filhos, os do sexomasculino, dificilmente poderiam encontrar cnjuge que no fosse da suailha (ou da ilha vizinha) e procurar-se-, na medida do possvel, que o seumatrimnio respeite as regras correntes da endogamia social. Para asfilhas, a expectativa mais elevada, devendo ser integrado o casamentofeminino no ncleo central da estratgia mestia, naquilo a que podera-mos chamar a estratgia de branqueamento ou estratgia de desafrica-nizao. Seja qual for o nome, os seus objectivos devem ser entendidosnum duplo ponto de vista, o do estatuto social imediato e o da reproduobiolgica: alm de vantagens que a curto prazo beneficiem toda a famlia,espera-se que a descendncia do casal se aproxime progressivamente deum fentipo europeu, isto que se realize a assimilao gradual com ocolonizador. A filha bem dotada (em sentido econmico, evidentemente)e, mais que todas, a herdeira nica, tem possibilidades de concretizaresses objectivos, casando com um branco que, se possvel mas no neces-sariamente, esteja bem situado na escala social.

    Como evidente, este modelo matrimonial, pormenores tnicos parte, no se afastava de forma significativa dos padres europeus seus con-

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    16 AHU, So Tom, Cx. 7, n 29, Carta do presidente cessante do Hospcio de SantoAgostinho, 20 de Setembro de 1739.

  • temporneos. Durante o Antigo Regime, nas ilhas equatoriais como naEuropa, o amor romntico (ou at o matrimnio por consentimento mtuo) objectivamente subalternizado pelos interesses familiares e de grupo. Aescolha do cnjuge deve, assim, caber aos pais, mas tambm pode ser daresponsabilidade dos irmos mais velhos ou de outros ascendentes.

    Passemos a alguns casos concretos, distribuindo-os pelos trssculos que so objecto desta abordagem. Os dois exemplos que escolhe-mos para o sculo XVI so paradigmticos.

    Simoa Godinho (ou Godinha, como gostam de dizer os documen-tos da poca) uma rica proprietria so-tomense, seguramente mestia,embora a notcia que ficou da sua passagem por Lisboa a apresente comopreta, o que no admira num mundo de brancos. provvel, alis, que ja me fosse resultado de um casamento misto17 e que, dispondo de meiosde fortuna, tenha casado com uma pessoa de estatuto social elevado, even-tualmente reinol (o que deduzimos do facto de o marido ter sido enterra-do, em tmulo prprio, na Igreja da Conceio, em So Tom). Quanto filha Simoa, por morte do pai e do irmo (e mais tarde de uma tia), ficaherdeira nica de uma fortuna aprecivel, administrada pela me. H-deter sido esta que acertou com Baltasar de Almeida, influente feitor do tratode escravos, entre outras funes rgias, o casamento da filha com o sobri-nho do dito feitor, Lus de Almeida Vasconcelos. Lus era escudeiro daCasa Real e, desde 1565, capito donatrio da ilha de Ano Bom.

    Trata-se do casamento tpico dos grupos dominantes da ilha: a terra-tenente mestia casa com um europeu com ligaes ao alto funcionalismorgio, o que significa riqueza para o marido e prestgio social para a esposa.No caso de Dona Simoa (o estatuto do marido d-lhe direito ao ttulo de dona)a ascenso social foi muito significativa. No tendo filhos, e numa altura emque a agitao na ilha de So Tom comeava a ser preocupante, embarcapara Lisboa, antes de 157818, acompanhada do marido, da me e de um enor-me squito de escravos (incluindo duas criadas pardas). Compram uma casaapalaada em Lisboa, s Portas do Mar, a zona mais requintada da pocadevido curta distncia do Palcio Real, em que tinham como vizinhos ime-

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    17 Baseamo-nos no facto de tanto ela como a(s) irm(s) serem proprietrias abastadas emSo Tom. Sobre D. Simoa, salvo outra indicao, Arlindo Manuel Caldeira, Mulheres,sexualidade e casamento em So Tom e Prncipe (sculos XV-XVIII), 2 ed., Lisboa,Cosmos/GTMECDP, 1999: 130-131.

    18 Nessa data, passa uma procurao ao marido, num cartrio de Lisboa, para que elepossa dispor de determinada propriedade (Index das notas de vrios tabelies deLisboa, 4 vols., Lisboa, Biblioteca Nacional, 1930-1959: IV, 381).

  • diatos os condes de Linhares e os de Portalegre. Mandaram fundar, paraserem a sepultados, uma imponente capela, a do Esprito Santo, naquela queera uma das mais belas e majestosas igrejas de Lisboa, a Igreja daMisericrdia (hoje Conceio Velha), que receber primeiro D. Lus deAlmeida e, em 1594, D. Simoa Godinha. No seu testamento19, a so-tomensedoa a maioria dos seus bens Misericrdia de Lisboa e deixa previstos fune-rais de incrvel espavento, mostrando a necessidade de um reconhecimentosocial post-mortem que provavelmente no tivera em vida. No registo do seubito, o religioso que o lanou chama-lhe simplesmente D. Simoa de SoTom20, com certeza o nome por que era conhecida em Lisboa, fazendo-lheprxima uma frica de que ela, em boa parte, se quisera distanciar.

    O segundo caso quinhentista igualmente paradigmtico protago-nizado por uma das figuras lendrias do arquiplago so-tomense, Ana deChaves. Est associada vaga de colonizao da 1 metade do sculo dosculo XVI e a sua presena em So Tom foi to marcante que deu origema topnimos muito conhecidos como o da Baa de Ana de Chaves (onde ficaa capital) ou o do pico com o mesmo nome (o mais elevado da ilha )21.Quase seguramente de origem europeia, talvez degredada, estava em SoTom desde, pelo menos, 1535 e, tendo enviuvado de Gonalo lvaresantes de 1546, j dirigia nesta ltima data o patrimnio familiar22. Pareceriaprovvel que voltasse a casar mas no nos chegaram notcias de que issotivesse acontecido.

    Em 1577, o seu nico descendente sobrevivo, o neto Gonalo lva-res de Chaves, que ela acarinha com particular afecto, acusado junto dovigrio geral da S, por prticas de feitiaria e pacto com o demnio23. Adenncia, fundada em acusaes mesquinhas ou absolutamente delirantes,mostra que Ana de Chaves tem inimigos entre os possidentes locais, o queno admira, mas o facto de o processo no ter tido, aparentemente, segui-mento, sinal de que continuava slida a sua influncia na ilha.

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    19 Testamento de D. Simoa Godinha, Arquivo da Santa Casa da Misericrdia, Mao 5, n49 (P. Antnio Ambrsio, Dona Simoa de So Tom em Lisboa. O seu testamento e asua capela, Lisboa. Revista Municipal, 1987: n 21, 3-22 e n 22, 25-40).

    20 Registo da Freguesia da S desde 1563 at 1610. Introd., notas e ndices de EdgarPrestage e Pedro dAzevedo, 2 vols., Coimbra, Imp. da Universidade, 1924-1927: 76.

    21 Ana de Chaves teve, pelo menos, uma trineta com o mesmo nome. No sabemos que res-ponsabilidade cabe a uma e a outra nesses topnimos e em outros aqui no referidos.

    22 IAN/TT, Chancelaria de D. Joo III. Doaes, livro 67, fls. 37v. - 38, Carta rgia de 24de Novembro de 1547.

    23 IAN/TT, Inquisio de Lisboa, Livro 194, fls. 195-198.

  • No sabemos quando, nem em circunstncias, o neto faleceu masdeve ter sido depois disso que a av mandou erguer, na cidade de SoTom, a igreja de S. Joo Baptista, onde um tmulo nico no altar-mor,devia acolher os despojos do marido e, quando chegasse a hora, os delaprpria24. Resolve, igualmente, fundar uma capela (sob a forma de mor-gadio), com vista a garantir, at ao fim dos tempos, os ofcios religiososque a ajudem na salvao eterna. Para o efeito, no lhe faltam meios: dis-pe de um patrimnio vastssimo, acumulado ao longo de muitas dcadas,em que se incluem mais de dez roas, alguns edifcios urbanos e ricosbens mveis. Faltam-lhe herdeiros: est praticamente sozinha nomundo, pelo que quer garantir a melhor forma de transmisso do patrim-nio. Da que se tenha lembrado de uma rapariga negra ou mestia, nosabemos se escrava, que se dizia ser filha do seu neto Gonalo lvares.

    A jovem chamava-se Catarina da Trindade (provavelmente porresidir na Trindade, nos arredores da capital) sendo mais tarde rebaptiza-da com o nome de famlia, Catarina de Chaves e sendo-lhe estabelecido,como dote, nada menos do que a administrao perptua do referido mor-gadio, uma fortuna fabulosa. Em 1594, a velha Ana de Chaves combinacom Pedro Fernandes Barbosa, cnego da S de So Tom, de uma fam-lia de cristos-novos (pormenor irrelevante, no sendo impossvel que elaprpria tambm o fosse), cas-la com um irmo do clrigo, Joo Barbosada Cunha, na altura tesoureiro dos defuntos e ausentes no reino do Congo,onde estava tambm envolvido, no difcil admiti-lo, no trfico de escra-vos. O casamento faz-se por procurao (tal a urgncia do enlace), masBarbosa da Cunha cedo se fixar em So Tom, onde se torna, a figuramais poderosa da ilha. Alm dos negcios de acar e de escravos (queestende a Lisboa e s Amricas), incluindo as funes de procurador e ren-deiro de algumas das propriedades da Misericrdia de Lisboa que D.Simoa deixara, foi um dos moradores mais influentes do municpio, alcai-de-mor, provedor dos defuntos, sargento-mor, capito-mor e, por trsvezes, num total de quase seis anos, governador interino do arquiplago25.

    Do seu matrimnio com Catarina de Chaves, teve duas filhas. Amais nova, Maria lvares, casar com Antnio Carvalho, do grupo decristos-novos ligado ao comrcio internacional e sucessor do sogro no

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    24 R. J. da Cunha Matos, Compndio Histrico da Possesses de Portugal na frica, Riode Janeiro, Ministrio da Justia, 1963: 153.

    25 C. M. Serafim, As ilhas..., cit.: 121, 203-204 e 276; Artur Teodoro de Matos, Os donosdo poder e a economia de So Tom e Prncipe no incio de Seiscentos, Mare Liberum,n 6, Dezembro 1993: 181-182.

  • arrendamento das propriedades da Misericrdia de Lisboa. Deste casa-mento nascer Joo lvares da Cunha, que vimos, atrs, indignado por lhechamarem mulato, homem influentssimo que foi governador interino,alcaide-mor, ouvidor geral e provedor da fazenda. A filha mais velha deBarbosa da Cunha, Ana de Chaves (o nome da trisav) casar com o fidal-go Loureno Pires de Tvora, natural do reino, com ascendncia italiana,cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo, que ser por trs vezesgovernador (duas, interinamente, por eleio da Cmara, e uma por nomea-o rgia)26. A estratgia da matriarca Ana de Chaves mostrava os seusfrutos e no espanta que o seu nome fosse perpetuado na famlia (bemcomo na toponmia da ilha).

    Um dos outros cls mais importantes de So Tom, e tambm elecom costela de cristos-novos, era o dos Alva Brando, procedentes darea de Castelo de Vide27. O primeiro desse nome de que temos notcia Mateus (nascido c. 1583) que, nos fins da dcada de 1620, desempenha noarquiplago os cargos de ouvidor e de provedor da fazenda. No entanto, oseu entrosamento na sociedade local deveu-se seguramente ao casamentocom uma proprietria local, de que sabemos apenas chamar-se AnaFernandes, eventualmente mestia.

    Violante Alva Brando, a filha do casal, era considerada, em 1640,a mais abastada de bens que havia na dita ilha28, seguramente por heran-a paterna e, muito provvel, por ser j, ento, viva. Nessa data, casacom Miguel Pereira de Melo e Albuquerque, que, alm da sonoridade dosapelidos e da origem nobre, era cunhado do novo governador, ManuelQuaresma Carneiro. A riqueza fundiria que Miguel Albuquerque adquirepor via conjugal levou a que, de forma indita em relao a outros recm--chegados, a cmara o elegesse, interinamente, para o cargo de governador,sucedendo ao cunhado vitimado pela malria. Ele prprio, depois de umcurto e atribulado governo, no lhe sobreviver muito tempo e DonaViolante fica (outra vez?) viva. Em 1642, depois de uma passagem devrios anos pela fortaleza da Mina, desembarca, em So Tom, JernimoCorreia de Carvalho, natural de Lisboa, homem de cerca de trinta anos. Aescassez de europeus e a sua experincia militar fazem com que seja nome-

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    26 M. R. Pinto, Relao, cit.: 79, 94-95 e 99-100; A. M. Caldeira, Mulheres, cit.: 131--133 e 239-244.

    27 IAN/TT, Inquisio de Lisboa, Processo n 980, testemunho de Manuel de Alva deGuevara.

    28 M. R. Pinto, Relao, cit.: 96.

  • ado capito de infantaria na fortaleza. Priva ento com Francisco AlvaBrando, e tornam-se amigos. E assim que Brando, segundo as prpriaspalavras, resolve cas-lo com D. Violante de Alva, sua irm, o que acon-tece em Janeiro de 1645. Mais um casamento correcto: a viva rica, comalgum sangue negro, casa com o militar branco, ainda relativamente jovem,com uma carreira promissora sua frente. Cerca de trs anos depois, tmuma filha, Ana. Em 1651, no entanto, Jernimo Carvalho denunciado Inquisio por crime de bigamia, e, depois de algumas peripcias, serembarcado para Lisboa, onde foi condenado a degredo para o Brasil29. DeD. Violante sabemos apenas que continuou a viver em So Tom e que, apa-rentemente, no voltou a casar, pois, nesse caso, tambm sobre ela passariaa impender a acusao de bigamia.

    Esquecendo, por agora, outros casamentos tambm do sculoXVII e tambm do mesmo tipo, passaramos ao sculo seguinte, a prop-sito do qual podemos concluir, com base nos casos que chegaram at ns,que se mantinham os mesmos critrios de escolha do cnjuge entre a elitedos naturais, particularmente dos mestios.

    Joo da Mata e Silva possua, alguns anos antes da sua morte,duzentos escravos quase todos moleces e moleconas, moleques e mole-cas, trs grandes e bem cuidadas fazendas e uma moradia, uma dasmelhores de Santo Antnio do Prncipe. Chegado ilha com cerca de 27anos, tinha feito todo o cursus honorum at atingir o posto de capito-mor,ao mesmo tempo que explorava fazendas e se dedicava ao trfico deescravos, sendo comummente considerado um dos principais moradoresda ilha30. Para isso fora tambm fundamental o casamento com CatarinaSilva, um bom partido local, provavelmente mulata. Alm de dois filhosvares, tiveram duas filhas: Madalena da Silva e Maria Correia31.

    Joo Golar (Jean Goulard? Goulart?) francs e est ligado aocomrcio de escravos, quer directamente quer representando interesses decompanhias estrangeiras32. Embora ningum o conhea ou quem o conheao conhea mal, bem aceite no meio islenho. Pouco tempo depois da suachegada (ou teria sido tudo previamente combinado num dos portos negrei-

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    29 Sempre que no damos indiao em contrrio, as informaes provm do processo deJernimo Correia de Carvalho, IAN/TT, Inquisio de Lisboa, Processo n 980.

    30 AHU, So Tom, Cx. 6, n 40, Carta do ouvidor geral Coelho de Sousa ao rei, 30 deAgosto de 1736.

    31 AHU, So Tom, Cx. 6, n 60, Folha de servios do capito-mor Joo Mata e Silva.32 AHU, Conselho Ultramarino, Cdice 1492, fl. 21v, Carta rgia ao governador e capi-

    to-geral de So Tom , 16 de Dezembro de 1722.

  • ros onde era fcil ter-se encontrado com so-tomenses?) casa com uma dasfilhas de Joo da Mata e Silva (Madalena? Maria Correia?)33. Era uma exce-lente oportunidade: o pai no s era possuidor de bens abundantes com quedotar a filha como estava imbricado nos meandros do poder do arquiplago,soluo ideal para um estrangeiro, cuja fixao na colnia podia ser (e ser)objecto de equvocos. Joo Golar no s obtm benefcios econmicos ime-diatos como, nos anos seguintes, conseguir a patente honorria de capito--de-mar-e-guerra passada pelo governador Jos Pinheiro da Cmara e voutorgado pelo mesmo governador o posto de sargento-mor da ordenana34,alm de, acima de tudo, obter a sua naturalizao pelo monarca portuguscomo vassalo e filho dos meus reinos35. Em 1734, ou um pouco antes,com a subida ao poder, na ilha do Prncipe, do capito-mor Jos RodriguesPedroso, a situao vai alterar-se. Ao contrrio do que acontecia com o ante-cessor, as relaes com a famlia Mata e Silva no eram as melhores e, quan-do Golar pede para si o posto de tenente da fortaleza, que seu cunhado aban-donara, tudo se complica36. S o facto de ser (bem) casado, impede a suaexpulso, que no pde evitar um outro francs, Francisco Bruno (ou Burn;Burnaud?), que, por ser solteiro, foi forado a abandonar a ilha37.

    Golar ter morrido cerca de 1736,38 ficando a viva a administraruma fortuna aprecivel, de que faziam parte oitenta e trs escravos, umamoradia de qualidade e duas boas fazendas, sendo uma delas a melhor emaior da ilha39. O casal deve ter tido descendncia. Em 1771 vivia, na ilhado Prncipe, Catarina Golar da Silva, seguramente sua filha (ou serianeta?) abundante de bens (o que se pode medir pelos 180 escravos quepossua) casada com o sargento-mor (mais tarde major) FranciscoJoaquim da Mata, natural de Portugal40.

    MESTIAGEM, ESTRATGIAS DE CASAMENTO

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    33 No conseguimos apurar qual delas casou com Joo Golar. Aparentemente foi Madalena,a qual, em 1738, se apresenta como viva (AHU, So Tom, Cx. 6, n 60, cit.).

    34 AHU, Conselho Ultramarino, Cdice 1492, fl. 31 e 31v.35 AHU, Cdice 486, fl. 296 e 296 v., Carta rgia para o Governador e capito-geral de

    So Tom, D. Jos Caetano Sotto-Maior, 28 de Julho de 1735. 36 Ibid.37 Ibid.38 AHU, So Tom, Cx. 7, n 39, Carta rgia ao ouvidor da ilha do Prncipe, 19 de Abril

    de 1739. 39 AHU, So Tom, Cx. 6, n 40, Carta do ouvidor geral Coelho de Sousa ao rei, 30 de

    Agosto de 1736.40 Relao da populao da ilha do Prncipe, 30 de Janeiro de 1771 (C. Neves, So

    Tom, cit.: 302).

  • Continuava, portanto, a impor-se o modelo de matrimnio comeuropeus por parte das filhas dos naturais mais influentes do arquiplago,o que, embora fosse comum a mestios ricos e a brancos, tinha nos mes-tios um significado algo desestruturante, pois, atravs da mistura de san-gues, traduzia, de certo modo, uma forma de ocultao da identidade docolonizado. O modelo, aparentemente, s ir colapsar (hiptese a confir-mar) quando a segunda vaga de dominao colonial instalar um novo regi-me de propriedade. At l, este paradigma, prestigiante em funo do esta-tuto social imposto pelo colonizador, ir contaminar, de uma forma ou deoutra, quase todos os estratos da sociedade que disponham de um mnimode poder econmico.

    Em 1738, o governador de So Tom D. Jos Caetano Sotto--Maior solicitava com veemncia o envio de oficiais mecnicos para asilhas e achava vantagem em que fossem solteiros, porque se casariamlogo e poderia ser que alguns com bom cmodo41, isto , com herdeirascom alguma coisa de seu, independentemente da cor da pele. Embora osportugueses que demandavam o arquiplago no fossem muitos, essa eraprovavelmente uma das suas motivaes, pois os que chegavam, mesmosos das classes mais baixas, conseguiam chamar a si bons partidos, fossemde jovens mestias ou de negras forras. Disso se queixavam, em 1735, ossoldados das ordenanas do Prncipe (na quase totalidade, homens negroslivres), lamentando no s no serem promovidos acima do posto de sar-gento como, suprema discriminao, verem os brancos que vieram des-terrados da pobreza casarem com as [suas] primas e parentas42 (natu-ralmente as mais ricas e as mais bonitas, ficava subentendido).

    H-de ter sido o que aconteceu com aquele marinheiro de Vila doConde, Filipe da Silva, que abandonou o seu navio em So Tom paracasar na ilha, facto j consumado em 1671, quando escreve aos pais umacarta muito cerimoniosa pedindo-lhes a beno para a sua deciso.Curiosamente, no dizia aos progenitores uma palavra sobre a condiosocial, e muito menos a cor da pele, da sua nova esposa43.

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    41 AHU, So Tom, Cx. 6, n 87, Consulta do Conselho Ultramarino de 11 de Agosto de1738.

    42 AHU, So Tom, Cx. 7, n 1, Carta dos soldados das ordenanas do Prncipe ao rei de20 de Novembro de 1735.

    43 Em relao ao casamento propriamente dito, dizia exclusivamente: fiquei nesta ilha deSo Tom casado e nela morador (Amlia Polnia, Vila do Conde, um porto nortenhona expanso ultramarina quinhentista, 2 vols., Dissertao de doutoramento mimeo,Porto, Faculdade de Letras, 1999: II, 463).

  • Formas e limites da aco das mulheres

    Como acabamos de ver, as mulheres so-tomenses surgem-nos,no que diz respeito ao seu prprio matrimnio, como um instrumentoquase passivo das estratgias familiares de negociao de poder. Seriaescusado dizer que, ao nvel das classes dirigentes (e tambm nas restan-tes, neste momento fora da nossa rea de anlise), a sociedade de SoTom e Prncipe intrinsecamente machista e a regra o silenciamentodas mulheres, o que naturalmente se reflecte tambm na mudez relativadas fontes. O quadro legislativo e o molde social em que vazado so osdo Antigo Regime europeu e se tiveram de flexibilizar-se em certos cam-pos (por exemplo no das relaes de mancebia) no perderam, por isso, oseu carcter discriminatrio em relao s mulheres.

    No entanto, embora excludas da quase totalidade dos lugares edas decises formais de autoridade, isso no significa, como bvio, queas mulheres no tenham uma margem mais ou menos ampla de poder,quer em termos da influncia no comportamento dos homens quer em ter-mos de iniciativa prpria. Uma vez que o primeiro aspecto sempre dif-cil de avaliar, detenhamo-nos um pouco no segundo.

    O regime jurdico da propriedade, numa sociedade que se estrutu-ra em boa parte em torno da posse da terra, tem naturalmente uma impor-tncia decisiva. Os sistemas cognticos de parentesco e de transmisso daherana, tradicionais na legislao portuguesa, nomeadamente nasOrdenaes, no deixam a mulher completamente margem da dinmicada propriedade. Se certo que, no caso da mulher casada, a administraodos bens entregue ao marido, este no pode vender nem alienar, seja deque forma for, bens de raiz, sem autorizao da esposa atravs de procu-rao ou por expresso consentimento em escritura pblica. Vimos atrscomo Dona Simoa Godinha vai ao notrio para autorizar o marido a alie-nar a sua fazenda das Laranjeiras44. A lei impede explicitamente a outor-ga tcita porque muitas vezes as mulheres por medo ou reverena a seusmaridos leixam caladamente algumas cousas passar, no ousando de oscontradizer45.

    Alm disso, as Ordenaes aceitam a transmisso por via femini-na de bens imveis, estabelecendo que morto o marido, a mulher fica emposse e cabea de casal se com ele ao tempo de sua morte vivia, em casa

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    44 Ver nota 18. 45 Ordenaes Manuelinas: Livro IV, Ttulo VI.

  • teda e manteda, como marido e mulher46. Na qualidade de cabea-de--casal, a mulher tinha direito posse e administrao da herana e cabia--lhe dirigir as partilhas (no caso de as haver) com os outros herdeiros.

    Este aspecto tem a maior importncia em So Tom, onde era fre-quente o final prematuro da unio familiar e era significativo o nmerodas mulheres que sobreviviam ao marido (devido, entre outras razes, aofactor anopheles), podendo dispor livremente, sobretudo no caso de noterem filhos, de meios de fortuna por vezes muito apreciveis. Algumasprocuram voltar a casar e podem, por uma vez, ter uma palavra na esco-lha do cnjuge. Isso no as impede de estar sujeitas s presses dos paren-tes mais directos, como vimos com Violante Alva Brando, a qual oirmo que resolve cas-la. E, em meados do sculo XVI, Gonalo deSauzedo, que tinha casado com Isabel Cordeiro contra a opinio da fam-lia desta, andava protegido por quatro homens armados, pois tinha medoque o matassem os familiares da mulher, os quais eram muitos e muitoricos e poderosos e [] seus inimigos capitais47.

    Se a margem de liberdade da viva, mesmo das vivas providasde bens, nem sempre segura, vemos algumas assumirem, com uma gran-de autonomia, a administrao dos seus bens e da sua vida privada, sobre-tudo quando tm o apoio, se no demasiado constrangedor, das famlias aque pertencem. Em 1535, entre os fretadores de um navio que foi ao rioCongo comprar escravos, contam-se duas mulheres so-tomenses, Cecliade Chaves e Grcia Fernandes, com certeza proprietrias fundirias48. Nofinal do sculo XVII sabemos de uma D. Catarina de Alva (provvelparente da referida D. Violante), na posse e direco da uma roa (a fazen-da Pantufa), armando e comandando os seus escravos na altura de umconflito com o governador49.

    No entanto, as autoridades oficiais podiam ser muitas vezes ten-tadas a abusar do poder e a explorar a situao das mulheres vivas, sobre-tudo quando estas se apresentavam fartas de bens.

    Em 1778, o governador Joo Manuel de Azambuja persegue echega a meter na priso D. Maria Ribeira, viva recente do sargento-mor

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    46 Ordenaes Manuelinas: Livro IV, Ttulo VII, que repetido, quase palavra por pala-vra, pelas Ordenaes Filipinas: Livro IV, Ttulo XCV.

    47 IAN/TT, Chancelaria de D. Joo III, Privilgios, livro 1, fl. 163-163v., Carta de D. JooIII, 18 de Maro de 1552.

    48 Livro da armao e regimento do navio Urbano, 30 de Abril de 1535 (MMA: XV, 115-118).49 AHU, So Tom, Cx. 3, n 121, Consulta do Conselho Ultramarino de 17 de Janeiro de

    1693.

  • Andr Lus da Cruz e pertencente a uma importante famlia mestia. Oconflito, aparentemente, deveu-se resistncia que ela fazia a casar a suafilha nica, suficientemente dotada, com um sobrinho do governador,alegando a me a menoridade da menina, que teria apenas onze anos50 (ainverso dos papis tradicionais apenas aparente, pois a me desenhava,com certeza, os seus prprios projectos).

    D. Francisca Josefa de Sousa, viva de Jos Pinheiro da Cmara,que fora governador entre 1722 e 1727, protesta, em 1732, contra o capi-to-mor da ilha do Prncipe, que, a pretexto de uma alegada dvida exigidapor um ex-scio do marido, lhe impedia a venda dos frutos das suas fazen-das, que ela administrava directamente, tanto quanto se pode deduzir51.

    Do mesmo se queixava, em 1734, D. Joana Lopes Sequeira, quevia na atitude do capito-mor da ilha do Prncipe e do respectivo prove-dor um pretexto para deixarem que se acumulassem as suas dvidas Fazenda Real, de forma a apoderarem-se da moradia, ricamente mobila-da, em que habitava, logo que fosse posta em hasta pblica52. No , noentanto, apenas por este pormenor que a vida de D. Joana Lopes Sequeira rocambolesca.

    Filha de altos funcionrios do arquiplago, D. Joana tinha sidocasada com Antnio Franco Portugus, grande proprietrio (pelo casamen-to?), negociante de escravos e uma das figuras mais influentes da ilha doPrncipe, onde chegou a capito-mor (1722-1725). Neste alto cargo, as coi-sas correram-lhe mal e, acusado de desvios Fazenda, foi exonerado emandado preso para a Baa, onde morreu. A viva ficou senhora de umimportantssimo patrimnio (e de algumas dvidas), mas a aparece umsobrinho do marido, Firmino Jos Franco Portugus, que se insinua juntode D. Joana, a qual lhe doa todos os seus bens, aparentemente pelos mui-tos medos que este criminoso lhe fazia, segundo um testemunho. Alis, ojovem tinha fama de ser desinquieto e revoltoso, difamador das casas hon-radas e incapaz de cousa alguma. Acusado de vrios crimes, entre os quaiso de adultrio (no sabemos com quem), foge para a Baa. ento que D.Joana aceita casar de novo, desta vez com Baslio Jos da Costa, moradorno Prncipe. Ou os interesses deste eram muito materiais ou ambos recea-

    MESTIAGEM, ESTRATGIAS DE CASAMENTO

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    50 AHU, So Tom , Cx. 17, n 6, Carta rgia de 28 de Fevereiro de 1779.51 AHU, So Tom, Cx. 5, n 105, Requerimento de D. Francisca Josefa de Sousa, ante-

    rior a 24 de Setembro de 1732.52 AHU, So Tom, Cx. 7, n 39, Carta rgia ao ouvidor da ilha do Prncipe, 19 de Abril

    de 1739.

  • vam o regresso do sobrinho Firmino, de tal modo que, alm de contrato decasamento propriamente dito, a mulher faz uma doao ao novo esposo detodos os seus bens (reservando apenas para si o usufruto) e, surpresa maior,perfilha o prprio marido, para maior segurana. Prudncia desnecess-ria: pouco tempo depois o marido morre e no tarda que Firmino Jos volte,se instale de novo em casa de D. Joana e lhe administre os bens, disposto,segundo o capito-mor do Prncipe, a acabar de limpar a casa53. Nuncasaberemos se se trata de mais um episdio do esteretipo da viva indefe-sa, de uma opo deliberada de D. Joana, com contornos afectivos que des-conhecemos, ou simplesmente de m gesto do patrimnio herdado.

    Um bem impossvel de usufruir pelas mulheres era o dos cargospblicos, mas estes no deixavam, por isso, de ser importantes para asvivas dos seus proprietrios. que esses cargos tambm eram suscept-veis de ser herdados54 e com eles dotar, por exemplo, uma filha ou conse-guir um novo marido. Em 1639, Ana Rodrigues, que tinha sido casadocom Domingos do Rego, faz petio, para um filho ou filha que viesse ater, dos cargos de que o falecido esposo era proprietrio: meirinho do mar,guarda-mor e escrivo da feitoria rgia. Como a petio foi deferida, issopermitiu-lhe seguramente um bom casamento, uma vez que se tratava delugares bem remunerados55. Tinha acontecido o mesmo, em 1613, comMaria de Sauzedo, mulher do escrivo da feitoria, que nesse ano ficaviva, ainda relativamente nova e com trs filhos menores. Ela prpria sediz pessoa nobre e das principais da dita cidade e ilha (de onde era pro-vavelmente natural). No tem grandes meios de fortuna, mas tem umcargo, que consegue transmitir ao filho primognito e, transitoriamente,ao futuro marido. Assim pode auto-dotar-se e, embora no lhe faltassemprovavelmente pretendentes locais, acaba por casar com Flix Pereira,natural do reino, que passa a exercer o cargo do defunto marido56.

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    53 AHU, So Tom, Cx. 7, n 39, Carta rgia ao ouvidor da ilha do Prncipe, 19 de Abril de1739; Ibid., Cx. 6, doc. 10, Requerimento de Baslio Jos da Costa s/d. [anterior a 1733];Ibid., Cx. 5, n 78, Representao dos moradores do Prncipe, 28 de Maro de 1731.

    54 Embora a legislao portuguesa o no permitisse, a maioria dos cargos pblicos, deacordo com a concepo patrimonial feudal, dominante em Portugal at ao fim do scu-lo XVII, podiam ser vendidos, arrendados ou deixados em herana (Jos Subtil, Ospoderes do centro, in Jos Mattoso, dir., Histria de Portugal, Lisboa, Crculo deLeitores, 1993: IV, 187).

    55 C. M. Serafim, As ilhas: 74 e 143.56 AHU, So Tom, Cx. 1, n 28, Informao ao Conselho Ultramarino de 9 de Maio de

    1614. Diga-se de passagem que as peties para que a propriedade (ou mesmo a serven-tia) dos cargos passasse, atravs da viva, para um filho menor, nem sempre mereciam

  • Quanto propriedade fundiria das ilhas, que percentagem pas-sava por mos femininas? Numa relao datada de 1770, de 105 roasidentificadas na ilha de So Tom, s 19 (cerca de 18%) pertenciam amulheres, sendo vivas mais de metade (10). A situao um poucodiferente quando se trata da pequena propriedade (rocinhas). Nesse caso,de 201 rocinhas identificadas, 71 (36%) pertencem a mulheres (sendo,neste caso, insignificante o nmero de vivas)57. Aparentemente a situa-o mais igualitria no grupo de pequenos proprietrios (maioritaria-mente constitudo por negros forros), caso se pudesse confirmar que aposse nominal corresponde a uma posse efectiva. Num inqurito seme-lhante relativo ilha do Prncipe, so identificadas 232 propriedades(todas elas designadas como roas mas incluindo, por certo, tambmmdias propriedades). Dessas propriedades, 45 (pouco mais de 19%)pertenciam a mulheres, das quais 38 (84%!) eram vivas58. O que sepode concluir do conjunto das duas ilhas que a grande propriedadefundiria continua a ser uma prerrogativa masculina e que quase s emsituao de viuvez as mulheres podiam esperar ter controlo sobre explo-raes agrcolas com alguma dimenso.

    O que se passava com a agricultura tinha ainda maior expressonas outras actividades econmicas. No deixa, por isso, de ser surpreen-dente que, antes de 1754, dois dos mais poderosos comerciantes da ilhafossem duas mulheres ricas que ali h, as quais se dedicavam, nomea-damente, a um intenso e profcuo trfico com o Brasil59. Eram, segura-mente, duas vivas, que tinham aprendido provavelmente com os maridos(ou com os pais e os maridos) os segredos do trato.

    Uma delas podia ser Dona Maria da Costa Correia60, viva docomerciante de escravos Jos Lus Coelho, a qual, na dcada de 1730,vemos ter uma actividade comercial de vulto, particularmente na costa daMina (surge a despachar na Alfndega de So Tom um carregamento de

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    deferimento. As vivas no tinham, de facto, nenhum direito especfico sobre esses car-gos, ficando merc da benevolncia da corte.

    57 Relao das roas que se acham na ilha de So Tom, 1770 (C. Neves, So Tom...: 294-300). 58 Relao das caneleiras e plantas de algodo da ilha do Prncipe, 1771 (C. Neves, So

    Tom..., cit.: 341-345). 59 Carta do governador de So Tom, D. Jos Caetano Sotto-Maior, 31 de Outubro de

    1754 (C. Neves, So Tom..., cit.: 215).60 No conseguimos nenhuma prova documental que nos permitisse fazer a identificao

    (que era muito tentadora) desta Maria Correia com sua homnima filha do capito-morJoo da Mata e Silva.

  • panos do Benim) e na ligao com o Brasil61. Como acontecia com estaviva, com certeza muitas outras no hesitam em tomar nas suas mos osnegcios dos falecidos maridos e passar a dirigi-los autonomamente. Podeser uma questo de sobrevivncia (na maior parte dos casos no , poistrata-se de gente com meios de fortuna), mas tambm, antes de mais, apossibilidade de aproveitar as circunstncias que permitem a essas mulhe-res, tanto do ponto de vista jurdico como social, ultrapassar os constran-gimentos culturais que bloqueavam a sua capacidade de iniciativa quandosolteiras ou casadas.

    Uma outra Maria Correia, eventualmente parenta da anterior econfundindo-se com ela na tradio popular, viveu na ilha do Prncipe jno sculo XIX, embora tendo nascido em Setecentos. A memria colecti-va conservou-se viva pois, nas primeiras dcadas do sculo XX, continua-va a ser possvel confrontar os relatos de uma biografia mais ou menoslendria com os vestgios materiais, ainda imponentes, das residnciasque habitara. Maria Correia Salema Ferreira (1788-1861), mulher mesti-a por vezes referida como negra62, era filha de D. Ana Maria de Almeida,de uma rica famlia do Prncipe, e do major de milcias, vindo do Brasil,Antnio Nogueira (como sempre o elemento exgeno, provavelmentebranco, funcionando como factor de diferenciao em relao ao comumdos habitantes). Dispondo de riqueza aprecivel, casar, em 1812 comoutro brasileiro, o capito de ordenanas, ligado ao trfico de escravos,Jos Ferreira Gomes. Este era filho de Vicente Gomes Ferreira, natural doreino mas que, durante muitos anos, fora prestigiado capito-mor doPrncipe, com atribuies de governador63. Tendo ficado viva em 1837,Maria Correia casar dez anos depois, tinha j 59 anos, com mais umbrasileiro64, Aureliano da Silva (ento com 33 anos), que morrer em1852. Maria Correia assumir depois disso as rdeas da administrao dacasa (se que no tinha tido sempre, como parece, uma influncia decisi-va) quer na parte agrcola quer, sobretudo, na actividade comercial, emparticular no altamente compensador trfico clandestino de escravos, no

    ARLINDO MANUEL CALDEIRA

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    61 AHU, So Tom, Caixa 7, n 13, Auto de inquirio, 29 de Abril de 1739.62 O livro de Jos Brando Pereira de Melo de onde colhemos o essencial dos elementos

    factuais aqui reunidos chama-se exactamente Maria Corra - A Princesa Negra doPrncipe (1788-1861), Lisboa, Agncia Geral da Colnias, 1944.

    63 C. Neves, So Tom, cit.: 51-52. 64 Esta presena de brasileiros no de estranhar, particularmente em famlias de

    comerciantes, devido aos intensos contactos, nesta poca, entre o Brasil e o arquipla-go, motivados sobretudo pelo trfico de escravos.

  • perodo ps-abolicionista65. Revelar sempre uma extrema perspicciapara o negcio, obtendo lucros fabulosos, que lhe permitiro uma vida degrande ostentao, dispondo nomeadamente de grandes casas apalaadas,uma na roa Ribeira Iz e outra junto da cidade. provvel, no entanto,que esse gosto pelo quotidiano faustoso bem como a fama da sua sexua-lidade insacivel tenham sido ampliadas pela memria popular66, procu-rando desfeminizar a personagem, atravs da atribuio de atitudes e decaractersticas reconhecidas, no masculino, aos grandes terratenentes etraficantes dessa poca.

    Sintetizando, a mulher do arquiplago so-tomense procedentedos grupos dominantes est sujeita, na sua vida activa, a limitaes e aconstrangimentos muito semelhantes aos das suas contemporneas doAntigo Regime europeu. Mas as duas Maria Correia da ilha do Prncipe,como os outros exemplos femininos que acompanhmos desde o sculoXVI, mostram-nos que, apesar de tudo, as filhas das ilhas, mestias oubrancas da terra, podem ter um maior grau de autonomia, sobretudoquando so vivas e pertencem a grupos familiares h muito enraizadosno arquiplago, que tm, por isso, solidariedades mais fortes entre si.

    MESTIAGEM, ESTRATGIAS DE CASAMENTO

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    65 Na altura da morte do segundo marido, um inventrio dos bens de Maria Correia regis-tava 14 roas, 4 casas na cidade, 376 escravos, jias numerosas, alfaias de prata e ouro,baixelas, mveis caros e roupas riqussimas.

    66 Essa tradio, cada vez mais nebulosa e erotizada, chegou ainda aos nossos dias.